Estratégia Editorial e Modelo Editorial

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Estratégia Editorial e Modelo Editorial
Estratégia editorial e modelo editorial
Guilherme Cunha Pereira
As empresas que têm por atividade principal o jornalismo, não importa qual plataforma utilizam, passam
indubitavelmente, na sua grande maioria, por momentos de grande turbulência. As apreensões quanto ao
futuro justificam-se, porque grandes são as incertezas quanto à possibilidade de se encontrar um modelo
econômico equilibrado – que permita fazer face às despesas significativas que em geral compulsar,
processar e difundir informação trazem consigo – num momento em que os principais pilares de sustentação
financeira do setor estão sendo duramente abalados: publicidade (e classificados, no caso dos jornais) , de
um lado, disputados por novos players, a maioria dos quais de alcance global e dedicados a outras atividades
(motores de busca digitais e redes sociais, por exemplo) e receitas da audiência, de outro, com um público
resistente a pagar por um conteúdo tido com muita freqüência como fungível, intercambiável.
Por outro lado, a convicção da importância crucial que o jornalismo tem para a vida em sociedade e para a
democracia em especial alimenta um otimismo que, considerado à luz de outras experiências empresariais,
poderia soar ingênuo e irracional. O fato é que esse otimismo vibra em boa parte dos profissionais dedicados
de uma forma ou outra à atividade jornalística e tem levado os inúmeros empresários do setor a uma busca
incessante por soluções. Boas notícias surgem aqui e ali, o que reaviva a esperança de tempos melhores,
esperança, no entanto, cuja materialização mais plena talvez ainda tarde bastante para se dar.
Este artigo não pretende discutir possíveis caminhos ou soluções para o problema em geral do financiamento
da atividade jornalística, até porque muito provavelmente essas soluções deverão ser multifacetadas, quando
não dependentes de inovações disruptivas ou de mudanças estruturais de maior envergadura do setor ou da
própria sociedade. Compartilhando, contudo, daquele “otimismo ingênuo”, pretende-se aqui dar uma
contribuição para um aspecto concreto da gestão das empresas informativas, com a convicção de que um
aperfeiçoamento nesse aspecto poderá deixar os veículos melhor preparados para aproveitar os bons ventos
que porventura voltem a soprar.
O aspecto que vai ser analisado é o da elaboração da estratégia, modelo e projeto editoriais dos veículos
jornalísticos. Minha experiência como diretor e professor de um programa de gestão de empresas de mídia
para editores de todo o Brasil, mas sobretudo minha experiência à frente de um grupo regional de
comunicação, integrado por vários veículos de diferente índole, levaram-me a perceber a necessidade de se
elaborar uma abordagem um pouco mais estruturada de reflexão sobre esse tema e da conseqüente
construção e definição de um projeto editorial.
Há na história e na atualidade inúmeros casos de empresas jornalísticas muito bem sucedidas, o que
pressupõe nelas obviamente a existência, ainda que implícita, de boas estratégias e projetos editoriais. O
caráter implícito, no entanto, tão freqüente, pode significar que a verdadeira causa do sucesso – qual
elemento específico do modelo editorial, por exemplo – seja desconhecida e não chegue a vir á tona. Ou,
então, que esse sucesso esteja amparado em bases frágeis, sejam elas a intuição notável, não racionalizada,
de alguns de seus gestores ou a excelência em apenas alguma ou algumas dimensões, nem sempre aptas a
perpetuar-se. Muitas vezes ainda, trabalha-se com qualidade segundo os padrões gerais da profissão
jornalística1, sem que a isso tenha precedido a elaboração explícita de diretrizes ou de um projeto
abrangentes. Não é infreqüente, por outro lado, que uma única grande idéia ou diretriz, motivadora do
próprio empreendimento, seja a guia e fonte de inspiração de todo o trabalho2. Naqueles casos em que há
elementos para se falar com propriedade em uma estratégia ou projeto explícitos, conscientemente
formulados e disseminados, depara-se, mesmo assim, com muitas lacunas ou, então, com muitas premissas
não formalmente articuladas ou não submetidas a um crivo crítico.
É no sentido de contribuir a suprir referidas lacunas que nasce a presente proposta, pois parece possível
mapear um pouco melhor os parâmetros ou variáveis críticas que influem na personalidade de uma
plataforma jornalística, o que pode ajudar a dar mais luz para tomadas de decisão quando de mudanças
significativas no cenário competitivo.
Antes de abordar o tema, uma observação preliminar:
Explicitação e consistência na gestão geral de uma empresa informativa
Um desafio permanente para qualquer organização empresarial é o de garantir consistência em todo o ciclo
de gestão que vai das definições essenciais da identidade da entidade, passa por sua estratégia e termina na
operação. As três dimensões fundamentais, a) a essencial (tipicamente materializada no tripé missão, visão e
valores), b) a estratégica e c) a operacional, com muita freqüência dialogam com dificuldade, quando não
estão em aparente ou até em aberto conflito.
Muitas vezes, o conflito se instala por uma insuficiente explicitação das idéias fundamentais que se quereria
que norteassem a organização. A explicitação é valiosa porque ela tende a alinhar as equipes, a minimizar
dissensões ocultas, a perpetuar e despersonalizar a estratégia e, não menos importante, a liberar os talentos,
facilitando esforços convergentes. Na ausência dela, torna-se muito difícil obter a adesão consciente da
totalidade dos colaboradores, e, involuntariamente, criam-se rupturas ou inconsistências que podem demorar
a ser percebidas e que minam os resultados pretendidos.
Compreender bem todo esse ciclo, estruturar depois e explicitar uma estratégia condizente com as
convicções essenciais, também previamente explicitadas, plasmar processos alinhados com todas essas
definições e, por fim, saber que ferramentas aplicar para assegurar, perpetuar e fortalecer ao longo do tempo
essa amarração3 é uma arte decisiva para uma gestão efetiva, mas cobra uma relevância toda especial para as
organizações informativas.
De fato, nas empresas de comunicação, a estratégia, mas sobretudo as concepções essenciais, que não se
reduzem ao tripé missão, visão e valores, englobando ainda aquilo que poderíamos chamar de convicções
essenciais acerca do homem e da sociedade e a própria filosofia editorial, têm e devem ter um peso muito
grande na operação diária de definir o que se vai comunicar, o que se vai difundir. Quanto, portanto, mais
1
Cf. Sánchez-Tabernero, Alfonso. Los contenidos de los médios de comunicación. REF. Como alerta o próprio autor, no entanto,
muitas vezes os padrões da profisssão não estão em sintonia com as expectativas do público e podem gerar, após certo tempo,
uma rejeição difícil de diagnosticar.
