Untitled - Boca Santa

Transcrição

Untitled - Boca Santa
para Ivonete
UM BELO DIA
- Olá, Ivana. Bom dia.
- Bom dia...
- Camila.
- Bom dia, Camila.
!
11
9!
PLIM
Um silêncio de aproximadamente vinte
segundos enquanto Camila pendura suas
coisas nos ganchos da parede, a bolsa,
o casaquinho.
- E então, o que vamos fazer hoje?
- Bem... Hoje vai ser perna inteira
e axila.
- Fica à vontade, vou ali pegar a cera.
Camila foi tirando a roupa em câmera
lenta e pendurou cada peça nos ganchinhos. Depois deitou na maca com os
braços pra cima, calcinha e sutiã, e ficou
esperando. Ivana espionou a cliente pela
porta entreaberta da cabine. Foi lá na sala
dos fornos e pegou a cera.
13
- Desculpa a demora, a cera estava fria.
Ivana apoiou o panelão de cera na estante, ligou o ventilador e respirou fundo.
Ivana tremia um pouco, assim, já.
- Primeira vez aqui? Ou você fazia com
outra?
- Pois é. Nunca tinha vindo, mas sempre
passava na frente. Vim experimentar. Minha depiladora mudou pra Guarulhos.
- Hammm. Muito bem.
O silêncio das recém-conversas.
Na cabeça da Ivana começou a tocar Ana
Carolina.
- E sempre que passava aqui na frente
pensava “poxa, vou experimentar fazer 14
depilação aqui um dia, parece uma
graça de lugar”.
- Ah, aqui é uma graça mesmo. A proposta da dona era fazer um salão não
convencional. Acho que o barulho de secador incomoda muita gente.
- Nem fale, sempre odiei salões por isso. E pelo monte de mulher enxerida que
fica te olhando e comentando.
- Ai, também detesto mulher enxerida.
Tem várias.
- E acho que aqui tem mais ainda, né?
Não dá pra escapar. É muita mulher junta! Não sei como você aguenta trabalhar
assim todos os dias.
- Eu gosto. Assim, entre nós, que trabalhamos aqui, não tem muita treta não,
muita fofoca. E a gente precisa comer, né,
todas se ajudam. O foda é as cliente.
- Muita cliente chata?
15
- Tem umas insuportáveis. Tem uma
que todas nós fugimos dela. Quando ela
liga pra marcar, todo mundo fala que não
pode. Teve caso até de depiladora se
esconder ali no quartinho de descanso
quando ela chega.
- Hahahaha, por quê? Muito pelo?
- Antes fosse. Muita frescura isso sim.
A mulher vem aqui toda semana e não sai
da cabine até ver que não sobrou nenhum
pelinho. Coisa assim de tirar a pinça da
nossa mão e sentar arreganhada na maca
pra caçar pelo. Caçando pelo e a gente
olhando, dizendo que não tem mais pelo
aí, dona.
- HAHAHAHAHAHA, gente.
- É, minha filha. Nunca vi isso não. Assim, tirar pelo toda semana. A gente tira
todo mês, né. Ou quinze em quinze. Mas
toda semana? Os pelo nem cresce direito.
16
- Pois é! Aiaiaiai, essa é a parte que
mais dói.
- Tá, vou esperar a cera secar mais.
Mas já estamos acabando. Não vai fazer
virilha não?
- Hoje não. Da próxima vez, faço.
- Faz sim, te deixo limpinha.
- !. Hoje estou um pouco corrida, mas
volto logo mais.
- Ótimo, acabamos. Só vou passar o
óleo calmante.
Ivana massageou as pernas de Camila.
Ivana massageou as axilas de Camila.
Pensou: axilas de Camila. Axila, Camila.
17
IVANA ACHOU QUE ESSE
SERIA APENAS MAIS UM
DIA COMUM DE TRABALHO,
QUANDO DE REPENTE
(toc toc toc)
- Oiê, voltei!
Ivana estava mexendo no celular, olhou
pra porta e o celular da Ivana caiu no
chão, instantaneamente, assim como seu
queixo, e sua pressão.
- Aiiiii, te assustei, Ivana? Desculpa.
- (ela lembrou meu nome) Nada não,
estava distraída, aqui, mexendo. Tudo
bem?
