a contemplação do terrível como estímulo para o despertar da alegria

Transcrição

a contemplação do terrível como estímulo para o despertar da alegria
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
A CONTEMPLAÇÃO DO TERRÍVEL COMO ESTÍMULO
PARA O DESPERTAR DA ALEGRIA
Renato Nunes Bittencourt
Doutorando do PPGF-UFRJ/Bolsista do CNPq
Resumo: Neste artigo veremos de que maneira Nietzsche compreende a experiência do
trágico como uma vivência marcada pela irrupção do estado de júbilo no âmago do
indivíduo, seja na cena trágica, seja na própria vida. Mediante a exposição da
perspectiva dionisíaca delineada por Nietzsche, veremos que, no âmbito da cultura
trágica dos gregos, tanto a dor como a finitude da existência não eram de modo algum
consideradas objeções ao viver, mas circunstâncias intrínsecas da mesma, situação
inexorável que estimulava o grego antigo a compreender a existência de maneira
afirmativa, legitimando todas as suas experiências, sem nelas inserir quaisquer traços
morais em suas avaliações.
Palavras-chave: Dionisíaco. Nietzsche. Pessimismo. Trágico.
Introdução
Em nossa sociedade tecnicista, toda atividade que venha a exigir esforços
extraordinários para a sua realização é, de um modo geral, imputada como algo
maçante, digno de desprezo, um grande avilte para nossas aspirações superiores. A
motorização do mundo em que vivemos nos conduz ao estabelecimento de uma moral
pseudo-hedonista, que preconiza o dispêndio da menor quantidade de energia vital, pelo
máximo de prazer a ser obtido. Nessas circunstâncias, o projeto civilizacional da
modernidade se constituiu pelos contínuos esforços em livrar a condição humana das
suas adversidades naturais e torná-la mais plena e feliz, pois que emancipada da dor.
Todavia, apesar do belo ideal existencial inerente a tal proposta, esta redundaria em
fracasso, pois a exclusão radical da experiência da dor e do trágico da vida humana
motivaria o seu próprio aniquilamento.
Podemos dizer que a busca por um estado de pureza, de perfeição e de ausência
de dor decorre da inserção de valores morais e transcendentes no âmbito da vida prática,
a qual é considerada como merecedora de aperfeiçoamento em todos os modos de
expressão, para que possa sair do estado de decadência ontológica em que se encontra.
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
Entretanto, não era através de tais valorações idealistas que os gregos da era trágica
problematizam e compreendiam a existência; pelo contrário, a experiência afirmativa da
cultura grega pré-platônica estabelece uma visão de mundo plenamente capaz de
legitimar axiologicamente as vivências mais dolorosas, mesmo as que estavam
intrinsecamente associadas ao perecimento humano, pois havia nessa saudável cultura a
compreensão da manifestação da vida em modos de expressão que superavam o da mera
individualidade.
Nietzsche, ao estudar o âmago da cultura grega pré-platônica, estabelecerá dois
estamentos simbólicos que servem de parâmetros valorativos acerca do modo de ação
humana e suas conseqüentes criações no âmbito da vida social: o “apolíneo”, vinculado
a uma necessidade humana de sobriedade, equilíbrio de conduta, respeito pela ordem
pública) e o “dionisíaco”, que estabelece a desmedida das ações, a supressão da
individualidade pelo êxtase, a embriaguez como libertação existencial. (NIETZSCHE,
1996, § 1-3). A esfera apolínea nasce por um desejo humano de estabelecer um senso de
ordem no mundo fugaz em que vivemos, mascarando a realidade de dor através da
contemplação da beleza e da conduta harmônica que apazigua o animo. 1 Contudo, no
apolinismo não havia a elaboração de um discurso metafísico, supressor da
corporeidade e da imanência. Dessa maneira, ainda que o apolíneo não conseguisse
abarcar em seu projeto cultural a pluralidade de forças do mundo, ao menos em sua
disposição valorativa havia a legitimação da vida concreta, seja pela divinização da
beleza plástica ou pela glorificação dos grandes feitos humanos, perpetuados na
memória dos pósteros graças aos dotes dos poetas e historiadores.
A pulsão dionisíaca, por sua vez, promove uma contraposição aos valores
heróicos da cultura apolínea, evidenciando, acima de tudo, a exaustão do modelo ético
pautado na rigorosa valorização da individualidade. O dionisíaco compreende que há
uma vida cuja pujança criadora ultrapassa absurdamente a condição limitada da
existência individualizada, são utilizados todos os recursos possíveis para promover a
emancipação humana da sua vida rigidamente delimitada pelo mundo olímpico e seu
ideário de justiça. Entretanto, há que se ressaltar que, apesar das diferenças axiológicas,
“Apolo é o nome grego para a faculdade de sonhar; é o princípio de luz que faz surgir o mundo a partir
do caos originário; é o princípio ordenador que, tendo domado as forças cegas da natureza, submete-as a
uma regra” (DIAS, 1994, p. 26).
1
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
tanto o apolíneo como o dionisíaco valorizam, cada um ao seu modo, a experiência do
terrível: seja na contemplação da morte gloriosa do herói, seja na realização de rituais
cruentos que não raro motivavam o aniquilamento individual. Dessa maneira, a
posterior interação do apolíneo com o dionisíaco manterá essa afirmação do caráter
terrível da existência, fundindo a dissolução da figura do herói com a violência
desenfreada das forças da natureza.2 O grande mote que apresentamos no decorrer deste
escrito é: como a contemplação estética de tal acontecimento motivava no grego o
sentimento de afirmação da existência e uma intensa alegria de viver?
