Anais: Seminário Nacional População em Situação de Rua

Transcrição

Anais: Seminário Nacional População em Situação de Rua
ANAIS
,
SEMINARIO
NACIONAL
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,..
POPULAÇAO EM SITUAÇAO DE RUA
ISSN: 1984-3461
14 de novembro de 2008
Volume 1 Número 1
Universidade Federal de São Carlos
São Carlos/SP
Organização
Norma E L. S. Valencio
Angélica A. Cordeiro
cubomullimidia
Universidade Federal de São Carlos
REITORA EM EXERCÍCIO
Maria Stella Coutinho de Alcantara Gil
PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO
Maria Luisa Guillaumon Emmel
REITOR
Targino de Araújo Filho
PRÓ-REITOR
Marina Silveira Palhares
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO CARLOS
Newton Lima Neto
Prefeito
SECRETARIA MUNICIPAL DE CIDADANIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL
Maria de Fátima Piccin da Silva
Secretária Municipal de Cidadania e Assistência Social
Projeto gráfico e montagem do livro
www.cubomultimidia.com.br
APRESENTAÇÃO
No Brasil, há um contingente significativo de pessoas em situação de rua.
Esse fenômeno revela, de um lado, os desafios estruturais que o país vive para
garantir a cidadania dos que estão à margem dos benefícios engendrados pela alta
modernidade; de outro, a invisibilidade social dos que padecem sem meios de
prover suas mínimas necessidades vitais e sociais.
Ante um contexto mais geral de indiferença social frente às agruras vividas
cotidianamente pelo grupo, cientistas, movimentos sociais e frações do Estado
mobilizam-se para discutir a questão e propor Políticas públicas para suplantar
esse estado de coisas.
O Seminário Nacional População em Situação de Rua: Perspectivas e
Políticas Públicas pretende constituir-se como um dos espaços plurais de debate
do tema, congregando diversos segmentos da sociedade para a vocalização e conjugação de experiências sociais e governamentais bem como de reflexões acadêmicas, visando à promoção de um olhar voltado para o fortalecimento da cidadania
da população em situação de rua.
O tema proposto alinha-se com o recente Sumário Executivo: Pesquisa sobre
População em Situação de Rua, publicado em abril de 2008 e realizado pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, que traçou um perfil da população vulnerável e demonstrou a necessidade de ações imediatas, públicas e/ou privadas.
Diante disso, o evento se propõe, de maneira dialógica e multidisciplinar, a
abordar a questão por meio de palestras, mesas redondas, relatos de experiências
e pôsteres, abrindo-se, em âmbito nacional, ao público em geral.
Targino de Araújo Filho
PROGRAMAÇÃO
•08:00 | Credenciamento
•08:30 | Abertura
Prof. Dra. Maria Luísa G. Emmel [Ex-PróReitora de Extensão/UFSCar]
Prof. Dra. Marina S. Palhares [PróReitora de Extensão/UFSCar)]
Maria de Fátima Piccin [Secretária Municipal de Cidadania e Assistência Social
de São Carlos]
•09:00 | Palestra | Pessoas em situação de rua: da intolerância à inclusão
social
Valéria Maria de Massarani Gonelli [Diretora do Departamento de Proteção Social Especial/Ministério
de Desenvolvimento Social e Combate à Fome]
•09:30 | Palestra | Avanços e retrocessos das políticas para a população em
situação de rua
Anderson Miranda [Movimento Nacional População em Situação de Rua/SP]
•10:00 | Sessão de Pôsteres
•10:30 | Mesa Redonda | População em situação de rua: vida social e relações com o espaço público
Prof. Dra. Maria Cecília Loschiavo [USP]
Prof. Dra. Delma Pessanha Neves [UFF]
Coord. Prof. Dra. Norma Valêncio [UFSCar]
•12:00 | Almoço
•14:00 | Mesa Redonda | Experiências de gestão municipal e depoimentos
Luciano M. Freitas de Oliveira [Sec. Municip. de Inclusão Social e Cidadania]
Vivian F. Silva e Ana Laura Herrera [Sec. Municip. de Cidadania e Assist. Social/São Carlos]
Adauto Santiago - São Carlos
Carlos Eduardo Albano - Araraquara
Paulo Luciano da Silva - São Carlos
•15:00 | Sessão de Pôsteres
•15:30 | Pesquisas recentes
Ms. Daniel de Lucca [Pesquisador CEBRAP/CEM]
•17:00 | Encaminhamentos e Encerramento
COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dra. Maria Luísa G. Emmel
Prof. Dra. Clarice Cohn
Dep. Ciências Sociais/UFSCar
Prof. Dra. Norma F. L. S. Valencio
Dep. Sociologia/UFSCar
Prof. Dra. Norma F. L. S. Valencio
Angélica A. Cordeiro
Ana Laura Herrera
Prof. Dra. Roseli Esquerdo Lopes
Dep. Terapia Ocupacional/UFSCar
Bruna S. Sanches
Elaine Maria B. R. Guerreiro
Juliana Sartori
Prof. Dra. Vera Alves Cepeda
Dep. Ciências Sociais/UFSCar
Karina Granado
Lara Padilha Carneiro
Luciano M. Freitas de Oliveira
Maria Cristina Mathias
Rosemeire Gallo Meca
Vivian F. Silva
Apoio:
SAEP
Prefeitura Municipal de São Carlos
Secretaria Municipal de Cidadania e
Assistência Social
SUMÁRIO
Artigos
A experiência da casa resgate vida no processo na construção do resignificado do ser e pertencer de
moradores em situação de rua............................................................................................................................... 1
A (re)construção da identidade social da população em situação de rua da cidade de Marília................... 6
Antropologia, extensão universitária e políticas públicas: debate sobre a política para crianças e adolescentes em situação de rua em Campinas............................................................................................................13
Centro de acolhimento e atendimento mais viver: o desafio de uma nova abordagem para os moradores
de rua adultos em curitiba....................................................................................................................................21
Design, deslocamento e população de rua.........................................................................................................31
Desterritorialização e Desfiliação Social: uma reflexão sociológica sobre ações públicas junto à população em situação de rua1........................................................................................................................................41
Família e comunidade: repensando intervenções com crianças e adolescentes em situação de rua..........51
Incoerência e fracasso: estudo de caso sobre a inserção precária de um morador de rua na
cidade de Juiz de Fora/ MG..................................................................................................................................61
Na Rotina do Previsto: “drogas” e cotidiano de “meninos e meninas de rua” da cidade de Campinas......67
O corpo em movimento: uma etnografia da corporalidade dos trecheiros de São Carlos..........................77
O processo de organização política da população em situação de rua na cidade de São Paulo: limites e
possibilidades da participação social...................................................................................................................87
O psicólogo de instituição sócio-educativa para pessoas em situação de rua: um estudo sobre sua identidade..........................................................................................................................................................................98
Perspectivas do administrador público nas políticas públicas do serviço social na Casa Transitória de
Araraquara............................................................................................................................................................108
Perspectiva da criança em situação de rua.......................................................................................................115
Pessoas em situação de rua no Município de São Carlos-SP.........................................................................122
Políticas públicas e homelessness: uma discussão conceitual sobre a pobreza............................................129
Políticas públicas para a população infanto-juvenil em situação de rua: tensões entre os discursos e as
práticas institucionais e sua população-alvo....................................................................................................136
População de rua: um estudo sobre a condição e os significados da vida na rua no município de Balneário Camboriú (SC).........................................................................................................................................146
Proposta de modelo de atenção à saúde para a população em situação de rua...........................................154
Trabalho voluntário em prol da população em situação de rua: o caso do Posto de Rua “Eurípedes Barsanulfo” no Município de São Carlos-SP..........................................................................................................162
Violência como herança da exclusão social: Crianças e adolescentes em situação de rua na Cidade do
Rio de Janeiro...................................................................................................................................................... 170
Vivendo no trecho: um ensaio etnográfico sobre “moradores de rua”.........................................................180
Mesas
Experiência de Gestão do Município de Araraquara para a População em Situação de Rua....................190
Experiência de Gestão Municipal Atendimento a Pessoas em situação de rua. São Carlos – 2008.........197
Vidas de rua em jogo Políticas Públicas, Segurança e Gestão da População de Rua em São Paulo..........209
SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
A experiência da casa resgate vida no processo na construção do
resignificado do ser e pertencer de moradores em situação de rua
Marcia Yumi Kano
Departamento de Terapia Ocupacional
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
[email protected]
Maria Regina de Freitas Gergul
Casa Resgate Vida - Barueri
[email protected]
Rosângela Huehara Ikeda
Casa Resgate Vida - Barueri
[email protected]
Luciene Macedo de Queiroz
Casa Resgate Vida - Barueri
Resumo:Nesse trabalho é descrita uma experiência no processo de construção do
resignificado do ser e pertencer de moradores em situação de rua na região de Barueri
dentro do Projeto Morar Bem, coordenado pela Casa Resgate Vida, uma instituição
filantrópica e sens fins lucrativos, fundada em 1999. Esta instituição emprega como
estratégia de atuação a formação de uma rede de apoio que integra a sociedade civel e os
diversos serviços de atendimento municipal A equipe técnica é constituida de uma terapeuta
ocupacional, uma psicologa e uma assitênte social que buscam reinserir os moradores em
situação de rua ao mercado formal e informal de trabalho. No primeiro semestre de 2008
foram acolhidos 224 adultos e atendidos 1905 adultos como pernoite. Estes resultados
indicam que a estratégia adotadas possa ser empregada nos processos de ressocialização e
recolocação de moradores em situação de rua.
Palavras-chave: Moradores de rua; resssocialização, processo de desfiliação.
1. Introdução
A população em situação de rua tem crescido exponencialmente em todas as cidades, podendo
ser notada principalmente em grandes centros urbanos. Entende-se por população em situação
de rua aquele morador que não possui um teto ou um local fixo para dormir e que está nas
ruas circunstancialmente, temporariamente ou permanentemente (BURSTZYN, 2000). O
crescente empobrecimento, a miséria e o desemprego a que está submetida grande parcela da
população, ou seja, a perdas de papéis sociais relacionados à capacidade produtiva que o
indivíduo exercia na sociedade capitalista têm levado a esse movimento de ser, estar e morar
na rua, obrigando muitos indivíduos a desenvolver novas estratégias de sobrevivência em
situações de violência e a se adaptar a referências de vida social bem diferentes daquelas
vividas anteriormente (GHIRARDI et al, 2005).
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Atualmente essa condição social está avançando para além dos limites das grandes centros
urbanos, ocorrendo também nas cidades de médio e pequeno porte, principalmente naquelas
localizadas nas regiões periféricas aos grandes centros. Esse trabalho descreve o trabalho
realizado pela Casa Resgate Vida, uma instituição filantrópica que não visa lucros localizada
no município de Baueri, na grande São Paulo. Esta instituição foi fundada em abril de 1999
pelo padre Antônio Alves Afonso com o apoio da comunidade local.
2. A processo de desfiliação
CASTEL (2002) denomina de desfiliação o processo “cuja trajetória é a ruptura progressiva
em relação a estados de equilíbrios anteriores mais ou menos estáveis, ou instáveis”. O
indivíduo ao não cumprir o compromisso social nas relações de trabalho, é excluído pela
sociedade, sendo marginalizado com a perda de seus direitos sociais e reduzido a uma pessoa
estragada e diminuída, reclassificado em outra categoria social: o vagabundo, o preguiçoso,
bêbado, sujo, perigoso, coitado, mendigo, pedinte, entre outros termos, nascendo o estigma,
que para GOFFMAN (1988) é um termo que designa um atributo profundamente
depreciativo, com um tipo especial de relação entre um atributo e um esteriótipo.
Originalmente, a Casa Resgate Vida nasceu para atender dependentes químicos, mas com o
tempo passou também a acolher moradores em situação de rua (com ou sem a dependência
química) forçados a se adaptarem a uma realidade social do mundo globalizado caracterizado
por profundas desigualdades sociais e por um processo de desfiliação, cuja necessidade básica
estavam relacionados aos cuidados com a alimentação e ao acompanhamento médico. Ainda
hoje, esta tem sido a única instituição na região, englobando Barueri e os municipios vizinhos,
que tem acolhido e atendido a população em situação de rua. Para ampliar e melhorar o
atendimento a este grupo, a Casa Resgate Vida firmou uma parceria com a Prefeitura de
Barueri, nascendo o Projeto Morar Bem e com ele uma equipe interdisciplinar com psicóloga,
terapeuta ocupacional e assistente social.
O processo de desfiliação foi identificado no discurso desta população atendida no Projeto
Morar Bem, percebendo-se a dor subjetiva que sentem quando falam de sua condição
estigmatizada e da falta de categorização social em que se encontram, sendo por vezes
comparados a animais. As frases abaixo, proferidas por alguns dos indivídos atendidos pela
equipe de saúde, expressam bem o processo de desfiliação mencionado:
“ as pessoas nos veêm como bichos, se a gente pede comida, ficam com medo pensando que a
gente vai assaltar, correm da gente...”
“... ou então nos tratam pior que cachorros, nem olham pra nós...”
“... e quando cai a noite nem durmo direito com medo de tocarem fogo na gente, de bater,
quem nem... quer ver? Até PM bate na gente, sem a gente fazer nada!”
É possível perceber nestas frases que seus autores, que por alguma razão perderam suas
referências, são sempre rotulados como anormais, já que a sociedade identifica e reclassifica
os moradores em situação de rua com uma nova marca, que segundo MATTOS (2004) são
tidos como a) vagabundos, improdutivos, inúteis e preguiçosos, pois perderam o trabalho no
mundo capitalista e a sua dignidade (a força de trabalho e a mais valia) por não conseguirem
prover sua subsistência física nem manter seu trabalho na constituição de sua identidade
pessoal, recebendo o rótulo de pessoas desviantes, ou vistos como b) loucos, doentes mentais,
drogados, bêbados, já que a sociedade geralmente ignora que a mendicância pode ser a
origem e o produto de distúrbios de personalidade, de doença mental e psicopatia. Ainda
segundo este autor, os moradores em situação de rua recebem c) o esteriótipo de sujos, mal
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cheirosos, mal trapilhos, apesar que grande maioria busca, dentro do possível, manter sua
higiêne e o auto-cuidado. Em outras ocasiões podem ser tidos como d) perigosos, muitas
vezes até como criminosos ou assaltantes em potencial, socialmente ameaçadores, associando
a pobreza à violência e a delinquência. Por fim, podem ser tidos como e) coitadinhos, dignos
de piedade, utilizando geralmente de cunho religioso para explicar sua inferioridade e o
merecimento de sofrimento.
Assim, o morador em situação de rua desfiliado, estigmatizado, sofre um processo de
desumanização. Passa a ser um não-igual ou parte não integrante da mesma espécie,
simplismente não é visto, passa a ser um nada e desse nada a sua existência torna-se um nada,
sem estímulo para buscar um novo caminho, preferindo a rua como moradia, fazendo suas
regras pessoais, indiferente à violência presente em seu dia-a-dia. Nestes casos, geralmente
rejeitam o apoio ofertado, já que não conseguem mais se ajustar à sociedade, nem mesmo
conseguem dormir em uma cama. Preferem a escolha mais dolorida, sofrida e frustrante, mas
de maior “liberdade”.
3. A Casa Resgate Vida
A Casa Resgate Vida tem como objetivo promover o resgate da dignidade humana e a
reintegração sócio-econômica-familiar dos moradores em situação de rua, inclusive aos que
também são dependentes químicos, através do amparo, do abrigo e do atendimento médicopsico-social. Para que o trabalho seja efetivo, a instituição conta com o trabalho de uma
gerência administrativa, acompanhantes de adultos, pessoal de cozinha, segurança e limpeza e
de uma equipe técnica composta por terapeuta ocupacional, assistente social e psicóloga. A
principal estratégia para atingir seu objetivo foi construir uma um sistema de apoio para
auxiliar no cotidiano da instituição por meio de doações de algumas empresas e parceiros que
nos auxiliam muito no trabalho feito e utilizando a rede de serviços municipais como o
SAMEB (Serviço de Assistência Médica de Barueri), CRAD (Centro de Referência em
Alcoolismo e Drogadição), Unidade Básica de Saúde, Secretaria de Ações Sociais e da
Guarda Civil do município. A Casa Resgate Vida possui duas unidades, uma para atender 30
homens e outra para atender 10 mulheres no período médio de três meses. Além disso há
espaço para 10 vagas masculinas e 2 femininas para pernoite, onde tomam banho, se
alimentam, dormem e tomam café da manhã.
Aos que permanecem na casa, a primeira estapa do Projeto Morar Bemn inclui o acolhimento,
cuidados médicos e de higiene (já que a população atendida chega em péssimas condições de
saúde) e também são feitas orientações e encaminhamentos para providências de documentos.
A segunda etapa do projeto prevê a modificação do estilo de vida, quando são promovidas
atividades orientadas pela equipe técnica visando a conscientização e estimulando mudanças.
As atividades em grupo foram planejadas para proporcionar maior integração, estimular à
convivência, a tolerância, a percepção de si e do outro. Para resgatar a necessidade de viver
em sociedade seguindo suas normas e regras, são estimulados os deveres e os direitos da
cidadania, promovendo atividades específicas como:
1. reflexões diárias – (textos das reflexões dos livros de AA/NA), com o objetivo de
trabalhar metas alcançáveis, reforçando a auto-estima e elaborando críticas e
questionamentos pessoais;
2. dinâmicas de grupo – procura-se estimular a percepção do “eu”, das relações pessoais
e interpessoais;
3. auto-análise semanal – avalia os processos e a forma de organização das ações,
visando a modificação do estilo de vida;
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4. assembléia geral – realizada uma vez por mês, normaliza as regras da instituição,
visando melhorar o convívio em grupo, enfrentar e resolver conflitos, desenvolver
tolerância e respeito mútuos;
5. grupos de esclarecimento – são discutidos temas como DST/AIDS, prevenção à
recaída, dependência química, transtornos mentais. O objetivo é conscientizar para
aceitar as próprias dificuldades.
6. atividades de lazer e lúdicas – busca-se resgatar o prazer em atividades sociais e na
valorização da convivência humana; usamos atividades como bingo, caminhadas,
passeios, comemoração de aniversários, participação em datas comemorativas etc..
7. visitas domiciliares – objetiva verificar e avaliar a situação social do interno,
estimulando a reinserção familiar;
8. reuniões com as equipes de trabalho de outras unidades da rede;
9. atendimentos e orientações aos pernoites – estimulando para a conscientização de sua
realidade social,incentivando para a mudança de vida;
10. atividades manuais desenvolvidas pela terapeuta ocupacional;
11. incentivo à recolocação no mercado de trabalho (formal ou informal).
Embora cada profissional da equipe de saúde tenha sua especificidade não é o objetivo
descrevê-las, já que a interdisciplinaridade tem o foco principal para a busca do resgate
humano no trânsito da reclassificação social do anormal ou marginal para o que a sociedade
dita como o “normal”.
No primeiro semestre de 2008, 174 homens e 50 mulheres foram acolhidos pelo Projeto
Morar Bem, dos quais 6 pessoas foram reencaminhados para o meio familiar, 2 conseguiram
auto sustento e 1 pessoa retornou à escola. Foram inseridos 7 pessoas no mercado de trabalho
formal e no 28 no informal. Além destes, mais 1.640 homens e 265 mulheres atendidos como
pernoite.
4. Considerações Finais
Dados do município de São Paulo (GHIRARD. et al., 2005 e ROSA, et al., 2006) mostram
que a grande maioria (79%) da população em situação de rua consiste de pessoas com mais de
18 anos, caracterizando um problema de políticas públicas e sociais. Essa questão afeta toda a
estrutura social, principalmente a relação do homem com a sociedade, do homem com o
homem e do homem consigo mesmo. Nossa sociedade sistematicamente segrega alguns
indivíduos classificados como anormais, deixando-os à margem social em uma condição
estritamente negativa, até que se desatem todos os laços afetivos e familiares, culminando em
um ser desumanizado. Porém, existe a possiblidade do resgate deste indivíduo, como
observado no Projeto Morar Bem da Casa Resgate Vida, mas para que isso aconteça é
necessário que haja uma série de fatores que incluem desde do compromisso do morador em
situação de rua à existênica de uma rede de apoio e recolocação social. A Casa Resgate Vida
vem desempenhando este papel ao resignificar, reconstruir e recolocar o indivíduo de volta à
sociedade que o expulsou. Embora tímido, os resultados conseguidos até aqui são
gratificantes e motivadores, mas principalmente mostram uma estratégia bem sucedida para
atuar no apoio à moradores em situação de rua.
Referências
BURSTZYN, Marcel (org.) No meio da Rua. Rio de janeiro, RJ. Editora Garamond Ltda., 2000
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CASTEL, R. As armadilhas da exclusão: In CASTEL,R; WANDERLEY, L.E.W.; BELFIOREWANDERLEY,M. As metamorfoses da questão social, 2a ed., São Paulo, Ed Vozes, 2002
GHIRARD, M.I.G . et al. Vida na rua e cooperativismo:transitando pela produção de valores. Revista Interface
Comunicação, Saúde, Educacão, v.9, n.18, p.601-10, set/dez 2005.
GOFFMAN, E. Estigma, São Paulo, LTC, 1988
MATTOS, R.M., FERREIRA, R,.F. Quem vocês pensam que (elas) são? Representação sobre pessoas
moradoras de ruas. Psicologia & Sociedade; 16 (2): 47-58; maio/ago.2004
ROSA,A.S.; SECCO,M.G.; BRÊTAS,A.C.P. O cuidado em situação de rua: revendo o significado do processo
saúde-doença. Revista Brasileira de Enfermagem, 59(3): 331-6, 2006
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A (re)construção da identidade social da população em situação de rua
da cidade de Marília.
Leandro Tosta de Oliveira.
Unesp - Faculdade de Filosofia e Ciências - Campus de Marília
[email protected]
Resumo: O problema da exclusão social e mais especificamente de sua representação mais
extrema que seria a população em situação de rua vem ganhando espaços de discussões cada
vez mais relevantes, principalmente nas grandes cidades. Contudo, este não é um problema
social que atinge somente os grandes centros urbanos, este é também um problema social
presente em cidades de pequeno e médio porte, como no caso da cidade de Marília, onde a
invisibilidade social destas pessoas se deixa transparecer por meio das políticas públicas
desenvolvidas pelo município. Neste artigo busca-se apresentar uma análise, ainda inicial,
destas políticas públicas e das ações de entidades que prestam auxilio a esta população e o
como estas corroboram para a manutenção do processo de exclusão social vivenciado por
estas pessoas, contribuindo para a (re)construção da identidade social dos mesmos. Para
tanto aborda-se a questão da identidade social construídas por meio de estigmas, tendo por
base o trabalho de Erving Goffman, que são nutridos a respeito da população em situação de
rua, apresenta-se também alguns aspectos que foram observados na pesquisa de campo
realizada na cidade de Marília.
Palavras Chaves: Exclusão Social;Identidade Social;População em situação de rua.
1. Introdução
A questão da exclusão social de parcelas significativas da sociedade brasileira há tempos vem
sendo discutida por diversos setores da sociedade brasileira, abordado pelos meios de
comunicação e por diferentes áreas do conhecimento este é um tema que passou por
transformações ao longo da história, mas que continua sendo alvo de discussões. A exclusão
social enquanto processo vivenciado pelos setores mais pobres representa uma sucessão de
privações de bens materiais e simbólicos, constituindo-se em uma exclusão não só econômica,
mas também sócio-cultural na qual o indivíduo se vê privado dos direitos mínimos da
cidadania.
Em um dos pólos desta problemática encontra-se um segmento social que vivência o processo
de exclusão social em sua condição mais extrema, ou seja, são pessoas que já perderam
praticamente tudo que possuíam −até mesmo um teto para morarem− se deparando no
momento com a experiência da situação de rua. Esta parcela da população desprovida dos
meios de subsistência necessita fazer das ruas o local de onde possam conseguir um mínimo
para satisfazer as necessidades mais básicas do ser humano.
Estas pessoas além de terem que driblar as mais diversas dificuldades que a situação de rua
lhes impõem ainda enfrentam os mais diversos preconceitos, vistas, geralmente, de forma
estigmatizada com sendo preguiçosos, bêbados ou vagabundos que simplesmente não querem
trabalhar.
Tendo em vista a questão dos estigmas que são nutridos a respeito deste segmento social
iniciou-se na cidade de Marília um trabalho de campo tendo como foco principal apreender e
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discutir a respeito da (re)construção da identidade social da população em situação de rua1 a
partir de tais, para tanto se fez necessário discutir as formas de políticas públicas ou privadas
que são implementadas a fim de “ressocializar” estes indivíduos, justamente por se levantar
como hipótese que estas influenciam diretamente na constituição de uma nova identidade
social.
2. A pesquisa de campo
2.1 Conceitos em questão
A questão da identidade vem sendo discutida dentro da área de humanas norteando o trabalho
em diversos campos de pesquisas, principalmente, na área de antropologia e sociologia. A
discussão sobre este tema pode muitas vezes ser alvo de criticas, como a de ser um tema
pertencente à Psicologia. No entanto a questão da identidade pode ser dividida em dois níveis:
o da identidade pessoal (individual) e o da identidade social (coletiva), sendo que o primeiro
seria alvo, mais especificamente, de pesquisas voltadas para a área de psicologia que terá
como objetivo a busca da questão do eu; já no segundo nível é onde a identidade social se
concretiza efetivamente e o estudo se volta para as áreas de antropologia e sociologia.
Existem estudos que trabalham metodologicamente interconectada a questão da identidade. O
antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1976) propõe a separação da identidade em níveis
permitindo estudar-la, dessa forma, como antropólogos ou sociólogos, sem que se corra o
risco de se deixar levar por certos “psicologismos”, problema comum quando se realiza
trabalhos de investigações interdisciplinares. No caso do estudo sociológico o interesse por
este tema se consiste em observar o tipo de vida coletiva que a população em situação de rua
estabelece entre si de acordo com determinadas “categorias”. Entendendo o termo categoria
como algo abstrato podendo ser aplicado a agregado.
