A ARCA DE MORIN Uma homenagem ao autor de
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A ARCA DE MORIN Uma homenagem ao autor de
A ARCA DE MORIN Uma homenagem ao autor de “O Método” Antar Sushma - Carlos Roberto da Silva - Claudia Bandeira - Claudia Dansa – Daniel Louzada - Daniela Ungarelli - Eliza Bruziguessi - Fabio Tomasello – Guadalupe Silva – Irineu Tamaio –Josefina Reis de Moraes – Josiane Aguiar de Souza – Juliana Borges dos Santos – Juliana Cavalcante – Lais Mourão Sá (org.) - Leandra Fatorelli – Lila Rosa Sardinha Ferro – Lila Rosa Sardinha Ferro – Lívia Penna Firme Rodrigues – Luiz Mourão – Maria Amélia Costa – Marilia Teixeira – Marina Pessoa – Mario Rique Fernandes – Renato Bastos João - Rosana Gonçalves da Silva – Sonia Duarte - Valéria da Cruz Viana Labrea (org.) Brasília – 2008 2 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Sá, Lais Mourão; Labrea, Valéria Viana (orgs.) [email protected] / [email protected] A Arca de Morin./Laís Mourão Sá; Valéria Viana Labrea (orgs.) Brasília, 2008. 128 p. 1. Edgar Morin 2. Saber complexo 3. Educação ambiental I Universidade de Brasília II CDS. 3 A arca de Morin Nas águas do dilúvio que trans-lavam disjunções e dicotomias, na transição de eras e de paradigmas, lá vai a arca com seus passageiros, perplexos e encantados. Guiada pela lúcida e lúdica mente de seu autor, a arca de Morin é uma aventura coletiva, onde as inquietações se aprofundam e os desejos mais impossíveis são acolhidos. Da intimidade e da comunhão das idéias surge a gratidão e a vontade de testemunhar a profunda transformação em nossos espíritos-cérebros ao vivenciar essa jornada. Edgar Morin, nós agradecemos pela generosidade de dedicar vinte anos de sua vida a tecer fragmentos e diálogos, para tramar a bela arquitetura do método da complexidade. Somos gratos pela poesia, pela fé no espírito científico, pela reverência ao mistério, e pela desconstrução de nossas certezas. Agradecemos de coração pelas novas conexões entre neurônios, pelo sentido cíclico e pelos turbilhões que desde então habitam nossas existências, e pelas novas estratégias de pensamento e ação, barcos-pontes para atravessar as águas desta arriscada travessia de nossa humanidade. Lais Mourão Sá 4 A arca de Morin Sonia Duarte Personagens: Anta – gato – formiga - vaga-lume - escorpião – coruja - mico-leão- - beija-flor - pavão – galo – besouro lhama. Naquela manhã de sábado os bichos se reuniram debaixo do grande pé de jatobá. A conversa estava animada e todos traziam notícias. Falavam de seus ninhos, seus filhotes, suas colheitas e outros assuntos que eram comuns naquela região. De repente, perceberam que o sol já estava posicionado no céu de forma a produzir grandes sombras num convite gostoso para que todos sentassem em círculo. Antes preciso esclarecer que estes bichos em número de doze eram todos moradores da região e formavam uma irmandade que se reunia sempre para discutir questões de ordem econômica, social, filosófica ou só pelo puro prazer de estarem juntos. Naquele dia o assunto da reunião era complexo. Iriam discutir a natureza da natureza. Era preciso estabelecer um método de trabalho. 5 A primeira proposta foi que se escolhesse um líder para organizar o processo de discussão. Foi aí que a formiga se manifestou com clareza e autoridade: - Senhores se o nosso desejo é entender a natureza da natureza na qual estamos inseridos nada melhor do que a manifestação espontânea das nossas opiniões. Vejam. Há um princípio organizador na natureza. Nas minhas observações já aprendi que esse princípio nasce dos encontros aleatórios. Como se fosse uma cópula da desordem com a ordem. Penso que poderíamos criar uma situação mais de prazer e menos de controle para o nosso encontro, vamos deixar que todos se manifestem de acordo com o seu desejo e a sua necessidade. O que acham? Parece que todos entenderam a fala da formiga. O escorpião, bicho profundo, foi o primeiro a manifestar-se com cuidado: - Vejam senhores, a reflexão que quero fazer é sobre a ordem. A ordem natural das coisas, a ordem que criamos, a ordem do universo. Ao ouvir isso o mico-leão adiantou-se e num pinote só foi logo dizendo: - Espera aí, amigo scorpius. A ordem já não é mais soberana. Vou dar um exemplo. Estamos todos aqui aparentemente organizados. Cada um ocupando o seu espaço. Aí cada um vai se expressando deixando fluir sentimentos, idéias, opiniões, vai se misturando tudo. Sabe o que pode resultar disso? Pergunta o macaco exibindo uma performance pedagógica. - Uma desarrumação da ordem, afirma com calma a coruja. - Isso é desordem! Exclama o besouro com um certo receio. - Sim. É desordem. Continua a coruja. - Mas na desordem a gente não pode se entender, reafirmou o besouro. Penso que sem ordem não pode haver comunicação. A coruja então pôs-se a falar: - A desordem senhores, está em ação em toda parte. Ela precede a ordem. Numa catástrofe, por exemplo,a desordem e a ordem nascem quase em conjunto. Desde os primeiros momentos do universo é real a conjunção da desordem com a ordem. Todo o devir está marcado pela desordem. Rupturas e desvios são condições para gerar nascimentos. Parece que todos buscavam alojar-se internamente nesta desorganização e um grande silêncio se fez. A coruja respirou fundo, como se quisesse lentamente 6 aprender com as próprias palavras. Foi dizendo: - Bem, se uma colisão, uma explosão ou qualquer outro efeito do fogo, por exemplo, pode dispersar ou acabar com uma realidade ou com uma coisa que existe a gente pode perceber que no lugar dessa coisa ou dessa realidade nasce outra coisa ou outra realidade. Entendo que no mundo tudo que forma transforma. Vocês podem entender isso? Todo mundo da roda já estava começando a gostar do assunto e já podia se ver expressões de encantamento. Era perceptível a natureza mágica do tema. O mico-leão então se dirigiu ao vaga-lume: - Será que foi numa dessas explosões que você herdou duas faíscas nas antenas? - Pode ser, pode ser, responde o vaga-lume. A coruja então retomou o assunto com precisão: - Daqui adiante vamos entender o universo como um pluriuniverso. Vejam. Este círculo composto por cada um de nós constitui um universo. - Não seria um universinho? Perguntou o beija-flor. Nos vejo pequenos demais dentro do grande universo. - Mas eu afirmo. Responde a coruja. Somos um universo porque a natureza do nosso grupo é composta por cada um de nós que traz para a unidade do círculo a sua natureza individual que está conectada com milhares de outras naturezas associações e sistemas. - Espera aí gente. Devagar, pede a anta. Se eu na nossa individualidade sou universo, se nossa roda é um universo, cadê o universo grande aquele que a gente chama de universo mesmo? - Pois é. Falou a coruja. O universo grande que a gente conhece como universo está espalhado. Ele é acêntrico, ou seja, não possui um centro. É policêntrico. Nada é o centro do universo. Ele começa e acaba em todos os lugares. Em todas as coisas está em todo momento em parto, em gênesis, em decomposição. - Isso quer dizer que o nosso mundo organizado é um arquipélago de sistemas no oceano da desordem, disse o galo que até agora estava em silencio. - Dona coruja, disse o gato, cerimonioso, vocês falaram em sistemas. Posso entender melhor sobre isso? - Alguém quer responder ao companheiro gato? Perguntou a coruja. - Eu falo. Disse o pavão abrindo-se em leque e exibindo suas fabulosas penas coloridas. 7 Falou devagar, - Um sistema é uma totalidade organizada, feito de elementos solidários que só podem definir uns em relação aos outros em função do lugar que ocupam nesta totalidade. - Ah ta! Disse o gato ainda meio pensativo. Mas, os sistemas já nascem prontos? - Não, não, disse o pavão. Nada no universo nasce pronto. O sistema é um todo que se organiza ao mesmo tempo em que seus elementos se transformam. - Estou aqui pensando numa coisa. E só de pensar me coço todinho de agitação. Se o sistema é uma organização ele não é também uma desorganização ? - A desorganização, respondeu o galo, não é a organização em sentido inverso. Sabe por quê? O universo é um aprendiz de sistemas. E nele nada é estável nem organizado sempre, nem desorganizado o tempo todo. Quando um sistema interage com outro sistema, dentro ou fora de si mesmo, gera uma metamorfose na sua estrutura e então outros mundos, outros seres ou idéias são gerados para encontrar ou colidir novamente com outros mundos seres ou idéias. Numa transformação eterna. Então uma vozinha miúda surgiu novamente no centro da roda. Era o besouro surpreso: - Meu Deus, então o eterno, o para sempre e o infinito se acabam? Eta pessoal. Espera ai de novo. Assim eu não agüento. Vocês vão querer mexer até com o para sempre que estava quieto dentro de mim? Se é assim como vai ficar o hic et nunc? - Fica aqui e agora. Brincou o besouro. - Vocês estão complicando demais as coisas gente! Resmungou ainda a anta. - Complexificando, amigo. Complexificando! Falou a formiga vaidosa do novo verbo. - Vamos fazer uma pausa,sugeriu a coruja - já esta saindo fumacinha. Assim fizeram. Respiraram, se alongaram. Deram cambalhotas. Mas não se desligaram das inúmeras perguntas que surgiam. Parece que naquela mata abriram o portal para o mundo complexo. E voltaram então à conversa anterior. - Quero fazer uma pergunta, pede o beija-flor. Se no universo a desarrumação das coisas como a ordem das coisas acontecem dentro de um processo natural como podemos nós seres transitórios e mortais encontrar o 8 caminho certo? O escorpião com lucidez foi respondendo: - Peço licença para explicar o que eu penso disso. O caminho certo não tem ponto de partida nem de chegada. Ele acontece. Ele é a possibilidade real que se apresenta a toda hora. E a natureza sempre apresenta emergências para surpreender a ordem pretendida. - Penso que é muito difícil dentro uma sociedade como a nossa, falou o galo, a gente ter discernimento, lucidez, e capacidade para entender tanta coisa que acontece aqui. O nosso sistema é formado por inúmeras espécies diferentes. Todas atuando ao mesmo tempo produzindo interações e criando novas ordens. A coruja sempre atenta fala com delicadeza: - Nós estamos penetrando no mundo da complexidade, a velha ordem que nos regia está vulnerável. A desorganização deve ser entendida como natural e benéfica para nossa comunidade. Eu entendo que explicações reducionistas de um sistema complexo simplifica a realidade do sistema. E só é possível compreender o que é complexo pensando na totalidade. Foi aí que a lhama, a ilustre convidada peruana envolvida no seu manto colorido foi falando num dialeto inca: - O conhecimento do céu não cai do céu como o conhecimento da terra não brota da terra. Estamos em permanente produção de si. Assim como estamos em permanente assimilação do outro, precisamos transitar nos conhecimentos que são gerados dentro e fora do nosso sistema. O conhecimento do universo. Penso que devemos cuidar dos grãos da mesma forma que olhamos as estrelas. Somente experimentando e desvendando os segredos da terra podemos alcançar os mistérios do céu, pois o que é em cima assim o é embaixo. Silêncio profundo se fez na roda. Todos pareciam meditar. Por fim, disse o vaga-lume ascendendo suas lanterninhas mágicas: - Qual a diferença entre o homem e as estrelas? - Ontológica, companheiro! Ontológica! A estrela é um ser máquina totalmente ativo, o que a diferencia dos seres vivos da terra é que ela não se alimenta do seu meio. Seu alimento é a substância do seu próprio ser, vem sempre do seu interior. A estrela come seu capital ontológico até o esgotamento e os homens, como qualquer ser vivo da terra, são todos funcional e ecologicamente dependentes. 9 A reunião se aproximava do fim, foi aí que o pavão fez uma proposta: - Tenho pensado muito em fazer um registro do nosso trabalho alguma forma de documentar nossos estudos. - Bem. Disse o beija-flor. Por que então não criamos nossa carta de princípios? Para afigurar uma melhor qualidade de vida a todo o nosso ecossistema. O que acham? Ninguém se manifestou contrário à proposta, que aliás foi bem recebida por todos. Criou-se então algumas estratégias de divisão do grupo para realizar este trabalho. Uma das sugestões do escorpião foi que os grupos fossem constituídos com a maior diversidade possível de espécies possível. E assim foi feito. Naquele dia a reunião se estendeu até mais tarde e os bichos conseguiram em curto tempo elaborar os seguintes princípios: 1. Compreender a natureza da nossa natureza. 2. Reconhecer o sentido de pertencimento de cada espécie ao nosso meio ambiente. 3. Aceitar uma organização com base nas diferenças para gerar criatividade e interações entre as espécies. 4. Identificar cada ser ou indivíduo que pertence ao nosso ecossistema como um ser que possui identidade própria e ao mesmo tempo possui a identidade do seu sistema. 5. Permitir transformações na organização da nossa sociedade para que haja permanência do nosso sistema. No momento em que iriam definir o sexto e o sétimo princípio a formiga argumentou que o próximo encontro teria como pauta de discussão a vida da vida. Nesse caso seria prudente aprimorar mais a discussão para que os outros princípios pudessem nascer das apropriações deste novo conhecimento. E assim aconteceu. A reunião se desfez. Antes, porém, legitimou-se entre o grupo que esta era uma carta aberta, passível de ajustes e mudanças no conteúdo de qualquer item. Acontecimentos ou novos paradigmas exigem outra forma de percepção ou um novo olhar para as questões de sobrevivência ou de qualidade de vida para a comunidade. 10 Como se fosse a introdução "Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quanto mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, Estiver, sentir, viver, for, Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora." Álvaro de Campos Morin me surpreendeu tanto quanto Pessoa. Quando conheci a obra de Fernando Pessoa eu desentendi. Como um poeta do inicio do século XX, lá de Lisboa, conhecia e revelava ao mundo os meus sentimentos mais íntimos? Sentimentos não-verbalizados, desorganizados, foram explicitados nos versos de Pessoa e eu me vi exposta, nua em frente ao poeta. Passei muitas noites lendo avidamente sua poesia e tentando compreender como um era vários. Um ser fragmentado, seus heterônimos, cada um com personalidade e vida distintas, com uma escrita e inspiração particular, me fizeram acreditar que Pessoa era ligeiramente esquizofrênico. Um louco, um poeta. Um poeta louco, que vivia intensamente ensimesmado em seus mundos e que no mundo ganha a vida traduzindo o texto de outros. "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." Álvaro de Campos Pessoa me influenciou pelo seu revés. Não sou poeta. Leio poesia. E foi pela leitura da poesia que consegui uma brecha para sair de mim mesma e me aventurar pelo mundo. Segurando a mão de Pessoa eu armazenei coragem criativa para ultrapassar alguns limites e lugares-comuns que a vida teimava em jogar pra cima de mim. Acredito e repito seus versos como um mantra que me acolhe e me fortalece: “Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim como em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.” Ricardo Reis Nessa construção pesava muito o desejo de saber. Para compreender criei caixinhas onde guardava e zelava os 11 meus saberes, cada um no seu quadrado, mas a vida provoca mudanças o tempo todo e da literatura fui para a análise do discurso. E ai eu comecei a desconfiar que as caixinhas não dão conta do real, pois o sujeito no seu ser no mundo é afetado pela história, pela ideologia e pelo inconsciente. A percepção que a AD me proporcionou me permitiu transitar em outros terrenos e me vi educadora ambiental popular. Reforço o popular, porque meu compromisso é com a escola pública e os espaços formativos de inclusão dos segmentos sociais desfavorecidos, é esse o meu chão. O ambiental eu ostento com moderação, desejando não precisar fazê-lo, pois entendo que o ambiente como questão epistemológica é estruturante e a educação - sem nenhum qualificador deveria incorporar essa dimensão. Enquanto isso não ocorre, eu adjetivo o “educador” para marcar uma posição e explicitar essa ausência. Acredito que Pessoa tenha incorporado a dimensão ambiental e da alteridade radical incontornável na sua escrita. Não por acaso Alberto Caeiro, lisboeta semi-analfabeto que foge para o campo é o mestre de todos heterônimos – Álvaro de Campos um engenheiro, Ricardo Reis um médico erudito, Bernardo de Campos um guardador de livros - e do próprio Pessoa. “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem por que ama, nem o que é amar...” Alberto Caeiro Cheguei ao CDS distraída, curiosa e só ouvia falar da tal complexidade. De repente, tudo era complexo. E eu sem entender nada desse dialeto. Pelas bordas, fui lendo Morin e balançou as estrutura: cadê as caixinhas? Para entender melhor, fui ler Morin à sombra das árvores com duas amigas que também estão nesse livro – Claudia Bandeira e Dani Ungarelli – e passamos manhãs lendo O Método e reelaborando a vida e os saberes. Em seguida fomos para a aula da Laís. E ali, na discussão e na leitura, reelaborei meu conceito de sujeito e conseqüentemente, minha produção acadêmica. Assim hoje assumo que o sujeito é afetado pela história, ideologia e inconsciente. Mas não só isso: o sujeito faz parte de um sistema complexo cujos termos – espécie – indivíduo – sociedade – são ao mesmo tempo concorrentes e complementares. Unitas multiplex mostra que o sujeito não é fragmentado em diferentes posições, mas complexo, com várias dimensões em dispersão. É um sujeito que é levado pelo desejo, pela pulsão, pelo sentir/pensar, contraditório, práxico, um vivo 12 que transforma e é transformada na sua relação com o Outro. “Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.” Fernando Pessoa E assim seguimos os três alegremente de mãos dadas, desconfiando das certezas. Essa é a uma pequena narrativa do meu encontro com Morin e como afetou minha vida e meu trabalho. Este livro narra encontros e caminhos trilhados juntos. A “Arca” remete a multirreferencialidade, mimetizada nas ilustrações onde a “Coruja” encarna Morin e os outros animais são uma metáfora da diversidade de lugares e vivências dos autores. Os textos dessa compilação têm uma história comum. Os autores são estudantes oriundos de diferentes campos do conhecimento e todos se encontraram na disciplina “O Método da Complexidade”, que, entre 2003 e 2008, foi ministrada pela profª Lais Mourão Sá da Universidade de Brasília. Todos fomos seduzidos e surpreendidos por Morin e ninguém saiu incólume deste encontro. Fomos todos influenciados pela leitura compreensiva de Lais, instigados a incorporar a complexidade em nosso fazer e a questionar a fragmentação dos saberes. Um dos resultados é esse livro, os outros resultados estão no mundo, dispersos no tempo e no espaço. Em um universo de cerca de 200 textos, selecionamos 26. Eles representam um percurso pessoal e um percurso epistemológico, são a resposta a um desafio: como a leitura de Morin afetou você? Essa resposta é sempre subjetiva e tem relação com os caminhos de cada um. Temos aqui sujeitos que assumiram um novo léxico e estão criando um novo discurso. Esse discurso se apresenta em vários textos que precariamente unimos em 3 espaços. Em Lirismo e Subjetividade temos os textos que criam uma poética do Método. Aqui temos o cuidado com as palavras, esteticamente trabalhadas para dar conta da densidade com que Morin desconstrói e reconstrói o sujeito e seus saberes. Nesse mote temos a poesia da Lais Mourão Sá que dialoga com o teatro de Sonia Duarte que dão o tom dessa coletânia, A Arca de Morin.Mário Rique Fernandes e Josefina Reis de Moraes expressam liricamente o encontro 13 com Morin. Lila Rosa Sardinha Ferro, Luiz E. B. Mourão Sá, Antar Sushma, Rosana Gonçalves da Silva, Cláudia Valéria de Assis Dansa, Guadalupe Silva, Marília Magalhães Teixeira e Claudia Bandeira organizam uma narrativa sobre a mudança inevitável que ocorre no encontro de subjetividades desejantes e as metáforas apontam para o horizonte utópico redescoberto. Lendo Morin revela a surpresa com o reconhecimento da existência de um lugar de pertença. Sujeitos que intuíam que saberes enquadrados, dispersos pelas disciplinas tinham um local de encontro. Esse local pode ser construído a partir dO Método. Leandra Fatorelli, Marina Margarido Pessoa, Maria Amélia Costa, Juliana Farias Cavalcante, Daniel Louzada da Silva, Daniella Buchmann Ungarelli, Eliza Pereira Bruziguessi e Irineu Tamaio narram sua leitura particular da obra de Morin e o novo olhar que ela suscitou. O Saber Complexo é o espaço onde os autores incorporam a complexidade no seu trabalho acadêmico. Destacamos a grande heterogeneidade de disciplinas que convergem nos escritos de Josiane do Socorro Aguiar de Souza, Lila Rosa Sardinha Ferro, Lívia Penna Firme Rodrigues, Renato Bastos João, Lais Mourão Sá, Fábio Tomasello e Carlos Roberto da Silva. Morin dialoga com os mais variados temas e sujeitos desde populações ribeirinhas, indígenas do Xingu, adolescentes, nutrição, corporeidade, educação ambiental, transdisciplinaridade, economia. Os autores conseguem incorporar a Teoria da Complexidade em seus trabalhos em diferentes áreas do conhecimento. Desejamos que esses textos continuem o diálogo imaginário com Morin e suscitem novas questões, outros espaços cognitivos e que redescubramos o encantamento e a poesia. “A espantosa realidade das cousas É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo.” Alberto Caeiro Boa leitura! Valéria Viana Labrea 14 LIRISMO E SUBJETIVIDADE 15 Andando pela estrada encontrei a complexidade no meio da encruzilhada. Era meio dia, meio madrugada. E juntos saímos andando de mãos dadas. Ela me disse: não tenha medo, iremos até onde alcance o desejo, até onde venha a coragem. Ela me disse: a verdadeira viagem não se simplifica à paisagem. A verdadeira viagem, pra se enxergar, está na natureza do seu olhar. E juntos saímos a voar. O universo dentro de si de cada ser aparecia. Do átomo às estrelas – Sóis Da terra à Brasília – Paióis Dei-me conta de que o destino já não mais contava. Infinitas bonecas russas apareciam des-pétala-das. O mundo rodava – roda viva. 16 Pequena esfera rolante – roda pião. Dei-me conta de que estava às voltas de meu coração! Começo a pensar-sentir por fim [nessa viagem] o que dizia a complexidade num sonho pra mim: universo tão frágil como casca de amendoim misteriosa flor de jasmim... Hei de cantá-lo e reverenciá-lo. Muito mais que pensá-lo. Mario Rique Fernandes, 04 de maio de 2008 17 A complexidade da natureza de minha natureza Sou, na medida em que nunca perco minha capacidade de sempre mais aprender. Sou um ser aprendente, que se nutre da incompletude de meu ser. Sou uma pessoa, cujo maior medo é o de ser medrosa. Sou um ser, cujas certezas estão nas incertezas do meu existir, ao procura distanciar-me do paradigma dual causa-efeito; certo-errado, para abrir caminhos em direção a um oceano de possibilidades transformadoras Sou um ser que encara o erro como o caminho para se chegar ao acerto. Não renego a desordem, pois ela faz parte do anel recursivo; Ela está na gênese e por ela chego à ordem mediada pela riqueza das interações comigo mesma, com o outro e com o ambiente a que pertenço. Ações, interações e retroações preenchem o meu viver com sentido, no qual a desordem, a ordem e a organização agem e retroagem sucessivamente. 18 Sou única na singularidade de meu ser: ora sapiens, ora demens. Sou possuidora de um imaginário marcado pela pulsão de vida e de morte, fios que ligam e religam-me à totalidade do cosmos em suas mais elevadas sabedorias. Sou múltipla, pois reconheço a pluralidade da diversidade que me cerca; Sou gente, ente que procura abraçar o diferente, abrindo espaço ao terceiro incluído; Sou nós na arte de pertencer à comunidade planetária habitante de nossa casa comum. Sou a gênese, o genérico continuamente a gerar energias Circulação, generatividade de novas vidas a partir da morte: é a ciranda do anel a deslizar na desordem, interações, ordem, organizações, desordem... cujas idéias-chave estão na recorrência, na retroação para uma transformação espiralada. Meu olhar complexo acolhe o desconhecido, o mistério; o imaginário e o simbólico E faz-me soltar da tentativa de só perceber o real e a racionalização que fragmenta. A complexidade confere o poder de considerar-me um ser ecodependente: portador de dupla identidade – a minha própria e a do pertencimento ao meio ambiente A complexidade abre-me para a subjetividade do desconhecido, do mistério; ensina-me a ser menos reducionista, determinista, a ousar e até de poetisa brincar. Regula minha sensibilidade para perceber o tempo como irreversível, cíclico, circular vivido em sua maior expressão da vida: o AMOR, regulador de minha autopoiesis. SER OU NÃO SER na complexidade, EIS A QUESTÃO. Josefina Reis de Moraes, maio 2008 19 CASA MUTANTE Lila Rosa Sardinha Ferro Novembro de 2003 Um dia de sol, abóbora florindo ao longo da trilha. Estou indo para casa que fica ali, atrás da duna. Uma casinha pequena de adobe, pintada de cal. Tudo um pouco fora do lugar. Do alto da duna, uma cama some e aparece atrás da cortina que balança ao vento, uma cadeira, uma porta... vista de cima, a casa parece estar vazia. Os ladrilhos cozidos transformam-se num chão de barro batido, varrido e aguado de vez em quando. Olhando de fora ou de dentro, um barrado de palha emoldura o horizonte. Na sala um tamborete, uma cadeira de pano, a porta da frente, os degraus de pedra e a rua. Aquela casinha vai crescendo e vira um casarão de tijolos aparentes. Por fora é da fauna local. Lá dentro salões iluminados e nus, espelhos de pedra no chão. Passando os olhos nas altas paredes, infinitas seriam as fileiras de tijolo rodando até o teto em espiral, fazendo bico de torre. É tão grande que tudo o que temos cabe num único cômodo. O resto da casa fica para os nossos passeios. 20 Descobri um poço dentro da casa. Não é um estreito canal, é um caminho de rios e riachos profundos, correndo em todas as direções. Uma saída secreta da casa para certas ocasiões. O pé de maracujá se esparrama pelas mil grades e ameaça os vizinhos com seus cachos de flor. A boca aberta da casa engole vento, poeira e tempestade. Gosto dos seus labirintos, portas e janelas em cantos inúteis. Casa, casinha, casarão. Casa abandonada, paredes caídas, restos de vida nos rastros do chão. No oco da velha árvore vão morar minhas fantasias. Meus vizinhos passarinhos, meus temores passarão. Lamparina na memória ilumina o matagal, mil histórias esquecidas pelos cantos do quintal. Janelas de vento, telhados de água, paredes de luz farfalham no vento mansinho. Ninho de palha. Cantiga de rede. A nossa casa tem olho, boca, nariz e ouvidos. Entradas e saídas de todo tipo, macro micro buraquinho, por onde o planeta nos espia. Tapiri, girassol. Casa andarilha de nômade e semeador. Forquilha casual, colunas passageiras, teto e piso, tudo está vivo nessa casa. A lua é peneirada na folhagem da janela ondulante e cheia de estrelas. Azul e ouro, banquete no teto para os olhos famintos. Casa, igreja, sem santo e sem altar. Lá dentro há um banquinho aonde vou me sentar. Acordo bem devagar e nada vejo. Estaria eu dentro de um ovo? A casa se mexe, sucumbe, renasce. O vento forte abre e fecha janelas, o ovo se parte. Fronteiras se rompem em brechas abertas ao sol. Nós e a casa tecemos um lindo lençol multicolorido e transparente que protege sonhos, desejos e maldades. Nas estratégias de permanecer e de pertencer a ela, trava-se um diálogo infinito entre nós. Renovados os acordos, qualidades novas, novos caminhos no incessante movimento. Em cima da mesa, o jantar está posto: um cardápio de incertezas alimenta possíveis surpresas. O que há nos cantos escuros que se dobra e se contorce? Sob a luz das estrelas não há distinção entre nós e a casa. Em busca de heranças e tesouros, percorremos quartos, salas e corredores, olhamos nossas imagens nos espelhos do porão. Passado, futuro, presente, a memória da casa 21 prepara o devir. Um baú de fantasias se abre e oferece suas máscaras para uma festa permanente. Transito entre aquilo que sei e aquilo que esqueço em idas e vindas do querer ser e do querer viver. Semeamos antagonismos e colhemos simbioses. Entre nós, as alianças vão se formando em meio a devorações. No calendário da casa, um dia é da presa, o é outro do predador. Fecundações, nascimentos, crescimentos, transformações... a nossa casa acolhe o previsto e o imprevisto, línguas de todos os povos em comunicação permanente, uma Babel que se lança em espiral, sem culpa, sem castigo. A hierarquia e a anarquia são velhas companheiras e fazem constante a artesania desse mapa vivo. Sobre ele, a nossa dança gera o acaso, regenera o plano de cada um viver para si até que a morte nos faça impulso de vida, para manter em pé a casa mutante, que não tem chefe, nem rei, nem dono, que é palco de transtornos e metamorfoses, sendo restaurada a cada instante. A casa dá voltas sobre si mesma, arredonda o espaço, ergue patamares em novos recomeços, que se desloca cada vez que regressa a si própria, para abrigar os novos moradores, que conhecerão novas manhãs ensolaradas, andando em trilhas abertas na areia, que vão dar no mar. No céu, os astros são jovens e velhas estrelas e velhos e novos planetas. O cosmo ilumina a caverna dentro de nós. A tragédia da morte faz do nosso espírito casa mutante de deuses, seres, entidades a quem alimentamos, tendo na ponta da língua, o nome da nossa pertença. Dentro da casaaldeia a gestação de uma identidade maior que, em meio aos conflitos e divisões entre seus moradores, busca compor uma unidade gerada no diálogo entre todas as tribos. Do diálogo ao jogo, do jogo à liberdade, autonomia que nos faz dependentes uns dos outros, dos costumes, da casa. A casa que assiste, compartilha, interfere, sendo palco e personagem da disputa infinita entre a vida e a morte. A casa está dentro de mim e eu estou dentro dela. 22 A IMPRESSÃO DA IMPRESSÃO Luiz E. B. Mourão Sá Outubro de 2003 Edgard Morin passeia pela ciência com se estivesse andando em um jardim florido onde sua curiosidade é despertada a cada passo por uma flor ou por um aspecto inusitado que chama atenção. O Leitor é seu convidado no passeio e, tomado pelas mãos o acompanha... É interessante observar o sobressalto do “Convidado” ao vêlo juntar, aqui e ali, fragmentos de diversos conhecimentos, consolidando-os em uma montagem de teoria ainda desconhecida em seus detalhes mas plausível e, ao mesmo tempo, há muito sentida/percebida internamente por este Leitor/Perplexidade. A PHISIS, a natureza corpuscular da matéria, a comunicação, o aparelho, o redemoinho/turbilhão, a protomáquina, os seres-máquinas, o