O terrível e a alegria trágica
A Tragédia Ática, expressão derivada originalmente do culto a Dionísio, estava
intimamente associada ao espírito mítico dos antigos gregos. Por conseguinte, a
encenação trágica brota de um acontecimento religioso, cultual, situação que podia ser
evidenciado inclusive pela posição do altar de Dionísio, que ocupava o centro da
representação trágica, de modo que o deus recebia, mediante os cânticos dos atores em
cena, a sua jubilosa glorificação. Nessas circunstâncias, o “espetáculo” que se apresenta
na fase do surgimento da tragédia grega, tanto aos oficiantes quanto aos participantes,
tinha realidade “visional”, mas não material, isto é, conduzia aqueles que se encontram
reunidos em torno da cena uma compreensão existencial que estabelecia a revelação da
unicidade cósmica perpassando, a despeito das aparências e convenções instituídas. 3
Após nos determos brevemente aos aspectos inerentes ao surgimento do drama
trágico, cabe que investiguemos o seu propósito axiológico: a cena trágica representada
ao público grego demonstrava para este os padecimentos de Dionísio, mediante as suas
expressões singularizadas nas figuras dos grandes heróis trágicos. O discurso de
Nietzsche é categórico: “É uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua mais
“Apolo, o deus da bela forma e da individuação, permite a Dioniso se manifestar. Dioniso, o deus da
embriaguez e do dilaceramento, possibilita a Apolo que se expresse. Um assegura ponderação e domínio
de si; o outro envolve pelo excesso e vertigem” (MARTON, 2001, “A dança desenfreada da vida”, p. 52).
3
Para mais detalhes sobre essa questão, cf. Charles ANDLER, Nietzsche: sa vie et sa pensée, Tomo 2, p.
38. Daisi MALHADAS, em Tragédia Grega: o mito em cena, p. 43, desenvolve também uma reflexão
esclarecedora sobre a cena trágica: “A dimensão visual do discurso teatral (expressão corporal, aparência
do ator, cenário, acessórios) torna imprescindível que, também ao ler uma peça, a coloquemos diante dos
olhos, quando se quer apreender o seu espetáculo.
2
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
vetusta configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos de Dionísio, e que por
longo tempo o único herói cênico aí existente foi exatamente Dionísio” (NIETZSCHE,
1996, § 10).4
Tal como destaca Jacó Guinsburg na sua interpretação do trágico nietzschiano,
Dionísio não está no palco, mas no espaço real de sua metamorfose. 5 Tais encenações
não compactuavam em hipótese alguma com ideais moralizantes, na qual se propagaria
a idéia de que o sofrimento decorre de uma necessidade de punição divina mediante um
erro cometido contra a ordem cósmica; pelo contrário, na perspectiva trágica dos
antigos gregos, a dor era o símbolo que explicitava o valor imanente da vida, mesmo
diante das mais atrozes adversidades vivenciadas pela individualidade no seu processo
constitutivo, nas suas experiências cotidianas. A tragédia grega era uma espécie de
tônico existencial que reforçava o ânimo do espectador para a ação, para a criatividade
contínua, para um novo recomeço da existência, mediante a alegria despertada diante da
compreensão da eternidade da vida.6 Por conseguinte, o objetivo principal ético e
estético da Tragédia Ática consistia em, mediante o arrebatamento do espectador diante
da exibição dos terríveis sofrimentos do herói, motivar naquele o desabrochar de
estados de grande exaltação jubilosa, conforme a elucidativa explanação de Deleuze
acerca da vivência trágica:
E, em primeiro lugar, Dionísio está presente com insistência como o Deus afirmativo e
afirmador. Não se contenta com “resolver” a dor num prazer superior e supra-pessoal, afirma a
dor e constitui o prazer de alguém. É por isso que o próprio Dionísio se metamorfoseia em
afirmações múltiplas, tanto mais que não se resolve no seu ser original ou não reabsorve o
Talvez seja de utilidade destacar que essa perspectiva nietzschiana é descartada por Karl Kerenyi em seu
Dioniso, p. 278-279, pois o helenista considerava que o primórdio da encenação trágica consistia na
verdade em representar a destruição dos adversários de Dionísio, como Penteu, por exemplo, aquele que
se esforçou para impedir a entrada dos cultos báquicos na cidade de Tebas. Kerenyi julga se fiar na
documentação textual para considerar a visão nietzschiana historicamente distorcida. Todavia, mesmo que
Nietzsche porventura esteja filologicamente equivocado, o fato de considerar que o cerne da encenação
trágica consiste em apresentar dramaticamente o sofrimento de Dionísio não retira a força da sua
argumentação, sobretudo se nos detivermos na evidência de que o primórdio da tragédia grega
representava um culto divino dedicado ao espírito dionisíaco; mais ainda, se pensarmos na idéia de que a
vida individualizada decorre da fragmentação cósmica de Dionísio, mesmo os seus ditos adversários são
centelhas de sua potência divina, de maneira que, ao padecerem das dores cruciais, na verdade é o próprio
Dionísio que sofre.
5
Cf. GUINSBURG, 2001, “Nietzsche no teatro”, p. 58.
6
BACHOFEN, no Matriarcado, p. 155-156, faz um comentário do qual o pensamento nietzschiano
certamente se nutriu: “Somente na eterna geração e na morte igualmente eterna reside a imortalidade, que
não pode ser concedida ao indivíduo, mas só à estirpe enquanto tal.”
4
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
múltiplo num fundo primitivo (...). É o deus que afirma a vida, para quem a vida tem de ser
afirmada, mas não justificada nem resgatada. (DELEUZE, 2001, p.22)
Após esses comentários poderíamos então levantar a indagação: como a
demonstração da dor poderia proporcionar a alguém um sentimento arrebatador de gozo
estético, capaz de alçar o indivíduo a um estado extático que o libertava de qualquer
sentimento de apavoramento diante das circunstâncias fatais da vida? A solução para
esse questionamento se dá através da existência do “consolo metafísico”, conceito
elaborado por Nietzsche como meio de explicar o maravilhoso fenômeno existencial
que ocorria quando o espectador trágico, ao visualizar o padecimento do herói, percebia
que a vida, apesar das suas contínuas transformações, permanecia incólume em seu
processo criativo (NIETZSCHE, 1996, § 7). Afinal, era o homem, enquanto expressão
singularizada pela individuação que se extinguia através do evento da morte, mas a
existência da vida, e mesmo da condição humana como um todo, permaneceriam
indestrutíveis, pois o centro engendrador do conjunto das formas de vida se encontra
fora das limitações do tempo e do espaço. No âmbito da experiência trágica, a morte do
indivíduo não é um acontecimento digno de tristeza, muito menos uma passagem
condicional para uma nova experiência em um além-mundo; a morte é um mecanismo
necessário para a perpetuação da existência de todas as coisas, utilizado pela natureza
matriz, para que a própria vida seja mantida. A vida somente mantém o seu valor através
da compreensão imediata da existência da morte, e vice-versa. A intuição trágica
estabelecida pela vivência dionisíaca demonstra que para além da vida organicamente
limitada (Bios) do indivíduo existe a vida infinita (Zoé) que nunca se extingue.7 O
dionisíaco aspira pela vida intensiva, continuamente em processo de recriação das suas
qualidades, que não depende, necessariamente, de uma configuração orgânica, corporal
e individual para se expressar adequadamente.