A identidade social remete-nos a questão de grupo social que, no caso da população em
situação de rua, se vincula diretamente ao conceito de estigma − “um tipo especial de relação
entre atributo e estereótipo” − definido por Goffman (1988). É em associação com, ou
separação de, seus companheiros mais visivelmente estigmatizados, que a oscilação da
identificação do individuo é mais fortemente marcada. Goffman distingue os estigmas em três
tipos, sendo relevante para o estudo da população em situação de rua o segundo tipo que é
definido como sendo os estigmas de culpas de caráter individual que são percebidos como
vontade fraca, desonestidade, alcoolismo, desemprego, dentre outros.
A pessoa estigmatizada tende a “estratificar seus ‘pares’ conforme o grau de visibilidade e
imposição de seus estigmas”. Dessa forma, ele toma determinadas atitudes parecidas com a
que o normal tomaria em relação a ele. Portanto a identidade social surge como a atualização
do processo de identificação. A definição da identidade social se realiza de acordo com os
interesses e definições de outras pessoas em relação ao individuo cuja identidade está em
questão.
2.2 Uma análise das políticas voltadas à população em situação de rua e suas
conseqüências
A pesquisa que vem sendo realizada visa identificar até que ponto as políticas e práticas de
instituições e entidades que prestam auxílios a estas pessoas contribuem para a “fragilização”
da identidade social de outrora, bem como para a (re)construção de uma nova, formada a
partir dos estigmas que são reafirmados a todo o momento a respeito destes indivíduos.
A constatação deste processo que se realiza na relação social entre a população em situação de
rua e as instituições e entidades, assim como através das relações entre eles próprios, na
1
Tendo em vista que este termo abrange uma parcela da população bastante heterogenia, podendo ser
subdividida em grupos ou subgrupos −que facilitam as análises− o trabalho de campo limitou-se a pesquisar os
casos de trecheiros, moradores de rua e carrinheiros (sem residência fixa).
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criação de um universo particularizado, vem sendo realizado por meio do trabalho de campo
em contato direto com os grupos pesquisados, bem como com as instituições e entidades
existentes na cidade de Marília, as principais são: o Centro Espírita Luz, Fé e Caridade, a
Associação Irmão Clemente Miyonnet e o Albergue Noturno São José −único existente na
cidade e que é mantido pela Sociedade de São Vicente de Paulo em parceria com a
prefeitura−.
A partir de observações não-estruturadas realizadas nos locais de maior convivência destes
indivíduos e complementadas por entrevistas semi-dirigidas e depoimentos de
“representantes” dos subgrupos selecionados e dos funcionários da secretaria de bem estar
social e das instituições diretamente relacionadas com a questão, se tem obtido informações
que revelam um pouco do cotidiano da população em situação de rua.
O trabalho de campo realizado junto ao Albergue Noturno São José, onde foi possível
estabelecer contatos principalmente com trecheiros que circulam pela região em busca de
trabalho na cidade ou no campo, bem como com funcionários da instituição e com
funcionários da Secretaria de Bem-Estar Social que utilizam uma sala do albergue pelo
período da manhã para fazer o processo de triagem, revelou que a maior parte das pessoas que
utilizam o local são trecheiros que possuem como característica a busca continua por
trabalhos sazonais (bicos) nas cidades e/ou nas safras da região. Um fato relevante de ser
ressaltado neste ponto e que justifica a ausência de outros grupos da população em situação de
rua da cidade no local são as normas do albergue, principalmente a restrição à entrada de
pessoas naturais da cidade, sob a alegação de que se eles são da cidade possuem casa ou
parentes a quem possam recorrer, ou que estejam em Marília tempo suficiente para serem
reconhecidos pelo vigia do albergue que irá barrar sua entrada, posto que estes, na visão do
albergue, já deveriam ter conseguido algum emprego, caso realmente estivessem interessados
em trabalhar. A outra regra se refere ao tempo de permanência no local, limitada a um tempo
de permanência de três dias, após esse período a entrada da pessoa não é mais permitida,
salvo raras exceções (normalmente casos de doenças), restando para a pessoa aceitar a
passagem fornecida ou dormir nas ruas.
Também foram realizadas observações na Associação Irmão Clemente Myionnet, na Praça
Maria Isabel e nos trilhos da estação de trem, estes locais constituem-se pontos em que
sempre é possível encontrar pessoas em situação de rua e que, geralmente, não freqüentam o
albergue.
Na Associação Irmão Clemente Myionnet foram estabelecidos contatos com as pessoas em
situação de rua e realizado uma análise das fichas do local, o que possibilitou constatar não só
a existência de alguns migrantes que se encontram na cidade somente de passagem, mas de
outros que optaram por permanecer em Marília, estando na cidade há três, cinco ou mais anos,
constituindo assim uma parcela da população em situação de rua que não só esta de passagem,
como muitas vezes é alegado, mas que estão pelas ruas da cidade. O único auxilio que estes
últimos encontram na cidade é o de alimentação, pois não podem permanecer no albergue,
restando as ruas como alternativa para dormirem e conseguirem algum trocados, fora isso não
existe uma política voltada para estes “migrantes”.
A população em situação de rua que usufrui dos serviços prestados pelas instituições
assistências da cidade de Marília pode ser dividida, grosso modo, em dois grupos: um
primeiro grupo seria o dos “migrantes” que estão em constante movimento pela região em
busca de trabalhos temporários geralmente ligados as colheitas, constituindo este um meio
encontrado por eles para garantirem sua subsistência. Este tipo de atividade acaba
submetendo esses trabalhadores a uma rotatividade no “mercado de trabalho” provocando
uma fragilização de sua identidade social; um segundo grupo seria daqueles que permanecem
na cidade fazendo das ruas um meio de conseguirem o mínimo necessário para satisfazer as
necessidades básicas do ser humano.
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Snow e Anderson (1998, p. 134) em pesquisa realizada na cidade de Austin no Texas, Estados
Unidos, identificou cinco tipos de funcionamento ou resposta entre as diversas organizações
que intervêm nas vidas e rotinas dos moradores de rua. Dentre estas se encontra a resposta
acomodadora, que se encaixa justamente na perspectiva das instituições e entidades
marilienses, pois, suas práticas se orientam visando suprir as necessidades básicas de
subsistência, principalmente alimentação e abrigo, este tipo de resposta “facilita a
sobrevivência deles enquanto pessoas moradoras de rua mas faz pouco para tirá-las da rua”.
Das políticas públicas do município voltadas a população de rua está o projeto Fumares, que
por trás de um discurso de reintegração do indivíduo, constitui-se muito mais em um espaço
de segregação no qual ainda se efetiva uma exploração da mão de obra dos moradores de rua
e migrantes que passam por ela, visto que os produtos produzidos no local (verduras, legumes
e carne de porco) são, em sua maior parte, voltados para o suprimento da demanda de outros
projetos mantidos pela prefeitura. Não é de se espantar que, em trabalho de campo, alguns
moradores de rua rejeitem ir para lá, dizendo que no local se trabalha muito sem ganhar nada,
além de reclamarem da distância do local à cidade e do uso excessivo de medicamentos.
Outra política desenvolvida pela Secretaria de Bem-Estar Social é a ronda (também conhecida
como arrastão) realizada duas vezes por semana. Neste trabalho o principal objetivo é
identificar os “moradores de rua” na cidade e leva-los para o albergue quando não são da
cidade − para que no dia seguinte sigam viagem − ou encaminhamento a Fumares quando são
da cidade. Entretanto quando aqueles que são da cidade não aceitam ser encaminhados a
Fumares, normalmente são enviados para outra cidade.
A prática do fornecimento de passes para que estas pessoas dêem prosseguimento a viagem
não constitui nenhuma novidade no campo dos “benefícios” fornecidos pelas secretarias de
Bem-Estar, ao contrário, esta vem se tornando ao longo das últimas décadas uma prática
comum das prefeituras, como bem demonstra José Sterza Justo no estudo “Dromopolítica
contemporânea: o caso dos andarilhos”.
Segundo Justo (1998, p.116) os centros de triagem e encaminhamento do migrante (Cetrem)
e/ou outras instituições filantrópicas que são criados ou mantidos pelas prefeituras acabam por
ter como função precípua recolher os errantes e dar a eles uma destinação, normalmente as
cidades oferecem “um ‘passe’ de trem ou ônibus para alguma outra cidade que fará
exatamente o mesmo, Colocando o usuário num circulo vicioso de movimentação sem fim”.
Justo em seu trabalho aborda especificamente o caso dos andarilhos, mas no caso da cidade de
Marília a prática do fornecimento do passe é estendida também a outros grupos da população
em situação de rua (moradores de rua da cidade, migrantes e trecheiros).
A Secretaria de Bem-Estar social da cidade classifica todos que se encontram na situação de
rua como migrantes ou, como é mais comum, andarilhos, tanto é que dificilmente se encontra
alguma reportagem nos jornais da cidade com outras designações, já que quase todas são
embasadas na concepção da Secretaria de Bem-Estar Social do município. Este discurso, de
que todos são migrantes ou andarilhos, ou até mesmo de que eles (os moradores de rua)
vivem nas ruas porque querem, servem para corroborarem a iniciativa de expulsar-los da
cidade. Como expõe a Secretária da Secretaria de Bem-Estar Social Anadir Hila: “A
administração municipal tem um limite de capacidade e cada município precisa ser
responsável pelos seus habitantes”. Ou de não se preocupar em realizar nenhum
levantamento da população em situação de rua da cidade, o que possibilitaria formular
políticas públicas mais efetivas.
Segundo depoimentos recolhidos em campo, a prática da expulsão acontece com freqüência −
a ronda, mais conhecida como arrastão −, “é normal, eles chegam e agente vai indo no meio,
entra todo mundo e te deixam em outra cidade” (Benedito), o albergue noturno da cidade no
fim acaba funcionando como o ponto de partida destas pessoas para outras cidades.
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Frente às práticas políticas desenvolvidas e financiadas pela prefeitura da cidade de Marília
constata-se que estas visam à segregação e a expulsão das pessoas em situação de rua.
Segregação porque a Fumares institui um isolamento do individuo em um local afastado da
cidade, isolando-os de qualquer contato ou interação social, retirando-os dos olhares das
pessoas, sob o pretexto de recuperá-los e ressocializá-los e expulsão pelo fato de jogá-los em
outra cidade transferindo o problema para outro município que fará o mesmo, dessa forma a
errância acaba não sendo uma escolha (como por vezes a assistente ressalta), mas uma
imposição de um sistema que se vê incapaz de instituir políticas que dêem conta do problema
social.
A postura da Secretaria de Bem-Estar social frente a problemática segue por um viés no qual
o processo de exclusão destas pessoas é visto como sendo prioritariamente um rompimento
dos laços sociais e principalmente familiares, veja o objetivo da fumares que é “limpar” o
individuo do álcool e devolvê-lo a família, não buscando compreender as demais facetas que
constituem o processo de exclusão.
Segue-se a esta análise da secretaria a visão estigmatizada da população de rua, sendo sempre
percebida e tratada como vagabundas que não querem trabalhar, que só querem dinheiro para
beber, (a culpa é sempre do individuo que não quer sair dessa situação, “eles se negam a ir
para a fumares”), vistas como acomodados a situação e que estão ali por escolha, e que outras
teriam?.
Dessa forma as políticas aqui desenvolvidas configuram-se como mera prática
assistencialista, posto que visam somente o suprimento das necessidades básicas
(alimentação, banho e pernoite), não visando um trabalho de real mudança deste cenário, dos
problemas estruturais que levam estas pessoas a se encontrarem em tal situação.
Um aspecto relevante a ser observado neste ponto é o de que as políticas realizadas pelas
instituições assistenciais e entidades que atendem esses indivíduos não conseguem atingir o
objetivo ao qual se destinam, ou seja, a “inclusão social” ou ressocialização, mas tendem a
reafirmar a perda da identidade social que outra estiveram vinculados e a afirmação de sua
nova identidade social.
Os “recém-deslocados” procuram as instituições assistenciais, tanto às das prefeituras como
as filantrópicas, com o intuito de conseguirem alimentação e abrigo para dormir, neste
primeiro momento eles ainda se encontram em constante busca de se reinserirem no mercado
de trabalho formal, alimentam a esperança de que sua situação seja passageira e de que vão
sair desta, chegando a repudiar a identidade social de pessoas de rua enfatizando para “os
outros” que não são como a maioria dos moradores de rua em cuja companhia são
encontrados, mas com o passar do tempo, por conta de não conseguirem tal reinserção,
começam a se utilizar das referidas instituições com maior freqüência, vindo, assim, a se
identificar com a situação daqueles que se encontram nas ruas a mais tempo, “a encontrar
pontos de igualdade”, seja na história de vida como na situação de “dependência” das
instituições que é reforçada e aprofundada com o passar do tempo. “Diferença e igualdade. É
a primeira noção de identidade” (CIAMPA, 1991, p.63).
Em trabalho de campo presenciou-se em diferentes momentos a separação ou união destas
pessoas conforme a visibilidade de seus estigmas, em certas circunstancias presenciou-se o
afastamento, por exemplo, daqueles que estavam visivelmente embriagados, em outros
observou-se uma “união” de acordo com a atividade desenvolvida (carrinheiros que se
agrupavam na fila da janta ou de trabalhadores rurais que decidiam seguir viagem junto em
busca de emprego temporário).
A questão da estigmatização destas pessoas aparece também em relação ao tratamento que
elas recebem nas entidades em que recebem o auxilio, sendo os mais comuns o de serem
alcoólatras, vagabundos ou preguiçosos, em vários momentos estes são reafirmados a pessoa,
seja de modo implícito ou explicitamente. Esta é mais uma forma de imputação do estigma de
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culpa de caráter individual, ao qual o sujeito vai se identificar ou não, se afastando em relação
àqueles que os possuem mais visivelmente.
Desta forma, a identidade social da pessoa envolvida neste processo exclusão social vai de
fragmentando, de acordo com o tempo de permanência desta na situação de rua, iniciando
consequentemente um processo de identificação com os demais em situação semelhante,
sendo (re)construída a partir dos estigmas que são reafirmados nas diversas formas de
relações sociais que se estabelecem, no caso de Marília principalmente com as entidades e
seus respectivos funcionários, e que são mais visivelmente marcantes, se tornando os
elementos norteadores das novas relações sociais, o com quem e aonde vão se relacionar e/ou
conviver, estabelecendo novos vínculos, seja de amizade, companheirismo ou de
dependência.
3. Considerações finais
As constatações apresentadas acima a respeito das políticas e das formas como as relações
sociais ocorrem no interior deste universo pesquisado fazem parte de uma pesquisa inicial
realizada na cidade, necessitando, de um trabalho de campo mais aprofundado, visto que a
cidade não possui nenhum levantamento oficial da população em situação de rua encontrada
no município. Portanto, este ainda é um campo a ser explorado por cientistas sociais e demais
pesquisadores de outras áreas do conhecimento.
Contudo, o que se pode depreender inicialmente destas práticas é que elas vêm contribuindo
de forma a perpetuar a situação de exclusão social destas pessoas, invisíveis socialmente
diante da maior parte da população, estigmatizadas até por aqueles que possuem no discurso a
intenção de resgatar a dignidade e o direito a cidadania ou de criarem a possibilidade de
reinseri-los na sociedade.
Assiste-se, dessa forma, a fragmentação de sua identidade social e a (re)construção de uma
nova, embasada nas novas formas de relações vivenciadas ao longo de sua permanência na
situação de rua, principalmente, orientadas pelos estigmas afirmados e reafirmados no
cotidiano destas pessoas.
Enquanto estas concepções acerca da população em situação de rua permanecerem inalteradas
dificilmente haverá, na cidade de Marília, o desenvolvimento de alguma ação que vise
trabalhar de forma mais efetiva junto a elas, posto que nem a assistência social da cidade e
nem as entidades que prestam algum auxílio aos mesmos, buscam compreender os processos
que as levaram a se encontrarem em tal situação e tampouco visam trabalhar junto as mesmas
de modo a viabilizar a superação da atual condição em que vivem.
Para finalizar seria importante que a Secretaria de Bem-Estar Social da cidade realiza-se um
acompanhamento mais de perto junto as atividades desenvolvidas pelas entidades da cidade,
desenvolvendo um trabalho conjunto de modo a se estabelecer um contato mais direto junto a
estas pessoas na tentativa de captar com maior clareza as dificuldades vivenciadas,
possibilitando, dessa forma, traçar planos de ações que venham a, no mínimo, criar
oportunidades mais concretas para a superação desta situação em que estes indivíduos se
encontram.
Referências
CIAMPA, ANTONIO DA COSTA. Psicologia Social – O homem em movimento. São Paulo. Editora
Brasiliense, 1984. P. 58-75.
GOFFMAN, ERVING. Estigma − Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro.
Editora Guanabara Koogan S.A. 1988
JUSTO, JOSÉ STERZA. Errâncias e Errantes: um estudo sobre os andarilhos de estrada. São Paulo: Arte e
Ciência, 1998.
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OLIVEIRA, ROBERTO CARDOSO DE. Identidade, Etnia e Estrutura social. São Paulo. Livraria Pioneira
Editora, 1976.
SNOW, DAVID – ANDERSON, LEON. Desafortunados: Um Estudo Sobre o Povo da Rua. Petrópolis,
Vozes, 1998.
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Antropologia, extensão universitária e políticas públicas: debate sobre
a política para crianças e adolescentes em situação de rua em
Campinas
Rafael Silveira Cintra
Mestrando em Antropologia Social
Universidade Estadual de Campinas
[email protected]
RESUMO: O trabalho de educação social de rua do município é herdeiro e devedor de um
projeto educacional anterior, de caráter voluntário e experimental, que por sua vez é um
desdobramento de um projeto intelectual desenvolvido na Unicamp. Os profissionais da rede
de atendimento à criança e adolescente em situação de rua se apropriam do discurso
acadêmico para travarem suas próprias batalhas discursivas. Há na rede de atendimento um
discurso hegemônico de que serviço para população de rua mantém a pessoa na rua. O
trabalho do coordenador do programa de educação social de rua consiste em conter a
voracidade do Estado por limpeza e controle social para que os educadores tenham uma
margem de liberdade para desenvolverem seus projetos pedagógicos. O educador de rua é um
tradutor de mundos, ele traduz o universo institucional-burocrático para os meninos de rua e
traduz o universo da rua para os profissionais da rede de atendimento e sociedade em geral.
Está em andamento no centro da cidade um projeto urbanístico que incorpora a população de
rua, porém de modo perverso. Esse projeto tem implicações diretas nas diretrizes e condições
de trabalho da rede de atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua do município
e as mais destacadas são: a racionalização dos serviços para população de rua, o controle
efetivo da população de rua e a produção de um conhecimento sobre a mesma.
PALAVRAS-CHAVES: Educação social de rua; Controle; Racionalização.
1. Introdução
Este artigo é o corpo de um texto de uma conferência homônima realizada por mim
dia 13/10/2008 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Esta conferência
foi um pretexto para divulgar no meio acadêmico o trabalho de educação social de rua
desenvolvido no município de Campinas e ao mesmo tempo um esforço por uma reflexão
antropológica a partir de um campo de pesquisa, minha experiência como educador de rua e
de coordenador de programa de educação de rua, depois de 2 anos de afastamento.
O texto em si desenrola-se por três linhas. Uma linha é uma espécie de história das
idéias e trata da construção de um conhecimento de ordem prática, a educação de rua e sua
influência de uma prática teórica e acadêmica, e dos impactos e desdobramentos que as idéias
desenvolvidas na universidade têm fora dela. Outra linha é a investigação de um projeto
político-urbanístico e suas implicações para a população de rua, passando pelo processo de
construção das políticas públicas para este segmento. A última linha é um exercício para
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definir o caráter do trabalho e apreender os dilemas mais relevantes das respectivas
profissões: educador e coordenador do programa de educação social de rua de Campinas.
É importante deixar claro que todas as afirmações possuem uma extensão bem
delimitada histórica e espacialmente, elas valem para o município de Campinas no período de
2004 a 2007.
2. Desenvolvimento
O grupo Mano a Mano foi fundado em 1997 pela antropóloga Simone M. Frangella e
por uma arte-educadora formada pelo Instituto de Artes da Unicamp(Teka) e ele surgiu a
partir da idéia de desenvolver atividades de arte-educação com crianças e adolescentes em
situação de rua. Essa idéia foi inspirada na própria pesquisa de campo de Simone para sua
dissertação de mestrado em que ela participava do trabalho da Pastoral do Menor em
Campinas e tentava uma aproximação com os meninos na rua. Sua dissertação, intitulada
Capitães do Asfalto: a itinerância como construtora da sociabilidade de meninos e meninas
“de rua” em Campinas, e defendida no Instituto de Filosofia de Ciências Humanas da
Unicamp(IFCH), constituía-se num esforço em retraçar a trajetória dos meninos pelo espaço
urbano recolhendo as marcas deixadas por eles por onde passavam.
A atividade básica do Mano Mano era ir para o espaço público da rua, geralmente
alguma praça que era point dos meninos num dia e local pré-agendado com eles, demarcar
uma parte da praça como sendo do grupo e nela desenvolver atividades de desenho, pintura,
música ou jogos com os meninos por um período aproximado de duas horas. Essa demarcação
da atividade no espaço e no tempo tinha uma finalidade bastante clara, a de introduzir nos
meninos noções como as de regra(que não as da rua) e de disciplina. Ao demarcar o espaço do
Mano a Mano, educadores e meninos teriam de negociar e construir as regras que valeriam
para aquele espaço. E por ter dia e horário marcado os meninos precisariam se planejar para ir
à atividade.
Antes que seja tarde eu preciso dar a minha definição de arte-educação. Partindo de
minha experiência prática educar através da arte seria desenvolver as habilidades e
potencialidades dos meninos através da prática artística e sua posterior reflexão. As
potencialidades e habilidades desenvolvidas seriam auto-estima, expressividade, postura
corporal, raciocínio, capacidade de concentração e o que mais o educador conseguir imaginar.
Eu só consigo definir arte-educação com meninos de rua com um exemplo: toda vez que você
encontra um menino você o convida a fazer um desenho, e a cada desenho você pede pra ele
pôr o nome e depois guarda, depois de alguns meses você traz todos os desenhos e os expõe
ao mesmo tempo para ele e tenta mostrar como seus desenhos mudaram, que o primeiro
desenho era bem pequeno, que os outros já eram maiores, e os mais recentes até bem mais
coloridos, você tenta associar cada desenho a fatos ocorridos na época em que cada um foi
feito, a partir disso você tenta debater como a vida dele mudou nos últimos tempos, como as
coisas eram antes, suas lembranças, essas coisas. Tudo isso para provocá-lo a refletir sobre
seu passado, e conseqüentemente seu presente, a posição que este ocupa no mundo, e suas
possibilidades de futuro.
Essa idéia de que é preciso colocar o menino no tempo, pois ele encontra-se numa
situação em que os dias são sempre iguais e que a vida na rua é uma grande prisão aliada a
uma forte sensação de liberdade sempre foi muito comum entre os educadores de rua de
Campinas, não só os do Mano a Mano, e eu sempre compartilhei dela. Ela é oriunda, em
parte, da experiência e sensibilidade dos educadores, mas em grande medida é influência do
trabalho de Maria Filomena Gregori, professora do departamento de Antropologia do IFCH
em seu livro Viração: Experiência de meninos nas ruas, no qual ela defende na conclusão,
que apesar da aparente sensação de liberdade devido à circulação pelo espaço urbano, por não
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atravessarem rituais de passagem, estes meninos não conseguem superar a condição de
meninos de rua tornando-se prisioneiros dela. O adolescente aprende a sobreviver na rua com
o aparato institucional voltado para crianças e adolescentes em situação de rua, ao atingir a
maioridade ele perde esse aparato e não consegue entrar no “mundo dos adultos” por que não
foi preparado para isso. Eu mesmo conheci muitos rapazes com mais de 20 anos que se
apresentavam como “meninos de rua”.
Neste livro, a idéia de viração emerge, de um conceito nativo dos meninos de rua em
São Paulo, que significava “se virar “ ou seja, conquistar a sobrevivência na rua, para a idéia
de que os meninos de rua são capazes de manipular as representações sociais que seus
interlocutores fazem deles. Se as pessoas os vêem como bandidos, eles se portam como
bandidos; se as pessoas os vêem como crianças indefesas, eles se portam como tal. A intenção
da autora, creio eu, era evidenciar a capacidade de agir destes meninos e sua conseqüente
condição de sujeitos sociais.
Há uma outra apropriação das idéias deste livro a qual eu tive contato trabalhando não
mais como educador, mas como coordenador de um programa de educação de rua, a Casa
Guadalupana. O termo viração foi apropriado pelos profissionais e técnicos da Secretaria
Municipal de Assistência e Ação(eufemismo) Social(SMAS) e profissionais envolvidos na
rede de atendimento à criança e adolescente em situação de rua de Campinas. Ele é usado no
sentido de manipular, enganar as pessoas, ou seja, num sentido negativo, o de que o menino
se utiliza das instituições para permanecer vivendo na rua, um dia ele almoça num lugar outro
dia noutro, aqui ele conta uma história e lá ele conta outra e segue vivendo.
Essa leitura no meu entendimento é uma leitura negativa e contribui para uma
estigmatização dos meninos e vai em desencontro com a possibilidade mais interessante que o
conceito nos abre, que é de vê-los como crianças comuns, que na escola se comportam como
alunos ordeiros e no bairro se comportam como moleques travessos.
A situação mais específica na qual eu tive contato com essa leitura foi uma reunião na
qual participam a Prefeitura, através de um representante da Secretaria Municipal de
Assistência e Ação Social(SMAS), e representantes de todas as instituições da rede de
atendimento à criança e adolescente em situação de rua. Naquela ocasião, a viração, enquanto
uma manipulação dos serviços por parte das crianças e adolescentes estava sendo usada como
uma justificativa para ampliar uma lógica de trabalho que já há alguns anos estava sendo
implementada, a qual eu chamarei aqui de lógica da racionalização e do controle.