erro, a improbabilidade da vida e a cara da verdade são elementos que ficam zunindo na cabeça do Leitor e fazem com que ele sempre se indague 23 A EXPERIÊNCIA SUBJETIVA DA LEITURA DO MÉTODO Antar Sushma Novembro de 2003 Morin para mim é o intérprete do indizível. O indizível pairava dentro de mim como um mistério, aquilo que eu não podia traduzir em linguagem, que eu não podia alcançar, mas que estava ali, implicitamente. Pertenceria à categoria do imaginário, sem curso para o simbólico. O incrível é que mesmo interpretando o mistério, Morin não se desfaz dele; pelo contrário, ele o denuncia, o torna cotidiano; rende-se a ele, nele mergulha e dele emerge; renascido da incerteza, da confusão, vem traçando o desenvolvimento do seu pensamento na consciência da complexidade que o envolve, em um empenho notável de explicitar o motor do fenômeno da manifestação da vida que é o paradoxo. Sua destreza em lidar com a complexidade só poderia se igualar à do poeta, do artista ou do filósofo. Mas, nem ali talvez ele coubesse... ele se coloca na posição de homem 24 comum e parte para a tarefa de compreender o que é isso (me vem agora a imagem do pescador nativo que se lança no mar alto) - dá a sensação de que precisa ir junto com a vida, experimentando até onde percebê-la só para gerar mais vida; lendo-o, é impossível não criar – imagens, associações, desconstruções, anéis, espirais com tudo o mais que se encontra pelo caminho e que nos é significativo. Ler a sua obra não é ler a sua obra. Faz estremecer fundamentos de verdades, verdades “essenciais” que se relacionam com meu sentimento de Ser no mundo. Eu me sinto estremecida nas bases. Uma estranha sensação de vida me perpassa quando me dou conta desse tremor, e que é também um medo bom, uma pulsão de morrer e de viver ao mesmo tempo. Faz mexer com as entranhas, faz entender que as entranhas estão em relação com o pensamento. Só agora pude perceber o alcance dos paradigmas ocultos sob crenças pessoais que eu não imaginava serem paradigmáticas. Isso está despertando em mim uma vitalidade que não é meramente intelectual, mas um redimensionamento das limitações impostas às minhas escolhas de vida e às minhas formas de trabalho. As coisas que eu sou, do ponto de vista das representações que eu tenho de mim – mulher, cidadã, bicho, mãe... anelado com aquilo que sou do ponto de vista da essência, isso me traz um sentimento intenso de ser real, de ser presença, de self, isso me traz permissão para retroagir sobre aspectos cristalizados de mim. Este sentimento vivo que a leitura do Método provoca provém do corpo - sinto a barriga pulsar, o coração expandir e a cabeça querer criar, como uma força querendo irromper, uma espécie de “incontido”: no início das leituras, um enxame de pensamentos associativos; às vezes uma inquietude grande, como quando se é criança diante de uma alegria que fosse grande demais. Fazer o exercício de pensar pelas lentes da complexidade me faz amadurecer essa euforia do “incontido” em fronteiras necessárias para que eu não me perca em entropia, não me deixe inundar pelo sentimento intenso que é gerado na quase congruência entre o real e o simbólico. Morin opera uma articulação tão legítima entre eles, que o imaginário estremece todo tentando alcançar novos espaços, novos 25 tempos, novas imagens, novas imagos. Estou empenhada em aprender a lidar mais pragmaticamente com isso que é uma transformação profunda na maneira de conhecer, de experimentar, de investigar e de viver. O diferencial é que este conhecimento, não estando mais dissociado daquele que conhece, provoca alterações na maneira como vivencio a mim mesma. Como em um processo psicoterapêutico, onde encontramos permissão para o gesto espontâneo, e buscamos a autenticidade de ser o que se é, assim é a epistemologia que se desenha a partir de Morin: uma espantosa aproximação entre o que ele professa e aquele que professa. Ser sujeito na investigação do objeto para ser objeto na investigação do sujeito é fundamental para a Psicologia, área que se propõe a estudar o sujeito, o si mesmo que se conhece. Muito embora haja um reconhecimento intelectual disto, a tradição nas formas de investigação tem raízes profundas no inconsciente. As mudanças reais não se dão pela afirmação do novo, que até óbvio é, mas pelo reconhecimento das contradições internas e das ameaças que este novo propicia na intimidade de cada ser. O terapeuta precisa se perguntar: Qual o aspecto da subjetividade que ameaça a mim como ser humano e que a minha ciência não pode abarcar? A inclusão do “eu” na ciência, que poderia ser entendida como uma obsessão narcísica se revela seu oposto. Não dá para não registrar minha imensa gratidão a este ser que se dedicou a tentar trazer luz aonde as distorções imperam e preenchem sorrateiramente o lugar sagrado do caos primitivo e das desorganizações necessárias à nossa trajetória real. O seu principal mérito é de não ser retórico ou teorizante ao dizer que a incerteza nestas suas tentativas se fariam presentes. Ele não parte apenas do princípio da incerteza. A complexidade para ele não é uma declaração de princípios. Ele parte, antes de tudo, da qualidade subjetiva da incerteza. Isso é comovente e enternece a velha razão... começa a inspirar confiança. 26 ACORDANDO COM MORIN Rosana Gonçalves da Silva Maio 2008 Meu primeiro encontro com Morin foi no curso Água Matriz Ecopedagógica, em 2003. Intensifiquei a leitura um pouco mais, quando fiz disciplinas no CDS. Momento importante, pois, minha forma poética de escrever foi muito valorizada. Desde então o medo de escrever foi embora, deixou de me aterrorizar. Para mim, ler Morin é encorajador! Há repercussões na pesquisa de mestrado, nas minhas atividades profissionais e no meu cotidiano. Dos sonhos, me lembro claramente de um em especial, quando li o capítulo sobre informação. Se passou assim: a minha casa, misteriosamente, é destruída nas duas extremidades. O centro fica intacto. Eu acordo e olho para o fenômeno, não me assusto. Intuitivamente, sei que é um processo de transformação. Quando acordo, na vida real, e me lembro do sonho fica um sentimento do borbulhar onírico..., onde floresce a poesia sublime (Morin,1997:311,312). O ponto de encontro e perdição da minha existência. A aparente destruição é na verdade um salto, uma renovação, o ir e vir da tentação irresistível que 27 ser e existir significam. Trago o sonho antes dos outros aspectos que a leitura de Morin suscita, por uma necessidade auto-expressiva fundadora, como re-generadora da minha ingênua-mente (Eu não sei o que fazer a esse respeito, apesar de todas as advertências). O giro recursivo O giro recursivo é uma metáfora que tenho usado na minha pesquisa e foi inspirada por Morin. As leituras do Método I me fizeram refletir sobre o espaço da experiência investigativa. Aprofundaram a minha compreensão da pesquisa-ação existencial entrelaçada com a multirreferencialidade, como uma abordagem metodológica que faz alianças conceituais e está aberta à pluralidade do conhecimento. Aquilo a que Tao chama o espírito do vale: “recebe todas as águas que nele afluem”. Mas, que também, nos revela a alma das águas emendadas que é encontro de fontes, desaguando em outros mananciais de possibilidades. Por meio destas duas metáforas eu entrevejo caminhos metodológicos concorrentes e complementares de uma práxis que anuncia a intersubjetividade como o espaço da transformação dos sujeitos de pesquisa. São movimentos de ir e vir sincronizados com dinâmicas de desejo, participação e co-formação. As noções que estou urdindo e são apresentadas no giro recursivo significam a base da organização metodológica da pesquisa. Refletem como cada processo é autônomo e dependente, perpassa os outros processos e por eles é fertilizado. O giro contém em suas diversas relações os aspectos multirreferenciais do processo, no conjunto das inter-retroações entre partes e todo, todo e partes (Morin, 1997, p.180). A recursividade aqui representada por abertura<->fechamento e incerteza<->emergências em circulação, dentro de um processo que reconhece suas fragilidades e potencialidades. Na imagem concebida por Morin: o circulo será a nossa roda, a nossa estrada uma espiral (1997, p. 22) para revitalizar os círculos virtuosos dos processos formativos que supõem trocas, partilhas e tecem solidariedades. Há poesia em Morin O anel tetralógico, e demais anelamentos me reportam a poesia. A aliança entre o mistério e o óbvio da complexidade humana, inspirou a escrita de um poema que dedico à minha filha e a todas as crianças do mundo. 28 Mestiça Olhando bem Dentro dos seus olhos negros Vejo todo o universo Cada ser estelar que o compõe A constelar canção De íntima poesia Dia e noite Ser de criação eterna Depois de ti O mundo parece sorrir mais E chorar menos Porque trazes o dom da linguagem E, nela aninha desejos Não se canse de ouvir, falar, ler e escrever Queira aprender sempre Com o outro e consigo mesma Lembre-se de que há tempo Para todo propósito sob o céu Então, não se antecipe Dê tempo ao tempo E tudo acontecerá... Alguém para amar, Uma semente para plantar, Um livro para escrever E um filho para nascer. Assim re-criar o mundo Re-criando a si mesma. Esperança e futuro de uma vida melhor. Também, venho imaginando um livro elástico, que desejo escrever. As idéias compreendidas no volume I do Método da Complexidade ajudaram bastante a conceber e dar rosto a esta aventura. Já sentipensei o nome, como imagem do processo dialógico: O funil: o anel de Morin para crianças A repercussão no cotidiano Céu da boca Gosto mesmo é da palavra que anda solta no meio da rua. Livre... No céu da boca. Bailarina delirante! As leituras e releituras de Morin me trazem as imagens da minha vida de folha seca se misturando com a terra. A decomposição que vira fertilizante e faz nascer novas interações, outra possibilidades de convivência na relação ordem-desordem-organização no meu dia a dia. Compreendo que em cada gesto e-ou ação os mesmos 29 princípios fundantes que dão origem ao cosmo estão presentes em cada ser vivo. Atualmente vejo mais integração em tudo que faço. A fluidez com que nascem os textos da minha pesquisa. A participação em diversas atividades me permite fazer conexões, que antes eram impossíveis. Uma fala, um gesto, um encontro de inter-relações, e pronto! Crio um mundo de coisas. Estou participando do Curso Água como Matriz Ecopedagógica, novamente. Ele representa mais uma atividade que tenho que refletir diariamente. Não como obrigação, mas, como ligação de ligações em um percurso autopoiético para mim. Em uma das partilhas pedagógicas, nos reunimos em torno do pertencimento, da gratuidade e da gratidão, o todo e as partes. Dentre os comentários fiquei atenta ao que a Larissa trouxe sobre a fé da alga. Lembro-me apenas da parte: a fé da alga, que sabe que o alimento vem das profundezas porque ela é água, integrada ao ambiente que lhe dá origem, que possibilita sua existência. Um ser tão pequenininho que confia. A fala da colega me reportou para minha atividade da análise dos dados para a dissertação. De que, a semelhança da alga confiante, posso ser mais segura e confiar nas minhas percepções. Aproveitei o gancho da Larissa que, também, falou sobre o todo que contém as partes e as partes que formam o todo. Eu trouxe para a roda alguns desdobramentos do Morin sobre esta relação parte-todo. Agora vejo aspectos mais profundos dentro desta relação que o todo não é o todo, que o todo é incerto. Em algumas situações o todo pode ser superior a ele mesmo e à soma das partes. Em outros momentos ele pode ser inferior a si mesmo e à soma das partes. As partes seguem o mesmo processo. Exemplifiquei a partir do trabalho corporal iniciado com a grande roda no chão, as percepções de ritmo e depois grupos nos quais circulamos. A grande roda era o todo e não percebemos potencialidades além do caminhar mais ou menos rápido, sorrisos gestos corporais. Os pequenos grupos eram as partes e neles conversamos e nos soltamos. Trouxemos um pouco de nós, que não foi possível mostrar na grande roda. Em cada pequeno grupo, também, nos comportamos com mais abertura ao outro de formas diferentes, porque os ritmos trabalhados eram igualmente diferentes. Percebi em um gesto tão simples: entrega, doação energética, gratuidade. Assim, fiz uma relação com a educação ambiental. Enquanto 30 educadores ambientais há momentos de maior abertura e potencialização das nossas capacidades. Já em outros momentos, nos resguardamos e nossa potencialidade diante do trabalho míngua. Conforme permitimos a emergência da nossa potencialidade é um detalhe importante para o sentir integrado ou não a um grupo. Considerei relevante trazer os avanços sobre parte/todo a partir do pensamento do Morin, porque nossa visão desta relação, ainda, não alcança toda a sua complexidade. Precisamos compreendê-la num principio sistêmico-chave: a ligação entre formação e transformação. Tudo aquilo que forma transforma (Morin, 1997. p. 112). Bebemos a água com clorofila. E a Socorro nos presenteou com balinhas de alga acomodadas em uma barca, um agrado muito afetivo. A imagem das pessoas reverenciando a barca me inspirou. Pedi a palavra, senti uma intuição forte e nasceu essa quadrinha: A barca circula cheia de alga. A barca retorna Cheia de algo, de nós! Foi uma emoção forte. Ali me conectei com o que me inspira na vida ‘o coletivo’. Meditei no significado do encontro e os pensamentos vinham em forma de cascatas, de lembranças, um dejavu. Em casa, preparei para o jantar uma massa. A água na panela, quando aquecida formou pequenas bolhas e acrescida do óleo, boiando na superfície formou uma sobreposição de bolas, círculos e discos. Fiquei hipnotizada por longos minutos, observando atenta as novas formações. As formas que deram início à composição se misturaram lentamente, até formar uma roda. A unidade, a impermanência, o ciclo e minha grande descoberta do dia ‘estou re-encontrando o fio da minha poesia’. No dia seguinte compartilhei com Vera as belezas do encontro como um todo. E as reverberações não pararam durante a manhã, mesmo assistindo a qualificação da minha amiga Marise, fiquei com a cabeça cheia de música. Uma ficha caiu ‘estou de novo vivendo o curso ‘Água como Matriz Ecopedagógica’. Esta sim é a grande ligação: a autopoiése. O emocionar do dia anterior está ancorado no mar de possibilidades que o Água Matriz me revelou, quando fui integrante do primeiro grupo. Agora, voltando como monitora, tendo circulado com a bagagem da transversalidade e os 31 movimentos pedagógicos da água, o nascimento da minha pesquisa e a concretização de um sonho. Uma metáfora desabrochou tão forte que eu a elevei a categoria de intuição. Lembrei-me da alegria gratuita que a ciranda tinha me proporcionado, e me vi num aquário como um peixe solitário. Estando distante do coletivo me sinto no aquário, me debatendo com o vidro. Mas, sua transparência me abre possibilidades, olho para além dele e quero me relacionar com o que existe e ultrapassa minha existência. Eu pertenço a um ser-tão interiorizado e fecundo, o aquário também me revela esta realidade. Olho para a abrangência desta geografia, assim mergulho voando nas águas que me formaram e transformaram. De inicio pensei ‘que coisa surreal’. Olhando com os olhos da complexidade a coisa muda de figura, pois, o aquário da minha visão não se fecha como ambiente de limitações. Há uma fina camada de vidro que retém minha potencialidade acomodada nos processos vividos. Este mesmo vidro que é transparente me permite desejar, cultivar o meu imaginário e me dá asas para dar concretude ao que sentipenso. Assim como o vidro, que um dia foi areia aos pés do mar, eu um dia me permiti a grande metáfora da água como elemento matriz de muitas formas, que em todos os seus estados fez expandir os meus horizontes. E, Morin participando das alianças que se formam cotidianamente. 32 PRECISAM AS COISAS TEREM FIM? Cláudia Valéria de Assis Dansa Junho 2004 Turbilhões, estrelas, redemoinhos, seres vivos, sociedades... formas complexas de organização que compõem um universo tão vasto e profundo como o ser que o conhece. Universo até então entrópico, onde a energia se desvanece incessantemente até que, numa dobra de improbabilidade, nasce a organização... emergência dos anéis formados entre ordem e desordem, cosmo e caos. Criação de um Deus (deuses). Determinação, acaso, incerto, artista, imagem rascunhada num cérebro mamífero, humano, hipercomplexo. Forças desconhecidas, desconexas, reconexas, complementares, concorrentes, antagônicas, retroativas, recursivas, atreladas num emaranhado de possibilidades, de potencialidades, de limites conhecíveis ou não para um observador-sujeito que espreita - ele mesmo fruto do processo - por uma fechadura tênue, a criação. Criação que se cria e é criada pelo sujeito observadorcriador. Um observador sujeito que surge de um movimento genésico de moléculas específicas agregadas em células auto-organizáveis, assembléias orgânicas especializadas 33 que se desdobram numa ecologia das fagias predador-presa, das simbioses, das concorrências, das produções e reproduções, num tempo-espaço próprio (ou quem sabe além) de um planeta pequeno, girando ao redor de um solestrela turbilhonante esquecido, num ponto qualquer de uma galáxia qualquer, no meio de uma vastidão. Cujo sentido se perde na escuridão invisível, nos limites da computaçãocogitação dos seres sujeitos que buscam incessantemente ser um eu-mim auto-(eco-feno-geno)-organizado, entregando-se às regras conhecidas-desconhecidas da ecoproposta-organização da vida. Proposta de incessantemente fazer-se e refazer-se a partir do desfazer-recomporreproduzir-renascer, num ciclo anti-entrópico perpétuo. Do qual emerge o eco-eu social que articula, propõe um novo ser que se agrega pelas diversas formas de comunicação e propostas, quer de reprodução ou criação. Surge o cérebro, aparelho complexo de ver o mundo, tecnologia virtual que aproxima e aparta a vida da natureza da vida. Com ele vem a linguagem, a representação, a imaginação, o jogo, o sonho, o pensamento, mais que computação, que se pensa, se organiza, produz a linguagem e a partir dela a emergência cultural, o grande pensar conjunto da sociedade humana, conflitante, contraditório, complementar como a própria dialógica universal. É neste mundo de referências que surge o pensamento cartesiano-complexo, múltiplo, antagônico, como mito, como logos, como computo-cogito, como conhecimento e explicação, como construtor de certezas e ordens e como produtor de incertezas e erros. Pensamento fruto de um cérebro triúnico, bihemisférico, com camadas, ele mesmo produto e produtor de recorrências, de retroações, de possibilidades bem exploradas, mal exploradas, inexploradas, de disciplinas, multidisciplinas, interdisciplinas, transdisciplinas, indisciplinas. Limite e possibilidade de um mergulho cognitivo no universo e na vida, na sociedade humana complexa que se comunica, se computa e se cogita através da linguagem, dos afetos, dos atritos, dos conflitos, dos resgates e do pensamento. Parcerias parciais, egoísmos complementares, conflitos afetivos, amores conflitantes, incompletudes amorosas. É deste turbilhão cerebral que emerge uma nova forma de organização, o espírito com capacidades mais que computantes, cogitantes. Quem somos, para onde vamos, a que pertencemos? Somos todo e somos parte? Parte do todo ou parte da parte? Todo da parte ou todo do todo? Tudo e mais um pouco. 34 E tudo ao mesmo tempo agora, ontem, amanhã, quem sabe. Paira a complexidade sem fronteira, sem certeza, mas não inteiramente sem destino. Lá, ao longe, vislumbra-se um caminhar, meio de olhos vendados, em direção à possibilidade de mover-se em alguma sintonia ainda tênue, frágil, de um eterno-fluido movimento recorrente, ordemdesordem- organização, de se buscar, não um sentido fechado em si, mas uma proposta semi-aberta de ser, de conviver com os homens, com a vida, com o universo enfim. Mas como viver com medo da morte, da perda, da incerteza que corrói, da fragilidade do eu-mim vivo, que se debate no e como turbilhão para preservar sua identidade efêmera no universo volátil? Precisamos de projetos, de pontos de partida, pontos de chegada, metodologias, teorias, confirmações. Não nos bastam referências, precisamos de certezas, não nos basta possuir idéias, precisamos ser possuídos por elas, consumidos pelas verdades fechadas em si mesmas que norteiam nossa ação e nos afastam das emoções incômodas e contraditórias. Precisamos banir a poesia e o mito para o limbo distante da metafísica e instituir a razão no centro do conhecimento. Precisamos? Então porque, no seio da ciência renasce o mito, agora como mito do conhecimento verdadeiro, da verdade passível de ser conhecida, prevista, determinada? Não são os determinismos os filhos bastardos do logos com o mito? Estamos engatinhando neste despertar de possibilidades de conviver com a complexidade da complexidade que habita tudo ao nosso redor (ou talvez a complexidade ausente também exista, quem sabe, só para não fazer da complexidade um determinismo). Como a criança que quer levantar, nos apoiamos nos banquinhos da nossa racionalidade que nos parecem tão firmes, mas logo percebemos sua fragilidade. Como sua aparente firmeza se desvanece, seus pés se desconectam, sua base se pulveriza, seus fragmentos nos deixam atônitos e in-suportados (ou insuportáveis)! Ansiosos, mergulhamos no vazio da desconstrução, da incerteza, para logo buscar um novo banquinho, numa nova tentativa de sair do chão. Confundimos o banquinho com nossas próprias pernas e, tão interessados em andar, nem nos damos conta de nossas asas invisíveis, as intuições. Não sabemos pra que servem ou como podemos usá-las, 35 mas elas se abrem a todo momento. E nossas nadadeiras, as brânquias ancestrais, quando exploraremos os abismos profundos que elas ameaçam revelar em nossa própria inconsciência? Primatas-mamíferos, aves-peixes e répteis desvairados, andaremos nas campinas das verdades racionais, voaremos nos céus oxigenantes da imaginação poética, mergulharemos nas profundezas oceânicas de nossa própria natureza bio-auto-(eco-ego-geno-feno)-propulsora, percorreremos os pântanos aquosos da libido-agressividade e teceremos com a paciência dos araneídeos, no âmago da nossa estrutura físico-molecular, a marca indelével do que somos. E, disfarçados de nós mesmos, caminharemos na pluralidade complexa da vida, descortinando e resgatando mistérios, pulverizando certezas incontésteis e construindo incontestáveis incertezas, produtoras, elas mesmas, de organizações mais ou menos desejadas, mais ou menos conhecíveis. Laboraremos em projetos que elaboram a si mesmos e nos levam a sentidos provisórios, suficientemente confortáveis, suficientemente estéticos, suficientemente éticos, suficientemente criativos para podermos mergulhar no processo de simplesmente viver complexamente. E, então... precisam as coisas ter fim? É certo que toda organização anti-entrópica terá o seu fim... tão certo como que, em algum lugar, uma nova improvável organização estará nascendo. Por outro lado, tem a vida um fim (finalidade?). É certo que, desse ponto de vista, mais que finalidade, a vida tem um quase destino, que é preservar a própria vida. Por outro lado, nada garante seu sucesso nessa empreitada; a incerteza, o erro, o acaso espreitam em cada ponto da sua trajetória delirante, e, mesmo que haja sucesso, ele será sempre temporário. E quanto a nós, homo sapiens/demens, teremos nós um fim? Certamente findaremos um dia. E um fim (finalidade)? Além da finalidade da vida... Somos uma emergência única e esquisita no seio da complexidade universal sem fim (infinita e sem finalidade), somos parte de um socius que também segue a lógica da vida e do universo, auto-(eco-geno-fenosocio) organização. Temos um aparelho neuro-cerebral que nos abre infindáveis possibilidades e nos limita nessas mesmas possibilidades, e é aí que nos leva a nossa razão. Não há projeto, há a imensa possibilidade de criação, e é aí que as potencialidades desse 36 aparelho cerebral-afetivo-físico-vivo nos levam, há múltiplas possibilidades de projetos que descortinam múltiplos destinos possíveis para a humanidade. E qual é o projeto de O Método? É exercitar a possibilidade de um diálogo com a complexidade. É lembrar-nos, a todo instante, que apesar da improbabilidade e incognoscibilidade de causas finais, nos enraizamos nessa organização complexa que, de alguma forma, se enraíza em nós. Somos seres anti-entrópicos, auto-eco-organizados, portadores de subjetividade e de aparelho neuro-cerebral, imersos numa cultura produtora e produzida por linguagem e interações complementares, concorrentes e antagônicas de bilhares de eus-mins sujeitos, e é de dentro desse universo complexo, que vivemos, caminhos e desenhamos nossos fins. Estes fins, sempre provisórios, nada têm de verdade em si. Embora sujeitos a determinações e determinismos que nos policiam, contrariam, orientam e deleitam, estes fins podem conservar ou transformar, organizar ou desconstruir, são apenas elementos que compõem a vastidão do universo, são mais uma necessidade humana do que universal. O universo não clama por um fim, mas a humanidade, os sujeitos, estes sim, precisam de algo que explique, que justifique, que os potencialize. Ao sujeito humano, não basta sobreviver, é preciso sonhar, caminhar em direção, ter objetivos, crenças, valores, é preciso se apaixonar, ainda que de forma muitas vezes conflituosa com padrões sócioculturais ou em antagonismo com a própria natureza. Por que o homem precisa ter fim (finalidade?). Talvez esta seja a conseqüência mais interessante, do meu ponto de vista, da emergência do aparelho neuro-cerebral chamada espírito. O espírito, que habita o aparelho psíquico, dimensão do aparelho neuro-cerebral, nasce, como toda organização, com o desejo de alimentar sua existência. A sobrevivência do espírito depende de uma matéria mais sutil que aquela que alimenta o bios. O sentido (fim) é o campo onde acontece a eco-organização do espírito, o oikos onde ele estabelece as relações de nutrição e de reprodução de sua organização. O fim agrega os diferentes espíritos, ajuda-os a distinguir alimento e veneno, cria um vasto campo de fusão, fecundação e gestação de tudo aquilo que compõe a organização espiritual. E, então, ao que tudo indica, o fim tem um fim, fazer com que o espírito não chegue ao fim. Por isso, para os espíritos que 37 se vinculam de corpo e alma a certas propostas e idéias, a derrocada destas idéias é como a morte. Mas o palco das parcerias é também o palco dos antagonismos e das concorrências e os espíritos ora se fortalecem, ora se enfraquecem neste constante movimento de criação de um campo, que a meu ver confunde-se com a noosfera, mas não é ela mesma. É certo que as idéias só se realizam encarnadas em espíritos vivos, mas, por outro lado, há no campo do espírito mais que idéias, há paixões, depressões, repressões, intuições, cargas que, nem sempre, estão prontas para se materializar como idéias, mas que interferem, pela própria inquietação que trazem, com a eco-organização dessa psicosfera. Por outro lado, as idéias da noosfera podem conviver como fantasmas desencarnados em espaços de conservação, como as bibliotecas ou bancos de memórias, desligadas, congeladas, até que venham a se dinamizar novamente por alguma busca arqueológico-filosófica. A psicosfera, por seu lado, é um campo onde seres humanos, vivos ou mortos dialogam e se solidarizam ou se combatem ou se devoram numa antropofagia das idéias e experiências que fazem emergir o campo do imaginário, não só o imaginário discursivo, mas também experiencial, pois a psicosfera não está fechada no cérebro, ela está na pele, no coração, nas mãos, nos órgãos, está na força curativa de um abraço ou na carga adoecedora de um olhar raivoso. Está na poesia que, ao resgatar seu autor da depressão ou da revolta, lega ao mundo uma carga estética que impregna e mobiliza, na dor lancinante da tomada de consciência de um cientista que ajudou a produzir a bomba atômica e sobre ela não tem nenhum poder decisório. É no cruzamento eco-bio-psico-noológico que os homens tomam suas decisões e executam suas ações no mundo. É com isto em mente que podemos começar a pensar a educação. O que é educação para um pensar complexo? Educar nesta perspectiva significa abrir porteiras, firmar o sentimento de impermanência e inconstância, de incerteza, imprecisão, abolir, num certo sentido, a segurança. Mas também significa referenciar em múltiplas possibilidades, tomar consciência da subjetividade, ou não deixar que ela se perca no processo de embate com os determinismos sócio-culturais. Pautar a objetividade no conhecimento da auto-eco-organização e dar-se conta da intensidade efêmera do ser. É construir espaços de convivência que traduzam a dinâmica da eco-(geno-feno)organização. É aprender a amar a vida e o mundo e ter 38 clareza da provisoriedade de tudo, sem medo do mergulho. Certamente uma educação muito diferente da que vivemos hoje em dia. Uma educação que integre a morte como parte da vida, que dê conta de traduzir as diferentes necessidades de auto-organização das diversas esferas em que vivemos, dos átomos e moléculas às sociedades e ao conhecimento. Em termos metodológicos talvez isto signifique mais vivências do que informações, mais relações do que hierarquizações, mais criação e reflexão do que reprodução, mais dislexia do que determinação. Mais subir em árvores que sentar em carteiras, mais bagunça criativa do que disciplina, mais olhares múltiplos que maneiras certas de fazer, mais diálogo e tolerância do que afirmação de verdades, mais silêncio organizador que tempestades de informações, mais autonomias que dependências, mais amor que domesticação mecânica, mais compreensão do processo cultural do que dos seus elementos, mais compreensão dos mecanismos psico-sociais do que submissão a eles. Não é fácil imaginar como traduzir em ação tantas diferenças. É preciso que as idéias se assentem para que a criação se faça por si. Mas, ter em mente estas idéias, talvez contribua para um projeto educacional mais ou menos possível, para uma existência humana onde a angústia e o medo da morte possam viver lado a lado, em anel, com a capacidade de maravilhamento diante do todo e seus mistérios, e a possibilidade constante de construção do novo em cada um e no todo. 39 MEU ENCONTRO COM MORIN ACONTECEU NA MISSA Guadalupe Silva Junho de 2005 Nesse meu segundo ano do Mestrado, decidi, no momento de eleger as disciplinas do semestre, que, além de estudar melhor a Educação Ambiental, deveria conhecer um pouco de Edgard Morin e da tão mencionada complexidade. Escutei falar sobre Edgard Morin desde o momento em que decidi fazer