De um modo geral, era de origem épica o tema tratado pela cena trágica,
revelando a sua filiação ao modelo apolíneo, mas esse elemento individual se
transforma numa relação de comunhão sagrada entre as pessoas imersas na vivência
Ressaltemos que tal perspectiva é continuamente defendida por KERENYI no seu Dioniso: arquetípica
da vida indestrutível, o culto dionisíaco como uma manifestação arquetípica de uma vida indestrutível.
Werner Jaeger também dedica importantes reflexões sobre o Zoé e o Bios na sua Paidéia, p. 967,
considerando o primeiro conceito como o fenômeno natural da vida, enquanto o segundo é a vida
considerada como unidade de vida individual, a que a morte põe termo, e também como subsistência.
7
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
trágica, de maneira que a potência épica se transfigurava esteticamente na experiência
mística da revelação da dor cósmica dionisíaca. Os heróis de Ésquilo e Sófocles
representados em cena nada mais eram do que avatares apolíneos da potência
irrepresentável de Dionísio (NIETZSCHE, 1996, § 10).8 O coro trágico de maneira
alguma levava a um distanciamento do espectador em relação ao mundo divino
manifestado no decorrer da celebração trágica, sendo na verdade um meio de se gerar a
fusão entre todos os que estavam envolvidos nesse acontecimento. A tragédia grega,
segundo análise de Giorgio Colli, não era unicamente um ver, pois o espetáculo era a
essência do mundo, contagiante, sobrepondo-se aos objetos que acreditávamos ser reais
(COLLI, 2000, p. 18). Participar dessa experiência cultural fazia com que o indivíduo
grego se desprendesse de si mesmo por um momento, da sua inerente condição social,
enfaticamente limitadora, para se tornar plenamente uno com o outro, ao menos no
decorrer da encenação trágica. 9
A experiência sagrada da Tragédia Ática pode ser compreendida em sua forma
mais nítida quando levamos em consideração a unificação entre o público “espectador”
e o coro trágico, circunstância que gera uma ruptura com os papéis sociais estaticamente
pré-determinados pela legislação apolínea. Nietzsche enuncia até mesmo a idéia de que
o drama grego era encenado sem espectadores, pois todos participavam dele
(NIETZSCHE, 2006b, § 1, p. 48). Essa circunstância justifica a tese de que a Tragédia
Ática não se caracterizava apenas como um acontecimento social de cunho estético, mas
também uma vivência religiosa que fortalecia a unidade do espírito grego diante das
contínuas ameaças de dissolução. O consolo metafísico exercia um poder unificador
entre a coletividade grega, pois que esta se compreendia como uma expressão coesa,
abundante de força criadora capaz de proporcionar a perpetuação da cultura grega.
Vendo-se como membro de uma grande unidade que supera a sua condição individual,
aquele que imergia na consciência trágica se identificava dionisiacamente não apenas
com o herói representado na cena, mas também com as pessoas ao seu redor, de modo
que o indivíduo, encantado pela musicalidade sagrada do drama trágico, compreendia a
alteridade mística proporcionada para toda pessoa que se encontrasse no seio da
multidão. A experiência dionisíaca é a possibilidade de se escapar da divisão ontológica,
Para compreensão da valorização concedida por Nietzsche a Ésquilo e Sófocles como grandes expoentes
da visão trágica de mundo, ver Prometeu Agrilhoado e a “Trilogia Tebana”
9
Para mais detalhes dessa questão, ver TRABULSI, Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim
da época clássica, p. 145.
8
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
da multiplicidade individual e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração
da parte na totalidade, segundo a explanação de Roberto Machado sobre questão
levantada originalmente por Nietzsche.10 A alegria “metafísica” pelo trágico é uma
transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente à linguagem da
imagem; o herói, aparência suprema da vontade, é negado, para prazer nosso, porque é
só aparência, e a vida eterna da vontade não é afetada por sua aniquilação
(NIETZSCHE, 1996, § 16).
Ora, se o homem grego finalmente se via intrinsecamente associado àqueles que
o rodeavam, ele se despojava então dos afetos depressivos que lhe faziam temer outrora
a sua própria dissolução individual. Dessa maneira, é o espírito dionisíaco que
proporciona essa superação existencial da dimensão extensiva da matéria, pois sua
potência está além de todas as formas delimitadas, superando todas as definições e
revestindo ainda todos os aspectos existentes sem se deixar encerrar por nenhum. 11 A
consciência trágica percebe o mundo como uma experiência epifânica situada numa
perspectiva valorativa mais ampla do que a da mera individuação. Segundo Nietzsche,
O consolo metafísico – com o que, como já indiquei aqui, toda a verdadeira tragédia nos deixa –
de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é
indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como
coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer, indestrutíveis, por trás de
toda civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da historia dos
povos, permanecem sempre os mesmos (NIETZSCHE. 1996, § 7).
Sob uma perspectiva ontológica, essa concepção destacada por Nietzsche
significa que as inexprimíveis expressões da vida não se encerravam apenas na mera
condição individual do ser humano, pois a natureza, identificada com a matriz
dionisíaca do Uno Primordial, acolhe as múltiplas expressões de vida, transformando-as
eternamente em novas configurações.12 Essas idéias apresentadas retiram da noção de
“consolo metafísico” qualquer conotação transcendente ao mundo em que vivemos, pois
o júbilo prometido àquele que vivencia a cena trágica ocorre no âmbito da própria
imanência, sem que seja necessária a inserção do indivíduo numa realidade puramente
Cf. MACHADO, 1997, p. 89.
Cf. VERNANT, 2006, p. 77.
