Terra Indígena Raposa Serra do Sol: demarcação

Transcrição

Terra Indígena Raposa Serra do Sol: demarcação
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
NÚCLEO DE ESTUDOS COMPARADOS DA AMAZÔNIA E DO CARIBE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL DA
AMAZÔNIA
PARIMA DIAS VERAS
TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL: demarcação, “desintrusão” e danos
morais à luz da ética e do direito
Área de Concentração: Desenvolvimento Regional e Urbano e Políticas Públicas
BOA VISTA, RR
2014
PARIMA DIAS VERAS
TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL: demarcação, “desintrusão” e danos
morais à luz da ética e do direito
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em
Desenvolvimento
Regional
da
Amazônia
da
Universidade Federal de Roraima, como parte dos
requisitos para obtenção do título de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Marinho Cirino.
BOA VISTA, RR
2014
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)
Biblioteca Central da Universidade Federal de Roraima
V476d Veras, Parima Dias.
Terra Indígena Raposa Serra do Sol: demarcação, “desintrusão” e
danos morais à luz da ética e do direito / Parima Dias Veras. -- Boa Vista,
2014.
184 f : il.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Marinho Cirino.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Roraima, Núcleo de
Estudos Comparados da Amazônia e do Caribe.
1 – Raposa
Serra do
Sol.APROVAÇÃO
2 – Demarcação de terras. 3 – Antropologia
FOLHA
DE
social. 4 – Indígenas. 5 - Roraima. I – Título. II. – Cirino, Carlos Alberto
Marinho (orientador).
CDU- 397(=1-82)(811.4)
PARIMA DIAS VERAS
TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL: demarcação, “desintrusão” e danos
morais à luz da ética e do direito
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação
Desenvolvimento
Regional
da
Amazônia da Universidade Federal de Roraima UFRR, como parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do Título de Mestre.
______________________________
Prof. Dr. Carlos Alberto Marinho Cirino
Orientador / Mestrado em Desenvolvimento Regional da Amazônia – UFRR-NECAR
_____________________________
Prof. Dr. Helder Girão Barreto
____________________________________
Prof. Dr. Haroldo Eurico Amoras dos Santos
AGRADECIMENTOS
Na construção da presente pesquisa, além do auxílio divino pedido sempre em minhas
orações, contei também com a ajuda inestimável de algumas pessoas, sem a quais não seria
possível sua realização. Assim sinceramente agradeço:
Aos Meus pais, Delman Collaço Veras (in memória) e Maria do Perpétuo Socorro
Dias Veras, cujos exemplos e lições de vida iluminam sempre o meu caminho.
Aos meus filhos Parima Jr, Nathália, Filipe e Geovanna, e aos do coração, Mirella e
Jopper, pois além de existirem em minha vida, cada um, a seu modo, deu-me sua preciosa
contribuição: leitura e crítica do trabalho, idas à biblioteca, assessoria de informática, etc.
À minha esposa Cilene, pelo apoio incondicional ao trabalho com sugestões, auxílio
na pesquisa de campo e lanches inesperados.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Calos Alberto Marinho Cirino, que além de me conceder
o empréstimo de valiosas obras do seu acervo particular, brindou-me com seu conhecimento e
agiu sempre com maestria e segurança na orientação da pesquisa.
À minha irmã do coração, Rai Rodrigues, pela preciosa ajuda neste trabalho, porque
mesmo muito atarefada, cedeu-me seu conhecimento e parte do seu precioso tempo.
Ao Prof. Dr. Haroldo Amoras pelas sugestões de leitura e empréstimo de excelentes
obras de sua biblioteca.
Ao Sr. João Gualberto Sales, por me receber com fidalguia em sua casa e me conduzir
à residência de outros interlocutores da pesquisa de campo. Pelo mesmo motivo, agradeço ao
senhor Sebastião “Pelado” Oliveira.
Ao amigo e colega de mestrado Antônio Vilmar, aos amigos e colegas de trabalho:
Felipe Diogo Queiroz, Robson Sousa, George Wecsley e Roberto Fernandes, pela generosa
ajuda durante a pesquisa.
Por fim, à minha irmã, Áurea Veras, e aos amigos Vanderlei Oliveira (defensor
público), Igor Naves e André Paulo Pereira (promotores de justiça), pela cortesia de emprestar
valiosas obras que muito auxiliaram na pesquisa.
DEDICATÓRIA
Aos imigrantes e seus descendentes, especialmente aos retirados da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol, que, depositando sua vida e esperança na terra, contribuíram para a construção e
desenvolvimento do Estado de Roraima.
“Bom mesmo é ir à luta com determinação e abraçar a
vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia,
pois o triunfo pertence ao que mais se atreve e a vida é
muito
para
ser
insignificante”.
(Charles
Chaplin).
RESUMO
O presente trabalho, partindo de antecedentes históricos, discute o direito de indenização por
danos morais aos não índios retirados compulsoriamente da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol, sob o enfoque de que essas pessoas, constituídas em sua maioria por descendentes de
imigrantes pobres, atraídos pelo governo para ocupar a Amazônia e garantir a integridade do
território nacional, em variadas épocas e sistemas de governo, não agiram de má-fé, devendo
por isso ser indenizadas por danos morais. Trata-se de pesquisa bibliográfica e de campo em
que se busca contextualizar a colonização do Vale do Rio Branco dentro da política de
ocupação da Amazônia. Recorremos aos procedimentos da pesquisa qualitativa para analisar
os efeitos provocados pelo termo “intruso”, empregado por estudiosos e pelo próprio Estado
para denominar os não índios que viviam na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, à luz da
ética e do direito. Os resultados indicam que, quando o Estado retirou os não índios sob o
rótulo de “intrusos” da referida terra, ignorando, entre outras circunstâncias, o valor afetivo
que dispensavam à terra onde muitos nasceram, sofreram e enterraram seus mortos, tal ato
causou dor, sofrimento, retirou a tranquilidade de espírito daquelas pessoas. Ao assim agir, o
Estado violou normas éticas e atingiu negativamente a dignidade dos “desintrusados”.
Indubitavelmente, os acontecimentos que culminaram com a retirada dos não índios da terra
indígena em alusão causaram fratura a sua imagem e honra, ou seja, configuraram lesão aos
direitos da personalidade.
Palavras-chave: Dano moral; não índios; terra indígena.
ABSTRACT
The current study discusses, in the light of the historical precedents, the
right to indinization by moral damage by the non-indigenous people
compulsorily removed from the Raposa Serra do Sol Indigenous Land, under the
approach that these people, comprised in their majority by descendents of poor
immigrants, attracted by the government to occupy the Amazonia and guarantee
the integrity of the national territory, in various periods and different
government systems, did not act of bad faith, deserving, therefore, indinization
by moral damage. It deals with a bibliographical and field research in which it
aims in contextualizing the colonization of the Rio Branco valley as part of the
politics of the Amazonia occupation. We resorted to the procedures of the
qualitative research to analyze the effects resulted by the term “intruder” applied
by the studious and the State itself to denote the non-indigenous persons who
used to live in the Raposa Serra do Sol Indigenous Land, in the light of the
ethics and the right. The results indicate that when the State removed the nonindigenous people from the referred land, under the label of “intruders”,
ignoring, among other circumstances, the affective value that they attributed to
the land where most of the were born, suffering and buried their dead, such act
caused pain, suffering, and destroyed the spirit tranquility of those people. Thus,
the State violated ethical norms and negatively impacted the dignity of the
“deintrudered”. Indubitably, all happenings that culminated in the removal of the
non-indigenous people from the referred indigenous land caused fracture to their
image and honour, in other words, characterized lesion to the rights of the
personality.
Key-words: Moral damage; non-indigenous; Indigenous land
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Mapa representando o Tratado de Tordesilhas.................................................
21
Figura 2 - Forte São Joaquim.............................................................................................
29
Figura 3 – Porto de Boa Vista do Rio Branco...................................................................
32
Figura 4 - Chegada de imigrantes do Maranhão, em 1951................................................
44
Figura 5 - Monumento aos garimpeiros.............................................................................
49
Figura 6 – Indíos carregadores de equipamentos e bagagens de Koch-Grünberg.............
65
Figura 7 - Mapa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol...................................................
72
Figura 8 – Exemplo de Relevo da TIRSS..........................................................................
75
Figura 9 - Chegada de nordestinos a Boa Vista.................................................................
80
Figura 10 – Túmulo do Senhor Moacir da Silva Mota......................................................
92
Figura 11 - Fazenda Independência – propriedade de João Cavalcante Mota – 2004 –
TIRSS.................................................................................................................................
99
Figura 12 – Fotografia do Senhor Moacir da Silva Mota..................................................
100
Figura 13 – Frutos produzidos na savana com irrigação...................................................
148
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Produto Interno Bruto a preço de mercado corrente dos 6 maiores
municípios do Estado de Roraima – 2007 a 2010 - (R$ mil)............................................
36
Tabela 2 - Valor Adicionado dos 5 maiores municípios do Estado de Roraima por setor
de atividade – 2010 - (R$ mil) VA agropecuária...............................................................
36
Tabela 3 - Participação das atividades econômicas em % no Valor Adicionado Bruto a
preço básico em ordem decrescente - Roraima - 2006 a 2010..........................................
102
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Demonstrativo de parentes dos “desintrusados” sepultados na TIRSS...........
92
Quadro 2 - Demonstrativo da ascendência, por Estado de origem e atividade
econômica originária, dos “desintrusados” da TIRSS.......................................................
95
Quadro 3 - Demonstrativo da relação dos “desintrusados” com o Estado de origem.......
96
Quadro 4 - Demonstrativo do rebanho de gado dos “desintrusados” antes e depois da
saída da TIRSS...................................................................................................................
100
Quadro 5 - Forma de aquisição das fazendas dos “desintrusados”....................................
106
Quadro 6 - Demonstrativo da miscigenação entre índios e não índios “desintrusados”...
112
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Parentes sepultados na TIRSS.........................................................................
93
Gráfico 2 - Demonstrativo da relação dos “desintrusados” com os familiares do Estado
de origem...........................................................................................................................
97
Gráfico 3 - Tempo de residência na TIRSS.......................................................................
107
Gráfico 4 - Demonstrativo da miscigenação entre índios e não índios “desintrusados”...
109
Gráfico 5 – Demonstrativo índios e não índios “desintrusados”.......................................
113
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO.............................................................................................
2
ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA OCUPAÇÃO DO VALE DO
RIO BRANCO...............................................................................................
DISPUTAS TERRITORIAIS ENTRE PORTUGAL E ESPANHA NA
AMAZÔNIA:
TRATADOS
DE
TORDESILHAS
E
DE
MADRI............................................................................................................
À Luz do Princípio do Uti Possidetis, o Conflito sobre o Vale do Rio
Branco entre Espanha e Portugal é Decidido em Favor da Coroa
Lusitana..........................................................................................................
Os Holandeses no Vale do Rio Branco........................................................
A CAPITANIA DO RIO NEGRO..................................................................
O Forte São Joaquim.....................................................................................
A cidade de Boa Vista....................................................................................
A Pecuária no Vale do Rio Branco..............................................................
Ciclo da barracha na Amazônia, secas do nordeste e imigração..............
Colônias Agrícolas.........................................................................................
Garimpo..........................................................................................................
2.1
2.1.1
2.1.2
2.2
2.2.1
2.2.2
2.2.3
2.2.4
2.2.5
2.2.6
3
3.1
3.1.1
3.1.2
3.2
3.3
4
4.1
4.2
4.3
4.4
4.5
4.6
5
5.1
5.1.1
15
20
21
24
25
27
28
31
37
41
43
45
OS ÍNDIOS DO VALE DO RIO BRANCO................................................
VIOLÊNCIA E EXPLORAÇÃO DA MÃO DE OBRA INDÍGENA NA
COLONIZAÇÃO DO BRASIL......................................................................
Repartimento, Resgates e Descimentos.......................................................
Violência Explícita empregada contra os Índios........................................
O ÍNDIO E A COLONIZAÇÃO DO VALE DO RIO BRANCO..................
A DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL.
50
OS NÃO ÍNDIOS NO VALE DO RIO BRANCO.....................................
FATORES DETERMINANTES DA IMIGRAÇÃO NORDESTINA PARA
O VALE DO RIO BRANCO..........................................................................
LEGALIZAÇÃO DE TERRAS E CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO DE BOA
VISTA COMO AÇÃO POLÍTICA DO ESTADO PARA ATRAÇÃO E
FIXAÇÃO DE NÃO ÍNDIOS NO VALE DO RIO BRANCO......................
PRINCIPAIS
PROBLEMAS:
ISOLAMENTO,
DOENÇAS
E
ANALFABETISMO.......................................................................................
SITUAÇÃO ECONÔMICA DOS FAZENDEIROS DO VALE DO RIO
BRANCO........................................................................................................
A AQUISIÇÃO DAS FAZENDAS DOS “DESINTRUSADOS” E SUA
EXPANSÃO NA ÁREA INDÍGENA.............................................................
MISCIGENAÇÃO ENTRE ÍNDIOS E NÃO ÍNDIOS DA RAPOSA
SERRA DO SOL.............................................................................................
76
DANOS MORAIS E A “DESINTRUSÃO”................................................
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO CASO DA TIRSS.........
A ética e o comportamento do Estado na “desintrusão”...........................
54
55
57
60
66
76
81
87
97
105
109
118
119
122
5.2
5.3
5.3.1
5.3.2
5.3.3
5.3.4
5.3.5
5.3.6
5.3.6.1
5.3.6.2
5.3.6.3
DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA EM RELAÇÃO AOS NÃO ÍNDIOS “DESINTRUSADOS”
DA TIRSS.......................................................................................................
O DANO MORAL EXPERIMENTADO PELOS “DESINTRUSADOS”.....
Conceito de dano............................................................................................
Conceito de dano moral................................................................................
Antecedentes históricos dos danos morais..................................................
O dano moral no direito brasileiro..............................................................
O dano moral indenizável.............................................................................
Fatos geradores de dano moral no caso da TIRSS.....................................
A denominação ofensiva de intruso aos não índios.........................................
Dano moral em razão do valor afetivo depositado na terra.............................
O valor irrisório percebido pelas benfeitorias de boa-fé.................................
128
130
130
131
133
135
136
136
136
139
142
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................
145
REFERÊNCIAS............................................................................................
149
APÊNDICES..................................................................................................
157
ANEXOS........................................................................................................
160
15
1 INTRODUÇÃO
O Estado Brasileiro, por meio de sua Constituição, assegurou a identificação e a
demarcação das terras indígenas, definindo-as, no seu art. 231, como as tradicionalmente
ocupadas pelos povos integrantes das várias etnias do Brasil. Em cumprimento ao dispositivo
legal em comento, a União Federal demarcou, segundo o Instituto Socioambiental-ISA
(2008), 46,1% do território do Estado de Roraima como terras indígenas, e retirou
compulsoriamente os não índios dessas áreas. De fato, a agenda política e social do Brasil nas
últimas décadas inclui a preocupação com o destino dos povos indígenas, relacionando-o à
demarcação de suas terras. Da mesma forma, tornou-se recorrente a linha de pensamento que
considera a existência de uma grande dívida social do país com esses povos.
Todavia, em processo histórico que se inicia nos anos 1700, o Brasil, com o fim de
preservar a integridade do seu território constantemente ameaçado por invasões estrangeiras
(especialmente: espanhola e holandesa) passou a colonizar o Vale do Rio Branco e, para isso,
concedeu inúmeros incentivos, inclusive títulos de propriedades (ANEXO A) para que não
índios se radicassem nessa região.
Os referidos títulos foram concedidos em consonância com as formas de estado,
sistemas de governo e leis vigentes em diferentes épocas, obedecendo-se ao ordenamento
jurídico do país desde os tempos do Brasil Colônia à atual República. A política de ocupação
desenvolvida pelo Estado Nacional para o Vale do Rio Branco, incentivando a fixação de
imigrantes, atingiu especialmente nordestinos pobres, gerando, pois, um passivo social em
favor desses sujeitos sociais.
Nesse sentido, ambos os seguimentos sociais (índios e não índios) eram detentores de
direitos, inclusive morais, que precisavam ser observados pelo Estado. As implicações de tais
relações constituíram-se objeto de Direito, merecendo análises sistematizadas e com o
aprofundamento que seu grau de complexidade exige.
Neste trabalho, procura-se demonstrar que os imigrantes, especialmente os primeiros
habitantes do Vale do Rio Branco, com o fim de produzir riqueza e garantir a integridade
territorial do Brasil, enfrentaram toda a sorte de dificuldades que uma terra inóspita
apresentava: isolamento, doenças e mortes, devendo-lhes ser assegurados, e aos seus
descendentes, os direitos originados do trabalho prestado ao Brasil. No entanto, com a
demarcação das Terras Indígenas, os descendentes daquelas pessoas receberam indenizações
apenas por benfeitorias construídas e foram retirados das terras demarcadas sob o estigma de
“intrusos”, haja vista que o termo adotado para definir o processo de retirada dos não índios
16
de terras indígenas homologadas é desintrusão.
Essas circunstâncias, em tese, indicam que o Estado Brasileiro, no enfrentamento da
questão indígena em Roraima, negou vigência à sua legislação e violou vários princípios
morais informadores de sua atual Constituição.
Todavia, a inobservância, pela União Federal, de leis e princípios em relação aos não
índios foi levada a efeito para dar cumprimento também ao comando constitucional emanado
do seu artigo 231, devendo-se responder às seguintes indagações:
1. A referida inobservância caracteriza ilícito civil, consubstanciado em ofensas à
imagem, à honra e ao direito de posse e de propriedade dos pecuaristas não índios, cabendolhes reclamar reparação pecuniária por dano moral como forma de compensar a dor e o
sofrimento experimentados?
2. O Estado Brasileiro, ao cumprir mandamentos de sua Constituição, pode incidir em
dano moral?
Parte-se do pressuposto de que o Estado, como criador e gestor do direito, ente
superior que retirou das mãos dos particulares o poder de dizer o direito, afastando a justiça
privada, deve ter mecanismos e estar aparelhado para distribuir a justiça, garantindo a cada
habitante da área demarcada como terra indígena o que lhe é de direito, sob o primado de
postulados jurídicos, sociais, morais e éticos.
Quanto à metodologia empregada para realizar o estudo, foram adotados os
procedimentos metodológicos recomendados pelas pesquisas bibliográfica, documental, de
campo, descritiva e qualitativa.
Cabe esclarecer que a pesquisa ora apresentada não resultou de um estudo de caso pois
não se teve o propósito de analisar o objeto de forma profunda, exaustiva e extensa e
manteve-se o estudo de conceitos, ideias e categorias que não devem existir em pesquisa
dessa natureza. Isso porque no estudo de caso “o exame se dará sobre uma situação
empiricamente verificável e não sobre o tema geral”: dano moral à luz da ética e do direito
(MEZZAROBA;MONTEIRO, 2007, P. 1222).
A pesquisa bibliográfica foi empregada para definir o quadro teórico, que constitui a
base para a análise dos dados coletados durante a pesquisa documental e a pesquisa de campo.
Para proceder à elaboração da base teórica, foram utilizadas obras de especialistas que
discutem temas relacionados à demarcação de terras indígenas, seja do ponto de vista da
História, da Economia, da Antropologia, da Sociologia e do Direito.
Quanto à análise do material coletado durante a pesquisa documental, realizada a
partir da coleta de documentos com particulares, órgãos públicos e da seleção de autos de
17
processos relacionados ao tema, empregou-se abordagem qualitativa, por entendê-la como o
método mais adequado para a compreensão do problema, por se orientar por teorias, quadros
referenciais e condições que explicam a realidade, sem pretender nela intervir.
Essa opção decorre do entendimento de que esse tipo de escolha metodológica permite
a investigação do objeto com base em sua dimensão histórica, o que torna possível estudar as
ocorrências em sua “provisoriedade, no seu dinamismo e na sua especificidade, características
fundamentais de qualquer questão social” (MINAYO, 1996, p. 13).
Quanto ao manejo dos documentos, em um primeiro momento realizou-se a pré–
análise do material que consistiu na organização, seleção e escolha de documentos e leitura do
conteúdo.
Em seguida, passou-se à Descrição Analítica ou Exploração do Material, orientado
pelas hipóteses e referenciais teóricos, culminando essa etapa na codificação, classificação, e
categorização dos dados.
A última etapa concerne ao tratamento dos dados obtidos e consequente interpretação,
sendo por isso denominada de Interpretação Inferencial. Esta fase teve início ainda na etapa
da pré-análise. O material coletado fora reexaminado com o objetivo de aprofundar a visão a
respeito do tema, a partir do desvendamento do conteúdo latente dos documentos estudados.
Após essa etapa, realizou-se a pesquisa de campo, coletando-se dados que serviram
para traçar o perfil socioeconômico dos não índios, conhecer a história de ocupação da área
por essas pessoas e os sentimentos por elas experimentados durante processo de
“desintrusão”, com o fim de aferir a incidência ou não de dano moral no caso da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS). Ouviram-se 21 interlocutores do universo de 1401
pecuaristas “desintrusados”, perfazendo a amostra de 15% do referido universo. Convém
observar que os produtores de arroz e os moradores das vilas não foram estudados. Os
participantes da pesquisa foram selecionados por meio da técnica metodológica de
amostragem por cadeias de referência, ou snowball também chamada snowball sampling
(BIERNACKI; WALDORF apud BALDIN; MUNHOZ, 2011). Esta Técnica, no Brasil, é
denominada de “amostragem em Bola de Neve”, ou “Bola de Neve” ou, ainda, como “cadeia
de informantes” (PENROD; PRESTON; GOODMAN apud BALDIN; MUNHOZ, 2011).
Essa técnica, segundo Baldin e Munhoz (2011), é uma espécie de amostragem não
probabilística adotada em pesquisas sociais, na qual os primeiros interlocutores de uma
1
Quantitativo extraído do laudo antropológico da FUNAI sobre a TIRSS.
18
pesquisa indicam outros participantes que por sua vez indicam outros e assim sucessivamente,
até que as informações passam a se repetir, alcançando um ponto de saturamento.
Como instrumento de coleta de dados, utilizou-se a entrevista semiestruturada, por
permitir que, durante a abordagem, incluam-se perguntas complementares ao roteiro de
questões, buscando-se obter dados sobre a realidade social dos interlocutores e,
especialmente, sobre o vínculo afetivo daquelas pessoas com a terra, bem como implicações
econômicas e sociais, com o fim de aferir a existência ou não de dano moral.
Cabe mencionar que a pesquisa qualitativa possibilita ao pesquisador, após a etapa de
análise e interpretação, realizar novas buscas de dados, caso aqueles já coletados não sejam
suficientes para responder ao problema da pesquisa (TRIVIÑOS, 2007).
O cunho descritivo deste estudo reside no fato de se ter o escopo de analisar os
reflexos das demarcações de terras indígenas na economia das pessoas retiradas das referidas
terras, sendo necessário, pois, conhecer a realidade desses sujeitos sociais, limites de atuação,
perspectiva econômica, valores, dentre outros aspectos que permitam ao pesquisador conhecer
o grupo delimitado.
A delimitação temática deste estudo incidiu sobre o caso Raposa Serra do Sol, com a
abordagem da homologação, da retirada dos não índios pecuaristas, dos instrumentos
jurídicos utilizados para tanto e a incidência ou não de danos morais decorrentes da
“desintrusão”.
O trabalho está estruturado em quatro capítulos. O primeiro é dedicado aos
antecedentes históricos da colonização do Vale do Rio Branco. No segundo, faz-se um estudo
a respeito da presença dos índios no contexto histórico das colonizações do Brasil e, em
particular, do Vale do Rio Branco. No terceiro capítulo, discute-se o processo de migração de
não índios, sob o enfoque do interesse do Estado Nacional na ocupação dessa região. E, no
quarto, com apoio nas discussões apresentadas nos capítulos anteriores, analisa-se a
incidência de dano moral em favor dos não índios em decorrência do sofrimento
experimentado com o uso do termo desintrusão, do valor pago às benfeitorias, da ligação
afetiva com a terra, inclusive, a responsabilidade civil do Estado, à luz da ética e do direito.
Emerge como questão de fundo o desafio posto ao Direito de compatibilizar o
interesse econômico, social e cultural de índios, não índios e do próprio Estado de Roraima,
que precisa se emancipar economicamente da União Federal e realmente alcançar sua
autonomia política. Há, inclusive, divergências sobre quais princípios devem ser adotados no
julgamento de processos que envolvem tais questões, haja vista os conflitos aparentes de
normas e princípios jurídicos que regem a matéria, causando imensa dificuldade na
19
fundamentação das decisões judiciais. Em virtude da ausência de estudos que se debrucem
sobre o direito à reparação de danos, acentuadamente o moral, em relação aos atores sociais
envolvidos no processo de demarcação de terras indígenas no Estado de Roraima, reside a
justificativa para a realização deste estudo. Buscou-se, ainda, discutir o conceito de ética e
compreender o seu vínculo com as demarcações de terras indígenas, direitos de não índios e a
conduta profissional dos agentes do Estado.
Espera-se, com este estudo, contribuir para a compreensão do desenvolvimento de
Roraima, sugerindo políticas públicas que respeitem os direitos sociais e culturais dos povos
indígenas e dos não índios deste estado.
20
2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA OCUPAÇÃO DO VALE DO RIO BRANCO
Neste capítulo far-se-á um breve estudo sobre os principais fatores econômicos,
políticos e sociais que refletiram na fixação dos não índios na, hoje, Terra Indígena Raposa
Serra do Sol (TIRSS), quais sejam: a exploração do rio Branco, o tratado de Tordesilhas e o
de Madri, a criação da Capitania do Rio Negro, do Forte São Joaquim, da cidade de Boa vista,
a pecuária, o ciclo da borracha na Amazônia, as grandes secas do nordeste, a imigração de
nordestinos, as colônias e assentamentos agrícolas, e os garimpos do Estado de Roraima.
Desse modo, em grandes saltos históricos, serão percorridos os caminhos da colônia à
república, que levaram a fixação dos não índios na TIRSS, tendo como fio condutor as
políticas desenvolvidas pelo estado nacional, em diferentes épocas e formas de governo, com
o fim de ocupar e assegurar a posse da região, iniciando-se com a exploração comercial do rio
Branco.
Inicialmente, anota-se que o rio Branco, Quecevene ou Paraviana, na denominação
indígena, começou a ser explorado comercialmente no início do século XVIII, com entradas
realizadas por Francisco Ferreira, Cristóvão Aires Botelho, José Miguel Aires, Francisco
Xavier de Andrade e Lourenço Belfort (REIS, 1989).
Segundo Ourique (1906), o Rio Branco deságua no Rio Negro por três bocas, distando
a principal trezentos e trinta quilômetros da cidade de Manaus, medindo de extensão, desde a
foz até as embocaduras dos rios Uraricoera e Tacutu, seiscentos e seis quilômetros. A região
riobranquense é descrita por esse autor como “a rica ubérrima região dos campos, preciosa e
exótica jóia engastada no meio das riquezas communs aos Amazonas (sic).” (Ib., p. 8)
Além da riqueza oferecida pela natureza, o Vale do Rio Branco despertava a cobiça
dos povos europeus também em razão do grande número de povos indígenas que o habitavam
e que, à época, constituíam preciosa mercadoria, como bem observa David Sweet, citado por
Vieira (2007, p.16): “no rio Branco o que mais despertava o interesse comercial, sem sombra
de dúvidas, eram os próprios corpos indígenas”.
Desse modo, a busca pela exploração de produtos na natureza, as chamadas “drogas
do sertão”, e o apresamento de índios deram a tônica para que espanhóis, holandeses, ingleses
e portugueses disputassem essa rica região e levassem-nos a construir marcos jurídicos
importantes para resolução de seus conflitos de interesses, a exemplo do Tratado de Madri,
que será enfocado adiante. Além disso, fez com que os portugueses desenvolvessem políticas
públicas para, após a conquista, manter o domínio da região. Com esse desiderato introduziu-
21
se a pecuária e incentivou-se a imigração de colonos não índios, especialmente nordestinos,
para o Vale do Rio Branco.
2.1 DISPUTAS TERRITORIAIS ENTRE PORTUGAL E ESPANHA NA AMAZÔNIA:
TRATADOS DE TORDESILHAS E DE MADRI
A cobiça pela terra recém-descoberta e por aquelas que no futuro porventura fossem
encontradas gerou intensa disputa nos séculos XV e seguintes pelas potências navais e
econômicas da época. Países da Europa, principalmente Portugal e Espanha, foram os
protagonistas dessa contenda, enfrentando-se em verdadeira corrida através dos mares pela
posse e domínio da maior parte possível do Novo Mundo. Como resultado, em 1494
estabeleceram o Tratado de Tordesilhas, com o objetivo de definir os limites geográficos das
terras para os dois países, como informa Becker (1999, p. 8):
O Tratado teve, portanto, grande significado geopolítico. La Capitulacion de la
Particion dei Mar Oceano, partilhando previamente o Novo Mundo em duas partes
pelo meridiano situado a 370 léguas das ilhas de Cabo Verde, deixando à Espanha e
à Portugal as terras que estivessem respectivamente ao ocidente e ao oriente da
linha, definia o Mure Clausum, domínio dos espaços Terrestres e marítimos
descobertos pelas navegações espanholas e portuguesas (sic).
Essa divisão estabeleceu, portanto, limites entre os desbravadores lusos e espanhóis na
referida corrida por terras no “Novo” Mundo. O território que caberia a cada uma das coroas
pode ser visualizado na figura “Mapa 1”:
Figura 1: Mapa representando o Tratado de Tordesilhas.
Fonte: Rainer Sousa.
22
Portugal, como sabido, apossou-se das terras do Brasil, estabelecendo uma de suas
principais colônias. Esses limites seriam, ao longo dos anos, estendidos na prática pela
ocupação portuguesa para além dos limites acordados no pacto de Tordesilhas. A respeito
disso, Volpato (1987, p. 33) observa que "as penetrações constantes dos bandeirantes pelos
sertões, a movimentação de levas populacionais com o intuito de fixar-se nas regiões auríferas
possibilitaram
que
os
domínios
portugueses
na
América
tivessem
crescido
consideravelmente”. Os limites fixados pelo acordo de Tordesilhas sofreram profundos
desgastes, demandando novas linhas limítrofes para o reino português e o espanhol. Segundo
Volpato (1987), o governo português dirigiu seus esforços diplomáticos para manter como
suas as áreas ocupadas pelos habitantes da colônia brasileira ou ao menos tornar questionável
a posse espanhola.
Em razão de o Tratado de Tordesilhas ter se tornado obsoleto, devido às novas
aventuras marítimas que culminaram com a conquista de terras até então desconhecidas pelos
governos europeus e com o fim de pôr termo aos conflitos sobre limites territoriais, as coroas
de Portugal e Espanha foi cunharam o Tratado de Madri, tendo como grande artífice, segundo
Cáceres (1993), Alexandre de Gusmão. Esse Tratado assentava-se no princípio jurídico
extraído do Direito romano denominado uti possidetis, segundo o qual o possuidor da terra
era quem efetivamente a utiliza.
Farage (1991, p. 82), citando M. M. de Menezes, observa que havia, naquela época, a
ausência de marcos reguladores da partilha territorial entre as potências colonizadoras, pois
“os holandeses consideravam o Tratado de Tordesilhas um ‘mero pedaço de papel’,
avançando gulosamente sobre o Novo Mundo, já piamente repartido entre Sua Majestade
Católica e Sua Majestade Fidelíssima”. Note-se que os holandeses foram deixados à margem
do acordo, logo não estavam obrigados pelo pacto a respeitar os limites estabelecidos, daí por
que para eles (holandeses) Tordesilhas era apenas um pedaço de papel sem valor jurídico.
A Espanha, ainda segundo Cáceres (1993), anuiu às condições propostas por Portugal
e assinou o Tratado de Madri, reconhecendo as pretensões portuguesas sobre a Bacia
Amazônica. Em troca, obteve a posse da Colônia de Sacramento.
Esse Tratado foi assinado em 13 de janeiro de 1750 e se constituiu em diploma
jurídico indispensável para assegurar a conquista portuguesa na América, salvaguardando-lhe
os interesses, com a consagração do princípio do uti possidetis nestes termos: “que cada parte
há de ficar com o que actualmente possue” (REIS, 1989, p. 81), traçando os contornos
territoriais do Brasil.
23
O preâmbulo do tratado em comento revela a costura política e diplomática levada a
efeito durante o século setecentista entre as coroas de Portugal e Espanha, delineado nos
termos seguintes:
Os sereníssimos reis de Portugal e Espanha, desejando eficazmente consolidar e
estreitar a sincera e cordial amizade, que entre si professam, consideraram que o
meio mais conducente para conseguir tão saudável intento é tirar todos os pretextos,
e alhanar os embaraços, que possam adiante alterá-la, e particularmente os que se
podem oferecer com o motivo dos limites das duas coroas na América, cujas
conquistas se têm adiantado com incerteza e dúvida, por se não haverem averiguado
até agora os verdadeiros limites daqueles domínios, ou a paragem donde se há de
imaginar a linha divisória, que havia de ser o princípio inalterável da demarcação de
cada coroa. E considerando as dificuldades invencíveis, que se ofereceriam se
houvesse de assinalar-se esta linha com o conhecimento prático que se requer;
resolveram examinar as razões e dúvidas, que se oferecessem por ambas as partes, e
à vista delas concluir o ajuste com recíproca satisfação e conveniência.
O artigo 3º do Tratado de Madri define, na Amazônia, os limites do domínio
português, deixando acertado que a Espanha desiste de qualquer pretensão, no presente e no
futuro, das terras banhadas pelo Rio Amazonas, como se observa na redação dada, neste
particular, ao texto do acordo:
Artigo III - Da mesma forma, pertencerá à Coroa de Portugal tudo o que tem
ocupado pelo rio das Amazonas, ou Marañon, acima e o terreno de ambas as
margens deste rio até as paragens que abaixo se dirão; como também tudo o que tem
ocupado no distrito de Mato Grosso, e dele para parte do oriente, e Brasil, sem
embargo de qualquer pretensão que possa alegar, por parte da Coroa de Espanha,
com o motivo do que se determinou no referido Tratado de Tordesilhas; a cujo efeito
S. M. C., em seu nome, e de seus herdeiros e sucessores, desiste e renuncia
formalmente a qualquer direito e ação que, em virtude do dito tratado, ou por outro
qualquer título, possa ter aos referidos territórios.
Ainda sobre as divisas entre os domínios das duas coroas, o artigo 18 do referido
Tratado estabelecia tais limites, tendo os rios Orinoco e Amazonas como divisores naturais,
sendo que os afluentes que correm para este seriam de domínio português e os que correm
para aquele seriam espanhóis, conforme abaixo:
Artigo XVIII - A navegação daquela parte dos rios, por onde há de passar a
fronteira, será comum às duas nações; e geralmente, onde ambas as margens dos rios
pertencerem à mesma Coroa, será privativamente sua a navegação; e o mesmo se
entenderá da pesca nos ditos rios, sendo comum às duas nações, onde o for a
navegação; e privativa, onde o for a uma delas a dita navegação: e pelo que toca aos
cumes da cordilheira, que hão de servir de raia entre o rio das Amazonas e o
Orinoco, pertencerão a Espanha todas as vertentes, que caírem para o Orinoco, e a
Portugal todas as caírem para o rio das Amazonas ou Marañon.
Desse modo, a combinação dos artigos 3º e 18, em destaque, constituía o diploma
jurídico que Portugal precisava para manter como sua a posse do Vale do Rio Branco.
24
Todavia, para tal fim, o governo português teve que enfrentar vários conflitos como será
enfocado seguir.
2.1.1 À Luz do Princípio do Uti Possidetis, o Conflito sobre o Vale do Rio Branco entre
Espanha e Portugal é Decidido em Favor da Coroa Lusitana
Como visto acima, o instrumento jurídico que conferiu o domínio do Vale do Rio
Branco à coroa portuguesa foi o tratado de Madri, o qual adotava o princípio do uti possidetis.
O referido Tratado foi utilizado pela coroa portuguesa para rechaçar as pretensões espanholas
sobre a região. A Corte espanhola reivindicava os direitos sobre a região do Vale do Rio
Branco, afirmando que desenvolvia atividades no rio Parimé, afluente do rio Branco, desde o
ano de 1773 e que esse rio nascia no interior de sua província do Orinoco (D’ALMADA,
1861). Com esse argumento, o governo espanhol aduz que Portugal estava descumprindo os
tratados assinados pelas duas Coroas, consoante a seguinte passagem da carta de D. Antonio
Barreto, governador espanhol, ao governador português da Província do Rio Negro:
Primeiramente. Que estando seguro el que representa ser cierto el violento atentado
que los Vassallos de Su Magestade F. han cometido com injuria hecha a la nacion
espnõla em los domínios de mi Rey y senõr cuya circunstancia y gravidad ES contra
el derecho de las gentes y violacion de los últimos tratados que em conformidad de
ellos los comisarios de España y Portugal destinados por ambas cortes para el
sanalamiento de limites de rio Negro y sus vertentes convenieron, y acordaram no
pertencer a Su magestad F. mas tierras que hastas entonses hubiese poblado; y
ocupado em la parte occidental, septentrional, de Amazonas, y Negro. Que los
señores portugueses no na poblado ni ocupado hasta a hora el rio Parime (13) que
nace em lo interior de la provinciade Orinoco y desagua em el rio Negro dividido
em três brasos com el nobre de rio Branco [...] (D’ALMADA, 1861, p. 339-340)
(sic).
Por seu lado, as autoridades portuguesas invocaram em defesa do seu direito a
anterioridade de sua posse e, para demonstrá-la, citaram as atividades econômicas que
praticavam no Vale do Rio Branco, como se verifica no seguinte excerto da carta do
Governador da Província do Rio Negro, Joaquim Tinoco Valente, ao Governador Espanhol,
D. Antônio Barreto, extraída da obra de Lobo D´Almada (1861, p. 644):
Eu me devera referir para a reposta das proposições de V. M. à mesma que dou à
carta de que V. M. foi portador; porém com para satisfação da sua honra me roga lhe
responda aos capítulos das mesmas proposições, para por este modo poder mostrar
mais individual a sua boa diligencia, eu o faço.
Principiando pelo primeiro: respondo que estando Sua Magestade Fidelissima, meu
senhor há muitos annos na posse do rio Branco, Jacutú, Vravicuera e seus districtos,
sem que jamais fossem navegados, e estabelecidos, ou ainda descobertos pelos
25
senhores hespanhoes, e sim pelos portuguezes, em cujos sempre navegaram tendo-os
descoberto debaixo das bandeiras de El-Rey, meu senhor, e estabeleceram feitorias
de salgas de peixe, manteigas de ovos de tartarugas, e todos os mais gêneros que
naquelles paizes costumam produzir: foi menos fundamental o attentado
rompimento com que os ditos pretenderam invadir os seus reaes domínios, sendo
certo não lhe pertencerem por direito algum, e muito própria a minha repulsa;
porque de direito natural, me pertencia a defesa, e porque como governador desta
capitania, os devo sustentar, e conservar tão illesos, como me foram, e são
encarregados (sic).
Desse modo, a teor das cartas em epígrafe, para resolver o conflito entre as duas
coroas, conforme o Tratado de Madri, era imperioso provar a posse, situação de fato ou poder
de fato de alguém sobre uma coisa, de acordo com Alves (1999). A argumentação encetada
nas correspondências utilizadas por Lobo D’Almada (1861) demonstra que ambos os reinos
tinham o objetivo de fazer prova dessa alegada posse, razão por que de forma amiúde foram
descritas as datas e as atividades desenvolvidas por Portugal na região, a exemplo da
invocação da existência de feitorias para fabricação de manteigas de ovos de tartaruga e salga
de peixes desde o ano de 1725. Atividades econômicas que serviram para demonstrar a posse
de Portugal às autoridades espanholas.
Lobo D’Almada (1861) cita e descreve, ainda, outras correspondências trocadas pelas
autoridades portuguesas e espanholas, a saber: carta do governador espanhol da Província da
Guiana ao Governador da Província do Rio Negro e a respectiva resposta deste; carta do
tenente espanhol D. Vicente Diaz de la Puente ao comandante do Forte São Joaquim do rio
Branco e a resposta deste. As missivas em alusão demonstram o empenho e o esforço que
cada coroa imprimiu para provar sua posse sobre a região em conflito.
Por fim, os argumentos e provas construídos, à luz do pacto firmado entre os dois
reinos colonizadores em 1750, aplicando-se o princípio do uti possidetis, a questão do Vale do
Rio Branco ao fim e ao cabo foi concluída a favor da coroa lusa. Todavia, para garantir a
posse, os portugueses também empregaram outras estratégias, como a povoação do território
por colonos não índios e o emprego de força militar, inclusive com a construção do Forte São
Joaquim, como se extrai da comentada obra de Lobo D’Almada (1861).
2.1.2 Os Holandeses no Vale do Rio Branco
O Tratado de Madri, conforme se verifica acima, traçou as linhas jurídicas necessárias
para definir os limites das conquistas de Portugal e Espanha no novo mundo, mas a Holanda
não foi signatária do referido acordo. Farage (1991) observa que o comércio realizado pelos
26
holandeses na região do rio Negro, com entradas no rio Branco, ocorreu no início do século
XVIII. A partir dos anos 30 desse mesmo século, o rio Branco se tornou o principal local de
trocas entre índios e holandeses, fato que atraiu a preocupação dos portugueses para essa
região. Segundo Vieira (2007), os portugueses tinham claro que a submissão dos índios para
um ou outro lado decidiria a disputa pela posse do Vale do Rio Branco. Farage (1991) anota,
ainda, que o objetivo holandês era obter dos índios, por meio do comércio, canoas, redes,
madeiras, gomas, tinturas e escravos índios. Em contrapartida, os índios recebiam armas de
fogo, machados, facas, anzóis, pentes, espelhinhos e contas de coral ou vidro.
Todavia, o comércio de pequenos objetos praticado pelos holandeses constituía apenas
meio para alcançar a mercadoria principal, escravos índios, como observa Alexandre
Rodrigues Ferreira (apud FARAGE, 1991, p. 102):
[...] quem sahe da fortaleza Forte São Joaquim na confluência dos rios Uiraricoera e
Tacutu por terra até o rio Rupununy, gasta 5 dias; do lugar onde vai sahir até à boca
do dito, vence a viagem em 6: na dita boca está situada a primeira feitoria
hollandeza; o seu negócio consiste em escravos que resgatarão por armas, terçados e
drogas de fazendas; os agentes desta negociação são os Gentio Caripunas; estes são
amigos dos Macuxis e estes outros dos Peralvilhanas. Donde vem que se adiantão
pelos nossos domínios a surprehenderem e captivarem os Gentios da nossa devoção,
particularmente os Uapexanas, que são entre elles reputados como os mais imbelles,
e por conseguinte os mais perseguidos dos Caripunas, Macuxis, etc [...] (sic).
Os holandeses, segundo Farage (1991), não buscavam converter ou aldear índios, seu
objetivo era apenas o comércio. Contudo, tais atividades eram vistas pelos espanhóis e
portugueses como expansionistas.