2
Não se quer aqui tirar importância dessas intuições, dessas diretrizes ou idéias-força. Pelo contrário, reconhece-se plenamente
seu valor. Há experiência acumulada suficiente no mundo da comunicação, e no mundo empresarial em geral, para dar-se conta
de que isso pode ser quanto basta para construir uma organização de grande sucesso. Quer-se aqui simplesmente observar o
risco de um modelo implícito e as vantagens de uma cada vez maior consciência dos inúmeros fatores que “jogam” na definição
de um modelo editorial.
3
Cfr., em sentido similar, Kaplan e Norton, HBR, January 2008, p. 63.
capacidade se tiver de construir um modelo consistente, em que as três dimensões dialoguem em perfeita
sintonia e se fecundem continuamente, e mais capacidade se tiver de explicitar e difundir todo o modelo para
a equipe, tanto maiores as chances de se obter uma execução de alta performance e excelência.
Ao contrário do que se poderia esperar, no entanto, são poucos hoje os meios de comunicação que divulgam
sua filosofia editorial, suas convicções essenciais e suas principais diretrizes editoriais. Concorrem para esse
fato a dificuldade de se formular de forma sintética e não simplista idéias complexas relativas à própria
cosmovisão, a dificuldade de, num mundo tão cambiante, manter-se substancialmente fiel às mesmas
convicções, o receio de vir a ser responsabilizado judicialmente pelo eventual contraste entre o que se
publicou e as convicções declaradas, etc. Mas talvez mais decisivo seja a cultura predominante que leva
muitos jornalistas e empresários da comunicação a crer que fazer bom jornalismo é substancialmente seguir
os padrões de qualidade da atividade, tal e como se encontram difusamente definidos no momento. Nem
sempre, portanto, se tem uma percepção clara dos vários elementos que configuram e deveriam configurar
um projeto editorial4.
Não é objeto do presente trabalho discutir a dimensão essencial dos veículos de comunicação. Ainda que
decisiva, está fora do alcance da presente análise. Alerta-se aqui para a importância de densificá-la e
explicitá-la melhor. Para os fins deste artigo, no entanto, partiremos da pressuposição de que as idéias
“fundantes” da organização estão suficientemente definidas, e de que se está, portanto, em condições de
iniciar a próxima etapa, a da definição da estratégia editorial. Não se irá tampouco ao detalhamento total
dessa estratégia, que só termina na verdade com as últimas definições acerca do desenho do projeto editorial
tal e qual ele deve ver a luz do dia. Encerraremos, portanto, em uma etapa anterior.
Escolha do público-alvo, determinação da finalidade ou finalidades editoriais pretendidas, descrição da
personalidade almejada e definição dos principais itens do modelo editorial vão ser os passos sugeridos.
Ainda quanto aos limites deste texto, observe-se que o trabalho de gestão que consiste em implantar os
mecanismos para assegurar que o veículo “realize” a estratégia desenhada tampouco será abordado. Por fim,
impende observar que a estratégia editorial é apenas um dos elementos da estratégia total da empresa
informativa, elemento sem dúvida nenhuma fulcral, mas que não esgota a totalidade dessa estratégia.
Parte I. Finalidades editoriais
1. Elementos para a elaboração de uma estratégia editorial
Há duas questões iniciais fundamentais que devem ser respondidas quando se pensa em construir a
estratégia editorial de um veículo de informação. A primeira delas é evidente: a quem estará dirigido o
conteúdo? Que público pretendo atender? Esta questão, como a outra que se mencionará em breve,
4
É claro que, ao fim e ao cabo, o produto que sai às ruas – seja ele um jornal impresso, uma revista, um programa de Tv ou de
rádio, um site ou tenha qualquer outro formato –, sai completo, com uma determinada configuração, com os detalhes
suficientes para que se configure como um produto, o que dá a impressão de ter atrás de si toda uma clara elaboração,
estruturada e coerente. Em certo sentido, bem ou mal, o veículo é sempre um projeto completo. É sua consistência, ou seja, a
adequada integração entre suas várias partes ou ainda uma certa identidade no tempo, que pode ser, e com freqüência é, muito
problemática. Que surpresa muitos clientes desses veículos teriam se se dessem conta da debilidade conceitual e estrutural em
que se fundam.
condiciona inúmeras variáveis do modelo editorial que se vai adotar. Assim, por exemplo, um jornal dirigido
prioritariamente a um público de menor instrução e de menor poder aquisitivo terá umas características,
tanto de abordagem, quanto de formato físico e gráfico, como, ainda, de temática, sensivelmente diferentes
das de um assim chamado quality paper.
A segunda questão pode parecer menos óbvia. E é a seguinte: que “finalidades comunicacionais” pretendo
com este veículo de informação? Isto é, que objetivos pretendo alcançar com a comunicação, com a
informação? Que efeitos pretendo gerar no público para o qual é dirigido o conteúdo?
A questão não é óbvia por basicamente duas razões. Em primeiro lugar não está evidente para todos os que
teorizam sobre o jornalismo ou exercem atividades jornalísticas que podem existir muitas diferentes e
legítimas finalidades comunicacionais. Há, não parece haver dúvidas, finalidades espúrias, ou melhor dito,
desvios de finalidade, que deturpam a atividade a ponto de descaracterizá-la, como é o caso do chamado
jornalismo marrom ou amarelo, do recurso à mentira sistemática, à manipulação. Nestes casos, nem se pode
falar propriamente em jornalismo, ou, nas hipóteses mais brandas, só se pode falar em jornalismo de um
modo derivado e por analogia. Não é nesse sentido que se deve entender a existência de múltiplas
finalidades. O que se quer dizer é que, mesmo dentro do âmbito do jornalismo de qualidade, há muitas e
valiosas possibilidades de objetivos e finalidades. Quando se exemplificar esta tese isso ficará mais patente.
Em segundo lugar, é comum não dar-se conta de que a própria concepção do que seja ou não notícia
depende em larga medida dos fins que se entende serem ínsitos ao jornalismo5.
Se se admite a existência de múltiplas finalidades legítimas e se se admite a constatação de que da escolha
ou hierarquização dessas finalidades decorrem não poucas conseqüências para o modelo editorial, um
problema típico de estratégia editorial é o de determinar ou fazer essa escolha e essa hierarquização. Mas
não antecipemos as questões, e discutamos um pouco mais a premissa da possibilidade de múltiplos
propósitos no jornalismo e o seu significado.
2. Finalidades editoriais. Para que serve o jornalismo
Bill Kovach e Tom Rosenstiel, em seu excelente Os elementos do Jornalismo6, defendem que,
fundamentalmente, a finalidade do jornalismo é sempre a mesma7. Amparados em numerosas pesquisas com
centenas de profissionais ligados ao jornalismo, acreditam ter constatado entre os que exercem a profissão a
presença de um propósito sempre constante. Esse propósito seria, na opinião dos autores, “contar a verdade
de forma que as pessoas disponham de informação para sua própria independência”8; em outra formulação:
“a principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem
livres e se autogovernar”9.