12
“O consolo metafísico não é outra coisa que um embriagante sentimento de unidade, de se unir com a
vontade primordial, a qual é prazer e dor, pois além do tormento da mudança incessante está a alegria da
superabundância das forças criativas” (Cf. DÍAZ, 1993, p. 81)
10
11
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
espiritual, desvinculada da terra, seio materno de toda vida. Essa experiência mística é
um “consolo” por excluir da afetividade do homem grego os sentimentos pessimistas e
tristes diante da compreensão imediata da efemeridade da vida humana, revelando então
que esta continua se recriando perpetuamente na natureza através das eras. 13
Há que se destacar que o termo “metafísico” talvez pudesse ser objetado como
uma possível filiação nietzschiana a uma concepção idealista da existência, mas se
compreendermos esse “metafísico” como decorrente de uma intuição de que a vida se
encontra unificada como um todo, apesar da separação natural entre os seres, esse
estigma se dilui; mais ainda, o “consolo metafísico” não era vivenciado pelo homem
vulgar, imerso nas obrigações cotidianas, mas apenas por aquele que deixava penetrar
em si a magia da vida emanada no decorrer da experiência trágica. Tratava-se então de
uma revelação sagrada, de cunho propriamente imanente, pois dependia da presença
efetiva da pessoa no local dedicado à cena trágica.
O “consolo metafísico”, ao fazer o homem compreender que o conceito de
“vida” não abarca a totalidade efetiva da própria vida, demonstra ao parcial olhar
individual que ela permanece, porém, manifestada em muitas outras possibilidades
expressivas que extrapolam a subjetividade singular. Esse conceito problematizado por
Nietzsche de forma alguma pode ser interpretado na qualidade de um afeto que instiga
no homem o desenvolvimento da resignação diante da terrível caráter efêmero do
mundo, como pretendia Schopenhauer.14 Essa perspectiva resultaria numa severa
Apesar da existência de um poder tonificante na experiência do “Consolo Metafísico”, não se pode
deixar de citar que Nietzsche, no § 7 da “Tentativa de Autocrítica” para O Nascimento da Tragédia,
demonstra a sua aversão a tal conceito, considerando-o como um equívoco axiológico, em decorrência da
influência de Schopenhauer na elaboração de seu pensamento. De fato, o termo cunhado por Nietzsche,
em decorrência do efeito trágico proporcionado por sua experiência no indivíduo é um tanto inadequado
para representar a amplitude de tal vivência; mas, independentemente da carga semântica demasiado
romântica contida no conceito de “consolo metafísico”, o que importa, na verdade, é o sentido maior
dessa experiência, completamente alheia a um devaneio romântico ou idealista.
14
Cf. SCHOPENHAUER, 2005, III, § 51. Devemos destacar que Schopenhauer, na sua hierarquização
metafísica das belas-artes, ao eleger a Tragédia como a arte mais elevada dentre daquelas que representam
imediatamente as Idéias, considerava que a tragédia moderna, influenciada pela visão de mundo cristã,
seria superior à tragédia grega, pois esta demonstraria o embate do herói contra as leis divinas, a ordem
estabelecida e o seu anseio de superar os seus limites mediante feitos extraordinários, enquanto aquela
pretenderia exercer uma função apaziguadora do ânimo humano, mediante a demonstração de que o
mundo, sendo intrinsecamente malévolo, não é o palco dos justos, dos honestos, mas dos pérfidos, e são
esses que triunfam empiricamente. Todavia, cabe ao homem de boa vontade a resignação e a renúncia ao
agir, pois somente assim ele pode obter a paz de espírito que tanto anseia, mediante a supressão do seu
querer. Mais ainda, não deixa de se manifestar em tal perspectiva a confiança numa justiça eterna, que
punirá noutro mundo os abusos da tirania, pois do momento em que é uma concepção baseada na moral
13
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
passividade diante do mundo, mas sim a possibilidade de instauração de um sentimento
muito mais ativo e poderoso, que fizesse o ser humano, ao despertar na sua vida a
sabedoria trágica, apreender a realidade do mundo sem se deixar limitar pelo medo
diante da transformação ou pela injúria contra a natureza pelo fato de ter nascido, como
preconizaria uma interpretação da existência norteada por princípios metafísicos. 15 A
perpetuação da existência evidenciada pelo coro trágico é uma refutação de qualquer
traço moralizante na vivência do espírito da tragédia grega, circunstância que leva a
Nietzsche a afirmar que
É nesse coro que se reconforta o heleno com o seu profundo sentido das coisas, tão
singularmente apto ao mais terno e ao mais pesado sofrimento, ele que mirou com olhar cortante
bem no meio da terrível ação destrutiva da assim chamada história universal, assim como da
crueldade da natureza, e que corre o perigo de ansiar por uma negação budista do querer. Ele é
salvo pela arte, e através da arte salva-se nele – a vida (NIETZSCHE, 1996, § 7).
A potência dionisíaca representa simultaneamente o grande corpo da vida e as
condições nutrícias pelas quais as expressões singularizadas podem se manifestar na
natureza, pois Dionísio, na sua disposição trágica de retornar ao primado telúrico da
existência, doa a sua vitalidade intrínseca para todos. Nietzsche afirma que
Com isso se indica que tal despedaçamento, o verdadeiro sofrimento dionisíaco, é como uma
transformação em ar, água, terra e fogo, que devemos considerar, portanto, o estado da
individuação, enquanto fonte e causa primordial de todo sofrer, como algo em si rejeitável. Do
sorriso desse Dionísio surgiram os deuses olímpicos; de suas lágrimas, os homens. Nessa
existência de deus despedaçado tem Dionísio a dupla natureza de um cruel demônio embrutecido
e de um brando e meigo soberano Dionísio, produto do divino casamento entre o céu e a terra, é
ao mesmo tempo governador clemente e homem feroz, trazendo consigo a promessa do próprio
renascimento, que reunirá o mundo e acabará com a dolorosa existência limitada pela
individuação (NIETZSCHE, 1996, § 10).
cristã, um dos elementos que sustentam essa firme resignação é justamente a esperança na ação equânime
de uma instância divina a punir a maldade humana. Podemos encontrar um exemplo dessa perspectiva na
cena final da tragédia Emília Galotti de G. E. Lessing, em que o pai da personagem título profere ao
infame príncipe Gonzaga o discurso de que a justiça que não se realiza na Terra se realizará perante o
julgamento divino, pois o soberano, na sua lascívia, empregou todos os recursos para saciar as suas
inclinações sexuais diante da casta Emília Galotti, arruinando a sua esperança de obter um casamento
feliz com o Conde Appiani pelo fato deste ter sido assassinado numa emboscada pelos sicários do
soberano.