O argumento é de que cada serviço específico(por ex. servir refeição, disponibilizar
banho, lugar para pernoitar) deveria ser realizado por uma única entidade, num único ponto
específico da região central da cidade; pois caso contrário se um mesmo serviço fosse
disponibilizado por mais de uma entidade(em mais de um ponto do centro da cidade), a rede
de atendimento seria alvo da viração dos meninos, que não iriam aderir aos programas, mas se
aproveitar deles para permanecer na rua.
A racionalização dos serviços vinha, portanto, como solução para a “viração” dos
meninos, junto com mais uma segunda solução, o controle, não se deveria mais atender
nenhuma criança ou adolescente sem cadastrá-lo, sem catalogá-lo.
Todo esse tipo de argumentação sempre veio de cima, por parte da prefeitura, e aos
poucos no decorrer de minha experiência tanto de educador como de coordenador eu percebi
que ela revelava um discurso institucional muito forte, mas que se apresentava sempre de
forma diluída (é raro alguém defendê-lo publicamente), mas todo mundo sabe que ele existe,
que serviço para população de rua mantém a pessoa na rua.
Um exemplo da efetivação desse discurso é uma das normas do serviço Pernoite
Protegido, onde os meninos podem passar a noite, fazer atividade, jantar e dormir e depois
sair pela manhã, o Pernoite não permite que o menino entre com objetos pessoais lá dentro,
pois isso seria um estímulo a ele continuar morando na rua.
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Um exemplo dessa tendência mais geral de racionalização e controle é a formação da
Casa da Cidadania, localizada no Terminal Central, especializada no atendimento de
moradores de rua adultos. Há uns 5 anos atrás recordo-me de diversas instituições de caráter
religioso distribuírem sopa a noite e de madrugada em diversos pontos do centro da cidade
que são notórios points de morador de rua, o Camp Chopp(túmulo do Carlos Gomes), a
Mogiana(Estação Guanabara), o Correio Central, por exemplo. Com o tempo essas
instituições foram desestimuladas a realizar esse tipo de atividade e foram convidadas a se
cadastrarem na SMAS e a assumir um dia da semana na Casa da Cidadania.(por exemplo: os
católicos servem macarrão na quinta e convocam os moradores a rezarem, na sexta os
evangélicos servem sopa e convidam os moradores a cantar). Seguindo esta linha de
raciocínio, a tendência é para que haja somente um ponto que sirva comida a noite para
morador de rua adulto, é a Casa da Cidadania, ela é um serviço público vinculado a SMAS.
Quando a pessoa chega, ela é cadastrada, passa por entrevista breve: nome, origem, pra onde
vai; e o serviço é vetado para adolescentes.
Eu acredito que essa tendência tenha três movimentos gerais que incidem diretamente
sobre nossas condições e diretrizes de trabalho: A racionalização dos serviços. A produção de
um conhecimento acerca de população de rua. O Controle da população de rua. Esse é o
contexto geral no qual os educadores do Mano a mano se transferiram para a Casa
Guadalupana e eu posteriormente vim a me inserir nesse universo. Os educadores do Mano a
Mano entraram para a Guadalupana em 2004, eu entrei em 2005.
Para contar a história da Casa Guadalupana eu preciso falar da Instituição Padre
Haroldo. Esta é uma instituição filantrópica que trabalha no tratamento de dependência
química, quer dizer álcool e drogas, há mais de 4 décadas em Campinas a partir da filosofia
dos 12 passos. Quando se está prestes a terminar o tratamento realiza-se o décimo segundo
passo que é “da mesma forma que você foi ajudado por alguém, é agora você poder ajudar
alguém”. É com esse intuito que nasce a Casa Guadalupana, um local em que os usuários do
tratamento poderiam realizar o décimo segundo passo, ajudar alguém a sair do mundo das
drogas. Por isso a Casa Guadalupana foi montada no Terminal Central primeiramente, por
que lá era point de meninos de rua, e o intuito da instituição era ajudar os meninos de rua a se
livrarem das drogas.
Devido a reformas estruturais no Terminal Central, a Casa Guadalupana foi transferida
para o viaduto do Laurão por volta de 2001. O problema é que a Casa foi construída
literalmente debaixo do viaduto. O Laurão é a continuação da Av. Moraes Salles que passa
por cima da Av. Princesa d´Oeste e é um point de meninos de rua desde quando eu me
conheço por gente. Quando eu era criança eu me lembro de passar de carro uma vez com
minha mãe e ver um menino com o rodinho passando nos carros. A incidência de meninos de
rua no Laurão é intensa e antiga; e tem sobrevivido a todo tipo de reformas urbanas e nos
serviços de atendimento à população de rua. Esse movimento de meninos de rua no Laurão
guarda um padrão: eles chegam, vão pro sinal, pedem dinheiro ou trabalham no rodinho,
juntam uma determinada quantia e “sobem” para comprar drogas(crack e maconha), eles vão
para o mocó deles usam a droga e voltam para o sinal, essa é a rotina do Laurão, essa é a
rotina de quem está “ibernado” no crack, é todo dia a mesma coisa. Quase todos educadores
ouvem falar desse movimento, mas quando se toma consciência dele, todos entramos em crise
com nosso trabalho, é muito difícil concorrer com o crack.
Neste contexto, os educadores do Mano a Mano se transferiram em 2004 para a Casa
Guadalupana. Esta era o local em que os usuários do tratamento iam realizar o décimo
segundo passo, e a Casa disponibilizava banho e lanche para os meninos, com a
racionalização, a Casa não poderia mais servir nem lanche nem disponibilizar banho, que
seriam competência de outros serviços espalhados pelo centro da cidade. Portanto a Casa
corria o risco de ser fechada. Ao mesmo tempo, o grupo Mano a Mano desenvolvia um
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trabalho na rua que se destacava por sua técnica original, a arte-educação. Desta forma, dois
educadores do Mano a Mano foram contratados pela Casa Guadalupana para desenvolverem
seu trabalho. A competência desses educadores constituía-se basicamente em referenciar as
crianças e adolescentes em situação de rua à rede de atendimento e desenvolver atividades
pedagógicas no espaço da rua.
A idéia de rede significa na prática que todos os serviços que atendem adolescentes em
situação de rua devem compartilhar informações sobre os meninos e trabalhar para a
construção de procedimentos padronizados para todos os serviços, que à época (final de 2005
a começo de 2007) eram compostos basicamente por Casa Guadalupana (Educação Social de
Rua); Pernoite Protegido (Pernoite); Betel (Casa de Passagem), Craísa (Centro de Saúde
especializado em criança e adolescente em situação de risco); Sala de Transição (Sala de
ensino formal); e depois a Taba (Centro de Vivência voltado para os adolescentes). Todos
esses espaços ficavam na região central da cidade e atendiam diretamente os adolescentes;
complementavam essa rede os abrigos especializados em adolescentes em situação de rua,
sendo o masculino vinculado à Instituição Pde. Haroldo e o feminino vinculado ao Instituto
Souza Novaes, ambos em áreas mais afastadas da cidade.
Esses dois educadores do Mano a Mano contratados, efetivados como educadores da
Casa Guadalupana, se depararam com uma situação bastante peculiar: eles acreditavam que
seu trabalho era ir para o espaço da rua, desenvolver atividades de arte-educação, ao mesmo
tempo, os meninos queriam entrar na Casa, ficar na Casa, tomar banho e tomar lanche, só que
não tinha mais lanche, e era proibido deixá-los tomar banho sob pena do serviço ser fechado
pela Prefeitura. Some a isso a forte ideologia existente na época que trabalho de educador de
rua era pegar o menino na rua e levar para o abrigo, ou para o tratamento de dependência
química.
Quando eu entrei no começo de 2005 foi esse o quadro no qual eu encontrei a Casa
Guadalupana, éramos dois educadores de rua, uma assistente social e um funcionário de
manutenção e limpeza que na verdade trabalhava como educador. Das duas competências que
tínhamos, enquanto educadores, referenciar o adolescente na rede e desenvolver atividades
pedagógicas no espaço da rua, cumpríamos as duas, mas só éramos considerados pela
primeira, no que diz respeito a SMAS.
No meu primeiro mês de trabalho nós ficamos sem assistente social e eu e meu colega
nos deparamos com o seguinte relatório para ser preenchido:
Crianças e adolescentes atendidos pela Casa Guadalupana no mês
Nome
Filiação
Origem
Data nascimento
Encaminhamento
Filiação é o nome da mãe. Origem é o bairro em que a mãe mora. Encaminhamento é
para onde eu mandei o adolescente. Se eu o encaminhei ao Pernoite, eu registro Pernoite. È
um jargão técnico, por que não basta mandar o adolescente, encaminhar é acompanha-lo,
apresenta-lo à equipe do serviço e depois ligar para o serviço para saber como foi,
dependendo do encaminhamento é preciso acionar o Conselho Tutelar. Toda vez que você faz
um atendimento de um menino você tem que registrar esse atendimento, que é contabilizado.
Cada adolescente atendido no mês você deve registrar o encaminhamento dado ao caso. Esse
procedimento permitiria ao SMAS calcular a eficiência do serviço estabelecendo uma relação
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entre o número de atendimentos e o número de encaminhamentos. Na verdade, esse tipo de
relatório não existe mais. Mas qual a pergunta escondida por detrás dele? A pergunta é:
Quantos adolescentes vocês tiraram da rua? A nossa única resposta para essa pergunta
sempre foi: nenhum, por que não acreditávamos que aquele fosse o caráter do nosso trabalho.
Eu acredito que esse relatório revela o dilema fundamental de um coordenador de
programa de educação de rua, que é o dilema entre limpeza social/controle e desenvolvimento
do projeto pedagógico. Basicamente, o trabalho do coordenador é segurar a fome e a ânsia do
Estado por limpeza e controle social para garantir que os educadores tenham o maior grau de
liberdade possível para criarem seus projetos pedagógicos e poderem vir a desenvolvê-los
com os adolescentes.
Quando eu me deparei com esta situação a primeira vez, a de responder a esse tipo de
pergunta, a pressão por limpar as ruas ainda era forte e nosso trabalho de arte-educação ainda
era pouco reconhecido, portanto, a estratégia que tomamos foi a de produzir relatórios que
traduzissem toda especificidade e qualidade do nosso trabalho. Elaboramos um relatório
qualitativo, que relatava cada atividade pedagógica desenvolvida, com cada um dos meninos,
quais as habilidades que aquela atividade desenvolvia; especificamos cada lugar no qual
fazíamos atividades, quais lugares encontrávamos os meninos e em que horários, entre outras
coisas.
A medida que segurou a tendência por limpeza social, ou seja, a produção de relatórios
ricos em informações, em dados e em números; nos colocou em uma nova armadilha que
envolvia a lógica da produtividade do serviço, o controle da população de rua e a produção de
um conhecimento sobre ela. Entrar na lógica da produtividade teve seus benefícios, quando eu
saí da Casa Guadalupana em 2007 ela era o serviço de atendimento a criança e adolescente
em situação de rua que mais recebia recursos públicos, que tinha a maior equipe, e mais
visibilidade, por que havia se mudado para o lado do prédio da Prefeitura e tinha uma equipe
que percorria toda a cidade. E quanto aos projetos eram os mais maravilhosos que eu já tinha
visto na vida, que eu nunca teria sido capaz de imaginar. Os educadores desencadearam um
processo com os meninos que ninguém mais podia parar, nem mesmo o coordenador, hoje em
dia eu sei que eles têm um grupo de música, um grupo de cinema e até um de caderno mensal
de poesias.
O controle da população de rua apareceu de forma sutil, os serviços, a partir de 2006
deveriam se organizar de modo a não deixar nenhum tempo de sobra para os meninos de
rua(caso eles estivesse dispostos a colaborar). Foi elaborado um roteiro diário do menino de
rua, de manhã ele acorda no Pernoite Protegido, vai para a Taba, que era um espaço de
vivência do adolescente, a tarde fica fazendo atividade com os educadores da Casa
Guadalupana e de noite volta para o Pernoite Protegido. Perfeito, só que na prática não
funcionava.
A própria mudança da Casa Guadalupana do Laurão para a Av. Anchieta no final de
2006 reflete esse processo de busca por controle. A justificativa foi a obra para contenção das
enchentes, mas ao término da buraqueira a casa ainda estava lá, e foi derrubada depois. Eu
não me lembro a forma como fui informado da demolição, apenas de que nunca fui
consultado enquanto coordenador do programa de educação social de rua. Eu acredito apenas,
que o projeto de reforma urbanística do Laurão não incluía os meninos de rua.
A transferência da Casa Guadalupana para a Av Anchieta n.352 incluía a
transformação desta em um espaço de convivência para os adolescentes. Eu nunca fora
entusiasta desse projeto, eu nunca entendi essa ânsia por colocar os meninos em espaços
fechados e eu sequer sabia de onde vinha essa tendência. De fato, nunca me foi apresentada
uma justificativa pedagógica ou mesmo disciplinar.
É difícil lutar quando você não encontra seu inimigo. A comissão Criando Redes de
Esperança ligada ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente(CMDCA),
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responsável pela confecção das diretrizes das políticas públicas para criança e adolescente em
situação de rua estava esvaziada, o único espaço que nos restava era a reunião da rede de
atendimento à criança e adolescente, que tinha o objetivo de construir procedimentos comuns
a todos os serviços, na época(2006) ela estava polarizada entre as duas grandes instituições
não governamentais que comandam os serviços de atendimento à população de rua: o
Instituto Souza Novaes comandava o Pernoite Protegido, o abrigo feminino e o tratamento
para drogas; e a Instituição Padre Haroldo comandava a Casa Guadalupana, o abrigo
masculino e o tratamento para drogas. E eu era o representante direto da Instituição Padre
Haroldo nessa reunião. Não era ali, também, o lugar em que as decisões eram tomadas. O
projeto de transformação da Casa Guadalupana numa Casa Aberta. era vertical. No começo
de 2007 este projeto já estava praticamente consolidado, faltavam apenas alguns ajustes.
Desde seu surgimento a Casa Guadalupana fez um movimento interessante, em menos
de 7 anos ela foi: uma casa que os meninos lanchavam e tomavam banho, uma equipe de
educação de rua e referenciamento à rede de serviços; e depois isso e um centro de vivência
para os adolescentes. Eu participei desse projeto nesses dois últimos momentos.
Descendo na hierarquia, se o campo de ação de um coordenador de programa de
educação de rua é limitado, o de um educador de rua o é muito mais. Pra mim, o trabalho de
um educador de rua é análogo ao de um pescador, você passa o dia inteiro parado segurando
uma vara de pescar, quando o peixe morde a isca você precisa ser rápido e preciso no seu
movimento para pescá-lo, se errar, o peixe escapa e pode não voltar mais. Pra mim, o trabalho
de um educador de rua é a mesma coisa, você passa o dia inteiro acompanhando menino pra
lá, menino pra cá, abre porta, fecha porta, vai na praça, vai no terminal não tem ninguém,
cumpre ordem, preenche relatório e por aí vai até o momento que o menino faz aquela
pergunta que te deixa sem chão, é esse o momento em que ele dá a brecha, é esse o momento
que você tem de agir.
Eu gostava de sentar no meio dos meninos no Laurão e ficar ouvindo a conversa deles,
eu ficava quieto, como se nem estivesse ali ou como se eu fizesse parte da banca deles, eles
ficavam contando vantagem sobre drogas, até que um virou pra mim e falou: tio, você usa
droga, você tem a maior cara de quem usa droga. Eu acho que esse é um momento que o
educador tem que aproveitar para trabalhar. Eu penso que nesse momento, o menino quer na
verdade saber minha opinião, o que eu penso sobre drogas, por que um educador é sempre um
referencial de responsabilidade e maturidade para os meninos. Eu acho que esse tipo de
situação é boa para desencadear um debate sobre drogas, sobre lei, sobre como elas agem no
nosso corpo, sobre o preconceito contra quem fuma crack, se é possível viver na rua e não
usar droga, por exemplo.
Desse exemplo decorre minha definição de educação social de rua: fomentar um
processo que permita ao adolescente formar as ferramentas intelectuais para que ele possa
através delas construir suas perspectivas de futuro. Pensar, a partir da realidade da rua, quais
são os caminhos possíveis. Pois, para haver um futuro é preciso primeiro imaginá-lo.
Era mais ou menos esse o discurso que eu usava para defender minha profissão e acho
que ele explica em parte o trabalho de um educador de rua. Talvez ele explique mais a
experiência que eu tive, e não a de meus colegas. É importante lembrar que educador social
de rua é uma profissão que ainda não há lei que a regulamente, portanto, não há critérios para
definir quais suas competências e qual a formação exigida para o cargo.
Depois de quase 2 anos de afastamento eu vejo as coisas por outro prisma, o da
comunicação. A tarefa mais importante que o educador social de rua cumpre é equivalente a
de um tradutor. Ele traduz o universo institucional-burocrático e o mundo adulto em geral
para os meninos de rua e traduz o universo da rua para os profissionais da rede de
atendimento ou mesmo sociedade em geral, evidenciando a riqueza de significados da vida
nas ruas.
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Um exemplo de tradução desses universos é quando um adolescente não pode entrar
no Pernoite Protegido portando certos tipos de objetos pessoais, como por exemplo uma
blusa, então ele desiste de abandonar a blusa e vai dormir na rua. Compete ao educador de rua
explicar ao adolescente a lógica de um procedimento que ele mesmo não acredita e ele se
desdobra para isso. Situações como essa acontecem todos os dias, a todo o tempo, elas são o
cotidiano do trabalho.
Um exemplo no sentido inverso é mais difícil, mas uma das vezes em que fui à
Comissão de abrigos, comissão vinculada ao Conselho Municipal de Assistência Social
(CMAS), que decide as normas dos abrigos para crianças e adolescentes, eu fui solicitar que
aceitassem a visita de educadores nos abrigos, pois muito deles não permitiam ou faziam de
tudo para dificultar. Em alguns dos abrigos, o adolescente é convidado a apagar toda a sua
vida anterior a chegada no abrigo e a começar vida nova, e a visita do educador de rua é vista
como a reativação de laços ruins, que trazem más lembranças. Eu disse que o vínculo entre o
educador e o adolescente é um vínculo afetivo e, portanto, positivo na vida futura dele, que o
que a gente aprende na rua vale para a vida toda.
Infelizmente esse discurso de que a rua é vazia em significados, de que só tem coisas
ruins ou de que mesmo não teria regras (o universo da rua é extremamente regrado) segue
forte. Neste exercício de traduzir o universo da rua, de expressar esse sentimento do que é
morar nela, da dor de contar e continuar doendo é que eu faço uma defesa da arte-educação.
Através da arte, o educador deve auxiliar esses meninos a se comunicarem com o universo
dos outros, pois a arte é uma linguagem universal, que talvez possa vir a restabelecer o mundo
comum o qual todos compartilhamos.
3. Considerações finais
Esse caminho tortuoso pretende 3 conclusões: o trabalho da Casa Guadalupana é
devedor do trabalho do Mano a Mano, que por sua vez é devedor tanto da pesquisa de
Frangella quanto da pesquisa de Gregori. Eu tentei reconectar esses pontos perdidos.
Eu quis visualizar um projeto arquitetônico na cidade que incorpora a população de
rua de modo perverso. A reforma do Laurão, a ampliação da Casa Guadalupana, a formação
da Casa da Cidadania, o desestímulo a distribuir comida na rua montam uma imagem de
cidade sem morador de rua. Se tomarmos em conta os projetos de lei que circulam na Câmara
dos Vereadores de Campinas que pretendem a proibição da mendicância e dos vendedores
ambulante nos sinaleiros, e a construção do Centro Cultural Unicamp, que implicou no
desalojo da favela da Mogiana, esse projeto revela-se ainda mais perverso.
E para terminar, apesar do meu diagnóstico ser pessimista, eu quero dizer que ainda
acredito em nossos respectivos trabalhos, de educadores, militantes e antropólogos; pois
acredito que será através deles que poderemos desarmar as armadilhas nas quais estamos
todos encerrados. E acredito ser a tarefa do antropólogo a de desvendar a lógica desse sistema
que por vezes parece não ter lógica.
Referências
FRANGELLA, SIMONE MIZIARA. Capitães do asfalto: a itinerância como construtora da sociabilidade de
meninos e meninas “de rua” em Campinas. Campinas – SP. Dissertação de Mestrado. IFCH/Unicamp, 1996.
GREGORI, MARIA FILOMENA. Viração: experiência de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
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CENTRO DE ACOLHIMENTO E ATENDIMENTO MAIS VIVER: O DESAFIO DE UMA
NOVA ABORDAGEM PARA OS MORADORES DE RUA ADULTOS EM CURITIBA
Cleide de Souza de Oliveira
Elisabete do Rocio da Silva Buiar
Roseli Carvalho Muraski1
RESUMO: Este artigo aborda a experiência de trabalho do Centro de Acolhimento e
Atendimento Integral Mais Viver - CAAI Mais Viver, no município de Curitiba. O CAAI
Mais Viver visa atender a população de rua adulta proporcionando um espaço de
abrigamento, visando o rompimento de vínculo existente entre os usuários e a rua,
oferecendo um ambiente de respeito e dignidade, conforme o disposto na Política
Nacional de Assistência Social/04. Tal proposta originou-se em 1999, após o Município
perceber que uma grande parcela de usuários em situação de rua não respondia aos
encaminhamentos
propostos,
muitos
apresentando
transtornos
mentais.
O
equipamento oferece proteção social especial de alta complexidade, ou seja, garante
as seguranças de sobrevivência; convívio e de acolhida. Na rotina diária do trabalho
são realizadas atividades comuns e outras em pequenos grupos, respeitando
interesses individuais e habilidades. Há um trabalho com enfoque interdisciplinar que
envolve médicos, enfermeira, assistentes sociais e gerências, de modo a refletir sobre
os encaminhamentos, demandas, dificuldades, avanços e desafios, enfim avaliando o
trabalho e buscando novas alternativas de atendimento. Objetivamos que estas
pessoas recuperem a auto-estima, tenham a instituição como referência de “casa”, e
desta forma, comecem a transformar a trajetória de suas vidas, através da
convivência, respeito e responsabilidade, resgatando a verdadeira identidade destes
cidadãos.
Palavras chave: assistência social; população de rua adulta; saúde mental.
Eixo 1: políticas setoriais
1
Coordenadora da Central de Resgate Social, assistente social, Fundação de Ação Social, Rua
Conselheiro Laurindo, 792 – Centro – Curitiba/Paraná, CEP 80060-100 – fone: 41 33107556 ou 33107549 - email: [email protected] ou [email protected]
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INTRODUÇÃO
A instabilidade econômica de vários setores refletem na ordem social, mostrando
situações de desigualdade. Vivenciamos um estado de incoerência, da abundância à
necessidade, do luxo à miserabilidade. Diante destas situações de desigualdade,
verificamos caso de indivíduos sem acesso aos mínimos sociais: alimentação,
vestuário, habitação, saúde, educação, emprego, formação profissional entre outros,
como prevê a PNAS – Política Nacional de Assistência Social.
Neste quadro de instabilidade, perante a situação de miséria, desemprego, falta de
habitação, acesso à educação, falta de informação e outros, muitas famílias se
desestruturam, causando separação no grupo familiar, dependência química,
abandono, violência, negligência, dentre outras situações de vulnerabilidade social.
Neste contexto social é que muitas pessoas são levadas a sobreviver nas ruas, ou em
instituições, desde a sua infância. Para manter a sobrevivência, praticam,
principalmente, atividades informais de trabalho, mendicância, prostituição, furtos e até
tráfico de drogas. Cabe ressaltar que alguns indivíduos vão para a rua não somente
pela baixa condição financeira, mas também como conseqüência da dependência
química ou pela condição de portador de transtorno mental.
No atendimento à população moradora de rua pela FAS/SOS, constatou-se a
existência de uma parcela de pessoas, que se encontravam a muitos anos em
situação de rua, identificados como crônicos. Após a Reforma Psiquiátrica ocorrida em
meados dos anos noventa, como resposta a um contexto neoliberal, ocorreu a
desospitalização dos pacientes considerados institucionalizados, com redução
significativa de leitos em Hospitais Psiquiátricos. Tal fato acarretou a necessidade de
prestar atendimento a esta demanda que apresentando a perda do vínculo familiar
adota a rua como local de sobrevivência. Para que se tornasse possível um
atendimento efetivo e integral a esta população foi implantado o Centro de
Acolhimento e Atendimento Integral Mais Viver – CAAI Mais Viver.
O CAAI Mais Viver visa atender a população que se encontra em situação de rua.
Possui capacidade para atender sessenta pessoas, sendo trinta do sexo masculino e
trinta do sexo feminino. A proposta do equipamento é proporcionar espaço de
abrigamento temporário, visando o rompimento de vínculo existente entre os usuários
e a rua através de rotinas de vida diferentes daquelas estabelecidas com a rua,
oferecendo um ambiente de respeito e dignidade, conforme o disposto na Política
Nacional de Assistência Social/04 que estabelece “os serviços de proteção social
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especial de alta complexidade” como aqueles que devem garantir as seguintes
seguranças: de sobrevivência; de convívio e de acolhida.
Deste modo, apresentaremos, além desta introdução, o histórico do CAAI Mais Viver,
sua prática de trabalho, breve perfil da demanda atendida e, por fim a conclusão.
OBJETIVO
O presente texto tem a intenção de demonstrar a experiência que se desenvolve no
Centro de Acolhimento e Atendimento Integral Mais Viver (CAAI Mais Viver), mantido
pela Fundação de Ação Social – FAS, órgão gestor da Política de Assistência Social
no Município de Curitiba.
O CAAI Mais Viver tem como demanda a população adulta que permanece nas ruas
do Município de Curitiba, sem referência de moradia, com capacidade de locomoção e
autonomia para realizar atividades da vida diária, susceptível à situação de risco
social, e com a qual não foi possível o trabalho de inclusão social pelos outros
equipamentos, ou em outras palavras, encontra-se em situação de vulnerabilidade
social e, até vulnerabilidade psíquica.