a inscrição para o Mestrado, e gostei das leituras que dele, ou sobre ele, tive como uma primeira aproximação. Já uma vez como aluna da disciplina “O Método da Complexidade”, foi entre surpresa e curiosa, que escutei a professora advertir sobre os efeitos que o estudo do método poderia provocar-nos. Não demorei muito para “experienciar” aquilo que nos fora anunciado. Primeiro, a grande certeza 40 MORIN, MEU LINDO! Marília Magalhães Teixeira Maio 2008 Meus primeiros contatos com a obra de Morin se deram na graduação, durante o curso de Pedagogia. No entanto, esta primeira aproximação não foi bem sucedida, uma vez que tinha grande dificuldade de compreender suas idéias, o que gerava um profundo desinteresse de minha parte. Ao tentar ler a sua obra, percebia que não saia do mesmo parágrafo ou então que estava vagando pelas páginas pensando em outro assunto. Esta dificuldade me inquietava, pois admirava muito Morin, já que ouvia bastante a seu respeito e lia inúmeras citações de suas obras em outras produções. Desse modo, dois sentimentos contraditórios coexistiam dentro de mim: por um lado, a admiração e a vontade de conhecer as idéias de Morin mais profundamente, e por outro, a falta de concentração, de entendimento e o conseqüente desinteresse. Esses sentimentos antagônicos, que conviviam dentro de mim de forma concorrente e complementar geraram uma verdadeira desordem interna. Ao entrar no mestrado, tais sentimentos, que estavam dormentes desde o término da graduação, voltaram a despertar ao me deparar com a disciplina “O Método da 41 Complexidade”. Uma imensa dúvida surgiu: cursá-la ou não? Pensei tanto a respeito que não consegui chegar a uma conclusão. Os sentimentos antagônicos pareciam brigar dentro de mim, cada um me puxava para um lado distinto. Faltando apenas dez minutos para o início da primeira aula, quando já havia desistido da idéia de me matricular na disciplina, pensei: “vou lá para conhecer”. Saí da aula convencida de que aquela seria uma oportunidade ímpar para que eu e Morin rompêssemos de vez, ou não, a barreira existente entre nós. Seria um verdadeiro desafio, mas o rico espaço coletivo de discussão proporcionado pela disciplina seria o espaço ideal para que eu conseguisse, por meio das trocas, avançar nas leituras e compreendê-las. Outro fato que me aliviou, foi perceber na fala de alguns colegas a mesma dificuldade que eu tinha e ouvir da professora Laís que tal dificuldade é normal e que não deveríamos entrar em pânico diante do não entendimento. No inicio da disciplina, a dificuldade com a leitura permaneceu. Sentia que não saia do lugar e muitas vezes ficava durante vários minutos pensando em um parágrafo ou linha do texto tentando compreende-lo. Além da questão do tempo, outros fatores me inquietavam: a sensação de que Morin era muito repetitivo, e os seus “jogos de palavras”, que em alguns momentos chegavam a me irritar, como por exemplo: “A natureza da natureza está na nossa natureza.” (1997:340). No entanto, aos poucos, comecei – com a ajuda dos colegas e da professora - a enxergar o que até então estava embaçado, já que a minha visão, em decorrência dos meus antigos preconceitos com relação ao Morin, encontrava-se um pouco limitada. Compreendi o que atualmente mais me fascina em sua obra: O livro do Morin é a própria complexidade! Durante todo o volume ele consegue inter-relacionar idéias do inicio, do meio e do final, de forma complexa e coerente com as idéias que o constituem, fazendo com que sua obra seja o próprio exemplo de si mesma. Descobri também, que apesar da sensação de que as idéias se repetiam, esta “repetição” estava sempre atrelada a um caráter novo, a uma nova concepção, ou seja, apesar de parecer, não se tratava de repetição. Foi a partir de então, que nós – eu e Morin – finalmente nos encontramos, fazendo surgir uma relação interativa, já que finalmente me sentia capaz de compreendê-lo e de dialogar com suas idéias. Uma nova ordem foi deflagrada, na qual eu me surpreendi fazendo jogos de palavras, assim como o Morin, que há pouco conseguia me irritar ao fazê-lo. Rumamos então, para a organização, na qual as idéias de Morin começaram a 42 permear a minha vida, fazendo-me observar a complexidade nas relações familiares, na natureza, no diálogo... Fazendome permitir que o conflito e a desordem existissem dentro e fora de mim, pois já podia compreender que, “... a desordem é uma desordem que, em vez de degradar, faz existir” (Morin, 1997:42). A quebra do pensamento dualista, no entanto, foi a principal marca que Morin deixou em mim após o término da leitura deste primeiro volume. Tal marca auxiliará inclusive durante o meu projeto de pesquisa, uma vez que diversas visões acerca de uma mesma realidade serão observadas. Posso afirmar de antemão que todas as visões possuem a sua relevância e nenhuma deve se sobrepor à outra, já que cada uma baseia-se no nível de realidade em que se encontra. Desse modo, mesmo as visões antagônicas, deverão ser consideradas com base em seu caráter concorrente e complementar. Ao final do livro consigo perceber claramente o caminho por mim percorrido: desordem, interações, ordem e organização. Volto agora ao ponto de partida - a desordem-,uma vez que o novo conhecimento adquirido constrói e ao mesmo tempo destrói, gerando assim novas desordens. Destrói, pois antigas crenças entraram em colapso e passam agora por um período de transição, reconstrução e de interação com o novo conhecimento construído a partir das interações proporcionadas pela leitura do Método I. Fecha-se assim, no ponto em que se iniciou, o ciclo que recomeçará novamente. MORIN, Edgar, O Método 1.A Natureza da Natureza. Portugal: Publicações Europa-América, 1997. 43 O QUE MORIN MEXE EM MIM Somos filhos do sol Somos filhos sóis Somos sóis Geradores de sóis Sós? Não somos sós. Solitários e solidários Somos somente com. Claudia Bandeira 2008 Lais nos convida a registrar qual é o impacto da leitura do Método I (1977), de Edgar Morin. O que se move em mim ao percorrer a construção/articulação original e genial do autor? Aceito o desafio. Penso nas minhas leituras anteriores de Morin: ‘Ciência com Consciência’, ‘Os sete saberes’, o ‘Enigma do Homem: Para uma nova Antropologia’, a ‘Cabeça bem feita’. Destas, a que me emocionou e impactou mais profundamente foi o ‘Enigma do Homem’, belíssima obra do autor, com versão brasileira de 1975, a qual já prenunciava o Método. De todas estas leituras, extraí um prazer eufórico, uma alegria de ver escritas palavras que traduzem com beleza e profundidade meu pensamento, minha forma de ver o mundo e as relações que nos tramam e que tramamos. Traduzem o 44 meu pensamento, mesmo que rudimentar e primário, minha verdade, meu referencial de vida, meu agir no mundo. É como o compositor que, ao ouvir uma música tem a sensação de intimidade, de familiaridade: como não fui eu quem a fez? Como educadora, sempre me inquietou a busca da articulação das coisas, dos conhecimentos, das várias visões de um mesmo fenômeno. Acredito que este seja o nosso desafio: juntar o que foi separado, não para desconsiderar as partes, mas para contextualizá-las, para concatená-las com o espírito do vale, de acolhimento e fluxo. A leitura do ‘Método I’ foi para mim bem mais complexa que as anteriores; percorre caminhos e linguagens que não domino, mas quando os traduzo para o campo do conhecimento social, humano, que lida com as relações humanas, me emocionam, me afetam, compreendo-os, abarco-os em mim e sinto que dão sentido às minhas questões, mesmo que, ao invés de respondê-las, tornem-nas mais complexas e instigantes. Morin para mim é inspiração. É ins-piração também! É um desordenar profícuo de certezas, é um convite ao reconhecimento das incertezas, é um estímulo aos questionamentos, à sensibilidade do racional, à racionalidade do sensível. Buscar o enraizamento físico e biológico do humano, buscar raízes. Quais são as seivas que nos alimentam? Quais seivas herdei e trago comigo; quais escolho para me alimentar? Não somos só o que somos. Somos muitos, somos uma multidão complexa de sujeitos, elementos, energias. O pensamento complexo de Morin dialoga com o pensamento dos antigos, embora o autor não se inspire nestas fontes. A compreensão que Morin busca construir é uma compreensão já vivenciada pelo ser humano e perdida na bifurcação da ocidentalização da cultura. Ele, representante desta, ao costurar retalhos dispersos, molda a trama na qual os antigos se vêem integrados, parte e todo. Quando falo dos antigos, refiro-me aos Guarani, povo nativo das Américas, profundos sabedores das relações que tudo interconectam, do que lhes está (aparentemente) fora, e os que lhes percorre dentro, como percorre e como se expressa na individualidade de cada um, somente compreendida se agregada ao coletivo, às grandes tribos externa e interna que nos acompanham e dão sentido ao nosso agir, nosso ethos. Neste sentido, é belíssimo pensar que autonomia e dependência acontecem juntos. Que quanto mais o sistema 45 é complexo e autônomo, mais ele é dependente. Esta visão aniquila a presunçosa possibilidade de sermos sem os outros, entendidos como gentes, ar, água, elementos, energias. Quando o autor nos convida a identificar a desordem como potencial gerador de novas ordens, fortalece em mim o valor dos antigos-sempre novos olhares daqueles que foram calados há muito e que hoje, diante da impotência do homem moderno em responder as questões que ele mesmo gerou, começam a ser ouvidas, começam a ganhar novos espaços de escuta e de diálogo. Remete-me também à importância do olhar sempre novo da criança, a qual nos incita a questionar verdades e programas estabelecidos, nos convida a olhar com novos olhos o que vemos todo dia e deixamos de ver e perceber. Como nos indica Morin, o universo hoje é adulto, mas a gênese não cessou e está sempre em movimento, do qual participamos mesmo quando no nosso infinito desejo de controle, acreditamos deter o tempo e a verdade nas mãos. A cada instante, a imprevisibilidade e o mistério nos afrontam e nos desafiam a novas buscas. O universo herdado da ciência clássica estava centrado. O novo universo é acêntrico, policêntrico. Está o tempo todo em parto, em gênese, em decomposição (p. 63). Meu desejo e meu desafio: aprender com Morin a organizar meu pensamento, aprender a fazer conexões (apropriandome melhor deste fazer); aprender a aprender sempre, de novo, buscando sempre criar novos caminhos diante de novas questões. Para finalizar, fico com o fogo, artífice e artesão. Sol, hermafrodita pai e mãe, gerador e cuidador. Sinto-me fogo e sol. Quero aprender a ser artífice consciente de mim. MORIN, Edgar - O Método. Vol. I - A Natureza da Natureza. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997. 3ª Edição (Editions du Seuil, 1977). 46 LENDO “O MÉTODO” 47 Lendo Morin Leandra Fatorelli Maio 2008 Apesar de ter lido alguns textos de Edgar Morin, fiquei surpreendida com o livro “O Método: a natureza da natureza”. Surpresa principalmente com a capacidade do autor em tornar as diversas realidades do universo mais compreensíveis e próximas da minha realidade, a partir da minha experiência vivida. A densidade da obra me surpreendeu principalmente, por ser ao mesmo tempo científica e poética. Pude perceber que, ao contrário do que muitos dizem quando se toca no tema complexidade, que ela não é complicada, impossível de ser praticada. Não dá pra apreender todo o conhecimento do mundo no tempo de vida de um ser humano, mas isso também não é necessário para se pensar de maneira complexa. Não preciso saber fórmulas incompreensíveis aos não físicos ou matemáticos, ou analisar todas as reações químicas e biológicas. Só é preciso adicionar mais pontos de vista à minha vida, à minha representação do mundo, ao meu problema de pesquisa. Enxergar um o objeto como um todo, dentro do seu meio, em relação com outros elementos e processos, em interação com meio e com os demais elementos. 48 Ao ler o livro, era como se meu cérebro fosse se descortinando e vários sorrisos se abriram em mim quando as idéias dos textos iam se encaixando na minha lógica mental (interação entre os textos, minhas idéias e experiências pessoais e profissionais). Ficava pensando como que ele conseguiu, ao complexificar o universo (do micro ao macro e do macro ao micro) deixá-lo simples, coeso, coerente, fascinante, encantador. Minha curiosidade por mitologias e religiões orientais também me fizeram acolher o pensamento de Morin facilmente, apesar da leitura densa e muitas vezes difícil. O desprendimento de conotações morais de bom e mau, certo e errado, que levam a classificarmos ordem e organização como conceitos totalmente bons e desordem e desorganização como conceitos ruins me fizeram repensar meus próprios conceitos. Fico mentalizando questões relativas à minha vida acadêmica e pessoal sob o prisma e os conceitos da complexidade. Fico analisando (embora não com tanta astúcia e genialidade como Morin) os diversos pontos de vista, realidades, processos e elementos que estão envolvidos em um fato cotidiano, pessoal ou científico. Percebi que apesar de ter que delimitar minha pergunta e pesquisa em virtude de diversas circunstâncias: tempo, dinheiro, factibilidade, etc., não tenho que analisar a questão de forma reducionista e limitada por estas circunstâncias. O esforço físico e mental a ser empreendido na resposta não deve ser limitado pelo recorte da pergunta. Pode-se extrair uma questão fundamental universal, abrangente, aplicável a outros lugares e cenários a partir de uma análise, síntese e discussão complexa da questão, mesmo com um recorte metodológico necessário para a prática científica. O universo ficou menos romântico, mas muito mais encantador. 49 IMPRESSÕES E SENSAÇÕES SOBRE A LEITURA DO MÉTODO Marina Margarido Pessoa Maio de 2008 Por curiosidade e por me interessar pela obra de Morin (mesmo conhecendo-a muito superficialmente), resolvi me matricular na disciplina “O Método da Complexidade”. Devo confessar que não fazia idéia do que iria encontrar, mas, quando cheguei na primeira aula, tive a sensação de que esta não seria mais uma das disciplinas onde recebemos tudo “mastigado”, sem espaços para reflexões e contestações, mas, pelo contrário, seria uma disciplina que teria muito a me acrescentar, em muitos sentidos, que me faria parar para pensar e refletir, de fato, sobre tudo e todas as coisas. Quando comecei a ler o livro, nas primeiras páginas, não conseguia entender e nem absorver grande parte das idéias apresentadas. Mas insisti... Fui lendo, lendo, e, aos poucos, com a ajuda da professora Laís e dos colegas da turma, fui entendendo a linguagem e a mensagem de Morin e vagarosamente fui compreendendo a forma de se pensar complexamente. Com o tempo, “a ficha caiu” e tudo começou a fazer sentido. Mesmo assim, em alguns momentos, me pego com uma enorme dificuldade de pensar 50 complexamente, o que acredito que seja decorrência de que, infelizmente, ao longo de nossas vidas, somos ensinados a pensar tudo compartimentadamente, simplisticamente, sem associar os fatos e os acontecimentos uns com os outros, sem compreender que tudo está ligado e inter-ligado. Pessoalmente, sempre tive dificuldade para entender as disciplinas exatas e, por este motivo, nunca tive grande interesse pela Física, da forma como havia sido me ensinada até então. Sempre tive grande dificuldade em aceitar as leis sem antes compreendê-las, simplesmente porque fulano ou ciclano resolveu que as coisas deveriam ser deste ou daquele modo. Ao ler a obra de Morin, passei a entender conceitos de Física que nunca havia entendido e passei a entender a Física como uma ciência que explica a physis, a origem. Compreendi que esta é uma ciência que pode nos ajudar a entender “as origens” das coisas, do universo, das idéias, do mundo. A partir daí, o Método da Complexidade foi fazendo cada vez mais sentido para mim e, aos poucos, foi entremeando diversos pontos do meu dia-a-dia. Em vários momentos, tanto de lazer, quanto de estudos ou de trabalho, nas minhas relações inter-pessoais e intra-pessoal (minha comigo mesma), me vejo pensando na complexidade, em como ela realmente se aplica a tudo e, em como o mundo ganha graça quando pensamos e agimos de forma complexa. Penso que esse é um caminho irreversível e isso tem me trazido grande conforto, pois, apesar de intuir que a vida é complexa e que a graça da vida é ser complexa, na realidade em que vivemos e, principalmente na realidade acadêmica, sobra muito pouco espaço para enxergarmos e trabalharmos a complexidade das coisas. É muito mais simples simplificar, mas, quase sempre, esta não é a melhor solução. São muito raros os “pensadores” que se propõem a trabalhar com o “espírito do vale”, que recebe todas as águas que correm em sua direção. Agradeço então, ao Morin e ao destino, por termos nos encontrado na complexidade. 51 LENDO MORIN Maria Amélia Costa Janeiro de 2004 Foi/é num contexto de emoções de prazer, dor, raiva, encanto... e lágrimas; quando sou “obrigada a ver” a mim mesma, pela via do sofrimento, que experimentei/experimento uma aproximação mais alongada de Edgar Morin. Faço-a por meio das leituras que consegui/consigo fazer, dos debates em aula onde emerge a colaboração dos/as colegas “da” filosofia, “da” biologia, “da” física, “da” química, “da” antropologia, “da” pedagogia e de tantas outras áreas de conhecimento. Lembrando, sempre, que o “domínio” (se é que há!) de um campo de conhecimento não basta e, dependendo da arrogância e da prepotência daquele que diz que conhece, pode até atrapalhar. As aulas, que acontecem as terças-feiras no Centro de Desenvolvimento Sustentável/UnB são o ponto de convergência nessa tentativa de aproximação. A turma do segundo semestre do ano de dois mil e três começou com a sala cheia de alunos/as interessados/as no pensamento de Morin. Aos poucos foi diminuindo. A rotina de exploração do/ s texto/s fica da leitura ao debate. Parece que é o melhor 52 jeito de fazer isso: pensando e explorando nossa capacidade de análise, síntese, mediações, conexões, exemplificações, etc. De viver momentos de êxtase, indignação, excitação, meditação... silêncios. As tentativas de representações mais ilustrativas foram frustrantes. Fez-se desenhos, falou-se em maquetes. Só se conseguiu empobrecer o espaço da complexidade. Talvez brincar um pouco, mas corremos o risco (bom!) de cometer uma heresia. Acredito que o possível, nesse âmbito, agora, em termos de imagem, só de pensamento. De resto, é olhar, sentir, viver, se entregar. E atentar, permanentemente, para os anéis/circuitos/espirais de Morin. Presentes em quase tudo, ao que parece. Mas, sabe-se, a condição de condição guarda em si a provisoriedade. Todos/as que se dedicarem a esse estudo poderão fazer dele espaço de conhecimento, se é que posso falar assim. Contudo, preciso admitir: é uma leitura difícil. Essa dificuldade, na atualidade do agora, tem a aparência de um tempo necessário a uma gestação cujo conteúdo seria uma aproximação cuidadosa, exigente de outras leituras. Tempo de acomodação em dobras, entranhas, vazios não explicados. Um ir e vir num devir meditativo. Tempo de introspecção, mergulho na interioridade de um ser que é quase um desconhecido; ser que escapa esgueirando-se apoiado nas paredes seguras do “velho” paradigma de uma ciência que, no rigor, exige provas. Enfim, tempo para o enfrentamento/superação de lógicas simplistas que, num primeiro olhar, nos movem e com elas, movemos o cotidiano. Nesse movimento cultivamos uma ignorância que teima em abafar a complexidade. No tempo... As tentativas de penetrar no texto refletem no corpo que se contorce, cruza os dedos, alonga, massageia o pescoço, inspira e expira lentamente como se algo mais acompanhasse o ar na sua viagem pelo corpo. Franze a testa repetidas vezes como se ali fosse o canal de um acesso doloroso. Acaricia o artefato, arruma, conta quantas páginas faltam àquele propósito. Fixa o olhar em algum ponto... fixo. A mente se deixa invadir por pensamentos bons, lembranças de um prazer, qualquer prazer, deleite, sonho, perspectiva. Quer escapar para “coisas mais fáceis”. Levanta, se distrai, tenta suprir necessidades menos exigentes: comer, dormir, vadiar. 53 Na fuga se apóia na idéia de que o que lê em Morin ressoa familiar. Condições, situações, interações, mediações que aparecem nos embates do dia-a-dia, na lida, na mesmice do percurso. Um familiar com o qual convive desde sempre, mas que não conhece. É como se... já que estamos e vamos ficar juntos para que desvelar? Melhor ficar com o mistério. O mistério é sedutor e mantém o encantamento. E talvez esse encantamento seja preciso. Contudo, desvelar seduz a cada momento que esse desvelar reconduz para outros movimentos, outras percepções, confirmações, negações. E aí a gente se vê no texto, como em um espelho. E vê o mundo também. Parece ser covardia parar, é como abrir mão de alguma coisa muito valiosa. Se há algo para saber, conhecer, experimentar... há que se saber, conhecer, experimentar. Reforço para a sensação de que há algo a fazer, que posso fazer, que tem tudo a ver comigo como ser vivente, mas que estou nadando num entre que, pela circunstância de espaço de travessia paradigmática comporta um vazio. Avançar em tentativas esbarra nas minhas limitações cuidadosamente talhadas na linearidade, na ordem, na reprodução... O algo que não cabe, aparece, mas se olhar de perto o mesmo algo faz sentido porque é de mim que Morin está falando, do mundo que e no qual vivo, das coisas que faço. Na hora de escrever pensando no que se lê, é outra dificuldade. O próprio resumo como busca de entendimento é válido, mas deixa um rastro de reducionismo que, parece-me, tem algo de profano. Teima em permanecer em mim a sensação de que tudo o que disser é bobagem porque superado. A suspeita que paira sobre conceitos e lógicas tende a levar o escritor a algum tipo de constrangimento pela pobreza e falta de lugar. Os conceitos apresentam-se escorregadios, pobres, mal colocados. Os arranjos da lógica que sustentam esses conceitos são frágeis, esburacadas, sujeitas a desmoronar. Novamente aparece o silêncio, o branco mental, tão próprio às buscas espirituais, mas que, nesse momento traz é mesmo uma vontade de ir largando, aos poucos, para sofrer menos. Contudo... em ficando nessa (ainda) breve incursão já me percebo olhando o mundo, a vida, com um outro olhar que ainda não sei direito o que vê, mas que está alterado. Uma das reflexões que me leva a fazer é sobre a impermanência dos seres e a dificuldade que tenho (temos?) para lidar com 54 isso. Tudo muda o tempo todo (Lulu Santos), mas por vezes teimamos na manutenção do que tem que ser mudado. É necessário a humildade e um olhar intenso, de olhos fechados, para dentro. Afastar-se e ficar junto numa atitude meditativa de presença espiritual. Para sentir. Nessa atitude de encontro silencioso, a necessidade da desconstrução, da dissipação, do alargamento, mediado pela inquietação, pelo desconforto. No embate, meio cego de quem não vê direito, a sensação de que cada pedaço do texto tem vida própria. O novamente o meu jeito “organizado” de ser e fazer as coisas, aparece. Penso que tentar “extrair” e “adotar” as muitas possibilidades do que Morin propõe como método para compreender/interpretar/analisar/aplicar à realidade (da forma como nos é familiar utilizando a “velha” fragmentação) soa estranho. É estranho! Faz-se necessário fazer algum tipo de ultrapassagem, brigar um pouco com o que há. E não ficar parada diante da condição esfarelada do conhecimento acreditando na impossibilidade de juntar os pedacinhos; mesmo porque, parece-me, essa não é a idéia. Melhor será, talvez, num primeiro momento, no espanto, perceber os movimentos de tais pedaços, seus encontros, desencontros, “convergências, antagonismos, complementaridades”. Como disse, na condição atual, ler Morin é mais uma questão para se escutar, apalpar, aspirar, sentir. Ou, talvez eu esteja preferindo assim. Esperar naquele/s tempo/s citado/s. Nesse exercício me vejo, por vezes, nos extremos: se leio Morin, não preciso ler mais nada; mas, para entender Morin, preciso ler (quase) tudo. Neste mar de competências duvidosas, inseguranças e chamados, a perspectiva que me coloco como possibilidade para aplicar o método de Morin é em estudos do currículo escolar. Vejo-o como um espaço que poderá ser conhecido (visto/analisado/percebido/tocado) por meio (referência/base/ caminho) do pensamento complexo desenvolvido pelo referido teórico. Por enquanto, continuo observando esse “namoro” tentando dar substância no fomento de tal perspectiva. [Voltar] 55 SOBRE A LEITURA DE MORIN Juliana Farias Cavalcante Maio 2008 Quando penso em Morin... A minha impressão é de ter, agora, um argumento científico para explicar como resolvi viver minha vida e para a minha percepção de mundo. Logo de início me identifiquei com o pensamento dele, que até então não sai da minha cabeça. É como se ele me perseguisse o tempo todo, como se fizesse parte do meu dia e me dissesse coisas, fizesse comentários sobre o que vejo. Sinto uma proximidade quase pessoal com o que ele escreveu, parece que já sei o que vai dizer, mesmo faltando muito ainda para ler. Talvez por essa questão do paradigma estar tão profundamente entranhado nas idéias, quando encontrei a lógica desse pensamento, o seu sentido me é muito mais claro. Gosto da maneira como Morin escreve, a complexidade é evidente na circularidade das idéias. Ele é complexo até no seu texto quando consegue de maneira clara relacionar as 56 IMPRESSÕES SOBRE O PERÍODO DE LEITURA DE O MÉTODO 1: A NATUREZA DA NATUREZA DE EDGAR MORIN Daniel Louzada da Silva Março – abril 2008 Noite fria, tão fria de junho Os balões lá no céu vão subindo Entre as nuvens aos poucos sumindo Envoltos num tênue véu Os balões devem ser, com certeza As estrelas aqui desse mundo Que as estrelas do espaço profundo São os balões lá do céu (Noites de junho – Braguinha e Alberto Ribeiro) Ainda não me sinto totalmente à vontade com as seguidas referências à física quântica que aparecem em todas as discussões que envolvem a transdisciplinaridade e o pensamento complexo. Metáforas com partículas atômicas, interações moleculares, relações entre o todo e as partes, a organização como a expressão de uma emergência em que ora o todo é maior que as partes, ora se dá o inverso, tudo 57 isso têm me provocado, e, talvez, o sentido disso tudo seja mesmo esse, provocação. Aconteceu que em meio a este processo de descoberta de novos papéis para velhos personagens e conhecimentos, que visito e utilizo cotidianamente em minhas atividades há anos, me deparei, ali no início de abril, com uma lembrança remota, um resgate inesperado de boas sensações, lembranças e falta de compreensão de um fato específico. Encontrei em meio às quarenta e três música que formam o Songbook de Braguinha, produzido por Almir Chediak, a música Noites de junho, cantada por Elba Ramalho. Não me lembro quando foi a última vez que a ouvira, mas lembro bem de como a conheci. Meus pais tinham um disco só de músicas de São João que tocava sem parar lá em casa entre maio e julho. Uma das faixas do LP era Noites de Junho, talvez cantada pela Emilinha Borba, não lembro. Um dia, eu era adolescente, o disco foi para uma festa e nunca mais voltou. Voltar a ouvir Noites de Junho me trouxe uma alegria muito grande. E essa música continua me provocava algum incômodo, tantos anos depois. A letra vai de tênue véu às crianças tascaram, do subiste enfeitado, cheinho de luz ao balão apagado (...) rasgado em trapos ao léu, me parecendo uma colcha de retalhos de idéias improváveis e inesperadas. A história de um balão que perde a corrida para alcançar os outros balões, as estrelas do espaço profundo, me devolveram a magia e o encantamento que eles, os balões, me causavam na infância, antes de eles terem trocado o reino da fantasia pelos artigos de crimes ambientais da legislação. Acho que tem sido este o sentido principal da leitura do Método para mim. Volto a refletir sobre o significado daquilo que me parecia totalmente esgotado em suas possibilidades, e isso tem sido bom. Balão do meu sonho dourado Subiste enfeitado, cheinho de luz Depois as crianças tascaram Rasgaram teu bojo de listras azuis E tu que invejava as estrelas Sonhavas ao vê-las ser astro no céu Hoje, balão apagado Acabas rasgado em trapos ao léu (Noites de junho – Braguinha e Alberto Ribeiro) Carlos Alberto Ferreira Braga, Braguinha ou João de Barro, compositor nascido no Rio de Janeiro em 29 de março de 1907 e falecido em 24 de dezembro de 2006. Fez parte do Bando dos Tangarás com Noel Rosa e Almirante e compos mais de 400 músicas. 58 O QUE MUDOU DEPOIS DE LER “O MÉTODO” 1 AO 4 DE AUTORIA DE EDGAR MORIN Daniella Buchmann Ungarelli 2008 “A dúvida é o princípio da sabedoria”, essa frase de Aristóteles sempre fez sentido para mim. Mas após ler o Método a minha compreensão dessa frase foi transformada, aprofundada, e enraizada, ou melhor, foi complexificada. Resolvi começar pelo exemplo dessa frase para falar da revolução que a leitura do método fez em mim. Foi uma revolução porque as noções mais básicas que eu julgava estarem solidamente construídas como a noção de ciência, conhecimento, educação, de vida, de organização, de sistema, de pessoa humana, de comunidade, e com elas toda a constelação de outros conceitos envolvidos, foram reconstruídos. A compreensão do profundo embricamento entre tudo, aonde esse tudo não é diluído nas suas partes e vice versa; a idéia chave do anel integrando polaridades e a noosfera são idéias que são formadas e formadoras da minha pessoa. 