A conclusão dos autores é valiosa e põe em destaque suas fortes convicções democráticas. Mesmo não
discordando substancialmente de sua linha de reflexão, é possível dar mais relevo à diferença de matizes na
compreensão da finalidade do jornalismo.
5
Numa dimensão ainda mais profunda, a concepção do que seja ou não notícia depende da concepção que se tenha do homem
e da sociedade, concepção essa que, por sua vez, certamente influi nas convicções acerca da própria finalidade do jornalismo.
6
Kovach, Bill e Rosenstiel, Tom, Os elementos do jornalismo, São Paulo, Geração Editorial, 2003.
7
Idem, p. 33.
8
Idem, p. 34
9
Idem, p. 31
Kovack e Rosenstiel coligem várias definições, várias afirmações sobre o tema, subsumindo-as depois todas
sob uma mesma compreensão, o que não nos parece de todo exato. A opinião de James Carey, professor da
Faculdade de Jornalismo de Columbia e um dos criadores do Committee of Concerned Journalists, de que
“talvez no final das contas o jornalismo simplesmente signifique ampliar e levar adiante as conversas das
pessoas”10, ou a de Omar Wasow, um empresário do mundo digital, de que seu objetivo parcial era ajudar a
fazer cidadãos que são “consumidores, devoradores e desmascaradores da mídia... um público que se
envolveu com o produto e pode responder com cuidado”11; ou ainda, a de que o jornalismo serve para
construir a comunidade, a cidadania, a democracia, contêm todas elas sutilezas, gradações, matizes que
precisam ser distinguidas.
Quando se compulsam as visões dos publishers ou dos editores de grandes veículos ao redor do mundo,
torna-se fácil perceber como os propósitos editoriais fundamentais podem variar de forma não desprezível.
Tome-se, por exemplo, o jornal JoongAng Ilbo, da Coréia do Sul. Seu presidente, Seok-Hyun Hong, entende
que “liderar o público para o futuro”12 é sua obrigação principal. As peculiaridades de uma nação dividida,
as tensões existentes entre norte e sul, levaram o jornal a pretender ser “um unificador de uma sociedade
dividida por barreiras ideológicas, de geração, região e classe”13.
Tome-se ainda a opinião de Hanoch Marmari, editor chefe do jornal Haaretz, de Israel, que entende que sua
função é “fornecer informação, análises, comentários e editoriais contra e a favor de todas as questões de
que pessoas instruídas e conscientes precisam saber. Ter um papel de liderança no debate nacional e
influenciar indivíduos envolvidos nesses principais assuntos. Apresentar matérias relevantes para o leitor
atento e inteligente. Apoiar a democracia, a liberdade de expressão e o direito ao livre acesso à
informação”14.
Por sua vez, Francis Mdlongwa, editor chefe do The Daily News, de Zimbábue, afirma que “o The Daily
News, além de fazer reportagens sobre uma variedade de temas econômicos, políticos e sociais no
Zimbábue, considera-se o garoto propaganda de uma campanha de adesão promovida por muitos
zimbabuenses e seus amigos em todo o mundo, na busca pela democracia e pela liberdade, depois de uma
ditadura de 23 anos no país. Vemos nosso papel não apenas como provedores de notícias, mas como
intérpretes delas em artigos analíticos e matérias que destacam o sentido e o contexto dos eventos num tema
maior da luta pela liberdade – liberdade de imprensa e de expressão, liberdade de se reunir e associar, e
liberdade de poder fazer tudo o que for legal em uma constituição democrática, em um Zimbábue
independente”15.
É claro que há convergências essenciais nessas convicções, mas é patente também como as diferenças são
significativas a ponto de gerar impacto na própria percepção do que é ou não notícia, ou na abordagem que
deve ser dada para tal ou qual tema.
Apenas para ficar com um exemplo bastante expressivo, consideremos o Times of India, que vem se
notabilizando internacionalmente pela qualidade e alcance de suas campanhas em prol da democracia. O
10
Apud Kovach, Bill e Rosenstiel, Tom, cit, p. 31
Apud Kovach, Bill e Rosenstiel, Tom, cit, p. 34
12
Cf. Relatório “Moldando o futuro dos jornais”, volume 2 N°3 junho 2003 © WAN, p.13
13
Idem, ibidem.
14
Idem, p. 29.
15
Idem, p. 35.
11
Times of India usa internamente como slogan de orientação uma metáfora bastante peculiar: “da pele à
espiritualidade”, metáfora que se refere aos círculos concêntricos dos templos indianos e que quer significar
que o jornal deve, no seu esforço para ajudar os leitores a chegarem às suas próprias conclusões e a
transformarem a sociedade, abordar inclusive temas que se refiram ao desejo de melhora de todos os homens
e temas que se refiram a questões de consciência dos cidadãos, temas normalmente ausentes das pautas da
quase totalidade dos veículos de comunicação16.
Em suma, são possíveis diferentes e valiosas finalidades editoriais e a escolha entre elas tem repercussão
evidente e significativa no modelo de jornalismo que se pratica. Isso leva à necessidade de que
conscientemente se explicite quais as finalidades que norteiam o jornalismo da Redação na qual se trabalha.
A explicitação, como já mencionado, é condição de uma maior efetividade e excelência em qualquer
processo de gestão. No caso da gestão editorial, o elemento que, explicitado, mais parece poder contribuir
para gerar os efeitos positivos antes citados, de alinhamento, eliminação de dissensões ocultas, liberação de
talentos, é o da finalidade pretendida. Tipicamente, o fim ou objetivo, de qualquer atividade exercida em
grupo, se ampla e intimamente compartilhado, é um dos principais, se não o principal, fator de motivação
desse grupo e de orientação, nos casos em que a atuação concreta que se precisa adotar não esteja
perfeitamente delineada ou normatizada. Agora, como chegar a uma explicitação adequada, que leve em
consideração múltiplas abordagens e que não seja redutora?
3. Definição das finalidades editoriais
Um método prático de enfrentar esta etapa da estratégia editorial que é a definição das finalidades editoriais
pode ser o que se descreve a seguir e que se desdobra em vários passos. Ele leva em consideração três
ordens de idéias: as concepções prévias – de quem está elaborando a estratégia – de quais sejam as
finalidades do jornalismo (passos 1 e 2); uma reflexão sobre as necessidades em termos comunicacionais da
comunidade que vai ser atendida pelo veículo (passo 3); e o levantamento das aspirações, das expectativas
dessa comunidade em relação aos meios de comunicação (passos 4)
Passo 1. Elenco de possíveis finalidades editoriais
Tomando-se o grupo de pessoas que vai participar diretamente da construção do projeto editorial ou, então,
um grupo mais amplo, constituído, por exemplo, de todos os jornalistas da empresa, pode-se pedir que
pensem e definam qual seja para eles a principal ou as principais finalidades do jornalismo. Minha
experiência como professor e também como publisher de um grupo regional de mídia me conduziu a
perceber que as convicções variam muito, podendo-se chegar com facilidade a dezenas de diferentes
abordagens.