15
Peter SZONDI, no seu Ensaio sobre o Trágico, p. 69, nos fornece uma elucidação de grande
importância sobre o ultrapassamento de Nietzsche em relação ao sistema de Schopenhauer na questão do
efeito da cena trágica para a vida: “Em Schopenhauer, a vontade suprime a si mesma, por meio do
processo trágico em que suas manifestações se dilaceram, tendo como efeito no espectador o abandono de
si, a resignação graças ao conhecimento. Para Nietzsche, por sua vez, o dionisíaco irrompe de seu
despedaçamento na individuação justamente como um poder indestrutível, que constitui então a
“consolação metafísica” oferecida pela tragédia”.
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
O desmembramento sagrado de Dioniso é o processo cósmico que permitirá a
constituição da raça humana, e a grande dádiva desse acontecimento é que a carne
divina de Dioniso, matéria-prima de nossa condição humana, faz com que portemos
conosco a centelha divina da criação e da beleza. 16 A celebração dionisíaca, seja no seu
ritual omofágico noturno, seja nos seus preceitos iniciáticos dos mistérios ou ainda na
sua expressão musical, pretendia resgatar essa característica primordial de que a vida
humana decorre de uma longínqua origem divina, olvidada ao longo das eras pelo
contínuo desenvolvimento da consciência da individuação; mais ainda, morte e vida são
instâncias indissociáveis: “Cada instante devora o precedente, cada nascimento é a
morte de incontáveis seres, gerar, viver e morrer são uma unidade”, é o que afirma
Nietzsche acerca desse mistério assimilador presente na potência dionisíaca da natureza
(2005a, “O Estado Grego”, p. 44-45).
A natureza vence a civilização, a tradição cultural, a diligente obra humana,
revelando nitidamente a fragilidade dos limites normativos impostos pela ordenação
social estabelecida ao indivíduo, trazendo novamente para si aquele que dela tanto se
esforçou para se diferenciar axiologicamente, o próprio ser humano. A vitalidade
dionisíaca, abolindo a formalidade artificial dos costumes normativos, traz à luz o
mundo em sua forma primeva, como primitivo furor e gozo sem limites. 17 Nietzsche
considera que a tragédia grega enunciava uma espécie de “doutrina misteriosófica”,
segundo a qual haveria uma unidade subjacente a tudo aquilo que existe de forma
individualizada e separada entre si no mundo, a grande matriz natural dionisíaca
(NIETZSCHE, 1996, § 10). A divisão do ser humano na sua condição individual seria,
sob determinado aspecto, o motivo pelo “mal da existência”, que pode ser resolvido
mediante o restabelecimento da unidade primeva (NIETZSCHE, 1996, § 10).
Entretanto, por tal “mal da existência” não se deve compreender uma mácula metafísica,
sendo plenamente incompatíveis ao pensamento trágico quaisquer valorações
Como contribuição para essa questão, é importante destacar que, segundo a mitologia grega, o primeiro
Dioniso, após ser despedaçado e deglutido pelos Titãs, é justiçado por Zeus, que pulveriza esses seres que
cometeram essa ação terrível. A partir das cinzas dos Titãs, que de alguma maneira continham fragmentos
do corpo devorado de Dionísio, Zeus constitui a raça humana, cuja matéria-prima, portanto, agrega na sua
constituição o elemento divino e o elemento terreno. Conforme a argumentação de Junito de Souza
Brandão em Mitologia Grega, V. II, p. 118, isso explicaria no ser humano a existência das disposições
maléficas e benéficas: a nossa parte titânica é a matriz do “mal”, mas, como os Titãs haviam devorado
Dionísio, este se deve ao que existe de “bom” em cada um de nós. Essa perspectiva pode ser comparada
com a idéia defendida por Michel Maffesoli em A sombra de Dioniso, p. 78, na qual o autor afirma que
Dioniso desmembrado e devorado pelos titãs serve de adubo ao crescimento dos homens.
17
Cf. OTTO, 2006, p. 122-123.
16
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
normativas e pretensões de aprimoramento moral das condições da vida. O cerne da
questão consiste na idéia de que a vida individualizada não encontra o mesmo grau de
potência afirmativa que a vida imersa na totalidade cósmica da natureza, que acolhe
cada existência em seu seio.
As
inexoráveis
transformações
da
natureza
não
expressam
qualquer
culpabilidade moral, pois a expressão da vida se encontra para além de qualquer esfera
de valor coercitivo ou normativo que impõe um critério extrínseco de conduta ao ser
humano. No âmbito filosófico, o cerne da consciência trágica dos gregos se encontra em
Heráclito, ao considerar o Tempo como uma brincadeira de criança.18 As transformações
contínuas da natureza decorrem sem que haja qualquer necessidade de expiação de uma
pretensa culpa original por uma postulada afronta cometida contra a ordem primordial
do cosmos. Há que se destacar que, nessas condições, a perspectiva trágica da vida
defendida por Nietzsche mediante a influência recebida do pensamento de Heráclito
demonstra uma intensa contraposição ao pensamento de Anaximandro, segundo o qual
todas as formas singularizadas de vida, em decorrência da prática de uma falta
originária cometida no próprio ato da individuação, encontram a punição cósmica
através da própria ordem do tempo, que se encarrega de exercer essa ação reparatória
sobre os seres vivos através da morte. Eis a sentença lapidar de Anaximandro: “De onde
as coisas tiram a sua origem, aí devem também perecer, segundo a necessidade; pois
elas têm de expiar e ser julgadas pelas suas injustiças, de acordo com a ordem do
tempo” (Fragmento DK 1). O discurso de Anaximandro denota um acentuado
pessimismo diante da fragilidade da condição humana, pessimismo esse que é
potencializado pela presença de um argumento moral contra a própria existência
humana, intrinsecamente culpável diante da ordem cósmica. O devir é a emancipação
criminosa em relação ao ser eterno, como uma iniqüidade que deve ser expiada com a
ruína da individuação. Tudo o que uma vez entrou no devir torna a perecer, quer
pensemos na vida humana, quer na água, ou no calor e no frio; onde quer que se
constatem propriedades definidas, pode profetizar-se, segundo uma imensa prova
experimental, o desaparecimento dessas propriedades (NIETZSCHE, 2002, § 4). A
individualização no devir é uma manifestação da hybris. A eternidade e a imortalidade
do ser primordial radicam na sua indeterminação e todo o ser finito é o início de uma
“O Tempo é uma criança, brincando, jogando; de criança o reinado” (ANAXIMANDRO;
HERÁCLITO, 1997, Fragmento DK 52).