59 Não apenas na dimensão acadêmica e científica, mas também na dimensão subjetiva. A partir da idéia de noosfera até a minha idéia de Deus foi transformada, ligada à vida humana, num anel de desenvolvimento mútuo. Isso foi uma transformação muito profunda, vou tentar explicar... Sempre tive fé em Deus, em santos e entidades. Com dezenove anos comecei a estudar psicologia, conheci a psicanálise e com ela o inconsciente, os atos falhos, depois fui estudar pedagogia e conheci o Jung, com a idéia de inconsciente coletivo e dos arquétipos. Tudo isso me influenciou muito, mas existia uma enorme separação entre minha fé e meu conhecimento, que influenciava (e influencia) muito em minha visão de mundo. Depois conheci e pratiquei a meditação do Osho, e a filosofia oriental principalmente pela Yoga, quando vivi experiências que me transformaram profundamente e ampliaram muito tanto o meu conhecimento de mim mesma quanto a minha visão de mundo e conseqüentemente meus relacionamentos. Aqui o (símbolo do YIN Yang) entrou no meu viver, acho que para sempre, mas hoje sei que sempre se transformando. Hoje (naquela época eu nem desconfiava disso) acho que na época que li o Método eu estava arrogante, porque tinha certeza que sabia a verdade, o caminho... A essa altura eu estava no fim do curso de pedagogia, em 2001, era bolsista de pesquisa e extensão e trabalhando como educadora ambiental, eu abominava o pensamento cartesiano e acreditava em uma visão de mundo holística. Acho que muito influenciada pelas idéias do filme o ponto de mutação e algumas leituras de Fritjof Capra, enfim, assim as minhas certezas foram aumentando... Nesse mesmo ano eu entrei na ONG Berço das Águas e começamos a trabalhar em uma equipe de geólogos, engenheiros florestais e só eu das humanas. Na prática o trabalho fluía muito bem, utilizando uma metodologia vivencial relacionando o campo e a teoria, e garantindo o espaço do conhecimento dos mateiros da comunidade para nossa troca de conhecimentos. Porém, na hora de fazer a parte teórica do trabalho, a equipe me cobrava uma referencia teórica mais embasada. Eu fiquei profundamente irritada com a conclusão do coordenador do projeto que minha referencia teórica fazia bonitas metáforas, mas que não tinha consistência teórica, me mandando buscar outras referencias na área de educação e gestão ambiental. Mas depois de ler o Método eu acabei concordando... Essa característica do pensamento complexo, onde o “ou” foi substituído pelo “e” harmonizou, sem eliminar os conflitos 60 a minha necessidade de uma base epistemológica consistente, cientificamente embasada, sem excluir o inexplicável, a magia, a subjetividade, a sensibilidade. Novamente a idéia do anel integrando polaridades, agora anelando para sempre o conhecimento e a incerteza. A metáfora sugerida por Edgar Morin me vem à cabeça para compreender esse princípio, é aquela que caminhamos em ilhas de certezas num oceano de incertezas. O princípio da incerteza foi e é muito importante para lidar com a minha arrogância de cientista acadêmica, o que percebi graças a alguns conflitos que tive para usar o método como referencia teórica em minha dissertação no ano passado, o que eu ignorava, e só fui compreender a partir de um processo terapêutico com base em constelações familiares de Berting Hellinger que estou fazendo. Muito interessante esse processo que eu vivi, porque nesse processo terapêutico em grupo, uma colega detesta o Edgar Morin colocou em jogo a necessidade de usar a obra, que para ela, não dá conta de explicar o que a gente vive ali (que é a magia do movimento da alma), sendo que eu acho justamente o contrário... Esse foi o trabalho mais profundo e transformador por que já passei até aqui, e, de uma forma inusitada, envolveu não a leitura, mas o uso que faço, ou não da leitura dessa obra. Como são as coisas... Se eu não tivesse de fazer esse trabalho, não teria refletido sobre isso. Enfim, desde quando li a obra O Método, em 2001, ela me influencia profundamente, e sinto que ao longo do tempo minha compreensão das idéias contidas nessa obra, que fizeram uma revolução em mim, caminha num espiral. Agora que tenho a árdua oportunidade de reler essa obra, agora sim compreendo bem melhor, mas, sinto que, isso ainda se repetirá por algumas vezes... O que torna essa leitura uma aventura de transformação, que eu, escorpiana que sou, tenho o maior prazer de vivenciar profundamente. Então para terminar mais uma lição que aprendi nessa leitura, a de construir algo novo integrando o velho, e não se opondo ao velho, mas a partir dele... De se transformar sendo si mesmo, a partir do que se é. 61 O QUE MUDOU EM MIM APÓS A LEITURA DO LIVRO DE EDGAR MORIN O MÉTODO 1, A NATUREZA DA NATUREZA Eliza Pereira Bruziguessi Maio de 2008 Este livro de Morin, com toda sua profundidade, despertou em mim muitos sentimentos, reflexões, mistérios, curiosidades, explicações, dúvidas. Me fez perceber a grande semelhança da organização e funcionamento entre o macro e o micro, entre a physis, o biológico e o antropossocial. Realçou suas múltiplas interrelações, me fez sentir mais parte de toda esta organização cósmica. Após a leitura do livro sinto que estou reaprendendo a olhar, perceber e aprender. Esta leitura é um grande aprendizado que levo em minha vida, pois, a cada momento, amplia e torna mais complexa minha visão e compreensão da realidade, do mundo, da minha consciência. Muitas emergência e imposições surgiram na organização do meu pensamento e do meu ser. Muitas explicações se tornaram para mim mais e menos compreensíveis, simultaneamente, e este fato não me 62 assusta mais. Alguns fenômenos e conceitos que para mim eram obscuros tornaram-se claros, já outros que eram claros tornaram-se obscuros, cheios de mistérios e incertezas. Mas entendo que estes são sinais da complexidade e que podem ser um caminho. Senti que muitas vezes apenas meu inconsciente foi capaz de compreender e estou aprendendo a lidar com esta situação e com minhas limitações. A vida já não é a mesma para mim assim como não sou mais a mesma para a vida, para as relações e organização das quais participo. Sinto-me mais feliz após ter lido Morin! 63 MORIN, EDGAR. O MÉTODO. A NATUREZA DA NATUREZA. VOLUME 1 Irineu Tamaio Dezembro de 2003 O primeiro contato de forma mais elaborada com o pensamento de Morin, provocou-me um misto de indagação e “abalos” nos meus instrumentos de leitura de mundo. O tapete de sustentação que me possibilitava construir uma epistemologia, um olhar e compreensão da minha realidade começa a ser problematizado. Portanto, sinto surgir um turbilhão de novos acontecimentos em cadeia, configurando-se numa confusão em minha cabeça, brotando inseguranças e dúvidas sobre possíveis certezas construídas. Será que toda essa realidade empírica e subjetiva que presencio da janela da minha vida é verdadeira? Ou será que tudo isso que vivo e sinto é apenas o resultado de uma máquina, cada vez mais variada, delicada e frágil, controlada por uma organização reguladora tênue e precária? Posso compreender que a história da minha vida foi e é uma espiral de interações complementares, pois o meu arcabouço 64 teórico de construção sócio cultural das relações do mundo foi alicerçado na concepção racional lógica do marxismo. Não descarto totalmente a objetividade marxista, mas a complexidade de Morin possibilitou-me travar um diálogo com essa estrutura economicista e simplificadora de enxergar a vida. Para mim, a complexidade contribuiu para entender o porquê de todo esse sistema racionalizador/ordenador, essa teoria unitária não consegue dar mais conta do nosso real. Acho que preciso reaprender a aprender!! O que é rico é poder entender que a ignorância, a incerteza e a confusão se tornam virtudes. Ora, isso é fundamental para um educador que pretende aprender e compreender como um grupo de pessoas imbuídas de um desejo de transformar a sua caótica realidade de moradores do entorno de um parque, podem interagir e construir um signo de conhecimento denominado sustentabilidade. Não existe uma unidade lógica quando quatro grupos de professores elaboram o seu tema de estudo (1. Observação das trilhas/estudo da realidade; 2. Coleta seletiva de lixo; 3. Horta: sabor e saúde e 4. Saúde mental). Existe sim uma certa objetividade, que não deve ser absolutamente conservada, mas integrada num conhecimento mais vasto e refletido, possibilitando um outro olhar para aquilo que ela não vê. No meu entender, nesse caldeirão de interações o conceito de sustentabilidade pode ir além das “caixinhas” compartimentadas defendidas por Sachs, pois virá à tona a produção e a co-produção da “ordem - desordem – organização - interações”. Esse jogo de interações está presente no cotidiano dos professores, e é a partir desse e com esse olhar que se desnuda e cresce a diversidade e complexidade do entendimento do conceito. Portanto, o conceito de sustentabilidade não é absoluto, é elaborado na imersão de uma ordem – desordem – organização que se co-produzem simultânea e reciprocamente. 65 SABER COMPLEXO 66 CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERRITORIALIDADE DAS COMUNIDADES RIBEIRINHAS E A TEORIA DA COMPLEXIDADE A PARTIR DO CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO Josiane do Socorro Aguiar de Souza Julho de 2005 O eu, sujeito e objeto do conhecimento ... Desde a infância, a curiosidade natural impulsiona a observação de detalhes, como as cores diferentes do solo, textura das folhas, cores das flores e outros. Por muitas vezes tal hábito foi tachado de devaneios, em vez das brincadeiras infantis, buscava as coisas mais esdrúxulas para a uma criança discutir, os mais variados, desde o comportamento humano com imagens cunhadas no fundo pela religião, valores locais e outros; aos comportamentos de pessoas com padrões psicológicos e sociais inversos dos padrões comuns, consideradas normalmente como “marginais”. Na ansiedade de entender as coisas, os livros foram os companheiros na busca de respostas latentes. Neste momento, vários autores despertaram outros olhares sobre o mundo vivenciado, principalmente aqueles que se reportaram à filosofia, mesmo sendo contraditórios ao curriculum disciplinar do ensino formal. A formalidade educacional baseada na verdade incontestável e dogma da experimentação científica não suportou as modificações sociais e econômicas, deste modo a ciência está sendo evidenciada e discutida ao longo do tempo, suas verdades ainda estão em questionamento, percebeu-se que ela 67 fundamentava-se em um paradigma composto de princípios e modelos calcados na reprodução do modelo dominante. O modelo dominante discutido no meio acadêmico tem uma aparência translúcida, tornando-se de fácil compreensão. Sua crítica é feita por vários autores, os quais, normalmente, percebem-no através de lentes específicas disciplinares. Deste modo, lacunas sobre a compreensão da auto-ecoorganização ainda ficaram sem preenchimento. Posteriormente, novos autores que tratam da análise da realidade de forma mais ampla como, por exemplo, Herinque Leff, Capra, Boaventura de Sousa, Kuhn, Paulo Freire e outros trouxeram a luz com novos olhares algumas questões carentes do ponto de vista epistemológico. No entanto, apesar desses autores discutirem a realidade a partir de uma perspectiva mais ampla, ultrapassando uma visão disciplinar, que às vezes bordeja uma meta-epistemologia, ou seja, ultrapassa os quadros da epistemologia clássica (objeto definido, separando a lógica da filosofia e fragmentando o conhecimento em disciplinas) ao mesmo tempo em que a inclui. Eles não propõem um método de compreensão total da realidade, uma forma pan epistemológica, ou seja, aquela integrada a toda atitude cognitiva inclusive a epistemologia clássica, e tem a necessidade legitima de refletir-se, reconhecer-se, situar-se e problematizar-se. Ao deparar-me com a complexidade de Edgar Morin, foi possível abrandar o estado de inquietude antigo e presente, não por este autor fornecer respostas e soluções, mas pelo fato de apontar componentes para uma escolha pessoal de um caminho, o qual pode, dependendo do sujeito, significar uma mudança de paradigma pessoal e científico em constante processo de mutação. O método complexo de Morin tem como fundamento três princípios: o primeiro, denomina-se dialógico, resultante de uma dialógica entre o aparelho neurocerebral, espírito, meio exterior e dos mundos internos, externos e noosférico. O segundo recorrente ou recursivo, onde os produtos e efeitos são simultaneamente co-geradores e co-causadores do mesmo processo, formando um anel construtivo de efeito e causa, os quais podem ser concorrentes, concordantes ou antagônicos. E o último chamado de hologramático, onde a parte está no todo e o todo está nas partes, ou seja, ambas as partes e o todo apresentam as mesmas características. “Assim, a sociedade e a cultura estão presentes como no todo (conhecimento) e nos espíritos cognoscentes...; e o que está presente no espírito individual não é somente o todo como subjugação, mas também, e eventualmente, o todo como complexidade.” Deste modo, o método da complexidade permite olhar a realidade através de várias lentes, sendo possível discutir o conhecimento e as diversas formas de abordá-lo. O conhecimento humano é complexo e tem um elo de ligação com a cultura, a qual semelhante ao conhecimento se forma a partir do seguinte processo: a percepção cerebral capta parte da realidade e produz as idéias, posteriormente representadas por signos e verbalizadas oralmente. O conhecimento, o processo de percepção e ação. O conhecimento e a cultura para Morin estão interligados pelas condições 68 socioculturais e condições bio-cerebrais, ou seja, o corpo e o espírito; ou seja, a cultura é transmitida e desenvolvida pelas interações cerebrais e espirituais dos indivíduos, ela é organizada e organizadora da e pela linguagem, a partir dos conhecimentos adquiridos, das aptidões aprendidas, das experiências vivenciadas, da memória histórica e das crenças míticas de uma sociedade. Assim, a sabedoria popular das comunidades rurais foi construída ao longo dos anos e transmitida às novas gerações constituindo um conhecimento com condições socioculturais próprias. A sabedoria das populações amazônidas que habitam um meio com predominância natural, distante da paisagem urbana, possibilita que ela sobreviva com as condições que o meio natural oferece. Os saberes comunitários têm sido observados, discutidos, apropriados e subtraídos rapidamente, principalmente seus saberes sobre princípios fármacos ativos. Deste modo, tentar-se-á fazer posteriormente algumas considerações sobre estas questões à luz da complexidade. Antes de adentrar-se a essas questões é preciso esclarecer que apesar dos debates conceituais sobre comunidades tradicionais, não há um consenso na sua definição e por isso, para efeito destas reflexões elas são compreendidas a partir de suas práticas culturais que expressam seu modo de vida e sua territorialidade, onde os grupos populacionais, geralmente dispersos exploram o ambiente em que vivem, normalmente com atividades sazonais obedecendo aos ciclos naturais e ajustando-se às limitações naturais. Desta maneira, as comunidades “ditas” tradicionais amazônidas têm dentre as principais características a capacidade de sobreviver com recursos naturais locais, utilizando-os na culinária, saúde, vestes, artefatos e outros. As atividades extrativistas são também complexas por apresentarem relações entre o homem e o ambiente natural, utilizando a capacidade do cérebro humano para armazenar, resgatar e operacionalizar ações. No entanto, vale ressaltar que as interações entre as comunidades extrativistas amazônidas, principalmente aquelas que coletam o látex, a castanha-da-amazônia e outros recursos naturais diversificados, como as populações ribeirinhas que têm como base o conhecimento vivido e transmitido geracionalmente. As diversas estratégias desenvolvidas pelo ser humano para sobreviver em diversos ambientes refletem a sua capacidade cognitiva de desenvolver a percepção, acumular conhecimento e executar atividades cotidianas. Na concepção de Morin, o conhecimento é composto pela aptidão de produzir conhecimentos, pela atividade cognitiva e pelo saber resultante dessas atividades. Os conhecidos e auto-eco-desconhecidos amazônidas. Sem confirmação científica, pode-se dizer supostamente que os mais antigos imigrantes amazônidas são os indígenas, seguidos dos europeus e por último os negros, salientado-se que os povos negros em sua maior parte não migraram segundo sua vontade, mas pelo contexto histórico da escravidão. Além da migração inter-continental, ocorreu também a migração interna, atualmente este último ainda perdura. Em decorrência das migrações internas resultantes das políticas nacionais, a Amazônia foi ocupada conciliando a necessidade de 69 redirecionar o fluxo migratório entre as regiões nordeste-sudeste para nordestenorte. Estes fluxos migratórios na Amazônia resultaram na ocupação de ambientes naturais diversificados, com predominância de características físicas e bióticas. Para cada ambiente surgiu um tipo de figura humana própria, a exemplo de castanheiros, seringueiros, ribeirinhos e outros. Deste modo, de acordo com os ambientes ocupados por comunidades, elas desenvolveram habilidades voltadas as atividades econômicas de extração, agropecuárias e artesanais. Dentre as figuras amazônidas, salientam-se os seringueiros, castanheiros e ribeirinhos; devido a sua tradicionalidade, organização política e importância econômica no cenário nacional. Os seringueiros foram os desbravadores nacionais extrativistas da Amazônia legitimados pelo Estado. Com apetrechos próprios, os seringueiros retiram o látex da seringueira e construíram sua história marcada pela organização política e social à frente do povo da floresta. Os castanheiros, semelhantes aos seringueiros, também têm as suas atividades econômicas baseadas nos ditames do mercado. E apesar de apresentarem características próprias como apetrechos e vida cotidiana, ainda mantêm em alguns locais as formas de trocas de mercadorias e financiamento de suas atividades no período de safra por um patrão. Diferente dos seringueiros e castanheiros, os quais foram incentivados pelas políticas públicas de ocupação e econômicas, os ribeirinhos merecem maiores considerações por serem atores que residem às margens de igarapés, rios ou canais e têm as suas atividades sob uma orientação temporal regulada pela influência das marés; utilizam as embarcações como principal meio de transporte e de sobrevivência. Geralmente os personagens amazônidas não têm noção de suas relações com a natureza e de si próprios enquanto sujeitos e objetos do processo inter-relacionalgeracional-ecológico com o espaço habitado. Hipoteticamente, tal fato deve-se a baixa escolaridade das pessoas, a ausência de valorização de identidade própria e a divulgação de padrões urbanos pelos meios de comunicação. O valor da natureza e do “eu” pelo ribeirinho As formas de vida ribeirinha de extração animal e vegetal para sobrevivência e conservação da floresta, têm como objetivo garantir a renovação de estoques naturais para sua manutenção. O jeito de viver do ribeirinho, sua visão de mundo, tranqüilidade e sapiência são vistos por outros segmentos sociais como uma representação cultural que apresenta também valores depreciativos, sendo rotulado como povo lento. A “indolência” e a “preguiça” desse caboclo são elementos de um estereótipo que oferece uma interpretação moral de sua pobreza. A vida ribeirinha também está inter-relacionada aos ciclos da natureza, os quais, são alicerces para o calendário anual de atividades econômicas. As principais atividades desenvolvidas por essas populações são o extrativismo animal e vegetal, seguidas da agricultura de subsistência e criação de pequenos animais. Apresentam, a priori, características de um primitivismo de técnicas adaptativas, de origem predominantemente indígena, conservada e transmitida por gerações 70 sem alterações substanciais, considerando a natureza como provedora inesgotável de bens naturais à sua sobrevivência. Essas técnicas adaptativas atendem as suas necessidades de sobrevivência, e a baixa densidade demográfica permite a resiliência dos estoques naturais. No entanto, as necessidades dos povos da margem do rio foram redimensionadas para o aumento do consumo de produtos industrializados e consequentemente uma carência de maior renda monetária. O incremento desta renda se reflete através do aumento do excedente produtivo, tendo como conseqüência o aumento da pressão sobre os estoques naturais diminuindo sua capacidade de recuperação. A partir desse processo de reprodução de vida urbana de consumo, o ribeirinho passa a perceber os recursos naturais como bens naturais, e como tais, eles recebem individualmente uma valoração comercial, e conseqüentemente exploração concentrada. Como os valores comerciais entre os bens naturais e industriais são desproporcionais foi preciso aumentar a produção ribeirinha modificando sua característica passando a executar processos acumulativos capitalistas. A escassez dos recursos naturais levou algumas comunidades ribeirinhas a preocuparem-se com sua sobrevivência, passando a discutir seus direitos de população “tradicionais” sobre os territórios explorados por elas, evidenciando a modificação da sua relação e percepção sustentável com a natureza. Incentivados pelo discurso ambiental global de sustentabilidade do planeta, surgiram nestas últimas décadas, esforços para registrar e compreender as formas de vida dos povos amazônidas. E também resgatar a importância de seu papel relacional com a natureza e sua sociedade. Normalmente, a consolidação dos grupos sociais enquanto comunidades foram fortalecidas pelas formas de organizações sociais e econômicas. Essas comunidades vêm sofrendo novas influencias por conta de migrações populacionais recentes que juntamente com as pressões e necessidades do mercado estão modificando a percepção e ação coletiva tradicional. Assim, as comunidades constituem um grupo de interesse a parte não podendo ser caracterizadas como tradicionais ou não tradicionais, haja vista que a maioria das pessoas que compõem essas comunidades veio de outros locais com percepções ambientais diferentes das comunidades amazônidas. Existem apenas pessoas que pertenciam ou pertencem a grupos tradicionais como os pescadores e pessoas que trabalham em confecção de artesanato. Por outro lado, apesar desse processo de mutação coletiva do fazer, ainda existem locais onde os assentamentos humanos preservam as práticas de extrativismo antigas, conservando com novas roupagens as formas de negociações primitivas baseadas em escambo e aviamento, como por exemplo, a coleta da castanha-daamazônia no sul do Estado do Amapá, especificamente em Maracá. As situações e cenários são mutantes na Amazônia brasileira. Entre as diversas situações em que se encontram as populações rurais, o parentesco, a identidade, o acesso a terra e a água, a definição do sistema de herança e de sucessão à propriedade ou posse, as regras de usufruto de recursos comunais são exemplos de fatores que distinguem categorias sociais e tipos de ocupação. Esta 71 diversidade demonstra que não se pode traçar um modelo único de envolvimento de populações em projetos de conservação ou desenvolvimento sustentável. A diversidade social implica a necessidade de conhecer em profundidade as formas locais de reprodução social para então desenvolver modelos de participação, manejo e conservação, específicos para cada situação. Os ribeirinhos usufruem do tipo de apropriação comum de espaços e recursos naturais renováveis, que se caracterizam pela utilização comunal (comum, comunitária) de determinados espaços e recursos através do extrativismo vegetal (cipós, fibras, ervas medicinais da floresta), do extrativismo animal (caça e pesca) e da pequena agricultura familiar itinerante. Além dos espaços usados em comum, podem existir os que são apropriados pelas famílias ou pelo indivíduo, como o espaço doméstico (casa, horta, etc) que, geralmente, existem em comunidades com forte dependência do uso dos recursos naturais renováveis que garantem sua subsistência, demograficamente pouco densas e com vinculações mais ou menos limitadas com o mercado. Os instrumentos de trabalho, embora simples, permitem que a pesca, caça, coleta, agricultura e extração de madeira supram as necessidades básicas. Enquanto caracterizado como pescador executa a pesca dita artesanal, principalmente pela caracterização dos seus apetrechos de pesca, geralmente rústicos, sem mecanização ou sofisticação desses instrumentos; pelas áreas de abrangência de suas pescarias, e condicionado pelos ritmos da natureza e influenciado pelas variações sazonais que determinam suas pescarias. A sazonalidade dos recursos e a escassez de determinadas espécies levam-nos em busca de outras alternativas de sobrevivência, entre as quais ocupações econômicas nas atividades de pecuária, madeira e palmito, eles de uma certa forma estão ajudando a degradar o meio ambiente, por uma necessidade de trabalho, talvez por não terem uma outra alternativa. A variável que influencia as populações ribeirinhas no modo em tratar o meio natural é desconhecida. Surge uma indagação: o que os leva a tratar a natureza de uma forma conservadora ou devastadora? É o respeito que têm pela natureza ou é a sua condição econômica que não os deixa usar os recursos naturais de uma forma exploratória, com a intenção de acumular riquezas? Esta indagação surge diante do quadro que temos, especificamente na Amazônia, da relação que a população ribeirinha possui com a natureza. Percebe-se também que existem ribeirinhos que possuem um certo respeito à natureza, por serem dependentes dela, e pelos imprints criam entidades como mãe-da-água, curupira e outros, destacando-se os rezadores ou benzendeiros que curam e rezam usando plantas medicinais. Estas manifestações constroem um mundo de magia nesta relação homem e natureza. As diversas situações explicitadas anteriormente conduzem a formulação de dúvidas sobre o valor que as populações ribeirinhas atribuem à natureza; é um interessante objeto de pesquisa. Mas, apesar desta incerteza muitas mudanças aconteceram com relação à valorização do saber local das populações ribeirinhas pela comunidade científica. 72 A revolução científica e tecnológica otimizou a comunicação que contribuiu com a modificação dos valores e necessidades ribeirinhas. O sistema capitalista sempre usou os recursos naturais para o desenvolvimento econômico, e as regras do jogo são as mais selvagens possíveis, ou seja, sempre houve uma exploração também da mão-de-obra para a transformação da matéria prima em produtos para a comercialização. Pode-se destacar a utilização da biodiversidade para a produção de fármacos pela indústria farmacêutica. Os princípios ativos encontrados nos animais e plantas foram retirados da floresta, por intermédio de contatos entre os ribeirinhos e falsos pesquisadores, sendo posteriormente patenteados e nenhum valor foi agregado para essas populações que detêm este conhecimento. A elaboração do conhecimento científico sobre a biodiversidade passa antes de tudo pela investigação dos saberes populares ribeirinhos exemplificados através da identificação de princípios ativos úteis a fitoterapia e farmacologia. Atualmente a comunidade científica chama atenção da sociedade para a exploração dos saberes populares pela indústria farmacêutica e posturas diferentes estão surgindo. Os detentores dos saberes populares estão mais organizados, já não recebem com ingenuidade estes falsos pesquisadores. Querem garantir sua participação e valorização de seus conhecimentos neste processo. Observa-se que a atribuição de valor aos recursos naturais enquanto fundos de biodiversidade pode ser feita quer via intervenção pública, na forma de compensações pela abstenção de explorar o recurso presente (com pagamentos diretos ou indiretos), quer através de mercados privados para a biodiversidade e para a conservação (através de “produtos verdes”). São necessárias, além disso, instituições de propriedade e gestão adequadas, as quais constituem uma forma particular de reforma agrário-ambiental. Contudo, ainda persiste a dúvida quanto ao valor que as populações ribeirinhas atribuem a natureza; qual seria a variável a influenciar seu comportamento? A necessidade vital do ser humano de situar, refletir, conhecer, interrogar o nosso conhecimento, isto é, de conhecer as condições, possibilidades e limites das aptidões para alcançar a verdade. A busca da incessante verdade de interrogar a natureza do conhecimento para lhe examinar a validade. A constante busca da verdade cientifica conduziu o crescimento cientifico a ser organizar, fragmentando-o em diversas disciplinas separando a espírito (filosofia) e o cérebro (ciência), onde cada disciplina trata especificamente de uma parte da ciência, ignorando desde a si próprio até aos outros. Para Morin, o conhecimento não deve ser reduzido a uma única noção, pois o conhecimento comporta necessariamente uma competência (aptidão para reproduzir conhecimentos); uma atividade cognitiva (cognição) em função da competência; e, um saber (resultados dessa atividade). Essas competências e atividades cognitivas humanas necessitam de um aparelho cognitivo, capaz de elaborar e organizar o conhecimento, usando os meios culturais que dispõem, neste caso, o cérebro, uma máquina bio-fisíca-química. Deste modo, o conhecimento é para Morin um fenômeno multidimensional, no sentido que é, de 73 maneira inseparável, ao mesmo tempo físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural e social. A dificuldade de compreender os fenômenos como multidimensionais devem transmutar-se pelo reconhecimento da incapacidade científica de analisar a realidade a partir das relações entre vários fenômenos. MORIN, E. O Método III: O conhecimento do conhecimento. Publicações EuropaAmérica, LTDA. Portugal. 1996. MORIN, E. O Método IV. As idéias: a sua natureza, vida, habitat e organização. Publicações Europa-América, LTDA. Portugal. 