Na ausência de tratado com a nação holandesa, Portugal, em sua política de manter a
posse do Vale do Rio Branco, empregou força militar e recorreu à estratégia de aldeamentos
de índios, por meio dos descimentos2. Vieira (2007) observa que essa espécie de investimento
foi a mais segura encontrada pelo governo luso para garantir a ocupação do território
conquistado, aduzindo que os índios, pela primeira vez, são registrados “como atores
importantes, capazes de sustentar a própria posse da região” (VIEIRA, 2007, p. 19).
Em que pese a afirmação de Vieira (2007), não se pode dizer que os índios eram os
garantidores da integridade territorial do império Português no Vale do Rio Branco, pois na
verdade não faziam diferença entre portugueses, espanhóis e holandeses, praticando
indiscriminadamente o comércio com qualquer um deles, bem como eram utilizados para a
formação de aldeamentos por todos estes governos colonizadores, de acordo com Farage
2
Ver capítulo 2 deste trabalho;
27
(1991). Dessa forma, os índios eram “muralhas dos sertões” para quem os conquistasse. Por
esse motivo, para manter como seu o espaço territorial do rio Branco, a coroa portuguesa
criou a Capitania do Rio Negro, construiu o Forte São Joaquim e insistentemente procurou
fixar colonos não índios na região, em constante ameaça, como visto, mesmo após a
assinatura do Tratado de Madri.
2.2 A CAPITANIA DO RIO NEGRO
No contexto da disputa pela Amazônia, o Rei de Portugal Dom José I, por meio da
Carta Régia de 03 de março de 1755, criou a Capitania do Rio Negro, subordinada ao Grão
Pará. O Vale do Rio Branco pertencia ao território dessa capitania. O objetivo principal da
criação dessa unidade política era defender o território da invasão estrangeira, especialmente
de espanhóis e holandeses (REIS, 1989, p. 117).
Conforme Santos (2010), em 1757, por meio da Carta Régia de 18 de julho, foram
concedidos aos habitantes de Barcelos, sede da capitania, os seguintes privilégios: primazia
nas ocupações de cargos públicos; as mesmas prerrogativas dos Oficiais da Câmara de Belém;
isenção de fintas, talhas, pedidos e tributos por 12 (doze) anos; e perdão por 03 (três) anos das
dívidas que tivessem contraído fora da vila. Tais incentivos eram harmônicos com a política
portuguesa de atrair moradores para ocupar e defender a região das outras nações
conquistadoras.
Antes da concessão dos citados benefícios, na sua estratégia política de fixar colonos
no território da capitania do Rio Negro, D. José I, por meio da edição da Lei Régia de 4 de
abril de 1755, incentivou o casamento entre portugueses e índios e proibiu discriminações,
bem como concedeu-lhes direito de preferência para ocupações nas terras em que se
estabelecessem, conforme o seguinte excerto:
E outrosim prohibo, que os ditos meus Vassalos casados com Indias ou seus
descendentes, sejão tratados com o nome de Caboucolos, ou outro similhante, que
possa ser injurioso; e as pessoas de qualquer condição, ou qualidade, que praticarem
o contrario, sendo-lhes assim legitimamente provado perante Ouvidores das
Comarcas, em que assistirem, serão por sentença delles, sem appelação, em
agravo,mandados sahir da Comarca dentro de hum mez, e até mercê minha;o que se
executará sem falta alguma, tendo porém os Ouvidores cuidado em examinar a
qualidade das provas, e das pessoas, que jurarem nessa materia, para que se não faça
violencia, ou injustiça com esse pretexto,tendo entendido, que só hão de addmitir
queixas do injuriado, e não de outra pessoa. O mesmo se praticará a respeito das
Portuguesas, que casarem com Indios: e a seus filhos, e descendentes, e a todos
concedo a mesma prefferencia para os Officios que houver nas terras, em que
viverem; e quando succeda, que os filhos, ou descendentes destes matrimonios
28
tenhão algum requerimento perante mim, me farão a saber esta qualidade, para em
razão della mais particularmente os attender [...] (sic) (AMAZONAS, s/d).
Essa estratégia do rei de Portugal para fixar colonos na Amazônia encontrou ampla
acolhida no Vale do Rio Branco, de forma que algumas famílias tradicionais riobranquenses
são formadas de uniões entre imigrantes nordestinos e indígenas. Ou seja, o rosto do
roraimense é oriundo dessa miscigenação pensada àquela época pelo governo português com
o fim de, definitivamente, colonizar e manter a posse desta região para a coroa portuguesa.
Por sua importância no contexto social da demarcação da TIRSS, a miscigenação, como
fenômeno de formação do povo roraimense, será tratada no item sobre a cidade de Boa Vista,
por estar na gênese dessa capital e no capítulo relativo aos não índios, em razão de parcela
considerável dos “desintrusados” ser constituída da união matrimonial ou união estável entre
índios e não índios.
Em 1822, com a independência do Brasil de Portugal, as capitanias são transformadas
em províncias. Em 1850, a antiga capitania de São José do Rio Negro recebe a denominação
de Província do Amazonas, conforme a Lei n° 582, de 5 de setembro de 1850.
2.2.1 O Forte São Joaquim
O Forte São Joaquim por sua importância no processo de colonização do Vale do Rio
Branco merece análise mais acurada, pois, além de ter exercido relevante papel na defesa
militar das terras riobranquenses, desempenhou também a função de centro administrativo e
irradiador do desenvolvimento regional.
Dessa forma, em 1775, como mais uma estratégia política e militar portuguesa para
conter o avanço espanhol e holandês sobre o Vale do Rio Branco, e como forma de garantir a
ocupação do território, foi fundado o Forte São Joaquim. Com a construção e instalação da
referida fortaleza, cumpria-se a determinação emanada da carta régia de 1752 (VIEIRA,
2007). Tal carta foi cunhada do seguinte modo:
D. Joseph por Graça de Deus Rei de Portugal, e dos Algarves d´aquem e d´além mar
em Africa senhor de Guiné, etc. Faço saber a voz Francisco Xavier de Mendonça
governador e capitão-general do Pará, que tendo-me sido presente que pelo rio
Essequebe, tem passado alguns hollandezes das terras de Suriname ao rio Branco,
que pertence aos meus domínios, e commettido n´aquellas partes alguns distúrbios:
Fui servido ordenar por resolução de 23 de Outubro deste anno, tomada em consulta
do meu conselho ultramarino, que sem dilação alguma se edifique uma fortaleza nas
margens do dito rio Branco, na paragem que considerareis ser amais própria,
ouvidos primeiro os engenheiros que nomeares para este exame, e que esta fortaleza
29
esteja sempre guarnecida com uma companhia do regimento do Macapá , a qual se
mude annualmente (sic) (D’ALMADA, 1861, p, 657-658).
Vê-se que, embora o rei de Portugal, temendo a perda da região para outras nações
colonizadoras, ou até mesmo para não partilhar os produtos naturais da Amazônia (drogas do
sertão) com aquelas, determinou que a edificação da fortaleza fosse realizada em regime de
urgência. Contudo, a ordem real só foi levada a efeito vinte e três anos depois (1752-1775). A
demora é creditada à falta de recursos, conforme justificação do governador Mendonça
Furtado, da Província do Maranhão (FARAGE, 1991).
A falta de recursos financeiros e, certamente, a localização geográfica da Fortaleza
foram fatores determinantes para a edificação de uma construção precária. Vieira (2007)
observa que a construção foi erguida rapidamente, um ano aproximadamente para o início e
conclusão da obra, transmitindo a ideia de uma construção rude e barata, com pouco poder de
fogo.
Figura 2 - Forte São Joaquim3.
Fonte: Foto do acervo de Valdir Paixão. In: VERAS, Antonio Tolrino de Rezende, 2009
3
Prospecto da Fortaleza de São Joaquim, Rio Branco, feito por Alexandre Rodrigues Ferreira, em sua viagem
entre os anos de 1783 e 1792. (Prancha: Ferreira, A.R. 1971. Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará,
Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá: 1783-1792. Iconografia vol.1.Geografia-Antropologia. Conselho Federal de
Cultura. Rio de Janeiro).
30
A figura 2 corresponde à descrição realizada por Lobo D´Almada (1861, p.681-682), o
qual testemunhou a fortaleza em atividade, e dá exatamente a ideia dessa precariedade:
A fortificação que temos no rio Branco, se reduz a um forte de campanha dos mais
pequenos.
O lado em que está situada a porta,é fortificado por uma pequena cortina, flancos, e
face. A mesma construcção quase se observa no lado opposto. O lado que está
lançado sobre a margem do Tacutú quase na mesma direcção do rio, vem do angulo
saliente, e a pouca distancia entra com uma perpendicular para o centro do forte, e
vai cahir perpendicularmente sobre outro lado parallelo ao que fica mais sobre a
margem do rio. O lado A que é mais próximo ao centro, fica defendido por um fogo
de artilheria situado na perpendicular B porém mui estreitamente. O lado C que está
mais sobre o rio não tem defensa. A mesma construcção, se observa por todo o lado
opposto D E.
O forte é construído de pedra e barro. Pela sua muita estreiteza não tem fogo de
apoio e protecção. Os terraplenos incapazes pela sua muita pequenez para n´elles
manobrar a artilheria; que consta de doze peças de ferro do calibre de seis até uma
quarta. Os parapeitos formados de pedra e barro impróprios para cobrirem os
defensores. Nem tem uma rampa por onde marche uma peça de artilharia(sic).
Quanto ao exíguo tempo gasto para erguer a fortaleza, um ano, Farage (1991) não o
imputa apenas à precariedade da obra, mas observa que em sua construção foi empregada mão
de obra indígena, descida com esse objetivo, além do trabalho dos índios tomados aos
espanhóis nos aldeamentos do Uraricoera, fato que imprimiu maior velocidade aos trabalhos.
Convém sublinhar que, embora precária a construção do Forte, este, por si só, foi fator
importantíssimo para a colonização do Vale do Rio Branco, pois a partir dele, iniciaram-se as
expedições de tropas de resgate, que desciam os índios para as proximidades da Fortaleza,
erigindo-se os aldeamentos (VIEIRA, 2007).
Barros (1995) aduz que os motivos determinantes da instalação permanente dos
militares, com a construção de um forte no alto rio Branco, foram: as atividades comerciais
dos holandeses na região, vindos da Rupununi Savanas pelo rio Tacutú; e a reivindicação da
posse do Vale Riobranquense pelos espanhóis, que haviam saído de Angustura, atual ciudad
Guiana, estabelecendo-se no rio Uraricoera. A ameaça espanhola era, pois, efetiva e, segundo
o Ouvidor Ribeiro Sampaio (apud Farage, 1991), deixava fragilizado o sistema de defesa
construído pelos portugueses para Amazônia, lamentando-se o referido Ouvidor que outras
fortalezas portuguesas construídas em diferentes locais da colônia pouco fariam se os
espanhóis tivessem acesso ao rio Negro pelas águas do rio Branco.
Dessa forma, o Forte são Joaquim, localizado na confluência dos rios Tacutu e
Uraricoera, barrava o acesso ao rio Branco, representava o maior empreendimento de defesa
da região Amazônica de que Portugal dispunha para impedir o avanço espanhol vindo do rio
Orinoco. Nesse sentido, Lobo D’Almada (1861, p. 682) informa que:
31
[...] o forte está situado em lugar competente; porque protege a passagem do rio
Branco, na altura em que confluem os rios Tacutú, e Uraricuera, defendendo ambos
estes dous canaes, por onde as nações estrangeiras confinantes se poderiam
communicar para o rio Branco (sic).
Para acentuar a importância do Forte São Joaquim na estratégia de colonização do rio
Branco, Vieira (2013) anota que, durante sua existência, o Forte teve a função de dirigir a
administração do Vale do Rio Branco para o governo português e mais tarde, com a
independência, para o brasileiro. Nesse sentido, o mesmo autor acrescenta que a extensão das
fazendas reais, pertencentes à coroa lusa e embriões da pecuária no atual Estado de Roraima,
alcançava toda a região do alto rio Branco. Ressalta-se que as três fazendas estavam sob a
administração do comandante do Forte São Joaquim.
Desse modo, o Forte São Joaquim se constituiu em centro de irradiação de defesa e
das atividades administrativas do extremo norte das possessões portuguesas, e depois, com a
independência, dos interesses do Brasil. Estas circunstâncias fornecem a ideia da importância
do forte na conjuntura social e política das terras do Vale do Rio Branco no contexto histórico
da colonização da região.
2.2.2 A cidade de Boa Vista
A cidade de Boa Vista está localizada à margem direita do rio Branco e, segundo
Vieira (2013), surgiu no entorno do Forte São Joaquim como o primeiro núcleo habitacional
de não índios no Vale do Rio Branco.
Em 1787, por ordem da Coroa Portuguesa, Lobo D’Almada (1861) realizou uma
expedição no rio Branco e descreveu a região pormenorizadamente. Ao descrever a povoação
do Carmo, nome primitivo da cidade de Boa Vista, registrou que àquela época havia, no então
povoado, 16 fogos (casas) e duzentos e quinze almas (pessoas).
Além da população do povoado do Carmo, convém registrar que Lobo D’Almada
(1861) menciona que a guarnição do Forte São Joaquim era composta por 42 militares.
Embora não estivessem no referido povoado, é fácil concluir que, por sua proximidade, havia
estreita relação entre os habitantes do local e os militares. Ratificamos, pois, a importância do
Forte São Joaquim, conforme análise do item anterior, como instrumento valioso de
fomentação de desenvolvimento regional, com forte influência sobre o aumento da população
não índia.
O crescimento da região contribuiu para o desenvolvimento do núcleo urbano da
32
Freguesia de Nossa Senhora do Carmo que, com a edição da Lei nº 92, de 09 de novembro de
1858, passou a ser denominada Boa Vista. O governador da província do Amazonas, Augusto
Ximenes de Ville Roy, baixou o Decreto nº 49, de 09 de julho de 1890, criando o Município
de Boa Vista do Rio Branco, desmembrado do Município de Moura.
Ourique (1906, p. 13) realizou, embora sucintamente, valiosa descrição dos aspectos
físicos, políticos e sociais da cidade de Boa Vista, no ano de 1906, assinalando que àquela
época a então vila de Boa Vista já se constituía no principal centro econômico e político do
alto rio Branco, conforme a seguinte passagem de sua obra:
A villa da Boa Vista, situada na margem occidental, foi fundada ha mais ou menos
30 annos quando para o ponto em que ella está se transferiu a pequena povoação de
S. Joaquim que demorava à sombra das baterias do Forte do mesmo nome. É cabeça
da comarca do Rio Branco, capital do Município, e mantém, com regular freqüência,
duas escolas primarias para dous sexos. Do seu commodo porto cortado em curva
regular no barranco da margem, sobe-se por suave ladeira até o chapadão, onde está
construída a Villa.
Possue boas casas, algumas de alvenaria, algumas capellas edificadas singellamente,
mas com relativa elegância. Pode-se considerar Boa Vista como centro mais
importante de todo o movimmento comercial, industrial e agrícola do alto Rio
Branco (sic).
A foto abaixo nos permite visualizar a cidade de Boa Vista no início do século XX. A
imagem foi captada de uma embarcação ao chegar ao Porto de Boa Vista do Rio Branco.
Figura 3: Porto de Boa Vista do Rio Branco
Fonte: SANTOS, Adair J., 2004.
33
Por sua vez, Koch-Grünberg (2006, p.39), em 1911, denominou Boa Vista como sede
das autoridades, capital do Município do Rio Branco, ou seja, ele também realça a
importância de Boa Vista como centro administrativo e político da região. O mesmo autor,
quanto ao aspecto físico, em sua primeira visão da cidade, descreveu-a como “uma fileira de
casinhas claras e agradáveis na alta e rochosa margem direita”.
Koch-Grünberg (2006, p.40), porém, ao descrever Boa Vista a partir de seu interior,
modifica sua percepção da cidade, pois revela ter sido guiado por um “menininho índio”, que
foi buscá-lo com uma lanterna, porque não existia iluminação nas ruas. Aduz, ainda: “os
caminhos estão cobertos de mato alto, e a rua principal também é área de lazer de animais, de
bois e, especialmente, de porcos, que descansam em buracos fundos na lama e grunhem
indignados quando a luz da lanterna os atingem” (KOCH-GRÜNBERG, 2006, p. 40).
Quanto ao aspecto social de Boa Vista, de acordo com a narrativa do consagrado
antropólogo ao mencionar sua participação, no ano de 1911, em uma festa realizada na casa
do Senhor Antônio Terêncio de Lima, a vida na cidade não era diferente da rotina de outros
lugares. O baile foi muito monótono, com danças europeias, iguais aos realizados na
Alemanha, sua terra natal. Observou a mistura de raças dos habitantes de Boa Vista,
comentando que “algumas moças são bem bonitas, de todos os matizes”. As bebidas
consumidas na festa foram cervejas em garrafa e Aluá4. Comentou a presença de empregados
índios, considerando a existência de entrelaçamento cultural de índios e não índios. Segundo
sua narrativa, a residência na qual se realizava o baile era construída em adobe5, concedendonos a ideia das construções das casas da cidade no ano de 1911.
Em 1917, segundo Barbosa (apud BARROS, 1995), os habitantes não índios de Boa
Vista e de seu entorno somavam cinco mil pessoas, e mais três ou quatro mil dispersos pelas
fazendas de gado e postos de coleta ao longo do Rio Branco. Barros (1995) observa que estes
números não discrepavam dos apontados pelo censo demográfico realizado em 1920 de 7,5
mil pessoas.
Por seu turno, Rice (1978) afirma que em 1924 Boa Vista era o único povoado junto
ao rio Branco que podia ser denominado de vila, com cento e sessenta e quatro casas e uma
população de 1200 habitantes.
Comparando-se as observações de Barros (1995) e de Rice (1978), verifica-se que a
população do entorno de Boa Vista (rural) era bem maior que a da cidade propriamente dita,
4
Bebida refrigerante, feita no norte, com farinha de arroz ou milho torrado fermentada com açúcar em potes de
barro, e na Bahia e Minas Gerais com cascas de abacaxi, pelo mesmo processo, definição Dicionário Aurélio;
5
Tijolo sem furo, confeccionado de barro cru, definição do autor.
34
pois o primeiro, referindo-se à somatória da população da cidade e do seu entorno, afirma que
havia 5000 habitantes em 1917, enquanto o segundo, em 1924, ou seja, sete anos depois,
informa que a cidade tinha 1200 habitantes. Como não se tem notícia de nenhum êxodo,
conclui-se que o segundo se refere apenas aos moradores da cidade, ignorando o seu entorno.
Esta circunstância se harmoniza com os estudos de Vieira (2007) sobre o crescimento intenso
da pecuária no período.
Em 1924, os aspectos físicos, econômicos e sociais da cidade descritos por Rice
(1978) não diferiam muito da situação relatada em 1911 por Koch-Grünberg (2006, p. 25),
pois ambos narraram que a maioria das residências era de reboco e pau a pique e a população
era “composta de portugueses, brasileiros, mestiços, índios e alguns negros vindos das Índias
ocidentais pela Guiana Inglesa”. Rice (1978) registrou, naquela oportunidade, a existência de
alguns soldados vindos de Manaus que se casaram e fixaram residência em Boa Vista. Outra
faceta digna de nota, referida por Rice (1978), é o alto grau de moralidade nas relações sociais
e familiares percebido nos trajes, nas maneiras, na amabilidade. Segundo ele, os habitantes de
Boa Vista eram “verdadeiramente civilizados”, atribuindo essas qualidades à influência das
freiras e dos monges beneditinos que moravam na cidade.
Em 1938, Boa Vista não apresentava ainda grandes mudanças, mantinha as
características de 14 anos atrás, descritas por Rice (1978), conforme o texto do médico e
monge beneditino Dom Vicente de Oliveira Ribeiro (apud LEMOS, s/d, p. 106/107):
Boa Vista é uma pequena cidade de umas 400 casas e de pouco mais de 2000
habitantes, situada a margem direita do Rio Branco, que a essa altura mede 2 km de
largo. As ruas, umas 15 ao todo, são amplas não arborizadas, aqui e ali revestidas de
capim. As casas, em geral espaçadas umas das outras e modestas. A maioria é de
barro e recoberto com palha de miriti 6. Algumas de tijolo e telha, outras com
cobertura de estilhas de madeira ou de folha de flandres. Bandos de ovelhas
passeiam livremente pelas ruas, dando um aspecto bucólico e pituresco à cidade.
Uma dezena de bicicletas, umas poucas motocicletas, 3 ou 4 caminhões, alguns
carros de boi, cavalos aguateiros, é tudo o que se pode ver transitar pelas ruas dessa
cidadezinha simpática, a mais setentrional do Brasil (sic).
Quanto ao aspecto político e administrativo, Dom Vicente de Oliveira Ribeiro
(Ibidem) registrou: “sede do município, Boa Vista possui juiz de direito, promotor, tabelião e
um contingente militar de umas 40 praças para vigiar as fronteiras”. Segundo o referido
monge, as atividades que moviam a economia municipal eram a pecuária, a cultura de tabaco
e o garimpo de ouro e diamante, que davam à cidade movimento comercial relativamente
intenso. O cronista anota também (op. cit., p. 59) que “durante o verão, os rapazes, quase
6
Mesmo que buriti.
35
todos, vão para as minas, sempre na esperança de um achado compensador, o que, entretanto,
é bem raro, o trabalho na garimpagem é duríssimo e o beribéri tem feito inúmeras vítimas”.
Para o monge cronista, os garimpos, a despeito de muito contribuir para as finanças da
cidade, causavam reflexos negativos à vida social com o afastamento dos jovens, além de ser
causa de doenças como o beribéri.
A cidade de Boa Vista também mereceu, em 1941, a descrição de seu aspecto físico
por Macaggi (2012). A poetisa assim descreveu a pobreza da cidade, seu desconforto, enfim,
a ausência de urbanização:
Muito espalhada, com poucas casas de alvenaria e inúmeras de taipa, cobertas de
palha de buriti ou de inajá. Sem árvores, sem praças e sem flores. Prédios velhos e
feios. Quintais abertos e abandonados, sem uma horta ou jardinzinho, só um
bangalô, à distância, embelezando a paisagem. Nenhum grupo escolar, sendo raras
suas escolas, regidas por professores primários. Sem cais e com as margens do rio
terríveis para atracações das embarcações.
Ruas estreitas, barrentas e no centro da cidade um coreto coberto de palha. Nenhuma
indústria (MACAGGI, 2012, p. 110-111).
Percebemos que Boa Vista, até o início da década de 1940, crescia lentamente. Porém,
segundo Barros (1995), depois de 1943, assumiu uma primazia urbana notável em razão da
concentração administrativo funcional ao se tornar a capital do Território Federal do Rio
Branco. De acordo com o mesmo autor, nas décadas de 1970 e 1980, houve um incremento da
migração, especialmente de nordestinos, devido à implantação de projetos de colonização e da
construção da rodovia BR-174, fazendo praticamente dobrar a taxa de crescimento
demográfico, que na década anterior apresentou média anual de 3,75%, elevando-se nas
décadas 1970/1980 para 6,83%. Barros (1995) sublinha, também, que o garimpo, entre os
anos de 1987 a 1990, causou a expansão periférica da cidade de Boa Vista, apontando que, no
período 1980/1991, a população da cidade teve um aumento de 9,55%.
Segundo o último Censo geral, realizado em 2010, Boa Vista possuía 284.313
habitantes (IBGE, 2010). É o centro urbano mais importante do Estado de Roraima e, em
virtude de ser a capital, concentra as decisões políticas mais importantes desta unidade da
federação, mantendo a primazia social, econômica, política e administrativa que apresenta
desde a instalação do Forte São Joaquim. Em outras palavras, qualquer decisão, atividade ou
movimento de qualquer espécie, importante para o Estado, passa por Boa Vista. Assim, esta
cidade perenemente foi o centro de apoio para a pecuária, para o garimpo e para os projetos
de assentamentos e instalação de colônias agrícolas do Governo, recebendo os imigrantes,
com ênfase para os nordestinos, cujos descendentes vão se constituir nos “desintrusados” da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
36
A hegemonia de Boa Vista em relação aos demais municípios do Estado de Roraima
pode ser percebida pela análise dos dados socioeconômicos de 2010, fornecidos pela
Secretaria de Estado de Planejamento – SEPLAN e extraídos da tabela abaixo. Os dados
mostram Boa Vista com um Produto Interno Bruto de R$ 4.659.977 mil, concentrando 73,5%
da economia estadual. A referida hegemonia econômica e social reflete no PIB per capta de
R$ 16.393, deixando Boa Vista acima da média do Estado que, em 2010, foi de R$ 14.052,
como se infere da tabela abaixo:
Tabela 1 - Produto Interno Bruto a preço de mercado corrente dos 6 maiores municípios do
Estado de Roraima – 2007 a 2010 - (R$ mil)
Município
2007
2008
2009
2010
Valor
Ranking
Valor
Ranking
Valor
Ranking
Valor
Ranking
Boa Vista
3.036.017
1
3.578.135
1
4.090.497
1
4.659.977
1
Rorainópolis
169.769
2
195.488
2
231.527
2
238.153
2
Caracaraí
128.340
3
144.066
3
170.841
3
181.307
3
Mucajaí
109.327
5
127.367
5
146.580
4
165.198
4
Alto Alegre
112.584
4
129.896
4
141.954
6
164.155
5
Cantá
96.313
6
117.945
6
146.091
5
163.017
6
TOTAL
3.652.350
....
4.292.897
....
4.927.490
....
5.571.807
....
Participação
87,6%
....
87,8%
....
88,1%
....
87,9%
....
Roraima
4.168.599
....
4.889.303
....
5.593.491
....
6.340.601
....
Fonte: IBGE - CONAC - Coordenação de Contas Nacionais; SEPLAN – RR / CGEES.
A hegemonia do Município de Boa Vista é mantida em relação a todos os setores da
economia roraimense: indústria 80,65%, agropecuária 16,16% e serviços 74,23% do valor
adicionado, conforme tabela abaixo:
Tabela 2 - Valor Adicionado dos 5 maiores municípios do Estado de Roraima por setor de
atividade – 2010 - (R$ mil) VA agropecuária
VA Agropecuária
Ranking
Municípios
Valor
(R$ mil)
VA Indústria
Municípios
Valor
(R$ mil)
VA Serviços
Municípios
Valor
(R$ mil)
1
Boa Vista
40.077
Boa Vista
607.457
Boa Vista
3.550.084
2
Alto Alegre
31.270
Rorainópolis
25.492
Rorainópolis
178.950
3
Cantá
30.689
Cantá
22.519
Caracaraí
145.055
4
Bonfim
27.941
Caracaraí
17.177
Alto Alegre
118.095
37
5
Mucajaí
26.683
Mucajaí
16.035
Mucajaí
115.545
Total
156.660
...
688.680
...
4.107.729
...
Participação
56,8%
...
90,9%
...
85,9%
...
Roraima
275.776
757.790
4.784.709
Fonte: IBGE - CONAC - Coordenação de Contas Nacionais; SEPLAN – RR / CGEES. Em 2010 dados sujeitos
à revisão.
Dessa forma, Boa Vista, ao concentrar 60% da população do Estado (IBGE, 2010) e
73,5% da economia estadual (SEPLAN, 2010), mantém a primazia política, econômica e
social exibida desde o limiar da colonização do Vale do Rio Branco.
2.2.3 A Pecuária no Vale do Rio Branco
Em 26 de agosto de 1786, Lobo D’Almada foi nomeado governador da Capitania do
Rio Negro, assumindo o cargo em 09 de fevereiro de 1788. Entre seus trabalhos, deveria
demarcar o território da capitania com o fim de defendê-la de incursões estrangeiras. Com
esse desiderato, implantou as atividades agropecuárias no Vale do Rio Branco, fundando as
chamadas fazendas reais (REIS, 1989).
Em relatório datado de 1787, Lobo D’Almada realizou criteriosa descrição do Vale do
Rio Branco, ainda ameaçado por espanhóis e holandeses, relatando as potencialidades da
região, povoações existentes (Carmo, Santa Maria, São Felipe, Conceição e São Martinho),
sua população, tanto índia quanto não índia, e sugeriu estratégias de colonização
(D’ALMADA, 1861), dentre as quais estava a implantação da pecuária, utilizando-se do
potencial que o ambiente natural do Vale do Rio Branco oferecia, quais sejam: vasta pastagem
natural de boa qualidade (savanas) e água em abundância.
Na conclusão do seu trabalho exploratório, Lobo D’Almada (1861) descreveu os
perigos de a região riobranquense ser dominada por espanhóis e holandeses, ressaltando que a
coroa portuguesa deveria utilizar-se de meios enérgicos para sua verdadeira ocupação, pois a
construção da Fortaleza de São Joaquim e os aldeamentos7 de índios não eram suficientes
para garantir a posse do Vale do Rio Branco. Forte nesse pensamento, o militar e político
português sugeriu as seguintes medidas políticas para colonizar o Vale do Rio Branco:
7
Lobo D’Almada (1861, p. 669) cita os cinco aldeamentos existentes à época, a saber: Carmo, Santa Maria, São
Filipe, Conceição e São Martinho.
38
Outro meio de coloniar o rio Branco não só seria permitir em toda liberdade, e
mesmo promover que os soldados casassem com índias deste território; mas excitalos para isso com o donativo de algumas vaccas, e algumas egoas que se lhes dessem
por conta a fazenda real: e que esta se distribuisse semelhantemente a qualquer outro
homem casado, alli se fosse estabelecer: se tudo assim se houvesse de praticar,
coloniar o rio Branco, forma que se podesse confiar na existência das suas
povoações, seria mais facil do que parece (sic) (D’ALMADA, 1861, p. 779).
Assim, com o objetivo de colonizar a região, incentivando a miscigenação, Lobo
D´Almada fundou a primeira fazenda de gado bovino, a qual denominou de São Bento.
Seguindo seu exemplo e com seu incentivo, o alferes Nicolau de Sá Sarmento, comandante do
Forte de São Joaquim, e Antonio Freire de Évora fundaram as de São José e São Marcos,
núcleos nos e dos quais se desenvolveram o rebanho bovino do Rio Branco (REIS, 1989). As
duas últimas fazendas também passaram para o domínio da coroa portuguesa (SOUZA,
2005), sendo denominadas de fazendas reais (BARROS, 1995). Por sua vez, Cirino (2009)
aduz que a instalação da pecuária nas savanas do alto Rio Branco, com as referidas fazendas,
no final do século XVIII, teve o fim de garantir o domínio português na região e abastecer de
carne os mercados do Rio Negro e do Amazonas.
A construção e instalação do forte São Joaquim, a fundação das referidas fazendas e os
incentivos do Governo atraíram colonos que se transformaram em pequenos fazendeiros
(VIEIRA, 2007).
Nesse contexto, é importante mencionar que, em 1795, foi promulgado o Alvará de 05
de outubro, para regularizar posses de terras. Sua vigência durou até 1850 com a extinção das
sesmarias, mas continuou a difundir-se entre os colonos a ideia de que, para tornar-se
proprietário de uma área de terra, bastava que ela fosse considerada devoluta, torná-la
produtiva e aguardar a sua legalização, o que ocorreu com a edição da Lei nº 601/1850, a Lei
de Terras, conforme Souza (apud VIEIRA, 2008).
Em 1845, João Henrique de Matos, Diretor Geral dos Índios da Província do Pará,
informou que das povoações (aldeamentos) existentes em 1787, no Vale do Rio Branco
(Carmo, Santa Maria, São Felipe, Conceição e São Martinho), existiam apenas as de Santa
Maria e Carmo, constatando, quase cem anos depois da construção do Forte São Joaquim, o
fracasso da estratégia portuguesa de povoar a região (VIEIRA, 2007). Todavia, o objetivo
maior, até aquele momento, fora alcançado: o de manter íntegro o território nacional.
A experiência das Fazendas do Rei levou o governo imperial a concluir que a
exploração da pecuária no Vale do Rio Branco seria a melhor forma de manter a integridade
do território brasileiro. Contudo, parecia ser um investimento duvidoso diante das vantagens
que o extrativismo oferecia em outras regiões da Amazônia. Desse modo, o governo passou a
39
oferecer fortes atrativos para colonos civis: “grande quantidade de campos gerais, mão de
obra indígena e gado solto” (VIEIRA, 2007, p. 34).
Segundo Vieira (2007, p. 39), a partir do ano de 1891, com a “autonomia
administrativa, o número de fazendas foi aumentando ao longo dos anos num processo
ininterrupto, como também foram sendo legalizadas”, pois foram editados vários diplomas
legais com o fim de consolidar a ocupação fundiária. Destacando-se entre esses a Constituição
Federal de 1891.
Nesse passo, o art. 64 da Constituição Brasileira de 1891 delegava poderes supletivos
para governos estaduais legislarem sobre terras devolutas; o Decreto Nº 07 de 20 de
novembro de 1889 conferia competência aos estados-membros para regular transitoriamente a
administração dos bens do Brasil, podendo vender os que não conviesse manter. Arrimado na
nova ordem constitucional, o Estado do Amazonas editou o Decreto nº 04 de 16 de março de
1892, com o objetivo de legalizar as posses de terras em todo o estado, inclusive no Vale do
Rio Branco (VIEIRA, 2007).
Em 1886, o relatório oficial da Província do Amazonas registrou a existência, no Vale
do Rio Branco, de 80 fazendas particulares. Em 1906, eram142 fazendas (BARROS, 1995).
Esse crescimento foi ocasionado pelos incentivos do governo brasileiro. Na mesma época,
Ourique (1896, p. 13), em missão oficial do Governo do Amazonas, escreveu entusiástico
relatório sobre a prosperidade das fazendas que ocupavam as terras da fazenda nacional de
São Bento, afirmando: “hoje sua vasta superfície está ocupada por posseiros e dividido em
numerosas e prósperas fazendas particulares, em que se criam, com animador resultado,
milhares de gado vaccum, cavallar e lanígero”(sic). Vemos, pois, que a produção de gado nas
fazendas nacionais por particulares era querida e desejada pelo governo do Estado.
Barros (1995) acrescenta que a ascensão da pecuária no Rio Branco era simultânea à
expansão da extração da borracha na Amazônia. Esses fenômenos criaram um mercado de
alimentos, com estímulo suficiente para sua expansão. Assim, em 1920, a região contava com
cerca de 320 mil cabeças de gado bovino, vivenciando, pois, seu apogeu. O Crescimento
absorveu a mão de obra indígena e de imigrantes nordestinos, que atuavam como vaqueiros,
sendo remunerados no sistema da sorte (terço, quarto, quinto, conforme o contrato). Seguindo
essa linha de pensamento, Cirino (2009) enfatiza que o Rio Branco tornou-se centro
exportador de gado para outras regiões da Amazônia.
Gondin (1986), em viagem ao Rio Branco em 1921, realizou um inventário das
fazendas de gado mais importantes existentes naquela época, citando as seguintes:
40
É grande o número de fazendas particulares existentes no Alto Rio Branco,
destacando-se nesse conjunto, as seguintes: no Rio Uraricuera – Truarú e Alagadiço,
de J. G. Araujo; Fazenda Nova e Nova Fazenda, do coronel Bento Brazil; Cajual, de
José de Souza; Terçado, de Victor Motta; Sant’Anna, de Homéro Cruz; Bocca do
Amajary, dos herdeiros de Emiliano Lopes Magalhães; Apparecida, do Jacob
Bamberg; Irupe-irupe, de d. Simphorosa Campos; Cruzeiro, dos herdeiros de
Delphim José de Souza; Santa Barbara, de Francisco Vasconcellos ; Iracema, de
Severino de Hollanda Bessa; no Amajary – Viçosa, de Antonio Dias de Souza Cruz
Araçá, de Domingos Coelho; São Miguel, de Joaquim Ambrosio de Mattos; CantaGallo, dos herdeiros de José Francisco da Silva Junior; São Jorge, de Domingos
Gonzaga Rodrigues Braga; Santa Izabel, de Francisco Guilherme Tavares; Realeza,
de Alfredo Jaricuna de Souza Cruz; Desterro, do dr. José de Mattos Grangeiro;
Desilusão, de d. Francisca Montenegro Peixoto; Aracaty, de Euclides José de Souza;
No parimé-São Sebastião, de J. G. Araujo; Typographia, de Adolpho Brazil;
Tarame, do Coronel Bento Brazil; Soledade, de Jayme Brazil; No SurumuFlorianópolis, de Idalício Farias; no Tacutu-São Luiz, do tenente Luiz de França
Carvalho; Porre, de Generaldo Collaço Veras; Paraiso, de Luiz Gomes Freire de
Quadros; Maravilha, de Manoel Accioly Vieira Cavalcante; Igarapé Grande, de
Accacio Ferreira do Valle; Conceição do Mahú, do dr. João Augusto Zany; Eva, de
Henrique Boc-Kley; NA Serra da Lúa – Malacacheta, de Sizenando Diniz de Lima
Arraia, de João Diniz; Nova Cintra, de Monoel Pereira Pinto; Tucunaré, de J. G.
Araujo; Urubúe, de Francisco Marques; Waterloo, de Ampolino Alves Pereira; no
Rio Cauamé – Capim, de Terencio Antonio de Lima; São Salvador, de J. G. Araujo;
Titiarre, de Bento Brazil; Favella, de José Thomaz do Nascimento; no Mahú – Casa
Branca, de d. Candida Menezes de Lima; Aramirá, de Gabriel Pereira e Condado, de
Zozimo de Alencar Macedo (sic) (GONDIN, 1986, p. 15-16)(sic).
A produção das fazendas do Vale do Rio Branco, conforme Barros (1995), era
destinada quase exclusivamente para o Amazonas. O transporte do gado vivo para aquele
estado era realizado pelo rio Branco. Koch-Grünberg (2006) narra a difícil operação de
embarque dos animais:
Na manhã seguinte os 105 bois são embarcados; um acontecimento e tanto! Do
curral onde os bois estão abrigados os marujos cavaram uma azinhaga que desce aos
poucos na íngreme margem lamacenta até o nível da água e está protegido por
cercas altas dos dois lados. Os bois são tangidos para baixo em grupos de 20. Lá
embaixo são aguardados por alguns homens robustos, que prendem cada boi pelos
chifres com uma corda curta e grossa. Então vem de cima, movida pela máquina,
uma forte amarra de aço com laço de corda, que é posta em volta dos chifres curvos
do boi. Com essa espécie de guindaste, o pobre animal é içado; fica algum tempo
suspenso de maneira lastimável entre o céu e a água, com o pescoço cada vez mais
comprido; então é abaixado cuidadosamente pela escotilha e, quando o porão fica
cheio, no deque. Lá, os animais são amarrados bem juntos uns dos outros, com suas
cabeças batendo umas nas outras (sic) (KOCH-GRÜNBERG, 2006, p. 37).
A criação de gado bovino no Vale do Rio Branco, que apresentava crescimento desde
1870, sofre forte queda “em 1945, para 120.427 cabeças, por falta de mercado em razão do
declínio da borracha no Amazonas. Parte do gado foi sendo dizimado pelo abandono e parte
vendida para criadores venezuelanos” (BARROS, 1995, p. 57). Paradoxalmente, como anotado
pela Secretaria de Estado de Educação do Pará (PARÁ, 1992), o declínio da borracha acabou
por determinar a migração de trabalhadores nordestinos dos seringais para vários Estados da
41
Região Norte em busca de novo trabalho, vindo alguns deles para as fazendas de gado do
Território do Rio Branco.
A exploração da borracha na Amazônia, desse modo, deitou reflexos em duas
vertentes nas atividades pecuárias do Vale do Rio Branco: foi utilizada para fornecer carne
(gado vivo) para o mercado do Amazonas durante o período de extração gomífera e, com o
fim do ciclo de exploração, alguns seringueiros migraram para Roraima para trabalhar nas
fazendas de gado sob o “sistema de sorte”, tornando-se pequenos fazendeiros, a exemplos de
avós e bisavós, de alguns dos interlocutores ouvidos durante a pesquisa de campo. Dessa
forma, as duas vertentes produziram alguns dos hoje “desintrusados” da TIRSS.
2.2.4 Ciclo da borracha na Amazônia, secas do nordeste e imigração
As secas que assolaram a Região Nordeste do Brasil, a partir de 1870, e o ciclo da
borracha na Amazônia foram fatores que incidiram diretamente sobre o processo de ocupação
e colonização do Estado de Roraima, com fortes reflexos sobre as terras indígenas, em razão
da política estatal de fixação de pequenos pecuaristas e colonos nessas áreas, com realce
maior para a Raposa Serra do Sol, devido sua vasta extensão, mais de um milhão e setecentos
mil hectares de área demarcada. Hoje, os descendentes daqueles colonos e pecuaristas são os
não índios “desintrusados”. Por esses motivos, é necessário realizar estudo sobre os referidos
fenômenos: exploração da borracha, secas nordestinas e imigração.
A borracha da Amazônia, segundo Loureiro (2002), começou a ser explorada
comercialmente em meados do século XIX, incrementando-se no final desse mesmo século e
tendo grande impacto no aumento da população da região norte. Esta passou, entre os anos
1890 e 1900, de 476.000 para 695.000 habitantes, com crescimento de 46%. O principal fator
desse crescimento foi a imigração de nordestinos atraídos pela possibilidade de riqueza com a
exploração da borracha. Esse crescimento, segundo a mesma autora, triplicou entre 1890 e
1920, coincidindo “com o período áureo (máximo) de exploração da borracha natural da
Amazônia para o mundo” (LOUREIRO, 2002, p. 41), estima-se que nesse período acorreram
para a Amazônia cerca de 300.000 nordestinos. Para a Secretaria de Estado de Educação do
Pará (2002), o aumento demográfico em razão da imigração nordestina foi bem maior,
afirmando que a população da Amazônia, em 1870, era de 323 mil pessoas. Em 1910, passa
para 1.217.024 de pessoas, sendo que 45% trabalhavam na extração da borracha. O mesmo
órgão estatal observa que “muitos chegavam, mas também muitos morriam, em especial de
malária, febre amarela, diarreias, intoxicação e outras causas” (Ibidem, p. 19).
42
Batista (2007) registra que os primeiros imigrantes nordestinos foram maranhenses e,
a partir das grandes secas de 1870, começaram também a chegar à Amazônia pessoas
oriundas do Ceará, do Rio Grande do Norte e dos demais estados da região nordeste do Brasil.
Prado Júnior (apud Batista 2007) tece observações sobre a importância da borracha na
economia brasileira, realçando que em 1910 a exportação brasileira somava 377.000 contos
(24.646.000 libras ouro), representando cerca de 40% da exportação total do país, superando,
naquele período, a tradicional exportação de café. Por seu turno, Loureiro (2002) enfatiza que
no período de secas no Nordeste, o governo federal incentivou a transferência de uma grande
massa de trabalhadores do Nordeste para a Amazônia, os quais se distribuíram em toda
Região Norte, especialmente, na última década do século XIX, predominantemente atraídos
pela extração da Borracha, à época o principal produto da pauta de exportação do Brasil.
Nesse mesmo sentido, Cirino (2009) observa que a borracha, como matéria prima, era o
produto mais requisitado pelo mercado mundial, no entanto a mão de obra para extrair a
borracha era escassa. Para suprir essa escassez, o governo induziu nordestinos, que estavam
castigados pelas secas de 1877 a 1880 e pela decadência do mercado de açúcar, a migrarem
para a região dos seringais.