18
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
decadência, pois o que tem qualidades definidas está sujeito a evoluir e a morrer.
Conseqüentemente, o devir é necessariamente punido e a existência da multiplicidade
expia-se pelo sofrimento e pela morte da individuação. Se há uma unidade eterna, como
é que a multiplicidade é possível? A resposta para essa indagação se encontra no caráter
contraditório dessa multiplicidade, que a si mesma se devora e se nega (NIETZSCHE,
2002, § 4).
Essa disposição um tanto tenebrosa da existência é transformada pela
perspectiva de Heráclito, que compreende a experiência vital de mudança contínua das
coisas no decorrer do tempo como um processo extra-moral, tal como a brincadeira de
uma criança, inocente, desprovida de malícia. A vida como um grande jogo é uma
espécie de aceitação de um mundo tal como ele é, quer dizer, um mundo marcado pelo
efêmero.19 Mesmo Homero, apesar de sua contínua afirmação da beleza e da dignidade
gloriosa dos seus heróis, dissera que as gerações humanas desaparecem como as folhas
das árvores.20 O espírito trágico, todavia, não se lamuria diante desse acontecimento
inexorável, proporcionando, pelo contrário, uma integração radical da individualidade
no turbilhão cósmico da vida e dos seus múltiplos processos assimiladores. Conforme
Nietzsche,
O dizer sim à vida, mesmo em seus problemas mais estranhos e difíceis; a vontade de viver, no
regozijo sobre sua própria inexaurabilidade, e mesmo no próprio sacrifício de seus tipos mais
altos – isso é o que chamei dionisíaco, isso é o que compreendi como a ponte para a psicologia
do poeta trágico. Não com o fim de nos livrarmos do terror e da piedade, não com o fim de nos
purgarmos de uma noção perigosa através de sua liberação veemente... mas com o fim de sermos
nós mesmos a eterna alegria de vir-a-ser, além do terror e da piedade – essa alegria que inclui até
a alegria de destruir (NIETZSCHE, 2001, “O nascimento da Tragédia”, § 3).
Viver a perspectiva trágica é viver a satisfação de uma alegria primordial no jogo
de criar e destruir o mundo individualizado, como faria uma criancinha mexendo
displicentemente na areia do mar. A infelicidade não é um castigo, mas alguma coisa
por meio da qual o homem é consagrado, é levado a tornar-se um personagem sagrado.21
O lúdico tende a se manifestar arrastando os indivíduos para a emoção pura, e o
movimento do jogar-brincar literalmente não visa outra coisa que não a auto-satisfação
Cf. MAFFESOLI, 2004, p. 78.
Cf. HOMERO, 2002, Canto VI, vs. 146.
21
Cf. DIAS, 2004, “Dioniso na Grécia Apolínea”, p. 221.
19
20
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
do jogador brincante.
22
A sagrada tarefa de Dionísio consiste em nos tornar mais leves,
em nos ensinar a dançar, em nos dar o instinto do jogo.23 Pela música e pela dança, o
homem encontra a possibilidade de união com os ritmos e pulsações do universo. 24
A sabedoria alcançada pela identificação com Dionísio é a do permanente devir
das coisas e do jogo, aparentemente sem sentido, do desfazer de todo o existente. 25
Nietzsche considera que “o prazer que o mito trágico gera tem sua pátria idêntica à
sensação prazerosa da dissonância na música. O dionisíaco, com o seu prazer primordial
percebido inclusive na dor, é a matriz comum da música e do mito trágico”
(NIETZSCHE, 1996, § 24).26 A visão trágica de mundo nos faz compreender
intimamente que o valor da existência se encontra presente em si mesmo, no seu próprio
matiz ontológico, descartando-se então a pertinência de qualquer especulação
transcendente de mundo, na qual se creria na existência de outra dimensão da realidade,
esta sim proclamada como a “autêntica” no sentido pleno da palavra. Essa compreensão
da natureza trágica do existir, destituída de conotações moralistas, enfatizava a
necessidade da integração mútua entre as diversas formas singularizadas de vida. A
“serventia” axiológica do “consolo metafísico” para a vida cultural dos gregos consistia
em demonstrar ao espectador trágico que a existência marcada pela individuação é uma
espécie de distorção da compreensão gnosiológica da realidade proporcionada pelo véu
de ilusão que cobre todas as coisas, pois que as formas individualizadas existentes no
mundo são meros desdobramentos da fonte primordial da natureza, desdobramentos que
não possuem existência singularizada em um âmbito originário. Para Nietzsche,
No estado de “estar fora de si”, do êxtase, somente um passo é ainda necessário: que não
voltemos a nós mesmos novamente, mas entremos em um outro ser, de modo que nos portemos
como encantados. Por isso, o profundo espanto diante do espetáculo do drama toca a última
profundeza: vacila o solo, a crença na indissolubilidade e na fixidez do indivíduo (NIETZSCHE,
2005b, p. 55-56).
Cf. RETONDAR, 2007, p. 53.
Cf. DELEUZE, 2001, p. 30.
24
Cf. ARAÚJO, 1985, p. 120.
25
Cf. VAZ PINTO, 1989, “A Filosofia na Idade Trágica dos gregos: da sabedoria dos filósofos trágicos à
inversão do socratismo”, p. 36.
26
Diz Nietzsche no Crepúsculo dos Ídolos, “O que devo aos antigos, § 5: “O fim da tragédia não é
desembaraçar-se do medo e da piedade, nem purificar-se de uma paixão perigosa, mediante sua descarga
impetuosa – como o entendeu Aristóteles – mas realizar-se em si mesmo, acima do medo e da piedade, é a
eterna alegria que leva em si o júbilo do aniquilamento.” A concepção aristotélica da catarse se encontra
na Poética, 1449b-27.