1996. MITHOS E LOGOS NA GÊNESE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR REFERENCIADO AO ALTO XINGU Lila Rosa Sardinha Ferro Julho de 2004 “Sejamos objetivos”. Sejamos objetivos? – Não! Sejamos subjetivos, diria um xamã, ou não vamos entender nada.” Eduardo Viveiros de Castro 74 Mithos e Logos Keri... Kami... Diante do doente, o pajé evoca a gênese do mundo, instante de perfeição da materialidade, que surge onde antes só havia o caos e a solidão. Keri, Kami, verbos soberanos dos começos, traz de volta os momentos sem lesões e sem defeitos. O pajé reinaugura o tempo e rompe com todas as atualizações não satisfatórias, para metamorfosear doença em saúde e trazer de volta a alma perdida do seu paciente. Ele aspira seu cigarro profundamente, certo de que a leveza faz a similitude entre a fumaça e o espiritual, e segue esse rastro aéreo em busca de uma compreensão subjetiva, de um diálogo com o outro, a partir de seu próprio interior. Na experiência de si próprio, desdobra-se num outro, “que é um outro si mesmo, real em sua alteridade, ao mesmo tempo que permanece realmente consubstancial com ele”(Morin, 1996:152), para estabelecer um comércio com os espíritos, conhecer suas exigências e suas iras, fazer acordos, tendo como contrapartida o retorno da alma do doente e a sua cura. O doente é uma criatura cuja alma perdeu-se do corpo, um palco vazio onde as desordens se instalam. Ao contrário do pajé, ele não está preparado para viver num “universo ao mesmo tempo uno e duplo, ao mesmo tempo igual e diferente do nosso universo (idem). Porém, nem sempre a doença provém de um abandono do corpo pela alma. No início de um ritual de cura, o pajé deve identificar a natureza do problema e definir o tipo de tratamento. Se a questão não é espiritual, outro personagem entra em cena: o raizeiro. Há uma distinção entre o trabalho do raizeiro e do pajé. Num, as atividades tendem para uma esfera empírica, técnica e racional, no outro, para uma atividade simbólica, mitológica, e mágica. Porém, as duas atividades não se manifestam em universos separados, dicotômicos e antagônicos. Para descobrir o remédio certo para aquele doente, o raizeiro deverá dormir e sonhar com a planta, que será indicada pelo seu mestre espiritual, aquele que o assiste em seu trabalho e em sua pesquisa contínua das plantas. Também vai ter de pedir licença ao espírito dono daquela raiz e agradecer-lhe de alguma forma a gentileza de cedê-la, deixando-lhe algum presente, para que, ao retirá-la da terra, leve o corpo e alma daquela planta, sem os quais, não será possível o efeito da cura desejada. Ao contrário, se o problema do doente é de fundo espiritual, então, o pajé deverá por em ação o seu duplo, que agirá sobre o duplo do sujeito que ele quer curar. Sairá do seu corpo nos rastros da fumaça que ele faz com seu cigarro, à procura do espírito do doente que está a vagar pela mata, em companhia de outros espíritos. Ou então, descobrirá que há, por trás daquela doença, a ação de um feiticeiro que, por meio de um objeto “embrulhado”, agiu de forma a comprometer a saúde daquela pessoa. É muito comum, no Alto Xingu, a referência de objetos mágicos embrulhados, posicionados estrategicamente, que agem de forma a prejudicar uma pessoa, seja afetando-lhe a saúde, a sua roça, etc. O olho do pajé em transe é capaz de apontar o lugar onde se encontra tal objeto e evitar que se 75 consume o objetivo do feiticeiro, que é a morte daquela pessoa. A pessoa curada deve retribuir o benefício com presentes aos pajés ou raizeiros e, se for o caso, ao espírito que provocou a doença. Um objeto de valor, um colar de caramujo, um arco preto muito bem feito, uma canoa de casca de jatobá, um cocar de penas de arara vermelha, de tucano e de gavião real, são ofertas de muito valor. Os espíritos exigem uma retribuição que se traduz numa festa, com dança e música, e na oferta de comida para toda a comunidade. Com certeza, a pessoa curada terá de fazer uma pescaria grande, com a ajuda de sua família, para cumprir a sua parte no acordo que lhe restituiu a saúde. O evento da doença e da cura desdobra-se até o espaço coletivo, incorpora-o simbolicamente e convida a todos para uma reintegração no cosmo. “A magia age onde quer que haja desejo, receio, chance, risco, álea.” Porém, traz para o seu exercício o princípio de realidade, que se revela nos seus procedimentos técnicos, na atenção às regras do ritual, na lógica da reciprocidade, em que os benefícios são retribuídos de alguma forma. Nesse processo, configura-se um sistema de pensamento que chamamos de simbólicomitológico. A presença do símbolo, a existência dos espíritos, a analogia, o sacrifício e conjugações desses elementos fazem a práxis desse pensamento. O vivo, o singular e o concreto são os pontos de partida do pensamento mitológico que, no seu percurso, encontra nos acontecimentos os sinais, os indícios e mensagens do andamento do mundo. Sendo o universo provido de alma e fonte de sinais e significação, uma relação dialógica intensa e permanente se instala entre seres humanos, natureza e cosmo. Há entre eles reciprocidade e acordos de mútuos favores, respeito e cuidado. O pensamento racional e o pensamento simbólico estão combinados em todas as atividades humanas e procedem de uma fonte de “forças e formas originais, principais e fundamentais da atividade cérebro-espiritual, quando os dois pensamentos ainda não se separaram.” Logos e Mithos As comunidades xinguanas, a partir da década de 40 do século passado, iniciaram o seu contato com a sociedade brasileira. Os impactos iniciais produziram tragédias epidêmicas, redução da população e dos territórios tradicionais, alterações nas estruturas de poder das comunidades e outras desordens que têm sido incorporadas à custa de uma transfiguração cultural lenta, mas sempre presente. A saída dos jovens das aldeias em busca de educação escolar levou os mais velhos a decidirem pela abertura das escolas nas aldeias, como forma de manter seus filhos na comunidade e prepará-los para um diálogo intercultural em condição de igualdade e para a busca de direitos e autoproteção. 76 Então, como conceber uma escola na aldeia, entidade alheia, cujo modelo foi fundado na tradição racionalista do ocidente, que seja capaz de abrigar um diálogo intercultural a favor das comunidades indígenas, sem comprometer as bases de suas atividades cérebro-espirituais? A aldeia e suas redondezas são espaços de educação e todos aprendem e ensinam. Os rituais de passagem e as reclusões complementam esse processo, dando-lhe um aspecto mais formal. Para nós, a gênese da escola numa aldeia indígena é como reinaugurar o tempo, com todas as possibilidades de acertar e corrigir os equívocos acumulados na própria história da escola. É uma oportunidade de restituir-lhe a saúde, devolverlhe a alma. Uma escola aberta aos conhecimentos indígenas poderá agregar complexidade aos processos da razão. Ao mesmo tempo, o pensamento simbólico poderá encontrar um espaço onde possa raciocinar-se. Embora antagônicos e incompreensíveis um ao outro, os pensamentos mitológico e racional são complementares, interagem e estão presentes nos nossos discursos. Descartar o pensamento simbólico “seria esvaziar do nosso intelecto a existência, a afetividade, a subjetividade para dar lugar apenas a leis, equações, modelos, formas.” Por outro lado, não podemos abrir mão da objetividade e dos caminhos da racionalidade para tratar o real. Aos sujeitos desse processo cabe fundar um meta-ponto-de-vista para uma observação das emergências provindas das interações entre conhecimentos de naturezas tão diversas e para alimentar o diálogo ora abalado entre velhas e novas gerações. Além disso, as reflexões oriundas desse meta-ponto-de-vista tornam-se importantes para subsidiar as decisões comunitárias que envolvem a existência da escola. O impacto do contato intensivo pode estar produzindo uma desaceleração do ritmo de construção de novos conhecimentos no interior da cultura tradicional. Aparentemente, o movimento é de incorporar o que vem de fora. Se essa hipótese tem sentido, a cultura não terá oportunidade de gerar conhecimentos que a regenerem, e os paradigmas indígenas que ordenam a noção homemnatureza correm o risco de serem esquecidos ou substituídos pela disjunção homem-natureza que predomina na visão ocidental. Esse fato provavelmente comprometerá as estratégias culturais relativas às interações com o ambiente natural, interferindo nas suas formas de manejo e ameaçando a sustentabilidade das comunidades. Porém, “as interações cognitivas dos indivíduos regeneram a cultura que regenera essas interações cognitivas.”(MORIN, 1991:20) Seria impossível desconhecer que toda cultura tem a tendência de abrir-se ao mundo exterior e que conhecimentos e idéias transitam de uma cultura para outra. A escola na aldeia é o espaço promissor que, sendo uma novidade, poderá dialogar com os novos elementos dessa cultura exterior, refletir sobre eles e perceber seus sentidos subjacentes, fazer opções e reconstruir a autonomia perdida: “(...) a 77 dialógica é simultaneamente o jogo e a regra do jogo do desenvolvimento da autonomia do espírito.”(idem:29) Keri... Kami... As duas palavras são pronunciadas pelo pajé e se referem ao Sol e a Lua do mito da criação Alto Xinguana. Bibliografia MORIN, Edgar. O Método IV. As idéias: a sua natureza, vida, habitat e organização. Publicações Europa-América, 1991, p.20. MORIN. Edgar. O método III. O conhecimento do conhecimento. Segunda edição. Publicações Europa-América. Portugal, 1996, p. 152 ALTO XINGU QUASE 60 ANOS DE INTERAÇÕES Lila Rosa Sardinha Ferro Novembro de 2003 “Você não sabe como era antes quando você chegava numa aldeia. Todo mundo pintado, tudo muito bonito. Não era assim como hoje. Antigamente, de tardezinha, o centro da aldeia estava cheio de gente. Velhos, jovens, meninos, todos reunidos conversando sobre o que tinha feito, o que ia fazer, contando alguma história, conversando sobre o dia... hoje não, só os velhos vão no centro. Parece que aquela alegria acabou.” 78 (Ichamã Kamayurá, 56 anos, Alto Xingu, 2003). As mudanças na cultura do Alto Xingu, de início, foram quase imperceptíveis. A continuidade do estilo de vida tradicional parecia estar garantida por uma política isolacionista de preservação ambiental e cultural, a qual fundamentou a criação do Parque Indígena do Xingu. O discurso carregado de preocupação com cuidado no trato das comunidades, presentes no projeto de criação do Parque, contrapondo-se à violência histórica com que foram submetidas as populações tradicionais brasileiras, mesmo assim, ainda carregava um sentido integracionista que repercutiu na execução da política governamental para a área. “A novidade de um parque indígena, cuja representação não existia nas leis, tinha por objetivos preservar a flora e a fauna e estabelecer um território protegido para que os grupos indígenas pudessem, aos poucos e espontaneamente, integrarem-se à sociedade nacional." (Oliveira,1985, pg 295, grifos meus). O caráter paternalista e assistencialista das políticas dirigidas ao Parque comprometeu a autonomia das comunidades. Alterando as relações de poder no seu interior, manteve-as sob controle. Os índios perderam o domínio de suas fronteiras, no sentido de permitir ou proibir a entrada de novos elementos ao seu sistema cultural e existencial. Sem controle sobre as suas fronteiras ao longo de mais de três décadas, as lideranças xinguanas não tiveram oportunidade de, pela experiência e reflexão, criar os filtros necessários à proteção de suas tradições e, portanto, dos elementos de sua sustentabilidade. Realmente, depois da saída de Orlando Villas Bôas, pouco a pouco, as comunidades xinguanas foram intensificando os seus contatos com a sociedade envolvente e interações foram ocorrendo entre elementos culturais de ambos os mundos, produzindo assim novas emergências, reveladas em comportamentos e determinações individuais que por vezes chocaram-se com os costumes tradicionais. Um exemplo de adaptação construído ao longo de séculos que culminou com uma unidade política, cultural e ecológica, o sistema Alto Xingu, iniciava uma outra fase de sua história. Foi difícil, impossível mesmo, mudar o comportamento dos mais velhos. Suas existências estavam enraizadas num complexo sócio-cultural-ambiental organizado, cuja seqüência de fenômenos retroagia de forma que, mesmo em meio a mudanças, o sistema mantinha suas características e suas qualidades. A alma aberta dos jovens, porém, estava apta a interagir com elementos internos e externos ao seu mundo. Um chinelo, um calção, uma camiseta colorida, outro corte de cabelo... depois o rádio, a música, a tv, o futebol. Tudo isso encantou e seduziu o jovem xinguano. Bens de consumo materiais e culturais de um 79 mercado distante tornaram-se objetos da apreciação e do desejo. Um desejo que ia além da posse de coisas, mas também o desejo de transitar entre mundos, de dominar outros códigos, experimentar estilos de vida. Um encantamento inocente de quem não conhece com profundidade as dificuldades de se movimentar numa sociedade de classe, na qual o índio sempre esteve marginalizado. A reação dos mais velhos, a princípio complacente, foi tornando-se contundente na medida em que a rejeição dos mais novos aos costumes tradicionais também se exacerbava. “Eu fiquei na reclusão, arranhei, passei ervas no corpo, tomei remédio. O que eu ganhei com isso? Nada, eu não ganhei nada...” (K. Waurá, em torno de 32 anos, vive na cidade) A observação de K. Waurá incide exatamente no campo sensível da preparação do corpo-indivíduo para a vida social – a reclusão pubertária, em que os mais velhos têm um papel fundamental como responsáveis pela condução do processo de mudança corporal e formação da personalidade, de acordo com o ideal xinguano de pessoa (Viveiros de Castro, 2002). É este o momento da aprendizagem dos principais conhecimentos que compõem o saber e o fazer desses povos em todos os aspectos da vida: nas formas de adaptação ao ambiente para a produção da sobrevivência, nas formas de organização social, na cosmologia, gêneses e espiritualidade. Com o diálogo comprometido entre as gerações, abalava-se a organização xinguana. Os antagonismos naturais, virtualizados ao longo do tempo, oriundos das interações entre velhos e moços, emergem e ameaçam desorganizar o sistema. “O aumento da entropia, sob o ângulo organizacional é o resultado da passagem da virtualidade à atualização das potencialidades antiorganizacionais, passagem essa que, para lá dos limites da tolerância, se torna irreversível”. (Morin, 1977, pp118). Por outro lado, no âmago do pensamento xinguano, “a idéia do devenir histórico é pessimista, implicando que os índios passarão, deixando lugar aos civilizados, do mesmo modo que outra antiga gente (da qual descendem) desapareceu. Caraíbas e índios fazem parte da mesma segunda humanidade. Os caraíbas foram criados depois dos índios, podendo ser considerados ‘irmãos mais novos’. É natural que os mais novos sobrevivam aos mais velhos, o que permite explicar de modo satisfatório a desaparição gradual dos índios.” (Costa, 1988, pg 30). 80 Todo sistema traz consigo o fermento interno de sua degradação (Morin,1977). Na gênese da humanidade xinguana estão presentes os elementos que anunciam a sua morte. A imagem do próprio desaparecimento atua como elemento interno de desordem que, antes apenas potencializado, emerge das brechas de sua totalidade que está sempre fendida, fissurada e incompleta (Morin,1977). Ao incorporar elementos externos, a sociedade alto-xinguana, como todo sistema aberto, incorpora desordens, as quais geram novas interações. Esse processo amplia a complexidade do sistema, pois tem de conciliar visões de mundo muito diversas, mantendo a sua unidade. A organização deve transformar diversidade em unidade, porém, até certo ponto, pois, a extrema diversidade corre o risco de fazer explodir a organização e transformar-se em dispersão (Morin, 1977). A possibilidade de lutar contra a desintegração antagônica e utilizar energias restauradoras presentes dentro e fora do sistema xinguano esboça-se em meio a algumas questões. “As moças não estão acreditando na mãe. O que a mãe está falando, o que o pai está ensinando. Às vezes o pai fala pra ela , ô filha tira a roupa... ela não acredita. Acho que tem vergonha de tirar a roupa, mostrar o corpo, andar nua”. (Mulher Kalapálo, jun 2003) Como integrar os antagonismos de modo organizacional? Os antagonismos entre velhos e jovens podem gerar novas interações, na medida em que for possível relativizar as diferenças e ampliar o diálogo. “O urucum cozinhou o dia todo. O quintal, sombreado pelas fruteiras, foi tomado pelo perfume do urucum. Fui com o avô Talhoha para vê-lo recolher o urucum. Aquela panela grande, toda pintada, o cheiro, a conversa sobre a pintura e a beleza provocou-me uma irresistível vontade de tocar na massa do urucum. Logo em seguida apareceu o Arihutuã, que comentou sobre a pintura das mulheres e perguntou-me se eu queria pintar. Eu concordei e ele pintou minha testa. Em seguida eu chamei as meninas, suas filhas, para também se pintarem. Então foi aquela festa: as meninas pintando-se, procurando cinto, colares. Logo veio a mãe com a resina e o carvão para fazer o sinal xinguano no rosto. Ali, no fundo do quintal do chefe, estavam reunidas as mulheres da casa. Então eu pedi que as meninas cantassem um pouco. A princípio envergonhadas, não conseguiam fazêlo sem que um risinho tímido interrompesse a cantoria. Somente quando a mãe tomou a frente, é que o canto e a dança encorparam-se, arrastando os jovens e as crianças. Ali estava presente uma autêntica professora de música de yamurikumã”. (Lila Sardinha, diário de bordo, jun, 2003) Como renovar a energia para regenerar a organização? Um convite aos mestres 81 da tradição da comunidade ao espaço escolar, espaço este, a princípio alheio à tradição, porém atualmente inscrito no dia a dia de jovens e crianças, pode revitalizar as abaladas relações entre as gerações. A extensão da aprendizagem, da esfera doméstica em direção ao espaço coletivo da escola, oferece novas possibilidades para reconstrução dos sentidos dos saberes e fazeres tradicionais. “Entre 1960 e 1970, cada comunidade de cada etnia vivia bem, tinha muita festa coletivamente dentro das comunidades, sem televisão e gerador. Hoje em dia já apareceu qualquer tipo de objetos dos brancos no Parque, por exemplo: tv, motor de popa, motocicleta, bicicleta etc. Nas imagens da tv os jovens e as crianças ficam observando o movimento do não-índio, então querem imitar o corte de cabelo, não querem se pintar, não obedecem mais os pais e as pessoas mais velhas”. (Yunak Yawalapíti, 2003) Como auto-defender-se contra os agressores externos e corrigir desordens internas? Amadurecendo as visões a cerca da cultura envolvente, no sentido de fazer a crítica aos estilos de vida ditos caraíbas, ampliando a percepção de suas contradições, ao mesmo tempo, refletindo sobre a diversidade cultural como uma saída contra os processos homogeneizadores do mundo globalizado. Isso significa transformar a postura ingênua dos jovens em relação à aparente facilidade da vida nas cidades e valorizar sua tradição como fonte originária de cultura da humanidade. “Se a gente, daqui uns dias, perder nossa cultura, aí não tem mais valor, ninguém dá mais valor para nossa vida”. (Anarrin Waurá, 2003) Como auto-multiplicar-se de modo que a taxa de reprodução ultrapasse a taxa de desintegração? Investindo nas crianças, que são abertas aos processos da aprendizagem, em todos os sentidos, tendo a consciência de que, atualmente, os processos naturais e coletivos da aprendizagem da vida e a educação familiar necessitam de serem contextualizados nas relações interculturais que se estabeleceram depois do contato com a sociedade brasileira. “É nos sistemas fundados sobre a reorganização permanente que a desordem é desviada, sem ser excluída, porém tornando-se um elemento da reorganização” (Morin, 1997, pg 128) Bibliografia MORIN, Edgar. O Método IV. As idéias: a sua natureza, vida, habitat e organização. Publicações Europa-América, 1991. MORIN. Edgar. O método III. O conhecimento do conhecimento. Segunda edição. Publicações Europa-América. Portugal, 1996. 82 A EDUCAÇÃO NUTRICIONAL E A TEORIA DA COMPLEXIDADE Lívia Penna Firme Rodrigues Maio 2006 Vi na TV domingo passado que, no interior do Maranhão, as famílias numerosas têm para comer no café da manhã apenas farinha. Farinha de mandioca pura, crua. Esse fato bateu fundo na minha rígida formação cientifica cartesiana e soluções “nutricionais”, “aulas de educação nutricional” me vêm à cabeça automaticamente, desafiando meus estudos da teoria da complexidade. Sou formada há mais de trinta anos, época em que problemas de nutrição em saúde pública eram a desnutrição e as deficiências de vitaminas e minerais, estudados exaustivamente do ponto de vista bioquímico, fisiológico e patológico. Sabíamos que a causa básica disso tudo era a Fome, no entanto nos colocávamos à margem desse problema. Mais tarde, no final da década de 80, veio a transição nutricional e as doenças por excesso de nutrientes se tornaram também problemas de saúde pública no Brasil. Sobrepeso e obesidade, diabetis, dislipdemias e hipertensão atingem grande parte da população, e a fome e suas conseqüências continuam a vigorar em algumas regiões do país. Me pergunto: O que a Ciência da Nutrição e a Educação Nutricional têm feito 83 para melhorar essa situação? Várias pesquisas epidemiológicas e bioquímicas foram feitas nos últimos vinte anos, comprovando que sim, realmente, temos vários e graves problemas nutricionais. O caso das crianças do Maranhão é apenas mais um, bem conhecido há décadas. O que o avanço científico, tecnológico, industrial trouxe de útil para melhorar a qualidade de vida dessas crianças? Procuro fazer uma análise dessa situação. Percebo como esse exercício acadêmico pode ser limitante. As referências bibliográficas, os textos clássicos, as revistas classificadas em A, B, C... surgem emolduradas pelos limites teóricos impostos, e me sinto impossibilitada internamente de sair desse modelo gerado pela Ciência da Nutrição. São como grades de uma prisão que impedem meu pensamento de voar mais longe. Dois semestres estudando a teoria da complexidade dão uma boa chacoalhada nisso tudo. Apesar de ainda não ter conseguido “arrumar” a bagunça toda na minha cabeça, vou expor algumas reflexões, até onde consegui chegar, ou melhor, enxergar. A Perda da Certeza Percebo que perdi a certeza fundamental que embasou meus fragmentados conhecimentos científicos, distanciados de uma realidade cultural, social, econômica, mas que sempre esteve lá, presente, me dando uma falsa impressão de que conseguiria resolver alguma coisa. A certeza de que poderia resolver, pelo menos em parte, “a falta de educação alimentar” de um indivíduo ou comunidade, ruiu completamente. Aquelas soluções técnicas, homogêneas, similares, que pareciam se encaixar tão bem em diversas situações, perderam seu efeito e deram lugar à incerteza. Ainda insegura, percebo que o mistério, inexistente noutros tempos, passou a freqüentar meus pensamentos. Mistério que em momentos confundo com ignorância, embotamento. Parece que desaprendi tudo, ou que nunca aprendi nada. Em outros momentos, vislumbro brechas, luzes. E compreendo que a desordem faz parte de uma nova ordem que está surgindo, e como diz Morin, “não exclui nada, incorpora o que existe e vai além...”. E na transformação de meu olhar, realizo que as crianças do Maranhão não estão lá longe, como um objeto de minha observação, mas fazem parte de uma grande espiral, na qual estou incluída. Essa espiral contém vários anéis recorrentes que englobam todos os aspectos, ao mesmo tempo dependentes e autônomos, que determinam a vida e seus problemas. Para resolver os problemas nutricionais, precisarei olhar e englobar todos esses aspectos, tendo uma visão das partes, sem esquecer o todo, e lembrando que as soluções serão inacabadas, dinâmicas, não lineares, instáveis, imprevisíveis... Um Novo Olhar na Educação Nutricional O Caso das Crianças do Interior do Maranhão 84 Como seres vivos, as crianças do Maranhão comem farinha no desjejum para obter a energia necessária para continuarem vivas, se auto-organizando a partir do que o meio lhes oferece. Seus corpos se adaptam a essa limitação para sobreviver, gastando o mínimo de energia possível. Como o corpo tem outras necessidades, essa limitação gera doenças nutricionais além da apatia, outro recurso utilizado para economizar energia. Resolver essa situação implica em soluções multidisciplinares que englobem aspectos econômicos, políticos, educacionais, estruturais entre outros. Como Nutricionista de formação cartesiana, penso que nesse caso não poderei fazer nada, pois as soluções parecem distantes, não pertencendo ao meu universo de ações. Sem visão do todo, sem uma prática multidisciplinar, percebo minha atuação limitada e julgo que solucionar esses problemas é tarefa dos políticos. Pelas brechas que a teoria da complexidade tem aberto, pergunto: por que essas crianças estão comendo farinha de mandioca? É uma tradição na região plantar mandioca. As famílias das quais dependem essas crianças têm como hábito alimentar comer pratos à base de mandioca e a farinha de mandioca é um acompanhamento importante para vários tipos de comida da região. A fabricação da farinha de mandioca é feita na Casa de Farinha, organizada pela própria comunidade, comum em locais onde há plantação de mandioca. Os outros alimentos, que dão origem às outras comidas, não estão presentes porque: 1. A terra de plantio está destinada às grandes monoculturas; 2. Não há apoio para a agricultura familiar, gerando êxodo rural, desemprego e miséria; 3. O clima da região, tipicamente seco, agrava a situação, dificultando o cultivo e a criação de pequenos animais para alimentação; 4. O desmatamento de regiões próximas como a da Amazônia, gera desequilíbrio ecológico, agravando a seca que já é típica da região; 5. As monoculturas de cana de açúcar absorvem os trabalhadores que permaneceram na região, recebendo salário baixo e comprando alimentos nos comércios das próprias fazendas, a um preço alto. Como conseqüência, a farinha de mandioca que culturalmente é um alimento complementar, passa a ser o único. Isso também devido ao fato de ter uma vida de prateleira mais longa, podendo ser armazenada. Brasileiras, essas famílias gostariam de ter em seu prato arroz, feijão e carne além da farinha de mandioca. Ou tapioca com queijo e café no desjejum. Outros acompanhamentos como abóbora, couve e batata doce também são apreciados na região. Portanto elas sabem como se alimentar! Não se trata de resolver o problema com educação nutricional. 85 E qual seria a solução? É fundamental a garantia de segurança alimentar para essa comunidade. O Governo federal, estadual e municipal, responsável pela segurança alimentar, poderia estar engajado no combate à fome e desenvolver ações complementares, através de uma equipe multiprofissional, da qual o Nutricionista faria parte e que poderia estar engajado em ações como: 1. Promoção do aleitamento materno; 2. Elaboração de horta comunitária, escolar e domiciliar; 3. Elaboração de cursos para aproveitamento integral de alimentos entre outros itens; 4. Conscientização sobre o uso adequado da água, destino do lixo e outras questões ambientais; 5. Diagnóstico do estado nutricional e orientação alimentar para a população; 6. Organização de feiras de trocas e outras atividades de economia solidária. A Educação Nutricional não pode ser uma ação isolada, nem ter soluções prontas. Deve estar concebida como parte de outras ações que respeitem o contexto cultural, social, econômico e ambiental de uma determinada comunidade, sempre se renovando, se construindo, como uma emergência. E essas ações devem ser planejadas com a participação da comunidade, conhecedora de seus interesses e necessidades. A Educação Nutricional e a Teoria da Complexidade A Educação Nutricional está mais presente nos setores de saúde e educação, sendo os centros de saúde e escolas os locais onde poderemos estar fazendo uma reflexão para exemplificar a rede de conexões que fazem parte de cada um desses locais, freqüentados regularmente pela população Centros de Saúde Tradicionalmente, os centros de saúde são locais para atividades de promoção de saúde. Atualmente muito desse espaço se perdeu, devido principalmente ao elevado número de doenças que acompanham a epidemia de sobrepeso e obesidade que assola o país. Hipertensão arterial, diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, dislipdemias são as patologias predominantes, fazendo com que a atenção primária de saúde se ocupe principalmente do tratamento e prevenção dessas doenças, sendo a qualidade de vida e a alimentação os principais fatores etiológicos. No Centro de Saúde há atividades de atendimento individual e de grupo, com participação multidisciplinar dos profissionais. Um caso de obesidade, por exemplo, para seu tratamento correto, envolve o atendimento da enfermagem, do médico, psicólogo e do nutricionista em equipe, com sintonia e diálogo entre os profissionais. Não se trata de cada um fazer apenas a sua parte! Dependendo do caso é necessária a participação do assistente social e da realização de visitas domiciliares. Sabe-se que a etiologia da obesidade é complexa, envolve vários fatores sociais e individuais e seu tratamento não é fácil. Para que tenha sucesso, a família do paciente deve estar envolvida e reconhecer a necessidade da 86 mudança de hábitos alimentares, estar motivada para aprender a preparar novas receitas, experimentar sabores desconhecidos, adquirir o que não é habitual. Isso precisa ser passado para os pacientes de forma individual, durante as consultas com os profissionais, e em grupo, durante as atividades de educação em saúde. As palestras educativas, prática comum nos ambulatórios e centros de saúde, devem estar acompanhadas de atividades práticas e interativas com dinâmicas de grupos, em que os participantes sejam atuantes e responsáveis pelo seu aprendizado. Atividades em cozinha experimental e em hortas comunitárias, apoiadas pelos agentes de saúde e associações de bairro, poderiam estar complementando o trabalho iniciado no Centro de Saúde, dando oportunidade para que mudanças consistentes aconteçam. A obesidade é apenas um exemplo, mesmo em outras deficiências nutricionais como anemias, desnutrição, deficiência de vitamina A, por exemplo, é importante que esta conexão de fatores seja considerada. Para a resolução do problema de forma duradoura, torna-se imprescindível atuar nos fatores determinantes ao mesmo tempo e de forma integrada, com ações que passam a se multiplicar espontaneamente nas comunidades envolvidas. Escolas O conteúdo de educação nutricional não deve ser apenas mais uma disciplina na escola, mas estar integrado ao conteúdo de ciências físicas e biológicas, português, matemática, artes, geografia e história. A alimentação é um ato social, presente no cotidiano do ser humano, sendo a educação alimentar apenas parte das “educações” a que estamos todos submetidos. Tratar a educação nutricional como mais uma matéria, vai apenas contribuir para que a escola se torne ainda mais desagradável e pouco criativa aos olhos do educando. Não basta controlar a cantina, oferecer lanches saudáveis, fazer palestras sobre alimentação saudável. É preciso formar opinião, criar consciência sobre a importância da alimentação saudável para a vida e a saúde. A horta escolar é um excelente recurso para propiciar momentos educativos para as crianças e adolescentes. De forma lúdica e prazerosa, pode-se estar criando novos hábitos de alimentação, pois ao se observar o milagre do florescimento e do crescimento proporcionados pela terra, a criança terá uma experiência real sobre a cenoura, o rabanete, a couve, o tomate. Ela irá semear, colher e preparar esse alimento. E isso vai muito além de ouvir falar sobre ele. Outra experiência importante e fortemente recomendável é a cozinha experimental. Observar a transformação dos alimentos em comida. Testar técnicas dietéticas. Admirar cenouras, beterrabas e rabanetes lavados e ralados, dispostos em um prato redondo, em forma de uma mandala de cores, deliciosamente temperados com azeite, limão e sal, se transforma em uma forte experiência sensorial para a criança, envolvendo a visão, tato e paladar. Aspectos negativos de alimentos mal preparados e que são altamente prejudiciais ao organismo humano, como a alteração do óleo após diversos aquecimentos pelas frituras, o uso excessivo de agrotóxicos nos legumes, verduras e frutas, o 87 processo de refinação do açúcar, a agressiva produção de animais para corte, devem ser levados para as crianças. Existem filmes ilustrativos sobre esses temas que contribuem para a formação de uma opinião própria sobre esses assuntos. Ressalta-se com isso o caminhar paralelo da educação ambiental com a educação nutricional. Sabemos, por exemplo, o quanto a água é importante para a saúde e a necessidade de ingerir pelo menos oito copos de água por dia. Essa simples recomendação envolve vários questionamentos. Há água potável suficiente para a população? A água disponível é tratada? A água de consumo domiciliar é filtrada? As pessoas estão sendo educadas para ter um consumo consciente da água? Os habitantes do local estão conscientes que a água pode acabar? Responder a estas questões na escola e na comunidade, implica em ações de educação ambiental e nutricional. Outro ponto importante é relativo ao consumo de agrotóxicos. Como educadores e nutricionistas, enfatizamos a importância do consumo de, no mínimo, cinco porções diárias de frutas, legumes e verduras. Outra série de questionamentos pode ser feita. Qual a procedência desses alimentos? Que tipos de resíduos de agrotóxicos possuem? Qual a procedência da água de irrigação? Como estão sendo higienizados no nível doméstico? Como está sendo feita a preparação desses alimentos? Estão passando por um processo de cozimento além do limite desejado? Os resíduos estão sendo aproveitados para compostagem utilizada na adubação de hortas? E que tipos de hortas estamos propondo? O que são hortas perenes? E por aí vai... São muitas questões, soluções, sugestões que estão interligadas, formando uma rede de alternativas, absolutamente dinâmicas, provisórias, inacabadas, não lineares, instáveis, imprevisíveis que precisam ser olhadas e incluídas, tendo uma visão das partes e do todo. Entendo, portanto, que cada centro de saúde, cada escola, cada família, cada comunidade, é uma célula de uma grande rede, que precisa ser tratada individualmente e coletivamente por seus participantes, habitantes e dirigentes, que juntos buscarão as melhores e possíveis soluções para seus problemas de educação e saúde, sendo a educação nutricional uma parte que compõe isso tudo. Inclusive para o interior do Maranhão, onde vivem aquelas crianças que só comem farinha de mandioca no desjejum. 