19
- Tudo! Nossa, você tá pálida. Quer uma água? Vou ali embaixo buscar.
(ninguém nunca buscou uma água
pra mim)
Ivana se recompôs e ajeitou o cabelo no
espelho. Você está bonita, Ivana.
- Aqui ó. Bebe.
- Obrigada, flor. To lesa hoje.
- Hahaha, to vendo.
- Vamos lá. Vai fazer o quê?
- Axila de novo, se der o comprimento.
E virilha.
- Virilha cavada, completa ou faixa?
- Como é cada uma?
- Cavada é cavada, é só pra tipo, não
sair pelo pra fora do biquíni. Completa é
tudo tudo, em cima e nos lábios, e dentro.
Fica lisinha. De menina.
20
- Ai, eca. E faixa?
- Faixa é dos lados e embaixo, deixa aquele bigodinho Hitler na testinha.
- Hmmm. Vou de cavada, normal.
- Sem ousadias...
- Exato. Arroz-feijão.
- Papai-mamãe. Hahaha. Então deita
aí e tira a roupa. Volto já.
- Tiro a calcinha?
- Não, pra fazer a cavada não precisa.
Ivana espionou – Ivana esperou mais de
quinze dias para espionar alguém. Alguém tinha de ser Camila. Ela voltou com
o panelão, mas tremia tanto. Apoiou na
mesa o panelão, e na testa, sua mão.
Camila, aquela visão. Deitada na maca de
barriga pra cima, os dois braços estendidos, as pernas levemente abertas. Sem
sutiã hoje, só de calcinha.
21
- Ai, hoje é dia de sofrer muitão!
- Nossa, menina, quanto tempo faz que
tu não te depilas?
- Hahaha, uns três meses. É que cresce
muito, e eu não costumo ir à praia, então
não faço sempre.
- Ah, mas é bom fazer, né. Deixar
limpinha, ficar gracinha. Ó. (beijinho
na mão)
- É, é bom mesmo, e meu noivo
sempre pede.
Uma gota gorda de cera cai da espátula
bem em cima da calcinha de Camila.
- Eita!
- Ai, Camila, pingou aqui, menina. Espera, não se mexe! Vou pegar uma toalhinha úmida para tirar essa cera.
22
Ivana sai correndo da cabine, no semichoro. Ela vai me odiar pra sempre. Ela
não volta nunca mais. Volta Ivana arrependida, e no semipranto começa a
passar a toalhinha úmida em cima da calcinha de Camila, friccionando de leve,
depois mais forte, sem perceber. Camila,
a constrangida.
- Tudo bem, Ivana, tudo bem – espantando as mãos de Ivana – depois
eu lavo a calcinha e fica tudo bem, isso
aí sai.
Ivana não parou assim tão logo.
- Vai, pode terminar, deixa isso pra lá.
- Desculpa mesmo, Camila, foi sem
querer. Caiu a gota aqui.
23
- Tudo bem, tudo bem. Vamo logo,
Ivana, vamo logo que eu tenho que ir
almoçar com minha sogra.
- Mas você. Me odeia pra sempre?
- Claro que não! To aqui deitada sem
roupa pra você, Ivana.
- Desculpa pela calcinha. Você vai
voltar?
- Claro que sim.
- Ok, estamos terminando. Vou só passar o óleo calmante.
Ivana passa óleo calmante na virilha de
Camila. Camila, virilha.
24
DEPOIS DE UM MÊS SOLITÁRIO,
DE UM MÊS DESOLADO
(toc toc toc)
- Mas me deixa, Daiane, oxe mulher
irritante.
- Ei, eu?
- Gata! Você voltou! Deita já aqui.
- Hahahaha, Ivana. Tudo bem? Faz
um tempinho, né?
- Mais de mês. Achei que você não
vinha mais. Por causa da cera derramada.
- Não, Ivana. Não vou chorar sobre a
cera derramada (sic). Além disso, você
me deu sorte.
- Deu sorte, é?
- É. Eu estou noiva há algum tempo,
sabe? E naquele dia fui almoçar com
27
Richard, meu noivo, e a mãe dele, dona
Célia, uma chique mulher.
- Ai, e aí?
- E aí que... MARCAMOS A DATA. Vamos nos casar na primavera! Logo, logo.
Resolvemos fazer tudo às pressas, sabe
como é. Correr de um lado pro outro, ver
vestido, bifê.