Os migrantes nordestinos, diferente dos europeus radicados no sul do Brasil, não
receberam ajuda do governo para se instalar, começaram a trabalhar completamente
endividados, “pois eram obrigados a reembolsar os gastos com a viagem, com os
instrumentos de trabalho e as despesas com instalações” (FURTADO apud CIRINO, 2009, p.
37). Em virtude disso, “para o seringueiro na Amazônia, só restaram a miséria, a doença e a
morte” (MATA apud CIRINO, 2009, p. 37). No mesmo sentido, a Secretaria de Estado de
Educação do Pará (2002, p. 18) realça que:
Os perigos da floresta eram enormes e as mortes muito freqüentes: ataques de
animais selvagens; picadas de répteis; chuva e umidade constantes; enfrentamento
com indígenas, do que decorriam mortes de parte a parte; má alimentação e outros
fatores contribuíam para que o seringueiro fosse um homem fraco; vulnerável a
doenças, de vida curta.
Dessa forma, a extração da borracha na Amazônia gerou fortuna para os empresários,
donos de seringais, divisas para o governo e pobreza, doenças e mortes para os imigrantes
nordestinos, estes, como sublinha Loureiro (2002), foram explorados no interior da mata com
apoio do Estado. Antes vítimas das agruras da seca, continuaram seu calvário nas terras
riobranquenses, no duro trabalho da pecuária, enfrentando também aqui a natureza inóspita e
as mazelas das doenças tropicais.
43
2.2.5 Colônias Agrícolas
Em continuação ao objetivo de ocupar a região amazônica, o governo federal instala,
com imigrantes paraibanos, a colônia agrícola do Passarão, a primeira do Vale do Rio Branco.
Koch-Grünberg (1979-82, p. 39) ao realizar estudos etnográficos no Rio Branco, em 1911,
assim descreveu a difícil situação socioeconômica daqueles agricultores:
Toda la tarde nos quedamos delante Passarão, una pequeña colonia de parahibanos
que El gobierno ha asentado aqui. En las miserables chozas hay una mugre increíble.
Los habitantes, que en parte eran mis compañeros de viaje hasta São marcos, están
afectados por todas las enfermedades posibles de la civilización y tienen un aspecto
degenerado. Viven del cultivo – a la manera india – de yuca, caña dulce, plátanos,
etc (sic).
A Colônia do Passarão ou dos Paraibanos, como era conhecida pelos roraimenses mais
antigos, tem especial relevo neste estudo em razão de alguns dos “desintrusados” da TIRSS
serem descendentes dos referidos migrantes, a exemplo dos senhores Altamir Lira de Queiroz,
falecido recentemente, e do senhor Moadir Lucena de Melo, identificados durante a pesquisa
de campo.
A senhora Maria Luizete Coutinho de Queiroz, esposa do Sr. Altamir Lira de Queiroz,
também descendente dos referidos agricultores, ouvida durante o trabalho de campo,
informou que:
[...] na colônia era produzido tabaco, que era vendido para Manaus. O fabrico do ano
era transportado em carro de boi até o porto do passarão onde chegava o batelão, aí
embarcavam a mercadoria. Muitos donos de sítio, fazenda iam junto com a
mercadoria que era para trazer o rancho para o ano todo. O rancho de sabão, açúcar,
tecido, querozene, o que não se produzia na terra, só porque o resto tudo era
plantado, milho, feijão arroz, tudo era plantado na terra (sic).
Novas colônias agrícolas no Vale Rio Branco só viriam a ser criadas no “Estado
Novo”, pois o presidente Getúlio Vargas, de acordo com Barros (1995), com o objetivo de
povoar as fronteiras do país, lançou um conjunto de medidas geopolíticas, entre elas a criação
de territórios federais e a instalação de colônias agrícolas. Assim, deu-se a criação do
Território Federal do Rio Branco, por meio do Decreto-Lei n° 5.812 de 13 de setembro de
1943. Em 1944, foram criadas e instaladas as colônias agrícolas Fernando Costa (atual
município de Mucajaí); Brás de Aguiar (atual município de Cantá); e Serra do Taiano. Assim,
contando-se da instalação de Passarão até a formação de novas colônias agrícolas na região do
Vale do Rio Branco, passaram-se trinta e quatro anos. Guerra (apud BARROS, 1995, p. 59)
44
anota que para atrair as famílias de colonos nordestinos para o recém-criado território, além
da terra, o governo oferecia vários incentivos a teor da seguinte passagem de sua obra:
As famílias, para este e outros projetos no período, eram recrutadas na própria
Amazônia, ou Nordeste do país (Maranhão, principalmente). Recebiam as passagens
para chegar em Boa Vista, um mês de alojamento nesta cidade, e roupas e utensílios
domésticos, antes de serem transferidas para as áreas de assentamento. Situadas nas
colônias, estas famílias recebiam uma mensalidade financeira por 9 meses,
ferramentas básicas, medicamentos, e assistência hospitalar em Boa Vista.
Os incentivos em comento seguem a tônica das vantagens oferecidas pelos governos
do Estado Nacional durante o período inicial da colonização.
A imagem abaixo é um registro do dia 11 de setembro de 1951. Data em que
chegaram a Boa Vista famílias de colonos maranhenses que foram assentados pelo governo na
colônia de Mucajaí, conforme informações verbais da professora Maria Rodrigues e Silva,
que pertencia ao grupo desses imigrantes e havia chegado naquela ocasião juntamente com
sua família: pai, mãe e irmãos.
Figura 4 – Chegada de imigrantes do Maranhão, em 1951.
Fonte: Arquivo da professora Maria Rodrigues e Silva.
Destro (2006) observa que, durante os governos militares dos anos 1960 e 1970, a
política de assentamentos agrícolas continuou sob o título de Programa de Polos
Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (Poloamazônia). Tais iniciativas estavam
consorciadas à construção de estradas, a exemplo da Transamazônica e da BR-210 (Perimetral
45
Norte), e tinham como objetivo o povoamento e a integração da região. Para atrair os colonos,
eram doados lotes de terra ao longo destas rodovias. Segundo o mesmo autor, para o governo
militar, a iniciativa satisfazia a necessidade de ocupação e de segurança nacional.
Segundo Silveira e Gatti (apud DINIZ, 2005), os referidos projetos de colonização
promoveram a transferência de centenas de colonos de regiões pobres do nordeste brasileiro,
especialmente do Maranhão, cujos nativos, desde 1940, representam o principal contingente
de imigrantes em Roraima. De acordo com esses autores, a criação do território e a
implantação das colônias agrícolas geraram acentuado aumento da população local. Assim, o
censo demográfico de 1950 registrou 18.116 pessoas, 80% a mais do que o de 1940. Durante
a década de 1950, a população aumentou para 28.304 habitantes, consoante o censo de 1960.
Para Diniz (2005), os incentivos do governo para a ocupação da região fizeram com que a
população continuasse crescendo, chegando em 1970 a 40.885 e, em 1980, a 79.159 pessoas.
De acordo com Barros (1995), o governo continuou a trabalhar com duas espécies de
projetos de colonização: os grandes, como o Projeto de Assentamento Dirigido Anauá, com
1850 lotes, nas BR 210 e 174, os projetos Jatapú e Jauaperí, com um total acima de 2600 lotes
de terra doados no percurso da BR 210; e os pequenos, a exemplo da colônia de Pacaraima,
com 10 lotes, e a de Sorocaima, com 20. O mesmo autor observa que, com exceção de
Normandia, os aludidos projetos estenderam-se aos demais municípios, tornando difícil a
gestão e o controle estatístico.
A implantação dos projetos agrícolas em comento, em razão da grande quantidade de
imigrantes atraídos para o Estado de Roraima, acabou por refletir na questão indígena.
Primeiro porque algumas colônias foram implantadas diretamente em terras indígenas, como
as de Pacaraima e Sorocaima, cujos colonos foram “desintrusados” com a homologação de
TIRSS. Segundo porque alguns desses colonos se tornaram pequenos pecuaristas, conforme
apurado na pesquisa de campo.
2.2.6 Garimpo
A garimpagem foi outra atividade econômica que incidiu sobre as terras indígenas,
sendo até os dias atuais fonte de conflito. O garimpo tem estreita relação com o presente
estudo, em razão de um precursor dessa atividade, o paraibano Severino Pereira da Silva,
conhecido por Severino Mineiro, ter deixado vários descentes que se transformaram em
46
pequenos pecuaristas, hoje, “desintrusados” da TIRSS, a exemplo de Fani Mota, Zelio Mota,
José e Gêmulo Leite.
Sobre a vida desse garimpeiro, o monge beneditino D. Alcuíno Meyer (LEMOS, s/d,
91) escreveu:
No Socó, mora o velho mineiro Severino Pereira da Silva, casado pela segunda vez
com uma índia macuxi, e pai de numerosa família. Esse paraibano está no Rio
Branco há mais de 30 anos. Foi ele quem iniciou o trabalho de mineração de ouro e
diamante no alto Rio Branco. Em 1928, encontrei-o no igarapé do Eremutaua.
Dom Alcuíno discorre, ainda, sobre uma viagem de Severino Mineiro ao Rio de
Janeiro levando ouro e diamante, o que motivou novo surto migratório para esta região: “Em
1936, foi até o rio de avião, levando muitos quilos de ouro e não sei quantos diamantes,
fazendo com que muitos nordestinos e gente do Pará, Manaus, etc, viessem tentar fortuna nos
garimpos do alto Cotingo” (apud LEMOS, s/d, p. 91).
Santilli (2001, p. 99) sustenta que dados obtidos junto aos índios e aos “regionais”
(não índios) corroboram as informações acima. Em suas palavras: “antes das atividades de
Severino Mineiro nas décadas de 1920-1930 não havia qualquer prática de exploração mineral
naquelas redondezas. A presença de garimpeiros na área não ocorreu de forma uniforme, ou
constante, desde o início, mas ao contrário sucedeu de modo bastante variável”.
O senhor Gêmulo Leite Pereira, neto de Severino Mineiro, ouvido durante a pesquisa
de campo, narrou a chegada de seu avô a Boa Vista e o início de suas atividades de
garimpagem:
Gêmulo Leite Pereira: Meu avô (Severino Mineiro), quando veio da Paraíba, era
homem novo, aí veio desde lá... Porque sabe que aquele Nordeste velho é tranquilo,
mas Paraíba já é mais agitado. Já veio de lá assim meio brigado. Aí, veio pra cá pra
Roraima, aí chegando veio pra cá, mas ele já ouvia falar em garimpo e ele era
homem sabido. Meu avô era homem sabido... (inaudível), então ele pensava muito
de mexer com garimpo, o Nélio sabe. Aí, chegando aqui, ele quando chegou ali no
porto do cimento, tinha um rapaz dormindo lá no barco. Aí, quando amanheceu o
dia ele saiu do barco e tinha um cidadão lavando uma canoa, aí, ele (meu avô) foi e
deu bom dia pro cidadão, pro rapaz: Bom dia companheiro. Aí ele respondeu: Bom
dia. Me diz: aonde é que tem um hotel aqui? O moço respondeu: Rapaz, não tem
hotel aqui, nós estamos no início da cidade, no começo da cidade, aí o rapaz, ele
(meu avô) vai e pergunta do rapaz: Como é teu nome? Aí, o rapaz respondeu:
Galdino Pereira da Silva, aí ele disse, então tu é meu parente.
Aí, o outro: por quê? Porque eu sou Severino Pereira da Silva. Aí, eles começaram a
se conhecer. Então meu avô subiu o Rio Branco e o Tacutu com essa família,
Galdino Pereira da Silva. Aí, foi pro Bom Sucesso, onde hoje é Lethem, ficou com a
família dele lá. Aí, de lá ele saiu pro Tacutu, já explorando o garimpo. E foi achar
um ourinho no Itacutu, depois esse lugar tomou o nome de Marude, mas quem
achou esse garimpo e explorou primeiro foi Severino Pereira da Silva (sic).
47
A interlocutora Fani Mota Bezerra, também neta de Severino Mineiro, por seu lado,
relatou que seu avô levou as primeiras cabeças de gado da Fazenda Casa Branca, pertencente
ao Tenente Cícero8, para o Uiramutã. Ademais, afirmou que ele recebeu do presidente Getúlio
Vargas a incumbência de guardar as fronteiras do Brasil na região, nesses termos:
(Meu avô fazia defesa) Da fronteira. Sim, eu não sei muito bem contar a história,
mas é assim, até onde eu sei. O vovô Severino sempre fazia viagem lá para o Rio de
Janeiro com o Presidente Getúlio Vargas e ele contava como é que acontecia aqui,
que era assim meio abandonado e tudo. E ele (o presidente) deu uma ordem pra ele
(avô), eles tinham uma ordem escrita e verbal, né? E ele começou a defender aí. E
tempos em tempos, se eu não me lembro, se era de seis meses ou de um ano, ele
(avô) ía lá levar o relatório lá (Rio de Janeiro). E ele defendia isso daí junto com os
índios, né? Na época, porque se não fosse assim, eles já tinham tomado conta desse
mundo de Brasil, Uailã, tudo eles tinha tomado conta e ele não deixava, ele fez a
defesa dele, a defesa da região, né?(sic).
Desse modo, Severino Pereira da Silva, o “Severino Mineiro”, é apontado por
estudiosos, a exemplo de Santilli (2001) e cronistas como D. Alcuíno (LEMOS, s/d), e por
seus próprios descendentes, como o primeiro garimpeiro do Vale do Rio Branco, e
mencionado pelas “famílias tradicionais roraimenses”, exatamente conforme seus netos
Gêmulo e Fani narram, como “guardião da fronteira”.
Barros (1995) acentua que o garimpo atraía muitos imigrantes para a área montanhosa
fronteiriça do hoje estado de Roraima, tendo Boa Vista como centro urbano de apoio. Guerra
(apud BARROS, 1995) afirma que no período áureo das atividades garimpeiras, ocorrido
entre os anos 1941 e 1943, os garimpeiros acorriam de diversos estados, a exemplo de Mato
Grosso, norte de Goiás e Ceará.
Quanto aos métodos de exploração dos garimpos instalados na Terra Indígena Raposa
Serra do Sol, Santilli (2001) diz que eram semelhantes aos de outras áreas, com ligeiras
variações, e visavam principalmente à exploração de diamantes, por ser mais rentável.
Secundariamente, os garimpeiros extraíam ouro.
A atividade garimpeira foi praticada na TIRSS tanto por índios quanto por não índios,
a teor do seguinte registro de D. Alcuíno Meyer: “Também muitos índios exploram ouro e
diamante, quer como empregado dos brancos, quer por conta própria” (LEMOS, s/d, p. 91).
No que concerne à economia, Barros (1995, p. 59) observa que em 1946 as
exportações de diamantes representaram aproximadamente 86% do total de todas as
exportações do território. Contudo, afirma que “tanto neste período (1930-1960), quanto no
recente (1987-90), o garimpo sacrificou a pecuária e a agricultura em recursos e força de
8
Pai do desintrusado Joaquim Correa de Melo.
48
trabalho, enfraquecendo-as”. O mesmo autor informa que “o rebanho bovino em 1960
situava-se em 140 mil cabeças de gado, pouco acima das 120 mil cabeças de 1943 e a metade
do que fora em 1920” (Ibdem, p. 59). A respeito desse cenário, Santilli (2001, p. 100) anota
que se operou “uma curiosa simbiose de garimpeiros e posseiros, que durante os períodos de
refluxo da atividade de garimpagem voltam-se à atividade pecuária”.
Dessa forma, constata-se que o garimpo, praticado nos rios da região, a exemplo do
Maú e Cotingo, também atraiu um contingente significativo de imigrantes, alguns destes,
simultânea ou alternativamente, passaram a praticar a já tradicional atividade pecuária, o que,
somado às pessoas que já estavam na região, contribuiu para o acirramento da questão
indígena na TIRSS. Além disso, os índios trabalhavam ativamente no Garimpo, conforme D.
Lemos (2001); Barros (1995) e Santilli (2001), havendo inter-relacionamento social e cultural
entre índios e não índios no espaço geográfico dos garimpos, ou mesmo em Boa Vista, seu
centro de apoio.
Deve-se considerar, ainda, em razão do aporte financeiro na economia do então
território federal, que a exploração dos garimpos era incentivada, querida e desejada pelo
governo, tanto que erigiu uma estátua em homenagem aos garimpeiros no centro da cidade de
Boa Vista. Segundo Martins (2011), a estátua foi construída no final dos anos 1960. No
pedestal do referido monumento, consta uma placa em homenagem aos garimpeiros pioneiros,
entre estes Zelio Mota e José Queiroz, o primeiro é um dos “desintrusados” e o segundo é pai
do “desintrusado” Altamir Lira de Queiroz. Desconhece-se por que motivo fora omitido o
nome de Severino Pereira da Silva, o Severino Mineiro, avô dos “desintrusados” José Leite
Pereira, Gêmulo Leite Pereira, Fani Mota e Zelio Mota, consoante visto anteriormente, citado
na literatura sobre o assunto como o primeiro garimpeiro de Roraima. Abaixo as fotografias
da referida estátua9, e da placa com os nomes dos homenageados:
9
A estátua foi construída pela União, na época do Território Federal de Roraima e, segundo Martins (2011), o
monumento foi “inaugurado provavelmente em fins da década de 1960 produzido a pedido do então governador
Hélio da Costa Campos, que o teria mandado trazer ‘de uma empresa em São Paulo [...] feita em alumínio para
evitar o peso e suportar intempérie’”. De acordo com a mesma autora, a estátua é oca para permitir a passagem
da água e possui uma falsa aparência de concreto.
49
Figura 5 – Monumento ao Garimpeiro
Fonte: Lucilene Coutinho de Queiroz.
Desse modo, em razão do apoio prestado ao garimpo e de haver obtido inegável ganho
financeiro e estratégico, devido ao incremento da imigração, meta sempre perseguida pelo
Estado, este é, pois, responsável pela situação social gerada por essa atividade.
50
3 OS ÍNDIOS DO VALE DO RIO BRANCO
Antes de falar da conjuntura social e política dos índios do Vale do Rio Branco é
importante, inicialmente, tecer breve consideração sobre etinicidade e sobre o conceito de
índio.
Quanto à etnicidade, Sollors (apud POUTIGNAT, 1998, p. 23) afirma que a
“utilização da palavra ‘étnico’ para designar contrastivamente e muitas vezes negativamente
povos ‘outros’ é congruente com as raízes etmológicas do termo etnicidade (ehnikos),
proveniente do grego”, referente a povos bárbaros ou a gregos não organizados em cidadesestados.
Poutignat (1998, p.24) assegura que as duas primeiras definições não tautológicas da
noção de étnica foram propostas por Wallersein e Gordon que “utilizam o termo etnicidade
para designar não a pertença étnica, mas os sentimentos que lhe estão associados: o
sentimento de formar um povo (sense of peoplehood) partilhado pelos membros de subgrupos
no interior das fronteiras nacionais americanas [...]”. O termo firma-se nas ciências sociais
americanas a partir da década de 1970, para abranger, precisamente, o que tem em comum
todos os “fenômenos de competição e de conflito nos quais os grupos se opõem em nome de
sua pertença étnica” (Ibdem, p. 25).
Frances (apud POUTIGNAT, 1998, p. 26) explica “que a etnicidade deve ser
considerada uma dimensão universal das relações humanas, e não um fenômeno característico
dos grupos que o senso comum define como étnicos”.
Weber (apud POUTIGNAT, 1998), ao discorrer sobre as relações comunitárias
étnicas, distingue três etnicidades: raça, etnia e nação. Esclarece que a pertença étnica é
fundada na comunidade de origem, enquanto que o grupo étnico é fundado na crença
subjetiva da comunidade de origem. A nação seria, então, o grupo étnico baseado na crença
da vida em comum, porém, distingue-se do grupo étnico pela paixão (pathos) ligada à
reivindicação de um poder político. Portanto, para Weber, os grupos étnicos são:
[...] esses grupos que alimentam uma crença subjetiva em comunidade de origem
fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou dos dois, ou nas
lembranças da colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se
importante para a propagação da comunalização, pouco importando que uma
comunidade de sangue exista ou não objetivamente Weber (WEBER apud
POUTIGNAT, 1998, p. 37).
51
As teorias sobre a etnicidade, sejam as da escolha racional, as do grupo de interesse ou
as do colonialismo interno, não conseguem definir o termo de forma unânime. Segundo
Poutignat (1998), para alguns, a etnicidade é vista segundo os comportamentos dos membros
de um grupo; para outros, são as representações ou os sentimentos associados à pertença (DE
VOS; HECHTER; BRASS apud POUTIGNAT, 1998). Há aqueles que conceituam etnicidade
em termos de ação e de estratégia (DESHEN apud POUTIGNAT, 1998, p. 37). Todavia, a
pluralidade de visões ou pensamentos não se apresenta como um problema, ao contrário, é um
fator positivo, pois permitem precisar os diversos conteúdos, frequentemente divergentes que
o termo encerra (COHEN apud POUTIGNAT, 1998).
Poutignat (1998) explica que, para as “teorias instrumentalistas e mobilizacionistas”, a
questão mais importante é compreender as circunstâncias, condições nas quais os indivíduos
reclamantes de determinada pertença étnica são motivados a praticar solidariedade com outros
indivíduos da mesma categoria para alcançar vantagens políticas ou econômicas
(POUTIGNAT, 1998). Já as “teorias do grupo de interesses” concebem a etnicidade como
uma solidariedade de grupo emergente em situação de conflito entre indivíduos que
comungam de interesses materiais. Quanto às “teorias da escolha racional”, que tem Michael
Banton como expoente principal, apoiam-se no individualismo metodológico. Posicionam o
indivíduo no centro da análise, considerando o grupo étnico como a soma dos indivíduos que
o compõem. Em relação à “teoria do colonialismo interno”, desenvolvida por Hechter,
Poutignat (1998) esclarece que tem como fundamento a divisão cultural do trabalho entre
centro e periferia dentro de um espaço nacional em que a etnicidade configura-se uma forma
de solidariedade que surge como resposta à discriminação e à desigualdade, manifestando
substancial consciência política dos grupos que procuram vencer a lógica da dominação.
Segundo o mesmo autor, na análise da etnicidade, não se pode deixar de considerar o
fator identidade por se constituir princípio de coesão internalizado por uma pessoa ou grupo,
por permitir que os sujeitos que se vêem diferentes dos outros, se reconheçam e sejam
reconhecidos. Embora não dito expressamente pelo autor, a identidade é essencial para os
membros aceitarem um indivíduo como pertencente ao seu grupo.
Poutignat (1998) sublinha que as teorias da etnicidade têm como traço comum a
pertença a grupo, o que implica na existência de uma categoria de excluídos. No caso da
TIRSS, seguindo essa linha de pensamento, percebe-se a existência de dois grupos que se
excluem: o dos índios e os não índios.
Roberto Cardoso de Oliveira (apud MELATTI, 2007) observa que uma etnia não
existe por si mesma, tem que estar em contraste com outra, ou seja, só tem sentido falar-se de
52
índios se houver oposição a outro grupo ou categoria, no caso os brancos ou civilizados,
incluídos nesta categoria também os negros.
Segundo Melatti (2007), a definição de índio, historicamente, sempre esteve ligada a
implicações de ordem prática, o que persiste até hoje, sendo vários os critérios adotados para
distinguir os índios dos não índios da América. São eles: o racial, o legal, o cultural, o de
desenvolvimento econômico e o de autoidentificação étnica. Interessa-nos realçar apenas o
último, do qual se extrai a definição de índio, por atender aos fins deste trabalho. Segundo
Azevedo (apud MELATTI, 2007), o II Congresso Indigenista Interamericano, realizado em
Cuzco, no Peru, elaborou a seguinte definição:
O índio é o descendente dos povos e nações pré-colombianas que têm a mesma
consciência social de sua condição humana, assim mesmo considerada por eles
próprios e por estranhos, em seu sistema de trabalho, em sua língua e em sua
tradição, mesmo que estas tenham sofrido modificações por contatos estranhos.
O Índio é a expressão de uma consciência social vinculada com os sistemas de
trabalho e economia, com o idioma próprio e com a tradição nacional respectiva dos
povos ou nações aborígenes (AZEVEDO apud MELATTI, 2007, p. 37).
Por sua vez, Darcy Ribeiro (apud MELATTI, 2007) define os índios no Brasil como:
[...] aquela parcela da população que apresenta problemas de inadaptação à
sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras
lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais
amplamente: índio é todo indivíduo reconhecido como membro por uma
comunidade pré-colombiana que se identifica como etnicamente diversa da nacional
e é considerada indígena pela população brasileira com que está em contato
(RIBEIRO apud MELATTI, 2007, p. 37).
Na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no
Brasil pelo Presidente da República por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, em
seu artigo 1º, traz a seguinte definição de índio:
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e
econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam
regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por
legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de
descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica
pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento
das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam
todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte
delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como
critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da
presente Convenção.
53
No art. 3º da Lei nº 6.001/73, denominada de Estatuto do Índio, “índio ou Silvícola - É
todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado
como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade
nacional”. Segundo Villares (2009), esse conceito foi recepcionado pela Constituição Federal
do Brasil de 1988 e se harmoniza integralmente com a Convenção 169 da OIT.
Feitas essas considerações, não é demais frisar que, a exemplo do restante do Brasil,
os índios também foram os primeiros habitantes do Estado de Roraima. Várias etnias
dividiam a região do Vale do Rio Branco antes da chegada dos não índios. Esse fato está
demonstrado em obras de vários estudiosos e autoridades ao longo dos dois últimos séculos, a
exemplo de Lobo D’Almada (1861), Ourique (1906), Eggerath (1924), Rice (1978), Santilli
(2001), Vieira (2007; 2008), Cirino (2009), Silveira (2010), dentre outros.
Quanto à distribuição dos índios no Vale do Rio Branco, Santilli (2001), referindo-se
às anotações de 1786 de Rodrigues Ferreira, afirma que os Macuxi eram dominantes no Rio
Maú e os Wapixana na região do Rio Tacutu. No Rio Surumu, estavam os Sucury e Yaricuna,
Carapy, Uiacá e Wapixana. No Rio Mucajaí, anotou-se a presença dos Guaxumará, e na
região do Cauamé habitavam os Sapará.
Lobo D’Almada (1861) também discorre sobre as etnias indígenas do Vale do Rio
Branco: Paravilhanos, Aturahis, Amaribás, Caripunas, Caribes, macuxis, Oapixanas, Oayacás,
Acarapis, Tucurupis, Arinas, Quinhaus, Procotos, Macús, Guimaras, Aoaquis, Tupicaris,
Saparás, Pauxiauanas, Parauanas. Com a autoridade de quem manteve contato direto com
esses povos, assevera: “Eu não fallo sem conhecimento de causa, tenho entrado em mais de
duzentas malocas de gentilidade, e por isso o que discorro, não é um ouvir dizer, eu conto
pelo que vi” (sic) (D’ALMADA, 1861, p. 674-677).
A presença indígena no Vale do Rio Branco também é tema tratado por Vieira (2007),
o qual se refere à missão fiscalizadora de 1777, determinada pelo governador da Capitania de
São José do Rio Negro e dirigida por Ribeiro Sampaio, durante a qual se identificaram várias
comunidades indígenas na região. Por sua vez, Ourique (1906, p.23), ao empreender estudo
sobre o potencial econômico do Vale do Rio Branco a pedido do Governador do Estado do
Amazonas, Antonio Constantino Nery, registrou que:
Em 1725, quando os missionários carmelitas penetraram pela primeira vez no Rio
Branco, eram as férteis paragens deste Rio, dos seus affluentes as serras e vastas
campinas da sua parte superior, habitadas por grande numero de tribus e mesmo de
poderosas nações indígenas como os Paravianas, Macuxis, Uapixanas e Guayacas
que, na amenidade do clima, na abundancia de pescado e caça de toda essa região,
54
encontravam fáceis meio de existência e fortes coifficientes de desenvolvimento
ethinographico (sic).
Por seu turno, Silveira (2010, p. 76) enfatiza que os “primeiros registros históricos
levados a efeito, inclusive pelo governo brasileiro, sempre fizeram referência ao grande
número de indígenas que ocupam todo o Vale do Rio Branco”. Dessa forma, embora os
Macuxi e os Wapixana apareçam com maior relevo no espaço geográfico do Vale do Rio
Branco, não se pode ignorar a presença de outros grupos indígenas os quais foram absorvidos
por outras etnias durante o processo de ocupação territorial.
Além disso, é de bom alvitre frisar que os registros feitos por exploradores e/ou
viajantes servem como fator preponderante para demonstrar que a presença dos povos
indígenas é anterior à colonização portuguesa do Rio Branco e, consequentemente, confirmam
o inegável protagonismo indígena no desenvolvimento de Roraima, posto que, desde o início
da colonização até os dias atuais, os índios sempre foram importante elemento econômico.
É incontestável também que, com o fim de se apropriar da força de trabalho dos
indígenas e das riquezas locais, o Estado Nacional, por meio do uso da força, da coação física
e moral, os submeteu à intensa exploração e sofrimento, o que gerou um passivo social e
moral a favor destes atores, levando o Brasil, após longo processo de luta dos povos indígenas
e das organizações que os apoiam, a desenvolver políticas públicas, especialmente a partir da
Constituição Federal de 1988, para a demarcação das terras indígenas.
Pelo exposto, torna-se relevante discutir a violência experimentada pelos índios e os
marcos legais e históricos que levaram à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
3.1
VIOLÊNCIA E EXPLORAÇÃO
COLONIZAÇÃO DO BRASIL
DA
MÃO
DE
OBRA
INDÍGENA
NA
Para melhor compreensão da problemática socioeconômica dos índios do Vale do
Rio Branco, é necessário fazer, mesmo de forma singela, uma breve incursão histórica no
período da colonização do Brasil, com ênfase no tratamento e na política dispensados aos
indígenas pelo Estado Nacional.
Os indígenas de forma geral, durante o processo de colonização do Brasil e mesmo no
período do Império e da atual República, foram submetidos a diversas formas de violência:
física, moral e econômica. Não raro etnias inteiras foram dizimadas a mando, com a
permissão ou com o incentivo do Estado Nacional, por meio de suas políticas públicas.
55
No início da colonização do Brasil, os índios foram tomados, paradoxalmente, como
obstáculo à exploração das riquezas locais e força de trabalho necessária para tal
empreendimento, como descrevem Del Priore e Venâncio (2001, p. 37):
Ao substituir o escambo pela agricultura, os portugueses começaram a virar o jogo.
O indígena passou a ser, simultaneamente, o grande obstáculo para a ocupação da
terra e a força de trabalho necessária para colonizá-la. Submetê-los, sujeitá-los,
escravizá-los, negociá-los, passou a ser a grande preocupação.
Dessa forma, por ambos os motivos apontados, os índios brasileiros foram alvos de
cruenta e sanguinária política desenvolvida pela coroa portuguesa com o fim de reduzir sua
resistência e submetê-los plenamente à autoridade estatal, a exemplo dos Repartimentos, dos
Resgates e dos Descimentos.
3.1.1 Repartimento, Resgates e Descimentos
Segundo Gomes (2002), as aldeias de repartição eram formadas perto de povoados e
fazendas dos colonizadores, para manter nelas a maioria dos índios subjugados por tropas de
guerra ou por persuasão de missionários, com ou sem força militar.
A denominação de repartição para as aldeias deu-se porque os índios, que para elas
eram levados, podiam ser divididos, isto é, repartidos entre os fazendeiros ou oficiais do
governo para trabalhar nos afazeres que esses senhores lhes designassem. Os índios, nessas
aldeias, eram considerados libertos. Porém, não tinham autoridade sobre a própria vida,
especialmente sobre sua força de trabalho. Gomes (2002, p. 149) explica que as aldeias de
repartimento eram administradas por colonos ou religiosos designados pelos governadores,
pelas câmaras das vilas e, ainda, pelos padres jesuítas, da seguinte forma:
Os governadores, às vezes as câmaras das vilas, e ainda os jesuítas por breve
período, lhes assignavam uma pessoa do sistema colonial, quase sempre um
português, um mazombo (português nascido no Brasil), ou um mameluco para ser
responsável pela aldeia. Se leigo, ganhava o título de capitão; se religioso, o
cognome de "pai dos cristãos". Este era um cargo colonial bastante visado por
religiosos e colonos. Pela lei de 1652, o preenchimento desse cargo passou a ser
exclusivo de religiosos, embora nomeado pelo governador ou capitão-mor, na sua
condição de presidente da Câmara. Entretanto, depois de 1663, predominou a
administração de leigos. As aldeias livres de repartição tinham terras para fins de
agricultura de subsistência, mas seus moradores tinham pouco tempo para si
mesmos para que pudessem desenvolver essas atividades em grau satisfatório que
fosse além do consumo familiar (sic).
56
A mão de obra indígena nas aldeias de repartição devia ser remunerada por meio de
um salário fixado pela Coroa, como estabeleciam as leis de 1596, 1624, 1625, 1647 e 1649 ou
pela administração colonial através das câmaras das vilas (GOMES, 2002). Inicialmente, os
índios eram obrigados a trabalhar por até sete meses ininterruptos. A partir da lei de 1596,
deveriam trabalhar dois meses e folgar por igual período. Todavia, raramente a lei foi
obedecida.
A respeito da exploração da força de trabalho indígena, com remuneração ínfima ou
inexistente, o Padre Luiz Figueira, em 1967, “observou que os índios trabalhavam até sete,
oito meses, ganhando pelo tempo não mais que quatro ‘varas’ de pano (uma vara = 2,2 m), às
vezes nem isso” (FIGUEIRA apud LEITE apud GOMES, 2002, p. 149). Assim, as aldeias de
repartimento nada mais foram que um mecanismo da coroa portuguesa para explorar a força
de trabalho dos índios vencidos em operações militares ou convencidos pela ação de
religiosos a serviço da mesma coroa, sem a devida remuneração.
Quantos aos resgates, oficialmente eram operações que retiravam das mãos dos
vencedores os índios vencidos em combates tribais. Antes da intervenção do não índio, os
vencidos fatalmente seriam mortos. Todavia, passaram a ser tratados como prisioneiros e
utilizados como mercadoria de troca nos negócios com os portugueses, como informa
Carvalho Júnior (2005, p. 82):
Os resgatados, por sua vez, eram índios pretensamente feitos prisioneiros por outros
seus inimigos e que estariam fadados a serem mortos por seus algozes. Seriam
índios amarrados para serem comidos, conhecidos por isso como “índios de corda”.
Normalmente, no entanto, eram feitos prisioneiros para troca com os portugueses
por produtos diversos, ferramentas principalmente. Portanto, índios resgatados eram
produto de tráfico na grande maioria das vezes.
Desse modo, os resgates também constituíram apenas mais uma estratégia de
recrutamento forçado de índios para servir aos interesses colonizadores do governo lusitano.
Quanto aos descimentos, Carvalho Júnior (2005) explica ter sido uma prática de
missionários que convenciam os índios a deixarem seu local de origem para residir mais
próximo dos núcleos de povoamentos coloniais, onde constituíam aldeias, inicialmente
formadas por apenas uma etnia, mas com o tempo passaram a ser pluriétnicas. Tais aldeias,
comumente, eram administradas por religiosos de várias ordens que atuavam na região, mas o
faziam juntamente com os chefes índios das várias etnias que as habitavam, chamados de
“principais”. De acordo com esse autor, embora os descimentos fossem realizados por meio
da persuasão dos religiosos, não era incomum também o emprego de coação. Era apresentada
aos índios a conveniência de acatarem à nova ordem, sob pena de sofrerem consequências,
57
muitas vezes constituídas de guerra. Esses índios eram considerados livres e tinham direito a
salários, mas o tratamento que lhes era dispensado não diferia muito da condição dos
escravos, e seus filhos normalmente compunham a herança de muitos senhores. Os índios
descidos, não raro, preferiam fugir e passar a servir na casa de algum senhor a permanecer nas
aludidas aldeias sob o julgo dos missionários. Segundo Daniel (apud AGUIAR, 2009, p. 134),
uma maneira sugerida para manter os índios nas vilas era internar seus filhos em seminários
de religiosos:
São os índios muito fujões para os matos; especialmente os novatos, que de poucos
anos tem saído dos matos para as missões. Tendo eles nos seminários das cidades os
filhos, tem outros tantos reféns da sua permanência: Não se hão de ausentar sem os
filhos: por isso quem quiser arraigar bem os descimentos dos índios selvagens, e
novatos; segurem-lhes primeiro os filhos, que já também tem seguros os pais[...].
Vê-se pela sugestão em destaque que qualquer recurso, mesmo destituído de princípios
morais e éticos, era usado para manter a escravidão dos índios durante a colônia, a exemplo
de usar os filhos dos indígenas para coagi-los a permanecerem aldeados, prestando serviço
aos colonizadores. Assim, além de sofrimentos físicos, incluída a subtração da própria vida,
como será enfocado abaixo, aos índios eram infligidos sofrimentos moral e psicológico.
3.1.2 Violência Explícita Empregada contra os Índios
Além dos Repartimentos, Resgates e Descimentos que constituíam formas de
violência e exploração veladas ou disfarçadas, empregava-se também em desfavor dos índios
violência explícita, ou seja, a Coroa portuguesa editava leis determinando o uso de violência
contra os indígenas com o fim de subjugá-los, autorizando-se, inclusive, chacinas de aldeias
inteiras. Para tanto, foi implantada na colônia a política de “grande terror”, recomendada pelo
Rei D. João III, de acordo com Del Priore e Venâncio (2001, p.38), que testificam:
Já em 1548, o regimento do governador Tomé de Souza instruía o governo para
dobrar os índios hostis aos portugueses, dando-lhe carta branca para destruir aldeias,
matar e castigar os rebeldes para servir como exemplo. A política de “grande terror”
recomendada por D. João III consistia, inclusive, em amarrar o índio que praticara
algum delito à boca de canhões, fazendo-o explodir. Mem de Sá, que assumiu o
Governo Geral em 1557, foi, sem dúvida, o campeão da violência. Vamos ouvi-lo:
Entrei nos Ilhéus fui a pé dar em uma aldeia que estava sete léguas da vila [...] dei na
aldeia e a destrui e matei todos os que quiseram resistir, e a vinda vim queimando e
destruindo todas as aldeias que ficaram atrás e, por se o gentio ajuntar e me vir
seguindo ao longo da praia lhe fiz algumas ciladas onde os cerquei forcei a deitarem
a nado na costa brava (sic).
58
A reação dos povos indígenas à política portuguesa de submissão violenta dos índios
aos seus interesses foi organizarem-se para travar guerras contra os colonizadores. Todavia,
mal aparelhados, especialmente, em termos de armamentos, acabaram sofrendo o maior
número de baixas, como demonstram os números oferecidos por Del Priore e Venâncio
(2001, p. 38 ):
Em meados do século XVI, a Confederação dos Tamoios, primeiro movimento de
resistência a reunir, contra os portugueses, vários grupos tupinambás, teve o apoio
de franceses huguenotes, terminando com dois mil índios mortos e quatro mil
escravizados. A conhecida Guerra de Paraguaçu (1558-1559) destruiu 130 aldeias.
Por essa época, multiplicavam-se as “revoltas do gentio”, com assaltos a núcleos de
colonização e engenhos, mortes de brancos e de escravos negros (sic).
Em 1548, devido a ataques indiscriminados de captores de índios para escravidão, com
o objetivo de coibir a captura de indígenas que estavam em paz, ou seja, sem opor resistência
a Portugal, o regimento de Tomé de Souza restringiu à captura de índios destinados à
escravidão apenas contra os que resistiam ao domínio português, nestes termos:
XXVII – Sou informado que, nas ditas terras e povoações do Brasil, há algumas
pessoas que têm navios e caravelas, e andam neles de umas capitanias para outras, e
que, por todas as vias e maneiras que podem, salteam e roubam os gentios que estão
de paz, e, enganosamente, os metem nos ditos navios e os levam a vender a seus
inimigos e a outras partes, e que, por isso, os ditos gentios se alevantam e fazem
guerra aos cristãos, e que esta foi a principal causa dos danos que até agora são
feitos; e porque cumpre muito a serviço de Deus e meu prover-se nisto, de maneira
que se evite, hei por bem que, daqui em diante, pessoa alguma de qualquer
qualidade e condição que seja, não vá saltear nem fazer guerra aos gentios, por terra
nem por mar, em seus navios nem em outros alguns, sem vossa licença ou do
capitão da capitania de cuja jurisdição for, posto que os tais gentios estejam
alevantados e de guerra;o qual capitão não dará a dita licença senão nos tempos que
lhe parecerem convenientes, e às pessoas de que confieis que farão o que devem e o
que lhes ele ordenar e mandar; e, indo algumas das ditas pessoas sem a dita licença,
ou excedendo o modo que lhes o dito capitão ordenar quando lhes der a dita licença,
incorrerão em pena de morte natural e perdimento de toda sua fazenda, metade para
a rendição dos cativos e a outra metade para quem o acusar; e este capítulo fareis
notificar e apregoar em todas as ditas capitanias, e trasladar nos livros da câmara
delas, com declaração de como se assim apregoou (DEL PRIORE; VENÂNCIO,
2001, p. 37).
Contudo, o Brasil, enquanto estado nacional, independente do regime político adotado
(colônia de Portugal, reino, império ou república), conferiu ao longo dos anos valor
imprescindível à força de trabalho indígena. Para utilizá-la, entre tantas estratégias de
domínio, os índios acabaram sendo reduzidos à condição de escravos. A escravidão de
indígenas, que, de alguma forma, resistiam ao mando do colonizador, foi legalizada pela
Coroa Portuguesa durante séculos e por meio de variados instrumentos legais, a teor da Carta
Régia de 9.4.1655 (CUNHA, 1987, 60):
59
[...] entendo em guerra defensiva a que fizer qualquer cabeça ou comunidade, por
que tem cabeça e soberania para vir fazer e cometer guerra ao Estado, por que
faltando esta qualidade a quem faz guerra, ainda que seja feita com ajuntamento de
pessoas, os que se tomarem serão captivos[...] (sic).
Souza Filho (2006), referindo-se à legislação editada pela Coroa Portuguesa durante o
século XVI, observa que a mesma é pendular, pois determina bom tratamento aos índios que
se submetessem à catequese, e guerra aos que se mostrassem inimigos, com ordem para
destruir as aldeias, levar em cativeiro e matar com o fim de servir de exemplo aos outros.
É importante registrar, no entanto, conforme Cunha (1987), que Portugal oficialmente,
por meio da edição de vários instrumentos legais, coibia a violência contra os índios na sua
colônia brasileira, com o fim de mantê-los aldeados, especialmente vedando o esbulho de suas
terras. Nesse sentido, com a edição da Carta Régia de 10 de setembro de 1611, o governo
português vedou que se fizesse injustiça contra os índios, determinando que sua vontade de
permanecer ou não em determinado lugar fosse respeitada, conforme o seguinte excerto:
[...] os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra,
sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer molestia ou injustiça
alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que
lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quizerem fazer[...] (sic)
(Carta Régia, 10.9.1611 apud CUNHA, 1987, p. 58).
O Alvará de 1º de Abril de 1680 amplia as garantias dos indígenas aldeados, como
segue:
[...] E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que ha de presente,
melhor se conservem nas Aldeas: hey por bem que senhores de suas fazendas, como
o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes ditos
Religiosos assinará aos que descerem do Sertão, lugares convenientes para neles
lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra a sua
vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que
ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas
se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero se entenda
ser reservado o prejuízo, e direito os índios, primários e naturaes senhores dellas [...]