88 CORPOREIDADE: UMA CONCEPÇÃO DE SER HUMANO PARA A PRÁTICA PEDAGÓGICA Renato Bastos João Dezembro de 2005 Introdução Professores são seres humanos, os educandos, foco central da educação, também são seres humanos, mas qual é o conceito de ser humano que orienta a prática educacional em todos os níveis de ensino? Com o objetivo de propormos uma reflexão acerca desta questão, o presente artigo apresentará uma concepção de ser humano que possa servir como uma referência concreta para a formação de professores e educandos. Para referirem-se ao ser humano nas reflexões teóricas, as várias perspectivas teóricas que constroem o conhecimento pertinente à Pedagogia, adotam, predominantemente, a palavra sujeito. Sujeito é o ser humano presente no processo educacional, em todos os níveis de ensino. A definição de sujeito parece ser obvia e trivial para todos aqueles que estão envolvidos nas discussões 89 A DESORDEM CRIADORA: CRISE AMBIENTAL E EDUCAÇÃO Lais Mourão Sá Abril de 2006 (...) é exatamente na articulação da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época. Felix Guattari. Resumo Este artigo discute as relações entre o papel da Educação e a necessidade de superação da insustentabilidade socio-ambiental no atual modelo de civilização. Existe em nossa sociedade um modo dominante de entendimento da idéia de Educação que costuma tomá-la como sinônimo de educação formal, escolar e universitária, realizada pelas instituições legitimamente reconhecidas para estas funções, chamando de "informal" tudo o que não cabe nesses contextos. Este 90 modo de conceber a Educação reduz a uma categoria residual um vasto campo de relações sociais, na escala dos processos sócio-políticos locais, comunitários e cotidianos, onde a prática educativa pode exercer um forte papel transformador. A presente discussão pretende construir uma noção complexa de educação, com base em sua importância estratégica num contexto de mudança de paradigmas, na intenção de gerar uma compreensão que prescinda da necessidade de distinguir entre educação formal e não-formal, ou entre os vários focos fragmentados da Educação, como é o caso do qualificativo "ambiental". Ao mesmo tempo, enfatiza-se a extraordinária força que a questão ambiental vem trazer para o exercício transformador da educação, colocando a preocupação com a dimensão pedagógica dos processos de gestão ambiental no cerne da necessidade de mudança dos paradigmas socio-culturais vigentes. Como referência para uma compreensão do paradigma que gera a insustentabilidade e a crise ambiental, colocam-se como referência as relações de disjunção entre Ecologia e Economia, e entre Economia e Cidadania, no modelo do capitalismo industrial globalizado. As premissas para um pensamento complexo, colocadas por Edgar Morin, apresentam grande utilidade prática para orientar essa compreensão sobre o lugar da Educação nos sistemas de gestão. O enraizamento dos problemas antropossociais em suas dimensões biológica e física permite ampliar a visão das interconexões sistêmicas que devem ser retomadas para refazer os elos perdidos na crise socio-ambiental atual. Como instrumento para navegar na dimensão pedagógica da mudança de paradigmas propõe-se um conceito complexo que articula quatro instâncias antropossociais (oikos-domus-ethos-polis). O conceito pode ser utilizado como uma lente microscópica para identificar e interpretar os diversos tipos de relações complementares, antagônicas e concorrentes que se apresentam nos processos de gestão ambiental, para uma visão integrada dos processos de transição de paradigmas. Outro aspecto importante é a referência à dimensão comunicativa da educação, que fortalece a capacidade interativa entre os atores sociais envolvidos nos processos de gestão ambiental. Neste sentido, propõe-se que as ações educativas atuem no sentido da formação de redes comunicativas entre os atores sociais envolvidos, garantindo o espaço de mediação de interesses e conflitos, e a produção de uma ecoética, com base numa consciência ambiental coletiva. Assim, a Educação surge necessariamente como uma dimensão transformadora da práxis social, como suporte do processo de transição cultural, indispensável à sustentabilidade das ações de gestão ambiental. Palavras-chave: sustentabilidade. Gestão ambiental, educação, pensamento CRISE AMBIENTAL, MUDANÇA DE PARADIGMAS E EDUCAÇÃO complexo, 91 É inegável que as questões ambientais constituem o eixo aglutinador de todas as crises vividas por nossa civilização neste início de século e de milênio. Nos campos científico e político, tem sido bastante discutida a importância de uma compreensão das questões ambientais enquanto possibilidade de construção teórico-prática de um novo paradigma que venha responder aos complexos desafios por elas colocadas (Ardoino & Berger,1998, Leis,1995 e Levi,1995). Este desafio exige uma mudança de postura nas mais diversas áreas de conhecimento e práticas sociais. Ele pede que sejam desenvolvidos os potenciais de integração e multirreferencialidade do conhecimento humano, de modo a poder lidar com um campo de convergência entre dimensões e contextos até aqui vividos de modo fragmentado. Neste sentido, as questões ambientais exigem, por exemplo, que sejam transformados nossos padrões de pensar e atuar sobre as relações entre ecologia e economia, entre o público e o privado, entre a natureza, a comunidade e a dimensão intersubjetiva. E tudo isso aparece intrinsecamente vinculado a uma redefinição do papel da Educação em nossas sociedades. O surgimento, na década de 60, do termo "Educação Ambiental", foi uma primeira tentativa de resgate da função primordial da educação, diante de tão graves problemas. No entanto, neste momento inicial, predominou uma concepção superficial e pouco crítica sobre o complexo papel que a Educação tem a desempenhar no enfrentamento destes problemas. Sendo a mudança de paradigmas um lento processo de tentativas, retrocessos e emergências, é de se esperar que essa concepção esteja ainda em plena construção. Para que possamos visualizar a densidade socio-cultural da tarefa de uma Educação transformadora, é preciso, antes de tudo, compreender a natureza fenomenológica dos paradigmas e as profundas raízes de resistência cultural que eles criam, alimentam e reforçam. Os paradigmas formam o núcleo duro de nossas idéias e sentimentos, atuam como um programa em nosso espírito, como um princípio de coesão e coerência que confere legitimidade e caráter de verdade às nossas convicções, fazendo-nos cegos às possibilidades deixadas de lado, ilegitimando-as e excluindo-as do mundo percebido como real. Assim, repudiamos o divergente e o desconhecido, os desvios e as possibilidades revolucionárias, por uma incapacidade de integrar os argumentos de verdade trazidos pelo que negamos (Morin, 1998). Para uma ação eficaz de transformação das bases paradigmáticas de um modelo sedimentado, é preciso desconstruir com muito cuidado o muro que limita nossa 92 visão, e, com seus tijolos, construir pontes de comunicação e compreensão renovadas. É o que acontece com o desafio trazido pelas questões ambientais, pois elas nos colocam problemas globais cuja solução exige que mudemos nossas formas individualistas e fragmentadas de organizar a percepção e as relações humanas, desde o plano subjetivo e interpessoal, até as grandes decisões da política internacional. Desta forma, a tarefa transformadora da Educação implica em gerar um efeito turbilhonar na consciência coletiva e pessoal, atuando sobre o imprinting cultural que organiza os princípios inconscientes, propiciando o contexto de novas interações que permitam reorganizar nossas premissas de compreensão do mundo e de nossas práticas. ECOLOGIA HUMANA E EDUCAÇÃO Uma das mais produtivas contribuições do paradigma ambiental para a concepção crítica e criativa da Educação veio da área da Ecologia. Ela surge na década de 50, a partir do campo disciplinar das Ciências Biológicas, numa tentativa de integrar as ciências naturais e humanas, a partir da noção de ecossistema. Transportado para o campo interdisciplinar das Ciências da Vida, o conceito de ecossistema revelou-se de grande valor estratégico para a compreensão questões socio-ambientais. Com ele tornou-se possível construir a relação entre os processos culturais e as condições ambientais neles envolvidas, e mostrar a importância dos processos criativos da cultura nas relações entre os humanos e o ambiente que habitam, o seu oikos (Neves, 1996 e Viertler, 1988). Assim, numa construção interdisciplinar, a abordagem ecológica traz para o campo de estudo das realidades humanas a possibilidade de situar as formas de comunicação e organização antropossociais, intersubjetivas e intergeracionais, no contexto complexo da evolução dos biossistemas onde se inserem. Para a construção de uma visão transformadora da Educação em situações de crise e mudança de paradigmas, a abordagem ecológica permite compreender os comportamentos destrutivos dos humanos do ponto de vista das rupturas nas relações ecossistêmicas entre os seres vivos. Enquanto fundamento para uma ação educativa, essa compreensão permite identificar os pontos em que os modos humanos de compartilhar o oikos com os demais seres vivos foram rompidos e se desligaram da lógica de equilíbrio do todo. Podemos, então, falar de uma Ecologia Humana, e dizer que toda verdadeira educação deve ser uma ação ecológica. Segundo David Orr (1992), a crise de sustentabilidade socioeconômica e ecológica que afeta gravemente a modernidade pode ser interpretada também como uma crise psíquica e espiritual. Esta crise de sustentabilidade teria suas raízes na perda dos vínculos éticos que protegiam e regulavam as relações de domínio sobre a natureza, e que foram 93 parte da experiência de nossa espécie, nas sociedades que antecederam o atual modelo civilizatório. Assim, pode-se dizer que a crise atual é fruto de condições patológicas da consciência humana, que anularam a força instintiva de sobrevivência coletiva da espécie, levando-a a destruir as próprias condições ecológicas que sustentam a sua existência no planeta. Adotar a ênfase da Ecologia Humana em nossa compreensão da função da Educação no momento presente significa adotar uma visão ética que reconheça o fato de que cabe à espécie humana a responsabilidade pela preservação ou destruição da vida no planeta. Neste sentido, as propostas de Educação para a gestão ambiental devem enfocar a criação de bases organizativas sustentáveis para as relações humanas, capazes de promover e preservar valores adequados a uma ecoética e ao ecodesenvolvimento. Isto tem a ver com a dimensão política das relações humanas. Coloca-se também a necessidade de lidar com o global e o local, com a dimensão global da crise ambiental e a organização de processos locais de gestão da crise. A visão ampliada da interconexão sistêmica e global dos fenômenos socio-ambientais contemporâneos deve estar integrada a estratégias localizadas para a criação de soluções específicas, a partir da preocupação com as necessidades da sustentabilidade local. Assim, a perspectiva da Ecologia Humana revela que as ações de Educação para a gestão ambiental devem estar em sintonia com objetivo de: “gerar mecanismos de regulação política capazes de induzir mudanças de percepção, atitudes e comportamento condizentes com o entendimento das causas humanas da crise ambiental e com a experimentação de estilos de vida alternativos” (Vieira, 1998:72) A Educação para a mudança de paradigma exigida pela crise ambiental deve ser compreendida, portanto, como uma prática voltada não apenas para o contexto escolar, mas ampliada para incluir todas as questões cognitivas, comunicativas e socio-políticas colocadas pelas questões ambientais. CONSTRUINDO UM CONCEITO COMPLEXO PARA ABORDAR A CRISE E A GESTÃO AMBIENTAL Para instrumentalizar nosso olhar sobre essas questões, propomos um conceito complexo que permita uma visão integrada dos processos socio-ambientais. Utilizaremos quatro construções conceituais, cuja articulação forma o conceito complexo oikos-domus-ethos-polis. 94 A dimensão do oikos (do grego: casa, abrigo) será entendida aqui com referência à gestão do saber técnico, à relação instrumental com a Natureza, que define o modo humano de habitar e inserir-se no mundo da vida. Incluem-se aí as formas de lidar com o tempo-espaço dos ritmos planetários e ecossistêmicos da vida, as formas de inserção humana nos processos de auto-eco-organização dos sistemas vivos. É na sincronização entre o metabolismo biológico e os ritmos e instrumentalidades produzidos pela cultura humana que se colocam as condições de sustentabilidade da relação entre ecologia e economia. A dimensão do domus (do grego: dêmos/dámos) refere-se à unidade relacional básica de produção, e reprodução congregando pessoas que compartilham um mesmo território. É entendida aqui com referência à gestão dos recursos e interesses privados, no interior de unidades sociais mínimas onde se efetuam as funções de produção, de reprodução e de consumo, tais como famílias e empresas, entre outras. Nesta dimensão enfoca-se o aspecto particular e íntimo representado pela articulação corpo/casa/território, que é a base substantiva das vivências cotidianas locais. Constroem-se aí os vínculos psíquicos que unem as pessoas em relações intersubjetivas, articulando o pessoal e o coletivo. É nesta dimensão que se tece o pertencimento grupal, na diversidade de níveis entre a pessoa e a família, a vizinhança e a rede de relações pessoais da comunidade local. Definem-se assim os papéis básicos da vida social, a partir dos padrões culturais que atribuem valor simbólico à condição biológica dos humanos (infância, adolescência, maturidade, velhice, ancestralidade, relações de gênero). A dimensão do ethos (do grego: modo de habitar, de ser/estar) é a dimensão onde se colocam as questões fundamentais para a definição da identidade coletiva, o Nós que emerge de um modo de ser compartilhado. É a dimensão dos valores e ideologias que retroagem sobre sentimentos e desejos, guiando os comportamentos individuais e ajustando-os a um sentido de coletividade. Nesta dimensão colocam-se os valores que limitam a ação humana em relação à teia da vida, e nela podemos identificar as ideologias que vão definir a relação de pertencimento ou separação do mundo humano. Segundo Nancy Mangabeira Unger, "na raiz do debate entre humanismo e biocentrismo pergunta-se: quem é o homem? Qual o seu lugar na arquitetura universal? Existe uma fonte transcendente ante a qual encontramos nossos limites e nossos deveres, ou é o ser humano ‘medida de todas as coisas’ ?” (Unger, 1991:73) Inserem-se aqui questões ligadas aos fundamentos culturais e relacionais dos papéis sociais construídos no contexto do domus e que legitimam os hábitos e estilos de vida gerados no processo de socialização, nas unidades de produção, consumo e reprodução. Podemos utilizar, aqui, a noção de habitus, criada por Bourdieu (1972) para referir-se aos fenômenos de imprinting dos padrões culturais na vivência cotidiana dos indivíduos, e que converge com o conceito de paradigma abordado acima. Bourdieu fala de um sistema de disposições duráveis que se torna matriz de 95 representações e ações, de acordo com a posição dos sujeitos na estrutura social. No que se refere à racionalidade do lucro capitalista, esta dimensão aponta para os efeitos das ideologias do individualismo e do consumismo na formação da ética pessoal e grupal. Por fim, a polis (do grego: espaço social urbano, locus de reunião dos cidadãos) é entendida aqui quanto à gestão dos bens e interesses públicos, à definição coletiva das regras de troca socio-econômica, à regulamentação jurídica das relações entre o público e o privado. Esta dimensão pode ser vista em espiral desde a intersubjetividade/interpessoalidade das relações de vizinhança e do bairro, até a instância da comunidade e da cidade, e assim sucessivamente, até as relações globais de gestão planetária. Inserem-se aqui questões referentes às possibilidades de articulação complexa entre o poder público e a sociedade civil, no sentido de uma micro-física da cidadania e de uma discussão sobre as relações entre democracia direta e representativa. A articulação epistemológica entre essas quatro categorias nos permite construir um conceito complexo capaz de instrumentalizar nosso olhar sobre as questões da educação para a gestão ambiental. A partir de uma observação interpretativa nas situações concretas, podemos identificar o tipo de relação complexa existente entre oikos-domus-ethos-polis, em cada contexto e momento. É importante compreender a lógica do pensamento complexo quanto à concepção das relações possíveis entre os elementos considerados. Assim, a complementaridade se refere à possibilidade de harmonia entre os contrários; o antagonismo é a mútua anulação, destruição ou oposição; e a concorrência, a simultaneidade ou paralelismo entre processos que ocorrem ao mesmo tempo. Entre as quatro dimensões consideradas, há uma diversidade de possibilidades de relações, segundo os contextos, sendo que a qualidade complexa do conceito permite a percepção e avaliação dos efeitos práticos dessas variações. BUSCANDO AMBIENTAL AS RAÍZES DA INSUSTENTABILIDADE E DA CRISE A lógica do paradigma que gera a insustentabilidade e a crise ambiental pode ser abordada a partir de uma interpretação das relações entre Ecologia e Economia, e entre Economia e Cidadania, tal como se apresentam no modelo do capitalismo industrial globalizado. Do ponto de vista da relação Economia-Ecologia, ocorre uma disjunção entre o metabolismo biológico e o industrial. O metabolismo biológico é controlado pelos ritmos de auto-eco-organização dos ecossistemas, que realizam sem cessar as transformações entre energia e matéria em todo o planeta. Porém o metabolismo industrial da economia capitalista alcançou atualmente ritmos e intensidades que entram em franco descompasso com o metabolismo biológico. O nível de desenvolvimento 96 tecnológico contemporâneo produz uma grande pegada ecológica (resíduos, poluição) e o envenenamento da biosfera (Tiezzi, 1988). A apropriação privada dos recursos naturais, guiada pela lógica capitalista do lucro, com seus ritmos produtivos artificiais lineares e em aceleração crescente, é a raiz da crise ambiental e da grande quantidade de lixo e poluição gerada na produção e no consumo. Os ritmos cíclicos do metabolismo ecológico não conseguem mais integrar esse excesso: ecologia e economia estão em total dissociação, no atual padrão civilizatório. A ética que confere sentido a essa racionalidade pode ser compreendida a partir dos valores e ideologias que dão suporte às práticas interpessoais na cultura capitalista e reproduzem as estratégias socioeconômicas, tais como a competição, o individualismo, a degradação da cooperação, a concentração da riqueza e a exclusão social. Do ponto de vista da produção, esta ética está presente nas tensões entre capital e trabalho, entre o público e o privado, aparece sob a forma da obsolescência planejada dos produtos-mercadorias, e, no caso do capitalismo globalizado, tensiona as relações entre as necessidades coletivas de preservação do bem comum, e os interesses privados das empresas multinacionais. No processo de consumo, manifesta-se sob a forma da descartabilidade, do desperdício, da geração de necessidades artificiais e dos resíduos não reciclados que contaminam o meio ambiente e degradam a qualidade de vida. Buscando entender microfisicamente os efeitos destes fenômenos nas dimensões pessoal e coletiva dos comportamentos e estilos de vida, Guattari afirma que: "O lucro capitalista é, fundamentalmente, produção de poder subjetivo. Isso não implica uma visão idealista da realidade social: a subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e material" (Guattari, 1986: 24) "Assim como o capital é um modo de semiotização que permite ter um equivalente geral para as produções econômicas e sociais, a cultura capitalística é o equivalente geral para as produções de poder. As classes dominantes sempre buscam essa dupla mais-valia: a mais-valia econômica, através do dinheiro, e a mais-valia de poder, através da cultura-valor. Considero essas duas funções inteiramente complementares. Elas constituem, juntamente com o poder sobre a energia - a capacidade de conversão das energias umas nas outras - os três pilares do capitalismo mundial integrado" (Guattari, 1986:24) A perda cultural de conexão humana com os processos biológicos cíclicos repercute na dimensão pessoal e intersubjetiva sob a forma de um desenraizamento físico, emocional e mental que faz dos indivíduos peças atreladas à máquina de produzir necessidades artificiais, representada pela mídia mercadológica. A perda das raízes ecológicas se traduz na insatisfação consumista, na identificação ideológica da felicidade com o ter, e contamina os padrões de 97 sentimentos e percepções intersubjetivas, nas relações com a família, com o território, com a comunidade, com a história, no nível do domus. Do ponto de vista da relação entre Economia e Cidadania, a crise ambiental aparece na interface entre o nível intersubjetivo e a dimensão micro-política. A racionalidade econômica capitalista gera uma tensão antagônica entre o interesse comum e o privado, pois valoriza o interesse particular enquanto isolado e concorrente com o coletivo (ideologia individualista). Por outro lado, com a globalização neoliberal da economia, o capital financeiro transnacional pressiona politicamente para a supressão das mediações do Estado nas relações de mercado, ao mesmo tempo em que gera a redução progressiva do trabalho assalariado, o crescimento da terceirização e da economia informal. A conseqüência desses fenômenos no nível micropolítico é a perda do enraizamento da cidadania nos espaços de contratualização entre empresas e empregados, nos grupos corporativos profissionais, nos sindicatos. Outros espaços de organização política devem emergir a partir daí, onde as relações entre o poder público e a sociedade civil possam ser reconstruídas com foco na capacidade de auto-eco-organização das comunidades locais. Este aspecto está cada vez mais presente nas propostas e debates, no campo das políticas públicas e das organizações da sociedade civil, tematizados como poder local, e descentralização, entre outros. "A modernidade implica numa visão política de que participar na construção desse espaço de vida, mais do que receber presentes das 'autoridades', constitui uma condição essencial da cidadania. Implica numa visão institucional menos centrada nas 'pirâmides' de autoridade, e mais aberta para a colaboração, as redes, os espaços de elaboração de consensos e os processos horizontais de interação" (cf. Dowbor, 1999:126). "O poder local, como sistema de organização de consensos da sociedade civil num espaço limitado, implica alterações no sistema de organização da informação, reforço da capacidade administrativa e um amplo trabalho de formação tanto da comunidade como na própria máquina administrativa" (Dowbor, 1999:72). Para isso, é preciso também superar a dicotomia entre indivíduo e coletividade, a partir da dimensão da intersubjetividade, que remete à rede de significados culturais, e à sua função de suporte comunicativo, para uma percepção dos interesses comuns compartilhados, que são a essência da cidadania. Ao identificar essas disjunções entre Economia e Cidadania, e entre Ecologia e Economia no padrão civilizatório que gera a insustentabilidade e a crise ambiental, podemos perceber que esse processo vem desvendar um novo espaço de reconstrução da polis, a partir de uma busca de autonomia organizativa dos grupos sociais, com base nas necessidades compartilhadas de sobrevivência, de saúde psicofísica e socio-ambiental. 