Para exemplificar, tomemos o resultado de uma dinâmica dessas realizada em 2009 com 15 jornalistas do
grupo GRPCOM. A lista alcançada de finalidades do jornalismo foi a seguinte:
Estimular o debate público, a participação social e dar voz à população.
Fiscalizar o poder público.
Prover informações objetivas sobre o que é mais relevante no mundo e no entorno
Estimular ideias e ideais.
16
Cf. idem, p. 20
Ajudar na formação de políticas públicas
Satisfazer a curiosidade imediata.
Prover informações que ajudem nas tomadas de decisão importantes dos leitores (abrir um negócio, casar,
escolha de escola para filhos,etc.)
Prover informações utilitárias (horário dos serviços públicos, datas de concursos, sites úteis, etc.)
Oferecer análises e formar opinião.
Promover o desenvolvimento social e econômico.
Promover os valores humanos.
Fomentar o aprimoramento pessoal.
Revelar a cidade, seus movimentos e tendências.
Representar os leitores. Levar adiante campanhas em prol deles.
Mobilizar, promover a organização da sociedade.
Salvaguardar a memória da sociedade
Há obviamente nessas definições aspectos que se sobrepõem, ideias que são facetas necessárias ou
consequentes de outras, mas não há como negar que se dão diferenças que não devem ser menosprezadas ou
subestimadas. Não é a mesma coisa pensar que a finalidade do jornalismo é fiscalizar o poder público e
pensar que é oferecer análises e formar opinião, nem que prover informações objetivas sobre o que é mais
relevante no mundo e no entorno se equipare a prover informações que ajudem nas tomadas de decisão
importantes dos leitores como abrir um negócio, casar, escolher escola para os filhos, etc. Há, vale repetir,
ênfases, diferenças de relevos, que impactam no jornalismo que se faz, que conformam o modelo da
publicação ou programa que as adotam, algo que é perfeitamente legítimo.
Se poderia tentar argumentar que todas essas diferentes finalidades deveriam ser atendidas por qualquer
meio de comunicação. Isso, no entanto, esbarraria na óbvia limitação de tempo e espaço de qualquer veículo.
Fazer jornalismo é sempre escolher, selecionar, tanto por questões pragmáticas de limitação de recursos
quanto porque o que se espera de qualquer serviço jornalístico é precisamente uma seleção de conteúdos que
faça sentido, que ajude o leitor de uma forma ou outra.
Passo 2. Hierarquização dessas finalidades
Como segundo passo, pode-se pedir ao grupo que, de posse do resultado da etapa anterior, cada um revise
sua posição e hierarquize, da mais para a menos importante, segundo suas concepções, esse rol de
finalidades. A consolidação numérica dos resultados do grupo é um primeiro dado a ser considerado na
definição estratégica.
Passo 3. A idéia de “necessidades comunicacionais” da sociedade
Como é fácil perceber, as etapas anteriores colhem, na prática, as concepções dominantes de jornalismo de
um determinado grupo de profissionais. Concepções que são, na maior parte dos casos, formadas, em cada
profissional, antes de uma reflexão sobre as necessidades, por assim dizer, “comunicacionais” de uma
determinada sociedade.
Não é difícil dar-se conta de que diferentes comunidades, diferentes agrupamentos de pessoas, podem
necessitar, para seu desenvolvimento, de diferentes “serviços comunicacionais”. Os exemplos já citados do
jornal coreano JoongAng Ilbo que quer ser um integrador de seu povo ou o do The Daily News, de
Zimbábue, que almeja mobilizar a sociedade em prol da liberdade, são provas patentes disso. As sociedades
coreana e do Zimbábue vivem momentos históricos muito diferentes. É natural que aquilo que um veículo
de comunicação responsável necessite fazer para contribuir para o desenvolvimento dessas nações varie de
um país para outro. Para tomar ainda mais um exemplo de Rosenstiel, certos programas de rádio na Polônia,
durante a ocupação russa, sentiam-se com a responsabilidade de, com argúcia para fugir da censura, manter
viva a aspiração do povo pela liberdade17. A ênfase na liberdade terá conferido com certeza uma
determinada cor ao jornalismo que se fazia, interferindo na escolha diária dos temas que seriam objeto de
cobertura.
Para algumas comunidades, portanto, pelo momento que vivenciam, o decisivo será o papel didático de um
meio de comunicação; para outras, o papel mobilizador; para uma terceira, outra determinada dimensão, a de
serviço, por exemplo. Daí que, a bem da verdade, a finalidade do jornalismo não deva ser definida a priori,
ou melhor, não possa ser definida à margem das concretas situações por que passe a sociedade que vai ser
servida por esse específico jornalismo. Isto não significa tampouco que, para cada comunidade, em um
específico momento histórico, haja espaço para apenas uma finalidade e, portanto, um modelo de
jornalismo. De forma alguma. Ainda aí são sempre possíveis e legítimas muitas propostas. Apenas se quer
afirmar que um veículo de comunicação que quisesse elaborar uma estratégia editorial deveria considerar
não apenas as finalidades ou os propósitos editoriais decorrentes das convicções prévias de seu corpo de
jornalistas ou de quem tenha o poder de definir o modelo. É necessário refletir acerca da sociedade que se
pretende servir, das circunstâncias por que passa, de suas características específicas, e, portanto, das suas
necessidades comunicacionais. Só assim se poderá formular uma estratégia verdadeiramente vencedora.
É preciso observar, no entanto, que quando se fala de necessidades comunicacionais da sociedade são
possíveis duas óticas: a dos comunicadores e a da sociedade.
A primeira é a que decorre, no fundo, do contraste entre as convicções prévias que cada formulador tenha
acerca do homem e da sociedade e o diagnóstico que ele faça da sociedade na qual vai se desenvolver seu
trabalho. Assim, por exemplo, para alguém que creia que o bem estar de uma sociedade está fortemente
relacionado com a existência nessa sociedade de um forte capital social, representado pelo volume e
qualidade das associações de todo gênero existentes nela, o diagnóstico de que em sua comunidade esse
capital é muito escasso pode levar nosso formulador a considerar que uma prioridade comunicacional para
essa sociedade é o estímulo ao associativismo, à aproximação entre os cidadãos, o que pode traduzir-se por
exemplo numa maior atenção nas pautas às iniciativas do terceiro setor ou na multiplicação de serviços de
orientação para abertura de empreendimentos sociais.