(sic) (Alvará de 1.4.1680, parágrafo 4 apud CUNHA, 1987, p. 57).
O Regimento das Missões do Maranhão e do Pará de 21 de dezembro de 1686
determinava que os acordos realizados com os índios descidos fossem respeitados:
[...] tanto para com as aldeãs, que se descerem para servirem aos moradores, como
para aquellas que sem esta condição quizerem descer se observarão inviolavelmente
os pactos que com elles se fizerem por ser assim conforme à fé pública, fundada no
direyto natural, civil e das gentes (sic) (Regimento das Missões do Maranhão e Pará,
de 21.12.1686, parágrafo 23 apud CUNHA, 1987, p. 61).
60
Na esteira garantista da legislação anterior, a Carta Régia de 9 de março 1718 e o
Diretório dos Índios de 1758 reafirmaram que a estes eram garantidas suas terras, não se
podendo retirá-los delas coativamente, assegurando a referida carta que “[...] (os índios) são
livres, e izentos de minha jurisdição, que os não pode obrigar a sahirem das suas terras, para
tomarem modo de vida de que elles se não agradão [...]” (sic) (Carta Régia de 9.3.1718 apud
CUNHA, 1987 p. 61).
Todavia, embora Portugal tenha editado normas protetivas a favor dos índios, não
tinha meios para fazer com que fossem respeitadas na colônia ou não tinha realmente intenção
de dar efetividade aos comandos legais dessa natureza, pois os indígenas continuaram a ser
espoliados dos territórios dos quais eram senhores. Daí porque, segundo Cunha (1987), D.
João VI editou a Carta Régia de 2.12.1808, reconhecendo aos índios os direitos anteriores aos
seus territórios. Ademais, com a Carta Régia de 26.3.1819, o mesmo Monarca declarou que as
terras das aldeias são inalienáveis e nulas as concessões de sesmarias que fossem feitas nessas
terras e estas não poderiam ser classificadas de devolutas.
3.2 O ÍNDIO E A COLONIZAÇÃO DO VALE DO RIO BRANCO
No período da colonização do Vale do Rio Branco, a exemplo do que ocorrera em
outras regiões do Brasil, o índio também foi visto pelo colonizador como um artigo
econômico, foi enganado, escravizado, inclusive, por meio da “evangelização”, explorado
sem escrúpulo e, não raro, dizimado, como narra Ourique (1906, p. 24):
Com o desenvolvimento relativo das missões carmelitas, para o qual a bôa fé e
ingenuidade dos índios, ainda pouco conhecedores da ambição e manhas dos
brancos, eram exploradas sem escrúpulos a bem de interesses materiaes, a catechese
foi se tornando antes um poderoso factor de dissolução e extincção de tribus, nações
e raças, do que a necessaria e salutar adaptação dos aborígenes ao meio civilizado
(sic).
Ourique (1906) acentua que o índio foi escravizado ou utilizado como trabalhador
pago a baixo custo, era visto como ser inferior, egoísta, traiçoeiro e preguiçoso, a quem não se
devia nenhum respeito como pessoa humana. Desse modo, poderia ser retirado de sua
comunidade e de sua família para ser utilizado de acordo com a vontade do explorador. Daí
por que o historiador em comento observa que:
A história do índio, o antigo possuidor do continente americano, tem sido por toda a
parte a mesma. Espoliados brutalmente dos seus territórios, despojados pela força ou
pela perfídia da liberdade eram trazidos aos mais rude e vil dos cativeiros, e se
61
contra elle se insurgiam eram trucidados com requintes de barbaridade (sic)
(OURIQUE, 1906, p. 26).
Nesse contexto de violência e desrespeito aos índios, Koch-Grünberg (2006, p.156)
observou, durante viagem ao norte do Brasil, nos anos de 1911 a 1913, o seguinte episódio
envolvendo os índios do Vale do Rio Branco:
Poucas horas daqui, rio acima, na margem esquerda, mora o fazendeiro Bessa, um
canalha pior do que Quadros, autor de vários assassinatos. Matou um colono branco
traiçoeiramente, a tiros. Auxiliado por capangas, assassinou três índios Purukotó e
um Máku. Quando Galvão veio para cá, havia aqui e na ilha Maracá muitos índios
das mais diferentes tribos. Bessa os expulsou de suas casas e de suas plantações,
porque a terra lhe pertence. Queimou suas casas na época das chuvas. Essa pobre
gente fugiu dele para a mata, sem proteção contra a umidade, ficou com febre e
muitos, especialmente as crianças, morreram. Por isso é que existem apenas tristes
restos das tribos em torno de Maracá. É verdade que Bessa foi acusado, mas foi
absolvido graças ao testemunho de alguns bons amigos que ele tem no partido do
governo. Os índios são indolentes demais para matá-lo (sic).
Por seu turno, D. Alcuíno Meyer, nos relatos de seu trabalho missionário no Rio
Branco, publicado por D. Lemos (s/d, p.52), narra o seguinte episódio de violência e
humilhação infligidas aos índios, com claro atentado aos seus meios de subsistência:
Adolfo Brasil mandou um aviso aos Índios para que cercassem bem as suas roças.
Isto é muito fácil de dizer e mandar, mas como é que os Índios poderão cercar suas
roças se não dispõem de arame farpado e os Srs. Fazendeiros, a começar pelo
prefeito, não lhes dão arame? Só o Governo intervindo. Em viagens anteriores, tive
eu ensejo de ouvir constantes queixas dos Índios, bem como dos civilizados, acerca
deste assunto (sic).
A exploração, a espoliação, os abusos sexuais e outras práticas aviltantes
experimentadas pelos índios, durante o processo de ocupação do Vale do Rio Branco,
encontraram terreno fértil devido a pouca compreensão destes das estratégias utilizadas pelos
não índios inescrupulosos para submetê-los aos seus interesses, conforme nos informa
Eggerath (1924, p.58):
No Rio Branco cabe a maior culpa disto ao balateiro que, rivalisando com outros
civilisados máos e inconscientes, são os que perseguem o índio, espoliando-o de
suas terras, escravisando e matando-o, si lhes parecer conveniente, conspurcando-lhe
a mulher, quando não lhe desgraçam a filha, abusando de sua ignorância para
roubal-o na retribuição do serviço prestado, e repetindo, em nossos tempos, as
paginas inglorias da escravatura, para, prepotentes, satisfazeram seus interesses
pessoais (sic).
Os índios do Vale do Rio Branco, durante o processo de colonização, adquiriram a
pecha de traiçoeiros e indolentes, mas a forma brutal como foram tratados pelos ditos
62
“civilizados” bem justifica o comportamento que aqueles passaram a externar, na verdade
estratégia de defesa necessária para a sua sobrevivência, como bem acentua Ourique (1906,
p.26):
Consideram-no traiçoeiro porque, ordinariamente mal armado, procura pôr do seu
lado antes do ataque todas as garantias de victoria e porque não se atira, de peito
descoberto e mal apetrechado, contra os refles de repetição dos brancos
resguardados pelos troncos das árvores ou pelas trincheiras. Sempre o mesmo
systema de dous peços e duas medidas (sic).
Quanto à alardeada indolência do índio, este indigitado defeito também é combatido
por Ourique (op. cit. p.26) nos seguintes termos:
A sua propria indolencia é relativa.
Se consideramos que as raças indigenas da America do Sul, tem percorrido os
seculos firmando certas lei ativicas, mediante as quaes sao relativamente nomadas e
aventureiras nos limites dos territorios, e tiram todos os recursos de que carecem das
producções expontaneas da natureza que os cerca, com o minimo esforço possivel é
de justiça reconheçamos e toleremos que, no estado natural ou proximo delle, o
indio não dê valor a propriedade individual não uze de culturas demoradas e seja
poupado das suas forças corporaes, capital unico a custa do qual tem de manter e
defender sua existencia e da sua prole (sic).
Além dos argumentos utilizados por Ourique (1906), pode-se acrescentar que, diante
da exploração sem limites e dos inúmeros maus-tratos sofridos pelos indígenas durante o
processo de colonização, não é de se estranhar que estes não tivessem motivação para prestar
serviços às pessoas que os submetiam a tratamento tão indigno.
É importante mencionar que nem todos os que acompanharam de perto ou
participaram ativamente da colonização têm opinião negativa do caráter do índio. Para alguns,
a exemplo do capitão-tenente Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, em seu “Diccionário
topographico, histórico e descriptivo”, citado por Ourique (1906, p. 26), os índios do Alto
Amazonas eram “tão dóceis, generosos e compassivos para com os amigos, quanto crueis
inexoraveis para com os inimigos, que sobre perseguil-os e matal-os comem-nos em triunfo”
(sic).
Observamos por este depoimento que nem todos concordavam com o pensamento de
que os índios tinham natureza traiçoeira e preguiçosa, defeitos invocados por colonizadores
para menosprezá-los e subjugá-los aos próprios interesses.
De acordo com Souza Filho (2006), os índios, com seus costumes, organização social
e integração com a natureza do seu habitat, tinham duas excelentes razões para se negar a
trabalhar para os portugueses. A primeira era o despropósito do trabalho, pois iriam trabalhar
na agricultura ou em outra tarefa por eles desconhecida em troca de comida, sendo que em
63
liberdade podiam caçar, pescar, coletar frutos, enfim, obter alimento muito melhor,
desfrutando com prazer e alegria a liberdade. A segunda razão decorre da primeira, os índios
conheciam a floresta, tinham parentes, sabiam sobreviver na natureza, logo podiam fugir com
facilidade e com a segurança de quem estava em casa.
Lobo D’Almada (1861), reconhecendo a forma errônea como os índios eram tratados e
a necessidade da mão de obra destes para a colonização do Vale do Rio Branco concluiu que
era imprescindível modificar o método de exploração e de convivência com os índios:
Para descer estes tapuyas do mato, aonde elles, a seu modo, vivem com mais
commodidade do que entre nós, é necessario persuadil-os das vantagens da nossa
amisade; sustental-os, vestil-os, não os fatigar querendo-se d’elles mais serviços do
que elles podem; e fazer-lhes pagar promptamente, e sem usura o que se lhes
promete, o que se lhes deve, o que elles tem ganho com suor do rosto, e às vezes
com risco de suas vidas (sic) (D’ALMADA, 1861, p. 679-680).
Seguindo a mesma visão de Lobo D’Almada, Ourique (1906, p.28) defende que:
[...] mediante um salário relativamente modico, alimentação e roupa também de
pouco custo, um pouco de tolerancia para certos pendores atávicos, como as caçadas
e pescarias, sem os quaes se lhes nota logo profunda nostalgia, e trato afetuoso e
justiceiro, são os melhores e mais commodos auxiliares de que dispõem os
habitantes do Alto Rio Branco para os labores a que se entregam (sic).
Contudo, é importante anotar que as preocupações de imprimir tratamento mais
humano aos índios do Vale do Rio Branco, tanto por Lobo D’Almada quanto por Ourique,
não tinham verdadeiramente o sentido de reconhecer ou enxergar o índio como pessoa
humana, detentora de direitos e dignidade que precisavam ser respeitados. Com efeito, a
preocupação central dessas autoridades era aplicar uma nova estratégia para motivar os índios
a continuar trabalhando para os colonizadores sem a imposição de obstáculos que, ora
atrapalhavam a produção de gêneros necessários aos não índios, ora dificultavam a ocupação
da região tão almejada pelo governo.
O temor português de perder esta região fez dos povos indígenas atores estratégicos na
manutenção da posse lusa, colocou-os no centro das tensões sociais das quais foi palco o
cobiçado Vale do Rio Branco desde que os não índios aqui chegaram.
Silva (1996) informa que o aldeamento dos índios no Rio Branco se deu
simultaneamente à construção do Forte São Joaquim, neste foi utilizada mão de obra de índios
descidos com este objetivo. Para os aldeamentos formados com os descimentos, quais sejam:
Carmo; Santa Isabel; Santa Bárbara, no Rio Branco; São Felipe, no Tacutu; Conceição, no
Uraricoera, foram levados índios das etnias Paraviana, Wapixana, Sapará, Aturaiú, Uaimará,
64
Amaripá, Pauxiana. Os mais afetados pela política dos aldeamentos foram os Wapixana, que
antes de 1887 eram bastante numerosos e, depois desta data, não somavam mais que 1000
(mil) indivíduos (SILVA, 1996).
A respeito desse mesmo contexto, Barros (1995) sustenta que, no fim do século XVIII,
a presença de mercadores holandeses no alto rio Branco e as tentativas de efetiva posse por
espanhóis que haviam se estabelecido no rio Uraricoera precipitaram a empreitada militar e a
pecuária naquele espaço territorial. Tanto a pecuária quanto os militares foram fatores
geradores de conflitos entre índios e não índios. Conflitos esses resolvidos por meio do
emprego da violência, como informa Barros (1995, p. 49):
Revoltas indígenas houveram, após a instalação do Forte São Joaquim e das
Fazendas nacionais – estas estabelecidas por Manoel da Gama Lobo de Almada – e
da aplicação de política colonial de reunir os índios em aldeamentos sob o controle
de tropas, no fim do século 18. Mas foram sufocadas .
O índiocentrismo, isto é, o índio como centro da estratégia estatal de exploração do
espaço territorial, também foi destacado por Vieira (2007). Para esse autor, o governo
brasileiro, com o fim de continuar o processo de ocupação das terras do rio Branco, pois temia
a tomada desta região por estrangeiros, fazia incessante propaganda da mão de obra indígena
como fator de atração de colonos para este território.
A força de trabalho dos índios foi explorada à exaustão, em condições desumanas, sem
respeitar as condições físicas e culturais dessas pessoas, como realça Cirino (2009) ao afirmar
que o regime de trabalho a que foram submetidos, tanto nos seringais quanto nas fazendas de
gado, igualou-se em intensidade de violência ao aplicado também aos imigrantes nordestinos.
Segundo o mesmo autor, essa circunstância deu causa a morte em massa de índios que não
estavam acostumados a esse regime de trabalho.
Todavia, é necessário pontuar que a mão de obra indígena não foi explorada apenas
pelos colonizadores, também o foi por estudiosos, como Koch-Grünberg (2006) que, para
realizar seu trabalho etnográfico no Vale do Rio Branco, utilizou a força de trabalho indígena
a teor da seguinte narrativa e imagem da figura 6:
Abandonamos, então, a direção e viramos para o oeste, com a serra a nossa
esquerda, e descemos até o vale, onde, em um campo extenso e aberto, saúdam-nos
as cabanas pardas da aldeia Koimélemong. Nós nos pomos em ordem numa longa
fila: a frente, o chefe, depois, os muitos carregadores e carregadoras, por fim, o
padre e eu (sic) (Koch-Grünberg, 2006, p. 53).
65
Figura 6 – Índios carregadores de equipamentos e bagagens de Koch-Grünberg
Fonte: KOCH-GRÜNBERG, 2006
A exemplo de Koch-Grünberg (2006), Rice, que chefiou importante expedição no
Vale do Rio Branco no ano de 1924, também utilizou, para alcançar seus objetivos, o braço
indígena, como ele próprio relata:
Sua missão consistia em percorrer a região e a recrutar índios para as canoas. Seus
esforços de duas semanas tiveram por resultado o recrutamento de uma trintena de
macuxis, uapixanas, jaricunas e Taualipangues. Os tuxauas dos três primeiros
grupos estavam à testa de seus respectivos contigentes, enquantos os macuxis e
uapixanas tiveram por tuxauas dois jovens chamados Paulino e Alberto. Francisco,
tuxaua dos jaricunas, era um velho homenzinho rabugento, pesadão, mas bom
trabalhador, a quem se conseguia facilmente fazer movimentar-se com um pouco de
tato (sic) (RICE, 1978, p. 140).
Os índios, à luz dos relatos dos próprios estudiosos, foram por estes utilizados,
especialmente como guias, remadores e carregadores, percorriam grandes distâncias com
pesadas cargas como bem ilustra a figura 6, retirada da obra de Koch-Grünberg.
Não se pode deixar de registrar também que a própria igreja, historicamente, utilizava
trabalhadores indígenas na sua rotina doméstica, como se infere das palavras de Dom Geraldo
Van Caloen (apud SANTILLI, 1987/88/89, p. 433), prelado da missão do rio Branco em
1909: “eu pedi também ao tuxaua que nos conseguisse quatro índios para ajudar Dom
Bonaventure na lavoura e outros trabalhos pesados”.
66
Podemos afirmar com segurança, à luz dos documentos e dos relatos dos autores
acima transcritos, que a exploração de índios no Vale do Rio Branco ocorreu de forma perene
ao longo de sua história, não só pelos não índios pecuaristas, mas por todos os seguimentos
que necessitavam de mão de obra. Esses registros demonstram que o estigma de preguiçosos,
atribuído aos índios, foi construído ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX por pessoas e
pelo próprio governo ao terem seus interesses rejeitados pelos indígenas. Dessa forma, os
vícios atribuídos aos índios não passaram de preconceitos desenvolvidos durante o período
mais intenso da colonização portuguesa na Amazônia brasileira. Serviram de argumento
ideológico para subtrair daquelas pessoas seus bens mais valiosos: a vida, a liberdade, a terra
e a dignidade.
Resta evidente que a violência secular, a qual os índios do Estado de Roraima foram
submetidos com a exploração de sua força de trabalho, coação moral e física, restrição da
liberdade com aldeamentos forçados e assassinatos, seguiu o mesmo modelo empregado na
colonização do Brasil.
3.3 A DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL
A violência e o sofrimento impostos aos povos indígenas deu origem à forte corrente
de pensamento que considera que o país tem uma grande dívida social para com esses povos.
Com espeque nesse entendimento, o Estado Brasileiro, por meio de sua Constituição de 1988,
assegurou a identificação, a demarcação e homologação de terras indígenas, definindo-as no
seu art. 231 como as tradicionalmente ocupadas pelos povos integrantes das várias etnias do
Brasil. Em cumprimento a esse dispositivo legal, a União Federal demarcou 46,1% (Instituto
Socioambiental – ISA, s/d) do território do Estado de Roraima como terras indígenas, e
retirou compulsoriamente os não índios dessas áreas, incluídas nela a Terra Indígena Raposa
Serra do Sol. Para tanto, os povos indígenas, especialmente a partir dos anos 1970, tiveram
forte apoio da Igreja Católica (inclusive financeiro), de intelectuais das universidades
brasileiras e de vários organismos internacionais, para identificação e demarcação de suas
terras, que ao final levaram o governo brasileiro a demarcá-las com extensão acima do
percentual inicialmente reclamado.
Quanto à participação internacional, devido à relevância de suas fontes, Câmara dos
Deputados e Ministro Marco Aurélio do STF, para ficar em dois exemplos, é preciso observar
que, no palco das demarcações de terras indígenas no Brasil, como atores importantes do
processo, não se pode desconsiderar também o real interesse dos chamados países
67
desenvolvidos na Amazônia, cuja intervenção se dá sob o manto da preservação dos direitos
humanos dos índios e do meio ambiente. Embora seja obrigação constitucional do Brasil
demarcar as terras que realmente sejam indígenas em atenção ao art. 231 da Lei Maior, não se
pode ignorar o interesse daqueles países na Amazônia. Nesse sentido, o Ministro do Supremo
Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, em seu voto-vista, proferido no Julgamento da Ação
Popular Petição nº 3.388/RR, caso Raposa Serra do Sol, arrimado no Relatório da Câmara dos
Deputados sobre a demarcação de terras indígenas, destaca que:
No relatório da Comissão da Câmara dos Deputados, de 2004, aparecem notícias
preocupantes, que têm origem em visão de dignitários. Al Gore, ex-Vice-Presidente
dos Estados Unidos da América, em 1989, chegou a dizer com todas as letras: “Ao
contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”.
François Mitterrand, ex-Presidente da França, em 1989, veiculou: “O Brasil precisa
aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”. Mikhail Gorbachev, exPresidente da Rússia, em 1992, bateu em idêntica tecla: “O Brasil deve delegar parte
de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes”. No
mesmo sentido foi a fala de John Major, ex-Primeiro-Ministro do Reino Unido, em
1992: “As nações desenvolvidas devem estender o domínio da lei ao que é comum
de todos no mundo, as campanhas ecologistas internacionais sobre a região
Amazônica estão deixando a fase propagandística para dar início a uma fase
operativa, que pode, definitivamente, ensejar intervenções militares diretas sobre a
região (BRASIL, voto de Marco Aurélio Melo, 2009).
Não convém desprezar a lição de Galvão (2008, p. 47) de que os recursos naturais
historicamente sempre “aguçaram o interesse de conquistadores, empresários e estadistas
desde a época dos sumérios, gregos, persas e romanos” e que barreiras geográficas naturais
como “mares, lagos, oceanos e montanhas”, nunca foram obstáculos para as conquistas. A
distância e o isolamento não impediram as “projeções extraterritoriais de poder,
interferências, ingerências e intervenções externas” em nações mais vulneráveis, aquelas são
práticas rotineiramente utilizadas pelo poder internacional. Como observa Duroselle (apud
GALVÃO, 2008, p. 47), “a história da humanidade é marcada por invasões em que uma das
origens é a atração que as terras opulentas exercem sobre os povos cobiçosos”. Assim, os
recursos naturais sempre estiveram na pauta de interesses de nações conquistadoras de
territórios.
Ainda em relação às possíveis interferências internacionais, o Governador de Roraima,
Ottomar Pinto, em abril de 2005, declarou à Folha de São Paulo que o Presidente Lula havia
lhe revelado ter pressa na demarcação da TIRSS por não suportar as pressões estrangeiras, de
acordo com o excerto da referida entrevista: “Ottomar - O presidente Lula disse na minha
frente e da bancada [de RR] que toda vez que ia ao exterior recebia pressões e reclamações
68
favoráveis à homologação da reserva. Disse que ele tinha pressa em atender a essas
demandas” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2005).
Embora voto vencido, Sua Excelência, o Ministro Marco Aurélio chamou a atenção
sobre a necessidade, por todos aqueles compromissados com o Brasil de amanhã, de se
abandonar “a visão ingênua” para defender a soberania do país. Todavia, a cautela não pode
dar causa a xenofobia e nem à restrição ou inobservância dos direitos indígenas.
No que se refere à Igreja Católica no cenário das demarcações de terras indígenas em
Roraima, com ênfase para a Raposa Serra do Sol, Santilli (2001) enfatiza a iniciativa dessa
instituição de apoiar a criação de um órgão indígena verticalizado, que pudesse atuar como
interlocutor dos povos indígenas com o Estado e a sociedade civil, nascendo daí o Conselho
Indígena de Roraima - CIR, o que desencadeou uma nova etapa na luta por um território
contínuo.
Na chamada questão indígena do Estado de Roraima, não se pode, de fato, deixar de
acentuar o trabalho da Igreja Católica, a qual fez opção preferencial e radical em favor da
defesa dos índios, com o objetivo de alcançar a demarcação de suas terras. O bispo D. Aldo
Mongiano foi o principal representante da igreja nesse trabalho. Em matéria veiculada na
Revista Diretrizes (1992, nº 06, p. 08), D. Aldo justifica esta opção do seguinte modo:
[...] Eu concordo que, quando aqui cheguei, os índios não tinham nenhuma
consciência dos seus direitos. Não sabiam do Estatuto do Índio, nem da
Constituição. Viviam submetidos perante a atitude dos fazendeiros que viviam por
lá. Eles sentem, agora, que a situação não pode continuar. Então, o que a Igreja fez?
– A Igreja escutou os seus reclamos e tinha o dever de ficar do lado deles.
Além da afirmação em epígrafe, D. Aldo, em suas pregações evangélicas, durante
missas e encontros pastorais, defendia a ideia de que a Igreja da América Latina, por meio das
conferências episcopais de Medellín e Puebla, fez opção preferencial pelos pobres e em
Roraima os mais pobres dentre os pobres eram os índios (informação verbal). Para dar
concretude a essa opção, a Igreja Católica em Roraima investiu fortemente em formação de
lideranças indígenas e implantou projetos econômicos, a exemplo do “Projeto do Gado” e do
“Projeto de Cantinas”, com o fim de retirar os índios da dependência dos trabalhos das
fazendas (SANTILLI, 2001).
Dessa forma, forte no pensamento de que os índios, prioritariamente, deveriam ter a
atenção da igreja, o bispo da Diocese de Roraima desenvolveu sua ação pastoral, o que foi
decisivo para identificação, demarcação e homologação das terras indígenas de Roraima,
inclusive a Raposa Serra do Sol, na forma contínua.
69
O Governo Federal, por meio da Fundação Nacional do Índio, para dar efetividade ao
propósito de demarcar a terra indígena Raposa Serra do Sol, editou as Portarias nº 1.141/92 de
06/08/92, nº 1.285/92 de 25.08.92, nº 1.375/92 de 08.09.92 e nº 1.553/92 de 08.10.92,
nomeando grupos técnicos interinstitucionais, com a finalidade de identificar e realizar o
levantamento fundiário da terra indígena em foco.
Ao analisar o “Relatório sobre a proposta de demarcação da área indígena Raposa
Serra do Sol”, no qual consta a relação das pessoas que constituíram o grupo técnico, verificase que este foi composto por 21 membros, sendo sete técnicos do Estado de Roraima, da
Secretaria do Meio Ambiente, Interior e Justiça do Estado de Roraima - SEIMAJUS, e
maioria absoluta de técnicos da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, representantes de
organismos da Igreja Católica, Conselho Indigenista Missionário – CIMI - e Diocese de
Roraima, e pelos próprios indígenas do CIR. Os não índios e os índios não ligados ao CIR não
tiveram representantes e, consequentemente, não foram ouvidos.
Embora no presente trabalho não se pretenda discutir a legalidade, a justiça ou a
injustiça da demarcação em comento, primeiro porque, ao que concerne a demarcação
propriamente dita, sem adentrar nos seus limites, ou seja, na quantidade de terra demarcada, é
inegável o direito dos índios, seja por força da determinação exposta no art. 231 da CF/88,
seja em razão da obrigação moral do Estado demarcá-las devido à exploração e violência a
que os índios foram submetidos ao longo da história do nosso país; segundo porque o
Supremo Tribunal Federal já decidiu a questão na petição Nº 3388 (ação popular), cujo
acórdão já transitou em julgado, tornando-se, pois, estéril qualquer discussão a esse respeito;
resta discutir a existência de um passivo social para com os não índios, gerado a seu favor em
razão de atos estatais. A oitiva destes pela União Federal, por meio de seus órgãos e agentes,
por si só, constituiria ato de respeito e poderia levar a solução da dívida que o Estado contraiu
com esses atores sociais.
Entretanto, nem mesmo alguns interessados diretos, como os não índios, credores
também de uma grande dívida social, e os municípios atingidos foram ouvidos. A
inobservância do contraditório e da ampla defesa em todo o processo demarcatório, a partir do
laudo antropológico até o processo judicial, foi apontada como nulidade insanável pelo
Ministro Marco Aurélio em seu voto, proferido na ação popular sobre a TIRSS.
É importante mencionar, quanto à participação do Estado de Roraima, que a comissão
de peritos nomeada pela Justiça Federal de Roraima, no seu relatório (RORAIMA, 2004),
afirma que a FUNAI desconsiderou as nomeações de técnicos indicados pelo Governo de
Roraima para compor o grupo de trabalho, quais sejam: Luiz Aimberê Soares de Freitas,
70
Robério Bezerra de Araújo e José Augusto Soares. Porém, posteriormente, aceitou a indicação
da SEIMAJUS de pessoas sem qualificação técnica, conforme o seguinte excerto do referido
relatório:
[...] a Comissão de Peritos teve a oportunidade de conversar com o Sr. Antônio
Humberto Bezerra de Matos (um dos técnicos agrícolas, representante do Governo
do Estado) que afirmou não ser técnico agrícola e que não tomou conhecimento de
sua nomeação pela Portaria nº 1.141, e nunca participou de atividade alguma relativa
à demarcação em questão. Chegou a afirmar que nunca esteve na área Raposa Serra
do Sol. A Comissão recebeu a visita do Sr. Gerôncio Gomes Teixeira (outro
componente do GT) que informou que não era técnico agrícola e sim, Auxiliar
Operacional Agropecuário e que esteve na área Raposa/Serra do Sol conduzido pelo
motorista Maíldes e acompanhando um “doutor de Brasília”. Seu trabalho foi única
e exclusivamente “medir alguns currais e contar algumas árvores” a mando do
“doutor”, em fazendas da região. Ficou surpreso ao saber que fazia parte de um
Grupo Técnico Interinstitucional de tanta relevância para o Estado de Roraima e que
representaria o Governo do Estado, nessa Comissão (RORAIMA, 2004, p. 28).
O art. 2º, §2º, do Decreto Nº 22/91, vigente à época da constituição do grupo técnico,
dispõe que, quando necessário, o órgão estadual designará técnicos. A FUNAI entendeu
necessária a participação do Estado de Roraima com a nomeação de técnicos, todavia, a
referida nomeação foi corrompida em razão da nomeação de pessoas não qualificadas, o que
equivale dizer que o Estado de Roraima efetivamente não participou dos trabalhos de
identificação e demarcação da TIRSS, embora por negligência do governo da época (1992),
responsável pela aludida indicação dos técnicos. Sublinhe-se que mesmo que o Estado tivesse
nomeado técnicos competentes e bem formados, ainda assim, os pecuaristas “desintrusados” e
os índios sem representatividade no CIR não estariam representados no grupo de trabalho em
alusão, pois o Estado-membro, como todo Ente Federado, não representa extratos específicos
da sociedade.
É preciso registrar que um dos membros da comissão de peritos nomeados pela Justiça
Federal, Prof. Dr. Erwin Heinrich Frank, discorda do laudo pericial ofertado por seus colegas
e apresenta um laudo antropológico em apartado sobre o Processo nº 1999.4200.0000147(Comissão Interdisciplinar: voto vencido), no qual, por um lado, realiza sistemática
contestação ao trabalho dos demais membros da referida comissão e, por outro, ratifica o
laudo oficial da FUNAI (FRANK, s/d). Ao encetar a defesa do grupo técnico nomeado pela
FUNAI, Frank o faz com base no Decreto nº 22/91, vigente à época da nomeação, analisando
pontualmente, de forma literal, artigos e parágrafos do aludido diploma legal. Todavia,
interpretar a norma jurídica é um ato complexo, a simples aplicação literal da lei não satisfaz a
hermenêutica jurídica. Por essa razão, Maximiliano (1994, p.10) ensina que:
71
Toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no
fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não verificarem, com esmero, o
sentido e o alcance de suas prescrições. Incumbe ao interprete aquela difícil tarefa.
Procede à análise e também reconstrução ou síntese (2). Examina o texto em si, o
seu sentido, o significado de cada vocábulo. Faz depois obra de conjunto; compara-o
com outros dispositivos da mesma lei, e com os de leis diversas, do país ou de fora.
Inquire qual o fim de inclusão da regra no texto, e examina este tendo em vista o
objetivo da lei toda e do direito em geral. Determina por este processo o alcance da
norma jurídica, e, assim realiza, de modo completo, a obra moderna do hermeneuta.
Em outras palavras, mas no mesmo sentido, Gagliano e Pamplona (2010) observam
que as várias técnicas de interpretação coexistem, a saber: literal, lógica, sistemática,
histórica, finalística ou teleológica, ou seja, são utilizadas pelo intérprete simultaneamente
para se alcançar a vontade da norma. Por sua vez, Meirelles (2006, p. 49) comunga do mesmo
entendimento e acrescenta que as leis administrativas, em regra, buscam assegurar a
“supremacia do poder público sobre os indivíduos enquanto necessária à consecução dos fins
da Administração. Ao aplicador da lei compete interpretá-la de modo a estabelecer o
equilíbrio entre os privilégios estatais e os direitos individuais, sem perder de vista aquela
supremacia”. Pois bem, na sua interpretação do Decreto nº 22/91, respeitosamente, o saudoso
professor Erwin Heinrich Frank no seu voto vencido (s/d), deixou de considerar as várias
técnicas de interpretação das normas jurídicas para eleger apenas a literal, unindo-se à
interpretação da FUNAI. Embora o laudo da FUNAI tenha sido ratificado pelo STF (Proc.
Pet. Nº 3388-4), à luz das regras de hermenêutica jurídica, restaram prejudicados os princípios
constitucionais do contraditório e ampla defesa, especialmente em relação aos não índios e
aos índios não associados ao CIR, mesmo os referidos princípios estando inseridos no art. 5º,
LV, da CF/88, ou seja, entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Como leciona
Bonavides (2009, p. 283), os princípios são “a pedra de toque ou critério com que se aferem
os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada”.
Em que pese essa pequena digressão sobre os laudos da TIRSS, faz-se necessário
repisar que não se insurge nesta pesquisa contra a demarcação da referida terra indígena, mas,
apenas abordarmos conjunturalmente suas repercussões reflexas nos direitos dos não índios,
aptas a causar dano moral em razão da dívida social contraída pelo Estado para com esses
atores sociais.
A dívida em alusão provém das políticas públicas estatais levadas a efeito com o fim
de assegurar a posse da região, bem como, por interesse econômico do Estado, a exemplo da
exploração da pecuária, especialmente no período da borracha, da implantação de colônias
agrícolas, da exploração do garimpo, do baixo valor das benfeitorias pagas e do não
reassentamento imediato em outra área.
72
Para melhor esclarecer a unilateralidade da identificação e da demarcação da terra
indígena Raposa Serra do Sol, para onde o Estado voltou seu olhar quase de forma absoluta
para o direito dos índios, ignorando o direito dos não índios, recorremos ao relatório sobre a
proposta de demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol que apresenta o seguinte
excerto: “as comunidades indígenas da região estão organizadas, o que facilitou o trabalho de
identificação e do levantamento fundiário. O Grupo contou com o apoio dos índios, que
promoveram reuniões das lideranças e encaminharam estudos de iniciativa do CIR” (FUNAI,
s/d).
O grupo de trabalho, coordenado pela antropóloga da FUNAI Maria Guiomar de
Melo, conforme o mencionado relatório sobre a proposta de demarcação da TIRSS, concluiu
que a terra indígena em alusão deveria ter uma superfície de 1.678.800 hectares e perímetro
de 1.000 km.
Ao final do processo de identificação e demarcação, foi editado, em 15 de abril de
2005, o decreto presidencial de homologação da TIRSS, deixando-a finalmente, de acordo
com o artigo segundo desse diploma legal, com uma “superfície total de um milhão,
setecentos e quarenta e sete mil, quatrocentos e sessenta e quatro hectares, setenta e oito ares e
trinta e dois centiares, e perímetro de novecentos e setenta oito mil, centro e trinta e dois
metros e trinta e dois centímetros. A dimensão da terra em comento e a proporção que ela
alcança da área territorial de Roraima pode ser visualizada no mapa abaixo:
Figura 7: Mapa de localização da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Fonte: FALCÃO, Márcia Teixeira adaptado por Elizabete Melo Nogueira, 2012.
73
Ressalta-se que essa terra indígena engloba em seu interior os municípios de
Normandia, Uiramutã e parte de Pacaraima, ocupando 7,5% da área territorial do Estado de
Roraima.
O Supremo Tribunal Federal - STF, julgando o pedido exposto na Petição nº 3388
(Ação Popular, com voto do Ministro Ayres Brito (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação
Popular - Petição nº 3.388, 2009) e com apenas um voto divergente, o do Ministro Marco
Aurélio Mello, entendeu que todo o processo administrativo de identificação, demarcação e
homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol ocorrera regularmente. Assim, o órgão
máximo do Poder Judiciário brasileiro ratificou o decreto presidencial de homologação,
terminando, pois, com as alegações de ilegalidade da demarcação invocadas pelos não índios
que residiam na área delimitada, pelos Municípios de Pacaraima, Uiramutã e Normandia e pelo
Estado de Roraima. O acórdão (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular - Petição nº
3.388, 2009) foi publicado com a seguinte ementa:
AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA
DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVODEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS
DECRETOS
REGULAMENTARES.
CONSTITUCIONALIDADE
E
LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA,
ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO.
RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA,
EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO.
CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL
DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO
FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A
DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO
DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA
PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ
AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS
INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA
HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A
PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E
DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. (Pet 3388,
Relator (a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120
DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ
VOL-00212- PP-00049).
A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, segundo Farage (1991, p.18-19), é habitada por
povos das seguintes etnias indígenas:
Habitam atualmente os campos e serras da porção nordeste do Território Federal de
Roraima os Macuxi, Taurepang e Ingarikó, grupos de filiação linguística Carib, e os
Wapixana, de filiação linguística Arawak. Uma maior diversidade étnica é registrada
pelas fontes setecentistas, entre grupos de filiação Carib, Arawak, Macu e algumas
línguas isoladas. Sabe-se que a etnonímia, via de regra, representa um problema
74
metodológico para a história indígena que se vale de fontes escritas: um só etnônimo
pode encobrir vários grupos étnicos e, reversamente, vários etnônimos podem estar
sendo utilizados nas fontes para designar um mesmo grupo étnico.
Os dados populacionais oferecidos por Farage (1991) são confirmados pelo estudo
realizado por técnicos da FUNAI (MILLER, 2008) a respeito da população indígena do
complexo Macuxi-Wapixana, em um levantamento etnoambiental envolvendo as seguintes
terras indígenas: Anaro, Barata/Livramento, Boqueirão, Raimundão, Jacamim, Moskow,
Muriru, Tabalascada e Raposa/Serra do Sol”. Os resultados apontaram que a população
indígena desta última é composta pelo grupo étnico Macuxi, predominante na grande maioria
das comunidades; Ingaricó, na época com oito comunidades; Wapixana; Taurepang, com uma
comunidade cada; e a etnia Patamona, com apenas 50 indivíduos, conforme dados
bibliográficos extraídos do censo demográfico realizado em 2006 pelo CIR e pela Fundação
Nacional de Saúde – FUNASA.
O decreto de homologação da TIRSS não diverge dos estudos citados. Seu artigo
primeiro dita que a terra em alusão se destina “à posse permanente dos Grupos Indígenas
Makuxi, Ingarikó, Patamona, Taurepang e Wapixana”, com a ratificação levada a efeito pelo
STF, como visto acima.
Quanto às características ambientais, segundo o levantamento etnoambiental já
mencionado, o território da TIRSS é composto por dois domínios geomorfológicos: a região
de lavrado e a região das Serras. O primeiro ocupa aproximadamente um terço da referida
terra e é formado por um relevo plano ou pouco ondulado, com muitos lagos e áreas extensas
que ficam alagadas no período chuvoso; o lavrado (savanas) compreende a maior parte das
etnorregiões Raposa, Baixo Cotingo e Surumu. O segundo, a região das Serras, alcança toda a
porção norte dessa terra indígena, possui relevo mais acidentado, com serras que compõem o
divisor de águas e as fronteiras com a República da Venezuela e a República Cooperativista
da Guiana, incluindo o Monte Roraima. A fotografia seguinte mostra as savanas e a formação
de serras, parte do relevo da TIRSS:
75
Figura 8 – Exemplo do relevo da TIRSS
Fonte: FUNAI. Levantamento Etnoambiental das T.indígenas do complexo Macuxi-Wapixana. 2008, p. 133.
Dessa forma, após longo processo, com vários conflitos, a TIRSS foi demarcada e
desocupada, na moldura desejada pelos índios e seus defensores, ou seja, na forma contínua,
retirando-se da mesma os não índios, mesmo os que tinham posses seculares e títulos de
propriedade emitidos regularmente pelo Estado brasileiro.
76
4 OS NÃO ÍNDIOS NO VALE DO RIO BRANCO
Os não índios, desde os anos 1700, foram trazidos e incentivados a ocupar o Vale do
Rio Branco pelo governo. Inicialmente, com o fim de defender a região de invasões
estrangeiras, especialmente de holandeses e de espanhóis que disputavam o domínio deste
território geográfico com os portugueses, fazendo incursões regulares no mesmo, inclusive
instalando povoados. A imigração de colonos não índios, especialmente nordestinos, como
política estatal, constituiu-se historicamente em uma das estratégias do estado nacional para
ocupar e manter a posse da região. Ainda como estratégia de defesa e povoamento
portuguesa, a pecuária foi introduzida, com a criação das fazendas do rei; instalado o Forte
São Joaquim; e fundadas povoações compostas por índios e não índios, a exemplo de Carmo,
Santa Maria, São Felipe, Conceição e São Martinho, conforme já apresentado.
4.1 FATORES DETERMINANTES DA IMIGRAÇÃO NORDESTINA PARA O VALE DO
RIO BRANCO
O estudo do fenômeno das migrações tem chamado a atenção de numerosos cientistas
sociais. Contudo, devido ao caráter fragmentário das pesquisas, até o momento não foi
possível formular uma teoria geral das migrações, com conceitos multidisciplinares
(CASTIGLIONI, 2009). Dentre os estudiosos que se dedicam à construção de uma teoria
geral das migrações, destaca-se Ravenstein (1980). Considerado pioneiro nessa área, esse
autor parte da análise dos sensos ingleses de 1871 e 1881, posteriormente com base em dados
de outros países, para a formulação de leis sobre migração, considerando especialmente os
fluxos de deslocamentos e distâncias, com destaque para a noção de correntes e
contracorrentes como resultado de um processo tendente de equilíbrio entre oferta e demanda
de mão de obra. Esse estudioso influenciou substancialmente os autores da teoria neoclássica,
para a qual, segundo Figueiredo (2005), o fator econômico é determinante.
Para explicar o fenômeno das migrações, Salim e Póvoa Neto (apud VALE, 2013),
usam a expressão “tronco teórico,” propondo uma classificação em 3 (três) troncos principais,
a saber: a concepção Neoclássica, a Histórico-Estrutural e a Mobilidade da Força de Trabalho.
Segundo Vale (2013), na concepção Neoclássica há uma preocupação com a economia
do espaço e com a gestão capitalista da mão de obra. A perspectiva Histórico-Estrutural
vincula-se à tradição dialética do marxismo e analisa grupos e classes sociais que sofrem com
as forças das estruturas responsáveis pela maior ou menor propensão a migrar. Na Mobilidade
77
da Força de Trabalho, seguida pelos economistas clássicos, analisa-se a migração no processo
de acumulação de capital, inserindo-se o referido fenômeno na realidade do trabalho social e
como pressuposto econômico deste.
De acordo com Salim (apud, VALE, 2013, p. 26), a teoria Histórico-Estrutural difere
da neoclássica por apresentar uma variedade de perspectivas ou uma “‘variedade de modelos’
como a ‘teoria da dependência’, o ‘colonialismo interno’, a ‘relação centro-periferia’ e
‘acumulação global’”.
Para Singer (1980, p.223-226), seguidor do estruturalismo-histórico10, no fenômeno
migratório há fatores de expulsão e de atração:
Os fatores de expulsão que levam às migrações são de duas ordens: fatores de
mudança, que decorrem da introdução de relações de produção capitalistas nestas
áreas, a qual acarreta a expropriação de camponeses, a expulsão de agregados,
parceiros e outros agricultores não proprietários, tendo por objetivo o aumento da
produtividade do trabalho e a consequente redução do nível de emprego [...]; e
fatores de estagnação, que se manifestam sob a forma de uma crescente pressão
populacional sobre uma disponibilidade de áreas cultiváveis que podem ser
limitadas tanto pela insuficiência física de terras aproveitável como pela
monopolização de grande parte da mesma pelos grandes proprietários [...].