- Muito bem. Parabéns, Camila.
Ivana de cara fechada e em silêncio.
- E o que você vai depilar hoje?
- Hm, vamos lá. Preciso fazer a perna
toda, a axila e a virilha de novo. Como
cresce rápido, né?
- Qual virilha?
- A básica. Cavada.
- Ok, vou pegar a cera. Se apronta aí.
- Sim senhora.
28
Olhar
gem.
Ivana era sepulcral.
- Ivana, tá tudo bem? To te achando
- Nem tem namorado, Ivana?
mau-humor.
Olhar fumegante de Ivana.
-
29
- Bem rico.
- Hm.
- É corretor de ações. Um homem de
negócios.
- Ótimo. E ele cuida bem de você?
- Ele é um príncipe.
- Então é hora de você cuidar direitinho dessa princesinha aí embaixo, né?
- Hahahahaha. (Camila ri, Ivana fica
séria.)
- Sério, Camila. Se seu noivo é um
homem de negócios, ele não deve gostar
de xereca peluda, certo?
- Ah, ele já reclamou algumas vezes,
mas eu não ligo não. Ficar com xota de
criança é que eu não vou.
- Fica uma graça.
- Ai, Ivana, para.
- É sério. Fica maciazinha.
(beijinho na mão)
- Eu acho de muito mau gosto.
30
- Bem. Sabendo que seu noivo é um
homem de negócios, posso te garantir
que ele vai pirar quando ver sua xereca
sem pelos.
- Você não sabe nada sobre meu noivo, Ivana. Ele é um homem bom e distinto. Não vai me forçar nunca. Ele gosta
de mim como sou. Ele não gosta de mim
apenas por minha vagina.
- Ai, Camila, tá bom. Ó, tá feita aí sua
depilação comum na sua vagina comum.
Se veste aí. Pega tua roupa e se manda.
- Nossa, Ivana. Que bicho te mordeu
hoje, hein? Tá loco, meu.
- Eu aqui te dando dicas. Você, me
esnobando.
- Queridinha. Na na na. Da minha
xana cuido eu.
31
Camila pega a bolsa e a pendura no ombro. Camila calça o tamanquinho. E sai
porta afora.
- Não nesta sala! - grita Ivana, e suspira Nesta sala, da sua xana, cuido eu.
32
A RECONCILIAÇÃO
- Oiê.
- Ai, Camila, que bom que você voltou.
Achei que nunca mais ia te ver. Vamos,
deite-se aqui.
- Sua bobinha. Claro que eu voltei. Eu
te escolhi, Ivana. E já faz mais de um
mês. A pequenina lá embaixo está implorando pra te ver.
- Hahahaha, besta. Vai, se apronta,
deita. Eu vou pegar a cera.
Ivana flutuou saltitando até a sala da
cera. Ela flutuou tanto que seu croc rosa
falseta escapou do pé. Ela deu uma espiadinha de leve: o corpo branco de Camila
na maca. Um corpo muito branco. As pintas. Calcinha, Camila. De renda branca.
35
- Veio vestida de noiva hoje, foi?
- Ai que saudades Ivaninha.
- Camila, desculpa aquele dia. Eu estava muito chateada com um problema. E
com dor de cabeça.
- Tudo bem. Sou mulher também, né?
Eu sei como os problemas deixam a gente, vez ou outra. E tem AQUELES dias
né? Mas olha. Se quiser conversar, estou
aqui. Quer me contar o que aconteceu?
- Camila, você é boa.
-!
- Sério, você é uma mulher boa. Eu
sempre soube. Tenho certeza que você
nunca vai saber o que é um amor triste.
Eu torço por isso. Que você seja feliz. Que
o seu amor.
- Ô, Ivana. Sabia que era isso. Sempre
o coração. Mas olha, você é especial. Com
certeza vai encontrar um cara legal.
- Não vou não.
36
Camila olha nos olhos de Ivana. As duas
em silêncio. Ivana pisca primeiro.
- O que vamos fazer hoje além da
virilha?
- Perna e axila. Kit completo.
- Firmeza.
- Ahm, Ivana...
- Fala, princesa.
- Vou fazer uma virilha diferente hoje.
Vou fazer a bigodinho de Hitler.
- Hm, muito bem. Vai ficar ótima na
sua vagina.