98 SUBJETIVIDADE, EDUCAÇÃO E CIDADANIA Como reforço para uma compreensão ampliada do papel da Educação no processo de gestão, a abordagem pedagógica deve enfocar o locus cultural onde se produzem e se transformam as bases éticas das relações cotidianas, penetrando progressivamente nas dimensões mais invisíveis da vida social. Encontramos aí a tematização da questão da subjetividade e sua relação com as práticas políticas e o exercício da cidadania. A questão da subjetividade não deve ser reduzida a uma individualidade isolada do sujeito. Guattari (1986) aborda as causas dessa ideologia reducionista, situando-as no contexto da crise da subjetividade no padrão cultural capitalista. Este sistema de valores unidimensional que controla e manipula a subjetividade pessoal e coletiva, produz um efeito psico-social de perda do valor da alteridade, nas relações intersubjetivas e coletivas, dando margem a uma percepção do sujeito enquanto entidade separada da trama social. Guattari alerta sobre a necessidade de se “conjurar o crescimento entrópico da subjetividade dominante” e de se restabelecer a dinâmica entre o singular e o coletivo, o público e o privado. Para que novos modos de produção da subjetividade sejam experimentados é preciso estimular a vivência de experiências moleculares de emancipação, onde as práticas intersubjetivas possam se recompor. Encontramos em Santos (1996) uma reflexão sobre a subjetividade enquanto um modo de ser profundamente enraizado nas diversas instâncias sociais, colocando a relação entre emancipação social, subjetividade e cidadania. Segundo ele, a questão da subjetividade, enquanto fundamento para a prática da cidadania, envolve a auto-reflexividade e a capacidade do sujeito de articular-se de modo diferenciado no contexto das diferenças que constituem as suas relações na sociedade civil. Embora a cidadania tenha sido tematizada pelo pensamento liberal como equalização e mecanismo regulador da relação Estado-sociedade, aponta-se agora a necessidade de articular diferenças pessoais e coletivas, numa integração complexa entre cidadania e subjetividade. A COMUNICAÇÃO E A DESORDEM CRIADORA Tudo isso remete necessariamente para a importância dos espaços micropolíticos de reconhecimento e negociação das diferenças e dos interesses comuns. Uma pedagogia da comunicação pode vir a ser instrumento grande valor e eficácia, na 99 prática dos processos de gestão ambiental onde a Educação seja considerada e integrada como dimensão de sustentabilidade. Um aspecto pouco percebido sobre a ineficácia dos modelos dominantes de gestão ambiental é a própria crise de comunicação de que sofrem, devido à inadequação socio-política e cultural dos contextos de negociação, que não mobilizam a capacidade interativa dos atores sociais. A pedagogia da comunicação é um instrumento importante para o estabelecimento dessas interações, no sentido de apoiar a tessitura das redes de relações, com base no cotidiano vivido pelos atores locais, tendo como referência princípios de democracia participativa. Este aspecto de restauração da tessitura dos laços passa, sem dúvida, por situações de desordem ou de extremo ruído nas comunicações entre os grupos sociais em confronto na gestão ambiental, porém trrata-se mesmo de uma condição essencial para que os atores encontrem novas possibilidades de debates e embates. Trata-se de um trabalho artesanal de tecelagem social, extremamente adequado ao presente contexto cultural de transição paradigmática, onde é preciso resgatar o RE perdido no padrão vigente. Edgard Morin, ao trabalhar sobre a construção do método da complexidade, coloca a idéia do RE como um prefixo referente à forma básica do anel que liga os processos vivos, no sentido de um ciclo aberto, que evolui em espiral, e que se estabelece entre dois ou mais elementos inicialmente separados, tornando-os complementares, antagônicos ou concorrentes, porém nunca dissociados, e permitindo a articulação entre desordem, interações, ordem e organização, de modo retroativo e recorrente. O anel é o resultado do encontro entre dois fluxos antes desconectados entre si, que passam a interagir um sobre o outro, criando uma ação retroativa, recorrente e aberta à nova organização. A partir de um efeito de re-troação, o anel assimila a desordem colocando-a a serviço do todo que se forma; a partir de um efeito de re-corrência, o anel exerce sua capacidade criativa, fazendo com que o fim alimente o começo, e que os estados ou efeitos finais produzam os estados iniciais. Neste sentido, o anel se torna capaz de produção de si, pela contínua atividade retroativa e recorrente de regeneração, gerando resistência às forças desintegradoras (entropia), além de comportar a reorganização e a mudança. A desordem adquire uma conotação de abertura a possibilidades imprevisíveis, tornando-se criativa e revolucionária. Morin destaca que o anelamento não é uma forma estática, mas um processo de organização que torna circulares fenômenos que, de outra forma, seriam irreversíveis (entropia). Desordem e ordem atuam numa mútua co-produção, estando uma enraizada na outra, relativas e relacionais entre si. No caso que estamos analisando, a Educação, ou a pedagogia da comunicação é o movimento do anel, que garante a conexão entre os sujeitos e mantém o fluxo das negociações. O momento da desordem refere-se ao estado de 100 insustentabilidade socio-ambiental, que, na lógica da complexidade, pode ser pensada como ponto de partida para uma evolução no sentido de uma nova ordem. A desordem, portanto, deve ser reconhecida e aproveitada em seu potencial, pois é ativa, e sua presença complexa alimenta o desvio com desvio, desperta forças genésicas adormecidas pela regulação, ressuscita os turbilhões. Novas formas só podem surgir a partir do desequilíbrio e da ruptura. As interações podem ser consideradas como o próprio resultado do movimento, a partir do desencadear de ações recíprocas, associações, oposições, comunicações, voltadas para construção de espaços de conexão entre os sujeitos e entre sociedade e natureza, onde os elementos que se encontram isolados possam ser integrados a partir de uma visão complexa de oikos-domusethos-polis. A organização corresponde à implementação de sistemas integrados de gestão ambiental, a partir de políticas públicas que assumam seu papel regulador do processo dinâmico de uma unidade complexa. O sistema implementado deve ser dotado de um modo de ser e de existência capaz de gerar combinações entre elementos heterogêneos num todo. É o que vai ligar e transformar os elementos, produzindo e retroalimentando o sistema. As políticas públicas devem atuar a partir de princípios ordenadores que garantam a permanência do todo, mantendo sua forma, existência e identidade, no movimento da transformação. Devem produzir a ordem, transformar e virtualizar a desordem (entropia, antiorganização, antagonismos latentes), aproveitando ativa ou potencialmente estas situações como bases para a re-organização. Por fim, a ordem é o padrão e a forma do sistema de gestão que se estabiliza temporariamente, pela atuação da força de coesão das regras e limites surgidos das interações. Esta precariedade da forma resultante também aponta para a necessidade de um apoio pedagógico permanente, capaz de sinalizar as transformações em curso e prover os momentos reflexivos, avaliativos e reorientadores necessários à manutenção do anel. Podemos, assim, aplicar esta proposta do método da complexidade para pensar o lugar da Educação nos sistemas de gestão, definindo-a como um processo de re-ligação micro-ativa, atuando a partir de uma situação de desordem, promovendo a dinâmica das interações e a regulação da ordem, mantendo-a ligada à desordem criadora. A EDUCAÇÃO COMO DIMENSÃO DA PRAXIS SOCIAL TRANSFORMADORA Como vimos, a insustentabilidade é fruto de perdas culturais, ou seja, desordem, perda das raízes ecológicas, perda da conexão entre o público e o privado, perda da conexão complexa entre oikos-domus-ethos-polis. Todas essas perdas suscitam a necessidade do RE, enquanto enraizamento, conexão, comunicação, ou seja, o sentido mais profundo da gestão. Podemos dizer que a cura da crise ambiental passa pelo restabelecimento do anel socioambiental numa nova volta da espiral evolutiva, onde a desordem do 101 desequilíbrio ecológico possa ser reorganizada através de políticas públicas que assumam a dimensão educativa como instrumento de reposição das condições de reprodução e sustentabilidade dos recursos naturais, garantindo a re-troação e re-corrência do anel socio-ambiental. Neste sentido, cabe à dimensão pedagógica trabalhar com o modelo de sustentabilidade dos ecossistemas, ou seja, a auto-eco-organização, trazendo para o sistema proposto como ordem, suas condições de re-generação (gerar suas próprias condições de produção), multiplicação e renovação. A Educação torna-se aí um instrumento de apoio ao processo de transição cultural, para que se alcance o restabelecimento da lógica do RE, mediante um sistema integrado de gestão. As ações educativas devem apoiar a formação de redes comunicativas que se alimentem na receptividade e na capacidade de escuta entre os atores sociais envolvidos no sistema de gestão, pois é a formação e sustentação da comunicação entre os grupos que garante o espaço de produção de uma ética construída a partir de práticas relacionais (disciplinas, conflitos, rotinas, contratos, padrões de comportamento). É neste espaço que se tornam possíveis as negociações entre interesses divergentes, e a criação de uma consciência organizativa coletiva. A partir do enraizamento nas quatro dimensões colocadas pelo conceito complexo oikos-ethos-domus-polis, o processo pedagógico da comunicação permite trabalhar a gestão em diversas conexões. No sentido do oikos, trata-se de criar uma rede comunicativa que viabilize a construção de um conhecimento integrado entre a visão técnica e os saberes que são fruto das experiências dos sujeitos que vivenciam as situações e os ritmos locais, buscando-se rever os padrões que definem a qualidade de vida, no sentido da auto-eco-organização e da adequação entre o metabolismo biológico e o industrial. No sentido do domus, trata-se de uma ação educativa voltada para a dimensão comunicativa entre as unidades de produção (empresas), consumo (famílias) e reprodução (mídia) participantes do sistema de gestão, de modo que sejam resignificadas as relações pessoa/grupo e a intersubjetividade, nas experiências cotidianas de corpo/casa/território, tempo/espaço; assim poder-se-á conferir sustentabilidade cultural à gestão dos conflitos locais e à recriação de hábitos e valores. No sentido do ethos, busca-se encontrar valores que possam funcionar como liga da rede comunicativa baseada no domus, gerando uma lógica do pertencimento e solidariedade, o que não exclui o conflito e o antagonismo, a partir da identificação de interesses comuns e particulares; a meta é diagnosticar, identificar e reverter gradativamente o habitus constituído através das ideologias capitalísticas (Guattari, 1989), ilegitimando perante a consciência individual e grupal os valores individualistas, competitivos e consumistas insustentáveis. Esta dinâmica ocorre essencialmente na construção dos papéis sociais que compõem o contexto do domus (feminino, masculino, criança, adolescente, 102 adultos, velhos, ancestrais) e mobiliza seus potenciais criativos arquetípicos, no sentido da cooperação e do pertencimento. Por fim, no sentido da polis, trata-se de fazer com que o poder público atue como verdadeiro educador/gestor de todo o sistema, provendo a sustentação dos recursos humanos/técnicos necessários à manutenção da rede comunicativa interinstitucional e entre as dimensões bairro/comunidade/cidade; cuidando para que não se perca o sentido de um processo em espiral, na articulação complexa entre o poder público e a sociedade civil. Todas essas questões remetem à necessidade de compreender a Educação como uma relação humana voltada para promover simultaneamente a autotransformação do sujeito e a cidadania entre aqueles que compartilham de uma mesma situação socio-ambiental. Torna-se, assim, cada vez mais desnecessário qualificar a educação de "ambiental", a não ser nas situações onde ela precisa se diferenciar de concepções pedagógicas não-comprometidas com a mudança de paradigma. Esta visão transformadora exige também um educador de novo tipo. Na verdade, a partir desta concepção, torna-se imprescindível integrar o papel de educador na práxis de todos os atores sociais envolvidos com e na questão ambiental. Todos aqueles que atuam em situações de formulação e implementação de políticas públicas, bem como em situações de pesquisa, intervenção e mediação técnico-política na sociedade civil, necessitam incorporar em sua práxis a dimensão educativa, como referência metodológica e instrumental. A qualidade e a capacidade de educador é uma dimensão que se coloca, assim, com fundamento de todos os papéis sociais ligados à mediação de conflitos e à construção coletiva de novos valores e comportamentos. BIBLIOGRAFIA Ardoino, J. & Berger, G. - "As Ciências da Educação: analisadores paradoxais das outras ciências", Universidade de Paris VIII - Tradução Prof. Rogério de Andrade Córdova, FE/UnB, 1998. Bourdieu, P. - Squisse d´une Théorie de la Pratique. Paris: Libraire Droz, 1972. Dowbor, L. - O Poder Local. 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São Paulo: Ática, 1988. 104 ATITUDE TRANSDISCIPLINAR PERTENCIMENTO LAIS MOURÃO SÁ UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Resumo O artigo discute a construção conceitual da noção de pertencimento tendo como referência o pensamento da complexidade e os fundamentos da Educação Ambiental. Referencia o enraizamento físico e biológico do sujeito humano e destaca a qualidade própria de todo sujeito vivo que se inclui em relações de pertencimento sem perder sua identidade particular, realizando simultaneamente a distinção individual e o pertencimento societário. Coloca também a necessidade 105 de evitar o reducionismo biológico, quando se trata de distinguir a natureza humana na dimensão da vida, mostrando que a noção de pertencimento humano exige inscrever a lógica da vida nas condições específicas do modo de organização cultural da sociedade humana. Conclui que o princípio do pertencimento traz em seu bojo a questão da subjetividade como uma dimensão intrínseca do conhecimento vivo e humano, e que integrá-la é condição de possibilidade para um conhecimento que se sabe pertencente e se quer compatível com a complexidade do vivido. Palavras-Chave: Complexidade, Educação Ambiental. Os humanos perderam a capacidade de pertencimento? Uma das noções mais relevantes para a compreensão da crise socioambiental que vivemos hoje é a noção pessoa humana. A ideologia individualista da cultura industrial capitalista moderna construiu uma representação da pessoa humana como um ser mecânico, desenraizado e desligado de seu contexto, que desconhece as relações que o tornam humano e ignora tudo que não esteja direta e imediatamente vinculado ao seu próprio interesse e bem-estar. Esta visão particularista e fragmentada do ser humano tem sido amplamente apontada não somente como uma das causas, mas como o principal obstáculo para a superação da incapacidade política de reverter os riscos ambientais e a exclusão social. A história das formas pelas quais a espécie humana tem construído a sua inserção ecológica mostra que a capacidade de inscrição congruente (cfe. Maturama, 2000) da organização social na eco-organização (cfe. Morin, 1997), principalmente a partir da domesticação das espécies vivas e das revoluções tecnológicas, apresenta uma variedade de momentos críticos de diversas ordens, onde se romperam os limites dentro dos quais a vida pode se manter de modo sustentável. O rompimento desses limites não é, portanto uma novidade da sociedade contemporânea, mas o atual patamar de intervenção antropossocial na biomassa parece representar um limiar entre subjugação e sujeição que nunca antes foi ultrapassado de modo tão radical. A degradação socioambiental se traduz na perda dos saberes práxicos que sustentavam as relações de mútuo pertencimento entre o humano e o seu meio. O pescador perde o conhecimento rico e profundo do mar e a sua perícia; o caçador perde a arte estratégica e sutil de ler os indícios e vestígios, o agricultor perde a ligação com o planeta, o cosmos, o ecossistema. Dessa forma, forjam-se pessoas dependentes de relações artificiais de vida (principalmente no meio urbano, mas não apenas aí), comandadas por mecanismos centralizadores cujo modo de operação desconhecem. Diz-se, então que os humanos perderam a capacidade de pertencimento. As ideologias contemporâneas sobre o desenvolvimento econômico ancoram-se 106 numa crença irracional que inverte radicalmente a afirmação do sábio chefe indígena Seattle, ou seja, elas parecem acreditar que “nada que acontecer à Terra afetará os filhos da Terra”. Trata-se, realmente de uma representação idealizada sobre os poderes milagrosos da tecno-ciência, como se esta fosse um instrumento neutro, desvinculado das intenções emanadas do projeto de sociedade dominante, e como se fosse possível deter o avassalador processo de globalização da pobreza sem reverter o não menos avassalador processo de concentração da riqueza. Esta crença cultural na eficácia milagrosa de um conhecimento puramente instrumental é produzida e reproduz o desenraizamento dos humanos de seu solo biológico e planetário, oculta a complexidade da vida e desliga o humano de seus vínculos intrínsecos com a ordem cósmica. A transformação deste padrão é obviamente um problema educacional, no seu sentido mais amplo e intrínseco, psico-cultural e socio-político, pois se trata de fazer emergir do inconsciente coletivo da humanidade suas experiências de pertencimento, trazer para a luz da consciência os conteúdos ocultos na sombra de nossa solidão como partes desgarradas de um mundo partido. Porém as estratégias apontadas para o enfrentamento desta situação dentro do campo ambiental e, mais especificamente, da educação, ainda se encontram aquém de uma compreensão deste tipo. A noção de pertencimento que aparece nos discursos e práticas de EA não é um conceito que já se encontre formal e racionalmente definido, do qual seja possível identificar uma nítida trajetória. Pelo contrário, trata-se de uma noção fluida e escorregadia, utilizada quase sempre de modo superficial e ingênuo. A intenção de qualificar o modo de relação entre os humanos e a natureza passa por uma diversidade de sentidos que vai desde a suposição de uma identidade imediata do humano com o biológico até as mais sofisticadas posições humanistas sobre a autonomia e o poder de construção de uma nova natureza por parte da vontade humana. A noção de pertencimento aparece também nas discussões sobre a relação entre ética e sustentabilidade, referindo-se a uma possibilidade de transformação de comportamentos, atitudes e valores para formação de pessoas e relações capazes de protagonizar um novo paradigma (Jara, 2001). No sentido do pertencimento social, desde o início do século passado Tönnies e Weber teorizaram sobre o fundamento da comunidade em laços pessoais de reconhecimento mútuo e no sentimento de adesão a princípios e visões de mundo comuns, que fazem com que as pessoas se sintam participantes de um espaço-tempo (origem e território) comum. Vale destacar também o sentido trazido pela vertente da Ecologia Profunda, a partir de Arne Naess, que traz uma abertura epistemológica para a inclusão da subjetividade como fonte de conhecimento. Nesta vertente, o sentido de pertencimento é sublinhado como uma capacidade humana de empatia entre 107 subjetividades, desde que o humano reconheça a subjetividade como uma qualidade do mundo vivo e entre em comunicação intersubjetiva com ele. No entanto, a questão ainda fica incompleta, na medida em que não se incorpora o conhecimento lógico objetivo nessa visão de pertencimento. As reflexões que se seguem visam apontar algumas diretrizes para a incorporação crítica da noção de pertencimento nas propostas de EA, de modo que os educadores possam alcançar um sentido operacional para a sua prática. Vamos considerar aqui dois pontos importantes para essa construção: o enraizamento físico e biológico do sujeito humano, e a sua condição cultural propriamente humana. A SOLIDARIEDADE ENTRE OS FILHOS DO SOL O enraizamento físico e biológico do sujeito humano é uma referência necessária na construção da idéia de pertencimento do sujeito vivo às suas pré-condições de vida, ou seja, a nossa auto-compreensão humana como co-existentes em um cosmos e em um oikos. Todas as culturas humanas têm produzido explicações a respeito de nossa condição de filhos do universo, quer seja na linguagem mítica, ou na linguagem científica da sociedade atual. E isto acontece porque precisamos destas respostas para construir a plenitude de nossa identidade humana e do nosso morar no mundo. Seja qual for a resposta que adotemos para explicar o modo de existência do universo, ela sempre nos remete à nossa própria existência como seres desse universo, a cujo destino estamos inexoravelmente presos. Por outro lado, as representações do pertencimento ao mundo vivo enfocam a constituição existencial subjetiva que partilhamos com as demais espécies planetárias, em meio à sua enorme diversidade. A visão do pensamento complexo, no quadro inter e transdisciplinar (cfe. Nicolescu, 2000) da ciência contemporânea (Edgar Morin, Humberto Maturana, Henri Atlan, entre outros), por exemplo, propõe ao pensamento científico uma habilidade de lidar com os aparentes paradoxos, reconsiderado a dicotomia entre autonomia e dependência entre os seres vivos nos ecossistemas, e, portanto, entre o humano e o meio onde ele existe. Dessa forma, os organismos individuais podem ser vistos ao mesmo tempo a partir da sua dependência do código genético da espécie, e a partir da sua condição de seres autônomos, cujas interações espontâneas são co-formadoras da eco-organização. Solidários e competidores, na diversidade reprodutiva das espécies e na solidariedade competitiva das cadeias alimentares, os seres interdependentes sustentam os pequenos e médios ciclos da vida no planeta. Trabalhando nas associações e nos antagonismos para si e para os seus, sustentam a estabilidade dinâmica do todo. 108 Nessa, como em tantas outras cosmologias ancestrais, a solidariedade precisa ser mais forte que a competição, para a sustentabilidade da organização viva. Seja uma ameba, seja um humano, o indivíduo vivo é visto simultaneamente como um ser de carências e de liberdades, em sua dupla identidade: egoísta e ecológica. Pelo ângulo da identidade egoísta, Maturana denominou os sistemas vivos de autopoiéticos, por sua capacidade circular e autônoma de construir seus próprios componentes, definir seus limites e sua organização. Ao mesmo tempo em que se transmite geneticamente, a auto-organização do ser vivo forma um organismo capaz de computar informação sobre si e sobre o mundo externo, acumulando experiência, memória, criando estratégias de vida, e uma existencialidade própria (história). Por seu egocentrismo, o ser individual vive uma solidão existencial, ou seja, uma nítida fronteira que o separa do seu meio externo, onde estão os outros seres. Porém, esta mesma condição de solidão, incerteza e separação engendra também um princípio de inclusão, ou seja, impele à busca da comunicação informacional e cognitiva com esse meio externo e com esses outros. A necessidade de associar-se a outros seria, então um aspecto indissociável da organização viva do indivíduo-sujeito. As relações inter-subjetivas formam circuitos trans-subjetivos que geram organizações de segundo grau, como os organismos complexos dos mamíferos, e de terceiro grau, como as sociedades animais e humanas. Nessa visão, os indivíduos-sujeitos se incluem em relações de pertencimento sem perder sua identidade particular, realizando simultaneamente a distinção individual e o pertencimento societário, a inclusão identitária e a exclusão egocêntrica. Quanto mais complexos na sua constituição biológica, mais autônomos e dependentes são os indivíduos, e maiores as suas chances de enfrentar desafios e riscos, assim como maiores são as suas necessidades de afeição, nutrição e proteção. Se aceitarmos essas premissas, podemos então dizer que esta capacidade e necessidade própria dos indivíduos-sujeitos vivos se desenvolve em seu mais alto grau nos humanos, e se constitui no fundamento do pertencimento e da compreensão humana do sujeito vivo. NATUREZA E SOCIEDADE Por outro lado, ao indagarmos sobre o que distingue a natureza humana na dimensão da vida, encontramos uma nova premissa. A construção da noção de pertencimento humano exige um passo além, que permita inscrever a lógica da vida nas condições específicas do modo de organização da sociedade humana. Para não cair no reducionismo biológico, temos que pensar o pertencimento humano ao oikos e ao socius naquilo que lhe é inerentemente específico, ou seja, na condição propriamente humana de nossa identidade cultural. 109 O que acontece em termos de complexificação da vida, quando se trata da espécie humana? Se a autonomia do indivíduo vivo se sustenta em sua capacidade de aprendizagem, pela qual ele é capaz de enfrentar a incertezas ecológicas elaborando estratégias de cognição e comportamento próprias e únicas, no caso da espécie homo emerge uma revolução mental, na qual o crescimento e reorganização do cérebro mamífero permite novas competências e autonomias, até a criatividade e inventividade humanas, engendrando a consciência e o pensamento. Morin (1999) propõe que a cultura seja considerada como um capital genético de segundo grau, que provê uma nova base de informações e programas de saberes, normas, comportamentos que organizam a relação sociedade-natureza. Trata-se de uma outra e mais complexa dimensão de pertencimento. A nova base organizacional trazida pela cultura se inscreve e se veicula por meio da linguagem e da comunicação. Maturana diz que o humano vive imerso na linguagem, como o meio comunicacional onde se formam e se transformam as aptidões mentais, psicológicas e afetivas. É nela que a cultura reproduz em cada sujeito a complexidade social, ao mesmo tempo em que neles se transforma. Pelo processo comunicativo da socialização internaliza-se um padrão cultural externo ao indivíduo, formado da acumulação de aquisições coletivas, transformando-o em sujeito construído dentro dos limites de um determinado universo cultural. As mitologias e ritualísticas antigas costumam expandir essa capacidade hipercomplexa de criação e recriação atribuindo-a ao mundo vivo em geral, um modo de representação que é chamado de animismo. Dessa forma, o pensamento mítico ancestral afirma o que, de resto, é também uma conclusão do pensamento complexo contemporâneo: para o humano, não há como ver o mundo senão pela dinâmica da criação cultural. Se é verdade que toda visão humana de mundo é estritamente uma visão cultural, de cujos limites jamais poderemos escapar (seja ela mítica, ideológica, filosófica ou científica), também é certo que o padrão cultural é aberto e se transforma, exatamente na práxis dos indivíduos-sujeitos interconectados, na relação de pertencimento entre os ecossistemas e as sociedades humanas. O que temos chamado de consciência ecológica seria o resgate dessa condição de pertencimento na práxis humana, recolocando a produção do conhecimento no anel recorrente que liga sociedade e natureza. É nesse sentido que podemos afirmar: os humanos somos pertencentes ao mundo físico, parentes de todos os seres vivos, mas ao mesmo tempo distanciados e estranhos a eles; somos profundamente enraizados em nossos universos culturais que ao mesmo tempo nos abrem e nos fecham as portas de outros possíveis conhecimentos. O princípio do pertencimento parece, assim, traduzir-se como uma dialógica entre semelhança e estranhamento. 110 Na visão ancestral das sociedades antigas, onde mito, filosofia, ética e ciência estavam profundamente entrelaçados e indissociados, semelhança e identificação são aquilo que nos torna capazes de compreensão da e na subjetividade, estabelecendo uma comunicação com base na afetividade, isto é, na possibilidade de sermos diretamente afetados pelo outro. Por outro lado, é no estranhamento, na radicalidade da diferença, que mora a possibilidade de um conhecimento objetivo, distanciado o suficiente para permitir uma compreensão complexa da diferença do outro. Parece, então que o princípio do pertencimento traz em seu bojo a questão da subjetividade como uma dimensão intrínseca do conhecimento vivo e humano, e que integrá-la é condição de acesso à objetividade, isto é, à possibilidade de um conhecimento que se sabe pertencente e se quer compatível com a complexidade do vivido. BIBLIOGRAFIA Almeida, M. da Conceição de et al - Ética, Solidariedade e Complexidade. S. Paulo: Palas Athena, 1998. Atlan, Henri - Entre o cristal e a fumaça: ensaio sobre a organização do ser vivo. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. Brandão, Carlos R. - "Outros olhares, outros afetos, outras idéias: homem, saber e natureza", in Somos as Águas Puras, S. Paulo: Papirus, 1994 (71-135) Boff, L. - Ethos Mundial. Um consenso mínimo entre os humanos. Brasília: Letraviva, 2000. Chefe Seattle - carta ao presidente dos EUA, em 1854, divulgada pela UNESCO em 1976, in Faria, Antonio Augusto da C. (org.) - Encontros Fortuitos. Reflexões sobre a Natureza. São Paulo: Editora SENAC, 2002. 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Newton Rossi Juliana Borges dos Santos Julho 2004 Podemos iniciar a discussão acerca da complexidade do processo da adolescência por vários caminhos... escolhemos então o conceito de imprinting cultural de Edgar Morin1 como via de acesso ao processo de introjeção de interdições, normas, prescrições... incorporados por cada indivíduo, como ser social que se caracteriza. Morin (1991) aponta que a cultura age e retroage sobre o espirito/ cérebro, modelando as estruturas cognitivas, organizando o conhecimento em função de paradigmas e sendo, portanto, co-produtora da realidade observada e concebida por cada um. Sendo assim, ao discutirmos a complexidade da adolescência, fazse de fundamental importância uma contextualização acerca do processo de 113 aculturação humana desde seu nascimento, sob o ponto de vista das relações familiares (primarias). A criança, por ser completamente dependente, percebe a mãe ou a figura de referencia parental como uma extensão de si mesma, como um prolongamento de seu corpo, que age em busca da satisfação de seus desejos e necessidades básicas. A presença materna e paterna, na medida em que satisfazem os investimentos da criança, causam a esta a sensação de saciedade e prazer. Porém, ao sentir-se privada, a criança experimenta o sofrimento e o projeta nessas mesmas figuras de referência. Sendo assim, é nesse confronto com a dor da perda constante que a diferenciação entre o eu e o outro se dá, constituindose a noção do mim e do tu. Junto com esses cuidados básicos próprios da infância, são passadas regras e normas, valores e conceitos, sendo a família (com seu paradigma inconsciente e representante de uma cultura e sociedade) a via de acesso que irá impor ao indivíduo uma visão de mundo e das coisas, verdades estabelecidas, crenças não contestadas, as quais irão funcionar como principio organizador do pensamento individual. Esse paradigma e tudo que decorre dele, tem para a criança valor estruturante e é tomado como referencia. A idéia de Paradigma, Morin (1986) compreende como sendo "constituído por uma relação especifica e imperativa entre as categorias ou noções-chave no seio de uma esfera de pensamento, e comanda essa esfera de pensamento determinando a utilização da lógica, o sentido do discurso, e finalmente a visão de mundo" (p. 150). Pelo Principio Hologramático (Morin, 1991), a cultura está nos espíritos individuais e estes estão na cultura. Ao longo do processo de desenvolvimento humano, por mudanças corporais e psicossociais, essa criança ascende rumo ao universo adulto e sente a necessidade de constituir identidade própria. Pela contestação dos grupos aos quais se sente pertencendo e dos valores passados por eles, busca outros grupos e outras relações significativas para se identificar e pertencer. Diante de tantos e novos papéis a desempenhar na sociedade, o adolescente inicia uma busca de identidade que se ajuste à sua escala de conceitos, modelos e valores primários (Paradigma). O conceito de autonomia, pode então ser concebido como intimamente ligado à noção de dependência do outro, que se constitui referencia, até então idealizada e não confrontada. O sistema familiar ocupa importante papel na aquisição de autonomia do adolescente, pois pela sua continência e proteção psicossocial, permite que esses filhos vivenciem esse processo de individuação, sem que os pais separemse de seus filhos. Ou seja, há uma possibilidade desse adolescente se individuar, confrontar, sem perder o amor e o pertencimento, contexto em que os membros familiares também estão mudando. Sendo assim, é no pertencimento ao sistema familiar, na dependência emocional e relacional que existem condições para a conquista da autonomia relativa a esse referencial. Quando o adolescente é visto trazendo em si: o biológico de sua espécie, o 114 familiar, o social e o cultural, que recebe como imprinting, podemos ter alguma dimensão da complexidade desse Todo que se insere na Parte e dessa Parte que representa e participa do Todo, de acordo com o Principio Hologramático. Resta ao indivíduo, no momento da adolescência, a tarefa de caminhar em direção a "elaborar um pensamento complexo, único que pode reforçar e desenvolver a autonomia pensante e a reflexão consciente dos indivíduos... edificar os mirantes dos metapontos de vista... identificar seus próprios buracos negros..." (Morin, 1991, p.90). Alberti, S. (2004) se refere à dificuldade dos pais em sustentar a adolescência de seus filhos pela impossibilidade de reconhecerem a necessidade de individuação dos mesmos, já que estes, muitas vezes, tentam afastar os pais pela critica e pelos confrontos, na tentativa de enfraquecê-los. O adolescente já não mais idealiza seus pais (referenciais parentais) como na infância e esse desejo idealizado, que antes era direcionado para as figuras de referencia, passa agora a ser direcionado para ele mesmo, desejando tornar-se sujeito autônomo e desejante. Nesse processo, "as referencias identificatórias começarão a vacilar, dando ao adolescente a possibilidade para encontrar seu próprio jeito" (Alberti, 2004. Pp.23). A identidade, portanto, passa a ser vista como o resultado de valores, crenças e atitudes bem digeridos pelo homem, que facultam a percepção do eu como entidade separada e diferente de todos os demais, mas que continua em equilíbrio e permanece integrado no todo ao qual se sente pertencendo. Esse processo de busca de identidade e autonomia trabalha em favor da seleção de valores e de conteúdos do adolescente, que adquire maior consistência em relação aos sistemas que os integram. Edgar Morin (1991) trabalha a idéia de sistema de idéias como "unidades informacionais / simbólicas que se juntam umas às outras em função de afinidades próprias ou de princípios organizacionais (lógicos, paradigmáticos). Sendo assim, um sistema de idéias comporta um núcleo duro com os critérios que legitimam a verdade do sistema e selecionam os dados fundamentais nos quais se apoia" (p. 116). Alem disso, “esse sistema de idéias comporta dispositivos imunológicos que repelem ou destroem todo o dado ou idéia perigosa para a sua integridade, sendo autocêntrico e autoritário" (p. 117). Dessa forma o adolescente se individua domesticando a sociedade e reciprocamente, sendo domesticado por ela, em um jogo complexo de sujeição, parasitismo, exploração mútuos entre indivíduo-sociedade-noosfera (no sentido de meio condutor do conhecimento humano), em uma procura simbióticoemancipadora (Morin, 1991). 