Assim, o CAAI Mais Viver tem como objetivo geral: proporcionar atendimento integral a
população de rua, visando a inclusão social e o restabelecimento de sua autonomia,
cidadania e dignidade, por meio da busca da identidade, valorizando sua história,
incutindo-lhe um sentimento de pertencimento ao grupo.
DESENVOLVIMENTO
HISTÓRICO
A FAS, iniciou no ano de 1994 um trabalho social junto a população de rua do
Município de Curitiba, constatando a presença de pessoas e grupos em diversos
locais da cidade, em número significativo, sobrevivendo em condições de indigência,
abrigando-se sob viadutos, marquises, construções e/ou casas abandonadas.
Em julho de 1995 passou a funcionar um Centro de Triagem, denominado de
FAS/SOS. O objetivo inicial deste atendimento foi de beneficiar a população de rua
através da abordagem, recolhimento, triagem social, serviços de higienização, troca de
roupas,
alimentação,
atendimento
médico
ambulatorial,
albergagem
e
encaminhamentos aos recursos desta Fundação e/ou outros recursos da comunidade,
buscando reabilitação e tratamentos específicos.
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Foi realizada no ano de 1998 uma avaliação do trabalho que vinha sendo realizado,
onde foi possível observar que, por mais esforço que se fizesse um grande número de
usuários não respondiam aos encaminhamentos propostos.
Detectou-se também que grande parte das pessoas atendidas pela FAS/SOS foram
criadas em instituições ou na rua, devido a histórias de desestruturação do grupo
familiar, violência, dependência química e outros fatores. Conforme diagnóstico
médico observou-se um quadro significativo de cronicidade no comprometimento físico
ou mental.
Buscando oferecer um atendimento integral a esta população que não respondia aos
encaminhamentos propostos foi implantado o CAAI Mais Viver, com início de suas
atividades em período experimental na data de 09 de dezembro de 1999.
PRÁTICA DE TRABALHO
O Centro de Atendimento e Acolhimento Integral Mais Viver possui o seguinte
quadro funcional: 21 educadores sociais, 02 assistentes sociais, 01 cozinheira, 01
auxiliar de lavanderia, 03 zeladoras, 02 motoristas (01 noturno e 01 diurno), quatro
guardas municipais ( 02 diurnos e dois noturnos), 01 médico (clínico geral, que vem
à unidade 02 vezes por semana, pelo programa de saúde da família – PSF), 01
auxiliar de enfermagem, 01 gerente e um sub-gerente.
Os usuários são encaminhados para atendimento no Centro de Acolhimento e
Atendimento Integral Mais Viver, pela Central de Resgate Social, que faz
abordagens nas ruas de Curitiba. Ao serem encaminhados para a unidade, os
usuários são acolhidos pelos educadores sociais, que apresentam a unidade e
realizam a acomodação deste em quarto, encaminham para o banho se necessário,
e em seguida são encaminhados para o Serviço Social.
As assistentes sociais realizam entrevista inicial, resgatando um pouco da história
do usuário, dando continuidade no acolhimento, “no sentido de escuta de apoio, da
atenção com afetividade..., é poder dar conta da demanda posta profissionalmente,
e para o Serviço Social, é colocada a procura por direitos sociais das classes mais
pauperizadas da rede pública (BISNETO, 2005, p. 124)”.
Na rotina diária do trabalho são realizadas atividades comuns, como: higiene
pessoal (banho, escovação de dentes, barba...), escala de tarefas de limpeza
(varrer refeitório, passar pano no chão...), alimentação e outras. Todas estas
atividades são acompanhadas e orientadas pelos educadores sociais.
São também oferecidas oficinas de atividades, como: musicalização para adultos,
alongamento e antiginástica, caminhada diária, artes manuais (tricô, crochê,
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bordado...), tear, jogos e brincadeiras, artes visuais e passeios turísticos quinzenais.
Os usuários são convidados a participar destas atividades, procurando motivá-los,
sempre respeitando seus interesses individuais e habilidades.
O tratamento médico é realizado na própria unidade, sendo que o médico (PSF)
atende duas vezes por semana em consultório local, prescrevendo medicações ou
realizando encaminhamentos para especialidades, fisioterapia, fonoaudiologia,
psicologia, psiquiatria, infectologia e outros. Ao serem encaminhados para as
especialidades citadas, os usuários são acompanhados pelo educador social e,
algumas vezes
pela
assistente social, que realiza acompanhamento em
especialidade médica, geralmente psiquiatria, quando é necessário dar informações
sigilosas ao médico, sempre com autorização do usuário.
As reuniões de atendimento familiar em Hospitais Psiquiátricos, onde eventualmente
alguns usuários estejam internados, são acompanhadas pelas assistentes sociais,
bem como as visitas, são realizadas tanto pelo educador social, como pelas
assistentes sociais. Durante as visitas aos usuários internados, principalmente aos
pacientes psiquiátricos, procura-se dar escuta de apoio e atenção, preparando-os
para a alta hospitalar, onde deverão sentir-se bem-vindos quando retornarem à
unidade, fazendo-os sentirem-se como parte integrante do grupo de usuários.
As assistentes sociais realizam entrevistas sociais onde procuram levantar dados de
história de vida, realizam orientações e informações, buscas em cartórios para dar
início ao processo de identificação do usuário, que muitas vezes chega na unidade
sem ter documentação que o identifique.O Serviço Social divide-se em duas alas:
masculina e feminina, ficando uma assistente social responsável pela ala feminina e
outra pela ala masculina. Sistematicamente, são realizadas reuniões com as
assistentes sociais e gerências, onde se procura refletir sobre encaminhamentos,
demandas, dificuldades, avanços, desafios, bem como avaliar o trabalho, buscando
novas alternativas de atendimento.
Dentro de um enfoque interdisciplinar, também são realizadas reuniões com os
médicos responsáveis pelo atendimento, enfermeira, assistentes sociais, e
gerências, com o objetivo de avaliar a evolução clínica e/ou psíquica, buscando
novas alternativas de tratamento (farmacológico, terapias, psicossocial e outros).
São realizadas também reuniões semanais da Pastoral da Sobriedade por
voluntários, onde são trabalhados os doze passos da sobriedade, sendo que a
metodologia foi adaptada para este grupo, trabalhando-se valores, convívio social,
projetos de vida e outros. Também foi formado, por voluntários um grupo de
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Alcoólicos Anônimos, sendo que deste grupo participam somente os usuários com
dependência química.
PERFIL DA DEMANDA ATENDIDA
Para elaborar o presente perfil utilizamos os dados obtidos a partir dos registros dos
usuários atendidos no mês de maio/2006. A demanda atendida pelo CAAI Mais Viver
apresenta as seguintes características: em relação ao gênero observa-se número
superior de mulheres com 51% dos atendimentos, embora a porcentagem masculina
também seja significativa representada por 49% do total de vagas. A grande incidência
de mulheres pode ser entendida porque elas, por toda uma cultura histórica de
subserviência, integram-se melhor às normas de instituições (albergues, casas de
apoio...). Talvez, como uma forma de buscar segurança, visto que nas ruas a violência
a que estão expostas é gritante (principalmente abusos sexuais).
A faixa etária predominante vai dos 46 aos 60 anos correspondendo a 42,40% das
pessoas atendidas; as mulheres representam 28,80 desta porcentagem. Em segundo
lugar obtivemos 27,11% de usuários com idades de 31 a 45 anos, nesta faixa etária
observamos número superior de homens. Os dados mostraram 18,64% de usuários
idosos, com idades acima de 60 anos, neste caso, sendo superior o número de
homens (13,60%). Dos 18 aos 30 anos encontramos 8,47%
dos usuários,
dois
usuários não possuem identificação formal, e perfazem o percentual de 3,38% dos
atendimentos.
Observamos que 38,96% dos usuários atendidos estão ainda numa faixa de idade que
pode ser considerada apta ao trabalho, mas devido a inúmeros fatores encontra-se
fora do mercado de trabalho formal e, portanto, buscam a instituição como maneira de
garantir sua sobrevivência.
Um destes fatores está baseado nas exigências do mercado de trabalho que está se
tornando cada vez mais seletivo, cada vez mais se exige maior qualificação e
experiência. Como resultado desta seletividade observa-se a exclusão do trabalho,
seja porque são jovens demais e não tem experiência, seja porque são considerados
velhos para o mercado de trabalho. Outros fatores que podem influir nesta exclusão,
são: a baixa escolaridade destes sujeitos, a falta de documentação, a ausência de um
local fixo para morar e também o alcoolismo.
Em relação às doenças apresentadas considerou-se a enfermidade de maior
predominância em cada usuário, embora muitos apresentem associação de várias
moléstias. Com menor índice observamos usuários com manifestação de quadros
clínicos somente (diabetes, hipertensão, obesidade, entre outros), numa porcentagem
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de 3,38% do total de usuários. Os portadores de deficiências representam 10,16% da
demanda, representadas por deficiências físicas, auditivas ou múltiplas. As
dependências químicas representam 23,72% dos problemas de saúde, sendo que
destes, 11,86%, ou seja, metade apresenta transtorno decorrente do uso do álcool, a
maior incidência aparece no sexo masculino. Em relação ao transtorno mental,
observou-se que 62,74% apresenta algum tipo de transtorno, neste caso, as mulheres
apresentam maior incidência (44%). Entretanto se acrescentarmos o número de
transtornos decorrentes do uso abusivo de álcool, a porcentagem de portadores de
transtorno mental eleva-se para 74,60%.
Apenas 3,38% são portadores do
diagnóstico SIDA.
Segundo VASCONCELOS(2000), “o transtorno mental tem origem multifatorial
(biológica, social, psíquica e cultural) e é identificado sobretudo pelos sintomas, com
freqüência o comportamento desviante, transgressor, que viola as normas socialmente
aceitas”, deste modo, o portador de transtorno mental é remetido a uma condição de
dependência por necessitar de cuidados contínuos. Este cuidado, geralmente cabe à
família, e na ausência desta, às instituições.
O diagnóstico social demonstrou que 16,95% dos usuários aguardam algum tipo de
documentação pessoal; 13,62% não possuem referências familiares; enquanto
11,86% possuem familiares, embora os vínculos afetivos estejam fragilizados. A
mesma porcentagem é verificada para os usuários que atendem os critérios para o
recebimento do Benefício da Prestação Continuada, conforme dispõe a LOAS (Lei
8742/93), a Lei 9720/98 e outras medidas legais. Os usuários que aguardam
encaminhamentos (transferência para instituições conveniadas, Instituições de Longa
Permanência, ou de saúde) somam 8,47%, enquanto 6,77% aguardam retorno
familiar; a mesma parcela de usuários encontra-se em investigação social. A
porcentagem de 5,08% repete-se para aqueles que têm familiares institucionalizados;
aguardam resolução de casos sócio-jurídicos; têm possibilidades de inserir no
mercado de trabalho, ou então, para os que foram institucionalizados desde sua
infância. Apenas 3,38% dos casos foram encaminhados ao Ministério Público devido
ao abandono familiar ou irregularidades de tutela.
A obtenção dos documentos, muitas vezes, parece resgatar a identidade perdida da
população de rua. VIEIRA (1994) assim descreve: “Efetivamente eles, muitas vezes,
tiram novos documentos e tornam a perdê-los. O ritual do documento parece conter,
simbolicamente, a tentativa reiterada de adentrar as portas da cidadania que
resgataria sua identidade perdida”. Observamos, pela prática de trabalho, que muitas
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vezes, há alterações no nome com que se autodenominam, e de fato, para a inclusão
na cidadania, o documento formal é essencial para requerer benefícios assistenciais,
obtenção de medicação, ou mesmo para promover uma morte digna. Enfim, a
documentação lhes dá existência legal.
Com relação à família é possível afirmar que a precariedade de condições para
sobrevivência acaba gerando situações de conflitos que podem resultar na perda do
vínculo ou mesmo na expulsão de algum membro do núcleo familiar. Por outro lado,
observa-se também que muitos usuários evitam o contato com a família por
acreditarem que são um estorvo, um peso para os familiares, por todo o histórico de
vida.
CONCLUSÃO
Pode-se constatar que o trabalho realizado com a população adulta em regime de
abrigamento em uma instituição pública é um trabalho novo, onde não se encontra
muitas referências bibliográficas, nem mesmo relatos de experiências.
O diferencial no histórico do CAAI Mais Viver deve-se ao fato de que este trabalho foi
proposto, inicialmente, para atender uma população que já se encontrava em situação
“crônica de rua”. Posteriormente, percebeu-se que grande parte desta população
possuía algum tipo de transtorno mental, seja em decorrência da dependência
química, das conseqüências da vida na “rua” e outros fatores. Como a equipe não
conta com profissionais da área “psi”, muitas vezes encontramos dificuldades no
desenvolvimento do trabalho, principalmente, nos momentos em que os usuários
apresentam “crises psiquiátricas” e necessitamos contatar com profissionais externos.
Conforme BISNETO (2005): “Boa parte dos problemas que o serviço social tem na
atuação em Saúde Mental, advém do fato de atuar na seguridade social num contexto
neoliberal, de reduzido investimento público na saúde, previdência e Assistência
Social. Na prática, esta situação limita as possibilidades de ação do Serviço Social.
Por exemplo, a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que impõe
tantas condições, que sua aplicabilidade fica restrita a poucos casos. Com poucos
direitos previdenciários, fica difícil fazer reabilitação psicossocial do ponto de vista de
cidadania efetiva”.
Observa-se, na prática do serviço social, que os itens relacionados para concessão do
BPC, durante perícia médica, levam em consideração a dependência total de terceiros
para as atividades de vida diária, o que não se aplica aos portadores de transtorno
mental. Compreendemos que o requisito incapacidade para a vida independente não
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exige que a pessoa possua uma vida vegetativa ou que seja incapaz de locomover-se;
não significa incapacidade para as atividades básicas do ser humano, tais como:
alimentar-se, fazer a higiene e vestir-se sozinho; não impõe a incapacidade de
expressar-se ou comunicar-se; não pressupõe dependência total de terceiros. A
incapacidade apenas indica que a pessoa portadora de deficiência não possui
condições de autodeterminar-se completamente ou depende de algum auxílio,
acompanhamento, vigilância ou atenção de outra pessoa, para viver com dignidade.
Com relação ao atendimento ao portador de transtorno mental, encontramos
dificuldades devido à desarticulação entre os serviços, ou seja, quando o usuário sai
do internamento, não sai com encaminhamento para Hospital-dia, CAPS, serviços
ambulatoriais ou reavaliação psiquiátrica, muitas vezes, só voltando a ser atendido
novamente, quando tem uma nova crise.
Vivemos num contexto de um mundo em mudanças, como coloca BREIH (1991): “ a
crise atual é a expropriação da esperança”... Interpretando um olhar de diferentes
teóricos sobre estes tempos, encontramos uma questão sempre presente para os
profissionais de saúde: “quais as ações em saúde possíveis no contexto político e
econômico de nossos dias”?
Nosso esforço e nosso desafio são para que estas pessoas recuperem a autoestima, tenham a instituição como referência de “casa”, e desta forma, comecem a
transformar a trajetória de suas vidas, através da convivência, respeito e
responsabilidade, resgatando a verdadeira identidade destes cidadãos.
Conforme ROSA (2003), “O cuidado de um portador de transtorno mental é
concebido como um trabalho complexo e como um modo de ser, que, longe de
qualquer naturalização (...) constrói-se no ensaio e erro da experiência cotidiana”.
Desta forma, o CAAI Mais Viver passou por um processo onde adquiriu experiência
no cuidado ao portador de transtorno mental, foi possível aprender a manejar as
expectativas em relação ao quadro psicopatológico ( reconhecimento de sinais da
crise, maior tolerância com o comportamento diferenciado, uso da medicação...) e
reduzir
o
sofrimento
dos
usuários
atendidos
possibilitando
o
controle
comportamental do portador de transtorno mental. Apesar das dificuldades
encontradas, podemos afirmar que é um desafio gratificante participar da
construção de um trabalho onde participam diversos tipos de atores ligados às
áreas de saúde, previdência e assistência social.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BISNETO, J. A. Uma análise da prática do Serviço Social em Saúde Mental. In:
Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, (82), 2005.
FUNDAÇÃO DE AÇÃO SOCIAL. Projeto Centro de Acolhimento e Atendimento
Mais Viver. Curitiba, 2006.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE Á FOME. Política
Nacional de Assistência Social – PNAS. Brasília, 2004.
_____________________________________________________________
Norma
Operacional Básica NOB/SUAS. Secretaria Nacional de Assistência Social.
Brasília, 2005.
ROSA, L. Transtorno mental e o cuidado na família. São Paulo: Cortez, 2003.
VASCONCELOS, E.M. et al. Saúde mental e serviço social: o desafio da
subjetividade e da interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2002.
VIEIRA, M. A. C. et al. População de rua: quem é, como vive, como é vista. São
Paulo: Hucitec, 1992.
INTERNET
BELLENZANI, R.
Da vulnerabilidade social à vulnerabilidade psíquica: uma
proposta de cuidado em saúde mental para adolescentes em situação de rua e
exploração sexual.
Disponível em:
www.proceedings.scielo.br/scielo.php?. Acesso em: 10 jun. 2006.
BREIHL, J. In: CARBONE, M.H. Tísica e a rua: os dados da vida e seu jogo.
Disponível em:
www.portalteses.cict.fiocruz.br/transf.php? Acesso em 10 jun. 2006.
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SEMINÁRIO NACIONAL PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA:
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Design, deslocamento e população de rua
Maria Cecilia Loschiavo dos Santos
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU-USP
[email protected]
Lara Leite Barbosa
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU-USP
[email protected]
Milena Kirkelis Bingre
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU-USP
[email protected]
Resumo: O artigo analisa a inserção do design no contexto do crescente número de pessoas
vivendo nas ruas. A metodologia é baseada nas pesquisas: 1) experiência pedagógica com
estudantes de Arquitetura e Urbanismo junto à Cooperativa de Catadores; 2) pesquisa sobre
estratégias de subsistência e adaptação da população de rua; 3) projeto para atender
necessidades de abrigo desta população; 4) pesquisa para desenvolver ferramentas
conceituais e operacionais para o design de instrumentos nomádicos.
Palavras-chave: Design; Nomadismo; Espaço Público.
1. Introdução
Hoje não há um perfil homogêneo de moradores de rua. Fatores comuns como: abandono,
doenças mentais, drogas e álcool contribuem a sua exclusão, porém o aspecto sócio
econômico constitui o principal fator atualmente. Neste novo grupo, há moradores de rua que
já estiveram empregados e já tiveram família.
O morador de rua não possui mais um lar permanente, é repetidamente convocado a construir
e a reconstruir um, ou a levá-lo nas costas. Devido ao instinto natural de sobrevivência eles se
tornam autores de uma arquitetura informal produzida com espontaneidade, mas vista com
desprezo (figura 1).
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FIGURA 1- Morador de rua, São Paulo. Fotografia de Douglas Mansur.
Resta a estes nômades modernos encontrarem suas matérias-primas no cenário urbano, e estas
só podem ser encontradas no lixo, uma vez que todas os bens naturais já foram apropriadas e
agora estão à venda.
Em todo o mundo as tentativas formais de lidar com esta situação tem sido problemáticas. O
arquiteto ou designer, com uma gama de habilidades técnicas e profissionais, têm se colocado
a serviço da comunidade e feito com que seja capaz de ajudar a si própria também.
Ron Bailey categoriza que o massivo problema da população de rua tem alcançado
proporções desastrosas. Ele sugere o uso de propriedades vazias, abandonadas ou posses
públicas excedentes com uma considerável economia de dinheiro público (BAILEY, 1977).
Há outras categorias além de famílias de moradores de rua. Considerando que moradores de
rua sozinhos é o grupo mais diversificado, há um grande número deles vivendo em
instituições do tipo dormitório como abrigos noturnos ou albergues principalmente na Europa.
Sobre as acomodações temporárias, Ron Bailey afirma que elas de modo algum constituem
um lar (BAILEY, 1977, p.49).
2. A experiência pedagógica desempenhada com estudantes da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, na Universidade de São Paulo, junto à Cooperativa de
Catadores – COOPAMARE.
Esta experiência educacional de design para responsabilidade social é conduzida na
Universidade de São Paulo desde 2003 até o presente. É uma investigação da área urbana na
cidade de São Paulo, caracterizada por um intenso conflito social-espacial, com seus vários
usos, particularmente pela locação da Cooperativa de Catadores de materiais recicláveis e
papelão. A questão central era re-pensar o papel do design dos artefatos urbanos como
mediadores de conflitos espaciais, políticos e culturais.
A ênfase do curso era para os estudantes examinarem quais papéis os designers e o design
representam em resolver e exacerbar as questões social, política ou econômica?
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
Uma variedade de tópicos estavam incluídos ao longo do curso, como design de artefatos
urbanos, panorama histórico do design para a sociedade, aspectos da teoria para necessidade,
novas tendências na produção de artefatos urbanos. O curso era organizado como um
seminário, incluindo palestras e trabalho de estúdio. Era requisitado aos estudantes que
visitassem o local, a leitura dos ambientes físico e sócio-cultural, perceber suas características,
identificar problemas ou potencialidades, e sugerir possíveis soluções de design ou
intervenções. Um pequeno número de trabalhos era dado aos estudantes, os quais envolviam
observação, documentação, análise e interpretação crítica. Uma vez que os trabalhos eram
completados, os estudantes apresentavam seus trabalhos em classe e na cooperativa, e como
trabalho final os estudantes apresentavam uma exibição pública de seu trabalho na área que
foi estudada. Estudantes haviam criado propostas significativas e tinham tido uma importante
oportunidade de aprendizado experimental sobre os temas design e conflito urbano, design e
justiça social, design e direitos humanos, design e comunicação, tanto como design e
desenvolvimento de comunidade. Eles haviam trabalhado com uma vasta variedade de
materiais e estratégias, assim como alguns projetos eram diretamente endereçados aos
moradores de rua em condições de catadores.
Um relevante projeto foi apresentado por um grupo de mulheres estudantes, que é uma
estrutura de papelão modular, um produto espacial para múltiplos usos foi projetado para
encontrar diferentes demandas de catadores e moradores de rua.
Esta experiência educacional proveu os estudantes de fortes ferramentas metodológicas,
observação qualitativa e análise para melhorar o diálogo com a população necessitada da área
e encorajou alguns estudantes a ir além de seus projetos, compromissados com aliviar o
sofrimento humano através do design.
3. Resultados de uma extensa pesquisa relacionada à subsistência e estratégias de
adaptação dos moradores de rua nas cidades de São Paulo, Los Angeles e Tókio.
FIGURA 2- Morador de rua, São Paulo. Fotografia de Ken Straiton.
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Como parte de uma pesquisa do habitat informal criado pelos moradores de rua e seu impacto
no ambiente urbano das cidades globais, como São Paulo, Los Angeles e Tókio, intitulada
“Cidades de plástico e papelão”, constatou-se a existência de percursos etnográficos para os
moradores de rua considerados nessas três cidades.
As entrevistas com os moradores de rua indicaram semelhanças entre as estratégias de
sobrevivência desta população, tais como: as áreas urbanas são locais de descarte de
materiais, onde os moradores de rua podem ter acesso ao mercado de sobras, onde existe o
lixo, onde a cultura do lixo de uma sociedade consumidora é mais visível, onde elas podem
buscar por materiais que variam do papel branco ou papelão, ao alumínio. Baseados nestes
lixos estabelecem estratégias de sobrevivência, as quais variam de um momento ao outro.
Geralmente nestas áreas, o morador de rua tem acesso aos serviços de abrigo e distribuição de
alimentos.
Portanto, tanto em Los Angeles, como em São Paulo e Tókio, durante a noite existem áreas
onde o morador de rua pode usar o ambiente urbano construído para estabelecer suas frágeis
estruturas e passar a noite.
Nas áreas circundantes a este centro, é possível notar construções de papelão e uma mistura
de materiais combinados.
O impacto destes arranjos, destes habitats informais que constituem a cidade de plástico e
papelão, exerce uma significante influência na vida da cidade, conduzindo aos novos usos dos
espaços públicos, que freqüentemente geram variadas e adversas reações entre os habitantes
da cidade e o governo municipal.
Todas essas reações são expressões do problema universal da reorganização territorial e suas
implicações nas políticas geográficas desta época em que vivemos. Designers e arquitetos
podem dar suas respostas a esta crise humanitária.
4. Desenvolvimento de protótipos: a tradução do comportamento nomádico no meio
urbano no projeto de uma unidade emergencial de abrigo.
O terceiro aspecto metodológico está baseado num projeto de final de graduação, intitulado
“Faróis Urbanos – o nomadismo contemporâneo”, cujos objetivos incluem o desenvolvimento
de um protótipo de um abrigo emergencial que tenta traduzir a problemática do
comportamento nômade no ambiente urbano. O design desse instrumento baseia-se em uma
extensa análise do modo de vida e sobrevivência do morador de rua na cidade de São Paulo.
O projeto também visa amplificar e denunciar a completa situação de miséria em que se
encontra essa população, questionando, diante deste cenário de exclusão, como arquitetos
poderiam responder a esta questão tão emergencial.
O tema ganha ainda mais complexidade quando que se pretende traduzir no projeto o universo
material do morador de rua, seus hábitos e conflitos como: fome, frio, falta de banheiros
públicos, violência, entre outros.
O termo “farol”, utilizado no título deste trabalho refere-se à idéia de que essas estruturas
seriam acesas, como lanternas, durante a noite, período de maior vulnerabilidade e
invisibilidade. Dessa forma, procura pontuar e tirar do anonimato esta população, eliminando
seu “conveniente” isolamento, já que não passariam mais despercebidos de nossos olhares, e
teríamos, portanto, que nos questionar sobre a miséria e a fragilidade humana em nossa
cidade.
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FIGURA 3- Viaduto Paulo VI, 2003. Fotografia de Milena Kirkelis Bingre.