A segunda é a ótica da própria sociedade. O que esperam os cidadãos dos veículos de comunicação? O que
pensa que é indispensável para si a maioria da população ou o público-alvo do veículo? O que essa
sociedade declararia como indispensável para ela mesma? Aqui uma boa pesquisa pode ser o melhor atalho
para poder responder com clareza a esses interrogantes.
Como essas perspectivas podem ser utilizadas no processo de elaboração de uma estratégia editorial? Neste
passo 3, a sugestão é elaborar, com base na lista anterior de finalidades, uma lista modificada, em que a
formulação dos itens considera o que é necessário ou indispensável para a sociedade, em termos de
comunicação social, e submetê-la ao mesmo grupo, para que façam suas escolhas.
Retomando o trabalho realizado no GRPCOM, esta lista foi assim apresentada18:
17
REF
As frases devem ser lidas como que precedidas da seguinte introdução: “o leitor, telespectador, internauta, ouvinte, nessa
sociedade, tem necesssidade de”. A correspondência com a lista de finalidades editoriais é apenas parcial. As diferenças se
18
ser ouvido/ participar/ ter voz
ter o poder público fiscalizado
obter uma boa seleção de notícias: ter um “retrato” do entorno
ter os próprios ideais estimulados
ver que o veículo de comunicação contribui para a formação de políticas públicas
ter a curiosidade satisfeita
obter informação/orientação para tomadas de decisão importantes (abrir negócio, casar, educação dos filhos,
etc.)
obter informações/orientações utilitárias (horário dos serviços públicos, datas de concursos, sites úteis, etc.)
ajuda para formar opinião sobre o mundo e o entorno.
ver promovido o desenvolvimento sócio-econômico
ter referenciais coerentes. Ter valores confirmados
ser estimulado a ser melhor
obter ajuda para a reflexão sobre a vida
sentir-se mais integrado na sociedade. Sentir alargada a sua área de atuação
ver o veículo de comunicação liderando campanhas públicas. Engajar-se nessas mobilizações
ter seu individualismo sacudido
ver a memória da sociedade salvaguardada
ter satisfeita a necessidade de sentir-se retratada
obter ajuda para encontrar o seu grupo (gerar conexões)
ter identificadas as tendências de vanguarda
O que se pediu aos integrantes do grupo é que se indagassem sobre o que cada um deles considerava
indispensável para a sociedade que atendiam, em termos comunicacionais. Dito de outro modo: quais dessas
várias “necessidades comunicacionais” eles consideravam prioritárias nas atuais circunstâncias históricas da
sociedade a que serviam? O resultado consolidado é um segundo dado a ser considerado antes da definição
estratégica de finalidade.
Uma constatação empírica que extraí de trabalhos similares com jornalistas brasileiros de diversos veículos e
de vários níveis de experiência é que raras vezes, pelo menos dentro desse universo, há uma coincidência
entre as suas convicções prévias acerca de qual seja a finalidade do jornalismo e as suas convicções acerca
das necessidades que a sociedade tem de serviços comunicacionais.
Ao darem-se conta dessa discrepância, a reação habitual é de espanto, de surpresa. Parece realmente pouco
sensato conviver habitualmente com esse contraste, paradoxal mesmo, e trabalhar com convicções implícitas
contraditórias.
Uma possível explicação para esse fato, o da existência da disparidade, talvez seja a de que, quando se
teoriza acerca do jornalismo, teoriza-se a priori e com a convicção de que é preciso descobrir uma constante
universal, quando, em realidade, como já visto, isso não é exatamente assim.
Passo 4. Levantamento das expectativas da comunidade
devem a que, quando se pensa em necessidades comunicacionais da sociedade, muda-se um pouco a perspectiva e surgem
novas dimensões, até então não diretamente elencadas, mas que têm também razão de fim ou finalidade.
Como já mencionado, a terceira perspectiva é a perspectiva da própria sociedade. O que os cidadãos que
estão na área de cobertura do veículo ou o que os cidadãos que são o público-alvo do veículo esperam dos
meios de comunicação. O ideal é trabalhar com a mesma lista do passo 3, para levantar, através de pesquisa
contratada, quais daquelas várias necessidades parecem as mais fundamentais para o público-alvo do
veículo.
Ao final dessas etapas está-se de posse de 3 conjuntos de informações: as convicções prévias sobre
jornalismo, as convicções sobre as necessidades comunicacionais da sociedade e as expectativas da própria
sociedade quanto ao jornalismo. A consideração dessas três dimensões nos dá segurança para que se possa
fazer uma reflexão criteriosa e que leve a uma diretriz estratégica adequada.
Talvez se deva acrescentar ainda mais um passo, que pode ser aferido na própria pesquisa mencionada no
passo 4. Algo é saber que expectativas “comunicacionais” in genere a sociedade tem. Outra é saber o que
essa mesma sociedade espera de tal ou qual tipo de veículos: impressos, digitais, TV aberta e fechada,
rádios, etc.
No fundo, este procedimento tripartite (ou quadripartite, se se adota a última sugestão) reflete a
complexidade inerente e permanente do fenômeno da comunicação. Uma comunicação eficaz pressupõe,
quase sempre, um equilíbrio entre ter algo próprio a dizer, ainda que inesperado para o interlocutor (no tema
que estamos considerando, seria o equivalente a ter convicções sobre a finalidade do jornalismo e
convicções sobre o que a sociedade necessita, ainda que à son insu, com tudo o que isso implica), e atender
as expectativas legítimas desse mesmo interlocutor (com relação ao jornalismo, conhecer as expectativas da
comunidade quanto à comunicação).
A escolha exata das finalidades que vão servir de diretrizes editoriais para um determinado veículo de
comunicação não é necessariamente a resultante matemática do método sugerido. Não se quer sugerir aqui,
por exemplo, que a escolha deva corresponder à área de sobreposição, de intersecção dos conjuntos de dados
obtidos. Pode eventualmente ser, mas não necessariamente. O que é decisivo é que se levem em
consideração todas as dimensões e se pondere o que deve ou não ser adotado como diretriz estratégica
editorial.