115 Sob esse ponto de vista fica impossível ver a adolescência somente como um processo individual, ainda que em suas esferas biopsicossocioculturais, ficaria limitado não incluir os sistemas que são pelo adolescente afetados, modificados, reorganizados... recursivamente. Nessa linha de pensamento, podemos observar, por exemplo, a tentativa de normalização da sociedade, que exerce uma prevenção contra o desvio, eliminando-o quando ele se manifesta e reduzindo ao silencio, à intenção ou ao ridículo os desvios e os desviacionistas (Morin, 1991, pp. 26). Esse conformismo, tendência adaptacionista humana, é questionado pelo adolescente ao longo desse processo de busca de autonomia e individuação. Sendo assim, ele contesta, grita com "passagens ao ato", rebela-se e muitas vezes, sem ter consciência de si mesmo no mundo em que está inserido, acaba reproduzindo aquilo do que tenta se diferenciar. O imprinting e a normalização acabam impondo a certeza e a norma ao sentimento de verdade do adolescente, que acaba reproduzindo essas verdades como se fossem suas próprias. Observamos isso claramente nos comportamentos massificados dos jovens, que identificados a estereótipos/modelos apresentados pela mídia, agem sob verdades que acreditam serem suas, em contestação às verdades introjetadas em suas relações primarias. Muito complexo esse jogo de conhecimentos que se coloca em relação, estando de um lado o imprinting, a reprodução, e de outro, as brechas, o aparecimento de desvios, a evolução dos conhecimentos, as modificações nas estruturas de reprodução. Uma problemática de grande repercussão social e que traz toda essa complexidade é a da violência, dos atos infracionais, dos delitos cometidos por adolescentes. Podemos olhar com um olhar reducionista, simplificador: colocando de um lado o menor-marginal e de outro, a vitima inocente. Essa visão simplificadora e redutora traz para o indivíduo toda a culpa pois não o olha sistemicamente, como aquele que transgride em relação a ... que desvia em relação a ... e não sozinho. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que entre outras disposições, legisla sobre a inimputabilidade penal dos adolescentes, representa uma normalização de um desvio surgido de uma brecha no paradigma do Código de Menores, tornando-se norma, regra, lei. Essa mudança de paradigma ocorreu e continua incessante... por meio de brechas em diferentes momentos históricos. Aliás, o que constituía o novo torna-se velho e ultrapassado, por meio de novas brechas... O Brasil Colônia ao séc. XIX, com a passagem da Monarquia para a República, sofre uma explosão demográfica e a população abaixo de 19 anos passa a representar mais da metade da população brasileira. Sucedem-se diversas iniciativas de criação de abrigos permanentes para as crianças em situação de rua. Ao mesmo tempo, vinha da Europa um discurso em torno da transformação social por meio do investimento na criança, o que passou a ser aceito e amplamente difundido no séc. XX, colocando a criança como peça chave para a 116 transformação do Brasil... a sociedade civil cobra do Estado uma assistência pública para as crianças abandonadas e delinqüentes... brechas... Surge o Código de Menores (1927), trazendo uma concepção da criança em risco como "menor abandonado" e do adolescente autor de ato infracional como "delinqüente", inaugurando uma prática de assistência asilar e de segregação dos seus meios familiares e comunitários, vistos como promíscuos. Neste momento relembremos a Chacina da Candelária... brechas... O que era brecha no paradigma de exclusão e segregação do Brasil Monarquia legitima-se como o Código de Menores e, como novo paradigma, é ultrapassado a partir de outras brechas... culminando com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que no final do sec. XX surge com objetivo de promover a cidadania, trazendo para o Estado, a sociedade e a família, o dever de resgatar e saldar a enorme dívida social, garantindo direitos e cidadania a todos... Porém, o sistema perverso, excludente e violento ainda se reproduz por meio de fenômenos como meninos e meninas em situação de rua, violência sexual de crianças e adolescentes, alto consumo de drogas, envolvimento com o Narcotráfico e ato infracional na adolescência... cujos autores/vitimas participam lutando pela sobrevivência dentro um mundo onde encontram-se à margem. Ainda hoje, muitas culturas e alguns discursos consideram o jovem como um rebelde, egoísta e agressivo. Alguns autores pioneiros no estudo da adolescência colocam essa fase como sendo um momento critico, de confusão e crises, enfatizando a natureza difícil e rebelde do adolescente. No entanto, dentro dos estudos em Psicologia, sob uma perspectiva sistêmica e psicossocial, o conceito de adolescência passa a ser discutido e contextualizado relacionalmente. Ou seja, a adolescência ocorre dentro de um sistema familiar, social e cultural que precedem esse adolescente, influem sobre ele e ao mesmo tempo se modificam na interação com ele. Ainda inclui-se a dimensão do olhar e do significado que esses sistemas de pertencimento atribuem ao adolescente, ao processo pelo qual ele esta passando e às expectativas que se dirigem a ele em seu momento atual e suas possibilidades futuras. Ampliando o foco, podemos ver a adolescência como um processo em que todas as pessoas estão implicadas. O choque entre o velho e o novo constitui desafio para ambos se afinarem, adaptando-se o novo ao contexto social, a fim de que conquiste neste, espaço reconhecido para seus valores e que estes sejam considerados como proposta de mudanças paradigmáticas. Ao velho, por sua vez, cabe a aceitação de que a vida é uma constante renovação e ininterrupta mudança, rica de transformação de conceitos que podem avançar para o sentido ético elevado e libertador. Sendo assim, a adolescência se caracteriza como aquele período de início de 117 viagem, onde não se sabe muito bem onde se vai chegar e mesmo, em alguns casos, tendo claro o destino que se almeja, há pela frente um longo processo de conhecimento, autoconhecimento e reconhecimento diante das mudanças temporais e históricas. Finalizando, citamos Morin (1986) "... uma convicção se pode fortalecer em nós ao longo da viagem, é que, para menos desconhecer e melhor conhecer, o conhecimento deve conhecer-se." (p.216). "A arte da inteligência é também saber escolher inteligentemente os meios inteligentes para tratar especificamente uma dada situação." (p. 169). Será esta a finalidade da adolescência? ... o conhecimento, o movimento em direção ao autoconhecimento... o inicio do processo de conhecimento do conhecimento? REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALBERTI, S. (2004). O Adolescente e o Outro. Coleção Passo - A- Passo. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. MORIN, E. (1986). O Método III. 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ECA, art.103) colocam estes em uma condição de nãosujeitos, a partir de um “rótulo” de desviantes da norma, que permite assim à sociedade, senhora de todos os direitos, segregá-los em instituições corretivas, privando-os de sua liberdade. Essas instituições, derivadas dos antigos abrigos religiosos do Brasil colônia que atendiam às crianças abandonadas ou delinqüentes (Conceição, Tomasello e Pereira, 2003), hoje aplicam o que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA - em seu artigo 121 descreve como Medida Socioeducativa de Internação. Essa medida é aplicada quando o ato cometido pelo adolescente é feito através de 119 grave ameaça, por reiteração no cometimento de outras infrações graves, ou por descumprimento reiterado e injustificável de uma medida anteriormente imposta (Art. 122). Terra (1999), afirma que a privação de liberdade, com duração determinada, prevista por Lei e através de sentença judicial, é a forma específica pela qual o Direito Penal objetivo concretiza o princípio da reparação equivalente, no âmbito da noção de castigo. Ou seja, a privação de liberdade está associada à idéia de reparação de dano causado, ou ainda, de expiação da culpa através do castigo. Tal idéia, conforme colocado acima, carrega em suas bases o que Morin (1991) chama de “o grande paradigma do Ocidente” ou o paradigma cartesiano. Esse paradigma fundamenta-se na disjunção que coloca de um lado o “cidadão de bem”, aquele que cumpre no espaço público todas as normas e os valores sociais vigentes e, portanto, é merecedor de gozar do seu direito à liberdade, e do outro lado o “delinqüente”, aquele que infringiu tais normas e, portanto, perde seus direitos até que sua culpa esteja expiada. Mas o ECA, concebido a partir do entendimento do homem como um ser de direitos, dispõe em se artigo 3°, que: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Ou seja, é o adolescente uma pessoa em desenvolvimento, como o próprio artigo 121 atesta, e sendo assim, talvez não possua a exata noção dos seus seu atos (Tomasello, Conceição e Pereira, 2003). Dessa forma, o ECA deriva do eixo cartesiano e passa a entender o adolescente não como o “errado”, em oposição ao “cidadão modelo”, mas a partir de um meta-ponto-de-vista que inclui o próprio meio social como responsável pela conduta deste adolescente e pela forma de ele estar no mundo. Ele se norteia por uma perspectiva de reeducação do jovem, adotando uma postura conceitual dentro do entendimento da necessidade de trabalhar as dificuldades deste, contribuindo para a mudança de seu comportamento (Terra, 1999). Entretanto, as ações destinadas a fazer cumprir o ECA, conforme bem colocou o Ministro José Celso de Mello Filho, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, dependem, para serem efetivas, da fidelidade do Estado (e da sociedade, acrescento eu) na implementação dos compromissos assumidos e na orientação das políticas públicas. Infelizmente, dentro do jogo político, a fidelidade de seus membros tende a ser, quase que exclusivamente, a seus próprios interesses, ou à classe que representam, e assim, como o jovem, infrator ou não, não elege representantes de sua classe, suas necessidades e interesses ficam dependentes da boa- 120 vontade alheia. As medidas socioeducativas, até o presente momento, pouco têm sido vistas na pauta de discussão e elaboração das políticas públicas, apesar de sua necessidade se manifestar de forma violenta, como pode ser observado nas rebeliões que ocorrem freqüentemente nas instituições de internação como CAJE, CESAMI e FEBEM, entre outros. A execução das mesmas fica na maioria das vezes a cargo de instituições de origem religiosa que concebem o adolescente como uma alma perdida e pecadora “necessitada de salvação” (Marques 2000), ou ainda, o ranço da ditadura militar, que prende e castiga em nome de uma ordem social ou da segurança nacional. Tais instituições apesar de se proporem fazer cumprir o ECA, trabalham sob a égide do paradigma disjuntivo, que não engloba o desvio, discriminando o desviante, culpabilizando-o por seu comportamento e objetivando transformar o delinqüente no bom cidadão, através de uma pedagogia opressora que coloca o jovem como objeto de suas ações e não como sujeito ativo em sua transformação. Neste contexto, a medida que deveria ser socioeducativa não atinge os seus objetivos, e os jovens que por elas passam acabam por reiterar, cometer novamente atos infracionais, muitas vezes, mais graves que o primeiro. Entre os fatores que levam a isso pode-se destacar a ineficiência dos programas implementados que desconsideram os próprios jovens, não ouvindo o que eles têm a dizer, quer seja por palavras, ou através do próprio ato delituoso (Tomasello, Conceição e Pereira, 2003). Portanto, posicionar o adolescente como sujeito de seu desenvolvimento é de fundamental importância para que as ações voltadas a auxiliá-lo neste processo alcancem o êxito desejado. Mas as ações realizadas pelas instituições de atendimento aos adolescentes não refletem unicamente o paradigma de causa-efeito que norteia seu funcionamento. Elas refletem o conhecimento que coordena todo o processo de funcionamento da sociedade ocidental-tecnicista-capitalista-cristã. Ultrapassar o pensamento disjuntivo é condição sine-qua-non para que se realize uma sociedade mais igualitária, não num sentido de homogeneidade, mas sim de aceitação da heterogeneidade. Para tanto, Morin propõe uma revolução paradigmática. Em seu O Método IV ele afirma: Uma revolução que afeta um grande paradigma modifica os núcleos organizadores da sociedade, da civilização, da cultura e da noosfera. É uma transformação do modo de pensamento, do mundo do pensamento e do mundo pensado. Mudar de paradigma é, ao mesmo tempo, mudar de crença, de ser e de universo. Assim, catorze anos após a publicação da Lei n° 8.069 que colocou em vigor o ECA, pode-se entender que, não basta aprovar um código de leis para que todo o resto mude. Mesmo que esse código represente a vanguarda de um pensamento que é inclusivo, que responsabiliza a sociedade e seus dirigentes pelo que 121 acontece a cada um de seus cidadãos. É necessário que a própria sociedade absorva esse pensamento. Mas essa absorção não ocorre de modo simples, “uma revolução paradigmática ataca enormes evidências, lesa enormes interesses, suscita enormes resistências” (Morin, 1991). Uma possibilidade de se dar início a essa revolução pode ser, então, o próprio motivador desta discussão: o trabalho com os adolescentes autores de atos infracionais. Conforme sugerido anteriormente, é necessário posicioná-los como sujeito de seu desenvolvimento, entendendo-os como seres individuais que estão inseridos em uma sociedade, em uma cultura. Se esse desenvolvimento pessoal ocorre guiado por um pensamento complexo, inclusivo, a sociedade formada por esses indivíduos virá a ser, em principio, inclusiva. E a cultura que permeia a ambos será a da complexidade, retornando assim ao pensamento complexo. Mas como deve ser então esse atendimento oferecido aos adolescentes? Qual a metodologia a ser utilizada? Como fazer deles sujeitos, para que possam sair da condição de excluídos, de marginais; para que possam re-significar o seu papel no mundo? Antes de tudo, é necessário ouvir esses jovens, permitir a eles expressarem-se, exporem a sua compreensão acerca do meio no qual estão inseridos, pois a compreensão do meio acerca destes adolescentes já se sabe, é a de desviantes da norma. Se for para falarem, então a linguagem se apresenta como instrumento indicado para ser usado neste processo. Em O Método III – O conhecimento do CONHECIMENTO - Morin aborda no capítulo 5, Computar e Cogitar, questões relativas ao pensamento e à linguagem. Ele afirma que: a linguagem permite e garante a intercomunicação, e que, ao mesmo tempo em que garante o funcionamento do maquinismo social, permite a transmissão, a correção, a verificação dos saberes e informações, assim como a expressão, a transmissão e a troca de sentimentos individuais.(pp.114) Dentro da Psicologia Clínica, esse poder da linguagem de permitir a comunicação e a troca de sentimentos individuais é o instrumento imprecindível do processo terapêutico. No decurso do desenvolvimento de sua metodologia psicanalítica, por exemplo, Freud percebeu que para seus pacientes alcançarem melhoras em suas patologias, bastava proporcioná-los a possibilidade de falarem livremente. A construção verbal atuaria, talvez, como promotora de um concatenamento de idéias, o que levaria o sujeito a melhor compreender os fatos. Mas concomitante a este processo racional existiria outro mais ligado ao campo do sentimento, ou dos afetos, como preferiria Freud. Isso se deve ao fato de serem, as palavras, símbolos (significantes) que descreveriam fenômenos, eventos, objetos... e como tais, carregariam em si significados. Ao “manipularem” verbalmente esses significantes (a fala livre) os pacientes estariam simultaneamente manipulando os significados. Assim, ao expressarem seus sentimentos através dos símbolos verbais, os sujeitos externalizam seus afetos, revivendo-os, e abrindo possibilidades de novas resoluções. Isso parece estar consoante com o pensamento de Morin, quando este diz: 122 A linguagem permite igualmente traduzir o vivido, isto é, os sentimentos, as emoções e paixões. A dialética dispõe da aptidão para desenvolver não só uma complexidade do abstrato, não só uma complexidade do concreto, não só uma complexidade do vivido, mas uma lógica do abstrato concreto vivido, Em que o pensamento pode ir e vir do mais concreto, singular, vivido ao mais abstrato, universal, racional, e assim uma complexidade propriamente pensante que, embora saída da complexidade da máquina cerebral, não lhe é redutível. A partir daí, o ser humano pode tentar pensar o seu próprio vivido e a sua singularidade, ao mesmo tempo em que se põe problemas gerais quanto à sua situação na sociedade, na vida e no mundo.(pp. 116) Esta possibilidade de re-significação dos fenômenos e da situação do ser na sociedade, na vida, no mundo, é possível graças à capacidade que a linguagem possui de ser, ao mesmo tempo, individual, comunicacional e comunitária, pois é esse trânsito entre o pessoal e o coletivo que permite a junção, disjunção, revalorização e/ou a interpretação diferenciada dos significados carregados pelas palavras. Esse pensamento condiz com o de Fairclough (1992), que afirma ser a linguagem um processo social. Para ele existe um relacionamento dialético entre linguagem e sociedade, sendo que ambas se interagem e se determinam mutuamente. O discurso é entendido por ele como sendo composto por três dimensões: a prática social, que representa a ação do sujeito no mundo; a prática discursiva, que envolve a produção, a distribuição e o consumo do texto; e o texto, que é o produto final, escrito ou falado, da prática social. Os efeitos desse discurso seriam os de construção da identidade e das relações sociais. As palavras seriam assim o que Winnicott chama de objeto transicional. Esse objeto pertenceria, segundo Hoffman (1998), à “uma terceira parte na vida de um indivíduo (entre o interno e o externo), uma região intermediária da experimentação, para qual contribui tanto a realidade interna quanto a vida externa.” Assim, por pertencerem ao interno esses objetos correspondem ao próprio indivíduo mas, por também pertencerem ao externo, eles possuem a possibilidade de serem compartilhados, compreendidos por outros. E é por este prisma que linguagem pode ser utilizada no trabalho com adolescentes infratores. Pois quando o jovem passa a narrar sua história de vida, dialogando com um terapeuta que escuta essa história e compreende a mesma não só pelo ângulo da sociedade vítima dos atos do adolescente, mas, também, pelo ângulo do adolescente vítima dos maus tratos dessa sociedade, é que é possível o afloramento de um terceiro ângulo que não o do adolescente, não o da sociedade, mas o da relação: adolescente – violência – sociedade. Esse terceiro ângulo de visão é o terceiro excluído (Morin, 1991) da lógica analítico/sintética, mas incluído no pensamento complexo. A partir dessa metavisão da relação adolescente infrator/sociedade é que será possível uma resignificação do papel de cada um desses elementos na determinação do outro, e a re-orientação das ações necessárias ao estabelecimento de uma sociedade menos excludente, ou de uma forma alternativa de inclusão do adolescente que 123 não seja a violação das normas. Mas cabe ressaltar que, dentro da medida socioeducativa, essa metavisão da relação adolescente infrator/sociedade não pode ser buscada exclusivamente para com o jovem. É necessário alcançar-se essa metavisão junto aos técnicos e demais profissionais executores das medidas. Afinal, eles são os representantes do aparelho social presentes nessa relação e, como elemento dela, também precisam sair da lógica cartesiana. Sendo assim, o trabalho do psicólogo clínico que tenha por objetivo alcançar o êxito na aplicação da medida socioeducativa de internação, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, pode utilizar-se da linguagem e do pensamento complexo para a co-construção de um conhecimento compartilhado entre os elementos envolvidos nesse processo, permitindo para todos uma metavisão do mesmo, e a partir daí, uma transformação na relação estabelecida. BIBLIOGRAFIA CONANDA, Estatuto da Criança e do Adolescente, Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2002. Conceição, M. I. G., Tomasello, F. e Pereira, S. E. F. N., Prender ou proteger? Caminhos e descaminhos da assistência à infância e à juventude no Brasil, em: Adolescentes e Drogas no Contexto da Justiça/ Maria Fátima Sudbrack (Org.), Brasília-DF: Plano Editora, 2003. Fairclough, N., Critical Language Awareness, Londres: Ed. Longman, 1992. Filho, J. C. M., Da severidade da reação penal do Estado à proteção integral de crianças e adolescentes. Em: Adolescência, Ato Infracional & Cidadania, publicação conjunta entre ABONG e Fórum DCA Nacional, Brasil, 1999. Hoffmann, L., Uma postura reflexiva para a terapia de família, em: A Terapia Como construção Social, McNamee & Gergen (Orgs), Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1998. Marques, W. E. U., Infâncias (pré) ocupadas: trabalho infantil, família e identidade, Brasília-DF: UnB, 2000. (Tese de Doutorado) Morin, E., O Método III – O Conhecimento do Conhecimento, Portugal: Ed. Biblioteca Universitária, 1986. Morin, E., O Método IV – As Idéias: a sua natureza, vida, habitat e organização, Portugal: Ed. Biblioteca Universitária, 1991. Terra, S. H., Sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a inimputabilidade penal, Em: Adolescência, Ato Infracional & Cidadania, publicação conjunta entre ABONG e Fórum DCA Nacional, Brasil, 1999. Tomasello, F., Conceição, M. I. G e Pereira, S. E. F. N., Oficina R.A.P. (Resgatando a Autoestima e a Proteção): A linguagem do Rap como instrumento de comunicação dos adolescentes envolvidos com as drogas, em: Adolescentes e Drogas no Contexto da Justiça/ Maria Fátima Sudbrack (Org.), Brasília-DF: Plano Editora, 2003. 124 125 QUEBRA DE PARADIGMAS: DO PONTO DE VISTA LINEAR (NEOCLÁSSICO) A UM META-PONTO-DE-VISTA DA ECONOMIA. Carlos Roberto da Silva Dezembro de 2005 A publicação da obra “Das Revoluções dos Mundos Celestes”, em que Nicolau Copérnico contestava o modelo vigente sobre a teoria Geocêntrica (A Terra era o centro do universo), onde ele afirmava exatamente o inverso, ou seja, a Terra e os outros planetas é que giravam em torno do Sol (teoria Heliocêntrica), levou a uma revolução do pensamento, a uma nova visão de mundo. Hoje, necessitamos de semelhante mudança em nossa visão mundial, principalmente, na forma de como vemos o relacionamento entre a Terra e a economia. Devido à relação entre a economia e os ecossistemas naturais (o planeta Terra), estes, ultimamente, vêm sofrendo uma dilapidação sem precedentes, colocando em risco a sobrevivência dos sistemas naturais mais importantes para a própria vida do homem. Isso se deve ao modelo econômico vigente, ou seja, uma conseqüência de como os economistas vêem os ecossistemas naturais (meio ambiente), incluindo o próprio homem. E como é esta visão, como se dá esse pensamento segundo a ideologia vigente na economia mundial? Uma grande parte dos economistas considera os ecossistemas como subconjunto da economia, como se os ecossistemas naturais é que dependessem da economia. Isto criou uma economia fora de sincronia, uma vez 126 que não leva em conta a verdadeira realidade dos sistemas naturais dos quais ela é totalmente dependente, não considera a relação entre taxa de utilização dos recursos naturais e sua capacidade de regeneração. O modelo vigente está voltado a atender o mercado, que traz como verdade a lógica da acumulação e da concentração de capital, gerando cada vez mais distorções e proporcionando o agravamento da desigualdade social. Esta lógica tem como principal objetivo a produção em escala, a maximização do lucro e a minimização dos custos privados, gerando assim sérias externalidades aos ecossistemas naturais. Os economistas, principalmente, os que defendem a ideologia vigente, pensam de forma linear e não em ciclos, ou seja, recursos–produção–consumo– acumulação, em uma escala cada vez crescente, reforçando a linearidade, na medida em que o inicio do processo só é retomado com objetivo de aumentar o tamanho da escala. Este pensamento linear (neoclássico) se preocupa com crescimento econômico, indefinidamente , como se os recursos não fossem finitos ou limitados. Isto tem levado a uma economia que não pode sustentar o progresso econômico, uma economia que não pode nos conduzir ao destino desejado. Da mesma forma que Copérnico teve que formular uma nova cosmologia astronômica após várias décadas de observações e cálculos matemáticos, nós também devemos formular uma nova cosmologia econômica, baseada em várias décadas de observações e análises ambientais. (BROWN, 2003). Embora o conceito de que a economia deva estar integrada à ecologia possa parecer radical para muitos, provas se acumulam indicando que esta é a abordagem que mais se aproxima da realidade complexa. Para que a economia esteja integrada à ecologia há que romper com essa idéia equivocada de imaginar a prática econômica desvinculada da realidade dos sistemas de apoio (sistemas naturais). A ideologia do modelo econômico vigente, mesmo que defenda o contrário, tem na sua práxis um pensamento linear, onde não existe espaço para uma relação dialógica entre sistema natural (ecossistemas) e economia , uma vez que as práticas econômicas são desenvolvidas como se elas não dependessem dos sistemas naturais, como se, num passe de mágica, os bens de consumo surgissem do nada, ou seja, os ativos ambientais não são contabilizados nos custos de produção e daí decorre toda causa da depleção, degradação dos sistemas naturais. A linearidade deste modelo não permite uma relação recorrente e hologramática entre sistema econômico e sistemas naturais, uma vez que não há interdependência em decorrência do não reconhecimento das interações existentes dentro de cada sistema natural e com o sistema econômico e social. Em um pensamento que considera as complexidades das interações existentes dentro e entre os sistemas naturais e econômicos há possibilidade de que um seja sustentado e ao mesmo tempo sustentar o outro, já que o econômico está dentro do natural que se insere no econômico. O esquema ilustra muito bem a relação de circularidade, o que nos permite entender porque os sistemas naturais em ultima instância constituem o fosso de 127 regeneração dos resíduos provenientes da atividade econômica, e isto faz com que sempre esbarraremos na impossibilidade natural de reciclar em cem por cento tais resíduos. Isto nos remete às leis da Termodinâmica, ou mais especificamente à lei da Entropia e ao Teorema da Impossibilidade, segundo o qual é impossível sair da pobreza e da degradação ambiental através do crescimento econômico indefinido, rotulado às vezes de crescimento sustentável. Para muitos, crescimento tornou-se sinônimo de aumento de riqueza. Argumentase que precisamos ter crescimento para sermos ricos o bastante para arcar com o custo de limpar e aliviar a pobreza. O problema é se o crescimento da margem atual realmente nos torna mais ricos. Há evidências de que nos Estados Unidos o crescimento tem tornado as pessoas mais pobres, aumentando os custos mais rapidamente do que aumenta os benefícios (DALY, 2004). Uma economia em desenvolvimento sustentável adapta-se e aperfeiçoa-se em conhecimento, organização, eficiência técnica, e sabedoria; ela faz isso sem assimilar ou acrescentar uma percentagem cada vez maior de matéria-energia do ecossistema para si, mas antes, se estabiliza numa escala onde a taxa de utilização dos recursos naturais seja equivalente à capacidade de regeneração, ou seja, num ritmo em que a neguentropia alcance um novo equilíbrio, evitando que muitos ecossistemas sejam irreversivelmente degenerados. Portanto, o grande desafio da sociedade hoje é a quebra do paradigma atual, fundamentado na ideologia do mercado como o grande propulsor da economia mundial. Porém, o mercado só conhece uma verdade que é a acumulação de capital à custa da depleção do capital natural, o mercado não conhece a verdadeira complexidade que permeia as relações entre ecossistemas e as atividades econômicas. Portanto, vale observar que quando observações e experiências não mais apóiam a teoria, é chegada a hora de mudar a teoria – o que o historiador científico Thomas Kuhn chama de mudança de paradigma. A mudança de paradigma requer muito mais que mudança de teorias e discursos, uma vez que todo paradigma é não falsificável, enquanto as teorias o são. O paradigma dispõe do princípio da autoridade axiomática, do princípio da exclusão, é invisível e invulnerável, está recursivamente ligado aos sistemas de idéias que ele gera. Um grande paradigma, determina via teorias e ideologias, uma mentalidade, uma visão de mundo, e é por isso que uma revolução paradigmática modifica nosso mundo (MORIN, 1991). É nesse sentido que, se quisermos uma mudança de paradigma nas relações da economia corrente com os sistemas naturais, precisamos não apenas de novas teorias, mas atacar o paradigma vigente em seus núcleos geradores de ideologias e culturas, ou será que teremos de esperar por outro Copérnico? Se não formos capazes de operar estas mudanças corremos um sério risco. A visão Copernicana se deu contra uma visão que impedia o avanço da ciência, porém, o que hoje está em jogo é a luta por mudanças que permitam a continuidade da vida. Referências Bibliográficas BROWN, L. R., Construindo uma Economia para a Terra. UMA- Salvador,2003. 128 DALY, H. E. Ambiente & Sociedade- Vol. II No 2, 2004. MORIN, Edgar , O Método Vol. I I e IV PEARCE , D. W. e Turner, R. K. , Economía de los recursos Naturales y del Medio Ambiente, Madrid, 1995.