Principais conflitos observados:
- Invisibilidade social;
- Frio e chuva;
- Abrigos emergenciais costumam deixar seu usuário em contato direto com o solo;
- Roubos. Moradores de rua costumam proteger seus bens, como dinheiro e documentos,
colocando-os sob seus corpos durante períodos de descanso;
- Inexistência de banheiros públicos na cidade. Moradores de rua enfrentam situações
humilhantes quando necessitam utilizar um sanitário;
- Perda da identidade e de um espaço de referência;
- Criação de uma arquitetura espontânea com materiais descartados;
FIGURA 4- Protótipo do abrigo. Fotografia de Pedro Loes.
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Projeto – forma e função
- Criação de um piso elevado. Separação do asfalto, criando um espaço confortável e
termicamente isolado;
- Uso de materiais impermeáveis para proteção contra chuva e umidade. Propõe-se o uso do
plástico Polionda (marca registrada), copolímero de polipropileno. Trata-se de um produto
disponível em placas corrugadas, assim como o papelão. Possui características importantes
para o projeto como: resistência ao frio (-10ºC) e ao calor (120ºC), 100% reciclável,
impermeável e lavável;
- Tornar visível a situação do morador de rua. Uso das cores vermelho e branco (enfatizar o
caráter emergencial da questão) e de um plástico translúcido na cobertura.
- Busca por um espaço mínimo de sobrevivência. Eliminação do supérfluo.
- Criação de um banheiro emergencial dentro do abrigo. Uso de sacolas plásticas amarradas
num assento.
- Forma retrátil e portátil. O piso e o mobiliário (cama, mesa de apoio, espaços de
armazenamento, vaso sanitário) se fundem em uma única estrutura.
- A forma final do abrigo e os elementos de seu espaço interno sintetizam a idéia de “casa”.
No espaço interior há locais para armazenamento de bens pessoais, abaixo do leito, como
forma de proteção desses pertences. Criação de uma mesma ordem espacial em qualquer local
de permanência.
Esta temática de projeto obviamente não se coloca como solução definitiva para o morador de
rua. Ela deve repensar a condição da população nômade hoje no meio urbano. A idéia é que
os próprios moradores entendam como uma proposta de tornar sua situação mais visível.
5. Ferramentas conceituais e operacionais para designers desenvolverem instrumentos
nomádicos.
Este quarto aspecto é baseado em uma pesquisa de doutorado a qual busca redefinir e
desenvolver ferramentas conceituais e operacionais que habilitem designers a operar no
desenvolvimento de instrumentos nomádicos.
Alguns procedimentos para o desenvolvimento de instrumentos nomádicos indicados aos
designers são:
Trabalhar com o design vernacular;
Usar a escala do corpo;
Propôr modelos de Comunidades de vida compartilhada;
Projetar equipamentos para a sobrevivência portáteis e com pouco peso.
Cada procedimento será apresentado com o suporte de um levantamento sobre soluções de
design para situações de mobilidade ou soluções de arquitetura portátil. Bernard Rudofsky,
arquiteto austríaco de nascimento, é a referência teórica que guia as ferramentas adotadas
nesta pesquisa.
5.1 Design vernacular: o primeiro passo.
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A construção, os materiais e as técnicas devem ser baseados nos recursos e no conhecimento
cultural locais. O re-uso de objetos descartados e desperdiçados também deve ser
considerado. A manutenção será mais fácil porque será possível obter tudo com mais
facilidade: o trabalho e todo tipo de recursos, na economia regional. Bernard Rudofsky é um
exemplo de arquiteto imigrante que defende as idéias vernaculares. Ele viaja muito, e
considera a viagem como um estilo de vida. Encontrar estrangeiros é um modo de conhecer a
nós mesmos. Para Rudofsky, do mesmo modo, aprender sobre arquitetura a partir de outras
cidades, nos permite ver nossa própria arquitetura com uma nova luz. Usando este foco, você
vê soluções de design relativas às específicas situações climáticas e geográficas que só
poderiam caber naquela localização. Deste modo, designers devem exercer seu olhar como
estrangeiros em seu próprio país para encontrar soluções vernaculares.
O parâmetro vernacular não exclui o uso de novos materiais e têxteis tecnológicos, se os
mesmos estiverem disponíveis no local ou possam ser fornecidos com facilidade. Técnicas de
manufatura que possam ser transmitidas à população local também são bem-vindas. Às vezes
é mais fácil encontrar uma solução utilizando apenas um material, o que é muito bom para a
reciclagem e ainda soluciona muitos requisitos de projeto. O poliéster metálico, por exemplo,
pode ajudar a controlar temperaturas, é um material leve e fácil de cortar.
5.2 Utilizando a escala do corpo: o segundo passo.
Algumas prioridades são baseadas na experimentação de pessoas que caminham, tais como a
habilidade de conhecer e ser conhecido pelos outros na comunidade e a confiança para
interagir entre si. Estas qualidades pertencem às interações face à face. Lembremos que a
liberdade deve ser preservada, mas isto não significa espaços pequenos e apertados. Podemos
ser generosos com possibilidades que os equipamentos podem oferecer ao usuário. Ele
certamente irá adaptá-lo para o que precisa.
O projeto do equipamento urbano é, essencialmente, para pedestres. O espaço para o seu uso
será a No-man’s-land, a terra de ninguém, as ruas da cidade. Em confronto com a escala
urbana, o equipamento possui a escala diretamente relacionada com as dimensões do corpo,
assim como o mobiliário. Como nos lembra Rudofsky, em suas palavras: “Na mais
importante não-cidade do país, Los Angeles, um homem caminhando na rua- sem um cão- é
igual a um vagabundo. O policial talvez não seja capaz de reconhecer um ladrão de bancos
quando vir um, mas ele não se deixa enganar ao se aproximar de um dedicado caminhante, e
alguns homens que têm a queixa encerrada na estação policial. Na Califórnia, caminhar é
considerada uma atividade anti-social; “o pedestre”, diz o relato de planejamento de Los
Angeles, “permanece o mais particular obstáculo ao movimento livre do trânsito.” Assim
como o búfalo nas pradarias à passagem dos trens, ainda que a extinção do pedestre resulte
num trabalho mais árduo do que a extinção do búfalo” (RUDOFSKY, 1969, p. 106).
Um forte conceito que não pode ser ignorado é o desconforto pertinente às situações de
mobilidade. Rudofsky também projetou diferentes sapatos, como um modo de expressar sua
preocupação com os pés, parte do corpo supervalorizada para o deslocamento. Quem tem o
hábito de viajar deve se lembrar do momento em que teve que ser capaz de carregar todas as
suas coisas. Imagine se você precisasse se mover freqüentemente com todos os seus
pertences.
Dificuldades são naturalmente encontradas neste território, onde o projeto poderia ser um
modo de facilitar o percurso. Este desafio permanece sem grandes tentativas de ser vencido.
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5.3 Modelos de Comunidades de vida compartilhada: o terceiro passo.
Em Los Angeles, foi possível encontrar um exemplo desta experiência. As figuras abaixo
mostram a Dome Village à esquerda (figura 6) e apenas o local onde já foi o piso dos domos à
direita (figura 7). O recente livro “Design like you give a damn” publicado em 2006,
apresenta o Dome Village ainda em funcionamento, mas os protótipos destas moradias foram
removidos e a vila foi fechada em 31 de outubro de 2006. Apesar de que, em princípio, era
uma iniciativa temporária, acabou se estendendo por treze anos, devido ao bom
funcionamento da estrutura para os moradores de rua.
FIGURA 5- A Dome Village antes da mudança.
FIGURA 6- A Dome Village em fevereiro de 2008. Fotografia do autor.
Craig Chamberlain é o arquiteto que criou o design da semi-esfera para esta casa transitória
para os moradores de rua. Ele descreve no próprio website da organização:
“A Dome Village foi feita com 20 domos numa propriedade de cerca de um e um terço de
acres. Oito domos são de uso comunitário e inclui uma cozinha, quarto comunitário,
escritórios, facilidades de banho separadas para mulheres e homens e uma lavanderia. Os
domos restantes são residenciais, repartidos na metade e provém espaço privado para viverem
dois indivíduos ou uma família.” Disponível em <http://www.domevillage.org > Acesso em
10/03/2008.
O que é importante para a concepção desta solução é considerar nossa história coletiva de vila
e cultura comunitária. A comunidade de Co-Habitação propõe alguns serviços coletivos como
cozinhar, compartilhar alimentos, processamento de comida, atividades sociais e alojamento
de visitantes. Em alguns casos, podem incluir biblioteca, quarto para cuidados com crianças,
escritório de trabalho, centros de computação e telecomunicação e facilidades para
lavanderias (STITT, 1999). Do ponto de vista do design sustentável é uma excelente solução
porque as necessidades de infra-estrutura são “reduzidas pelo agrupamento de edifícios,
centralizando os sistemas de distribuição de energia e restringindo o estacionamento para uma
área perto da entrada da rua.” (STITT, 1999).
A casa evoca tais imagens como de acolhimento pessoal, conforto, estabilidade, segurança e
carrega um significado além da simples noção de abrigo (WATSON & AUSTERBERRY,
1986). O objetivo da Vila ou da Co-Habitação é criar uma nova definição de lar que inclua a
intimidade, a camaradagem, e o cuidado que são compartilhados entre a extensão da família
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de vizinhos e amigos. As pequenas famílias de hoje irão crescer quando o lar for parte de uma
vasta comunidade, conectada com outras pessoas com as quais podem dividir apoio
emocional, alegrias, dificuldades e tristezas, responsabilidades e frustrações (STITT, 1999,
p.324).
5.4 Equipamentos suficientes para a sobrevivência, portáteis e com pouco peso: o quarto
passo.
Este modo nômade de viver possui mudanças constantes. Pessoas que substituem as outras,
algumas mudanças de uns lugares para outros e novos amigos potenciais que acabaram de
chegar. Escolher o que eles irão carregar consigo e fazer desta possibilidade leve, é
imprescindível. São requeridas soluções flexíveis. Cada pessoa tem sua prioridade no que diz
respeito ao equipamento básico e ela deve ser atendida. A solução de design pode reconciliar
diferentes necessidades e desejos humanos. Quais são as coisas que você não pode viver sem?
Esta é uma questão de conhecer a si próprio.
A sustentabilidade é contemplada pela ênfase ao re-uso e flexibilidade. Isto pode ser definido
pela durabilidade social e tecnológica com a redefinição destas categorias: vestimentas,
móveis, arquiteturas. A mudança destes padrões de “Mobiliários Habitáveis” considera a
edificação como uma peça de mobiliário. É urgente para os designers avançarem as noções de
roupa, moda, design de interiores e arquitetura. Estes limites estão se tornando atenuados.
Neste artigo a definição usada é simplificada com a palavra equipamento, mas poderia ser
uma estrutura portátil, mobiliário habitável ou um novo termo.
O trabalho dos artistas Lucy e Jorge Orta possui várias similaridades com a obra do designer
Moreno Ferrari, porém Lucy Orta já vem trabalhando com a temática desde a década de 1990.
O mais recente projeto de intervenção artística de Lucy e Jorge Orta foi na Antártida, onde
vivenciaram situações climáticas extremas. A produção dos artistas foi exibida em mostra de
design que abordava os temas: emergência social, ambiental e humanitária contemporâneas:
mobilidade, diáspora, emergência climática e ambiental e direitos humanos. Eles utilizam
têxteis tecnológicos como ultra-microfibras, clorofibras, os mais recentes sintéticos e nãotecidos extremamente finos e com membranas biodegradáveis. Como citado anteriormente, o
uso de materiais com propriedades impermeáveis ou térmicas torna apropriado o uso de um
recurso têxtil com intenções de uso como abrigo. Esta qualidade técnica promove o status do
que era apenas uma vestimenta com a resistência de um possível habitat.
Considerações finais
Este artigo investigou a possível contribuição dos designers no desenvolvimento de
instrumentos de emergência que assistam à sobrevivência da população de rua e práticas de
nomadismo urbano. Os resultados são baseados em pesquisas desenvolvidas na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, na Universidade de São Paulo. Conclui que design, deslocamento e
população de rua é um aspecto relevante da nossa condição urbana contemporânea. No campo
da arquitetura e design nós podemos ensinar, aprender e desenvolver pesquisas para fazer a
diferença. O design pode ser um instrumento para aliviar o sofrimento humano, com soluções
urgentes e correlacionais, enquanto medidas públicas de longo prazo deveriam ser feitas pelo
governo. Estamos construindo metodologias e um diálogo epistemológico com outras áreas
do conhecimento para gerar respostas a crise humanitária e outros usos nomádicos do espaço
urbano. O arquiteto ou designer, com uma gama de habilidades técnicas e profissionais, têm
se colocado a serviço da comunidade e feito com que a comunidade seja capaz de ajudar a si
própria também.
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Desterritorialização e Desfiliação Social: uma reflexão sociológica
sobre ações públicas junto à população em situação de rua1
Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
[email protected]
Victor Marchezini
Universidade de São Carlos – UFSCar. Bolsista FAPESP
[email protected]
Beatriz Janine Cardoso Pavan
Universidade de São Paulo – USP. Bolsista CNPq
[email protected]
Mariana Siena
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Bolsista FAPESP
[email protected]
Resumo:
Sob um prisma sociológico, o texto enfoca a produção social da desfiliação de pessoas em
situação de rua a partir da síntese de diversas estratégias públicas de desterritorialização do
grupo em cidades brasileiras. Explicitando, de um lado, os programas e políticas em prol da
cidadania do grupo e, de outro, práticas de intolerância e barbárie contra o mesmo,
pretende-se refletir acerca das formas de controle social que tendem a se impor
coercitivamente, impedindo contestação da ordem excludente com perdas visíveis aos valores
democráticos no viver urbano.
Palavras-chave: Direitos humanos; Cidadania; Pessoas em situação de rua.
1. Introdução
Pessoas em situação de rua vivenciam inúmeras dificuldades. A mais evidente delas, a sua
territorialização precária. A vulnerabilidade locacional sujeita o grupo às diversas dimensões
de desamparo: desconforto face às intempéries (as chuvas, o frio); insalubridade (exposição e
contato com vetores de doenças); insegurança frente aos estabelecidos que lhe dirige olhares
de desconfiança. Se o desamparo é um estado característico do viver citadino contemporâneo
e se revela na falta de garantias quanto ao futuro (MENEZES, 2006), podemos afirmar que a
população em situação de rua vive num desamparo levado ao paroxismo. As lutas pela
reconstrução dos sentidos de si no mundo – na posse do terreno onde se produz um lugar, no
refazimento da vida social, na proteção contra os perigos da natureza, na saciedade das
necessidades básicas, dentre outras – são cotidianas e permanente objeto de angústia. O
contexto socioambiental de vivência do grupo, no geral, recrimina-o, culpabilizando-o por sua
destituição e tudo faz para que sua presença na cena seja efêmera. Como coisa fora do lugar e
impura, o meio envolvente, numa ética disciplinar, destrói, desmonta e desfaz as
1
Apoio: MCT/CNPq.
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possibilidades de reprodução das práticas que garantem a sobrevivência do grupo erodindo,
por conseguinte, os sentidos ancorados na paisagem e nas relações, sempre fugidias.
A contingência em que está mergulhada o grupo é ainda mais acentuada devido à progressiva
ausência de tolerância para com os losers o que é alimentado pela distância social. Conforme
Bauman (1998), a responsabilidade, como um comportamento moral, surge da proximidade
do outro. Daí porque, o impulso de julgar o sofrimento do outro como algo que nos diga
respeito é contido através da manutenção da distância social, diz o autor, numa administração
coletiva e conservadora da intersubjetividade de tal modo que não permita ao outro tornar-se
sujeito e, por conseguinte, apontar para a necessidade de outro padrão de sociabilidade.
As pessoas em situação de rua são como estranhos que não participam do espetáculo social.
Estes fazem o papel da “não-pessoa”, o que implica numa relação de desrespeito e
discrepância frente aos indivíduos atuantes. Goffman (2005) atenta para os princípios de
organização da sociedade, os quais baseia-se em indivíduos portadores de certas
características sociais, o que lhes permite esperar que os outros o valorizem e o tratem de
maneira adequada. Todavia, estas características sociais de aceitação são impedidas de aflorar,
quando as “primeiras impressões” revelam um grupo prenhe de ausências. A negação do
mesmo como parte constitutiva da sociedade carrega “precauções para aprisionar um homem
naquilo que ele é, como se vivêssemos com o perpétuo receio de que possa escapar do que é,
possa fugir e de repente ver-se livre da própria condição”, ameaçando a convivência com os
estabelecidos dentro da ordem que estes impõem (GOFFMAN, 2005, p.75).
2. Caracterização do grupo de análise
No período de agosto de 2007 a março de 2008, o Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS), em acordo de cooperação assinado com a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), realizou a Pesquisa Nacional
sobre a População em Situação de Rua com o intuito de quantificar e permitir a caracterização
socioeconômica do grupo para, assim, orientar a elaboração e implementação de políticas
públicas voltadas para o mesmo. Esta população não foi incluída nos censos demográficos
brasileiros porque prepondera a coleta de dados na base domiciliar (BRASIL, 2008). Sem
moradia, o grupo ficou invisível ao Estado, do que derivou a dificuldade em produzir políticas
que se regem por números.
O levantamento abordou pessoas em situação de rua com 18 anos completos de idade ou mais.
Abrangeu 71 municípios (48 deles com mais de 300 mil habitantes e 23 capitais 2 ) e
identificou 31.922 pessoas em situação de rua vivendo em “calçadas, praças, rodovias,
parques, viadutos, postos de gasolina, praias, barcos, túneis, depósitos e prédios
abandonados, becos, lixões, ferro-velho ou pernoitando em instituições (albergues, abrigos,
casas de passagem e de apoio e igrejas)” (BRASIL, 2008, p. 06). As informações geradas
apontam para uma possibilidade de tipificação do grupo, como: sua característica
predominantemente masculina (82%); acesso a refeição apenas uma vez ao dia (79,6%); a
dependência química (35%), o desemprego (30%) e os conflitos familiares (29%) como
principais razões pessoais da situação de rua; o medo da violência contra si ao dormir na rua
(69,3%) e vínculos enviesados com o município. Na pesquisa, quase metade dos entrevistados
2
Vale ressaltar que, “entre as capitais brasileiras, não foram pesquisadas São Paulo, Belo Horizonte e Recife,
que haviam realizado pesquisas semelhantes em anos recentes, e nem Porto Alegre que solicitou sua exclusão da
amostra por estar conduzindo uma pesquisa de iniciativa municipal simultaneamente ao estudo contratado pelo
MDS” (BRASIL, 2008, p. 03).
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(45,8%) sempre viveu no município em que mora atualmente, possuindo algum parente
residente na cidade onde se encontra, mas com o qual o contato não ocorre (38,9%) ou é
esporádico (14,5%).
Devido à ausência de pesquisas anteriores de abrangência nacional, as informações supra são
como uma fotografia do grupo; mas, subjaz uma trajetória sócio-histórica de destituição. Um
contingente superior a trinta mil pessoas vivendo em situação de rua constitui um processo
preocupante de desincorporação e desfiliação social.
A existência do grupo remete, dentre outros, ao projeto de desenvolvimento do país que
dissocia produção de riqueza e cidadania. De um lado, faz-se recair o fracasso econômico sob
a própria responsabilidade do indivíduo, do que deriva seu fracasso social. Sem interlocução
pública que garanta suprimento de necessidades básicas, ao mesmo tempo em que há o clamor
do consumo, na felicidade reificada, propende o mesmo para a desestruturação das teias de
convivência social, como a da família, o que acaba por levá-lo ao isolamento, agravado,
muitas vezes, pelo uso de álcool e drogas.
Os projetos de “sucesso”, na cidade e no campo, concatenados pela técnica – imbricando
elevado adensamento de capital e nível de capacitação da força de trabalho – apontam para
uma continuidade do processo de empobrecimento e conseqüente desfiliação social. As
informações que o pobre traz a seu respeito não são repositórios para a confiança do mercado,
não se coaduna com o leque de oportunidades engendradas pela acelerada modernização, não
o torna, por assim dizer, viável para o padrão que a vida social, a começar da centralidade do
trabalho, requer. Este é o passo para a miséria e, nos amargores da baixa auto-estima,
distanciar os indivíduos cada vez mais das esferas extra-econômicas nas quais sua condição
sócio-econômica fragilizada pesa contra si (GOFFMAN, 2005). Sabendo das más impressões
a seu respeito, em que sua aparência aponta para conclusões acerca de seu caráter, o morador
de rua pode, então, agravar a sua precária posição empenhando-se em manobras defensivas,
como a embriaguez (Idem, 2005).
Há uma tendência de elevação da população em situação de rua uma vez que a vida coletiva e
a vida privada entremeiam-se na lógica de mercado e as políticas públicas, por seu turno, não
se impõe para integrar, numa outra racionalidade, os agentes econômicos e sociais.
3. Processos de desterritorialização de populações que estão na rua
O Brasil vem apresentando duas tendências das forças coercitivas que impedem a ampliação
da cidadania da população de rua.
De um lado, há a passagem de um estado de intolerância tácita para intolerância explícita,
recrudescendo a prática pública de truculência na eliminação do sujeito vulnerável, nisso
convergindo as ações do Estado e a de grupos organizados. Tal como apontam Elias e Scotson
(2000), a relação dos estabelecidos com os outsiders é municiada por todas as formas de
violência na medida em que a monopolização do poder as torna incontestável. Assim, a
beligerância e a tortura passam a ser tratadas, no discurso do senso comum, como formas
legítimas de lidar com (e reforçar) a desigualdade social, sendo expressões de uma forma de
dominação política autoritária que se naturaliza.
De outro, eleva-se o clamor dos segmentos afluentes para que, numa perspectiva de classe, o
Estado retroceda sua interlocução, com foco nos direitos humanos, com os que estão em
situação de rua para substituí-lo pelo foco da segurança pública, na qual o grupo é fonte de
ameaça à ordem pública. Significa dizer que as frações constituintes do ente público, que
paulatinamente se renovam a partir do redesenho institucional e se sintonizam com os
compromissos de cidadania, são pressionadas a retroagir e omitir-se, de várias formas, frente
à garantia dos direitos. Posições de poder cristalizadas promovem, sobretudo por instrumentos
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midiáticos, a eficácia na rotulação que inferioriza o grupo e o estigmatiza, logrando uma
evitação da dialogicidade com os que estão em desvantagem. Sem propugnar por igualdade de
oportunidades, nem resignar-se na convivência destoante, tais posições, caracterizadamente
anti-democráticas, vão constituindo representações sociais nas quais a destituição material da
população em situação de rua corresponde à ausência de valores morais do grupo. O risco de
ressentimento dos fracassados, na incapacidade econômica para realizar o provimento dos
seus mínimos vitais, incrementaria o seu potencial para delinqüir, o que exige, segundo a
visão dominante, medidas preventivas e antecipatórias ao crime que o grupo estaria propenso
a realizar, uma das quais, sua desterritorialização. A presunção de virtude dos que concentram
a renda é a razão pela qual, numa perspectiva malthusiana, o vício torna-se o elemento
característico e irreversível da pobreza e o exercício coercitivo do poder para a expulsão do
grupo torna ilegítimo o conflito e a contestação.
Ilustrativo disso são as formas de controle social da população em situação de rua que, no
microrrecorte de casos ocorridos em municípios – como o de Ubatuba/SP (por expulsão), na
capital paulista (através de homicídio) e em Porto Alegre/RS (no repúdio ao resgate) –
revelam a lógica apartadora macroenvolvente.
Em Ubatuba (SP), nos dias 27 e 28 de novembro de 2006, uma ação conjunta das Secretarias
de Cidadania e Desenvolvimento Social, de Segurança, de Obras e a Guarda Municipal, foi
realizada para “solucionar” a questão das pessoas em situação de rua que ocupavam um vão
sobre a ponte do rio Tavares. Durante a ação, a Assistência Social tomava as providências
quanto ao encaminhamento dos “andarilhos” para outros municípios; a Guarda Municipal
checava a documentação e encaminhava à Delegacia para verificação de antecedentes
criminais; a Secretaria de Obras, por seu turno, preparava o fechamento do vão, que lhes
servia de abrigo possível, para que lá não mais voltassem. Acerca da operação, o então chefe
da seção de migração da Secretaria de Cidadania e Desenvolvimento Social, comentou:
“Estamos dando uma chance para essas pessoas se reintegrarem à sociedade(...)Vamos
intensificar as ações, efetuando rondas nas madrugadas” (PREFEITURA MUNICIPAL DE
UBATUBA, 2006, s/n). Criam-se, assim, políticas de Assistência Social orientadas não pelo
princípio de garantia da cidadania dos grupos vulneráveis, mas pela vigilância contra estes,
atentando contra direitos para tranqüilizar os que são considerados cidadãos:
muitos passavam o dia sob efeito de álcool ou drogas, oferecendo risco aos
transeuntes e moradores das proximidades. Além disso, o local funcionava
como esconderijo, como pudemos constatar. Agora as pessoas poderão
transitar com mais segurança pela área, avalia o comandante [da Guarda
Municipal de Ubatuba](Idem, 2006).
Durante essa operação higienista de desterritorialização, o prefeito de Ubatuba acompanhou a
retirada dos pertences das pessoas em situação de rua e explicou a ação: “Estamos dispostos a
reabilitar os que quiserem, mas temos que deixar claro que a segurança da população vem
em primeiro lugar” (Idem, 2006). A reabilitação moral é o argumento que reafirma a falência
do indivíduo e denota a eficácia da estigmatização numa ordem social que se mantém
incontestável. Nas palavras de Elias & Scotson (2000, p.35),
a estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e
outsiders, associa-se, muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva
criada pelo grupo estabelecido. Ela reflete e, ao mesmo tempo, justifica a
aversão – o preconceito – que seus membros sentem perante os que
compõem o grupo outsider.
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As ações públicas acima descritas incrementam aquilo que a Política Nacional de Defesa Civil
denominaria de desastre social e são igualmente dissonantes da Política Nacional de
Assistência Social que prevê a proteção social e garantia da cidadania sob a vigilância do
Estado, inclusive em circunstâncias de calamidades e emergências (...) (BRASIL, 2004, p.33-34).