- Tiro a calcinha?
- Tira. Quer dizer – nã-não precisa.
- Ok.
- Preparada?
- Ai, mais ou menos. Vai com carinho.
- Relaxa, mulher. Vai ficar linda.
!
!
!
37
- Oi, Ivaninha bem-querer.
- HA! Camila, tava falando de você agorinha mesmo aqui pra Daiane. Tava falando do seu casamento, do seu noivo, do
- Aiiiiie. Nem me faleeeeeeeee. Hoje eu
pra tirar os pelo do suvaco. Meu noivo e minha sogra vêm me
buscar em 20 minutos. Vamos provar os
docinhos.
- Ai, menina, vai. Essa
se mete em
tudo.
- Que coisa mais chata.
-
39
meu vestido, que eu queria ir só com a
minha mãe, tipo mãe e filha, ela se meteu.
- Ah, que lástima. Mas ela é chata? Tipo, nojenta?
- Não. Ela só quer ajudar, tadinha.
- Muito ajuda quem não atrapalha, né?
- Nossa, Ivana, que figuraça você é.
- Sou?
40
UMA VISITA DEPOIS
- Já voltou foi?
- Hahaha. Já. Como foi só a axila semana passada, vim cuidar do resto hoje.
- Tendi. Perna e virilha?
- Isso.
- Virilha completa?
- Não, Ivana, sua danadinha.
- Ai, cavada só? Arroz-feijão?
- SIM, IVANA. PAPAI-E-MAMÃE.
- Hahaha, você fica ótima de qualquer
jeito. Vou lá buscar a cera. Deita-te.
Ivana passou uns 15 minutos “buscando
a cera”.
- Volte-ei. Tá pelando isso aqui. Vou
pôr. Se queimar, me avisa.
- Ai, tá quente mesmo.
- Vamos esperar um pouco mais.
41
?
- Escolhi. Estava tudo muito bom. Amo
docinhos.
tudo bem com a sogra?
- F
light aquele dia.
- Que bom, que bom.
- E você? Como passou a semana?
aconteceu.
- Ai. Conta!
- Engoli um pelo.
- Oi? Engoliu um pelo? Como assim, Iv?
- Engoli, menina. Tava depilando uma
vagina e de repente o pelo entrou na minha boca e entalou na minha garganta.
Pode isso?
- Pois sim. Fiquei sentindo o pelo ali ar-
42
comi maisena pra ver se ele saía. Mas não
saiu. Bebi água até.
- Então você está com um pelo entalado
na garganta neste exato momento?
- Não, né. Isso foi quarta. Ele já saiu.
- Uia! O que você fez pra sair?
- Não sei, ele saiu.
- Ah, Ivana. Como assim?
- Sério, menina, engoli o pelo e o pelo
não saía. Daí Daiane falou preu comer
maisena que a maisena tirava.
- Gente, mas como a maisena tira um
pelo na garganta?
- Sei lá, gruda.
- Que nojo, Ivana.
- Ah, normal engolir pelo. Quer dizer,
sou depiladora. Pode acontecer.
- Eca, que nojo.
43
- Ai, Camila, para de ser princesinha.
Engoliu pelo engoliu pelo – vai fazer
o quê?
44
A PRIMAVERA SE APROXIMA
- OIÊÊÊ.
- QUE SUSTO, MULHER.
- HAHAHAHAHAHA.
- OXE, SEMPRE QUE VOCÊ CHEGAR
VAI ME DAR SUSTO?
- É meu jeitinho.
- Tá bom, Camila. Você sabe que pode
fazer o que quiser.
- Ain, Ivana. Você falou igual meu noivo agora.
- Haha – sabia. Você tem jeito de princesinha, Camila.
- Ahm, bem, hoje eu vou fazer a virilha e a axila. Se o comprimento do pelo
der, vou fazer a perna também.
- Tomou coragem da virilha completa?
Hm? Bora ficar peladinha?
47
- Deus é mais, Ivana. Hitlerzinho pode ser.
- Tá. Que coisa, quando é que tu vai
me ouvir?
- Não vou ouvir nada, Ivana. Não vou
tirar todos os pelos da minha vagina,
ouviu bem?
- Tá, tá bom. Mas seu noivo ia adorar.
- CLARO QUE IA, IVANA. TODO HOMEM SONHA COM XECAS PELADAS.