[...] Entre os fatores de atração, o mais importante é a demanda por força de
trabalho, entendida estas não apenas como a gerada pelas empresas industriais mas
também a que resulta da expansão dos serviços, tanto dos que são executados por
empresas capitalistas como os que são prestados por repartições governamentais,
empresas públicas e por indivíduos autônomos.
Na compreensão do referido autor, os locais de origem dos fluxos são determinados
pelos fatores de expulsão, motivados, principalmente, pelas desigualdades regionais. Por
outro lado, nos lugares de destino, situam-se os fatores de atração, destacando-se a oferta de
mão de obra.
As três correntes destacam a relevância dos fatores econômicos e sociais para se
entender o fenômeno migratório. Em razão da complexidade das migrações, não se encontra
um conceito unânime, variando de autor para autor, conforme o interesse ou a teoria adotada
por cada estudioso. Por se prestar como fundamento da presente pesquisa, adotaremos o
conceito de Salim (apud VALE, 2013, p. 24-26), adepto da teoria Histórico-Estrutural, que
entende a migração como:
Fenômeno Complexo essencialmente social com determinações diversas, apresenta
interações particulares com as heterogeneidades de uma formação histórico social
concreta que tende a assumir feições próprias, diferenciadas e com implicações
distintas, para os indivíduos ou grupos sociais que a compõem e a caracterizam.
10
Os teóricos dessa corrente, ao falarem da migração, em geral, se referiam ao movimento rural-urbano,
principalmente a migração do campo pra a cidade, não se preocupando com a migração internacional.
78
A abordagem Histórico-Estrutural de Salim, segundo Vale (2013), permite analisar os
tipos de migração temporárias e estacionais. Os migrantes temporários constituem a
população flutuante, existente em grandes cidades, de formação complexa e cuja presença é
verificada de forma mais forte em instalações navais e militares, cidades universitárias e
regiões de agronegócio intermitentes (RAVENSTEIN, 1980). Esse tipo de migração tem
importância em nosso estudo porque permite a diferenciação das migrações em que os
imigrantes fixam-se permanentemente no local de destino, a exemplo dos não índios da
TIRSS.
Nas palavras de Silva (2005, p. 61), temporário é o migrante que considera a si mesmo
fora de casa, fora do lugar, ausente, “mesmo quando, em termos demográficos tenha migrado
definitivamente [...]. Se a ausência é o núcleo da consciência do migrante temporário, é
porque ele não cumpriu ou não encerrou o processo de migração, com seus dois extremos
excludentes [...]” .
Desse modo, à luz do conceito de migrante temporário, a contrario sensu os não índios
da Raposa Serra do Sol, pioneiros, não se encaixam nesse conceito, pois constituíram família
e fixaram definitivamente residência na região, conforme declaração de 75% dos
interlocutores ouvidos na pesquisa de campo, cujos ascendentes não retornaram e nem sequer
mantiveram qualquer contato com os parentes que ficaram no Estado de origem, conforme
Quadro nº 05.
Vale (2013) explica que a migração encerra um movimento de resistência, enquanto
processo de múltiplas faces, para vencer os desafios que a natureza adversa e a estrutura
social injusta impõem. A seca é responsável pelo alto índice de migração na região Nordeste,
mas esse fenômeno climático não atua sozinho, pois se conjuga com as lideranças políticas da
região, que não se esforçam para mudar a situação; as políticas de combate à seca que atuam
no interesse dessas lideranças; os agricultores, principais vítimas do flagelo, não têm forças
para mudar a estrutura. Assim, a cada período de seca o mesmo processo se repete com a
evasão de pessoas vitimizadas para outras regiões do país.
Podemos dizer, então, que, no plano do Estado de povoar o Vale do Rio Branco
servindo-se da imigração nordestina, os fatores determinantes que levaram ao sucesso da
empreitada foram: as grandes secas do nordeste e o ciclo da borracha da Amazônia. Assim, as
secas, na denominação de Singer (1980), são o fator de expulsão; a exploração da borracha, a
pecuária, o garimpo e os incentivos do governo, a exemplo da doação e legalização de terras,
são os fatores de atração, como será estudado a seguir.
79
De acordo com Silva (2012), os primeiros colonos a se estabelecerem no Rio Branco
eram pessoas muito pobres e analfabetas. Eram, em maioria, imigrantes nordestinos que
chegaram à região expulsos de seus estados de origem pela seca e atraídos pelo próprio
Governo, por meio de variados projetos fundiários que ofereciam, além da terra, incentivos
materiais, a exemplo de gado, para que os colonos pudessem sobreviver e permanecer na
terra. Nesse sentido, além do que já ficou assentado no primeiro capítulo deste trabalho, o
laudo antropológico da TIRSS (p. 44), subscrito pela antropóloga Maria Guiomar de Melo,
enfatiza que a pecuária surgiu como atividade estatal e que os não índios contavam com
incentivo do governo, consoante o seguinte excerto:
A pecuária surgiu então como uma atividade estatal e os primeiros fazendeiros
dispuseram de gado e terra para se estabelecer, prosseguindo com incentivo dos
governos através de subsídios e persiste ainda hoje, especialmente dentro desta área
indígena com uma atividade doméstica e não voltada para o mercado consumidor,
ou seja, esta atividade não se regula pela lei de mercado buscando atender a
demanda existente (sic).
Eggerath (1924) informa a origem, de forma geral, dos primeiros habitantes não
índios do Rio Branco:
Podemos avaliar o numero de habitantes civilisados em perto de 10.000 e 12.000
almas, na sua maioria piauhyensens, cearenses, parahybanos, maranhenses e
paraenses – existindo tambem portuguezes – nortistas, portanto, ou sejam
exactamente os desbravadores daquelles sertões, os elementos valiosos de
penetração de outros Estados; [...] (sic) (Eggerath, 1924, p. 22).
Reinaldo Imbrózio (apud SILVA, 2012) registra que o longo período de seca no
nordeste brasileiro, nos anos de 1870 a 1880, e a exploração dos seringais na região
Amazônica contribuíram para a vinda de imigrantes, principalmente dos Estados do
Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, empregando-se nas fazendas sob o
sistema de “sorte”11.
Barros (1995, p. 51) observa que a ascensão da pecuária no rio Branco é “simultânea à
expansão da coleta da borracha nos vales dos rios amazônicos”. Afirma que os seringueiros
dedicavam-se à coleta da goma, sem produzir alimentos nem mesmo para sua subsistência,
fazendo nascer, em razão de suas necessidades básicas, um mercado de alimentos, o que
estimulou a pecuária nas terras riobranquenses. Esta circunstância é acentuada também por
11
Sistema de sorte: o vaqueiro era remunerado com o gado, percebendo a quarta ou a quinta parte dos bezerros
nascidos no ano. Para evitar favorecimento do fazendeiro ou do vaqueiro, a parte que tocava a este era retirada
por sorteio dentre os bezerros nascidos naquele ano. (conforme explicação do “desintrusado” Sr. Domício de
Souza Cruz).
80
Frank e Cirino (2010) que afirmam ter a expansão das fazendas de gado no Rio Branco
ocorrido entre 1870 e 1920, em razão do crescimento explosivo de demanda de carne no
mercado de Manaus, devido ao “boom de caucho”, repercutindo no rápido crescimento da
população não índia nas savanas do Rio Branco.
Barros (1995), tomando como base o senso demográfico de 1920, informa que, em
1887, a população do Rio Branco era de mil habitantes não índios; em 1920, essa população
passou para 7.424 habitantes, ou seja, houve um aumento populacional em mais de 6.000
habitantes. O mesmo autor acrescenta que essa população, quase em sua totalidade, achava-se
no bolsão pecuário em torno de Boa Vista, formando uma sociedade pastoril, com roça de
subsistência e vivendo também da caça e da pesca.
É importante registrar, como observam Frank e Cirino (2010), que, antes do ciclo da
borracha, a população não índia do Vale do Rio Branco era composta quase exclusivamente
por ex-militares (aposentados) do pequeno contingente do Forte São Joaquim.
Vieira (2007) afirma que, mesmo com o arrefecimento da extração da borracha na
Amazônia, os imigrantes nordestinos continuaram, até de forma mais intensa, a se dirigir para
o Rio Branco, pois com a falta de trabalho nos seringais, a pecuária passou a constituir forte
atrativo para aquelas pessoas.
Os imigrantes chegavam ao porto de Boa Vista em barcos, chamados de batelões,
como ilustra a fotografia abaixo:
Figura 9: Chegada de nordestinos a Boa Vista – final do século XIX
Fonte: Francisco Cândido
81
Koch-Grünberg (2006) descreve o barco em que viajara, informando que os batelões
não eram utilizados especificamente como barcos de passageiros, mas também empregados
para o transporte de gado vivo.
Na verdade, esses batelões não são barcos de passageiros. Servem ao transporte de
bois, alguns milhares de cabeças fornecidos anualmente para Manaus como gado de
corte, vindos das grandes savanas do Rio Branco. (...) na frente ergue-se uma
casinha de madeira, a cabine do comandante, não há cabine para os passageiros. O
deque serve de espaço para tudo. Amarra-se a rede de dormir onde se encontra lugar,
e a gente se arranja o melhor que pode. De manhã prendem-se as redes no alto e,
assim, o dormitório é transformado em refeitório e em sala de fumar. Na polpa do
barco fica a cozinha, da qual é melhor que pessoas muito sensíveis mantenham
distância (sic) (KOCH-GRÜNBERG, 2006, p. 30).
Prosseguindo, Koch-Grünberg (2006, p. 37) narra que o gado era transportado
juntamente com os passageiros:
Agora, os bois é que desempenham papel principal. A barca toda está cheia deles.
Eventuais passageiros são apenas hóspedes tolerados e onde quer que estejam, só
incomodam. Até mesmo o comandante está restrito a sua pequena cabine. Onde
antes havia rede de dormir a torto e a direito, agora há bois (sic).
Verifica-se, desse modo, que os imigrantes, tanto em sua terra natal, em razão da seca;
nos seringais, onde viviam praticamente em regime de escravidão em virtude dos aviamentos;
quanto nas fazendas de gado do Rio Branco, onde enfrentavam o desconhecido, o isolamento
e as doenças, como será enfocado adiante; ou durante a própria viagem, sempre enfrentaram
uma vida dura e de sacrifícios, sem qualquer conforto ou comodidade a serviço do estado
nacional.
4.2. LEGALIZAÇÃO DE TERRAS E CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO DE BOA VISTA COMO
AÇÃO POLÍTICA DO ESTADO PARA ATRAÇÃO E FIXAÇÃO DE NÃO ÍNDIOS
NO VALE DO RIO BRANCO
Conjugado com a seca nordestina e com o ciclo da borracha na Amazônia, o governo
lançava mão também de medidas políticas para atrair e fixar colonos não índios nessa região,
como o loteamento e a legalização de terras. Para esclarecer esse tema, é importante tecer
rápida digressão sobre o aparato jurídico do Brasil, após a Proclamação da República, por
incidir diretamente no povoamento do Estado de Roraima, embora já tenha sido mencionado
em outro contexto no primeiro capítulo deste trabalho, sob o título: “Pecuária”.
Segundo Vieira (2007), o art. 64 da Constituição Brasileira de 1891 transferiu para os
Estados-membros da União as terras devolutas. O referido artigo, combinado com o Decreto
82
nº 07 de 20 de novembro de 1889, serviu de fundamento para o Governo do Amazonas editar
o Decreto nº 04 de 16 de março de 1892, com o objetivo de legalizar as posses de terras em
todo o Estado, o que alcançava o Vale do Rio Branco, com destaque para as seguintes
passagens do decreto estadual:
- As posses mansas e pacíficas com cultura efetiva e morada habitual, havidas por
ocupação primária e registradas segundo o regulamento que baixou com o Decreto
N° 1318 de 30 de janeiro de 1854, que se acharam em poder dos primeiros
ocupantes ou de seus herdeiros.
- As posses de terras com cultura efetiva e morada habitual, que tenham sido
estabelecidas, sem protesto ou oposição, antes de 21 de novembro de 1889, e
mantidas sem interrupção depois dessa data.
- As posses que foram doadas através de sesmarias ou outras concessões do governo,
revalidáveis por este decreto, se tiverem sido declaradas boas por sentença passada
em julgado entre os sesmeiros ou concessionários e os posseiros, ou se tiverem sido
estabelecidas ou mantidas sem oposição dos sesmeiros ou concessionários durante
cinco anos.
-A pastagem de gado em campos próprios para a criação é equiparada, para a
revalidação ou legitimação à cultura efetiva, uma vez que nos ditos campos existam
currais ou ranchos (sic).
É importante registrar que a Constituição brasileira de 1891, em se tratando da
inclusão das terras indígenas como devolutas, deu origem a duas correntes antagônicas de
pensamento. A primeira, defendida entre outros por Cunha (1987), Mendes Júnior (apud
CUNHA, 1987) e Silva (2009), dissemina a ideia de que as terras historicamente habitadas
por povos indígenas não se incluem no conceito de devolutas. Já a segunda corrente, seguida
por Marés (2003), Meirelles (2006) e Lenza (2010), dentre outros, as incluem. Porém, antes
de analisar as duas correntes de pensamento, faz-se necessário conceituar terras devolutas.
Terras devolutas são todas aquelas que, pertencentes ao domínio público de qualquer
das entidades estatais, não se acham utilizadas pelo Poder Público, nem destinadas a
fins administrativos específicos. São bens públicos patrimoniais ainda não utilizados
pelos respectivos proprietários. Tal conceito nos foi dado pela Lei Imperial 601, de
18.9.1850, e tem sido aceito uniformemente pelos civilistas (MEIRELLES, 2006, p.
548).
Por seu turno, Marés (2003) define terras devolutas como:
Todas as terras que não estavam sob o domínio privado ou não estavam afetadas a
um fim público, que eram senhorio do Rei de Portugal e que foram, com a
independência, devolvidas ao Estado brasileiro criado em 1824, passaram a ser
chamadas de terras devolutas. Terras devolutas, portanto, estavam definidas, e estão
até hoje, por sua negação, quer dizer, devolutas são as terras que não são aplicadas a
algum uso público, nacional, provincial ou municipal, não se achem no domínio
particular nem tivessem sido havidas por sesmarias e outras concessões do governo
geral ou provincial, não incursas em comissos [...] (MARÉS, 2003, p. 73).
83
Mendes Júnior, citado por Cunha (1987), advoga que as terras indígenas não estavam
incluídas nas devolutas porque eram terras do indigenato, ou seja, congenitamente possuída
pelos índios imemorialmente. Na mesma esteira, Cunha (1987) afirma que a Constituição de
1891 não quebrou a tradição de reconhecer o direito dos territórios indígenas, não sendo, pois,
segundo ela, devolutas as terras indígenas e, por isso, os Estados-membros não poderiam
expedir títulos de propriedades sobre tais terras. No mesmo sentido, Silva (2009, p. 859),
invocando também o magistério de Mendes Júnior, sustenta que “o indigenato não se
confunde com a ocupação, com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da
posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato
é legítimo por si”. Mendes Júnior (apud SILVA, 2009, p. 859) acrescenta que “as terras do
indigenato, sendo terras congenitamente possuídas, não são devolutas, isto é, são
originariamente reservadas, na forma do Alvará de 1º de abril de 1680 e por dedução da
própria lei de 1850 e do artigo 24, §1º, do decreto de 1854”.
Filiando-se a segunda corrente, Marés (2003) leciona que, pela constituição de 1891,
apenas não são devolutas: as terras concedidas em sesmarias antes de 1822 e integralmente
confirmadas; as ocupadas com cultivo e morada habitual dos sesmeiros ou concessionários,
mas não confirmadas; as glebas ocupadas por simples posse, mas tornadas produtivas com
morada habitual; e as terras ocupadas para algum uso da coroa ou governo local . As terras
sem ocupação, ou seja, todas aquelas que não se enquadrassem nas descritas anteriormente
eram consideradas sem ocupação, mesmo que alguém estivesse ali e dela retirasse seu
sustento. Entre estas, estavam as terras ocupadas por povos indígenas, escravos fugidos,
formando ou não quilombos, por libertos e homens livres que viviam da natureza. Todas essas
terras foram consideradas devolutas.
Meirelles realça que a Constituição de 1891, em seu artigo 64, conferiu aos Estadosmembros “as terras devolutas situadas em seus respectivos territórios, cabendo à União
somente a porção de território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações,
construções militares e estradas de ferro federais”. Com esse dispositivo legal, segundo
Meirelles (2006, p. 546), as referidas terras passaram aos Estados-membros, assim como o
poder de legislar sobre sua concessão, discriminação e legitimação de posses. Acrescenta que
o Decreto Federal nº 19.924/31, em seu artigo primeiro, reafirmou o direito dos referidos
Entes federados sobre as “terras que lhes foram transferidas pela Constituição de 1891 e
reconheceu-lhes expressamente a competência para ‘regular a administração, concessão,
exploração, uso e transmissão das terras devolutas, que lhes pertencem, excluídas sempre a
aquisição por usucapião”.
84
Seguindo essa linha de pensamento, Lenza (2010) esclarece que, com a independência
do Brasil, as terras devolutas passaram ao patrimônio público do Império, em seguida com a
proclamação da República, nos termos do art. 64 da Constituição de 1891, tais terras foram
transferidas para os Estados-membros, restando à União apenas porção de terra indispensável
para a defesa das fronteiras, construções militares e estradas de ferro federais. Nesse sentido,
Marés (2003, p. 77) observa que, com a proclamação da república, as oligarquias fundiárias,
formadas nos séculos anteriores, assumiram o controle do Estado com amplos poderes
conferidos pela Constituição de 1891, podendo alterar as regras da Lei n° 601/1850 e “exercer
o incontrolado direito de distribuir terras devolutas”.
Desse modo, a segunda corrente de juristas, ao interpretar a norma inserta no art. 64 da
Constituição de 1891, inclui dentre as terras devolutas as indígenas, pertencendo todas aos
Estados-membros. Esta corrente de pensamento se harmoniza com as ideias individualistas do
Estado liberal daquele período.
Sabendo-se que “um dos traços característicos dessa concepção consiste em colocar o
centro de gravidade dos direitos fundamentais na pessoa de seu titular, o indivíduo, ao redor
do qual giram a sociedade e o Estado” (BONAVIDES, 2009, p. 630), o direito do indivíduo é
superior ao do Estado e aquele é detentor dos direitos naturais. Na mesma direção, Ferreira
Filho (1992, p. 251) afirma que a Constituição de 1891, como era de se esperar, manifestava
“em seu texto o apego à concepção individualista dos direitos fundamentais”.
Dessa forma, convém observar que a Constituição de 1891 é bem diferente da de
1988, especialmente quanto à salvaguarda dos direitos individuais e coletivos. Esta inspirada
na teoria do estado social, aquela na doutrina do contrato social. A primeira, de orientação
individualista, não trazia preocupação com os direitos sociais das minorias, a exemplo dos
índios, estavam praticamente excluídos da proteção estatal. Dito de outro modo, não se pode
olhar a Constituição de 1891 com as lentes da de 1988, aquela centrada no indivíduo, voltada
para garantir os direitos e liberdades individuais do homem, principalmente, contra o próprio
Estado opressor (BONAVIDES, 2009). Esta reconhece e garante os direitos sociais, coletivos
e das minorias marginalizadas e excluídas, e tem, segundo Sarlet (2010), como princípio
reitor da sua interpretação, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Desse modo, sob o ponto de vista da segunda corrente, embora não respeitando o
direito dos índios, a ação do Estado do Amazonas de emitir títulos definitivos de propriedade
no Vale do Rio Branco, mesmo alcançando terras indígenas, estava conforme o ordenamento
jurídico da época. Devendo-se acrescentar ainda que pelo instituto da legitimação, previsto,
segundo Marés (2003), primeiramente na Lei Imperial nº 601/1850, depois nas Constituições
85
de 1824 e 1891, as terras ocupadas por simples posse, mas produtivas e com morada habitual,
poderiam ser legitimadas com a emissão de títulos de propriedade. Forte nesse entendimento
o Estado do Amazonas emitiu no Vale do Rio Branco mais de duzentos títulos de
propriedade, como informa Santilli:
[...] o Governo do Estado do Amazonas, no período de 1889 a 1944, chegou a
expedir cerca de duzentos e dez títulos definitivos. Estes títulos em sua grande
maioria incidiam sobre a região do médio e alto rio Branco, atingindo ainda seus
afluentes Uraricoera, Amajarí, Mucajaí, Cauamé, Tacutu, Cotingo e Maú
[...](SANTILLI apud SOUZA, 2005, p. 41).
É importante sublinhar que esta medida política de legalização de terras no Vale do
Rio Branco, além de garantir a fixação de não índios na região, meta perseguida desde sua
gênese pelo estado nacional para resguardar as fronteiras, vem também em apoio à
necessidade de o governo aumentar a produção de carne para sustentar o mercado da
borracha, principal produto de sua pauta de exportação no período de 1890 a 192012.
Silveira (2010, p. 103) é enfático em afirmar que a utilização de terras por não índios
sempre contou “[...] com a obstinação e o sistemático incentivo do Governo Amazonense em
lotear terras para os criadores particulares de gado no Vale do Rio Branco”. Entendemos, por
essa perspectiva, que os não índios foram assentados nas terras da região por meio de ação
estatal, medida que, ininterruptamente, sempre esteve no plano político do estado nacional.
Em razão dessa circunstância, não merecem, e soa mesmo inaplicável aos não índios que
residiam na TIRSS, a pecha de “intrusos” adotada pelo próprio governo federal, constituindose em termo ofensivo da honra.
Por outro lado, não é razoável exigir que, dentro desse contexto legal e histórico, os
“desintrusados” tivessem consciência dos direitos indígenas. Descendentes de homens e
mulheres pobres e iletrados, oriundos de realidades opressoras e favorecedoras da miséria
humana: as secas do nordeste e os seringais da Amazônia (SILVA, 2002), defendiam as terras
recebidas como herança, cuja posse ou propriedade fora concedida pelo próprio Estado aos
seus ascendentes. Com efeito, os não índios estavam de boa-fé.
É oportuno fazer, ainda, breve consideração sobre boa-fé e má-fé, a fim de
entendermos o ponto de vista dos não índios.
Silva (1993, p. 327) conceitua boa-fé nos termos seguintes: “Sempre teve boa fé no
sentido de expressar a intenção pura, isenta de dolo ou engano, com que a pessoa realiza o
negócio ou executa o ato, certa de está agindo na conformidade do direito, consequentemente
12
Ver capítulo 1 deste trabalho.
86
protegida pelos preceitos legais”. A boa-fé constitui um dos princípios basilares do direito
civil, entendendo-se estes como os elementos fundamentais da cultura jurídica humana, sendo
a boa-fé “a alma das relações sociais” (GONÇALVES, 2009, p. 74). Quanto à posse de boafé, esse autor observa que o possuidor deve ter a crença de se encontrar em uma situação
legítima, ignorando a existência de vício, ou seja, estando convicto de que a posse é legítima,
esta é de boa-fé. Ao contrário, se sabe que a posse está maculada por vício então é de má-fé.
No mesmo sentido, para Silvio Rodrigues (apud GONÇALVES), a posse é de boa-fé quando
o possuidor ignora o vício da aquisição.
Gonçalves (2009) observa, ainda, que existem várias teorias a respeito da má-fé,
destacando-se a ética que relaciona a má-fé com a culpa, e a psicológica, que perquire o
possuidor sobre a ciência por parte deste de algum vício antes da aquisição da posse. Nesta
concepção, o possuidor deve apenas ter a crença de que não causa dano a direito alheio.
Enquanto na concepção ética, a mesma crença há de se originar de um erro escusável, ou seja,
analisa-se se o possuidor agiu com as cautelas necessárias para a aquisição.
Para Wald (1993), a boa-fé tem relevante importância na sistemática jurídica. Trata-se
de um conceito ético-social que pode ser abordado subjetiva ou objetivamente, pode-se
pesquisar a intenção do agente, ou seja, o animus subjetivo que levou a prática do ato. Para
esse autor, de acordo com a teoria psicológica, a posse é de boa-fé se o possuidor tem
convicção da legitimidade de seu ato, com a consciência de que a coisa possuída sinceramente
lhe pertence, desconhecendo qualquer vício sobre a aquisição do direito. Por outro lado, a
posse é de má-fé quando o possuidor tem ciência da existência do vício na sua aquisição.
O Código Civil de 1916, no artigo 490, estabelecia que o possuidor, com justo título,
tinha a seu favor a presunção de boa-fé. Seguindo a mesma orientação, o Código Civil de
2002, no seu artigo 1201, parágrafo único, consagra norma idêntica. Em exegese à referida
norma, Wald (1993, p. 72) explica que “o justo título é aquele que, em tese, é idôneo para
transferir o direito, embora, possa, no caso concreto, não o ter sido”. De igual forma,
Gonçalves (2009) ensina que justo título é o que seria apto para transmitir o domínio e a posse
se não portasse vício impeditivo da transmissão.
Dessa forma, pela inteligência dos institutos jurídicos, má-fé e boa-fé, em confronto
com os atos estatais de emissão de títulos, no bojo da conjuntura política de fixar não índios
na região, fosse para garantir a posse territorial do Vale do Rio Branco para o estado nacional,
fosse para produzir carne para sustentar a produção do pulsante mercado da borracha, impede
que se considere razoável afirmar que os não índios pecuaristas da TIRSS estavam de má-fé.
Nesse diapasão, com base no voto condutor do Ministro Ayres Britto, acreditamos que a ação
87
sobre a demarcação e retirada dos não índios da TIRSS foi julgada procedente não porque os
“desintrusados” estivessem de má-fé, mas sim como política compensatória pelo sofrimento
experimentado historicamente pelos índios, a teor do seguinte excerto:
Também aqui é preciso antecipar que ambos os arts. 231 e 232 da Constituição
Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra
constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a
igualdade civil-moral de minorias que só têm experimentado, historicamente e por
ignominioso preconceito − quando não pelo mais reprovável impulso coletivo de
crueldade −, desvantagens comparativas com outros segmentos sociais. Por isso que
se trata de uma era constitucional compensatória de tais desvantagens historicamente
acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas
(afirmativas da encarecida igualdade civil-moral). Era constitucional que vai além
do próprio valor da inclusão social para alcançar, agora sim, o superior estádio da
integração comunitária de todo o povo brasileiro (BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Ação Popular - Petição nº 3.388, 2009).
Ressaltamos que a boa-fé dos não índios da TIRSS foi reconhecida pelo próprio
Estado ao indenizar suas benfeitorias, uma vez que só as benfeitorias de boa-fé poderiam ser
indenizadas, consoante a norma inserta no artigo 231, § 6º da Constituição Federal.
Por fim, na esteira da política estatal de fixar colonos no Vale Riobranquense, merece
nossa atenção o fato de que, em 1890, por meio do Decreto nº 49 de 09 de julho de 1890, Boa
Vista do Rio Branco foi elevada à condição de município do Estado do Amazonas, o que
“contribuiu significativamente para o aumento do número de fazendas particulares na região”
(SILVA, 2012, p. 42). E, por via de consequência, para o aumento de não índios para prestar
seus serviços na pecuária, com o incentivo do Estado.
4.3 PRINCIPAIS PROBLEMAS: ISOLAMENTO, DOENÇAS E ANALFABETISMO
Os primeiros habitantes não índios do hoje Estado de Roraima, mesmo com a criação
do município, continuaram a enfrentar muitas dificuldades e sofrimentos, devido à localização
geográfica do Vale do Rio Branco e a carência dos meios de transporte. A única via para sair
e entrar no Município Riobranquense era a fluvial, utilizada para vender em Manaus as
mercadorias ali produzidas, como gado e fumo, e trazer artigos industrializados, sendo que a
navegação só era operável nos meses de inverno, ou seja, de junho a setembro, período de
cheia do Rio Branco, como destaca Eggerath (1924, p. 22):
Já vimos que o Alto Rio Branco está separado do resto do Brazil durante 8 meses,
por isso que só admite a navegação durante os quatro meses de cheia.
88
Este isolamento é completo; nem o telegrapho, nem a radiographia conseguem
interrompel-o, visto não terem chegado aquellas paragens estes benefícios da
sciencia moderna (sic) .
Eggerath (op. cit. p. 22), também menciona as dificuldades de navegação no rio
Branco, mesmo nos meses de inverno, devido à necessidade de transpor as cachoeiras de
Caracaraí para se chegar a Boa Vista, conforme o seguinte excerto:
Interpõem-se alli, qual barreira intransponível, as cachoeiras de Caracarahy que o rio
atravessa vertiginosamente, formando quedas, rápidos e estreitos, empinando-se
diante das constantes cristas de penhascos que formam as cachoeiras, para projectarse com impeto nos canaes de nível inferior. Lage da Onça, Bota-Panella, Pancada
Grande, Cotovello são os nomes de algumas dessas quedas (sic).
Segundo publicação do Jornal do Rio Branco de 1916 (apud SOUZA, 2011, p.38), D.
Pedro Eggerath, enviando justificativa ao ministro da agricultura do Brasil, expôs os motivos
de seu atraso para enviar um relatório sobre o estado de abandono em que se encontrava o Rio
Branco:
Outro motivo de meu atraso e merece bem de ser mencionado aqui, para o
esclarecimento de V. Exia., é, que fiz uma viagem de Manáos para cá em condições
verdadeiramente indignas de um país civilizado como é o Brasil, tendo gasto trinta e
cinco dias para percorrer este trecho de cerca de 900 Km, passando as cachoeiras
com perigo muito próximo de naufrágios, e presenciado o afogamento nas mesmas
cachoeiras de um companheiro de viagem.
[...]
Além disto, nós, três missionários, tendo passado noites ao ar livre e expostos a
chuva, e apanhando muita água nas cachoeiras, chegamos aqui com febres palustres,
que, hoje ainda, depois de muitos meses, nos estão perseguindo e estragado a saúde,
e custaram a vida de um de nós, falecido a 4 de maio. (Sic) (JORNAL DO RIO
BRANCO apud SOUZA, 2011, p. 38).
D. Pedro Eggerath descreveu ainda os prejuízos que experimentou com a carga que
levava em razão da penosa viagem:
Em quanto a nossa carga, que era de 157 volumes, avaliamos a perda que sofremos
nesta viagem a que um terço do valor do conteúdo das mesmas, deteriorados pelas
águas do rio, pela chuva, pelo calor, pelos insetos, pela umidade, todas
consequências de uma viagem muito demorada, com abandono forçado da carga em
diversos lugares (sic) (apud SOUZA, 2011, p. 39).
Eggerath (1924, p. 39) ressalta que a dificuldade de transporte fazia com que os
produtos industrializados, adquiridos em Manaus, chegassem ao Vale do Rio Branco com
preços altíssimos, como se verifica no seguinte excerto de sua obra:
89
Não admira, portanto, que os fretes de Manáos sejam enormes, de modo que um
saco de sal do custo de 8$000 na Capital do Estado só possa ser vendido em Boa
Vista por 35$000, que um rolo de arame farpado custe actualmente mais 100$000 e
assim por diante (sic).
Koch-Grünberg (2006) igualmente relata as dificuldades de transporte, acentuando que
as cachoeiras de Caracaraí constituíam o principal assunto das conversas no Rio Branco,
devido aos obstáculos que representavam ao transporte de pessoas e cargas. Descreve a
referida cachoeira informando que tem uma queda vertical de dezoito metros, distribuídos em
vinte e quatro quilômetros, formando três cadeias de colinas. Só se pode passar pelas
cachoeiras durante as cheias do rio, cuja travessia demora cerca de seis horas e utilizando-se
de um canal longo chamado “furo do Cujubim”, com muitas pedras e rápidas correntezas. No
período seco, tornava-se impossível a navegação, por isso foi construída na margem ocidental,
um caminho, que fica debaixo d’água grande parte do ano e contorna as cachoeiras, cujo
percurso dura cinco horas para uma pessoa a cavalo. A estrada tinha pouca utilidade, servindo
apenas para pequenos transportes de mercadorias. Para transporte maiores era muito
dispendiosa, fatigante e demorada, pois o gado tinha que ser carregado e descarregado várias
vezes.
A locomoção dos não índios das fazendas para Boa Vista também não era fácil,
conforme o seguinte relato do “desintrusado” Joaquim Correa de Melo:
Para vir para Boa Vista era só pelo rio, não tinha estrada. O transporte era o rio, de
canoa. De baixada eram 3 dias de viagem, de subida eram 7 dias. O rancho que a
gente levava só dava para o primeiro dia. Aí, quando dava 5 horas, a gente parava
para pescar o peixe para comer. A canoa era movida no remo. Motor, ixi... Os
primeiros motores só chegaram quando a comissão de limites veio para a
demarcação da fronteira, foi aí que trouxeram os primeiros, era motor com rabo. A
hélice do motor era com rabo assim. Isso foi muito tempo depois. Antes era só o
remo (sic).
Além dessas dificuldades de transporte, a população era acometida de doenças que a
dizimava em quantidade expressiva, a exemplo da seguinte matéria jornalística veiculada na
Imprensa Pública de Manaus (apud SOUZA, 2011, p. 22):
[...] a forte epidemia de febre que assolou e levou a óbito boa parte da população.
Em 1916, a intendência municipal de Boa Vista do Rio Branco, por meio de seu
superintendente Generaldo Collaço Veras, esclarece que “o estado do município é
contristador!” ele denuncia que a dois anos as febres afligem a região norte do
90
município e que já tinha provocado cerca de três mil óbitos, na maioria de
indígenas13(sic).
A Imprensa Pública de Manaus (apud SOUZA, 2011, p. 23) relata, ainda, as medidas
efetivadas pelo poder público e seu alto custo, visando reverter o referido quadro de doenças,
conforme o seguinte excerto:
Em uma tentativa de ajudar a cuidar da população o superintendente adquiriu uma
ambulância de medicamentos, a qual se mostrou insuficiente, para dar conta dos
enfermos. A aquisição de uma segunda ambulância custaria aos cofres públicos
cerca de Rs 1.200$000. Em algumas casas havia até oito pessoas doentes, as quais
não tinham condições de cuidar de si ou dos seus parentes, de maneira que estavam
entregues a própria sorte. O relatório evidencia uma preocupação com os
indígenas(sic).
Em 1917, o Superintendente de Boa Vista do Rio Branco, Generaldo Collaço Veras,
trouxe às terras riobranquenses uma comissão de médicos com o fim de solucionar os
problemas de saúde que afligiam a população. Essa comissão concluiu que não havia certo
número de pacientes, mas um povo inteiro doente, conforme notícia veiculada no Jornal do
Rio Branco, em setembro daquele ano:
[...] Se fosse possível que a utilíssima Comissão se tornasse efetiva e definitiva, não
havia palavras que chegassem para qualificar o beneficio assim prestado a nossa
população flagelada, ainda mais que estas febres de mau caráter, que nos estão
dizimando, não hão de desaparecer com a mesma rapidez que caracterizou seu
aparecimento. Será mister agora combater cientificamente e com grande
perseverança, o mal uma vez enraizado entre nós de tal forma, que,como nos disse o
Sr. Dr. Pinheiro, ele não achou um certo número de pacientes, como imaginava, mas
sim, um povo inteiro doente (JORNAL DO RIO BRANCO apud SOUZA, 2011,
p.23).
Koch-Grünberg (2006, p. 39) também menciona óbitos determinados por doenças
tropicais na região, a exemplo do seguinte relato da morte de dois monges beneditinos: “Há
pouco tempo em viagem ao Pará, dois padres morreram de febre, que provavelmente pegaram
em Caracaraí”.
É importante mencionar que os padres, pelos recursos que dispunham, tanto
financeiros quanto educacionais, estavam melhor aparelhados para evitar as doenças que
grassavam na região do que os imigrantes nordestinos, homens iletrados e pobres. Todavia,
devido à força da incidência das várias doenças, principalmente a malária, os religiosos
13
Relatório lido perante o conselho municipal pelo superintendente Generaldo Collaço Veras na terceira sessão
ordinária de 1916. Manaus: Imprensa Pública. 1917. p. 5.
91
também foram vitimados, conforme as narrativas de Eggerath (1924) e Koch-Grünberg
(2006).
Rice (1978, p. 25) relata que, em visita ao sítio do piloto Terêncio Lima, observou que
“a maioria dos homens eram magros, vítimas de males hepáticos e apresentavam sinais
evidentes de infecção paludosa”. Ademais, o próprio Koch-Grünberg faleceu dessa doença
nas terras rio-branquenses, como informa Rice (1978, p. 24): “a chalupa que regressou de
Vista Alegre, a 20 de outubro, trouxe-nos a notícia de que Koch-Grünberg morrera
subitamente de um acesso de malária”.
Além das doenças tropicais, a população do Rio Branco era também acometida por
muitas doenças em razão da carência de frutos e legumes. Segundo Rice (1978), a agricultura
era totalmente negligenciada porque toda a mão de obra era empregada nas “fazendas” ou na
extração de borracha. Razão por que, segundo esse autor, a população ficava privada de
alimentos essenciais ao bem-estar fisiológico e os “danosos efeitos de uma alimentação
deficiente e pouco nutritiva apareciam claramente no estado de saúde da maioria dos
indivíduos que procuravam tratamento médico” (RICE, 1978, p. 25).
O elevado número de doenças, especialmente as tropicais, o difícil acesso a centros
mais desenvolvidos, a inexistência de serviços médicos regulares e a carência alimentar eram
propícios a epidemias e mortes como as descritas acima, fazendo com que em cada fazenda (e
só como muito esforço se pode nominar as moradias dos imigrantes com essa designação tal a
pobreza que imperava) houvesse um cemitério com vários túmulos. Nos dias atuais ainda é
possível encontrar vários desses cemitérios plantados no lavrado roraimense (savana).
Os relatos de descendentes dos pioneiros revelam que muitos, por amor à terra a qual
tinham despendido tantos sacrifícios, pediam para serem sepultados na própria fazenda ou,
pela impossibilidade de translado, determinavam o sepultamento no local do óbito. A
fotografia abaixo mostra o túmulo do Sr. Cici Mota, pai dos desintrusados Fany e Zelio Mota,
sepultado na fazenda Santo Antônio do Pão, localizada na TIRSS.
92
Figura 10 – Túmulo de Moacir da Silva Mota (Cici Mota)
Fonte: Arquivo do Prof. Dr. Carlos Cirino.
Vários “desintrusados”, a exemplo de João Gualberto Sales, Delci Sales Vieira, Fany
Bezerra, Zelio Mota, dentre outros, possuem parentes sepultados em suas antigas fazendas,
perfazendo 71% dos entrevistados, conforme quadro e gráfico a seguir.
Quadro 01 - Demonstrativo de parentes dos “desintrusados” sepultados na TIRSS
Nº de
Interlocutores
Parentes sepultados na TIRSS
01
João Gualberto Sales
Tio
02
Fani Mota Bezerra
Avô materno, irmão, pai, tios
03
Domício de Souza Cruz
Não
04
Francisco Leite Pereira
Pai e mãe
05
Emília Sales da Silva
Tio e irmão
ordem
06
Maria Luizete Coutinho de Queiroz
(esposa do Sr. Altamir Lira de Queiroz - falecido)
Não
07
Wilson Alves Bezerra
Uma filha e a primeira esposa
08
José Lima Queiroz**
Não
09
Nazareno de Souza Lima
Avô e duas tias
10
Delci Sales Vieira
Bisavó, bisavô paterno e tios
11
Gêmulo Leite Pereira***
Avós e tios
12
Joaquim Correa de Melo
Vó, mãe, irmã e irmão.
13
Ademar Araújo
Avô
93
14
Lorenço Hart
Não
15
Odílio de Araújo
Não
16
Vânia Melo dos Prazeres Araújo
Sem informação
17
José Félix Correa
Não
18
José Leite Pereira
Avós
19
Moadir Lucena de Melo
Não
20
Roberto José da Costa Neto
Avó
21
Zélio da Silva Mota
Pai, avós, irmãos, tios, primos
Fonte: Elaborado pelo autor
Fonte: Elaborado pelo autor
Barros (1995, p. 55), corroborando com as palavras de Eggerath (1924) e as políticas
públicas desenvolvidas por Generaldo Collaço Veras (JORNAL DO RIO BRANCO apud
SOUZA, 2011), narra que, no Rio Branco de 1924, a reduzida “força de trabalho era vitimada
por péssimas condições de saúde, em que a enfermidade de destaque era a malária”, o que se
harmoniza com as informações prestadas pelos referidos interlocutores, expressa no gráfico
acima.
O quadro de dificuldades se manifestava também pela deficiência da educação formal,
pois, segundo Souza (2011), nas primeiras décadas do século XX, o município de Boa Vista
do Rio Branco apresentava quase 95% de analfabetos. Esse índice é reflexo das dificuldades e
da falta de atrativos para fixar pessoas tecnicamente qualificadas no Vale do Rio Branco.
No recenseamento geral de 1950, realizado pelo Conselho Nacional de Estatística CNE, a população do Território do Rio Branco era de 9.644 homens e 8.472 mulheres,
totalizando 18.116 pessoas. Desta população, 3.283 homens e 2.438 mulheres eram
94
alfabetizados, somando-se, desse modo, apenas 5.721 pessoas alfabetizadas (IBGE, 1950). Ou
seja, a maioria absoluta da população era analfabeta.
Nesse sentido, indignada com a ausência de política pública educacional, a escritora
Nenê Macaggi, em seu romance “A Mulher do Garimpo”, denuncia a situação de pobreza e de
analfabetismo que experimentavam no Vale do Rio Branco os trabalhadores da pecuária,
conforme o excerto seguinte:
Geralmente o vaqueiro é nordestino, com numerosa família, tendo apenas a
vantagem da matalotagem e do leite. Pode matar uma reis mensalmente para o seu
rancho. Mas o querosene, o tabaco, o café, a farinha, o arroz e o feijão ficam por sua
conta. E, por isso vende as suas reses e sai pobre das fazendas.
[...]
Os filhos nascem e morrem analfabetos, porque não há escola isolada. E como há
crianças no interior! Os mais abonados ainda mandam os filhos estudar em Manaus
– e os mestres não custam, não! E de quem é a culpa? Do governo, sempre do
governo, que só olha para o Rio Branco quando precisa dos nossos votos ou dos
nossos bois (MACAGGI, 2012, p. 99).
É importante mencionar que, a partir de 1924, o Município do Rio Branco passou a
contar com uma escola formal, posto que os monges beneditinos instalaram a Escola da
Prelazia, mais tarde denominada Escola São José14. Contudo, a referida escola era particular e
cobrava mensalidade, de forma que os pobres ficavam excluídos.
Desse modo, no Vale do Rio Branco, índios e parcela significativa dos não índios
enfrentaram inúmeros sofrimentos e dificuldades ditadas por carência das vias e dos meios de
transportes, pelas péssimas condições de saúde e ausência quase total de políticas públicas
que garantissem melhores condições de vida a essas pessoas.