No caso em tela, ao invés das pessoas em situação de rua ser consideradas como grupo que
está em risco, são representadas como que oferecendo risco à segurança da população.
No dia 30 de novembro, dois dias após a operação de retirada do grupo, fortes chuvas
atingiram Ubatuba acarretando sessenta e sete desabrigados3, entre adultos e crianças, que
foram abrigados no Ginásio do Tubão. Se pessoas em situação de rua estivessem dentre os
afetados pelas chuvas, face à estigmatização precedente, muito provavelmente ficariam
desatendidos. Conforme Valencio et al (2008), os abrigos temporários, por mais precários que
possam ser, lançam mão de um tipo de integração e ajuda mútua entre os que partilham de um
sentimento comum de privação da casa e buscam uma reprodução familiar e de habitus dentro
do abrigo da qual o morador de rua não faria parte.Os agentes de defesa civil, já sem ação
frente o desastre social precedente, estariam entre a obediência à missão institucional de
garantir o direito natural à vida e à incolumidade (BRASIL, 2000) e as normas da vida prática,
que se opõe a que haja providências de resposta e reabilitação do grupo com base nos direitos
humanos. Essa dicotomia também ocorre em emergências havidas em outras localidades.
Quando da ocorrência das enchentes, em outubro de 2008, em Porto Alegre (RS), pessoas em
situação de rua ficaram ilhadas na parte inferior da Ponte da Azenha, onde costumavam passar
as noites. O Corpo de Bombeiros foi acionado para retirar as quatro pessoas e o cachorro que
acompanhava o grupo (JORNAL ZERO HORA, 2008). O Jornal Zero Hora reportou o
acontecido em sua plataforma virtual e permitiu que os leitores deixassem seus comentários
sobre o ocorrido. Os relatos dos leitores sinalizaram para a formação de um discurso coletivo
de intolerância, com crítica à operação de resgate do grupo, endosso as ações de
desterritorialização e críticas às “falhas operacionais” de segurança pública que permite ao
grupo estar na cidade:
A pouco tempo não foi investido na construção de um muro em todas as
pontes para que estas pessoas não ficassem lá embaixo? Onde está o muro?
Porque ele não funciona? O serviço público não serve nem para construir
muros... é uma vergonha! (JORNAL ZERO HORA, 2008)
Concordo plenamente com o (...) fechamento do acesso àquela área. E ainda
por cima gastam o nosso dinheiro e o tempo dos bombeiros deslocando-os
para tal situação (JORNAL ZERO HORA, 2008).
O meu ponto de vista seria o de não dar importância nenhuma para este tipo
de caso, visto que são vagabundos, literalmente, e não agregam em
absolutamente nada a nossa sociedade. Porém daí vem aquela porcaria de
direitos humanos e blá,blá,blá... (JORNAL ZERO HORA, 2008).
É impressionante essa gente. Incomodam os motoristas e moradores da
região diariamente. Não querem dormir nos albergues porque lá tem a
disciplina de dormir cedo, acordar cedo, tomar banho, se alimentar e não se
drogar. Agora incomodam o Estado que poderia resguardar seus recursos
humanos e materiais para algo importante. Acho que deveriam pagar com
3
Os desabrigados são os que, na ausência de relações de parentesco, vizinhança, compadrio e afins que lhes
permita perceber uma acolhida circunstancial, dependem exclusivamente do Estado na tomada de providência de
abrigo (CASTRO, 1999).
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serviço o que foi gasto para retirá-los de lá. A imprudência deles não pode
onerar o Estado (JORNAL ZERO HORA, 2008).
A concepção distorcida de diretos, que se orienta pelo status social, ganha seu ápice na
disseminação de ações de extermínio de pessoas em situação de rua, legitimadas tanto pela
impunidade quanto pelo descaso da opinião pública em relação a esses eventos. Levantamento
feito pelo Jornal Folha de São Paulo (REIS, T.; ACAYABA, 2008) mostra que cinco dos
principais ataques a pessoas em situação de rua, nos últimos cinco anos, não tiveram um
desfecho: ninguém está preso nem foi condenado pelos crimes. Entre esses extermínios,
incluem-se os ocorridos na capital paulista e em outras localidades. Em 2004, na praça da Sé
(centro de São Paulo), sete moradores de rua foram mortos a golpes na cabeça. Em 2005,
quatro pessoas ficaram feridas e uma foi assassinada a tiros sob o viaduto Arapuã, no bairro
do Jabaquara (zona sul de São Paulo). Em abril de 2006, dois homens em uma moto, vestidos
de preto e com capacetes, atiraram com pistolas automáticas de uso exclusivo de forças de
segurança do Estado contra três moradores de rua, sob o viaduto Guadalajara, no Belém (zona
leste da capital), ocasionado uma morte. Em setembro de 2008, quatro moradores de rua
foram baleados no bairro da Lapa (zona oeste da capital paulista) enquanto dormiam sob a
marquise de uma agência bancária e um acabou morrendo. Em agosto de 2008, em Vitória
(ES), três moradores de rua foram assassinados a tiros enquanto dormiam embaixo da
marquise de uma loja no bairro do Horto, de classe média. Sobre o caso de Vitória, o
delegado Orly José Fraga Filho declarou que a suspeita é que o crime tenha sido praticado
para promover uma "limpeza urbana" na cidade, já que havia reclamações anônimas de
pessoas insatisfeitas com a presença desses moradores de rua na região. A Secretária de
Assistência Social da Prefeitura de Vitória disse que há intolerância da população com relação
às pessoas em situação de rua: “somos chamados com freqüência pela comunidade, que fica
descontente com o comportamento dos moradores de rua"(PORTAL GLOBO.COM, 2008).
Os casos acima denotam que o discurso e as práticas da intolerância se difundem. Os
segmentos afluentes da sociedade brasileira orientam-se para a legitimação do
segregacionismo – de onde deriva o preconceito levado ao limite, no endosso à anulação
física do outro – e conseqüentemente para a inviabilidade de adoção de uma ética da razão
comunicativa entre o Estado e os grupos vulneráveis. Tal ética pressupõe que o grupo em
desvantagem possa exercitar o direito de exprimir suas necessidades, desejos e convicções na
orientação de políticas (cf. MALIANDI, 2002; GOLDIM, 2005), numa complementaridade
discursiva entre as partes, o que o contexto atual nega e impede. Se, como afirma Bauman
(1999), a explicitação do problema implica na necessidade de solução de seus termos, as
formas coercitivas de controle social visam não criar brechas para uma re-elaboração da
interação concedendo algum protagonismo social aos fracassados. Assim, obstaculiza que a
democracia participativa, como um estágio superior de construção sócio-política, consolide-se
no país.
A racionalidade monológica imperante interroga o grupo de forma apenas a constatar os préjuízos deletérios sobre o mesmo – um coletivo formado por vagabundos, desordeiros, viciados
e incapazes – e não admitirá que as certezas construídas sejam tidas como improcedentes
devido à omissão persistente dos nexos causais do drama pessoal e o modelo de
desenvolvimento excludente.
3.1 As chuvas como incrementadoras das ações de desterritorialização
Diante de um fenômeno climático, como as chuvas, a população de rua vivencia uma
intensificação da sua já conflituosa inserção no território. A precipitação das águas no tecido
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urbano revela vulnerabilidades adicionais para aqueles que vivem uma territorialidade
precária.
Se, por exemplo, a população de rua se apropria das marquises do comércio fechado, à noite,
para a função de dormir, o alagamento daquele local pode impedi-lo de ali descansar. Se há
tolerância circunstancial do meio para que lá se abrigue à noite, durante o horário comercial
(de dia) a tolerância já não existe e, em dias chuvosos, o morador se vê obrigado então a
perambular, molhando a si e aos seus escassos pertences, agravando o seu estado de saúde, no
geral, debilitado. Pontes próximas a rios e córregos e canais são lugares freqüentes de abrigo e
enxurradas podem carrear essas pessoas sem que as autoridades locais se dêem conta da
ocorrência e a notifiquem.
As perdas e danos que porventura sofram em decorrências das chuvas – roupas, cobertor,
alimentos, utensílios de cozinha, rádio, carrinho de coletar material reciclável etc – são de
difícil reposição ao grupo. Não sendo reconhecido perante o Estado como desabrigado pelas
chuvas, não será incluindo nas providências de reparação a que os moradores de um dado
município terão acesso no caso de decretação de situação de emergência ou estado de
calamidade pública.
Dessa forma, a cidade é ambigüamente, para o grupo, o locus de provisionamento mínimo
das necessidades, com seus becos e restos, e o locus de sua reiterada rejeição e recriminação,
negando-lhe uma vida privada e coletiva dignas.
4. As ações públicas prescritas para o grupo: avanços formais e inoperatividade
Embora os fatos acima afrontem a força normativa da lei, é preciso salientar a
responsabilidade do Estado junto às pessoas em situação de rua entendidas como em
vulnerabilidade extrema no que tange à sua cidadania. Dentre outros parâmetros, há o dos
programas e políticas nacionais, como Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH II), a
Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e a Política Nacional de Defesa Civil (PNDC).
O II Programa Nacional de Direitos Humanos tem como uma dos principais objetivos a
“sensibilização de toda a sociedade brasileira com vistas à construção e consolidação de
uma cultura de respeito aos direitos humanos” (BRASIL, 2002, p.3), o que implica na
garantia do direito à educação, saúde, moradia, trabalho, dentre outros, que estão no escopo
dos desafios do grupo em referência. Em relação à moradia, lhe foge a oportunidade de
acesso a terra do que decorre estar longe das garantias de aspectos de “habitabilidade,
salubridade, condições ambientais, espaço, privacidade, segurança, durabilidade,
abastecimento de água, esgoto sanitário, disposição de resíduos sólidos” (idem, p.28) razão
pela qual é necessário, segundo o PNDH II, “criar, manter e apoiar programas de proteção e
assistência a moradores de rua, incluindo abrigo, orientação educacional e qualificação
profissional” (idem, p.28). Tais preocupações conectam tal Programa com as orientações da
Política Nacional de Assistência Social (PNAS).
Um dos intuitos da PNAS (2004) é tornar visível setores da sociedade brasileira
tradicionalmente tidos como invisíveis ou excluídos das estatísticas, tal como a população em
situação de rua.
Ainda na perspectiva da equidade, a política de assistência social atua com
outros segmentos sujeitos a maiores graus de riscos sociais, como a
população em situação de rua, indígenas, quilombolas, adolescentes em
conflito com a lei, os quais ainda não fazem parte de uma visão de
totalidade da sociedade brasileira. Tal ocultamento dificulta a construção de
uma real perspectiva de sua presença no território brasileiro, no sentido de
subsidiar o direcionamento de metas das políticas públicas (BRASIL, 2004,
p. 19).
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Dentro da PNAS, a população em situação de rua é tida como um dos grupos que precisam
receber uma modalidade de atendimento assistencial denominada “proteção social especial”.
Assim, em relação “à população em situação de rua serão priorizados os serviços que
possibilitem a organização de um novo projeto de vida, visando criar condições para
adquirirem referências na sociedade brasileira, enquanto sujeitos de direito” (BRASIL, 2004,
p. 31). Por isso, também enfatiza que a proteção social especial deva “priorizar a
reestruturação dos serviços de abrigamento dos indivíduos que, por uma série de fatores, não
contam mais com a proteção e o cuidado de suas famílias, para as novas modalidades de
atendimento”(Idem). Observa-se, pois, que o Estado considera as dificuldades que as pessoas
em situação de rua têm em cumprir funções de proteção básica, socialização e mediação, o
que acaba por fragilizar sua identidade.
No tocante à Política Nacional de Defesa Civil (PNDC), as condicionantes que a orientam
tomam como base contextos econômicos que incidem sobre o processo de desenvolvimento
social, deteriorando as condições de vida e o bem-estar de segmentos populacionais,
intensificando as desigualdades e desequilíbrios inter e intra-regionais, ampliando os
movimentos migratórios internos, o êxodo rural e o crescimento desordenado das cidades,
acompanhando-se sempre de uma ampliação da extrema pobreza (BRASIL, 2000). Desse
contexto, decorre sua diretriz de promover a integração da PNDC com as demais políticas
nacionais de desenvolvimento social e econômico reduzindo vulnerabilidades aos desastres,
sobretudo de contingentes populacionais marginalizados no processo de crescimento
econômico e social (BRASIL, 2000).
Trata-se, pois, de fazer com que os compromissos institucionais que os Programas e Políticas
supra indicam, fruto da redemocratização do país, ganhem corporeidade nas práticas do
Estado e da sociedade civil.
5. Conclusões
Uma das formas de compreender a sociopatia das cidades que se levantam muros e grades,
restringindo a vida comunitária àqueles que são identificados entre si pela afluência, é
debruçar o olhar sobre o diferente, cuja decadência passa a exigir aniquilamento. A população
em situação de rua faz parte da parcela dos conviventes incômodos, grupo cuja privação das
coisas corresponde a um imaginário de ameaças aos estabelecidos. As práticas sociais, ao
invés de implementar políticas de combate às desigualdades sociais, implementa a
intolerância, tornando vazio o discurso institucional de desenvolvimento social.
Ao não retroceder ao histórico de destituição que leva um grupo a estar na rua, os citadinos
vão, pari passu, considerando como legítimo o direito à vida apenas aos moradores
regularizados e aos que partilham do habitus de classe; portanto, os semelhantes, no âmbito
público e privado. Os casos de omissão de socorro, homicídio, espancamento e expulsão de
pessoas em situação de rua, embora a singularidade de sua ocorrência nos diversos municípios
brasileiros, denotam a constituição de padrões de um imaginário social que, tecido em
condições territoriais de modernidade, evoca o ódio ao diferente e assentimento à barbárie.
Práticas divergentes tanto do arcabouço legal quanto da missão institucional de várias frações
do Estado vão se espraiando através de um fazer moroso, arredio, descuidado, que não
reconhece a desigualdade social como um problema intrínseco da produção concentrada da
riqueza nem se dá conta da necessidade de transformação da ordem social excludente.
A experiência vivida, de sofrimento e privação, traz, à pessoa em situação de rua, a memória
da construção social da sua inferiorização. É, dentre outras coisas, um lugar de conhecimento
sobre a sociodinâmica da apartação e expõe, na explicitação das estratégias de extrema
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submissão, a falibilidade das políticas assistenciais, de habitação, de saúde, de trabalho e
emprego. A sociedade brasileira precisa avançar para apoiar que esse conhecimento seja
vocalizado, socializado e tido em conta em arenas que o convertam e disponibilizem para um
novo patamar de políticas públicas.
Uma vez que negamo-nos em fazê-lo, adiamos a tarefa imperiosa de reafirmar o valor
intrínseco da pessoa humana. Na indiferença social, permitimos o estabelecimento de uma
nova sociabilidade que converte o ideário de acessibilidade generalizada dos direitos às
regras de mercado; dissimulamos o conflito social nas estratégias de anulação crescente dos
miseráveis desqualificando-os, silenciando sua voz, inviabilizando seu espaço vital,
impedindo redes de proteção, retirando sua vida; e, por fim, forjando uma territorialização
pacificada. Numa tendência neotribalista (cf. BAUMAN, 1999), muitas são as cidades que
seguem pautando-se no modelo de aversão ao diferente e desigual, monitorando o tráfego no
terreno, ajustando o controle para o banimento do outro e adoção de soluções guetizadas.
Cúmplices, os iguais, na luta contra os intrusos. E no descarte dos princípios democráticos
que foram de difícil conquista.
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Família e comunidade: repensando intervenções com crianças e
adolescentes em situação de rua
Lirene Finkler
Prefeitura Municipal de Porto Alegre – PMPA
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
[email protected]
Ana Paula Granzotto
Centro de Educação Profissional São João Calábria
Fundação Antonio Antonieta Cintra Gordinho
[email protected]
Julia Obst
Prefeitura Municipal de Porto Alegre – PMPA
[email protected]
Débora Dalbosco Dell’Aglio
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
[email protected]
Resumo: A situação de rua é um fenômeno extremamente complexo e seu enfrentamento
exige reflexões e esforços tanto de políticas públicas quanto das diversas áreas da academia.
Partindo da experiência de regionalizar um serviço de abordagem e acompanhamento a
crianças, adolescentes e suas famílias em situação de rua na cidade de Porto Alegre, chamado
Serviço Ação Rua, o presente artigo apresenta e discute as intervenções focadas nas famílias e
nas comunidades, dando prioridade às intervenções intersetorializadas possíveis neste
município. Discute-se como a centralidade na família reordena as formas de intervenção nos
demais contextos, como escola, comunidade e rede de serviços. O acompanhamento a
famílias pressupõe atuação em parceria com a rede de serviços socioassistenciais, e é
enriquecido pelos diversos olhares que qualificam as construções com cada família, no
sentido do cuidado de seus filhos e de suas relações familiares. Destaca-se a crença nos
aspectos saudáveis das famílias e nas possibilidades do trabalho em rede, o que inclui governo
e sociedade civil, ampliando o olhar sobre os sistemas que sustentam a permanência e a saída
da rua. Pondera-se que estruturas rígidas podem transformar-se em estruturas mais flexíveis
de trabalho, mais sistêmicas e competentes.
Palavras-chaves: Famílias; Crianças e Adolescentes em situação de rua; Políticas Públicas.
1. Introdução
O presente artigo objetiva refletir sobre práticas e intervenções realizadas com famílias e
comunidades a partir da perspectiva da situação de rua de crianças e adolescentes. Para tanto,
partimos da experiência de implantação do Serviço Ação Rua (2007), que descentralizou o
atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Porto Alegre,
regionalizando ações e ampliando o foco de atuação para o acompanhamento às suas famílias.
A regionalização de ações voltadas ao enfrentamento dos riscos e vulnerabilidades nas
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grandes cidades é uma das principais diretrizes do Sistema Único de Assistência Social –
SUAS (BRASIL, 2005) e do Sistema Único da Saúde - SUS (BRASIL, 2002), cada vez mais
voltando o olhar para territórios específicos, intensificando a atenção e o cuidado básico. Uma
das premissas é a matricialidade familiar, em que o foco está nas famílias que constituem as
comunidades dessas regiões específicas. Outra premissa refere-se ao entendimento das
características distintas de cada região no que diz respeito à forma de expressão de suas
vulnerabilidades, bem como diferentes potencialidades da comunidade e da rede de serviços
socioassistenciais.
Para a implantação do Ação Rua, foram regionalizadas ações e ampliadas as áreas
principais de intervenção, da região Centro, para o total das Regiões do Orçamento
Participativo (PMPA, 2006). Foram constituídas 11 equipes (chamadas de Núcleos): uma
governamental (através do reordenamento do Serviço de Educação Social de Rua - SESRUA),
e 10 equipes conveniadas, todas compostas por coordenador, dois técnicos sociais (psicólogo
e/ou assistente social) e quatro educadores sociais, contratados por Organizações Não
Governamentais (ONG’s) conveniadas com o Município e coordenadas pela FASC –
Fundação de Assistência Social e Cidadania. Com tal ação, foram criadas “as condições para
abordagem, acompanhamento e encaminhamento de crianças, adolescentes e suas famílias nas
microrregiões da Cidade, favorecendo a inclusão em programas e serviços na própria região e
estancando o fluxo de crianças e adolescentes ao Centro de Porto Alegre em função dessa
condição, na maioria dos casos, representar o grau máximo de vulnerabilização a que a
situação de rua pode levar as crianças e adolescentes da Cidade” (PMPA, 2006, p.2). Diante
disso, efetiva-se uma ampliação da política de assistência social, tanto em termos de
abrangência territorial, quanto em termos do número de equipes de trabalho, totalizando cerca
de 80 profissionais.
Famílias com filhos em situação de rua muitas vezes encontram-se multi-atendidas,
participando de diferentes microssistemas da chamada Rede de Proteção (que inclui serviços
de atendimento à família, sejam da saúde ou assistência social, programas de renda mínima,
serviços de apoio sócio-educativo para seus filhos, além da escola e educação infantil, quando
existe). O Ação Rua surge como mais um serviço nessa rede, com o papel diferenciado de
favorecer a travessia da rua para espaços de proteção, possibilitando a inserção e
permanência de famílias e seus filhos nos atendimentos junto aos demais programas. Assim, a
rede de serviços da comunidade é parceira fundamental e elemento chave para a concretização
da proteção previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990).
2. Sobre a metodologia do Ação Rua
A metodologia utilizada pelo Ação Rua construiu-se através dos anos, a partir de
experiências de diversos serviços e profissionais que vinham atuando com a problemática da
rua, com muitos acertos, erros e reflexões compartilhadas (GIUGLIANI, 2002; PMPA, 2004).
Descrevemos brevemente as diversas etapas que caracterizam o trabalho realizado atualmente.
Inicialmente, a metodologia pressupõe um momento de mapeamento do território, a partir de
abordagens sistemáticas. Através desse mapeamento são identificados locais onde há presença
de crianças e adolescentes em situação de rua – que chamamos situação de rua moradia,
quando o espaço da rua é usado predominantemente para moradia, contrapondo à situação de
rua sobrevivência, caracterizada predominantemente pelo trabalho infantil (PMPA, 2004). As
crianças também podem ser identificadas a partir de solicitações de abordagens pela
comunidade, através de uma central telefônica. Após o período de observação do local e da
situação da criança/adolescente na rua, é realizada a aproximação para uma primeira
abordagem, seguindo-se quantas forem necessárias para a construção de vínculo. O trabalho
vincular envolve um processo de aproximação e escuta das histórias pessoais e familiares, da
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trajetória de rua e da relação das crianças/adolescentes com a rede de atendimento.
Registradas em um roteiro inicial de estudo de caso, essas abordagens dão a substância para
as discussões em equipe, onde são traçadas as estratégias iniciais, que devem ser o mais
brevemente possível discutidas em estudo de caso com a rede de serviços da região.
Uma vez que o foco é a família, a visita domiciliar é um instrumento importante do
trabalho, assim como a busca de subsídios sobre demais atendimentos dos quais
eventualmente a família já participa. A partir desse estudo de caso é construído um plano de
intervenção, com ações de curto, médio e longo prazo, construído em conjunto e definindo
responsabilidades entre a rede de atendimento, com a própria criança/adolescente e com sua
família. É importante que sejam consideradas as ações concretas necessárias para a inserção
social do grupo familiar na rede socioassistencial, o que envolve ingresso ou retorno para
escola, inclusão das crianças no Serviço Socioeducativo em meio Aberto - SASE, inclusão de
familiar ou da própria criança/adolescente em tratamento para drogadição, retorno da
criança/adolescente para a família - eventualmente na família ampliada ou outros espaços de
proteção, como abrigo, assim como inclusão da família em grupos de geração de trabalho e
renda. Entretanto, para além dessas ações, também é extremamente necessário utilizar a
escuta dos aspectos psíquicos e emocionais desta família, levando em consideração e
buscando intervir nas formas de estruturação e organização familiar, considerando a forma
como são expressos afetos, limites, como essa família se comunica, tendo sempre como
objetivo o fortalecimento da capacidade protetiva do núcleo familiar. Nesse sentido, a crença
nos aspectos saudáveis das famílias é elemento importante para o trabalho. As intervenções
concretizam-se através de visitas domiciliares, de acompanhamentos junto a serviços da rede,
caracterizando, muitas vezes, um acompanhamento terapêutico (NUNES, SEFTON,
GRANZOTTO, 2008).
Uma característica fundamental do Ação Rua é o intercâmbio entre os diversos Núcleos
uma vez que uma família, criança ou adolescente de uma região pode ser abordada em outra
região, tendo em vista o caráter nômade das atividades destas pessoas que vivem em situação
de rua. Neste modelo conjunto, a equipe de educadores da região X aborda sistematicamente
as crianças, adolescentes e/ou famílias da região Y e quando compreende existir um vínculo
construído, agenda uma discussão de caso com os técnicos da região de origem (seguida de
uma futura visita domiciliar). Em alguns casos os educadores de duas regiões agendam
abordagens em conjunto com objetivo de iniciar uma vinculação e, posteriormente, promover
o acompanhamento territorializado do caso, conforme a região de moradia da família. Para
que esta prática seja efetiva é necessário que as equipes estabeleçam uma consistente parceria
e estejam atentas à singularidade dos casos encontrados a fim de avaliar o momento certo de
“passá-los” para a equipe da região de origem. A metodologia também prevê uma gestão
compartilhada, em que as coordenações dos Núcleos mantêm reuniões semanais, compondo a
Coordenação Executiva do Ação Rua, experiência que tem se mostrado extremamente
positiva, garantindo fluxos necessários para a efetividade do trabalho, além da definição de
conceitos e prioridades.
3. Mapeando territórios, conhecendo comunidades
Ao ser implantado o Serviço Ação Rua, uma das primeiras atribuições dos Núcleos foi
mapear as características do território, tanto no sentido de conhecer suas vulnerabilidades e as
formas de expressão da situação de rua, quanto para entrar em contato com as potencialidades
da região, com as iniciativas que estavam dando certo e, assim, iniciar diversas interfaces com
a rede já existente. Para tanto, foi necessário entender quais são as áreas de maior incidência
de crianças e adolescentes em mendicância, trabalho infantil, rua moradia ou outras situações
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de rua apresentadas, que características têm essas áreas observadas e quais são os locais já
apontados pela rede como de maior vulnerabilidade.
Este trabalho de mapeamento foi realizado nos primeiros meses e aconteceu através de
abordagens sistemáticas (roteiros previamente planejados pelas equipes). Foram mapeadas
áreas residenciais e comerciais; extensas áreas com características ainda rurais, com longas
estradas e poucos estabelecimentos comerciais; observou-se regiões onde havia diversos casos
de adultos trabalhando com carroças, puxando carrinhos para catação de lixo e em situação de
mendicância, estes – em muitos momentos – acompanhados de crianças e/ou adolescentes –
aspecto este que dificulta a abordagem; identificou-se supermercados onde havia
predominância de mendicância e trabalho infantil, como carregar sacolas, especialmente nos
finais de tarde e finais de semana; foram observados também os principais semáforos e vias
públicas onde se encontram crianças e adolescentes e identificou-se ainda os horários
predominantes em cada região. Vale ressaltar que o mapeamento caracteriza-se por ser uma
prática constante, uma vez que as regiões passam por permanente processo de mudanças, o
que altera também as situações de rua, possibilitando reflexões, olhares e interpretações
diversas sobre tal fenômeno. O monitoramento trimestral das situações de rua e sua dinâmica
nas regiões tem sido um dos fortes eixos do trabalho desde sua implantação, e tem exigido
flexibilidade no horário das equipes, incluindo horários noturnos e aos fins de semana.