Apenas como exemplo, sem querer sugerir aqui o acerto ou não das definições adotadas, pode-se citar as
diretrizes eleitas pelo GRPCOM, depois que o conjunto de pessoas encarregadas de formular a estratégia
percorreu toda a metodologia aqui indicada. Para o Grupo Paranaense de Comunicação, a missão
corporativa de promover o desenvolvimento do estado onde atua, o Paraná, deve ser alcançada
editorialmente:
1. Dando “poder” às pessoas:
a) ajudando-as a compreender o mundo e o seu entorno:
Pela seleção e análise das notícias
Pela coerência: clareza axiológica
b) estimulando-as a assumirem protagonismo:
Sacudindo seu comodismo
Dando-lhes ouvidos e voz; retratando-as;
Alargando sua área de atuação; conectando-as com outros cidadãos; dando-lhes instrumentos para se
sentirem mais integradas;
Promovendo o empreendedorismo;
c) prestando-lhes todos os serviços que estejam ao nosso alcance
2. Contribuindo diretamente para o desenvolvimento da sociedade
3. Fiscalizando o poder
4. Alegrando, com leveza, bom humor e respeito
Apenas para comparação, as conclusões parciais de cada etapa foram as seguintes:
Finalidade do jornalismo
Necessidades comunicacionais da Necessidades comunicacionais da
sociedade (ótica do próprio grupo)
sociedade
(ótica
da
própria
sociedade)
1. Promover o desenvolvimento 1. obter informação/orientação para 1. obter informação/orientação para
social e econômico
tomadas de decisão (abrir negócio, tomadas de decisão (abrir negócio,
casar, educação dos filhos, etc.)
casar, educação dos filhos, etc.)
2. Estimular o debate público, a 2. ter o poder público fiscalizado
2. obter uma boa seleção de notícias:
participação social e dar voz à
ter um “retrato” do entorno
população
3. Prover informações que ajudem 3. obter ajuda para a reflexão sobre a 3. ajuda para formar opinião sobre o
nas tomadas de decisão importantes vida
mundo e o entorno
dos leitores (abrir um negócio, casar,
escolha de escola para filhos,etc.)
4. Fiscalizar o poder público
4. ser ouvido/ participar/ ter voz
4. obter informações utilitárias (onde
ir, horário dos serviços públicos,
concursos, bons sites, etc.)
5. Prover informações objetivas 5. ver promovido o desenvolvimento 5. ter a curiosidade satisfeita
sobre o que é mais relevante no sócio-econômico
mundo e no entorno
Como se vê, o resultado final não foi exatamente uma compatibilização das várias perspectivas. Estas
contribuíram a compreender melhor as diferentes expectativas e convicções e facilitaram a elaboração de um
rol hierarquizado de finalidades, que é hoje um importante norte no trabalho jornalístico do grupo.
A determinação do público-alvo (ou públicos-alvo) e das finalidades editoriais é a etapa talvez mais crítica
da elaboração de uma estratégia editorial, mas, como é patente, não esgota essa elaboração. A estratégia não
estará concluída sem uma explicitação do modelo editorial com que se pretende atender aquele público. E
pode ser sensivelmente enriquecida, como se verá a seguir, com o recurso à idéia de considerar o veículo
uma pessoa, com uma determinada personalidade, com uma determinada forma de se “comportar” perante o
público. Veja-se que não se está falando aqui, quando se mencionam esses dois aspectos, de modelo
editorial e de personalidade, de algo meramente operacional. Está-se ainda na fase de conceptualização da
estratégia: de que maneira “competiremos” no “mercado”? Com que tipo de serviço ou de produto?
A próxima etapa na construção da estratégia editorial é, portanto, a da discussão da personalidade editorial.
Vamos a ela.
Parte II. Personalidade
A metáfora da personalização, da humanização, que com freqüência se aplica a produtos dos mais diversos
gêneros, de automóveis a computadores, tem uma validade muito particular no caso dos meios de
comunicação.
Um meio jornalístico, qualquer que ele seja, interpela intelectualmente seu interlocutor. Em certo sentido,
dialoga com ele, como uma pessoa, e busca sua cumplicidade, seu assentimento, ou, em alguns casos, sua
indignação, sua compaixão ou um sorriso.
Assim como parcela substancial da personalidade de alguém se chega a identificar por aquilo que ela diz, e
pelas convicções de fundo que possua e que se consiga deduzir de suas palavras e ações, do mesmo modo os
veículos de comunicação, como são em larga medida um conjunto de manifestações perceptíveis de
pensamento, geram, por uma analogia quase que inevitável, muito forte e razoável, a percepção de que estão
dotados de personalidade.
Dar-se conta dessa realidade e trabalhar conscientemente com ela ajuda a completar o quadro de referências
que podem definir e aperfeiçoar a estratégia de um veículo de comunicação.
Dois veículos de comunicação que atuem numa mesma sociedade, estejam dirigidos para o mesmo público,
tenham convicções centrais muito semelhantes e julguem de forma idêntica as necessidades
comunicacionais dessa sociedade, podem se diferenciar pelo tipo de “personalidade” que possuam e
desenvolvam. E essas diferentes personalidades vão com certeza impactar em algumas determinadas
variáveis do projeto editorial final.
Assim, por exemplo, ainda admitindo que a principal finalidade do jornalismo naquela comunidade deva ser
a de estimular o debate público, a participação social e dar voz à população, pode-se legitimamente19 tentar
alcançar esse desiderato, quer de uma forma mais austera, com base por exemplo e sobretudo numa
provocação intelectual promovida pela apresentação dos vários ângulos de uma questão, como de uma
maneira mais irreverente, mediante textos mais curtos, inquietantes, ou, ainda, mediante a convocação
efetiva de uma mobilização social em torno de uma causa ou bandeira.
Se o que se deseja é criar uma relação duradoura com um determinado público, que leve este a uma procura
contínua e habitual pelos produtos que a empresa veicula – uma audiência estável é a melhor plataforma que
se pode oferecer para os anunciantes –, e dado que é inevitável que o público, ainda que inconscientemente,
reconheça determinadas qualidades de personalidade no veículo, pode ser importante apoiar-se na
experiência humana corrente que revela que, em geral, para relacionamentos mais permanentes, preferem-se
pessoas de personalidade mais bem amadurecida e estável, mas também rica, flexível e cheia de potenciais,
do que personalidades volúveis, camaleônicas e pouco definidas.
Há aqui também uma questão de consistência, que não deve de forma alguma ser confundida com rigidezes
ou inflexibilidades. Ter personalidade bem definida não significa ser totalmente previsível, incapaz de
modular a atuação diante das diferentes situações e diante das diferentes necessidades da sociedade que se
apresentem. Aliás, a firmeza e a flexibilidade parecem ser compatíveis e conjugáveis quando estruturadas
em torno de convicções de fundo, de valores ou princípios de atuação claros e razoáveis. Volta aqui – o que
é mais um argumento a favor da sabedoria empresarial mencionada acima que aponta para a necessidade de
uma consistência entre as várias etapas do ciclo de gestão que une a dimensão essencial à estratégica e
operacional – a necessidade de se explicitar, tanto para a própria equipe quanto para o público externo, as
19
O que não quer dizer “eficazmente”. Quanto a isso, a boa execução da proposta e a correta intuição da realidade, do perfil
daquela comunidade, é que vão ser decisivos. Mas, novamente, é bom ter presente que diferentes perfis podem mostrar-se
eficazes. Aliás, o mesmo se dá na experiência humana usual. Não há um único perfil de líder, ou de profissional, que funcione
bem para cada ocasião: personalidades muito diferentes podem ser extraordinariamente eficazes em situações muito similares.
convicções fundamentais (concepções acerca do homem e da sociedade, filosofia editorial, missão, visão e
valores).