22
23
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
Além das figuras fenomênicas, separadas individualmente pelas categorias do
espaço e do tempo, se encontra a grande unidade cósmica da vida, que rompe as cadeias
limitadoras da extensividade material e da própria individualidade (NIETZSCHE, 1996,
§ 7). O “consolo metafísico” seria uma espécie de apanágio obtido pelo espectador
capaz de perceber intuitivamente a condição extraordinária da existência, cuja fonte
vital jamais se esgota, mesmo diante da supressão das suas inúmeras formas,
individualmente configurada. Tratava-se, portanto, de uma experiência mística na qual o
caráter sagrado da vida se revelava ao íntimo do indivíduo, sem que houvesse qualquer
mediação da racionalidade lógica nessa experiência transfiguradora. Nietzsche destaca
que
O sátiro, enquanto coreuta dionisíaco, vive numa realidade reconhecida em termos religiosos e
sob a sanção do mito e do culto. Que com ele comece a tragédia, que de sua boca fale a
sabedoria dionisíaca da tragédia, é para nós um fenômeno tão desconcertante como, em geral, o é
a formação da tragédia a partir do coro. Talvez conquistemos um ponto de partida para a nossa
indagação, se eu introduzir a afirmação de que o sátiro, esse ser natural fictício, está para o
homem civilizado na mesma relação que a música dionisíaca está para a civilização [...] Da
mesma maneira, creio eu, o homem civilizado grego sente-se suspenso em presença do coro
satírico; e o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o estado e a sociedade, sobretudo o
abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que
reconduz ao coração da natureza (NIETZSCHE, 1996, § 7).
Esse miraculoso prazer estético decorrente da percepção trágica da existência
representa
a
manifestação
insuperável
da
alegria
dionisíaca,
a
qual,
mesmo ciente da iminência da morte para todas as formas viventes, supera o
pessimismo prático de Sileno, o sábio sátiro que proclama a ausência de qualquer
sentido maior para a existência humana. De acordo com os dizeres de Nietzsche,
Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta durante longo tempo, sem conseguir
capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas
mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem.
Obstinado e imóvel, o daimon calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por
entre um riso amarelo, nestas palavras: ‘- Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do
tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti salutar não ouvir? O melhor de tudo é
para ti inteiramente inatingível: não ter nascido não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor
para ti é logo morrer (NIETZSCHE, 1996, § 3).
Esse é o quinhão da “infeliz” condição humana que vive na era da Quinta Raça,
a tenebrosa Raça de Ferro, em que não cessam a fadiga e as misérias, em que os bens
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
estão misturados aos males, nesta idade das desonras, em que os laços de sangue não
são mais respeitados, em que impera a justiça da força, em que ninguém é mais fiel a
qualquer juramento.27 No entanto, essa visão de mundo não significa impedimento ou
tristeza paralisante para o homem trágico, pois ele se posiciona afirmativamente diante
de sua própria limitação pessoal, sabendo então utilizar o acaso das forças cósmicas que
se manifestam no mundo para realizar na sua vida a relação inebriante com o mundo. A
circunstância extraordinária que rompe com essa amargura sapiencial da existência é a
compreensão nítida da eternidade de vida, que perpassa tudo aquilo que existe, pois que
toda a natureza, para além da perspectiva individual, está intimamente interligada. O
duro discurso de Sileno, que a princípio causava um terrível desgosto no homem grego,
agora não exerce mais a sua desagradável força moral de estímulo de renúncia ao agir e
ao criar, pois a cultura trágica vivencia plenamente a idéia de que o mundo é
maravilhoso e divino, mesmo nas suas condições mais desfavoráveis para a manutenção
da individualidade pessoal. Se a vida humana é intrinsecamente limitada pelo efeito do
tempo cronológico e pelas situações inesperadas que ameaçam a continuidade da
existência, que ela seja vivida assim mesmo, com todo o regozijo e reconhecimento ao
mundo materno que nos circunda. Desse modo pensa a consciência trágica de mundo.
Regalando-se nessa percepção mística que supera os limites frágeis da
individuação, o homem trágico ri da sua própria finitude extensiva, condição que não é
mais digna de vitupério, pois há algo nele que é eterno, permanecendo continuamente
nos demais viventes. A alegria consiste numa aprovação da existência tida por
irremediavelmente trágica: neste caso a alegria é paradoxal, mas de modo algum ela é
ilusória.
28
A dor produtiva, o sofrimento transfigurado, a vida gerando mais vida e a
vida eterna, eis o que representa o drama musical grego. 29
É porque exprime essa potência indestrutível da vida, que se resolve toda na
essência pura do prazer, que o coro satírico irrompe na tragédia grega. 30 A sabedoria
trágica nos leva a compreender que a nossa personalidade se extingue, mas a energia
vital que nos constituía não se esgota jamais, permanecendo nas gerações vindouras dos
Hesíodo trata dessa questão n’ Os Trabalhos e os Dias, vs. 174-201.
Cf. ROSSET, 2000, p. 24-25.
29
Cf. DIAS, 1994, p. 63.
30
Cf. HENRY, 1988, p. 13.
27
28
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
seres vivos. O “consolo metafísico” consistiria, portanto, numa espécie de grande riso
da consciência trágica diante da cessação do medo e da angústia do indivíduo pela
ameaça do seu aniquilamento existencial, circunstância que resultaria na sua imersão
numa espécie de grande “vazio cósmico”, que demonstraria a falta de um significado
moral e teleológico genuíno da vida. Esse riso trágico diante da vitória sobre o
pessimismo não expressa sarcasmo, mas sim a mais pura gratidão ao poder configurador
da natureza pelo fato de ser concedida a existência ao indivíduo, que em sua condição
intrínseca expressa criativamente a vitalidade cósmica que nele se manifesta. Para
Deleuze, “Rir é afirmar a vida e, na vida, até o sofrimento. Jogar e afirmar o acaso e, do
acaso, a necessidade. Dançar é afirmar o devir e, do devir, o ser.” (DELEUZE, 2001, p.
255).
Nessas condições, podemos considerar o culto apolíneo-dionisíaco, que
encontrou a sua expressão valorativa mais poderosa na Tragédia Ática, como um culto
divino que preconizava acima de tudo o despertar da força intrínseca contida no âmago
de cada um dos seus adeptos, epifania que possibilitava o contínuo reflorescimento da
criação cultural dos antigos gregos, pois a matriz da natureza fora alçada ao patamar da
grande formadora de novos mundos, na medida em que a individuação sucumbiu ao
irresistível poder do tempo. Exemplo extraordinário do poder afirmativo da vida, a
interação apolíneo-dionisíaca, manifestada nos diversos modos de expressão da era
trágica dos gregos, evidenciou uma possibilidade de compreendermos uma vivência
religiosa através de uma perspectiva imanente, destituída de traços apologéticos de
sanções a ser aplicadas numa esfera espiritual àqueles que porventura não se
enquadrassem nos parâmetros estabelecidos. Dessa maneira, se evitou que o princípio
apolíneo, de natureza essencialmente prescritiva, abusasse do controle social acerca das
ações individuais, e que os ritos dionisíacos, que em estado bruto eram excessivamente
desmedidos, conduzissem o indivíduo ao seu aniquilamento gratuito. Finalmente
unificados pela cultura trágica dos gregos, o pólo dionisíaco e o pólo apolíneo passam a
exercer uma ação mútua de fiscalização, onde cada um exercia as suas características
naturais de ruptura e ordenamento. De forma lapidar, Scarlett Marton define o que vem
a ser o dionisíaco e o apolíneo na filosofia de Nietzsche: “Dionisíaco é o princípio que
quebra barreiras, rompe limites, dissolve e integra; apolíneo, o que delineia, distingue,
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
dá forma” (Cf. MARTON, 2000, p. 71). Incipit tragoedia, eis a palavra especial para a
imersão humana na disposição trágica da vida.