Apresentamos a seguir os principais desafios mapeados junto ao público atendido. Uma
prática que se repete nas diversas regiões é o trabalho infantil nas feiras livres, seja cuidando
de carros, carregando sacolas, mendigando, pedindo frutas e verduras, vendendo produtos ou
mesmo trabalhando com os pais ou responsáveis nas bancas. As equipes avaliaram ser
relevante um olhar mais próximo destes locais a fim de melhor compreender tal dinâmica.
Muitos dos casos novos abordados foram encontrados nestas feiras e as crianças que as
freqüentam trazem outras, ou seja, constata-se um preocupante aumento da mendicância ou
exploração do trabalho infantil. Constatou-se também que muitos dos jovens encontrados nas
feiras as freqüentam após o término das aulas. Têm sido buscadas articulações com as
secretarias de Educação, Esportes e Cultura, com objetivo de promover atividades
sistemáticas nesses horários de final de tarde, por exemplo. As equipes apontam também que
poderia ser melhor explorada a relação com os Centros Administrativos Regionais (CAR),
existentes em cada região da Cidade, e que são os responsáveis por organizar as feiras livres,
com o intuito de melhor entender e talvez minimizar o trabalho infantil encontrado nestes
espaços. Tal investimento e leitura da situação que envolve o fenômeno das feiras vêm
fomentando, também, uma parceria com a Comissão Municipal do Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil – COMPETI e a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego.
Tem-se constatado de modo crescente em muitas regiões a presença de mães em
situação de mendicância ou coleta de lixo com filhos pequenos, muitas vezes bebês. O último
censo sobre crianças em situação de rua em Porto Alegre (UFRGS/Granpal, 2008) indicou um
aumento significativo entre as crianças até 06 anos nas ruas, apontando especial necessidade
de intervenções com estas mães, além de aumento e criação de espaços de proteção para esta
faixa etária, como vagas na educação infantil e creches. Entre as famílias atendidas pelo Ação
Rua há um grande número de famílias monoparentais, onde apenas um provedor está
presente, geralmente a mãe, sendo o apoio social proporcionado pelo serviço de
acompanhamento potencialmente relevante. Segundo dados da Síntese dos Indicadores
Sociais 2008 do IBGE, de 1997 a 2007, entre as famílias com todos os filhos menores de 16
anos, cresceu a proporção do tipo monoparental (com a presença de apenas um dos cônjuges):
de 19,2% para 21,8%. Em 2007, cerca de 31% das famílias em que a mulher era a pessoa de
referência viviam com rendimento mensal até ½ salário mínimo per capita. Estes resultados
mostram que, na realidade brasileira, muitas famílias chefiadas pela figura materna têm vivido
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em situação de empobrecimento e miséria e é essa também a realidade encontrada pelo
Serviço.
Com o avanço do trabalho das equipes, algumas especificidades de determinadas regiões
e comunidades ganham visibilidade. Uma dessas características é a presença de crianças e
adolescentes indígenas nas ruas, muitas vezes sem a companhia de um adulto. Uma vez que
existe legislação específica, considerando os povos indígenas nação independente, é
necessário um manejo diferenciado de modo que sejam respeitados sua cultura e suas
tradições. Um trabalho intersetorializado tem sido construído, aos poucos, com as Secretarias
de Assistência Social, Direitos Humanos e com o cacique responsável pela aldeia - com
objetivo de trabalhar formas de cuidado com a população, respeitando-se suas características,
mas visando a proteção das crianças e adolescentes.
Também ganharam visibilidade a forte presença de trabalho infantil doméstico nas
extensas áreas rurais; os crescentes processos de reloteamentos - com a readaptação de
famílias inteiras a novos contextos de moradia, provocando novos arranjos inclusive com
relação ao seu acompanhamento; grandes bolsões de pobreza; áreas muito populosas, outras
com grande extensão territorial; além de regiões cujo tráfico de drogas e sua organização são
os definidores de grande parte do modo de vida das comunidades. Todas essas realidades
podem agora ser melhor vistas e descritas através da dinâmica do trabalho.
Finalmente, outra característica encontrada, e um foco fundamental do Ação Rua,
refere-se ao trabalho com crianças e adolescentes que estão de fato morando nas ruas, em
situação de rua moradia. Normalmente, aqueles que se encontram nesta situação já estão com
os vínculos familiares muito fragilizados, quando não foram totalmente rompidos. O
monitoramento e acompanhamento desses casos (cerca de 115 crianças e adolescentes em
outubro de 2008) envolve não somente o Serviço Ação Rua, mas também a Rede Interua,
composta por outros que atuam em diferentes áreas (escola, SASE, Abrigagem), serviços
esses extremamente comprometidos com o acompanhamento intensivo e enfrentamento das
complexas situações de rua moradia.
O mapeamento também objetivou buscar dados de como está constituída a rede nas
regiões, que serviços, lideranças, instituições e programas podem ser acionados e quais são os
“nós” e déficits principais. Sempre com a orientação de partir da construção da própria Rede
de Proteção, as equipes buscaram estabelecer contatos e apresentar-se como mais um
elemento de construção dessa rede junto a diferentes espaços da região: reuniões mensais dos
Conselhos Regionais de Assistência Social - CORAS, reuniões de regionalização da Infância
e Juventude e de Família (que congrega serviços de assistência social, municipais e
conveniados, para discussão de casos e temas relevantes), reuniões de rede (que congrega
diversos serviços da região, como creches, escolas, serviços de assistência social, conselho
tutelar, serviços de saúde, Ongs), encontros específicos com Conselhos Tutelares, Programas
de Saúde da Família - PSFs, Unidades Básicas de Saúde - UBSs, Escolas, Fóruns Regionais
de Segurança Pública, entre outros. Este mapeamento constituiu-se em peça chave para o
início da regionalização do Ação Rua e segue acontecendo como processo sistemático de
olhar sua área de abrangência, sendo que trimestralmente as equipes vêm (re)constituindo
seus mapeamentos, observando os movimentos das crianças e adolescentes e da própria vida
orgânica das regiões e de sua rede de atendimento.
Dentre as inúmeras parcerias estabelecidas ao longo da implantação e execução do
Serviço Ação Rua vale ressaltar a parceria com os Centros Regionais e Módulos de
Assistência Social do Município. O trabalho conjunto com os técnicos desses espaços, a
possibilidade de executar visitas domiciliares com diferentes equipes, as discussões de casos
como forma de integrar distintos serviços da rede em prol das crianças, dos adolescentes e de
suas famílias e da construção de diferentes olhares sobre um caso proporciona, sem dúvida
nenhuma, qualidade ao trabalho. O acolhimento e a parceria com alguns Centros Regionais
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possibilitaram, por exemplo, a priorização das famílias atendidas pelo Ação Rua para inclusão
em NASF - Núcleos de Apoio Sócio Familiar e PETI – Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil, ambos com repasse de renda. Também houve a disponibilização de passe gratuito
para crianças e adolescentes inseridos nos serviços sócio educativos, garantindo seu acesso
aos programas da rede de proteção. Ainda pode ser citada a parceria com os serviços de
saúde, dentre eles: postos de saúde, UBS (Unidades Básicas de Saúde), NASCA (Núcleos de
Apoio à Saúde da Criança e Adolescente); Conselho Tutelar, Ministério Público e, com as
escolas abertas – tanto municipais quanto estaduais, entre outros.
4. O trabalho com famílias, vulnerabilidades e situação de rua
A proposta do Ação Rua, concernente ao ECA (1990), é trabalhar o retorno para a
convivência familiar e comunitária. Entretanto, sabe-se pela prática e por estudos (DE
ANTONI, 2000; GRANPAL/UFRGS, 2004) que muitas vezes um dos fatores que leva ao
movimento de saída para a rua é justamente a constituição de uma alternativa pessoal de
enfrentamento a determinadas adversidades, que podem estar centradas na relação familiar
(violência familiar, por exemplo), adversidades relacionadas à comunidade (está “prometido”,
ameaçado de morte, na comunidade) ou necessidades de garantir o sustento econômico
pessoal e familiar. O Serviço Ação Rua, assim como outros que visam o retorno de crianças e
adolescentes em situação de rua para a família, trabalhará com essa contradição constante: a
família como risco e como proteção.
As famílias encontram diferentes modos de reação e cuidado de seus filhos diante de
situações de violência e risco presentes em suas comunidades e em seus cotidianos de vida
(CECCONELLO, 2003; GARBARINO & BARRY, 1997). Algumas famílias apresentam-se
mais vulneráveis aos efeitos negativos da comunidade, o que parece estar relacionado, entre
outros fatores, à falta de uma rede social de apoio e à falta de resiliência (CECONNELLO,
2003; YUNES, 2003; ZAMBERLAN & BIASOLI-ALVES, 1997). Seriam essas as
contribuições oportunas de um serviço como o Ação Rua, constituir-se em rede de apoio? O
que favoreceria a resiliência nessas famílias?
A resiliência tem sido utilizada na literatura sobre famílias, onde é definida baseando-se
em critérios como adaptação, risco e proteção (CECCONELLO, 2003; YUNES, 2003). A
resiliência em famílias envolve a habilidade do sistema familiar como um todo, referindo-se
“à habilidade da família para enfrentar as transições normativas e não-normativas do seu ciclo
de vida, produzindo processos proximais entre seus membros que gerem competência, e não
disfunção” (CECCONELLO, 2003, P.26). Walsh (1996) salienta que a pesquisa sobre
resiliência em famílias deve estudar os processos que favorecem que as famílias lidem com as
situações de crise de uma maneira eficiente e saiam delas fortalecidas, não importando se a
fonte de estresse é interna ou externa à família. As autoras salientam que o sistema familiar
deve ser analisado em sua interação com os contextos nos quais está inserido, relacionando-o
com os seus recursos e problemas a serem enfrentados.
Estudos indicam as redes de apoio social como um importante aspecto para a promoção
da resiliência (BRITO & KOLLER, 1999; FREITAS & MONTERO, 2004; HOPPE, 1998;
LÓPEZ-CABANAS & CHACÓN, 2003; POLLETO, 1999; ZAMBERLAN & BIASOLIALVES, 1997). Dentro dos contextos das famílias de baixa renda, a rede formal de apoio,
constituída por serviços de saúde, assistência social e educação, pode cumprir um papel,
suprindo lacunas da rede informal e comunitária, e auxiliando as famílias a desenvolver novas
competências e relações de apoio. Entretanto, percebe-se que no discurso cotidiano dos
trabalhadores sociais, o foco recai nas graves dificuldades apresentadas pelas famílias em
lidar com suas crianças e adolescentes, mais do que nas competências familiares. As
dificuldades, em termos de recursos financeiros ou de saúde mental dos cuidadores principais,
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são inevitavelmente destacadas, sobrepondo-se à condição de adaptação e resiliência também
presentes nessas famílias. Uma proposta de intervenção como o Ação Rua deve ser capaz de
estimular nas famílias e nas comunidades juntamente essa condição de resiliência, tanto como
forma de reverter as situações de rua já estabelecidas quanto como forma de prevenir que
irmãos acabem, também, em situação de rua.
Em determinados momentos, a realidade concreta do trabalho com situações de rua é de
tal maneira paralisante que leva profissionais, famílias e mesmo as crianças a desistirem de si,
da intervenção em andamento, de seus projetos de futuro. É fundamental conhecer, acessar e
trabalhar com as estratégias de enfrentamento e de superação das vivências cotidianas de
risco. Especificamente, é necessário estudar os processos e as interações que caracterizam a
intervenção dos trabalhadores sociais e que favorecem essas estratégias de enfrentamento. A
questão do empobrecimento generalizado da camada social da qual faz parte a maior parte das
famílias que têm crianças e adolescentes em situação de rua, leva muitos profissionais a
entenderem que somente ações concretas de inserção social do grupo familiar podem
interferir na situação de rua. De fato, as possibilidades de ingresso ou re-ingresso para escola,
em atividade sócio-educativa, em tratamento para drogadição e possibilidades de geração de
trabalho e renda são elementos muito importantes no caminho do enfrentamento da situação
de rua. Entretanto, a disponibilidade pessoal tanto das crianças quanto de suas famílias para
estas alternativas concretas perpassam as ações de trabalhadores sociais no sentido da escuta
dos elementos que permeiam a estruturação e organização familiar, e a forma como são
vivenciados e comunicados afetos e limites. Segundo Yunes e Szymanski (2003), existe a
crença, entre profissionais da Saúde e Educação, e que também pode estar associada à
Assistência, de que a maioria das famílias pobres é acomodada à pobreza, “desorganizada”,
“comprometida” e “desestruturada”, incapaz de superar e reverter a situação de adversidade.
Assim, é fundamental que os trabalhadores envolvidos com projetos sociais, que lidam com
famílias com baixas condições sócio-econômicas, possam refletir sobre as possibilidades
positivas destas famílias no enfrentamento das situações. Dessa forma, a constante
capacitação da equipe pode trazer contribuições tanto para o próprio trabalho da equipe como
no fortalecimento destas famílias que passam a ser mais acreditadas.
5. Construções realizadas, construções a realizar...
Após cerca de um ano e meio desde sua implantação, já é possível fazer uma leitura de
alguns resultados da regionalização do Serviço. Inicialmente destaca-se a inclusão de crianças
e adolescentes em espaços protegidos, como serviços sócio-educativos – reduzindo assim o
número de horas passadas na rua. Mesmo diante da complexidade que envolve a situação de
rua moradia de usuários acompanhados, já foi possível identificar redução no tempo de
permanência na rua, o que pode ser relacionado à efetiva presença das equipes nas ruas e nas
famílias, e também ao processo de conscientização realizado junto à população.
Pode ser destacado o trabalho realizado junto aos serviços da rede para qualificar o
acolhimento (por exemplo, na escola, no serviço sócio educativo, no serviço de saúde) que
deve ser flexibilizado a fim de se efetivar a vinculação das crianças e adolescentes aos
espaços. Muitas vezes, por estarem há muito tempo fora de um espaço que ofereça regras,
limites, continência, há dificuldades na adaptação dos jovens. A ênfase no vínculo é de
primordial relevância, uma vez que já perderam relações significativas ao longo do processo
de ida para a rua. Muitos espaços de proteção ou serviços da rede também têm garantido
vagas quando necessário e diante do que se pode chamar “um caso urgente”. Uma consistente
articulação e comunicação no encaminhamento dos casos, através de reuniões sistemáticas
com a rede de serviços, favorecem a inserção e a permanência da criança ou adolescente. É só
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através desta parceria e da potencialização do trabalho intersetorializado que se poderá
almejar resultados mais promissores.
Certamente também são identificados entraves ao trabalho e aspectos que necessitam
com urgência ser melhorados como, por exemplo, a ampliação no número de vagas nos
serviços de saúde e em espaços de proteção. Há poucos Centros de Atenção Psicossocial CAPS implantados em Porto Alegre, em especial CAPS I e CAPS AD. Esta carência na rede
de atendimento de Saúde Mental para crianças e adolescentes nas regiões, é especialmente
grave no que se refere à drogadição. Muitas vezes, o município consegue vaga em clínicas
para desintoxicação; no entanto, a continuidade do tratamento, seja em Comunidade
Terapêutica ou em unidade de saúde da região são muito restritas. Também há limitação com
relação a vagas em abrigos, uma vez que a rede já está superlotada. Ainda que deva ser
transitória, muitas vezes pode ser necessária a permanência em abrigo durante o período de
trabalho da equipe junto à família. A falta dessa alternativa de proteção obriga o trabalho a
acontecer enquanto a situação de rua permanece e, como conseqüência, se agrava.
Uma análise global dos atendimentos realça o quanto a miséria e o fenômeno da “casa
vazia” – ausência de adultos no entorno da criança, a falta de cuidados e de rituais de vida
familiar – podem tornar crônica a experiência de rua de inúmeras crianças e adolescentes.
Observa-se muitos casos de crianças com suas mães ou responsáveis nas ruas, o que pode
significar um primeiro passo para viver ou sobreviver. O que parece acontecer muitas vezes é
que crianças estão inicialmente acompanhadas de adultos para, em seguida, começarem a
desbravar e explorar, sozinhas, o mundo das ruas. A tese de Gregory (2000, p.100) que vê a
família como “parte do contexto que estimula uma experiência de circulação que poderia ser –
e que muitas vezes é – utilizada na rua”, parece se encaixar nessa reflexão. Um desafio
delineado é evitar que estas crianças e adolescentes cheguem ao centro da cidade, local onde
os riscos são multiplicados, como uso de drogas mais pesadas e exploração sexual. A fixação
de crianças e adolescentes no centro muitas vezes significa o agravamento da situação de rua
e maiores dificuldades no trabalho de retorno para suas regiões de origem e revinculação
familiar.
Um desafio específico é o trabalho com famílias de crianças e adolescentes que, apesar
de já inseridos em espaços de proteção e vinculados a programas como o Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil - PETI e Programa de Apoio Integral à Família - PAIF,
continuam retornando às ruas após a escola ou Serviço de Apoio Sócio-Educativo (SASE)
(que acontece no turno oposto à escola). Nesses casos, as crianças já têm reduzido o tempo de
permanência nas ruas, mas permanecem em sinaleiras, vendendo produtos ou em mendicância
nos finais de tarde e noite.
Ao refletir sobre a não efetividade de muitos dos encaminhamentos realizados, algumas
hipóteses vem à tona. Um dos aspectos refere-se ao fato de que há grande número de casos de
famílias envolvidas com uso e abuso de substâncias psicoativas: não é especificamente a
criança ou adolescente em situação de rua o usuário de drogas, mas os adultos cuidadores
principais ou mesmo toda a família. Como não temos ainda uma proposta mais consistente
para o trabalho com drogadição no município, nosso alcance de intervenção é parcial. A
cronicidade de alguns casos de situação de rua perpassam graves e complexas relações
familiares em que o estar na rua pode ser visto como movimento saudável daquela criança
(SANTOS, 2006; SANTOS & DELL'AGLIO, 2006). A possibilidade de trabalho mais focado
nas relações familiares, que envolva terapia comunitária e familiar, por exemplo, são
propostas defendidas pelo Serviço, a serem ainda constituídas na rede.
As equipes apontam o quanto o tempo e a qualidade da presença na rede, na vida dessas
famílias – o vínculo estabelecido e o cuidado exercido - podem ser cruciais para a efetividade
de todo resultado almejado. O aprofundamento do vínculo estabelecido com as crianças,
adolescentes e famílias, é um elemento fundamental, e que pode ser exemplificado pela fala
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de alguns familiares que relatam o quanto “minha vida mudou desde que a equipe passou me
acompanhar” (SIC).
Também como experiência positiva podemos referir que não são mais encontradas
crianças e adolescentes em determinados locais, o que atribuímos às várias abordagens das
equipes do Ação Rua nos turnos manhã, tarde e noite e às reuniões para conscientização da
situação de rua, seja com as próprias crianças, adolescentes e suas famílias, seja com
comerciantes da região, além de intervenção paralela do Conselho Tutelar. Entretanto,
estamos atentos para verificar se não houve apenas mudança de local dessas crianças. O
trabalho próximo com as famílias permite acompanhar se houve tais migrações, ou se estamos
de fato falando em uma mudança real nas vidas dessas famílias.
No decorrer do ano de 2008, a Assistência Social no município está em pleno processo
de discussões para definir os caminhos da implantação do SUAS. Tais discussões têm levado
em direção a um novo formato da organização dos serviços de assistência social
regionalmente, em que as ações de Média Complexidade, como a executada pelo Ação Rua,
serão vinculadas aos Centros de Referência Especializada de Assistência Social - CREAS.
Assim, o desafio agora é utilizar os aspectos positivos da experiência do Ação Rua e compor
ações, o que parece ser uma das principais capacidades dessas equipes.
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Incoerência e fracasso: estudo de caso sobre a inserção precária de um
morador de rua na cidade de Juiz de Fora/ MG
André Peralta Grillo
Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
[email protected]
Resumo: O artigo parte de um estudo de caso com um morador de rua da cidade de Juiz de
Fora/MG, no intuito de tentar explicar a incoerência entre seu discurso e suas práticas e
também de buscar uma melhor compreensão da invisibilidade social a partir da fracassada
tentativa de assentamento deste morador de rua.
Palavras-chave: Morador de rua; Invisibilidade social; Comportamento incoerente.
1. Introdução
O relato aqui apresentado é ao mesmo tempo cotidiano e singular. Cotidiano, pois trata
de um fenômeno comum às cidades contemporâneas. Singular, pois ultrapassa o liame usual
através do qual se pensa que o fenômeno se mantêm sob controle. Esse fenômeno consiste na
relação entre as pessoas que habitam e transitam um meio relativamente abastado e os
moradores de rua que “invadem” esse meio, “profanando” a aura de limpeza e bem-estar
social dos bairros prósperos; chamando atenção, pela sua presença, da fragilidade e
incoerência desse suposto bem-estar “social” (pois social implica coletivo). Essa presença
“profana” engendra uma forma de sociação peculiar e bem conhecida, por meio da qual o
pólo fraco é declarado invisível, irrelevante, e tratado com suposta indiferença. Ao mesmo
tempo, pessoas mais preocupadas buscam pensar medidas de inserir esses párias. Entretanto,
uma compreensão do que seria essa invisibilidade social, o que a provoca, e quais as suas
conseqüências para as interações cotidianas se coloca como uma questão urgente. A idéia de
que se tem indiferença por essas pessoas “invisíveis” se mostra bem frágil a luz dos fatos.
Como explicar as inúmeras histórias de moradores de rua incendiados e assassinados, como
na seqüência em que pelo menos oito moradores de rua foram mortos a pauladas no centro de
São Paulo, entre 19 e 22 de agosto de 20041? Esses casos conhecidos vinculados pela mídia
não se afiguram, na perspectiva do presente artigo, como patologias idiossincráticas,
outrossim como casos extremos de um mal-estar social (coletivo) de uma população que não
sabe lidar com sua miséria, levando pessoas menos controladas ou sensatas a extravasar esse
incômodo que não é só delas, mas da coletividade como um todo. É evidente que as pessoas
lidam com esse incômodo de várias formas diferentes, seja projetando culpa ou pena nos
párias, seja ativando seu racismo e preconceito, ou extraindo desse contato um alimento para
fortalecer seu impulso de combater a desigualdade e a injustiça.
As reflexões sobre invisibilidade social apresentadas serão ilustradas com um estudo
de caso realizado na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Trata-se de um morador de rua que
1 http://www.rederua.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=120&Itemid=1
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logrou, por certo tempo, uma inserção muito peculiar num bairro próspero, o bairro São
Pedro2, localizado ao lado da Universidade Federal da cidade. O contato cotidiano com o
mesmo e a reação dos moradores à sua presença levaram o pesquisador a se colocar inúmeras
questões, na tentativa de melhor compreender a invisibilidade social3. Parte-se do pressuposto
de que uma melhor compreensão desse fenômeno pode contribuir muito para a elaboração de
políticas públicas eficientes, na medida em que estas estejam mais cientes dos mecanismos
sociais com os quais estão lidando. Outro ponto central ao trabalho é a aplicação da teoria
disposicional da ação para a compreensão do caso exposto, na perspectiva de que essa teoria
pode contribuir para o aprimoramento das políticas de inclusão.
2. Geraldo4
Geraldo era um pária, mas podia sempre ser visto no bairro mencionado. Alguns
moradores costumam chamá-lo de “Bijú”. É alcoólatra, sempre demonstrando sinais claros de
embriaguez. O curioso em sua atitude é uma espécie de compulsão de se afirmar como
trabalhador esforçado, apesar de não ter condições físicas e psicológicas para tanto. Tem 43
anos, mas aparenta ter pelo menos 70. Tem dois filhos, que vivem com sua ex-mulher e com o
padrasto, e se lamenta recorrentemente do fato de ter sido abandonado por ela. Sua fala é
confusa e fragmentada. Mas a tentativa de se mostrar um trabalhador é recorrente, apesar de
todos perceberem que ele é um “mendigo”. Pedir dinheiro constantemente e viver sempre
bêbado não o impedem de tentar ser reconhecido como trabalhador. Por que tal atitude? Não
parece que tentar passar tal imagem possa contribuir para que ele consiga mais esmolas,
afinal, porque alguém que estaria (como diz) sempre trabalhando e não tem família para
sustentar iria sempre pedir esmolas? Porém, a situação mais peculiar e trágica que Geraldo
enfrentou ainda não foi exposta, e talvez ajude a compreender melhor sua condição.
Geraldo deixou de vagar por um tempo. Acomodou-se em um espaço entre a calçada e
os portões de uma loja em construção, estando esta construção abandonada. Um espaço de
aproximadamente 2x6 metros quadrados, em uma rua de razoável movimento para um bairro
razoavelmente pacato. Ali foi juntando lixo reciclável, apesar de seu visível estado de
debilidade. Parece ter encontrado na atividade de catador de papel a sua oportunidade de ser
reconhecido como trabalhador. Isso não o impedia de continuar dizendo que fazia inúmeras
outras atividades. Dizia tomar conta de um condomínio, do qual teria a chave. Mas ao mostrála, via-se que era apenas um cilindro liso, com cabeça de chave. Também afirmava fazer
limpeza em alguns terrenos, capina em outros, e que precisava tomar conta do material
guardado na loja em frente a qual estava... Chegou ao ponto de afirmar que possuía um
terreno com três casas, que alugaria duas delas, ainda por cima num dos melhores bairros da
cidade; estava ali por escolha, pela fidelidade ao dono da loja e pela simpatia dos moradores
do bairro com ele. Logo pode ser percebida em que consistia essa simpatia. Primeiro, em
deixarem ele se acomodar naquele lugar sem problemas. Depois, pelas coisas que ganhava.