- Ai, calma. Não tá mais aqui quem
falou.
- Que coisa! Toda vez que eu venho
aqui é essa mesma discussão. E nem vem
que hoje eu to de ovo virado, hein.
- Xiiiii. Que aconteceu? Me conta, menina. Ah, já sei: não aguenta mais olhar
pra essa xana peluda.
- Não, nada disso. Na verdade eu não
sei direito. É o Richard, meu noivo. Está
48
esquisito. Distante, sabe? Parece que não
quer mais. Mal fala comigo.
- Mas por quê?
- Não sei, meio sem razão. Eu acho
que tem alguma coisa errada. Acho que
ele não quer mais casar.
- Ô menina, isso acontece direto, viu. A
Daiane mesmo. O homem fugiu, fugiu
com uma menina de 19 anos duas
semanas antes deles casarem.
- Ai, Ivana, vira essa boca.
- Ai, só to te contando da Daiane. Não
vai ser igual com você. Claro que não.
Você é uma princesa – não vai ter um
amor triste.
- Tenho tanto medo, Ivana. Eu amo
muito o Richard. (lábios de Camila tremendo e olhos lacrimejando. Muitas
mulheres já choraram para Ivana, e
vice-versa.)
49
Ivana aproveitou o momento para lambuzar de cera, por dentro, as coxas de
Camila. Camila estava ali deitada, sem
roupa, com a calcinha enfiada entre os
grandes lábios e as pernas abertas, arreganhadas. Ivana babou sem querer
enquanto Camila chorava.
- Pera, menina. Vou pegar um lenço
pra você. E uma água. Fica aí.
Ai, Jesus.
Um minutinho depois.
- Toma, Camila. Se enxuga e assoa
esse nariz. Vai. Vai ficar tudo bem. (Ivana
nunca tinha encostado a mão na testa de
uma cliente antes. Fez carinho na testa
de Camila.)
50
- Obrigada, Ivana. Obrigada. Eu não
tenho ninguém com quem conversar,
sabe? Minha mãe vive muito ocupada e
minhas amigas sumiram. Eu só tenho o
Richard.
- E eu. Você tem a mim.
- ...
- Vamos terminar isso, então? Vai, me
conta. Hoje vai ter algum preparativo do
casamento?
- (fungando) Acho que vamos mandar
os convites.
- Já? Tá vendo, Camila? Vai ficar
tudo bem.
- Vai, né? Deve ser paranoia minha,
sei lá.
- Às vezes os homens têm muito medo
de se casar. Não são assim, destemidos
como nós, mulheres. Conversa com ele,
51
conversa com calma. E pergunta o que
está acontecendo.
- É. Vou preparar um jantar hoje.
- Isso. Vai ficar tudo bem.
- Ai Ivana, muito obrigada. Você é especial.
- Aiiiii. Sabe o que você pode fazer?
- O QUÊ?
- Depilação completa na virilha. Ele
vai adorar. Vai querer casar na hora.
52
UM MÊS
- (pianinha) Oi, Ivaninha.
- Haha. Voltou!
- E dessa vez não te dei susto.
- Fico muito feliz.
- Vamos acabar com esses pelos que hoje será um dia importante: vou provar meu
vestido. É a última prova. Falta um mês,
Ivana. Um puto dum mês!
- Que beleza, hein?
- Nossa, nem fale.
- Então você resolveu os problemas com
ele?
- Problemas?
- É. Da última vez que você veio aqui
você disse que ele tava estranho e tal.
57
- Ah, sim! Bem, conversamos, né... Eu
preparei um jantar e chamei ele pra
conversar.
- E aí?
- Ah, eram problemas nos negócios. Ele
estava nervoso com uns acionistas e clientes. Muito complicado esse mercado
financeiro. Ele me explicou, e disse que já
estava resolvendo tudo. Ficou tudo bem.
Jantamos e depois transamos como cães.
HAHAHA.
- Ai, Camila. Isso é jeito?
- Ai, nem vem ser princesinha você. Que
hoje eu to feliz.
- Hahaha, perfeito. Então vamos cuidar
da bonequinha aí embaixo.
- Vamos!
- Deita aí. Já venho.
Ivana espionava e chorava. Cães.
58
- Pronto, minha flor.