Chegar a ter uma personalidade atraente parece ser, nesse sentido, uma aspiração importante para um meio
de comunicação. Definir qual ela possa ser, construir mecanismos para alcançá-la e forjá-la paulatinamente
pode ter inegável impacto na obtenção de desempenho de qualidade de mais longo prazo.
Que características, que traços podem compor essa personalidade? Inúmeros. Apenas como exemplo, citemse alguns:
Trata-se de qualidades, provavelmente para a maioria das pessoas, muito positivas. Aspirar a possuir todas
não parece, no entanto, possível, tanto por uma questão prática de impossibilidade de persecução de tantos
objetivos simultâneos, quanto por questões de compatibilidade entre alguns atributos. Do ponto de vista
estratégico, uma possível sugestão é a de escolher algumas delas, de modo a que se configure de fato uma
determinada “personalidade”.
Imagine-se, por exemplo, para um quality paper regional, os seguintes atributos: tem independência, firmeza
e coragem; tem credibilidade; respeita o leitor; é atraente, moderno e inovador; é plural; tem e transmite
opinião; contribui para o desenvolvimento e é indispensável20. É palmar que se trata de descritivos que
ajudam na orientação de como a equipe deve se comportar, de qual é o tipo de inserção na comunidade que
se pretende, de que estratégia se está construindo21. Indo um pouco mais longe, pode-se, a partir dessa
20
Em particular, permita-se o exemplo, esse é o conjunto de atributos definidos para o jornal Gazeta do Povo, que integra o
GRPCOM. Não se trata, como se percebe, de um perfil que tenda para o muito arrojado, tendo-se procurado construir uma
personalidade mais tradicional e consistente. É interessante observar que essa ferramenta estratégica, a da definição de
personalidade, parece funcionar bem também para veículos de comunicação não jornalísticos, conferindo às respectivas equipes
um importante instrumento de orientação em momentos imprevistos. Apenas para exemplificar, a personalidade de uma das
rádios do mesmo grupo, de caráter mais popular e não jornalística, é a seguinte: atraente, alegre, ética, companheira, não
apelativa e criativa. Para a dimensão de entretenimento da rede de TVs do grupo, o rol de qualidades é o seguinte: tem alta
qualidade, é atraente, gera curiosidade, entretém, não é apelativa, confirma valores e gera identificação. Um conjunto
fortemente inspirado num perfil da Disney elaborado anos atrás.
21
É importante observar que, embora se trata de uma ferramenta de gestão muito semelhante à definição dos valores da
organização, não se confunde com esta. Os valores são sobretudo uma orientação interna – embora tenham também, quase
sempre, reflexos externos – e para a totalidade das equipes da empresa, mesmo aquelas sem contato com o público. No caso da
caracterização, construir um importante indicador de desempenho, consistente em pesquisa em que se apure
a percepção do público sobre o jornal, se concorda ou não que o veículo possua aquelas características 22.
A definição de uma personalidade editorial, de um perfil “caracteriológico” para o veículo não é uma etapa
absolutamente indispensável da elaboração da estratégia, ao contrário do que ocorre com a escolha ou
hierarquização de finalidades ou a opção por determinados itens de um modelo editorial, como se verá a
seguir, mas ela enriquece sensivelmente essa estratégia e ilumina dimensões importantes da prática cotidiana
da atividade jornalística, que têm relevância para o público, interferem na apreciação que este faz da
empresa, mas por vezes não despertam na alta gestão a necessária atenção.
Parte III. Modelo editorial
As variáveis que entram em jogo na formulação de um projeto editorial, seja ele para uma publicação
escrita, para a televisão, internet ou para qualquer outra plataforma, são muito mais numerosas do que se
costuma imaginar. A tentativa de sistematizá-las pode ser um importante auxílio para quem se encontra no
momento de formular o seu projeto.
Pode auxiliar-nos nessa sistematização partir de uma constatação histórica: a prática do jornalismo vem
sofrendo importantes mudanças nas últimas décadas. Sem fazer ainda qualquer juízo de valor sobre algumas
das tendências que vão ser expostas a seguir, pode-se sumarizá-las no quadro abaixo:
Jornalismo “clássico”
Jornalismo “atual”
ênfase em hardnews (política, economia, etc.);
ênfase em softnews (saúde, comportamento, bem-estar);
mais idealismo;
mais pragmatismo;
objetivo: transformação da sociedade;
objetivo: atendimento do interesse do leitor, serviço;
jornalismo como atitude: denúncia, espírito crítico, um jornalismo como produto: maior zelo pela forma, pela
certo cinismo;
apresentação e, em certo sentido, também pela
qualidade;
um certo desprezo por pesquisas de opinião;
pesquisas passam a ter total relevância;
temas tratados em tese;
frequente uso de “personagens”;
relevância das matérias definida em termos abstratos, relevância para o público alvo;
sem referência ao público alvo;
como resultado, predomínio de temas nacionais e como consequência, difusão do lema “local, local,
internacionais;
local”.
Não se pode dizer que o lado direito do quadro traduza a realidade do jornalismo de hoje. Na verdade, não
há um modelo clássico oposto a um modelo atual. Talvez seja melhor dizer que algumas das características à
definição da personalidade, embora possa e deva haver convergências entre os dois conjuntos, está-se a pensar mais naquelas
características mais claramente perceptíveis pelo público. Talvez caiba recorrer ainda ao conceito de virtude, que, de forma
simplista, pode ser sintetizado como um valor vivido. Uma outra possível diferença é a relativa à “estabilidade” das duas
ferramentas. O perfil de personalidade parece-nos mais atrelado à estratégia do veículo, a qual, embora em geral pensada para
o médio e longo prazos, é, em princípio, mais sujeita a mudanças do que as definições que compõem o DNA da organização.