Referências bibliográficas
ANAXIMANDRO; HERÁCLITO. Fragmentos e Doxografia. In vol. “Os PréSocráticos”, col. Os Pensadores. Trad. de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova
Cultural, 1997.
ANDLER, Charles. Nietzsche: sa vie et sa pensée (3vols). Paris: Gallimard, 1958.
ARAÚJO, Rosângela N. de. Roteiro Trágico de um herói. Rio de Janeiro: Achiamé,
1985.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Eudoro de Souza. Lisboa: INCM, 1992.
BACHOFEN, Johann Jakob. El Matriarcado – una investigación sobre la ginecocracia
en el mundo antiguo según sua naturaleza religiosa y jurídica. Trad. Esp. de Maria del
Mar Llinares Garcia. Madrid: Akal, 2007.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1987.
COLLI, Giorgio. Escritos sobre Nietzsche. Trad. de Maria Filomena Molder. Lisboa:
Relógio d’água, 2000.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. de António M. Magalhães. Porto: RésEditora, 2001.
DIAS, Rosa Maria. “Dioniso na Grécia apolínea” In: Peter Pál Pelbart e Daniel Lins
(org.) Nietzsche e Deleuze, Bárbaros e Civilizados. São Paulo: Annablume, 2004, p.
215-225.
______. Nietzsche e a Música. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
DÌAZ, Elvira Burgos. Dioniso en la filosofía del joven Nietzsche. Zaragoza: Prensas
Universitárias de Zaragoza, 1993.
ÉSQUILO. Prometeu agrilhoado. Trad. de Ana Paula Quintela Ferreira Sottomayor.
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
Lisboa: Ed. 70, 1992.
GUINSBURG, Jacó. “Nietzsche no Teatro” In: Da Cena em Cena. Ensaios sobre
estética e história do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
HARTMANN CAVALCANTI, Anna. “Arte como experiência: a tragédia antiga
segundo a interpretação de Nietzsche” In: BARRENECHEA, Miguel Angel de;
PINHEIRO, Paulo; FEITOSA, Charles (org.) Nietzsche e os Gregos. Arte, Memória e
Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 49-63.
HENRY, Michel. A Morte dos Deuses – vida e afetividade em Nietzsche. Trad. de
Antônio José Silva e Souza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
HESÍODO. Teogonia – Trabalhos e Dias. Trad. de Ana Elias Pinheiro e José
Ribeiro Ferreira. Lisboa: INCM, 2005.
HOMERO. Ilíada. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. de Artur M. Parreira.
São Paulo: Martins Fontes, 1995.
KERÉNYI, Karl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. Trad. de Ordep
Serra. São Paulo: Odysseus, 2002.
LESSING, Gotthold Ephraim. Emilia Galotti e Minna von Barnheim ou A Felicidade
do soldado. Trad. de Marcelo Backes. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999.
MACHADO, Roberto. Zaratustra: Tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997.
MAFFESOLI, Michel. O Instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pósmodernas. Trad. de Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2004.
______. A sombra de Dioniso – contribuição a uma sociologia da orgia. Trad. de
Rogério de Almeida. São Paulo: Zouk, 2005.
MALHADAS, Daisi. Tragédia Grega: o mito em cena. Cotia: Ateliê Editorial, 2003.
MARTON, Scarlett. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São
Paulo: Discurso Editorial, 2001.
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
______. Nietzsche – das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Ed.
da UFMG, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Cinco Prefácios para Cinco Livros não escritos. Trad. de
Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005 (a).
______. Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo. Trad. de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (a).
______. Ecce Homo – como alguém se torna o que se é. Trad. de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Trad. de Maria Inês Madeira
Andrade. Lisboa: Ed. 70, 2002.
______. Introdução à Tragédia de Sófocles. Trad. de Ernani Chaves. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006 (b).
______. O nascimento da Tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. de J.
Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
______. A visão dionisíaca de mundo; O Drama Musical Grego; Sócrates e a
Tragédia. Trad. de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Maria Cristina dos Santos de
Souza. Martins Fontes: São Paulo: 2005 (b).
OTTO, Walter Friedrich. Teofania: o espírito da religião dos gregos antigos. Trad. de
Ordep Serra. São Paulo: Odysseus, 2006.
RETONDAR, Jeferson José Moebus. Teoria do Jogo: a dimensão lúdica da existência
humana. Petrópolis: Vozes, 2007.
ROSSET, Clément. Alegria: a força maior. Trad. de Eloisa Araújo Ribeiro. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2000.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. Trad.
de Jair Barboza. São Paulo: Edusp, 2005.
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana [“Édipo Rei”, “Édipo em Colono”, “Antígona”]. Trad.
de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Revista Aproximação – 2° semestre de 2009 – N° 2
SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Trad. de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
TRABULSI, José Antônio Dabdab. Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o
fim da época clássica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
VAZ PINTO, Maria José. “A Filosofia na Idade Trágica dos gregos: da sabedoria dos
filósofos trágicos à inversão do socratismo” In: António Marques (org.) Cem anos após
o projeto “vontade de poder – transmutação de todos os valores”. Lisboa: Vega,
1989, p.33-49.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Trad. de Joana Angélica
d’Ávila. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao

Documentos relacionados

Schopenhauer, Nietzsche, a eternidade da vida

Schopenhauer, Nietzsche, a eternidade da vida círculo a inexistência de uma finalidade ulterior na existência, proclamando que toda a vida faz parte de um processo incessante de renovação e dissolução dos seus caracteres. Quando a moralidade m...

Leia mais