No contexto das demarcações das terras indígenas no Estado de Roraima, a literatura
sobre a matéria dá especial relevo ao sofrimento e exploração a que foram submetidos os
índios, a exemplo de Farage (1991), Santilli (2001), Vieira (2007), Silveira (2010), e que
constituem fatos incontestáveis, provados robustamente por relatos idôneos, leis e
documentos oficiais, inclusive com diversas situações de maus-tratos e exploração dos
indígenas. Todavia, não se pode ignorar que não índios pobres que viviam na TIRSS também
foram submetidos à exploração muito semelhante, como bem observa Cirino (2009, p. 40):
“Sabe-se que as condições de trabalho a que foram submetidos os índios não foram menos
violenta do que as dos nordestinos, tanto nos seringais como nas fazendas de gado”.
Convém explicitar uma vez mais, por sua importância, que os “desintrusados”
(pecuaristas) da TIRSS são exatamente os descendentes desses nordestinos submetidos à
14
(Disponível em: http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=82516. Acesso em: 20.11.2013)
95
violenta exploração, que estavam a serviço do governo como militares, agricultores,
pecuaristas ou mesmo garimpeiros, como demonstra o quadro 2.
Quadro 02 - Demonstrativo da ascendência, por Estado de origem e atividade econômica
originária, dos “desintrusados” da TIRSS
Nº
Interlocutores
Estado de origem
Atividade originária
01
João Gualberto Sales
Ceará/Pernambuco
Militar15 e seringueiro
02
Fani Mota Bezerra
Paraibano/Macuxi
Garimpo e pecuária
03
Domício de Souza Cruz
04
Francisco Leite Pereira
Piauí
05
Emília Sales da Silva
Ceará/Pernambuco
Militar e seringueiro
Paraíba
Agricultura (tabaco)
Português/Macuxi/
Ceará
Pecuária e Militar
Pecuária e agricultura
(tabaco)
Maria Luizete Coutinho de Queiroz
06
(esposa do Sr. Altamir Lira de
Queiroz - falecido)
07
Wilson Alves Bezerra
Ceará
Seringueiro
08
José Lima Queiroz
Ceará
Pecuária
09
Nazareno de Souza Lima
Ceará
Seringueiro
10
Delci Sales Vieira
Ceará/Pernambuco
Militar e seringueiro
11
Gêmulo Leite Pereira
Piauí/Paraíba/Macuxi
12
Joaquim Correa de Melo
Ceará
13
Ademar Araújo
Ceará
Pecuária
14
Lawrense Manly Harte
Estados Unidos/Wapixana
Pecuária e ferroviária
15
Odílio de Araújo
Piauí
Pecuarista
16
Vânia Melo dos Prazeres Araújo
Paraíba
Agricultura (tabaco)
17
José Félix Correa
Ceará
Seringueiro
18
José Leite Pereira
Piauí/Paraíba/Macuxi
19
Moadir Lucena de Melo
Paraíba
Agricultor (tabaco)
20
Roberto José da Costa Neto
Piauí
Pecuária
21
Zélio da Silva Mota
Paraibano/Macuxi
Garimpo e pecuária
Fonte: Elaborado pelo autor
15
Todos os militares serviram no Forte São Joaquim.
Pecuária, garimpo e
agricultura (tabaco)
Militar, seringueiro e
pecuária
Pecuária, garimpo e
agricultura (tabaco)
96
Em uma breve explicação da tabela, esclarece-se que na coluna “interlocutores” consta
a amostragem dos “desintrusados”, retirados de um universo de 140, conforme relação dos
pecuaristas não índios da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, constante no “Relatório sobre a
Proposta de Homologação da Área Indígena Raposa/Serra do Sol” denominada “Lista dos
Posseiros”. As variáveis Estado de origem e atividade originária referem-se aos avós e
bisavós dos “desintrusados”, em sua maioria. Apenas em três casos: Lawrense Manly Harte,
Joaquim Correa de Melo e Francisco Leite Pereira, por contarem com mais de 90 anos de
idade, a informação é referente a seus pais.
Os dados revelam que os Estados de Origem, com exceção apenas de Lawrense Manly
Harte, cujo pai era norte-americano, pertencem à região Nordeste do Brasil, e as atividades
econômicas praticadas pelos ancestrais eram exatamente aquelas fomentadas pelo governo
para povoamento da região.
Os depoimentos indicam que os “desintrusados” pecuaristas permaneceram
historicamente localizados na TIRSS, exercendo a mesma atividade econômica de seus
ancestrais e a grande maioria nas mesmas fazendas recebidas por herança.
Por fim, convém acrescentar que os pioneiros e seus descendentes, os
“desintrusados”, de forma geral, perderam o vínculo com seus estados de origem, a teor da
tabela abaixo:
Quadro 03 - Demonstrativo da relação dos “desintrusados” com o Estado de origem
Nº de
Retornou
01
João Gualberto Sales
X
02
Fani Mota Bezerra
X
03
Domício de Souza Cruz
X
04
Francisco Leite Pereira
X
05
Emília Sales da Silva*
ordem
Manteve contato
Não retornou nem
Interlocutores
manteve contato
X
Maria Luizete Coutinho de Queiroz
06
(esposa do Sr. Altamir Lira de
X
Queiroz - falecido)
07
Wilson Alves Bezerra
X
08
José Lima Queiroz
X
09
Nazareno de Souza Lima
X
10
Delci Sales Vieira*
11
Gêmulo Leite Pereira
X
X
97
12
Joaquim Correa de Melo
X
13
Ademar Araújo
X
14
Lorenço Hart**
15
Odílio de Araújo
X
16
Vânia Melo dos Prazeres Araújo
X
17
José Félix Correa
X
18
José Leite Pereira
X
19
Moadir Lucena de Melo
X
20
Roberto José da Costa Neto
21
Zélio da Silva Mota
X
X
TOTAL
4
1
15
Fonte: Elaborado pelo autor
O gráfico abaixo demonstra que 75% dos não índios da TIRSS e seus ascendentes não
mantiveram qualquer contato com o Estado de origem, em prejuízo dos laços afetivos com os
parentes que lá ficaram e de sua própria história.
Gráfico 2 - Demonstrativo da relação dos
“desintrusados” com os familiares do Estado
de origem
0
20%
Visitaram
5%
Mantiveram contato
Nunca houve contato
75%
Fonte: Elaborado pelo autor
O resultado exposto na tabela em análise está coerente com a dificuldade de transporte
e comunicação que a região riobranquense enfrentava, levando os imigrantes a perder o
vínculo familiar com os parentes que haviam ficado no Estado de origem.
98
4.4 SITUAÇÃO ECONÔMICA DOS FAZENDEIROS DO VALE DO RIO BRANCO
Apesar da titulação de terras, da emancipação de Boa Vista ao ser transformada em
município, e da abundância de carne, a situação de hipossuficiência dos habitantes não índios
do Rio Branco era generalizada, com exceção de uns poucos abastados, a começar pela
construção de suas moradias, pouco se diferindo das indígenas, como descrevem Pavani e
Moura (2006, p. 25):
[...] a arquitetura indígena aliada à engenharia nordestina tem forte influência na
cultura colonial.
As casas de taipa das fazendas e das vilas com suas coberturas em palha de buriti,
palmeira em profusão no lavrado roraimense, imprimiram características marcantes
aproveitadas até os dias de hoje.
Silva (2012), com fundamento em pesquisa realizada nos arquivos dos monges
beneditinos, também descreve as casas dos fazendeiros riobranquenses, na década de 1940,
como muito modestas.
A maioria dos moradores das fazendas e sítios localizados ao norte do rio Branco ou
situados às margens dos rios Uraricoera e Tacutú, bem como os das zonas de
campos ou cerrado do sul, logo abaixo da cabeceira do rio Branco, residia em casas
com paredes de taipa, chão batido e poucos bens materiais (SILVA, 2012, p. 48).
É preciso registrar que, até a retirada dos não índios da Terra Indígena Raposa Serra
do Sol, a maioria dos “desintrusados” vivia ainda modestamente, em moradia humilde,
erguida em taipa16 e coberta com folhas de buriti17, como bem exemplifica a fotografia
seguinte:
16
17
Taipa: parede feita de varas de madeira roliças e rústicas, revestida de barro batido.
Nome científico: mauritia flexuosa.
99
Figura 11 - Fazenda Independência – propriedade de João Cavalcante Mota – 2004 – TIRSS
Fonte: Arquivo do Prof. Dr. Carlos Cirino.
Embora os “desintrusados”, descendentes dos não índios pioneiros, sejam nominados
fazendeiros, o que imprime ideia de abastança e riqueza, na verdade praticavam apenas uma
pecuária de subsistência, insuficiente para retirá-los da situação de pobreza em que
historicamente sempre estiveram. Nas fazendas, levavam uma vida dura, de trabalhos
sacrificantes, consoante a narrativa do Sr, Domício de Souza Cruz:
Olha eu comecei minha luta mais ou menos pelos 10, 12 anos, quando eu perdi o
pai. A gente é quem tirava o leite, campeava o gado. Pra tirar o leite a gente tinha
que ir para o curral às 3h, 3 horas e meia, 4h da manhã, para poder dar conta de
amanhecer o dia e o leite estar todo tirado pra gente continuar nos outros serviços.
No inverno, o curral era na lama, debaixo de chuva, não tinha curral coberto não. Pra
tirar o leite a gente arrelhava o bezerro no braço da vaca, amarrava as pernas da
vaca, pra não bater na vasilha que tava tirando e esperar o resto. E assim era com os
outros serviços, a lenha, por exemplo, a gente ia tirar na cabeça, era cortada no
machado, não tinha moto-serra (sic).
Quanto à rotina de trabalho com o gado, o Sr. Domício de Souza Cruz explica:
Tinha que tirar o leite bem cedo, porque, se assim não fosse, não teria tempo pra
fazer os outros serviços do dia. Se fosse 6 horas, por exemplo, iria passar 2 horas
tirando o leite, iria terminar 8 horas, aí iria esperar o segura-peito18 pra tomar e sair
pro campo. Às vezes você tinha que sair pra dormir no campo, pra no outro dia
voltar campeando, pra chegar em casa com o gado. Tinha que campear porque se
não os bezerros iam crescer sem benefício e os outros iam pegando e ficando com
ele. Não tinha marca, não tinha nada. Cada qual que fizesse a sua marca. Assim
tinha que campear pra carimbar e amansar o gado. Aí, quando era com um ano,
marcava uma época pra fazer a “ferra”, juntavam aqueles que já estavam
18
Desjejum, café da manhã;
100
carimbados, aí você ia sortear, de cinco você tirava um. O pagamento era no sorteio.
Eram cinco pedras e marcava 1, 2, 3, 4, 5, aí eu metia a mão no saco e o que saísse
era o meu. Não podia escolher não. A alimentação na fazenda era o leite e a carne.
Os outros gêneros, assim: roupa, açúcar, etc, a gente comprava na cidade. Daqueles
bezerros que tirava, vendia uma parte, aí comprava o que você necessitava: rancho,
roupa, etc (sic).
A fotografia do Sr. Moacir da Silva Mota (Cici Mota), pai dos desintrusados Zélio
Mota e Fani Mota, mostra o não índio pecuarista típico da Terra indígena Raposa Serra do
Sol. A imagem por si é ilustrativa da simplicidade do modo de vida daquelas pessoas:
Figura 12 – Fotografia do Senhor Moacir da Silva Mota
Fonte: Arquivo do Sr. Zélio da Silva Mota.
A tabela abaixo, demonstrativa do rebanho de gado dos “desintrusados”, principal
fonte de renda destes, mostra-nos porque a maioria dos tradicionais fazendeiros de gado da
TIRSS levava uma vida simples, modesta, sem qualquer luxo ou ostentação, ou seja, não
detinham grande poder econômico.
Quadro 4 - Demonstrativo do rebanho de gado dos “desintrusados” antes e depois da saída da
TIRSS
Nº
Interlocutores
Antes da retirada
Depois da retirada
01
João Gualberto Sales
860
600
02
Fani Mota Bezerra
3200
0
101
03
Domício de Souza Cruz
300
112
04
Francisco Leite Pereira
150
0
05
Emília Sales da Silva
200
30
300
0
Maria Luizete Coutinho de
06
Queiroz
(esposa do Sr. Altamir Lira de
Queiroz - falecido)
07
Wilson Alves Bezerra1
08
José Lima Queiroz
180
150
09
Nazareno de Souza Lima
100
0
10
Delci Sales Vieira
250
100
11
Gêmulo Leite Pereira
540
50
12
Joaquim Correa de Melo
500
80
13
Ademar Araújo
400
80
14
Lorenço Hart
15
Odílio de Araújo
200
100
16
Vânia Melo dos Prazeres Araújo19
17
José Félix Correa
18
José Leite Pereira
200
40
19
Moadir Lucena de Melo
15
01
20
Roberto José da Costa Neto
2000
20
21
Zélio da Silva Mota
5000
100
Fonte: Elaborado pelo autor
O baixo número de cabeças de gado é suficiente, por si só, para contestar o discurso de
que os “fazendeiros” detinham poder econômico significativo. Situação contemplada pelo
laudo antropológico da TIRSS, conforme trecho abaixo:
A demarcação da Área Indígena Raposa/Serra do Sol não afetará negativamente a
economia do Estado de Roraima. A atividade pecuária extensiva, da forma que é
praticada dentro da área indígena, não necessita de muito investimento de capital
para ser realizada. O que faz com que a atividade não tenha muita produtividade ou
rentabilidade, faltando assim contribuir de maneira substancial para a economia do
novo estado. Ademais o Estado possui outras áreas de lavrado onde a pecuária ainda
pode se desenvolver (FUNAI, s/d, p. 47).
19
A senhora Vânia Melo dos Prazeres Araújo é esposa do senhor Odílio Araújo.
102
O Laudo Antropológico da TIRSS evidencia, ainda, que os não índios levavam uma
vida humilde. Porquanto, o importante documento informa que, salvo poucas exceções, as
benfeitorias dos sítios e fazendas eram precárias: “Não existe ainda nenhuma infra-estrutura
dentro da área indígena que demande uma quantia substancial de indenização. Pelo contrário,
com poucas exceções, as benfeitorias existentes das fazendas e sítios são precárias (sic)”
(FUNAI, s/d, p. 45).
Contudo, antes da “desintrusão”, os pecuaristas, embora não fossem ricos, levavam
uma vida financeira equilibrada e já desfrutavam de certo conforto. Após oito anos da
“desintrusão”, houve um sensível empobrecimento de todos, o que pode ser percebido na
coluna “depois da retirada” da tabela 5 que mostra a diminuição dos seus rebanhos bovinos.
Em alguns casos, a perda do rebanho foi total, a exemplo de Wilson Alves Bezerra, Francisco
Leite Pereira, Altamir Lira de Queiroz, Nazareno de Souza Lima e Moadir Lucena de Melo.
A tabela 3, elaborada pela Secretaria Estadual de Planejamento (SEPLAN),
corrobora as informações dos “desintrusados” sobre a diminuição do rebanho bovino, pois
justamente no período compreendido entre a homologação, por meio da Portaria nº 534/2005,
do Ministro da Justiça e Decreto homologatório de 15.04.2005, do Presidente da República, e
a determinação de retirada destes da TIRSS em 30 de junho de 2010 (DJe-120, Petição nº
3388, STF), houve uma sensível queda na atividade agropecuária no Estado de Roraima:
Tabela 03 - Participação das atividades econômicas em % no Valor Adicionado Bruto a preço
básico em ordem decrescente - Roraima - 2006 a 2010
Atividade
Administração,
saúde e
educação
públicas
Comércio
Construção
civil
Outros serviços
Atividades
imobiliárias e
aluguel
Agropecuária
Intermediação
financeira,
seguros e
previdência
complementar
2006
2007
2008
2009
2010
48,03
48,41
47,32
47,77
49,73
10,82
10,27
9,88
11,23
12,00
7,24
7,72
8,15
8,51
9,46
6,94
7,30
8,35
8,47
7,23
7,58
8,15
7,30
6,96
6,51
7,66
6,70
6,45
5,65
4,74
3,20
3,38
3,00
3,25
3,09
103
Transportes,
armazenagem e
2,73
2,34
2,43
2,39
2,15
correio
Indústria de
2,12
1,79
2,90
2,38
1,75
transformação
Produção e
distribuição de
Eletricidade e
1,47
1,71
1,45
1,64
1,55
gás, água,
esgoto e
limpeza urbana
Serviços de
2,16
1,97
2,52
1,57
1,51
informação
Indústria
extrativa
0,05
0,28
0,25
0,16
0,26
mineral
Valor
Adicionado a
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
preço básico
FONTE: IBGE – CONAC - Coordenação de Contas Nacionais e SEPLAN - RR Dados de 2010 sujeitos à
revisão
Os motivos apresentados pelos “desintrusados” para a perda foram: o baixíssimo
valor das indenizações por benfeitorias; a demora do governo em reassentá-los; assentamento
em lotes de terra “nua”, sem nenhum benefício; pasto pequeno (499 ha) e “fraco”, inadequado
para a pecuária20.
Convém observar que alguns “desintrusados” não foram reassentados ainda, a
exemplo do Sr. Altamir Lira de Queiroz, do Sr. Zelio Mota e do Sr. Joaquim Correa de Melo.
Este último informou que a área destinada a ele era no Assentamento do Taboca, local em que
não tinha estradas e já estava muito velho para recomeçar a vida em uma região de mata21.
Quanto ao Sr. Altamir Lira de Queiroz, negava-se a sair da região da Raposa Serra do
Sol, dizendo que sua vida estava lá. Passou o resto de seus dias na cidade de Normandia em
uma pequena casa cedida pela Prefeitura. Veio doente para Boa Vista e faleceu no dia 24 de
dezembro de 2012.
Quanto às indenizações, todos os interlocutores declararam que foram irrisórias, muito
aquém dos valores despendidos para erguê-las, disseram ainda amargurar profunda tristeza e
mágoa sobre os sacrifícios deles próprios, dos seus pais e avós para construir suas fazendas e,
ao final, serem retirados praticamente sem a observância de seus direitos.
Os sentimentos experimentados em razão do valor das indenizações são revelados nas
20
Os desintrusados foram assentados no Projeto de Assentamento Nova Amazônia (antiga Fazenda
Bamerindus), Fazenda McLaren e no Truaru,, áreas de savanas (lavrados), segundo eles, de capim grosso e
peludo, o qual não é bem aceito como alimento pelo gado.
21
À época da “desintrusão” o Sr. Joaquim já estava com 82 anos de idade.
104
palavras dos “desintrusados”, conforme declaração do Sr. Joaquim Correa de Melo, exproprietário da fazenda Caracaranã:
Essa foi a coisa mais triste do mundo. O valor daquilo ali, se eu tivesse o valor que
eu investi, eu tava rico. Meu investimento ali foi muito grande, muito grande
mesmo. Fui provocado a fazer aquilo. Eu tinha que fazer aquilo que é um ponto
turístico do Estado. Então começou a ir muita gente. No início foi muito difícil, não
tinha estrada. Depois, começou-se a abrir a estrada, ainda estrada só raspada, era
muito difícil o transporte. Então, quando chegou essa coisa do governo de
desapropriar a gente, foi a coisa mais estúpida que esse Lula já fez. Porque o Lula,
quando foi candidato a primeira vez, ele estava lá no Caracaranã. A gente recebeu
ele com todo o prazer, votei nele duas vezes e ele acabou me jogando como se joga
um cachorro(sic).
Da mesma forma, o Sr. Moadir Lucena de Melo, ex-proprietário da fazenda Novo
Horizonte, declarou-se injustiçado com o valor recebido:
De indenização recebi 11.500. Tinha casa de Alvenaria, casa de palha, barracão,
cozinha separada, tudo fechado de porta e chave. Quando eu saí não trouxe nenhum
animal, nada, eu não trouxe nada. Até as galinhas, picote, tudo ficou. Quando eu saí
de lá eu fui para Boa Vista e lá não tinha como trazer, quando eu recebi isso aqui já
tava com muito tempo. Eu Saí em 2005 e fui assentado aqui em dois mil e sete, aí
perdi tudo, tudo. A indenização foi uma coisa absurda, ridícula, aceita porque tem
que aceitar, né?(sic).
José Lima Cruz, ex-proprietário da fazenda Nambi, por sua vez, pontua:
A indenização que fizeram foi irrisória, eu recebi na base de sessenta e poucos mil.
Tinha casa, fazenda toda cercada, sítio, bastante sítio, criação tinha tudo. Tinha 150
reses, hoje tô com umas cinquenta reses. Hoje tô revoltado, porque de uma área que
dava pra todo mundo viver e sobrava terra, e tiraram a gente, e nem sequer pagaram
o que era pra pagar pra gente. A gente viveu toda essa vida, né? Desde a infância e
que foi gasto toda a vida da gente, quase, né? e perdemos (sic).
Os demais “desintrusados” prestaram declarações semelhantes, todos se dizem
revoltados com o valor das indenizações pagas pelo governo. Alegam também que o
levantamento e o valor das benfeitorias foram fixados unilateralmente pelo governo, não lhes
foi oportunizado fazer contraproposta. Nas palavras do Sr. Moadir Lucena de Melo: “a
indenização foi uma coisa absurda, ridícula, aceita porque tem que aceitar, né?”.
É importante registrar que o governo indenizou apenas as benfeitorias,
desconsiderando o valor das terras, mesmo daquelas com títulos definitivos, e tempo de
residência das famílias. Os títulos foram declarados nulos, sob o fundamento de que eram
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou seja, terras da União, de acordo com o laudo
antropológico da área.
105
Com efeito, o Ministro Ayres Brito, relator do processo da Petição nº 3.388 (ação
popular sobre a TIRSS, adotou como parâmetro do seu voto o referido laudo, sendo seguido
pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Embora o Ministro Marco Aurélio
Mello tenha invocado a nulidade do laudo, documento reitor da definição de uma terra
indígena, fundamentando sua argumentação na Lei da Ação Popular (Lei nº 4717/65), no
Código de Processo Civil e na jurisprudência do próprio Supremo, apontando as seguintes
nulidades insanáveis no processo judicial: ausência de citação das autoridades que editaram a
Portaria nº 534/2005 e o seu decreto homologatório, respectivamente o Ministro da Justiça,
Márcio Thomaz Bastos e o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva, como determina a lei
popular; O Estado de Roraima e os Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia, bem
como, os detentores de títulos de propriedade, os posseiros e parte das etnias indígenas
também não foram citados, para atender os arts. 1° e 6º Lei nº 4717/65; ausência de intimação
do Ministério Público, como determina o art. 6°, §4º da referida lei. Mesmo com incidência
desses possíveis vícios, o processo seguiu até o julgamento final, concluindo-se que o
conteúdo político do julgamento superou o judicial.
Convém anotar que nem todas as terras tituladas foram doadas pelo Estado ou
livremente ocupadas e depois regularizadas. Algumas foram vendidas pela União e pagas, em
alguns casos, pelos próprios “desintrusados”, e, em outros, por seus pais, avós ou bisavós,
como demonstra a escritura pública da fazenda do Sr. Domício de Souza Cruz (ANEXO B).
A justiça ou a injustiça da decisão, bem como a indenização por dano material, de per
si, não são objetos deste trabalho, mas foram enfocados secundariamente em razão de serem
citados pelos “desintrusados” como causa da injustiça e do sofrimento que declararam ter
experimentado. Tais declarações sugerem que esses sentimentos são causa de dano moral,
este sim, objeto de estudo deste trabalho. Nesse sentido, o sentimento de injustiça é revelado,
especialmente, porque consideram que a “desintrusão”, da forma como foi realizada, levou-os
a um acentuado empobrecimento, decorrente da queda do rebanho bovino, como pode ser
visto na tabela 3, única fonte de renda de praticamente todos os interlocutores.
4.5 A AQUISIÇÃO DAS FAZENDAS DOS “DESINTRUSADOS” E SUA EXPANSÃO NA
ÁREA INDÍGENA
A imputação de multiplicação de fazendas dentro da TIRSS, apontada no “Relatório
sobre a proposta de demarcação da área indígena raposa/serra do sol”, reveste-se de
106
importância neste trabalho à medida que atinge diretamente a imagem e a honra dos
pecuaristas “desintrusados”. Nesse particular o referido relatório22 registra que:
A penetração da sociedade nacional se deu de uma forma muito sutil. No início, os
invasores aproveitando-se da amizade com os índios apossaram-se do gado, de sua
terra e apropriaram-se da mão-de-obra (sic).
[...]
O primeiro invasor, geralmente, ao chegar à região pedia autorização ao tuxaua para
morar numa velha choupana nas proximidades de um sítio antigo abandonado pelos
índios. O tuxaua dava a permissão. Com o passar dos anos, o posseiro veio a se
transformar em um criador de gado (sic).
O laudo antropológico da TIRSS foi adotado pelo relator do processo da Petição nº
3.388 (ação popular), Ministro Ayres Brito, como parâmetro para o julgamento como anota
Silveira23. De fato, o Ministro Relator, em uma passagem do seu voto, destaca o seguinte
excerto como um dos fundamentos de seu convencimento:
O processo de ocupação se solidificou em meados (... do século passado...) e se
expandiu de uma maneira gradual à medida que os ocupantes tiveram filhos e que
estes se casaram, a maioria das vezes com não índios também da região, e assim foi
aumentando o número de localidades dentro da área indígena. Este processo se deu
em concomitantemente com o processo de reprodução das fazendas através de um
sistema de “sorte” (sic) (Relatório sobre a proposta de demarcação da área indígena
Raposa Serra do Sol, s/nº)24.
Todavia, os relatos dos entrevistados, tanto em relação à ocupação quanto à expansão
da área ocupada por fazendeiros não índios da TIRSS, discrepam do laudo, e, por via de
consequência, do voto do Ministro Ayres Brito, que solucionou a questão da referida terra
indígena. Nesse sentido, a tabela abaixo demonstra a forma como cada um dos interlocutores
adquiriu sua ex-fazenda.
Quadro 5 - Forma de aquisição das fazendas dos “desintrusados”
Forma de aquisição
22
Nº
Interlocutores
01
João Gualberto Sales
X
02
Fani Mota Bezerra
X
Herança
Compra
Fundação Nacional do Índio - FUNAI. Relatório sobre a proposta de demarcação da área indígena
Raposa/Serra do Sol. (s/d), p. 8.
23
SILVEIRA, Edson Damas da. Meio ambiente, terras indígenas e defesa nacional: direitos fundamentais em
tensão nas fronteiras da Amazônia Brasileira. 1 ed. Curitiba: Editora Juruá, 2010.
24
idem, p. 103.
107
03
Domício de Souza Cruz
04
Francisco Leite Pereira
X
05
Emília Sales da Silva
X
06
X
Maria Luizete Coutinho de Queiroz
X
(esposa do Sr. Altamir Lira de Queiroz - falecido)
07
Wilson Alves Bezerra
X
08
José Lima Queiroz**
X
09
Nazareno de Souza Lima
X
10
Delci Sales Vieira
X
11
Gêmulo Leite Pereira***
X
12
Joaquim Correa de Melo
X
13
Ademar Araújo
X
14
Lorenço Hart
X
15
Odílio de Araújo
X
16
Vânia Melo dos Prazeres Araújo
X
17
José Félix Correa
X
18
José Leite Pereira
X
19
Moadir Lucena de Melo
X
20
Roberto José da Costa Neto
X
21
Zélio da Silva Mota
X
Fonte: Elaborado pelo autor
O gráfico abaixo, confeccionado com os dados extraídos da tabela em análise,
demonstra que 67% dos “desintrusados” herdaram as fazendas de seus pais:
À luz dos dados da pesquisa de campo, os casamentos dos não índios não foram causa
de expansão da área ocupada, aumentando o número de localidades dentro da área indígena,
108
como afirma Sua Excelência, o ministro relator, no excerto do seu voto em epígrafe. Não se
quer dizer que em um ou outro caso isto não tenha ocorrido. O que ocorreu, majoritariamente
com a morte dos ancestrais dos “desintrusados”, foi o parcelamento das propriedades já
existentes.
O referido parcelamento das posses ou propriedades é explicado nos seguintes
trechos de depoimentos dos “desintrusados”:
A fazenda Caracaranã era parte da fazenda Casa Branca. Quando meu pai faleceu, as
terras foram repartidas. A Casa Branca ficou para minha irmã, que mora no Rio de
Janeiro, e a Caracaranã ficou pra mim. Só a Caracaranã ficou na área indígena.
(Joaquim Correa de Melo, proprietário da fazenda Caracaranã).
O meu sítio foi adquirido de herança do finado meu pai, que já tinha herdado do
finado meu avô. A área toda foi dividida, eram dez herdeiros, eu fiquei com 290
hectares. (Nazareno de Souza Lima, ex-proprietário do Sítio Manjar).
Vê-se que os casamentos de não índios na TIRSS acrescentaram mais pessoas na
área em decorrência da procriação, mas não houve um aumento significativo de ocupação de
novas terras. Inferimos, desse fato, que o laudo antropológico não refletiu as múltiplas faces
da complexidade geográfica e social da TIRSS. Em decorrência, o Ministro Marco Aurélio,
em seu voto sobre a referida terra indígena, cita os trabalhos da Comissão Externa da Câmara
dos Deputados, composta para analisar os trabalhos demarcatórios da TIRSS, como
documento em que tais facetas foram contempladas:
[...]
Os trabalhos desta Comissão mostraram que o processo de demarcação da área
indígena Raposa/Serra do Sol foi desenvolvido de forma irregular, contendo
ilegalidades e inconstitucionalidades.
A elaboração de peças centrais do Laudo Antropológico por entidades ligadas à
defesa dos direitos indígenas compromete a sua isenção, em prejuízo dos princípios
da impessoalidade e da razoabilidade da atuação da Administração Pública.
Outrossim, o Laudo não comprova com o devido detalhamento e profundidade o
atendimento aos requisitos do art. 231 da Constituição, como expressamente
reconhecido no Despacho nº 80/96, do Ministério da Justiça.
À mesma conclusão chegaram os peritos nomeados pelo Juízo da Justiça Federal em
Roraima, conforme excerto citado também pelo Min. Marco Aurélio em seu voto:
O que restou provado com esta Perícia é que a FUNAI apresentou e aprovou um
relatório completamente inadequado, incorreto, incompleto, e com vícios insanáveis,
para a demarcação da Área Indígena Raposa Serra do Sol, induzindo o Ministro da
Justiça ao erro em baixar a Portaria 820/98 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Ação Popular - Petição nº 3.388).
109
Além das circunstâncias acima, o tempo de residência dos não índios na TIRSS,
registrado no gráfico abaixo, em que 48% destes, estavam entre 51 a 70 anos25 naquela região,
demonstra que quase não havia grande incidências de novas ocupações. Inclusive o laudo
antropológico da FUNAI aponta que, em um território de mais de um milhão e setecentos mil
hectares de terra, havia apenas 140 não índios pecuaristas.
Dessa forma, ressaltamos que o laudo antropológico da TIRSS deixou de estampar os
nuances sociais necessários para se evitar injustiças, a exemplo de afirmar que a expansão da
ocupação não índia deu-se por artimanha e má-fé dos “desintrusados”. À luz do ordenamento
jurídico brasileiro, imputações ofensivas dessa natureza geram dano moral, tema a ser
abordado no capítulo seguinte dessa dissertação.
4.6 MISCIGENAÇÃO ENTRE ÍNDIOS E NÃO ÍNDIOS DA RAPOSA SERRA DO SOL
Segundo Baines (2004), na ocupação do lavrado de Roraima, a miscigenação foi
utilizada pelos portugueses com o objetivo de consolidar uma população nacionalmente
unificada, com valores culturais europeus, impondo-se, para esse feito, políticas de
“integração” cultural. Segundo esse autor, tais políticas foram implantadas no Rio Branco por
Lobo D’Almada, o que levou os índios a enfrentarem “a invasão e ocupação dos seus
territórios por agentes sociais enviados pelo Estado (soldados, missionários, comerciantes,
professores e administradores)” (BAINES, 2004, p. 71).
25
Não computado o período de residência na região dos ascendentes dos “desintrusados”.
110
Por seu turno, Wagley (1988) sustenta que a miscigenação biológica e cultural entre as
populações indígena, européia e africana originou na Amazônia o “caboclo”. Os
“desintrusados” da TIRRS inserem-se nessa denominação, pois 86% da amostra estudada
durante a pesquisa de campo tem parentesco indígena, conforme gráfico nº 5.
Segundo Villares (2009), o Brasil foi ideologicamente concebido como país de um
povo miscigenado (branco, negro e índio), possui acentuada diversidade de culturas e etnias,
convivem em seu território índios, negros, brancos e asiáticos, “são povos, etnias e
comunidades que renascem de coletividades anteriormente ignoradas” (VILLARES, 2009, p.
16). Essa pluralidade, segundo o mesmo autor, é reconhecida e protegida pela Constituição
Federal de 1988.
A TIRSS reflete bem essa pluralidade de etnias, povos e culturas do Brasil. Os não
índios, oriundos historicamente de várias regiões do Brasil, integram a aludida diversidade.
Da análise das teorias da etnicidade, dos conceitos de índio e de miscigenação já
abordados, constatamos que os não índios, embora apresentem 86% de parentesco
consanguíneo ou de afinidade com os índios, não se incluem nesse grupo de pessoas e nem
reivindicam essa condição, pois têm consciência de que não pertencem a uma comunidade
indígena.
Por oportuno, convém conceituar brevemente parentesco. Para Diniz (2009), é o
vínculo existente entre pessoas que descendem umas das outras ou de um mesmo tronco
comum, e também entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro. Segundo essa
autora, o parentesco pode ser natural ou consanguíneo, quando as pessoas estão ligadas umas
às outras pelo mesmo sangue, e por afinidade quando o liame se dá por determinação legal
(art. 1595 do Código Civil), sendo o vínculo jurídico estabelecido entre um consorte,
companheiro e os parentes consanguíneos ou civis do outro, nos termos da lei.
No caso dos não índios da TIRRS, embora esteja presente alto grau de parentesco
consanguíneo e por afinidade, falta a estes o requisito da pertença, sem o qual não é possível
dizer-se integrante de uma determinada etnia ou comunidade indígena. Villares (2009, p. 31)
observa que:
Aquele que se reconheça como de uma coletividade a qual, por sua vez, identifiqueo como descendente dos povos que cá viviam antes da colonização, mas não como
pertencente a ela, não é considerado indígena, pois lhe falta o critério exigido pelo
Estatuto do índio.
111
Villares (2009, p. 30) refere-se ao art. 3º, inciso I, da Lei 6.001/73, que dispõe ser
índio a pessoa de “origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado
como pertencente a um grupo étnico” [...]. Silva (2009, p. 855) também destaca o conceito de
pertença como fundamental para identificação de uma pessoa humana como índio, nesses
termos:
Enfim, o sentimento de pertinência a uma comunidade indígena é que identifica o
índio. A dizer, é índio quem se sente índio. Essa autoidentificação, que se funda no
sentimento de pertinência a uma comunidade indígena e a manutenção dessa
identidade étnica, fundada na continuidade histórica do passado pré-colombiano que
reproduz a mesma cultura, constituem o critério fundamental para a identificação do
índio brasileiro.
Em que pese a forte incidência de parentesco dos “desintrusados” com os índios,
aqueles não se identificam como indígenas e nem se sentem índios, falta-lhes, pois, a
identidade étnica e o sentimento de pertença a uma comunidade indígena. Contudo, convém
registrar que a miscigenação entre índios e não índios foi incentivada pelo estado nacional
desde o início da colonização do Vale do Rio Branco, como uma das estratégias políticas para
se manter a posse da região, conforme excerto da Lei Régia de 4 de abril de 1755, editada
pelo Rei D. José I:
E outrosim prohibo, que os ditos meus Vassalos casados com Indias ou seus
descendentes, sejão tratados com o nome de Caboucolos, ou outro similhante, que
possa ser injurioso; [..] O mesmo se praticará a respeito das Portuguesas, que
casarem com Indios: e a seus filhos, e descendentes, e a todos concedo a mesma
prefferencia para os Officios que houver nas terras, em que viverem; e quando
succeda, que os filhos, ou descendentes destes matrimonios tenhão algum
requerimento perante mim, me farão a saber esta qualidade, para em razão della
mais particularmente os attender [...] (AMAZONAS, s/d).
Por sua vez, Lobo D’Almada (1861), alto funcionário do governo português sugere a
mesma medida, agora especificamente para a colonização do Vale do Rio Branco, de acordo a
passagem de sua obra:
Outro meio de coloniar o rio Branco não só seria permitir em toda liberdade, e
mesmo promover que os soldados casassem com índias deste território; mas excitalos para isso com o donativo de algumas vaccas, e algumas egoas que se lhes dessem
por conta a fazenda real [...]. (Lobo d’Almada, 1861, p. 779).
Koch-Grünberg (2006) tece comentários sobre a miscigenação dos passageiros do
barco em que viajou de Manaus a Boa Vista. Para ele, os viajantes eram de “todos os matizes
entre o branco e o negro” e todos conviviam muito bem, a teor do seguinte relato:
112
A pequena embarcação está lotada de passageiros, de modo que, a noite, mal se
consegue se abrir caminho entre as redes de dormir. Os passageiros são, em parte,
funcionários públicos, em parte latifundiários, em parte lavradores pobres do alto
Rio Branco; a cor de sua pele traz todos os matizes entre o branco e o negro. Reina
aí coisa tão agradável nestes países, apesar de toda a cortesia uma absoluta
irreverência para com toda a diferença racial e social. Quão benéfica seria uma
viagem dessa para todo que, no Velho Mundo, andam por aí de nariz empinado, tão
cônscios de sua dignidade! (KOCH-GRÜNBERG, 2006, p. 30).
Nessa esteira, a cidade de Boa Vista, centro de irradiação e apoio para as atividades
econômicas e sociais do Estado de Roraima, em variadas épocas, é apontada por estudiosos,
visitantes, exploradores, enfim por pessoas que fizeram registros sobre seus habitantes, como
uma cidade que apresenta igualmente um elevado grau de mestiçagem em sua população,
conforme já enfocado.
Toda essa conjuntura vai refletir em um acentuado grau de mestiçagem também dos
“desintrusados” da TIRSS, como pode ser verificado na tabela abaixo:
Quadro 6 - Demonstrativo de parentesco entre índios e não índios “desintrusados”
Nº
Interlocutores
Parentesco
01
João Gualberto Sales
Primos e tio
02
Fani Mota Bezerra
Uma bisavó e duas avós
03
Domício de Souza Cruz
Avó paterna
04
Francisco Leite Pereira
Esposa
05
Emília Sales da Silva
Primos e tio
06
Maria Luizete Coutinho de Queiroz
(esposa do Sr. Altamir Lira de Queiroz - falecido)
Primo
07
Wilson Alves Bezerra
Esposa
08
José Lima Queiroz
Esposa e irmão
09
Nazareno de Souza Lima
Irmão e primo
10
Delci Sales Vieira
Não tem
11
Gêmulo Leite Pereira
Avó e mãe
12
Joaquim Correa de Melo
Não tem
13
Ademar Araújo
Esposa
14
Lorenço Hart
Mãe
15
Odílio de Araújo
Sobrinho
16
Vânia Melo dos Prazeres Araújo
Avó
17
José Félix Correa
Não tem
18
José Leite Pereira
Mãe, avó, nora, sogra
19
Moadir Lucena de Melo
Filhos e esposa
113
20
Roberto José da Costa Neto
Avô
21
Zélio Mota da Silva
Primo e tio
Fonte: Elaborado pelo autor
O gráfico abaixo extraído da tabela em foco revela que 86% dos não índios têm
parentes indígenas.
Fonte: Elaborado pelo autor
Todavia, embora o percentual de parentesco indígena dos “desintrusados”
entrevistados seja de 86%, o laudo antropológico da TIRSS singelamente registra que sete dos
140 pecuaristas da referida área são casados com mulheres indígenas, sem mencionar casos de
parentesco por consaguinidade ou afinidade, conforme o seguinte trecho do Relatório
(FUNAI, s/d) sobre a proposta de demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol:
A área encontra-se hoje ocupada por não índios que, em sua maioria, estão ligados
por laços familiares e que tentam aumentar a posse que detém situando “retiros” na
região e colocando empregados ou os próprios familiares para tomar conta deles.
Dos 140 ocupantes, apenas 35 só tem uma ocupação e não estão ligados por laços
familiares com outros ocupantes. Os demais 105 estão ligados por laços de
parentesco, excluindo 7 que estão casados com mulheres índias.
Pontuamos que o laudo antropológico uma vez mais falhou em questão essencial,
como principal elemento legal definidor de terra indígena e como foi acatado integralmente
pelo ministro relator do julgamento, levou a separação de parentes dentro da terra indígena em
alusão, causando dor, sofrimento e incompreensão entre os atores sociais da TIRSS, conforme
revelam os depoimentos colhidos durante o trabalho de campo. Nesse sentido o Senhor
114
Gêmulo Leite Pereira, 77 anos de idade, nascido e criado na TIRSS, neto de índia com não
índio e igualmente filho de índia com não índio declara:
Sou descendente de índio. A minha convivência com os índios era a coisa mais
maravilhosa que você pode ter na vida. Eu morava perto de uma comunidade, lá não
tinha um índio com menos de vinte anos que não me tomasse a benção. Menino
quando a gente tava saindo e eles chegando da escola pegava na mão de uns quatro
de uma vez, eles benção tio, benção tio, e eu abençoava, porque se fosse abençoar de
um por um ia demorar muito terminar de abençoar (sic).
Por sua vez, o Sr. Francisco Leite Pereira, pai do Sr. Gêmulo Leite Pereira, atualmente
com 98 e anos de idade relata que:
Minha esposa era índia Macuxi. A mãe dela era uma caboca que nem sabia dar bom
dia. Deus me deu 20 filhos, 15 vivos e cinco tá morto. Minha esposa faleceu há
11anos, nós vivemos juntos 67 anos. Olha a maior riqueza, a maior joia que Deus
poderia me dar.[...]. Meu primeiro filho já morreu, mas tem uma família numerosa, a
família dele dá mais de 150 pessoas. [...] a minha convivência com os índios era boa
toda vida. Minha mulher era índia e fora meus filhos de sangue, criei mais 21 índios
como meus filhos(sic).
Em razão da declaração do Sr. Francisco Leite Pereira, é oportuno mencionar que filho
de criação é uma das modalidades de filiação socioafetiva, prevista no art. 227, § 6°, da
CF/88, conforme Veloso (1997), largamente adotada nas relações de convívio social entre
índios e não índios da TIRSS, apontada por alguns estudiosos como mecanismo de exploração
dos índios. Contudo, tal prática é relativizada por Rivièri (apud SANTILLI, 1987/88/89), ao
afirmar que alguns pais de criação exploravam os filhos índios, porém outros os criavam e
educavam com o mesmo tratamento conferido aos filhos biológicos, sem fazer qualquer
diferença, conforme o seguinte trecho de sua obra:
[...] o sistema é aberto a grandes abusos e geralmente a criança torna-se um criado
não remunerado [...]. Eu tenho visto casos em que a discriminação contra filhos de
criação é bem marcante. A criança adotiva fazendo todos os trabalhos braçais como
buscar água, cortar lenha, tomar as refeições em pé na cozinha, e ser hostilizada até
pelos membros mais novos da família. Por outro lado, há muitas crianças cabocas
adotivas que são extremamente bem tratadas e a quem são dadas as mesmas
oportunidades de educação e condições econômicas como qualquer outro membro
da família, e assim a criança cresce com seu status civilizado assumido (RIVIÈRI
apud SANTILLI, 1987/88/89, p. 431-432).