22
No caso em particular do GRPCOM, o indicador assim criado vem sendo usado estrategicamente como a principal meta de
cada uma de suas unidades, com efeitos na remuneração variável de seus gestores e de suas equipes de conteúdo. A intenção é
garantir assim uma orientação de longo prazo, sem permitir que a busca por audiência ou por resultados financeiros levem ao
sensacionalismo e deturpem a identidade da marca, algo que com freqüência ocorre com empresas de comunicação, em que
parte substancial dos bônus dos principais diretores está atrelada a ratings de audiência ou a ebitda. No âmbito do GRPCOM,
esses dois últimos indicadores também impactam na remuneração variável, mas em percentuais menores.
esquerda eram mais freqüentes anos atrás, enquanto que algumas das características da direita, sem que as da
esquerda tivessem desaparecido, passaram também a ter seu peso.
De qualquer forma, é inegável que houve mudanças no exercício prático do jornalismo ao longo da história,
ocasionadas por inúmeros fatores, cuja análise requereria um trabalho de investigação específico, que foge
ao escopo deste artigo.
Curiosamente, nem sempre essas transformações, pequenas ou grandes, são percebidas pelos próprios
jornalistas, que muitas vezes tomam as tendências dominantes como decorrências lógicas e naturais da
própria natureza do jornalismo. Há boas razões em favor de umas e de outras tendências. O fundamental é
evitar a adoção acrítica delas, sem dar-se conta das razões subjacentes a essas preferências.
O fato é que é preciso dar-se conta de que há muitas opções. Mapeá-las pode ser decisivo para o
aperfeiçoamento
do jornalismo. Mas somente mapeá-las não basta. É inevitável que se façam escolhas, o que será tanto mais
efetivo quanto mais conscientes elas forem, o que significa escolhas fundamentadas, isto é, escolhas
baseadas em razões, em justificativas racionais e não em meras preferências intuitivas.
Uma ferramenta que pode ajudar neste processo é a matriz de dilemas23. Vamos apresentar abaixo uma para
um jornal impresso e outra para um programa jornalístico de televisão:
Para jornal impresso:
Foco temático:
local
Foco temático:
mais "o que aconteceu"
Foco temático:
softnews
Foco temático:
mais segmentação
global
mais "o que está acontecendo"
hardnews
não se preocupar com isso
Critério de seleção:
pesquisa
Oferta de matérias:
apostas
Disposição espacial:
editorias fixas
flexibilidade
Abordagem:
mais informação
mais análise
Abordagem:
mais informação
mais serviço
Abordagem:
caráter mais didático
não se preocupar com isso
mais notíicias positivas
não se preocupar com isso
Tom da notícia
Atitude:
Formação da equipe:
Produção:
23
bandeiras
especialistas
wiki
relevância
maior número de notícias
só cobertura usual
generalistas
prerrogativa de jornalistas
A matriz de dilemas foi criada como ferramenta de elaboração de modelos editoriais no âmbito de meu trabalho tanto no
Master em Jornalismo para Editores como no GRPCOM. Tem sido utilizada e aperfeiçoada nos programas do Master desde
2006.
Para um telejornal:
Foco temático:
local
global
Foco temático:
mais "o que aconteceu"
Foco temático:
softnews
hardnews
Critério de seleção:
audiência
relevância
mais "o que está acontecendo"
Importância:
imagem
informação
Qualidade
precisão
velocidade
Abordagem:
mais informação
mais análise
Abordagem:
mais informação
mais serviço
Abordagem:
caráter mais didático
não se preocupar com isso
mais notíicias positivas
não se preocupar com isso
Tom da notícia
Atitude:
Formação da equipe:
Participação:
bandeiras
especialistas
wiki
só cobertura usual
generalistas
prerrogativa de jornalistas
A matriz oferece um conjunto imenso de combinações possíveis e deve ser lida – e eventualmente
preenchida – como se oferecesse para cada tema um gradiente de opções que vai de um extremo (apenas
informação local, por exemplo) a outro (foco em informações de qualquer parte do mundo, sem ênfase no
local), passando por soluções intermediárias.
A definição de onde se deseja estar (em que quadrante) em cada uma dessas dimensões acaba formando o
esqueleto fundamental de um modelo editorial. Se os temas selecionados traduzem bem as principais
questões que hoje ressoam na mente de publishers e jornalistas, elencá-las, explicitando-as, e proceder a
uma seleção criteriosa e metódica das opções possíveis, é uma maneira prática de aperfeiçoar a elaboração
da estratégia editorial.
Veja-se que, em geral, qualquer jornalista tem suas intuições sobre quais as melhores escolhas para se fazer
um jornalismo mais efetivo. Curiosamente, porém, muitas vezes em geral não se dão conta de que há outras
opções possíveis e legítimas. As intuições de que são possuidores são vistas, não poucas vezes, como
reflexos naturais e necessários do que é fazer jornalismo.
Na verdade, essas intuições variam tremendamente de jornalista para jornalista. Num momento de tantas
transformações sociais, em termos tecnológicos, comportamentais e de valores, é natural que não haja
cânones indiscutíveis do que seja ou não jornalismo, ainda quando muitos profissionais não se dêem conta
disso e pensem estar atuando dentro dos padrões pré-definidos de excelência de sua atividade. Também aqui
a surpresa costuma ser grande quando, por exemplo, os jornalistas de uma mesma redação preenchem
individualmente, segundo suas concepções, a matriz acima e, na sequência, cotejam-se as várias respostas.
O que é essencial, no entanto, não é, como se poderia pensar, coligir as várias intuições. Chave mesmo é
buscar as razões subjacentes a essas escolhas, a essas intuições. E do ponto de vista da elaboração da
estratégia, que é o que nos está guiando, decisivo é que essa escolhas sejam feitas em sintonia, ou melhor, de
forma consistente com as escolhas anteriores de público-alvo, finalidades editoriais e personalidade.
Dar mais ênfase ou não à informação local, dar mais presença às softnews em detrimento das hardnews,
estar ou não em contínuas campanhas em prol dos interesses dos cidadãos, são escolhas que devem refletir,
em maior ou menor medida, aquelas outras anteriores determinações de público, de propósitos e de
atributos. Não se trata de decorrências necessárias daquelas primeiras definições, mas é inegável, e é fácil
dar-se conta disso, de que há opções mais ou menos compatíveis com determinadas finalidades ou
determinados perfis editoriais.
A consideração detalhada e refletida dessas variáveis, e de outras que se julgue relevantes, e as definições
que se adotem em decorrência fornecem um bom marco ou moldura, a partir da qual chegar até as ulteriores
e últimas determinações que configuram um projeto editorial acabado. Não nos ocuparemos dessas
determinações, que podem envolver desde a divisão por editorias, a criação de editorias específicas, a
separação temporal ou espacial de matérias, seções de todo gênero, até detalhes de cenário ou de design
gráfico muito detalhados.
Uma equipe criativa que compartilhe o entusiasmo pelas principais definições estratégicas adotadas sempre
surpreenderá a empresa e seu público com projetos inovadores e soluções extraordinárias.