- Vai ser virilha, perna e axila. Tudo,
de novo.
- Maravilha. (fungada)
- Oxe, que foi, Ivana? Tava chorando?
- Não, um cisco acho.
- Hahaha. Um pelo no seu olho.
- (funga-funga) Pois é, ossos do ofício.
- Camila, já que você está feliz, e eu
estou triste, posso te pedir uma coisa?
- Claro, nêga. O que você quiser.
- Vamos depilar completa hoje?
- Oh, God.
- Por favor. Toda vez que eu faço isso
nas clientes, elas amam. Resistem, resistem, mas amam. Eu estou muito chateada
hoje, Camila. Eu queria ter a chance de
fazer você feliz com essa depilação. Me
faria muito bem. Eu prometo que você vai
gostar. (fungada da chantagem.)
59
- Posso pensar?
- Pode. Enquanto isso, vou fazendo a
axila e as pernas.
- Tá bom.
(3 minutos depois)
- Tá bom, eu disse tá bom.
- Tá bom o quê, gata?
- Pode depilar.
- Sério, Camila?
- Sério. Não tenho nada a perder, não
é mesmo? Só os pelos.
- Haha.
- E também, acho que o Richard vai
gostar. Estou querendo que ele aprove um
Cadillac para me levar pra igreja na hora
do sim. Ai, ai. Pode ser uma boa.
- Sério mesmo, Camila?
- Sim, Ivana. Enche minha xeca de cera. Manda ver.
60
...
- Nossa, doeu menos do que eu imaginava.
(Ivana com um espelhinho)
-Viu só? Ficou um arraso. Ficou show.
- Ivana, obrigada.
- Obrigada a você, flor. Pera, pera –
não levanta ainda.
- O quê?
- Fica aí deitada. Vou passar o óleo
calmante.
- Tá.
- Vish. Peraí que vou lá buscar.
Ivana foi até o banheiro rapidinho, ver se
tava com bafo. Soltou o cabelo, se arrumou. Ivana pegou o óleo adormecente
que comprara em um sex shop. Camila,
você é minha.
61
Ao entrar na sala, Camila não percebeu a
mudança na fisionomia de sua depiladora,
pois estava mexendo em seu iPhone. Foi
então que Ivana, quase em completo silêncio e com todo o carinho, começou a
passar o óleo na xequinha da Camila.
62
É PRIMAVERA
- Alô?
- Ivana, sou eu, Camila.
- Oi, gata.
- Ivana, eu tive uma ideia. Quero saber
se você topa.
- Topo, mas. Fala.
- Meu casamento é semana que vem.
- ...
- Vou passar o dia da noiva num hotel
nos Jardins, pra me arrumar. Fazer
cabelo, maquiagem. Depilação.
- E?
- Bem. Pensei se você não quer ir comigo pro hotel, cuidar de mim.
63
FIM
Juliana Amato nasceu em 1987.
Escreveu o Brevida, lançado em 2011 pela Edith, e o Microclima, na internet há
algum tempo. Participou de coletâneas em
SP e RJ, como a Granja, Modo de Usar e
É Assim que o Mundo Acaba. Observa,
coleciona, escreve.
Mariana Coan desenha, pinta, cola,
picota papel e já teve trabalhos publicados em uma porção de livros, revistas e afins. Atualmente vive e trabalha
em Berlim.
JEZEBEL
Carniceria Livros
A Oficina do Santo
texto:
Juliana Amato
desenhos:
Mariana Coan
edição:
Luis Rafael Montero
projeto gráfico:
Carniceria Livros
João Gabriel Monteiro
revisão:
Carniceria Livros
BOCA SANTA
idealização:
Luis Rafael Montero
realização:
Carniceria Livros
A Oficina do Santo
design:
Juneco Martineli
João Gabriel Monteiro
fotos e vídeos:
João Gabriel Monteiro
Felipe Schürmann
Vinicius de Oliveira
A Oficina do Santo
programação do site:
Guilherme "Nabo"
artistas:
Juliana Amato, Mariana Coan, Raphael Gancz,
Fernanda Grigolin, Isadora Krieger, Lobot,
Bruno Maron, Pedro Mattos, Daniel Minchoni,
João Gabriel Monteiro, Luis Rafael Montero,
Mario Neto, Nelson Provazi, Maria Ribeiro,
Felipe Valério.