No mesmo sentido de Rivièri (apud SANTILLI, 1987/88/89), Sanches e Veronese
(2012), referindo-se a qualquer criança e não somente a índios, destacam que:
115
Até o advento do instituto da adoção plena, prevista no Código de Menores de 1979,
a situação dos filhos de criação era extremamente complexa, confusa e ambígua. Em
certas ocasiões eram tidos como filhos de família, em outras como os serviçais da
casa onde eram criados (SANCHES; VERONESE, 2012, p. 34).
Welter (2003, p.56) aduz que, ao criar, educar e tratar publicamente uma criança ou
adolescente como filho, com quem não se tem vínculo biológico, a pessoa reconhece a
condição de filho, nestes termos:
A filiação afetiva também se corporifica naqueles casos em que, mesmo não
havendo vínculo biológico, alguém educa uma criança ou adolescente por mera
opção, denominando filho de criação, abrigando em um lar, tendo por fundamento o
amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto. É
dizer, quando uma pessoa, constante e publicamente, tratou um filho como seu,
quando o apresentou como tal em sua família e na solenidade, quando na qualidade
de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e sua educação, é
impossível não dizer que o reconheceu.
No mesmo sentido, é a seguinte a lição de Veloso (1997, p.214):
Quem acolhe, protege, educa, orienta, repreende, veste, alimenta, quem ama e cria
uma criança, é pai. Pai de fato, mas, sem dúvida, pai. O pai de criação tem posse de
estado com relação a seu filho de criação. Há nesta relação uma realidade
sociológica e afetiva que o direito tem de enxergar e socorrer. O que cria, o que fica
no lugar do pai, tem direitos e deveres para com a criança, observado o que for
melhor para os interesses desta.
Nessa mesma linha de compreensão, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, em 23/6/2004, decidiu, por maioria de votos, dar provimento ao
recurso de Apelação Cível de n. 70008795775, declarando o estado de filho do recorrente, um
filho adotivo informal (filho de criação), junto aos seus genitores socioafetivos e
determinando o seu registro civil. Conforme o acórdão:
A paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha
de quem ama e tem afeto, o que não acontece, à vezes, com quem apenas é a fonte
geratriz. Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica
e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização,
mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares.
Uma de suas formas é a ‘posse do estado de filho’, que é a exteriorização da
condição filial, seja por levar o nome, seja por aceito como tal pela sociedade, com
visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a
uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica,
imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o
‘estado de filho afetivo’, que além do nome, que não é decisivo, ressalta o
tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo
indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz
de família impõem, em afago à solidariedade humana e veneração respeitosa ao
princípio da dignidade da pessoa, que se supere a formalidade processual,
determinando o registro da filiação do autor, com veredicto declaratório nesta
116
investigação de paternidade socioafetiva, e todos os seus consectários. Apelação
provida, por maioria.
Dessa forma, de acordo com o registro de Rivièri (apud SANTILLI, 1987/88/89, 431432), é inapropriado fazer juízos generalizados de que todos os filhos de criação indígenas
eram explorados e maltratados pelos pais socioafetivos ou todos eram respeitados e bem
cuidados. Neste particular, a exemplo de toda relação humana, o tratamento a essa espécie de
filhos vai se dá de acordo com a formação humana e moral dos componentes da família
socioafetiva. Atualmente, consoante o art. 227, §6º, da CF/88, nenhuma diferença entre filhos
biológicos e socioafetivos pode ser feita, e a paternidade pode ser formalmente reconhecida a
qualquer tempo, cuja ação é imprescritível, de acordo com a Súmula 149 do STF (BRASIL.
Supremo Tribunal Federal).
Na questão da miscigenação, a Senhora Fani Mota Bezerra, neta de índios com nãoíndios, por ambas as linhas de parentesco, casada com não índio, nascida e criada na TIRSS,
narra:
Meu avô materno Severino Pereira da Silva, conhecido como “Severino Mineiro”,
era da Paraíba e casou com minha avó Simarí, índia Macuxi. Da parte do meu pai,
teve a vovó Clotildes, da Família Lima, que era descendente de Wapixana e casou
com meu avô, Vítor da Silva Mota, que era filho do Coronel Mota. Nasci e me criei
na Raposa Serra do Sol, me casei e criei meus filhos lá também, trabalhamos tudo,
nunca saí de lá [...] meu avô Vítor Mota foi assassinado lá por uma guerrilha de
negros da Guiana. Ele e os macuxis estavam lá defendendo a fronteira dos
guianenses que estavam invadindo lá e foram mortos. Meu avô foi sepultado lá
mesmo no Ailã (sic).
O percentual apresentado na tabela nº 9, somado aos excertos de depoimentos em
epígrafes, possibilita perceber quão intricada, visceral estava ou está à miscigenação na
Raposa Serra do Sol, com relação de parentesco, de convivência íntima e de afeto entre alguns
índios e não índios. Nem a “desintrusão” foi capaz de por fim, visto que há casos de índios
que mantêm esse convívio, por meio de visita a parentes e amigos não índios.
Apesar desse alto componente de miscigenação ora demonstrado, o laudo
antropológico da FUNAI à página 41 singelamente faz menção apenas a sete não índios
casados com mulheres índias, sendo totalmente silente quanto aos netos, filhos, bisnetos, tios,
irmãos, sobrinhos, genros, sogros, cunhados, enfim toda essa relação familiar envolvendo
parentesco por consaguinidade e afinidade verificada durante a pesquisa de campo deste
trabalho.
Dessa forma, os processos de demarcação e homologação, bem como o judicial, até
culminar na “desintrusão”, ignoraram, além dos aspectos já abordados, a realidade social
117
constituída pela forte relação de parentesco entre alguns índios e não índios no espaço
geográfico da TIRSS.
118
5 DANOS MORAIS E A “DESINTRUSÃO”
A Carta Magna, em seu artigo 5º, V e X, consagrou, como direito e garantia
fundamental do cidadão, a indenização por dano moral decorrente da violação à imagem e à
honra. Por seu turno, o Código Civil no seu Art. 186 dispõe que “aquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda
que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Por essa perspectiva e com base no exposto até o momento, ficou evidente que os não
índios da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, desde o alvorecer da colonização do Vale do
Rio Branco, foram trazidos ou foram incentivados por meio de políticas estatais a fixarem-se
nessa região a serviço e em consonância aos interesses do Estado, com ênfase, primeiro para
garantir a posse deste território geográfico para ele (estado nacional) e, segundo, com o fim de
produzir carne para sustentar a demanda gerada pela exploração da borracha na Amazônia,
em seu apogeu, maior fonte de divisa para fazenda pública brasileira (PRADO JÚNIOR apud
BATISTA, 2007).
A característica principal dos não índios da TIRSS é a ascendência nordestina. Seus
pais, avós e bisavós foram atraídos de seus estados de origem, à época das imigrações,
castigados por secas rigorosas, por isso mesmo eram pessoas pobres, com baixa escolaridade
e sofridos. Suas famílias, secularmente, foram estabelecendo-se na TIRSS. Esse espaço
temporal proporcionou um forte entrelaçamento interétnico entre não índios e as etnias da
terra indígena em estudo, especialmente Macuxi e Wapixana, de modo que 86% dos
“desintrusados” entrevistados têm alguma relação de parentesco com os indígenas dessas
etnias (Cf. gráfico nº 5).
A retirada das pessoas consideradas não índias da TIRSS foi levada a efeito para o
Estado dar efetividade ao art. 231 da CF e 67 da ADCT e, assim, saldar parte do passivo
social que contraiu com os índios ao longo de sua história. Passivo oriundo da exploração e
maus-tratos, conforme já apresentado. Todavia, com a retirada compulsória dos não índios, o
Estado invadiu a esfera patrimonial destes, com a violação de normas, princípios morais,
éticos e jurídicos, dando causa a dano moral.
Assim neste capítulo discutiremos a responsabilidade civil do estado e sua conduta
antiética, o Princípio da dignidade da pessoa humana, os sentidos derivantes do vocábulo
“intrusão” e o dano moral propriamente dito.
119
5.1 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO CASO DA TIRSS
Antes de iniciar o estudo sobre o dano moral experimentado pelos “desintrusados” em
virtude da ação estatal, justificada na necessidade de se imprimir efetividade à norma inserta
no artigo 231 da Constituição Federal, que dispõe ser competência da união a demarcação das
terras indígenas, é necessário verificar a possibilidade de o Estado ser responsabilizado. Há
duas indagações implícitas na problemática exposta: o Estado pode cometer ato ilícito ao dar
cumprimento a comandos emanados do seu próprio texto constitucional? Mesmo sem cometer
ato ilícito, mas no cumprimento dos referidos mandamentos, pode causar dano indenizável a
terceiros? As duas indagações ganham maior relevo em face da seguinte vedação expressa no
art. 231, § 6º do texto Constitucional Federal:
São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto
a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a
exploração das riquezas naturais do solo dos rios e dos lagos nelas existentes,
ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser a lei, não
gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações contra a União, salvo
na forma da lei, quanto às benfeitorias, derivadas da ocupação de boa-fé (grifo
nosso).
A leitura apressada do dispositivo constitucional em epígrafe pode levar a errônea
interpretação de ser incabível qualquer indenização decorrente de demarcações de terras
indígenas. Todavia, ao analisar acuradamente o referido texto constitucional, verificamos que
a vedação de indenizar imposta na norma em comento incide especificamente quanto à
declaração de nulidade e extinção dos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a
posse das terras, ou seja, sobre títulos definitivos de propriedade, licenças de ocupação, etc. A
vedação não alcança outros atos praticados durante o processo de identificação e demarcação
de terras indígenas que, porventura, causem lesão a direitos de terceiros. Desse modo, a
resposta a ambas as indagações acima é positiva.
É conveniente anotar que as normas restritivas de direitos não devem receber
interpretação ampliativa, pois “segundo as regras de hermenêutica jurídica, é vedado conferir
a uma norma restritiva de direitos uma interpretação ampliativa, sob pena de violação à esfera
de liberdade individual” (FERREIRA; VIEIRA, 2010, p. 3). Nesse sentido, Maximiliano
(1994, p. 313) ensina: “interpretam-se estritamente os dispositivos que instituem exceções às
regras gerais firmadas pela Constituição. Assim se entendem as que favorecem algumas
profissões, classes, ou indivíduos, excluem outros, estabelecem incompatibilidades,
asseguram prerrogativas”. Seguindo essa linha de pensamento, Meirelles (2006, p.443)
120
adverte que norma que encerre "uma restrição de direito, não pode ser interpretada
ampliativamente". Por seu lado, Marinela (2007, p.12) observa que a interpretação extensiva
não pode ser aplicada por ser própria do direito privado e dá origem a uma nova norma não
expressa no texto administrativo. Já Batista Júnior (2012, p. 510) registra que a interpretação
restritiva é aplicada para se limitar o alcance de incidência da norma. Quando utilizada em sua
redação fórmula demasiadamente ampla, busca-se impedir a produção de efeitos contrários ao
seu espírito, restringe-se “o sentido literal expresso, para que se obtenha o verdadeiro sentido
da lei”.
A jurisprudência pátria, nesse particular, não discrepa da doutrina, consoante
exemplifica o seguinte excerto de aresto do Egrégio Tribunal Regional Federal da 2ª Região:
“quando se trata de norma restritiva de direitos, a interpretação dada não pode ser elástica, sob
pena
de
violação
aos
direitos
fundamentais
envolvidos”
(BRASIL.
TRF,
AG:
201102010062858).
Dessa forma, a norma inserta no art. 231, § 6º da CF/88, não pode receber
interpretação extensiva para impedir que os não índios “desintrusados” da TIRSS postulem as
indenizações que entenderem cabíveis, desde que não se refiram especificamente sobre
declaração de nulidade de seus títulos de terra. Ademais, o Estado deve perseguir o equilíbrio
entre suas prerrogativas e o direito individual dos administrados, com a finalidade de se
alcançar o bem comum. Em outras palavras, para dar cumprimento à citada norma
constitucional, o Estado deveria causar o menor sofrimento possível aos não índios, de acordo
com a seguinte lição de Batista Júnior (2012, p. 506):
Em linhas gerais, se o objetivo primacial da administração pública é o bem comum,
sempre que entrar em conflito o direito do indivíduo e o interesse da coletividade, há
de prevalecer este último, nos termos da lei. Ao aplicador da lei, porém, compete
interpretá-la de modo a estabelecer o equilíbrio entre os privilégios estatais e os
direitos individuais, sem perder de vista a necessidade de certa posição de
supremacia da administração pública se atingidos direitos e liberdades fundamentais
do administrado, nas faixas legalmente travejadas e identificadas na interpretação,
atendido o desiderato requerido pelo bem comum, o sentido deve ser o de preservar
a ideia de menor sacrifício possível do administrado para o cumprimento de
determinada finalidade administrativa. Não se pode desprezar, no entanto, que os
vetores garantísticos, da mesma forma, iluminam a interpretação, afastando,
tendencialmente, leituras das leis que possibilitem a ofensa ao cerne de direitos e
liberdades fundamentais.
É importante repisar que a responsabilidade civil do Estado para com os não índios
não decorre, de per si, da demarcação da terra em indígena, pois esta vem ordenada no texto
constitucional, mas do dano causado a estes em razão do ato estatal. O Estado poderia ter
121
agido da forma mais justa e respeitável possível, ainda assim incidiria na obrigação de reparar
os danos causados, de acordo com a seguinte lição:
Pode, eventualmente, o Estado vir a lesar bem juridicamente protegido para
satisfazer um interesse público, mediante conduta comissiva legítima e que sequer é
perigosa. É evidente que em tal caso não haveria cogitar de culpa, dolo, culpa do
serviço ou qualquer traço relacionado com a figura da responsabilidade subjetiva
(que supõe sempre ilicitude). Contudo, à toda evidência, o princípio da isonomia
estaria a exigir reparação em prol de quem foi lesado, a fim de que se satisfizesse o
interesse da coletividade. Quem aufere os cômodos deve suportar os correlatos ônus.
Se a sociedade, encarnada juridicamente no Estado, colhe os proveitos, há de arcar
com os gravames econômicos que infligiu a alguns para o benefício de todos
(MELLO, 1993, p. 446).
A responsabilidade do Estado por ato lícito, segundo Mello (Ibdem., p. 432), ocorre
quando o ente estatal, no exercício de poder legitimamente deferido, causa lesão à esfera
jurídica dos administrados, indiretamente, como simples consequência da ação, ou seja:
há casos em que o Estado é autorizado pelo direito à prática de certos atos que não
tem por conteúdo próprio sacrificar direito de outrem. Sem embargo o exercício
destes atos pode vir a atingir direitos alheios, violando-os, como mero subproduto,
como simples resultado ou sequela de uma ação legítima.
É o caso da demarcação e retirada dos não índios da TIRSS, pois, por estes atos em si
mesmos, o Estado não tinha o objetivo deliberado de prejudicá-los, mas os prejudicou como
reflexo da sua ação legítima de demarcação. Todavia, alguns atos secundários da
administração, neste caso, podem ser classificados de ilegítimos a exemplo do pagamento
irrisório por benfeitorias de boa-fé, que causou revolta em todos os interlocutores.
Mello prossegue afirmando que, quando a conduta geradora do dano é ilegítima, com
muito mais razão deve o Estado ser responsabilizado. Afinal, tanto na conduta legítima quanto
na ilegítima, o administrado não tem como escapar à ação estatal, fica a mercê do poder do
Estado, podendo haver responsabilidade objetiva ou subjetiva da Administração.
Para a incidência da responsabilidade objetiva basta a correlação entre o ato estatal e
o dano causado (nexo causal), decorrente da Teoria do Risco Administrativo adotada pelo
direito brasileiro no art. 37, §6º da CF/88. Como lecionam Meirelles (2006) e Cavalieri
(2010), dentre outros, essa teoria se fundamenta no risco que a atividade administrativa causa
aos administrados e na possibilidade de infligir dano apenas a determinados membros da
comunidade, impondo-lhes encargos não suportados pelos demais. Com a finalidade de
compensar esse encargo individual, os membros da sociedade concorrem para a reparação do
dano por meio da fazenda pública, a partilha dos encargos leva à perfeita justiça distributiva.
122
Por seu lado, Mello (1993) assevera que, em se tratando de responsabilidade objetiva, o
Estado só se exime de reparar o dano se estiver ausente o nexo de causalidade, ou seja, o
liame entre o comportamento comissivo ou omissivo e o dano, isto é, só se isenta de
responder se não deu causa à lesão, se a situação de risco não existiu ou se existiu não teve
potencial danoso. “Fora daí responderá sempre. Em suma: realizados os pressupostos da
responsabilidade objetiva não há evasão possível” (MELLO, 1993, p. 456).
Desse modo, em virtude da natureza restritiva das normas de direito administrativo e
da responsabilidade objetiva, com fundamento na teoria do risco administrativo, adotada pelo
Estado brasileiro, bem como por não se discutir que a demarcação e a retirada compulsória
dos não índios foram atos estatais, restando indubitável o nexo causal. Assim, o Estado pode
ser acionado para reparar, sob o manto protetor da responsabilidade objetiva, os danos
causados aos não índios devido à sua ação política e administrativa no caso da TIRSS.
Entretanto, pode-se cogitar também em hipótese de responsabilidade subjetiva. Esta,
segundo Mello (1993, p.440), derivada da ideia denominada pelo direito francês de faute du
service, onde é necessário que a conduta “geradora de dano revele deliberação na prática do
comportamento proibido ou desatendimento indesejado dos padrões de empenho, atenção ou
habilidade normais (culpa) legalmente exigíveis, de tal sorte que o direito em uma ou outra
hipótese resulta transgredido.” Por esse motivo, consoante este autor, a responsabilidade se
origina de comportamento ilícito do Estado. No caso da TIRSS, esta ilicitude está presente
nas indenizações pagas pelas benfeitorias de boa-fé que, de acordo com os interlocutores,
foram viciadas por falta de avaliação que revelasse o real valor dos bens. Nesse passo,
Meirelles (2006) leciona que a indenização por dano deve alcançar o que a vítima perdeu, o
que despendeu e o que deixou de ganhar em razão do ato danoso da Administração, e
conforme a narrativa dos interlocutores tais critérios não foram observados. Sublinha-se que
não se trata neste trabalho de complementação ou revisão do valor já pago pelas referidas
benfeitorias, que seria objeto de dano material. Trata-se de dano moral devido à dor, a revolta,
ao sentimento de humilhação e de impotência experimentados como reflexos do pagamento a
menor realizado pelas benfeitorias em alusão.
5.1.1 A ética e o comportamento do Estado na “desintrusão”
Convém tecer também breve comentário sobre ética e moral, no contexto da
responsabilidade civil, posto que no caso das demarcações da TIRSS, o Estado acabou por
123
violar princípios éticos e normas morais. Nesse passo, convém relembrar, segundo foi
enfocado nos capítulos anteriores deste trabalho, que o Estado incentivou, apoiou e, em
muitos casos, financiou a fixação dos não índios na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Contudo, em novo posicionamento político garantista dos direitos dos índios e com o objetivo
de saldar a dívida social contraída com estes, impôs-se como obrigação, inserta no art. 231 da
CF/1988, a identificação e demarcação das terras indígenas. Com esse desiderato, o Estado
voltou sua atenção apenas para garantir o direito dos índios, dando um giro de 180º em sua
política de terras, ou seja, deixou as ações desenvolvidas para fixar os não índios na terra,
passando a aplicar medidas para retirá-los das mesmas, ocupadas em virtude daquelas
políticas preteritamente desenvolvidas. De outro modo, a União Federal passou a ignorar o
direito dos não índios, como se o Estado Nacional não fosse o responsável pela fixação destes
nas terras em comento, passando a dispensar-lhes tratamento indigno, desconhecendo que
estes estiveram durante mais de um século a seu serviço.
Por tudo isso, é oportuno desenvolver breve estudo sobre a ética e comparar alguns de
seus conceitos e abordagens com a conduta do Estado no enfrentamento da questão da TIRSS,
devido o Estado Brasileiro haver se obrigado, na sua Constituição, a observar, nas relações
com seus cidadãos, postulados éticos e morais.
Etimologicamente, a palavra ética tem origem no vocábulo grego ethos que significa
local de morada. Posteriormente, passou a designar a atitude do homem perante a sociedade
(CORUJA, 2000).
A Ética no pensamento dos antigos gregos, Sócrates, Platão e Aristóteles, é a ciência
da moral, estuda os costumes de uma sociedade, estabelece juízos de valor sobre a conduta
social do indivíduo, sendo denominada ciência do bem ou da felicidade (ARISTÓTELES,
2011).
Segundo Aristóteles, a felicidade é a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do
mundo, embora seja um sentimento ou uma sensação interna, para alcançá-la é necessário
“bens exteriores, pois é impossível ou pelo menos não é fácil, praticar ações nobres sem os
devidos meios” (ARISTÓTELES, 2011, p. 26).
A importância de se resgatar a imagem do homem, que deveria se voltar para o seu
interior, “conhecer a si mesmo”, recuperar o seu valor e dignidade moral também foi tema dos
discursos de Socrátes. Aspectos que serviriam de fundamento para a formação de um cidadão
de bem e de uma polis justa. Assim, a ética tem sua gênese no infinito estudo do bem, da
virtude, do valor da pessoa e da sociedade justa (PEGORARO, 2010, p. 19).
124
Para Platão, o Estado tem papel preponderante na formação do cidadão e na
construção de uma sociedade justa. Segundo seu pensamento clássico, o objetivo nuclear do
Estado é formar cidadãos cada vez melhores e “Estabelecer uma ordem justa na qual cada
cidadão possa participar no bem público e levar uma existência justa, sábia na medida de suas
capacidades. A lei proíbe somente aquilo que é contrário às condições da vida social justa”
(PEGORARO, 2010, p. 35).
Por seu lado, o filósofo alemão Hans Kelsen (1987, p. 63) define a moral como “um
conjunto de normas sociais consuetudinárias, não coercitivas, de cunho axiológico, que
objetivam regular a conduta dos homens entre si”.
Embora Kelsen (1987) posicione as normas morais dentro dos costumes
(consuetudinárias), muitas delas foram, no decorrer do tempo, positivadas, constando
expressamente de leis em sentido estrito, aqui entre nós, por exemplo, a Constituição Federal
e o Código Civil albergam em seu conteúdo inúmeras normas morais, algumas já enfocadas
neste trabalho.
Por seu turno, Nelson Saldanha, ao discorrer sobre o conteúdo da ética, compreende-a
não como ciência da moral, mas como realidade, responsável pela consciência normativa e
valorativa da sociedade, conforme o seguinte excerto de sua obra:
É equívoco pensar na Ética como “ciência da moral” como alguns fazem: chega-se a
mencioná-la como “teoria do comportamento”. Semelhante concepção esvazia o
termo ética, do seu grosso conteúdo humano e o encaminha para escolasticismos
estéreis. Somente com a permanência desse conteúdo, e com a alusão às raízes
etimológicas, entenderemos a ética como realidade, que é por um lado consciência
normativa (e axiológicas) e por outra experiência situada (SALDANHA, 1998, p. 6).
Já para Volnei Carlin, hodiernamente, a ética encerra dois significados:
[...] em sentido amplo, relaciona-se com a ciência do direito e a doutrina moral, e em
sentido estrito, refere-se aos atos humanos e às normas que constituem determinado
sistema de conduta moral, integrando-se, pois, única e especificamente com a
doutrina moral (apud NALINI, 1995, p. 19).
Dworkin (apud CARVALHO NETTO, 2011, p. 147) pontifica que não é moralmente
correto sacrificar, por sua relevância, alguns interesses individuais em prol da sociedade.
A maioria dos atos legítimos de qualquer governo envolve a negociação de
interesses de diferentes pessoas; tais atos beneficiam alguns cidadãos e
desfavorecem outros para que se incremente o bem estar da comunidade como um
todo. [...] Mas certos interesses de pessoas em particular são tão importantes que
seria errado – moralmente errado – que a comunidade os sacrificasse apenas para
assegurar um benefício generalizado.
125
A ética e a moral exigem, pois, uma conduta, reta, leal, franca, respeitosa, que
imprima segurança nas relações políticas e sociais, enfim, virtuosa, tanto do cidadão quanto
do Estado, baseado nos valores mais elevados da justiça.
Todavia, no caso da TIRSS, o Estado deixou de observar os referidos valores ao
incentivar e apoiar a conduta dos não índios na ocupação das terras indígenas e depois
repassar a responsabilidade apenas para estes, rotulando-os de “intrusos” e retirando-os de
suas casas, dispensando-lhes tratamento indigno, ou seja, os valores do bem, da felicidade, da
justiça, da conduta reta, da dignidade humana, objetos da ética, foram ignorados na referida
ação estatal. Por outro lado, o sacrifício do pagamento da dívida social do Estado para com os
índios, que deveria ser dividido com todos da sociedade, com indenizações que
compensassem a dor experimentada, foi imposto apenas aos não índios com residências na
área delimitada como terra indígena. Ademais, além de o Estado não haver distribuído o ônus
da dívida, imputou a estes má-fé e os rotulou de intrusos, ferindo-se com isso princípios
éticos.
A falta de ética estatal, ora em discussão, não se dá em razão do cumprimento do
mandamento constitucional de garantir a posse indígena das terras, posto que essa obrigação,
em última ratio foi imposta pelo povo brasileiro durante a Assembleia Nacional Constituinte,
mas sim, pelo apontado tratamento indigno conferido aos “desintrusados”, violando para
tanto, exemplificadamente, os seguintes princípios: da moralidade, da boa-fé, da confiança, da
segurança jurídica, da proporcionalidade, do contraditório, além do da dignidade da pessoa
humana a ser tratado em item próprio. Em síntese, o Estado se descurou de observar seus
próprios postulados éticos que o levariam a praticar conduta moralmente correta, de acordo
com as lições vistas acima.
Nesse diapasão, segundo Mello (1993), à luz do princípio da moralidade
administrativa, a Administração Pública tem que observar na sua prática princípios éticos.
Violar tais princípios implica na violação do próprio direito. Ora, tal princípio foi violado na
retirada dos não índios da TIRSS porque estes foram tratados como invasores, o Estado nem
sequer os assentou prontamente em outro local, fazendo com que empobrecessem, conforme
depoimentos colhidos no trabalho de campo.
Quanto ao princípio da boa-fé, o mesmo autor esclarece que “a administração haverá
de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza sendo-lhe interdito
qualquer comportamento astucioso eivado de malícia, produzido de maneira a confundir,
dificultar, minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos” (MELLO, 1993, p. 59-
126
60). Este princípio, como observa Mello (1993), está contido no próprio cânone da
moralidade. No caso concreto, da demarcação e retirada dos não índios da TIRSS, verifica-se
que os “desintrusados” entrevistados sentem-se traídos pelo governo, pois eram pecuaristas,
instalados no interesse do próprio Estado, e foram retirados das terras que ocupavam com o
rótulo de intrusos, recebendo apenas pagamento pelas benfeitorias realizadas, cuja avaliação
foi feita unilateralmente pela FUNAI. Conforme seus depoimentos, a referida indenização
ficou muito aquém dos gastos que realizaram para erguê-las.
O governo, segundo os pecuaristas entrevistados, sequer informou os critérios
utilizados para chegar aos valores pagos. Convém acrescentar que os não índios, por seu lado,
agiram de boa-fé. Circunstância reconhecida pelo próprio Estado, pois as indenizações,
embora irrisórias, segundo os “desintrusados”, foram pagas pautando-se no princípio de boafé, tal como previsto no art. 231, §6º, da Constituição Federal.
No que diz respeito ao princípio da confiança, de acordo com Di Pietro (2012, p. 88),
“a confiança que se protege é aquela que o particular deposita na Administração Pública. O
particular confia que a conduta da administração esteja correta, exatamente de acordo com a
lei e com o direito”. No caso da Raposa Serra do Sol, os não índios declararam acreditar que a
ocupação das terras estava correta, pois muitos tinham, inclusive, títulos definitivos expedidos
pelo Estado. Todavia, a confiança foi quebrada quando o Estado declarou nulo tais títulos e
procedeu a retirada compulsória dos não índios da TIRSS, conforme acórdão do julgamento
do Processo da Petição Nº 3.388-4 (ação popular).
Por oportuno, observamos que, embora outros autores, a exemplo de Cunha (1987),
afirmem que a emissão de títulos definitivos pelo Estado do Amazonas, incidindo sobre a
TIRSS seja ilegal, acreditamos que o referido ato foi realizado conforme o ordenamento
jurídico da época (Constituição de 1891), sendo, por isso, legal, como já esclarecido no
capítulo anterior. O que não se pode negar, conforme menciona Barreto (2006), é que a
referida emissão gerou conflitos de interesse entre índios, Estados-membros e particulares
pela posse da terra. Todavia, mesmo que considerássemos a emissão dos referidos títulos e a
ocupação da terra como ilegais, isto não poderia atingir a honorabilidade dos não índios, por
ser ato privativo da administração. Assim, os não índios não poderiam sofrer qualquer
reprimenda e nem serem tomados por invasores ou intrusos em razão da permissão estatal.
Não se quer dizer com isso que o Estado não devesse demarcar as referidas terras, pois
determinado agora pelo novo ordenamento, sob as luzes da constituição social de 1988, na
denominação de Bonavides (2009), mas o ato administrativo deveria ter sido realizado com
mais respeito aos não índios e seus direitos.
127
Quanto ao princípio do contraditório, Marinela (2007, p. 48) leciona que para se dar
efetividade ao mesmo é necessário permitir que o administrado influa no convencimento da
autoridade que irá decidir a contenda administrativa. Por esse princípio, diz a mesma autora, a
parte socialmente mais fraca fica em condições de igualdade inicial com a mais forte,
impedindo que a igualdade de direitos “transforme-se em desigualdade de fato, por causa da
inferioridade cultural ou econômica de uma das partes”. Segundo os não índios entrevistados,
este princípio foi violado porque não foram ouvidos, nem mesmo puderam se contrapor ao
quantum indenizatório fixado pelo Estado para as benfeitorias de boa-fé. Nas palavras do
senhor Moadir Lucena de Melo, a indenização foi “uma coisa absurda, ridícula. Aceita porque
tem que aceitar [...]”.
Na esteira da exemplificação de alguns princípios violados, cumpre ainda tecer breve
nota sobre o princípio da proporcionalidade, o qual, segundo Marinela (2007, p. 48), exige
equilíbrio entre os meios utilizados pela administração e os objetivos que ela pretende
alcançar, de acordo com padrões comuns da sociedade local. Exige-se também uma relação de
equilíbrio entre o sacrifício imposto ao interesse de uns e a vantagem geral obtida, para não
tornar a prestação excessivamente onerosa. Contudo, no caso em estudo, o Estado reconheceu
plenamente o direito dos índios, mas não o fez na mesma proporção em relação aos não
índios, pois estes tiveram que sair do lugar em que nasceram e construíram sua história de
vida, deixando o fruto do seu trabalho, inclusive dos seus pais, avós e bisavós, saindo
empobrecidos, como demonstra a Tabela 04, relativa ao rebanho de gado dos “desintrusados”.
Com o tratamento dispensado aos não índios “desintrusados” da TIRSS, o Estado
Brasileiro acabou por ignorar postulados éticos e morais indispensáveis para cumprir um dos
seus objetivos republicanos: “ promover o bem de todos”, expressamente inscrito no artigo 3°,
IV, da sua lei fundante. O governo não cuidou da felicidade, do bem estar, não negociou e
sacrificou quase inteiramente o direito dos não índios. Para atender os postulados éticos e
morais, o governo deveria buscar uma solução negociada, indenizar justamente os não índios
e assentá-los dignamente em outras terras logo após a retirada, resguardando seus bens, sua
honra e sua dignidade.
Desse modo, não fora razoável, que para saldar a dívida social com os índios, o Estado
tenha imposto o sacrifício apenas aos “desintrusados”. A dívida é da sociedade brasileira.
Como ensina Mello: “Quem aufere os cômodos deve suportar os correlatos ônus. Se a
sociedade, encarnada juridicamente no Estado, colhe os proveitos, há de arcar com os
gravames econômicos que infligiu a alguns para o benefício de todos” (MELLO, 1993, p.
128
446). Assim, a fazenda pública deveria ser responsabilizada para pagar a justa indenização aos
não índios, dividindo com isso, entre todos da sociedade, o ônus do débito social em alusão.
Não podemos ignorar que o malferimento aos direitos individuais acaba por atingir a
própria personalidade da vítima, segundo assevera Ihering: “[...] não atacam apenas os meus
bens, mas sim a minha personalidade, e, se tenho o direito e o dever de me defender quando
sou atacado, neste caso, só o conflito deste dever com o interesse superior da minha vida
pode, às vezes, motivar uma outra decisão” (IHERING, 2012, p. 27).
Com o fim de sustentar a importância de se observar os direitos individuais como
medida de justiça, Ihering ainda recorre à clássica obra de Willian Shakespeare: “O Mercador
de Veneza”. Faz isso para acentuar que o homem injustiçado fica moralmente abalado e o
próprio Estado responsável pela injustiça também sai humilhado.
Se, finalmente, sucumbe-se sob o peso da sentença do juiz, que anula o seu direito
por uma indecorosa zombaria, se o vemos esmagado pela dor mais cruel, coberto
pelo ridículo e completamente abatido, afastar-se vacilando, podemos então afirmar
nesse sentimento que o direito de Veneza está humilhado em sua pessoa, que não é o
judeu Shylock que se afasta com dificuldade, mas um homem que se representa o
desgraçado judeu da Idade Média, esse pária da sociedade que em vão grita: Justiça!
Essa opressão do direito de que ele é vítima não é, contudo, o lado mais trágico nem
mais comovedor da sua sorte; o que há de mais horrível é que esse homem, que esse
infeliz judeu da Idade Média, crê no direito, podendo-se dizer mesmo que como um
cristão (IHERING, 2012, p. 61).
A exemplo do judeu de Veneza, os não índios acreditaram no Estado, por isso se
sentem humilhados, injustiçados, com a estima pessoal, a imagem e a honra abalados. Enfim,
sua personalidade foi atingida porque o Estado deixou de observar, em relação a eles, seus
postulados éticos e morais.
5.2. DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM
RELAÇÃO AOS NÃO ÍNDIOS “DESINTRUSADOS” DA TIRSS
Por sua importância, merece tratamento destacado o princípio da dignidade da pessoa
humana no caso da demarcação e retirada dos não índios da TIRSS. Este princípio, conforme
o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal/1988, é um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil.
Segundo Pereira (apud LUNARDI, 2012, p. 160), a dignidade é um macro princípio
em que estão “contidos outros princípios e valores essenciais como a liberdade, autonomia
privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade”. Traz em seu conteúdo uma coleção
129
de princípios éticos. Por essa razão, violar a dignidade da pessoa humana significa contrariar
todo o nosso ordenamento jurídico.
Kant (apud Sarlet, 2010) realça o valor peculiar e inestimável conferido à dignidade da
pessoa humana, ao afirmar:
No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um
preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma
coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela
dignidade... Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal
disposição de espírito e põe na infinitamente acima de todo o preço Nunca ela
poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço,
sem de qualquer modo ferir sua santidade. (SARLET, 2010, p. 38).
O próprio Sarlet preleciona que na hipótese de conflitos entre dignidades de pessoas
diferentes é necessário buscar uma harmonização ou ponderação “que necessariamente
implica a hierarquização dos bens em rota conflitiva, neste caso, do mesmo bem (dignidade
concretamente atribuída a dois ou mais titulares)” (SARLET, 2010, p. 143).
Não se pode olvidar que no caso da TIRSS, o conflito envolvia a dignidade de pessoas
diferentes, de índios e de não índios, todavia, no julgamento, respeitosamente, o STF não fez
o exercício de ponderação, ao menos de forma eficaz, buscando um ponto de equilíbrio entre
as duas dignidades envolvidas. Com efeito, se compararmos alegoricamente o julgamento
com um pêndulo, verifica-se que este pendeu completamente na direção da dignidade dos
índios, afastando-se completamente da dignidade dos não índios “desintrusados”.
É importante relembrar que os não índios entrevistados, majoritariamente
descendentes de nordestinos pobres, que chegaram à região expulsos de seus Estados de
origem pelas secas e atraídos pelo governo, explorados e maltratados na mesma proporção
que os índios, deveriam, por isso, receber semelhante proteção. Nesse passo, é bom sublinhar
que o Estado não só tem a obrigação, como também é responsável por desenvolver as
condições para o respeito à pessoa humana, como ensina Chaim Perelman (apud NUNES,
2002, p. 143):
Assim também o Estado, incumbido de proteger esses direitos e fazer que se
respeitem as ações correlativas, não é só por sua vez obrigado a abster-se de ofender
esses direitos, mas tem também a obrigação positiva da manutenção da ordem. Ele
tem também a obrigação de criar as condições favoráveis ao respeito à pessoa por
parte de todos os que dependem de sua soberania.
Nesse sentido, Sarlet defende:
130
O princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do dever de
respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e
removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com
dignidade. Da dupla função de proteção e defesa segue também o dever de
implementar medidas de precaução procedimentais e organizacionais no sentido de
evitar uma lesão da dignidade e dos direitos fundamentais ou, quando isto não
ocorrer, com o intuito de reconhecer e fazer cessar (ainda para efeitos simbólicos),
ou de acordo com as circunstâncias, minimizar os efeitos das violações, inclusive
assegurando a reparação dos danos (SARLET, 2010, p. 127).
Por seu turno, Barroso (2012, p. 66) leciona que a dignidade da pessoa humana, na
solução dos conflitos de interesse, tem um papel interpretativo, atuando como uma bússola
para resolver as tensões e colisões entre direitos fundamentais e metas coletivas. Afirma,
ainda, que “qualquer lei que viole a dignidade, seja em abstrato ou em concreto, será nula”
(Ibidem).
No caso da TIRSS, não se pode dizer que a dignidade dos não índios “desintrusados”
foi respeitada. Ao revés, o sofrimento que experimentaram, tanto pela perda patrimonial,
quanto pelo próprio tratamento que lhes foi dispensado pelo Estado, atingiu-lhes a honra e a
honorabilidade, deitando reflexos negativos na sua estima, conforme se extrai de seus
depoimentos, tudo a apontar para o desrespeito a suas dignidades. Não se cogita a nulidade do
acórdão que decidiu a questão da TIRSS porque é inquestionável o direito dos índios, mas
uma indenização justa, com a reposição pecuniária do patrimônio, minoraria a dor moral
experimentada pelos “desintrusados” e constituiria fator relevante para restauração da fratura
causada na dignidade daquelas pessoas.
5.3 O DANO MORAL EXPERIMENTADO PELOS “DESINTRUSADOS”
No presente item serão estudados os conceitos de dano e de dano moral, os
antecedentes históricos do dano moral no direito brasileiro, o dano moral indenizável e os
fatos ou circunstâncias que ensejam a reparação por dano moral no caso da TIRSS.
5.3.1 Conceito de dano
Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1988, p. 195), o
vocábulo dano possui o seguinte significado: “S.M. 1. Mal ou ofensa pessoal; prejuízo moral.
2. Prejuízo material causado a alguém pela deterioração ou inutilização de bens seus. 3.
Estrago, deterioração, danificação”.
131
No mesmo sentido, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS;
FRANCO, 2009) assim conceitua o vocábulo em estudo:
Dano (s.m.).1. Ato ou efeito de danar (-se), causar ou sofrer mal, corromper (-se) e
condenar (-se), ruína. 2. Ato ou efeito de danar (-se), estragar (-se); estrago,
amassado, fratura, machucado, arranhão. 3 (Jur.). Toda diminuição nos bens
jurídicos de uma pessoa. 3.1 (Jur.). Qualquer prejuízo, especialmente financeiro e
patrimonial, sofrido por alguém, em que houve ação, influência ou ação de outrem.
D. cert (Jur.). Fato que já causou prejuízo ao credor . D. irreparável (Jur.). Mal ou
prejuízo de que não se pode recuperar, que não pode ser recuperado.
As conceituações oferecidas pelos dicionários acima são bastante amplas, alcançando
várias espécies de dano, descortinando várias hipóteses que alguém pode vir de sofrer dano.
Silva (2004) oferece o seguinte conceito jurídico da palavra em estudo: “Dano.
Derivado do latim damnum, genericamente, significa todo mal ou ofensa que tenha uma
pessoa causado a outrem, da qual possa resultar uma deterioração ou destruição à coisa dele
ou prejuízo a seu patrimônio”.
Desse modo, o vocábulo dano possui o sentido econômico de diminuição causada ao
patrimônio de alguém, por ato ou fato estranho à sua vontade. Equivale em sentido a perda ou
prejuízo. Juridicamente, dano é, usualmente, tomado no sentido do efeito que produz: é o
prejuízo causado, em virtude de ato de outrem, que vem causar diminuição patrimonial ou
ofensa moral, de acordo com a seguinte lição de Silva (2004, p.409):
E, dentro desse conceito, diz-se dano patrimonial, quando o prejuízo é
consequentemente de diminuição patrimonial ou deterioração de coisas materiais;
dano moral, quando atinge bens de ordem moral, tais como a liberdade, a honra, a
profissão, a família.
Por seu turno, Melo (2004, p. 27) define juridicamente, de forma geral, o dano da
seguinte forma:
Dano é agressão ou violação de qualquer direito material ou imaterial que,
provocado com dolo ou culpa pelo agente, ‘responsabilidade objetiva’, cause a
outrem, independentemente de sua vontade, uma diminuição de valor de um bem
juridicamente protegido, seja de valor pecuniário, seja de valor moral, ou até mesmo
de valor afetivo.
Ludwig Enneccerus (apud SILVA, 2004) entende que “dano é toda desvantagem que
sofremos em nossos bens jurídicos (patrimônio, corpo, vida, saúde, honra, crédito, bem-estar,
capacidade de aquisição, etc)”. Desse modo, a doutrina jurídica classifica o dano de forma
ampla, definindo-o como toda diminuição patrimonial, seja material ou puramente moral,
132
experimentada pelas pessoas, alcançando esta última espécie toda atribulação ou toda dor
sofrida pela alma humana.
5.3.2 Conceito de dano moral
A doutrina jurídica elabora o conceito de dano moral a partir dos sentimentos
negativos que afligem a personalidade humana, seja de maneira objetiva, como a imagem que
os outros integrantes da comunidade têm em relação à vítima, seja de forma subjetiva, isto é,
o sentimento íntimo que a vítima tem de si mesma.
Nesse sentido, para Dalmartello (apud CAHALI, 2011, p. 19), dano moral é a privação
ou diminuição dos bens que têm valor relevante na vida das pessoas, como a “paz, a
tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física,
a honra e os demais afetos”. Esses elementos compõem a parte social do patrimônio moral
(honra, reputação etc), sendo a parte afetiva desse patrimônio a dor, a tristeza, a saudade etc.
No mesmo sentido, Moraes (apud REIS, 2010, p. 9) define essa espécie de dano por meio da
noção de sentimento humano, isto é, utiliza-se de termos como “‘dor’, ‘espanto’, ‘emoção’,
‘vergonha’, ‘aflição espiritual’, ‘desgosto’, ‘injúria física ou moral’, em geral qualquer
sensação dolorosa experimentada pela pessoa”.
No magistério de Reis (2010, p.8), o dano moral é “aquele que atinge o patrimônio
ideal das pessoas, ou seja, capaz de ensejar um sentimento negativo no espírito da vítima,
causando-lhe sensações desagradáveis decorrentes das perturbações psíquicas causadas pela
agressão”. Segundo esse autor:
a partir do momento em que a Constituição Federal de 1988 elegeu como direito
fundamental do Estado Democrático a dignidade da pessoa, que representa um
acervo de valores ideais que qualificam o ser humano, passou-se a considerar o dano
moral como ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana (Ibidem).
O dano moral também é bem delineado na lição de Zenun (1995, p. 73), o qual
sublinha que “as dores, os sentimentos e os sofrimentos pertencem ao maior patrimônio do ser
humano, que tem alma, onde as lesões se acentuam com maior intensidade”.
Para Gagliano e Pamplona Filho (2010, p. 101), “o dano moral consiste na lesão de
direitos cujo o conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro”. Para
esses autores, o dano moral atinge a esfera personalíssima da pessoa, violando sua intimidade,
vida privada, honra e imagem, bens jurídicos protegidos constitucionalmente. No mesmo
133
sentido, Stoco (2004, p. 232) aduz que “dano moral é todo sofrimento humano resultante de
lesão de direitos da personalidade. Seu conteúdo é a dor, o espanto, a emoção, a vergonha, em
geral uma dolorosa sensação experimentada pela pessoa”.
No caso da TIRSS, quando o Estado promulgou a nova Constituição, mudando a
ordem jurídica, retirou os não índios sob a pecha de “intrusos”, ignorando, entre outras
circunstâncias, o valor afetivo que dispensavam à terra onde muitos nasceram, sofreram e
enterraram seus mortos. Por certo, tal ato causou dor, sofrimento, retirou a tranquilidade de
espírito daquelas pessoas. Ao assim agir, o Estado violou normas éticas e atingiu
negativamente a dignidade dos “desintrusados”. Indubitavelmente, todos os acontecimentos
que culminaram com a retirada dos não índios causaram fratura a sua imagem e honra, ou
seja, configuraram lesão aos direitos da personalidade.
5.3.3 Antecedentes históricos dos danos morais
A ideia de reparação de danos data da antiguidade. As leis mais antigas da
humanidade já tratavam da reparação às ofensas praticadas por uma pessoa contra outra.
Nesse sentido, Silva (1999) observa que, muito antes do Direito Romano tratar do dano e da
sua reparação, povos da Mesopotâmia, como Sumérios e Babilônios e na antiga Índia, já
tratavam desse instituto jurídico. Esse autor assevera que o código de leis mais antigo a tratar
desse assunto é o de Ur-Nammu, mencionando ainda o Código de Manu como o primeiro da
antiga Índia. Estes códigos, segundo Reis (2010), apresentavam certa semelhança com o
Código de Hamurabi, trazendo em comum, por exemplo, a Lei do Talião: “olho por olho,
dente por dente”. Reis registra, ainda, que a lei em alusão conferia ao lesado reparação
equivalente a ofensa. Era, pois, uma norma de reparação do dano, presente expressamente nos
parágrafos 196, 197 e 200 do Código do Rei Hamurabi (2.067-2025 a.C.):
§ 196. Se um awilum destruir um olho de um (outro) awilum, destruirão seu olho.
A expressão dumuA-Wi-Lum, “filho de awilum” indica aqui alguém que pertence à
classe dos awilum. A lei determina que, se o agressor e o agredido pertecem à
mesma classe social,seja aplicada a pena de Talião: “olho por olho”.
§ 197. Se quebrou o osso de um awilum, quebrarão o seu osso.
§ 200. Se um awilum arrancou um dente de um awilum igual a ele, arrancarão o seu
dente (REIS, 2010, p. 23).
Ao tempo do Código de Hamurabi, como registra Melo (2011, p. 4), as ofensas
pessoais eram reparadas por reprimenda igual contra o seu autor, havendo previsão paralela
134
de reparação do dano em pecúnia, a exemplo do parágrafo 209 do Código em alusão, que
previa indenização em valor monetário nesses termos: “se um homem livre ferir a filha de um
outro homem livre e, em consequência disso, lhe sobrevier um aborto, pagar-lhe-á 10 ciclos
de prata pelo aborto” (MELLO, 2011, p. 4).
Segundo Silva (1999), o alcorão também adotou, parcialmente, a orientação de
Hamurabi sobre as leis do Talião, porém, com abrandamentos às normas de vingança
(SILVA, 1999). No código religioso dos muçulmanos, as compensações pecuniárias no lugar
do direito de vindita são abundantes. São desaconselhadas em nome do perdão e da
misericórdia.
Segundo Reis (2010), os gregos foram pensadores vigorosos. Para eles, a ideia de
reparação do dano era econômica e de acordo com normas editadas pelo Estado. Exerceram
significativa influência no pensamento político romano, proporcionando a inserção de normas
de conteúdo ético-morais nas leis de Roma. Segundo o mesmo autor, os romanos tinham
noção profunda de reparação pecuniária do dano, embora não possuíssem um sistema de
responsabilidade civil. Para os romanos, todo ato lesivo ao patrimônio ou à honra de alguém
culminava na devida reparação. Reis resume a responsabilidade civil no antigo direito romano
com a seguinte cronologia: “Lei das Doze Tábuas, no ano 452 a.C.; Lex Aquilia, no ano de
286 a.C.; e a legislação Justiniana, nos anos de 528-534 a.C., que, por sua vez, subdividia-se
em: As Institutas, o Codex Justinianos e o Digesto ou Pandectas”(REIS, 2010, p. 30).
Para Wilson Melo da Silva, citado por Reis (2010), o pagamento em pecúnia
recomendado pelo Código de Hamurabi era a gênese da ideia que deu origem modernamente
à teoria da compensação econômica dos danos morais. No mesmo sentido, o mesmo autor
ensina que a noção de reparação do dano encontra-se claramente definida no Código de
Hamurabi, predominando naquele momento histórico “o sentido de equivalência entre a
indenização e o dano, que fora repassado às gerações vindouras” (REIS, 2010, p. 30). Desse
modo, de acordo com o mesmo autor, o germe do processo indenizatório está presente no
conceito de igualdade material, talhado na Lei do Talião, sendo inadmissível que a vítima
ficasse desamparada em razão da ofensa sofrida.
Com fundamento nas leis e códigos mencionados, Oliveira Júnior (2007) observa que
a proteção aos direitos da personalidade tem sua gênese fincada na própria existência humana,
não sendo possível afirmar de forma exata que seu início se deu com esta ou aquela lei. O que
é fato incontestável é que a proteção aos direitos morais foi aumentando na proporção da
organização do Estado de Direito.
135
5.3.4 O dano moral no direito brasileiro
Quanto ao dano moral no Brasil, Silva (1999) sublinha que, antes da edição do Código
Civil de 1916, encontram-se normas legais sobre dano, de forma geral, no código criminal de
1830, que prescrevia que a indenização em favor da vítima deveria ser plena. Esta previsão foi
transportada para o artigo 800 das consolidações das leis civis de Teixeira de Freitas. A
referida consolidação tratava especificamente da reparação por dano moral nos seus artigos
86, 87 e 829.
O Código Civil de 1916 já trazia no seu artigo 76 previsão para se reparar dano moral.
Porém, há outros autores que discordam deste posicionamento ao afirmarem que a
indenização por dano moral estaria autorizada no artigo 159, o qual “teria abrangido todas as
lesões, inclusive as puramente morais” (MELO, 2011, p. 14). Por seu lado, Reis (2010)
assevera que o marco que consagra definitivamente o dano moral no direito brasileiro é a
Constituição de 1988, que traz sua previsão inserta no artigo 5º, incisos V e X, terminando
com a controvérsia em torno da discussão se era possível ou não mensurar financeiramente o
abalo emocional ou um mero aborrecimento.
“A Constituição de 1988 bateu o martelo e garantiu a indenização por dano moral”
(REIS, 2010, p. 83), reconhecendo e concretizando o ideal supremo da condição humana
consistente no respeito de sua dignidade, razão maior da existência do homem no plano
terrestre. No mesmo sentido, Cavalieri Filho (2010) observa que a Constituição atual coloca o
homem no ápice do ordenamento jurídico do país, fez dele a primeira e decisiva realidade,
posicionando os seus direitos como fio condutor de todos os seguimentos jurídicos. Segundo
o mesmo autor, “a dignidade é o fundamento central dos direitos humanos, devendo ser
protegida e, quando violada, sujeita a devida reparação” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 83).
Em harmonia às normas constitucionais insertas no artigo 5º, V e X, segundo Cardin (2012),
foram editados o Código do Consumidor, que em seu artigo 6 e 7, admite a reparação por
danos materiais e morais. No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA,
em seu artigo 17, assegura para os infantes a integridade moral, prevendo a sua reparação em
caso de dano, e o Código Civil nos seus artigos 186, 953 e 954, além de outras normas do
ordenamento jurídico brasileiro.
136
5.3.5 O dano moral indenizável
Para Cavalieri Filho (2010, p. 87), o dano moral indenizável provém da “dor, vexame,
sofrimento ou humilhação”, que refoge à normalidade e interfere intensamente na conduta
psicológica do indivíduo, causando-lhe “aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar”.
Segundo esse autor, o mero aborrecimento, a irritação ou a sensibilidade muito acentuada não
se enquadram no dano moral por constituírem fatos corriqueiros do cotidiano das pessoas. Por
sua vez, Melo (2011) leciona que o dano moral indenizável é aquele que atinge um bem
juridicamente protegido, não importando se de valor pecuniário, moral ou afetivo. No mesmo
sentido, Reis (2010, p. 149) registra que os danos morais indenizáveis são aqueles
provenientes de ofensas que ferem a dignidade da pessoa humana, seus valores, sua
intimidade, “aviltando-lhe os sentimentos e produzindo profundos reflexos psicológicos no
ser humano. Daí resulta constituir a defesa do direito da personalidade a mais significativa
forma de tutela do patrimônio moral de que todos os seres humanos são detentores”.
Dessa forma, à luz do magistério dos insignes juristas acima, podemos afirmar que o
dano moral indenizável é aquele proveniente de dor, aflição, angústia, entre outros
sentimentos negativos que atingem a alma humana, causando profundo sofrimento e
desequilíbrio na vítima da ofensa, os meros aborrecimentos da vida diária não são
indenizáveis.
5.3.6 Fatos geradores de dano moral no caso da TIRSS
Inferimos do estudo do caso Raposa Serra do Sol, especialmente do material colhido
diretamente com os não índios retirados da referida terra indígena, que alguns fatos por eles
vivenciados autorizam a reparação por dano moral, a saber: a denominação de “intrusos”, o
valor afetivo depositado a terra, o abandono dos túmulos dos antepassados, o valor irrisório
percebido pelas benfeitorias de boa-fé.
5.3.6.1 A denominação ofensiva de intruso aos não índios
Ao longo do processo de demarcação e retirada dos não índios da TIRSS, estes
receberam o rótulo de “intrusos”, tanto por agentes públicos, quanto em matérias veiculadas
137
na imprensa. Todavia, uma vez que os não índios foram incentivados e até subsidiados pelo
Estado para ocuparem as referidas terras, não se pode imputá-los essa condição. Por essa
razão, no decorrer deste trabalho, o vocábulo “desintrusão” foi sempre utilizado com aspas,
justamente para demarcar a impropriedade do termo.
O Dicionário Houaiss (2009) define o termo “intruso” como: “que ou quem,
clandestinamente, se apodera de ou ocupa imóvel ou terras alheias”. Por sua vez, o Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa conceitua o termo “intrusão” como: “s.f.: ação ou efeito de
introduzir-se, contra o direito ou as formalidades, de proceder como intruso” (FERREIRA,
1988, p. 368). Por seu lado, Silva conceitua juridicamente intruso como aquela pessoa “que,
clandestinamente, se apodera ou ocupa terras alheias. E, genericamente, toda pessoa que
pratica ou é agente de uma intrusão” (SILVA, 1993, p. 510-511).
No caso concreto da Raposa Serra do Sol, o próprio Presidente Lula, em entrevista à
Agência Brasil, classifica os não índios da referida terra indígena como intrusos, conforme o
seguinte excerto de pronunciamento:
Quando as pessoas reclamam que nós homologamos Raposa Serra do Sol de forma
contínua, e falam em quase dois milhões de hectares de terra, as pessoas se
esquecem que os intrusos não são os índios que estão lá, mas que fomos nós que, em
1500, chegamos aqui e tomamos os oito milhões e meio de quilômetros quadrados
deles. O que nós estamos tentando fazer é apenas reparar os prejuízos que foram
cometidos ao longo de séculos neste país (AGÊNCIA BRASIL. 20 de maio de
2005).
O Senador Mozarildo Cavalcante (PTB-RR), em entrevista ao Jornal Folha de Boa
Vista, posicionou-se contrário à pecha de “intruso” aos não índios:
[...] o senador criticou o termo “desintrusão” adotado pelo Governo Federal
argumentando que os moradores não são intrusos porque foram para lá quando
sequer havia pretensão da reserva indígena. “São ocupantes de boa-fé, e não
intrusos”. (FOLHA DE BOA VISTA, 2014).
O jornal “O Estado de São Paulo”, de alcance nacional e internacional, também
combate a utilização do vocábulo intruso imposto aos não índios da TIRSS, com o seguinte
teor:
É preciso que se identifique, em Raposa Serra do Sol, quais são as propriedades de
não índios que resultaram da ocupação indevida, injusta, de terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios. Essas são terras indígenas, devem ser desocupadas e
reservadas aos ingaricó, wapixana, macuxi, taurepang e patamona. Mas também é
preciso que se faça justiça com aqueles que ocuparam, de boa-fé, áreas devolutas,
com autorização do Estado brasileiro, e agora estão sendo considerados "intrusos"
na terra onde nasceram seus pais e onde vivem há várias décadas ou que são
detentoras de título definitivo de propriedade expedido pelo governo federal, com a
138
observação de que se trata de terra "fora de área indígena” (sic) (MAGALHÃES,
Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2008, grifo nosso).
O Ministro Ayres Brito, em seu voto condutor sobre a questão da TIRSS, também
denomina os não índios de intrusos, como se vê do item IV do dispositivo do seu voto: “[...] a
desintrusão ou retirada dos não índios, tão massiva quanto pacificamente, seguida de
majoritário reassentamento por parte do governo federal, já sinaliza a irreversibilidade do
procedimento” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular - Petição nº 3.388, 2009,
grifo nosso).
Além da dor experimentada pelos pecuaristas não índios, por terem sido retirados da
terra com imenso prejuízo afetivo e financeiro, pelo conceito que encerra, o vocábulo intruso
imputado a essas pessoas, por si só, ofende a honra subjetiva do homem médio e, por isso
mesmo, acentua a situação de sofrimento daqueles homens e mulheres por terem sua imagem
violada.
Não se quer dizer com isso que as terras indígenas não devessem ser demarcadas e
nem se questiona neste trabalho o método e a dimensão delas, mas as pessoas não índias
mereciam um tratamento moralmente digno por parte do Estado. Os entrevistados dizem que
foram retiradas compulsoriamente de suas casas, sem perceber indenizações que realmente
reparassem seus prejuízos, além de sofrerem a ofensa de intrusos, sendo, pois, credoras do
Estado.
O termo intruso não pode ser aplicado a essas pessoas, vez que, no decorrer de todo o
processo de ocupação do Vale do Rio Branco, por meio do seu aparato legal e administrativo,
o estado nacional desenvolveu políticas públicas de fixação do homem nas terras amazônicas,
inclusive concedendo títulos definitivos de propriedade. Além disso, o Estado, de forma
perene, sempre manifestou interesse em que não índios se estabelecessem nas terras
riobranquenses.
Ademais, é incabível, também, o rótulo de intruso aos não índios porque o próprio
Estado brasileiro reconhece que estes ocupavam as terras indígenas de boa-fé, pois, embora de
forma insatisfatória no entendimento deles (não índios), o Estado indenizou as benfeitorias e
fê-lo porque as reconheceu de boa-fé, devendo-se sublinhar que só as benfeitorias que
guardassem essa qualificação poderiam ser indenizadas, nos termos do artigo 231, § 6º da
Constituição Federal Brasileira.
Se nos colocarmos no lugar dos índios, podemos cogitar que os não índios eram
intrusos. Todavia, considerando que oitenta e cinco por cento dos interlocutores da pesquisa
de campo deste trabalho declararam possuir algum tipo de relação com os índios, seja de
139
parentesco ou amizade, acreditando na existência de convívio social pacífico entre as partes,
por este ponto de vista continuaria sendo impróprio e ofensivo o termo “intruso” para
denominar os não índios.
O uso do referido termo implica em difamação contra os não índios, a teor do disposto
no art. 139, do Código Penal, que giza: “Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua
reputação”. Segundo Nélson Hungria (apud CAHALI, 2011), a difamação é caracterizada
pela imputação de fato que, mesmo sem consistir crime, sobrevém em reprovação éticosocial, ofendendo a reputação da vítima, ou seja, acarreta-lhe a desestima ou reprovação do
círculo em que vive. A difamação viola a honra do ofendido. Para Melo (2011), a honra é o
mais importante e caro valor do ser humano, vincula-se com a reputação de cada pessoa,
como conteúdo ético compõe-se de bens imateriais vinculados diretamente à dignidade, é
superior a qualquer bem material que o indivíduo possua. Para esse autor, a boa fama é
indispensável para que uma pessoa possa alcançar progresso no meio social com a
consciência da própria dignidade, que é a gênese da sublime satisfação espiritual. Para Barros
(1995) a honra é a dignidade da pessoa que vive honestamente, conforme os mandamentos
morais que deixam a pessoa admirável aos olhos de seus concidadãos, enquanto a boa fama é
a estima social desfrutada pela pessoa que observa os bons costumes.
Desse modo, o termo “desintrusão”, imputado aos não índios e difundido amplamente
por agentes públicos, inclusive nos grandes veículos de comunicação, a exemplo da Agência
Brasil e do jornal O Estado de São Paulo, atingiu violentamente a honra dos pecuaristas não
índios, o que reclama a devida reparação.
5.3.6.2 Dano moral em razão do valor afetivo depositado na terra
O Valor afetivo depositado às fazendas é inferido especialmente das expressões de
melancolia, saudade, tristeza e revolta constatadas nos depoimentos dos interlocutores
ouvidos durante a pesquisa de campo deste trabalho. O Senhor Joaquim Correa de Melo, por
exemplo, afirma:
Não foi fácil sair. Eu nasci lá. Viver a vida toda num lugar e de repente ser jogado,
porque nós fomos jogados como se joga um cachorro. Porque a obrigação do
governo era localizar outro lugar pra gente se estabelecer. Todos nós éramos
pecuaristas. Tinha o nosso rebanho, as nossas coisas na fazenda. A minha fazenda lá
ficou sendo um ponto turístico, eu investi um mundo de dinheiro que eu nem posso
imaginar o quanto eu gastei para construir aquilo e de repente ser jogado. A Polícia
Federal chegou lá e disse: você tem tantas horas para sair.
140
Por sua vez, o Senhor Ademar Araújo declara que seu sentimento em relação à perda
de sua fazenda é de profunda tristeza, de angústia, de injustiça, nestes termos:
Meu sentimento em relação à fazenda é de profunda tristeza com o que aconteceu.
Com eles, com meus parentes, com meus amigos, enfim, com todos nós que fomos
tirados da maneira que fomos. Saímos de lá como se fôssemos intrusos. Quando a
gente sabe que todo esse acontecimento foi por interesse na área, pelos minérios [...]
então, o sentimento de ver muitas pessoas amigas, pessoas boas, viver na periferia
sem ter nada, sem ter uma vaquinha, e viviam bem lá e bem com os índios. O
sentimento é de angústia, de injustiça. Não era nem para eu ter adoecido. Hoje eu
estou até com diabetes, doente.
Para o Senhor Roberto Costa, o sentimento é de saudade, de revolta, de tristeza,
conforme o seguinte excerto de seu depoimento:
Olha, nós nascemos e fomos criados mexendo com aquilo lá, com pecuária e
agricultura e de repente tivemos que ser retirados de lá, o sentimento de saudade,
que aquilo era uma parte da gente, que nós tínhamos trabalhado e vivíamos daquilo
ali. Então o sentimento é de revolta, de tristeza por perder o que nós tínhamos, o que
foi construído pelo meu avô e meu pai que viveram fazendo aquilo ali. Meu pai
faleceu em consequência da demarcação, pelos problemas que aconteceram na época
da demarcação. Ele faleceu de infarto.
Por seu lado, o Senhor Wilson Alves Bezerra (de alcunha Galego) afirma que morreu
vivo, que a perda de sua fazenda parece um filme que não para de rodar em sua cabeça,
exprimindo em suas palavras melancolia e saudade, consoante a seguinte passagem de suas
declarações:
O meu sentimento eu digo o seguinte: eu pra mim eu morri vivo. Eu “tô” morto pela
situação que passou lá. Existe outro mundo, pensando naquilo que passou por mim,
parece um filme que passou na minha cabeça e continua rodando. Quando eu me
deito pra “mim” dormir, já começa passar aquele filme que continua passando a vida
toda. É melhor dizer pro senhor que, quando eu desatei a minha rede do armador da
minha fazenda, não achei armador para atar a rede mais nunca na minha vida, esse é
meu sentimento. Eu acordo três e meia para quatro horas, não durmo mais, passo
café, como eu passava na fazenda para levar para os vaqueiros no barracão, no
curral. Eu continuo nessa esperança de passar o café e tomar junto com eles. De
manhã, quando eu acordo quatro horas para passar o café, eu olho para aquela
varanda ali, sento ali, na minha cadeira. No meu pensamento eu vou ouvir o galo
cantar, o bezerro berrar, o cachorro latir. Esse é meu pensamento, eu fico querendo
ouvir essas coisas. Aí o dia amanhece.
No mesmo sentido, o Senhor João Gualberto Sales, aduz o seguinte:
Meu sentimento é o mais profundo que pode existir. Eu sou a quarta geração de uma
família que residiu lá na fazenda Carinambu. Começou com meu bisavô. A gente
141
tem um sentimento profundo em deixar tudo aquilo para trás. É uma perda de tudo, é
uma perda sentimental.
Além dos depoimentos em epígrafe, convém acrescentar que setenta e um por cento
dos interlocutores ouvidos neste trabalho declararam que têm parentes sepultados na TIRSS,
conforme tabela nº 03 e correspondente gráfico, o que confere a suas ex-fazendas um valor
sentimental ainda maior.
Nesse passo, convém anotar que o culto aos mortos pertence à cultura e ao sentimento
religioso humano desde a mais alta antiguidade. Para muitos povos, a exemplo dos gregos e
romanos, os entes queridos falecidos eram os próprios deuses. Nesse sentido, Coulanges
(2009, p. 30) relata que Cícero dizia: “Nossos antepassados quiseram que os homens que
deixaram esta vida fossem tidos como deuses”. Registra, ainda, que os mortos eram
venerados, para os antigos, “em seu pensamento cada morto era um deus”.
Na evolução histórica do direito à sepultura, Mazzili (2009) observa que o Direito
Canônico, inicialmente, impôs rigor extremado na proteção às sepulturas, chegando o código
de 1917 a considerar sua violação quase sacrilégio, passível de pena de excomunhão (cânones
2.314 e ss. e 2.328), tais normas foram abrandadas pelo código em vigor (MAZZILLI, 2009).
No Brasil, de forma geral, a cultura e a religiosidade do povo sempre valorizaram o
culto aos mortos, com piedoso zelo pelo local dos óbitos e pelos sepulcros. Por esse motivo, o
ordenamento jurídico brasileiro lhe confere especial proteção. Mazzili (2009), com apoio na
jurisprudência (RT 520/103 e 564/79; RJTJSP 52/143, v.g.), explica que a concessão de
jazigo não é personalíssima, mas intuitu familiae, havendo proteção, por meio de reparação
material e moral, ao direito à sepultura (RT 559/192) (MAZZILLI, 2009).
A sociedade roraimense também confere especial valor à memória dos entes queridos
falecidos, como demonstra a multidão de pessoas que todos os anos no dia 02 de novembro,
dedicado aos mortos, acorre aos cemitérios da cidade para cuidar e rezar no túmulo dos
parentes falecidos, como ilustra a seguinte notícia veiculada pelo Jornal Folha de Boa Vista:
A movimentação nos cemitérios Campo da Saudade, que fica no bairro Centenário,
e Nossa Senhora da Conceição, que fica no bairro São Vicente, ambos na zona Oeste
de Boa Vista, foi intensa desde o início da semana em lembrança ao Dia dos
Finados, celebrado em 2 de novembro. Desde as primeiras horas da manhã de
sábado, havia muita gente nestes dois locais. Aproximadamente 30 mil pessoas
visitaram
os
entes
queridos
nos
cemitérios
(Disponível
em:
http://www.folhabv.com.br/noticia.php?id=160869. Acesso em 15 de fevereiro de
2014).
Conforme já mencionado, por amor à terra a qual tinham despendido tantos sacrifícios
142
e assistido seus filhos e outros entes queridos morrer, os familiares dos entrevistados pediram
para ser sepultados na própria fazenda, a exemplo de parentes de João Gualberto Sales, Delci
Sales Vieira, Fany Bezerra, Zelio Mota, dentre outros.
A dor emocional experimentada por esses não índios, neste particular, atingiu a porção
afetiva, sentimental de seu patrimônio moral. A afeição no ordenamento jurídico brasileiro é
bem integrante da personalidade e, quando violado, deve receber a adequada reparação. Nesse
sentido, Agostinho Alvim ensina que “o valor de afeição que se dá a mais é uma reparação
moral, uma satisfação aos sentimentos afetivos” (apud CAHALI, 2011, p. 234). Cahali
(2011), por sua vez, sublinha que o art. 1543 do Código Civil anterior determinava a
restituição equivalente quando não existisse mais a própria coisa, estimando-se o seu valor
ordinário e mais a afeição, observando que o art. 952 do atual Código Civil repete a mesma
norma, ou seja, o direito positivo brasileiro mantém o reconhecimento e a obrigação de se
reparar o valor de afeição da coisa perdida.
Dessa forma, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, o afeto depositado a terra,
realçado pela perda do túmulo dos entes queridos sepultados nas antigas fazendas, confere aos
não índios o direito de reclamar a devida reparação moral e impõe ao Estado o ônus de arcar
com esta obrigação.
5.3.6.3 O valor irrisório percebido pelas benfeitorias de boa-fé
Os interlocutores da pesquisa, à unanimidade, demonstraram indignação em razão do
valor pago às benfeitorias de boa-fé, como já ficou assentado em outra seção. De forma geral,
os “desintrusados” expressam tristeza, mágoa, angústia e um profundo sentimento de injustiça
por terem perdido patrimônio que começou a ser construído por seus antepassados.
João Gualberto Sales afirmou que a indenização percebida pelas benfeitorias de boafé construídas na sua ex-fazenda “foi muito irrisória. Pra você ter uma ideia, só de cerca tinha
36 (trinta e seis) km de cerca, a minha propriedade. Era 5 (cinco) mil hectares. Tinha 1547
(mil, quinhentos e quarenta e sete) hectares de título definitivo e o resto de posse”.
Por seu turno, o Sr. Domício de Souza afirma que a indenização não pagou suas
benfeitorias e que a FUNAI estipulou o preço unilateralmente, conforme a passagem do seu
depoimento:
Eles foi que deram o preço. Não quer saber quanto você gastou. Por exemplo, a
madeira eu comprava no Mucajaí pra cercar lá, fazer cerca do curral tudo. Comprava
143
tudo de fora, casa tudo, material, tudo foi levado daqui, e a FUNAI não pagou nada
no valor que... você gastou com aquilo. Não somou nada. Só deu aquele valor e
pronto (sic).
Por sua vez, o Sr. Moadir Lucena de Melo sustenta que perdeu todos os seus bens:
“[...] quase fiquei de esmola, que eu perdi tudo R$ 11.500,00. [...] Tinha casa de alvenaria,
casa de palha, barracão, cozinha separada, tudo fechado de porta e chave. [...] Não deu nem de
chegar aqui. [...] É uma coisa absurda, ridícula. Aceita porque tem que aceitar, né?
Por seu lado, o Sr. Wilson Alves Bezerra descreve suas benfeitorias e informa o
pequeno valor percebido por elas, da seguinte forma: “Tinha uma casa de alvenaria, duas
salas, dois quartos, cozinha. Tinha uma cozinha separada de alvenaria, tinha um barracão de
alvenaria, tinha um curral de prancheta, (e a indenização) foi vinte e dois mil reais, então, isso
aí”.
Desse modo, pelos excertos de depoimentos destacados acima e que servem como
paradigmas em relação aos outros não índios retirados das terras demarcadas, a indenização
paga pelo governo causou sofrimento, raiva e profundo sentimento de injustiça àqueles
homens e mulheres, o que lhes retira a paz interior.
Quanto ao aludido sofrimento: dor, vexame, humilhação, ou seja, os sentimentos
negativos experimentados e declarados pelos não índios em razão do valor irrisório das
indenizações, Cavalieri (2010) aduz que são efeitos do dano moral do qual foram vítimas, por
configurar uma agressão à dignidade dessas pessoas. A esse respeito, Zenun (1995) assevera a
necessidade de se reparar a injustiça, porque a reparação proporciona ao ofendido os meios
para a recuperação “dos maléficos efeitos da lesão moral, invadindo a alma, dominando e
enfraquecendo todo o organismo” (1995, p. 59). Nessa mesma linha de pensamento,
Carnelutti (apud ZENUN, 1995, p. 59) leciona que o dano moral não reparado “deprime e
angustia o lesado, que passa o sofrimento das suas dores, a dano sofrido e a do dano pela
injustiça” (apud ZENUN, 1995, p. 59).
No caso dos pecuaristas não índios retirados da TIRSS, suas palavras e suas
expressões faciais, ao falarem sobre o assunto, exprimem exatamente a dor, a angústia, a
revolta, a frustração. Enfim, denotam o sentimento de injustiça que ainda experimentam
devido ao dano moral não reparado e traduzido no profundo sofrimento emocional e espiritual
que demonstram.
Com o fim de restaurar a paz perdida com o dano moral sofrido, o ordenamento
jurídico brasileiro prevê a justa e eficaz indenização cujo conteúdo deve ser satisfativo para
que “a vítima possa sentir em sua intimidade que sua pretensão indenizatória foi
144
satisfatoriamente tutelada pela ordem jurídica, em decorrência da concessão do valor
indenizatório adequado” (REIS, 1989, p. 164). Silva (1999) aduz que a doutrina jurídica
considera a reparação do dano moral como uma compensação à dor experimentada. A
indenização destina-se a compensar o “dano ou a perda que tenha produzido a agressão e
acalmar o sentimento de vingança inato do homem, por mais moderno e civilizado que seja”
(VON TUHR apud SILVA, 1999, p. 162).
Desse modo, de forma geral, o dano moral experimentado pelos “desintrusados”
entrevistados alcançou a parte social do patrimônio (imagem, honra, reputação, etc) e a parte
afetiva, sentimental do patrimônio moral (tristeza, saudade, angústia, raiva, etc), mediante os
fatos aqui explicitados, tendo sua autoestima abalada.
O sistema jurídico-indenizatório protege o patrimônio jurídico do indivíduo, tanto
material como moral, sendo certo o dever indenizatório quando configurados os seus
requisitos. Indubitavelmente, a reparação por dano moral é imposição inserta na Carta
Constitucional, como sanção pessoal que, embora não recomponha os prejuízos e atribulações
inestimáveis posto que a dor não tem preço, compensa o bem moral atingido, cuja proteção
legal é superior a dos bens materiais da vida (REIS, 2010).
Zenun (1995, p. 59) assevera que “na verdade, a injustiça de não se reparar o dano
moral a que fora submetido o lesado se sobrepõe a tudo, porque não se concebe tal injustiça,
que agrava ainda mais a dor, o sentimento, o sofrimento de já tão depauperado,
organicamente”.
Portanto, no caso ora abordado, os pecuaristas não índios que experimentaram
constrangimentos, angústia, depressão, saudade, raiva, frustração, enfim sofrimentos e
dificuldades levados a efeito pela ação estatal de sua retirada compulsória da TIRSS, foram
vítimas de dano moral que deve ser reparado em pecúnia, como medida de restauração da paz
espiritual perdida.
145
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evidenciamos que, durante o processo histórico de ocupação do Vale do Rio Branco,
que deu origem ao Estado de Roraima, índios e não índios foram utilizados pelo Estado para
alcançar o objetivo de manter a integridade territorial do Brasil. Por meio das chamadas
reduções e aldeamentos, os índios foram forçados a viver em povoados com limitação de sua
liberdade e violação de sua cultura, especialmente seus costumes e modo próprio de vida,
sendo muitos maltratados e mortos. Todavia, hodiernamente, o Estado Brasileiro, em relação
aos índios reconheceu-lhes inúmeros direitos, a exemplo de respeito às suas manifestações
culturais e identificação e demarcação de suas terras.
Quanto aos não índios da TIRSS, considerando os dados desta pesquisa, eram, em sua
maioria, descendentes de imigrantes nordestinos tão pobres e sofridos quanto os próprios
índios. Contudo, esse fato não lhes garantiu o mesmo tratamento dispensado aos índios. Como
visto no decorrer deste trabalho, os pais, avós e bisavós dos não índios foram expulsos de seus
Estados de origem em razão de secas severas que ciclicamente flagelam os Estados
Nordestinos e foram atraídos pelo governo para a Região Norte do Brasil. Nessa região foram
trabalhar nos seringais da Amazônia ou na pecuária do Vale do Rio Branco, em ambos os
lugares foram submetidos a inúmeros sofrimentos, com especial relevo para o isolamento,
doenças e mortes.
O Estado, para fazer justiça aos índios, acabou por cometer injustiças em relação aos
aludidos e desiludidos não índios, posto que compulsoriamente retirados das terras nas quais
se radicaram por ação do próprio Estado, não foram devidamente indenizados e foram
humilhados com o rótulo de intrusos.
É conveniente relembrar que os não índios estavam de boa-fé, circunstância ao fim e
ao cabo reconhecida pela União Federal, posto que, embora irrisoriamente, indenizou-os pelas
benfeitorias construídas de boa-fé. É importante repisar este particular, acentuando que o
Estado só poderia indenizar as benfeitorias de boa-fé, de acordo com o art. 231 da CF, logo se
indenizou os não índios é porque reconheceu neles esta qualidade. Ademais, as referidas
terras foram demarcadas não porque os não índios ocuparam-nas de má-fé, mas em virtude de
política estatal para compensar o pretérito sofrimento experimentado pelos índios no processo
de colonização, como assevera o Ministro do STF Ayres Brito no voto condutor sobre o caso
da TIRSS.
O sistema jurídico-indenizatório brasileiro, que tem sua sede principal no art. 5º, X, da
Constituição Federal, protege o patrimônio jurídico do indivíduo, tanto material quanto moral,
146
sendo certo o dever indenizatório quando configurados os seus requisitos.
Indubitavelmente, a reparação por dano moral é imposição inserta na Carta Magna,
como sanção que, embora não recomponha os prejuízos e atribulações inestimáveis posto que
a dor não tem preço, compensa o bem moral atingido, cuja proteção legal é superior a dos
outros bens da vida.
Durante a pesquisa, constatamos que os não índios ocuparam as terras do hoje Estado
de Roraima em razão de políticas estatais e que a forma eleita pela União Federal para realizar
as demarcações e retirá-los das terras indígenas acabou por violar garantias constitucionais,
além de normas éticas e princípios morais, inclusive o princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana, admitindo-se, em tese, a indenização por dano moral.
Ficou patente que os imigrantes que acorreram ao Vale do Rio Branco passaram por
inúmeros sofrimentos para atender aos reclames do Estado e depois seus descendentes
tiveram sua honra violada por aquele que, além do seu dever originário de protegê-los, tinha
também o dever ético de observar seus direitos, posto que os não índios também
desenvolveram serviços de interesse do Estado. Entretanto, não tiveram o apoio estatal e
foram largados à própria sorte, tendo, pois, direito à reparação pelos danos morais
experimentados.
A retirada dos pecuaristas não índios da terra indígena Raposa Serra do Sol, com
indenizações ínfimas às benfeitorias erigidas, avaliadas unilateralmente pelo Estado, sem um
estudo aprofundado do seu real valor, bem como o não pagamento de indenizações por dano
moral, levou ao empobrecimento daquelas pessoas.
É importante realçar que o empobrecimento dos indivíduos de uma sociedade leva, em
última análise, ao empobrecimento desta, como ensina Adam Smith (apud ADELMAN, 1972,
p. 32): “Da mesma forma que o capital de um indivíduo só pode ser aumentado com o que ele
poupa de sua renda anual, ou de seus lucros, o capital da sociedade que é igual ao de todos os
indivíduos que a compõem, só pode crescer dessa maneira”.
Impende pôr em relevo que as demarcações das terras indígenas, com a inobservância
de direitos dos não índios, deitarão reflexos em suas gerações futuras, pois como ensina
Georgescu (apud VEIGA, 2005, p. 154), “a atividade econômica de qualquer geração não
deixa de influenciar as das gerações seguintes”.
Por essa perspectiva, a perda do patrimônio dos não índios, construído na TIRSS e
repassado de geração em geração por meio do direito de herança, hoje garantido no art. 5º,
XXX, da CF/88, e do art. 1784 e seguintes do Código Civil, refletir-se-á negativamente na
economia das gerações futuras desses não índios.
147
Não se pode deixar de considerar, também, que as demarcações, com as indenizações
irrisórias pelas benfeitorias, e a total ausência de indenização por dano moral, considerando
que o Estado incentivou a fixação dos imigrantes na terra e legalizou inúmeras propriedades
localizadas em terras indígenas, deixou abalada a segurança jurídica, o que por certo deixará
de atrair novos investidores para o Estado de Roraima, ao menos até a confiança ser
restabelecida.
A segurança jurídica é pressuposto do investimento econômico, sem esta, nenhuma
pessoa ou empresa se arrisca a empregar capital e trabalho na produção ou na geração de
riqueza, se não tiver garantia do Estado quanto à observância dos seus direitos, pois estes,
como enfatiza Meirelles, são “uma das vigas mestras da ordem jurídica e do próprio estado de
direito” (MEIRELLES, 2006, p. 98). A indenização por dano moral aos não índios da TIRSS,
sob as lentes da segurança jurídica e do desenvolvimento econômico, viria sinalizar que o
Estado, ao prejudicar terceiros na concretização de suas políticas públicas, repara os danos
porventura causados, deixando a salvo a confiança de investidores no ente estatal.
É importante mencionar que alguns pecuaristas não índios da TIRSS, a exemplo de
João Gualberto Sales, que, além de trabalhar com a pecuária tradicional, produzia frutas
irrigadas na savana: melancia, banana e limão, já estavam diversificando a atividade
econômica com a introdução de modernas tecnologias de produção agrícola, agregando valor
à propriedade e ao trabalho. A fotografia abaixo mostra a produção do Sr. João Gualberto:
Figura 13 – Frutos produzidos na savana com irrigação
Fonte: Arquivo do Sr. João Gualberto Sales.
148
Atualmente o Sr. João Gualberto está assentado no PA Nova Amazônia, perdeu parte
do rebanho bovino e ainda não teve condições para retomar a produção de frutas, que era
vendida no mercado de Boa Vista e no vizinho Estado do Amazonas. Atividades dessa
natureza constituem-se no caminho para emancipação econômica de Roraima.
É conveniente observar que a política de ajuda e os favores concedidos, como ensina
Perroux (1981), ao mencionar a ajuda que países ricos dispensam a países pobres, não deram
resultados suficientes. Por analogia, a ajuda que a União presta ao Estado por meio dos
repasses de verba em seus mais variados matizes também não levará à emancipação
econômica do Estado de Roraima.
Desse modo, é necessário que este ente federado, por seus próprios meios, encontre o
caminho para construir uma economia que seja capaz de sustentar sua estrutura e atender a
seus desideratos sociais. Para tanto as pessoas que foram lesadas pela ação estatal não podem
abdicar dos recursos indenizatórios a que têm direito, pois como bem proclamou Adam Smith
(1996, p. 74), “a soma da riqueza dos indivíduos compõe o capital da sociedade”.
Desse modo, o pagamento de indenizações por dano moral aos pecuaristas não índios
retirados da TIRSS tem tríplice função: recompensar a dor moral por eles experimentada,
recuperar a confiança de investidores do agronegócio no estado, além da função social de
gerar emprego, renda e divisas para o estado de Roraima.
Portanto, o comportamento do Estado na questão indígena, divorciado de princípios
éticos, além de empobrecer os pecuaristas não índios retirados da TIRSS, deixando plantado
nestes um imenso sentimento de injustiça, constitui fato gerador de insegurança jurídica. O
louvável zelo com os direitos indígenas não pode dar causa à violação da dignidade humana
dos outros atores sociais.
149
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157
APÊNDICES
158
APÊNDICE A: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
NÚCLEOS DE ESTUDOS COMPARADOS DA AMAZÔNIA E DO CARIBE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL DA
AMAZÔNIA
TERMO DE CONSENTIMENTO PARA USO DE IMAGEM E VOZ
Título da pesquisa:
Pesquisador Responsável:
Eu,
__________________________________________________________________permito
que o pesquisador relacionado acima obtenha fotografia, filmagem ou gravação de voz de
minha pessoa para fins de pesquisa científica/ educacional.
Concordo que o material e as informações obtidas relacionadas a minha pessoa possam ser
publicados em aulas, congressos, eventos científicos, palestras ou periódicos científicos.
Porém, minha pessoa não deve ser identificada, tanto quanto possível, por nome ou
qualquer outra forma.
As fotografias, vídeos e gravações ficarão sob a propriedade do grupo de pesquisadores
pertinentes ao estudo e sob sua guarda.
Assinatura do Sujeito de Pesquisa:
_______________________________________________________________
159
APÊNDICE B: Roteiro da Entrevista
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
NÚCLEOS DE ESTUDOS COMPARADOS DA AMAZÔNIA E DO CARIBE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL DA
AMAZÔNIA
PESQUISA DE CAMPO: roteiro da entrevista
Título da pesquisa: Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol: danos morais, à
luz da ética e do direito
Pesquisador Responsável: Parima Dias Veras
Nome:
Idade:
Naturalidade:
Fazenda:
1. Por que a sua família veio para Roraima?
2. Como a fazenda foi adquirida?
3. Quantos anos a sua família residiu nessa fazenda?
4. E o senhor (a) quantos anos residiu?
5. Algum parente seu foi sepultado na fazenda? Quem?
6. Qual seu sentimento em relação à fazenda?
7. O que o senhor (a) sentiu ao perder a fazenda?
8. A indenização paga pelo governo foi satisfatória? Por quê?
9. O senhor (a) tem parente casado com indígena? Quem?
10. Como era a sua convivência com os índios?
11. Os índios trabalhavam para o senhor (a)?
12. Como ficou a relação com o Estado de origem da sua família?
160
ANEXOS
161
ANEXO A: ESCRITURA PÚBLICA
162
163
164
165
166
167
168
169
170
171
ANEXO B: TÍTULO DEFINITIVO DO SENHOR DOMÍCIO DE SOUZA CRUZ
172
173
174
175
176
177
178
179
180
181
182
183

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