2 Aqui, bairro próspero indica um bairro no qual resida uma população de razoável nível socioeconômico e que
apresente um padrão mínimo (em termos qualitativos) de urbanização. Seria o oposto dos bairros de populações
carentes de periferia. O bairro São Pedro pode ser apenas em parte considerado próspero, já que uma boa parte
de sua área é extremamente carente. Mas essa área é claramente separada de sua área mais próspera, e, de
qualquer forma, é nesta última que se passa o relato deste artigo.
3 A concepção de invisibilidade social aqui apresentada deve muito ao trabalho realizado pelo mesmo
pesquisador sobre catadores de lixo.
4 Nome fictício.
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Dinheiro, comida, e até mesmo um sofá.
Não está sendo feita aqui crítica a generosidade. Somente se quer chamar a atenção
para a contradição da situação. Geraldo era claramente um “mendigo”, e seu estado
visivelmente não o permitia mais do que catar um pouco de lixo vez ou outra. Tanto que foi
acumulando, aos poucos, o material reciclável. Isso era claro pois, além de continuar sempre
muito bêbado, agora pouco deixava o local em que tinha se assentado. Além disso, sua
tentativa de se afirmar como trabalhador não o impedia de pedir acintosamente dinheiro a
quem passava, e comida a quem já lhe tinha dado. Como se pode explicar essa incoerência?
3. As disposições de Geraldo
Segundo Pierre Bourdieu, as expectativas subjetivas têm que se adaptar, melhor ou
pior, as condições objetivas da vida (BOURDIEU, 2001: 254-300; 1979:77-94). Com nossa
experiência no mundo, vamos aprendendo o que podemos conseguir ou não. Mas numa
situação em que as condições objetivas não colocam nenhuma possibilidade ao indivíduo
(idem), só resta a sua mente fantasiar, e essas fantasias facilmente se movem rumo ao mais
absurdo, pois são expectativas totalmente descoladas da experiência e da compreensão das
efetivas condições objetivas de atuação no mundo. Mas o interessante no nosso caso é a
radicalização de uma discrepância que o sociólogo francês Bernard Lahire define como uma
contradição entre as disposições a crer e as disposições a agir.
Disposições são formas de agir, pensar e sentir, incorporadas através dos processos de
socialização vividos pelo indivíduo, processos estes que o moldam por meio das sanções
positivas e negativas ao comportamento que impõe, e que terão mais efeito se houver uma
identificação afetiva com o agente da socialização (BOURDIEU, 2001: 199-233); pode-se
também dizer que são tendências a agir, pensar e sentir de uma certa forma, em determinadas
situações. Uma disposição política, por ex., tenderá a determinar o comportamento em uma
situação em que questões políticas estejam envolvidas, direta ou indiretamente, mas não em
outras (ROSENBERG, 1976: 32). Bourdieu (2001), contrariamente a esta última concepção,
busca identificar uma coerência e uma transferibilidade das disposições adquiridas para os
diferentes domínios da prática, através da formação no indivíduo de um sistema de
disposições coeso, um habitus, que determina um mesmo estilo de agir para todas as
situações. Este é o ponto em que justamente sofre a mais dura crítica de Lahire (2004; 2002).
Apesar de, em algumas obras, Bourdieu mencionar a existência de “habitus dilacerados” e
contraditórios (BOURDIEU, 2001: 254-300; 1979:77-94), sua tendência é considerar o
habitus como um sistema coerente e homogêneo. Não cabe aqui reconstruir toda a crítica de
Lahire a essa concepção de habitus. Para os fins deste artigo, basta lembrar como as práticas
frequentemente se contradizem. Por ex., uma pessoa pode ser asceta em alguns domínios e
momentos (como no trabalho, na hora do expediente), e hedonista em outros (na rua ou em
casa, em momentos de lazer) (LAHIRE, 2004; ROSENBERG, 1976: 32). O que Lahire
(2004) apresenta de mais original a teoria disposicional é a sua mencionada distinção entre
disposições a crer e disposições a agir. Por meio desta distinção, pode-se entender melhor a
prática comum de defender uma opinião ou atitude, e agir ao contrário da mesma. Isso se
explica pelo fato de que um processo de socialização pode ter sido eficiente para a
incorporação de uma disposição a acreditar em algo (no valor do trabalho, por ex.), mas não
ter sido do mesmo modo capaz de levar a incorporação das disposições a agir de acordo com
tal crença. Disposições a agir demandam mais tempo e intensidade das experiências de
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socialização para serem incorporadas, além de dependerem muito mais da socialização
primária (a socialização familiar da primeira infância). As disposições a crer são muito mais
homogêneas em uma população, já que sua incorporação é relativamente fácil. A indústria
cultural e mesmo as escolas de pior qualidade costumam dar conta deste processo. Já
disposições a agir demandam um trabalho muito mais intenso e significativo para serem
incorporadas, sendo muito difícil que o sejam se não houve uma socialização adequada na
primeira infância, que preparou o terreno adequado para uma socialização posterior. Por ex., é
difícil para a escola socializar as crianças no sentido de estas adquirirem disciplina para os
estudos, e posteriormente para o trabalho, se estas crianças não foram criadas em um
ambiente que lhes proporcionou a incorporação de um mínimo de disciplina, através de
horários regulares para alimentação, para dormir, e etc.
À luz destas considerações, pode-se agora analisar o caso apresentado. A compulsão
de Geraldo em tentar fazer com que acreditem que é um trabalhador mostra sua crença no
valor do trabalho. Ele sabe o seu valor, e sabe que seria mais valorizado socialmente se fosse
um trabalhador. Em sua situação, não há interesse calculista em tentar passar essa imagem.
Ela pouco pode lhe ajudar a conseguir mais esmolas e ajuda. Ademais, ele poderia, como
muitos, ser um revoltado com sua condição, execrando o mundo do trabalho que não o aceita,
difamando um mercado que não lhe dá oportunidade, maldizendo esse mundo que, afinal de
contas, é realmente tão injusto e desigual. Mas não. Geraldo não dá um sinal de revolta, de
condenação ao mundo que o exclui. Apenas manifesta o desejo de fazer parte dele, de ser o
tipo de pessoa que este mundo valoriza, tentando convencer a todos, e provavelmente a si
mesmo, que já é esse tipo de pessoa. O que ele demonstra é que quer reconhecimento por algo
que não consegue ser, pois foi socializado apenas a querer, a pensar como dever agir de forma
a ser mais valorizado e reconhecido socialmente, pelo menos em relação a sua atual condição
(já que mesmo trabalhadores, quando são desqualificados, por mais esforçados que sejam, não
costumam ter seu trabalho reconhecido, permanecendo invisíveis e excluídos (COSTA,
2004)). Qualquer trabalho, para Geraldo, já seria um ganho, relacionalmente, em termos de
reconhecimento. Mas, mesmo manifestando esse desejo, ele não foi socializado com as
disposições necessárias a uma disciplina mínima para o trabalho, que o permitiriam, ao
menos, recolher lixo reciclável regularmente e em grande quantidade, como muitos fazem, de
forma a conseguir manter uma casa e mesmo uma família com uma renda regular. A tragédia
de Geraldo é que a discrepância entre suas disposições a crer e a agir chega ao paroxismo da
loucura, o levando a lutar contra a invisibilidade social como faria alguém que ele não
consegue ser.
4. A invisibilidade social
Agora se faz necessária uma breve digressão sobre os determinantes mais gerais da
invisibilidade social. Como diz Pierre Bourdieu, os dominados acabam contribuindo para a
dominação à qual são vítimas, pois seu corpo (através de seus gestos) aceita, espontaneamente
e por antecipação, os limites (de classe) impostos (BOURDIEU, 2001:205) - sem ser preciso
recorrer a qualquer justificação racional para esta atitude (antes de se poder pensar o que
fazer, o corpo já age). Não são necessárias as justificativas que os pesquisadores geralmente
obtêm de seus entrevistados, que podem então parar para refletir no porque se retraíram em
frente ao chefe ou a alguém de outra classe (como em (COSTA, 2004)). Podendo parar para
pensar, longe da “urgência” da situação concreta, é claro que eles iram pensar em um motivo
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racional, como a dificuldade de arrumar emprego. Mas isso não precisa ser lembrado no
momento em que se retraem, sendo comum, espontaneamente, enrubescer, baixar o tom de
voz, demonstrar ansiedade, desajeitamento, ante uma situação em que se submetem, “mesmo
contra a vontade a contragosto, ao juízo dominante” (BOURDIEU, 2001:205) (ou seja, de que
eles não são dignos de atenção respeitosa ou de ter a palavra, de interagir ativamente, com seu
superior no trabalho ou com alguém de outra classe, sem agir como um delinqüente).
O livro "Homens Invisíveis", do psicólogo social Fernando Braga da Costa (2004),
sobre o cotidiano dos garis da Usp, apresenta interessantes relatos nesse sentido. Os garis
evitavam ao máximo o contato com os usuários, principalmente os professores da
universidade. Muitos se incomodaram quando seu vestiário foi transferido de um lugar
isolado, discreto e sem movimento, o “viveiro”, para a sede da prefeitura universitária. No
viveiro se sentiam mais “à vontade” (COSTA, 2004: 71-78). Também não gostavam de
trabalhar perto do restaurante dos professores: “-Eles humilham a gente né?! Então é melhor
evitar contato. Pra gente não ficar reprimido. - Mas eles reclamam? - Não. Eles nem olha na
cara da gente. Mas é bom evitar, né” (idem: 127). Por que evitar? O seu emprego corre perigo
se forem vistos? Por que simplesmente entrar em contato com alguém de outra classe pode ser
visto como humilhante?
Podemos perceber nas entrelinhas da fala citada algo de peculiar à invisibilidade: ela
não é uma indiferença. É como descreve Simmel (1973), ao falar da “reserva” que os
habitantes da cidade têm que desenvolver, em função da multiplicidade exorbitante de
contatos e estímulos a que estão submetidos no dia a dia. Essa reserva, a conhecida atitude
blasé, raramente, como o próprio Simmel afirma, se constitui de uma verdadeira indiferença,
sendo em geral a manifestação de “uma leve aversão, uma estranheza e uma repulsão, que
redundaram em ódio e luta no momento de um contato mais próximo” (idem: 17-18). O modo
de vida urbano, segundo o mesmo autor, não poderia ser mantido sem as distancias e as
aversões efetuadas por esta antipatia latente e esse potencial antagonismo prático (ibidem) 5.
A questão é que chamar a atenção, a quem não é reconhecido socialmente como
alguém de valor, quase sempre é algo negativo, fonte de humilhação. E ninguém é
considerado menos digno de atenção do que um morador de rua (a não ser quando este se
torna agressivo, o que o torna um delinqüente – e os delinqüentes merecem atenção, pois são
uma ameaça). Como não estranhar um “farrapo humano” transitando pelos bairros prósperos,
sujando a paisagem de quem de outra forma não tem que conviver diariamente com a miséria,
com sua feiúra, se não fosse esse mecanismo peculiar da invisibilidade social. Essa
invisibilidade, como já apontado, não é um não-perceber. É mais um “olhar através” (look
through); é perceber fisicamente a presença do outro, e, mesmo sem se dar conta, ignorá-la
por completo; é decretar a não relevância social do outro (HONNETH, 2001).
5. A invisibilidade de Geraldo
Pode-se agora apresentar o desfecho da história de Geraldo. Como visto, a vizinhança,
de início, foi bastante generosa e paciente em relação ao seu assentamento. Mas Geraldo foi
além dos limites implícitos para se manter invisível. A invisibilidade, de fato, pode permitir a
alguém se manter em um local sem ser incomodado. Afinal, se sua presença é pouco
percebida, o incômodo que a realidade da miséria impõe aos mais abastados é atenuado a um
5 As interações na cidade repousam em uma “hierarquia extremamente variada de simpatias, indiferenças e
aversões”, das mais breves às mais permanentes, sendo a indiferença muito incomum (SIMMEL, 1973: 17-18).
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nível tolerável. Mas deve-se de todo modo evitar chamar a atenção, escolhendo um local
discreto, e uma postura também discreta. Geraldo ultrapassou esse liame em que sua presença
podia ser tolerável. Para começar, o local que escolheu não era exatamente discreto. Não há
como saber o quanto isso por si só levaria a sua expulsão do local, já que, além disso, ele
ultrapassou a segunda fronteira da discrição. Deixou de esperar passivamente a generosidade.
Passou a pedir acintosamente dinheiro aos passantes, e comida a quem já tinha lhe dado.
Dessa forma, a insustentabilidade de sua situação naquele local se tornou gritante, o incômodo
de sua presença ultrapassou os limites do tolerável. Não foi possível averiguar exatamente
como aconteceu, mas, em pouco tempo, veio o caminhão de lixo e levou todas as coisas de
Geraldo, e este não mais foi visto no local.
6. Conclusão
Como visto, a invisibilidade social tem fronteiras muito tênues. Um morador de rua
tem que lidar com a tensão entre uma certa necessidade, para sua segurança, de permanecer
invisível, e a angústia existencial que a experiência da invisibilidade gera, experiência que é o
atestado socialmente estipulado de não-relevância. Essa tensão pode chegar ao paroxismo da
loucura, como no caso apresentado neste artigo. Com a análise deste caso extremo, buscou-se
aclarar os fenômenos sociais em jogo, na tentativa de uma humilde contribuição para o
fortalecimento do debate em torno da invisibilidade e da exclusão, fortalecimento este crucial
para a eficiência das políticas de inclusão.
Referências
BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
------------------- O Desencantamento do Mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
COSTA, F. Homens Invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004.
HONNETH, A. Invisibility: On the epistemology of “recognition”. Supplement to the Proceedings of The
Aristotelian Society, Volume 75, Number 1, July 2001, pp. 111-126(16).
LAHIRE, B. Retratos sociológicos. disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004.
---------------- O Homem Plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.
ROSENBERG, Morris. O significado das relações. In: A lógica da análise do levantamento de dados. São Paulo:
Cultrix, 1976.
SIMMEL, G. A Metrópole e A Vida Mental, in: VELHO, O. (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar,
1973.
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Na Rotina do Previsto:
“drogas” e cotidiano de “meninos e meninas de rua” da cidade de Campinas1.
Taniele Rui
Doutoranda em Antropologia Social pela Unicamp
[email protected]
RESUMO: Este texto objetiva tratar da existência de uma rotina relativamente
previsível no cotidiano de adolescentes e jovens em situação de rua da cidade de
Campinas, em que as “drogas” figuram como mais uma dentre outras atividades
realizadas ao longo do dia. A partir do trabalho de campo, característico da
antropologia, o que se pretende é lançar luz sobre determinados aspectos da
sociabilidade na rua, por vezes ignorado nas políticas públicas destinadas a essa
população.
PALAVRAS-CHAVES: “meninos de rua”, “drogas”, etnografia, sociabilidade.
1. Considerações Iniciais
“Qualquer tipo de ordem é melhor que o caos”. A célebre frase do antropólogo
Claude Lévi-Strauss pode, em alguma medida, ser transposta para o universo das
práticas e atividades dos chamados “meninos de rua” – expressão a partir da qual foi
nomeado e identificado um segmento populacional que, segundo Gregori, “mais do que
a mera familiaridade ou o convívio esporádico com a rua, faz dela o lugar que ordena
seu cotidiano, suas relações e sua identidade” (Gregori, 2000:15).
Ao descrever o dia-a-dia de meninos e meninas “em situação de rua”2 na cidade
de Campinas proponho, neste texto, o desafio de deixar de lado todas as concepções que
mostram a rua como o lugar por excelência do caos, da desordem, da imprecisão e da
1
Este texto evoca partes da pesquisa que resultou na minha dissertação de mestrado, defendida no IFCHUnicamp em abril de 2007, que tratou do tema do uso de “drogas” em três grupos sociais distintos, a
saber, “meninos de rua”, “dependentes químicos” internados em clínica de recuperação de drogas e
estudantes universitários. Para mais detalhes, ver Rui (2006 e 2007).
2
É importante dizer que há uma disputa classificatória no que tange à nomeação desses adolescentes que
permanecem nas ruas praticamente o dia todo, como afirma o trabalho de Frangella (1996): “tais crianças
ou adolescentes são considerados, pelas instituições que atendem crianças carentes, sujeitos ‘em situação
de rua’, ou ‘em situação de risco’, ou seja, estão de passagem pela rua, e são carentes das prerrogativas do
Estatuto da Criança e Adolescente (ECA): boa alimentação, saúde, escola, moradia, atenção dos pais. Por
outro lado, na classificação das instituições punitivas e de boa parte da imprensa, são chamados de
‘menores de rua’, ou ‘infratores’ – aqui a imagem do perigo é reforçada. De qualquer forma, tais
classificações são feitas a partir dessas crianças e adolescentes nas ruas do centro da cidade, explicitando
uma realidade oriunda dessa relação rua/criança” (Frangella, 1996:10)
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hostilidade e, de uma outra perspectiva, focalizar sua regularidade e rotina. Como se
verá, não pretendo em nenhum sentido ignorar aspectos negativos e maléficos presentes
neste cenário (eles serão descrito), mas quero, sobretudo, chamar atenção para a sua
positividade, no sentido de ser este um espaço que produz sociabilidades e regularidade
espacial e temporal, mesmo no que se refere ao consumo de “drogas” – foco principal
da minha investigação.
O que se ganha com isso? Entre muitas respostas possíveis, uma delas – e talvez
a mais importante – reside no fato de que pode estar aqui a chave para entendermos a
insistência dos adolescentes em permanecerem nas ruas, a despeito de todos os esforços
políticos e morais que caminham na direção contrária.
2. Metodologia e Apresentação do Espaço
O trabalho de campo foi realizado no conhecido semáforo da Norte-Sul,
localizado embaixo do viaduto “Laurão”. Para os que não conhecem Campinas, trata-se
de uma grande via expressa da cidade que, como o próprio nome indica, liga os seus
dois extremos – norte e sul. Como é sabido que nesse lugar há um grande fluxo de
adolescentes em situação de rua, a prefeitura de Campinas junto com uma instituição
assistencial da cidade, a APOT, construíram embaixo do viaduto uma “casa” que
funcionava como lugar de referência aos adolescentes. Esta casa continha três cômodos,
que foram divididos buscando o aproveitamento do local. O banheiro era dividido em
duas partes: uma para uso masculino, outra para uso feminino. A sala possuía uma mesa
com cadeiras e um móvel com várias revistas, livros e alguns materiais como lápis de
cor, hidrocor e giz de cera utilizados para a realização de atividades lúdicas com esses
adolescentes. Havia ainda nesta sala um espaço reservado a uma pequena cozinha com
fogão, geladeira e uma pia. No que seria o “quarto”, foram colocadas divisórias
separando um espaço para guardar materiais de arte-educação, outro espaço para
atendimento dos adolescentes e um telefone.
No seu primeiro ano, a casa era um lugar onde os adolescentes comiam,
tomavam banho e deixavam seus pertences. Com o tempo, partindo da idéia de que
esses serviços contribuiriam para a permanência desses adolescentes na rua, eles foram
deixando de ser oferecidos. Os meninos de rua reclamavam muito dessa modificação.
Principalmente pela falta de um lugar para tomar banho. Quando fiz a pesquisa, a casa
funcionava como um espaço onde os adolescentes bebiam água, iam ao banheiro,
escovavam os dentes, comiam os marmitex que compravam e realizavam atividades de
arte-educação promovidas no local.
Nesta casa trabalhava um ajudante geral, responsável por abrir a casa, limpá-la e
estar à disposição dos adolescentes, caso fosse preciso, bem como assistentes sociais,
educadores de rua e psicólogos, mas estes já com uma presença flutuante, uma vez que
percorriam a cidade em busca de outros “meninos de rua”. Atravessando a rua à direita,
há um MacDonalds. Na calçada do MacDonalds eram realizadas algumas atividades de
arte-educação promovidas por um grupo voluntário, o Manoamano3, cujos participantes
são alunos da Unicamp. Os adolescentes usavam essa calçada para dormir e para
descansarem em meio às aberturas e fechamentos do semáforo. De frente para o
MacDonalds e a Casa, há um córrego que separa as mãos de trânsito desta via. Quando
3
Fiz parte deste grupo cerca de dois anos antes do início da pesquisa – fator este que foi imprescindível
para a minha entrada em campo e para a boa receptividade que obtive, uma vez que conhecia os
adolescentes e os profissionais do local.
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chovia, o córrego não agüentava a quantidade de água, e sempre havia enchente no
local. Realizei a etnografia até o início das obras de Reforma do Córrego. Com a
Reforma, houve toda uma reformulação deste espaço. Esta Casa foi transferida para a
SANASA, responsável pelas obras e, em função do trânsito estar sempre impedido em
alguns locais, os meninos já ficavam pouco no Semáforo e se transferiram para um
semáforo próximo, na av. Moraes Salles. Sem querer, o que se segue acabou sendo
também um registro histórico. A Casa não funciona mais no local (foi transferida
próxima à Prefeitura de Campinas) e esses jovens estão se re-organizando em outros
locais da cidade, alguns inclusive resistindo em ficar neste espaço.
Em meio a esse cenário urbano realizei trabalho de campo mais intensamente de
janeiro a julho de 2006, embora eu já tivesse uma certa familiaridade com o tema e o
lugar. Nesse período, conheci cerca de trinta adolescentes e jovens cujas idades
variaram dos 12 aos 28 anos. Desses, apenas cinco eram do sexo feminino. Durante esse
tempo, o fluxo de adolescentes foi bastante intenso. No entanto, alguns marcavam
presença “rigorosamente” no local – o que fez com que eu tivesse uma relação mais
próxima com cerca de dez adolescentes, oito do sexo masculino e duas do sexo
feminino. Esse fluxo se deve às constantes andanças características desse segmento
social, bem como às idas e vindas às instituições assistenciais ou presidiárias da região4.
Por um lado, esses adolescentes e jovens me desafiaram a compreender uma das
características fundamentais deste segmento social e etário: a pouca verbalização da
experiência, de um lado típica da idade, e de outro, acentuada por tratar-se de um grupo
social que tem na circulação parte significativa e expressiva do seu cotidiano –
circulação essa que me impossibilitava de tecer qualquer conversa mais demorada. Em
outras palavras, quero dizer que suas narrativas são fragmentadas pelo tempo do
semáforo, da circulação e do uso de “drogas”. Com isso em vista, o que descrevo é
decorrente de observações frutos dessa interação próxima e dessas conversas
fragmentadas que tive com os adolescentes enquanto estes se esforçavam por viver e
refazer suas rotinas diárias.
3. Os Adolescentes
Nas histórias que contam sobre suas vidas, são muitos os motivos que recuperam
para explicar o porquê de terem chegado às ruas. No geral, é possível falar que as
temáticas do abandono – material e/ou simbólico – e da sobrevivência perpassam todas
essas histórias. Mortes, maus tratos, descasos são alguns dos fatores que desencadeiam a
ida para as ruas. Ainda assim, muitas e diversas são as trajetórias, algumas vivenciadas
como “destino” outras como “escolha”.
Por exemplo, Manezinho5, de 12 anos, não tem família alguma. Segundo ele,
todos foram assassinados, “só eu sobrei” – disse-me. Ele conta que estava na casa
quando entraram três homens armados e mataram seus pais e seus dois irmãos devido à
“dívida de droga”. Atiraram nele também, mas ele se fez de morto. Quando “os caras”
foram embora, ele foi sozinho e de madrugada até o hospital para ser atendido e contar
sobre o acontecido. Acabou ficando na rua, por não ter aonde ir. “Sozinhos” também
estão Sérgio e Patrícia, ambos de 15 anos. Sérgio foi criado pela avó porque a mãe
4
O fenômeno da circulação é bastante observado nos trabalhos sobre os “meninos de rua”. Segundo
Gregori, “um dos aspectos mais intrigantes ao pesquisar meninos de rua é o fato deles estarem sempre
circulando por locais variados no espaço público, pelas instituições, nas idas e vindas entre suas casas e a
rua. Eles se ‘viram’, circulando. A movimentação é constante”. (Gregori, 2000:19) O trabalho de
Frangella (1996) é uma etnografia desta itinerância.
5
Todos os nomes são fictícios, visando preservar a identidade das pessoas.
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morreu quando ele era “bem pequeno”. Quando tinha 8 anos, essa avó também morreu e
ele não teve com quem ficar. Suas tias o internaram em um orfanato. Desde então, fica
circulando pelas instituições e pelas ruas de Campinas. Patrícia, por sua vez, conta que
sua mãe a abandonou quando casou com outro homem que não a aceitava “por que não
sou filha dele”. Foi para as ruas e mesmo quando esteve presa, a mãe não foi visitá-la6.
Alguns ainda, como Adriano, de 18 anos, e Dani, de 15 anos, moram com as
mães, mas preferem a vida nas ruas. Dormem duas ou três noites por semana na casa
das mães e o restante na rua. E vão para o semáforo todos os dias. A mãe de Adriano é
evangélica e ele é o segundo de três filhos. De acordo com ele, o irmão mais velho “não
faz nada” e o irmão mais novo “é pingaiada”. Já a mãe de Dani parece não se importar
muito com ele, segundo o que conta, e seu irmão também fica nas ruas. Há ainda
histórias como a de Roberto, de 22 anos, que veio por migração, saindo de Barretos
porque não queria mais cortar cana e ficar com o rosto “todo preto e cortado”; e a de
Eric, de 27 anos, que possui uma vida itinerante. Este já teve várias profissões, já
militou pelo MST, mas agora “desisti de tudo”. Diz estar numa fase de bastante
preguiça e que pretende ficar na rua “por um tempo”. E há, por fim, histórias como a de
Roberta, de 16 anos, que fugiu da casa dos pais e veio morar na rua.
É importante enfatizar que não sei dizer até que ponto tais histórias são ou não
verídicas. Porém, trouxe-as para este texto, tal como eles me contaram, por achar que
elas podem dizer tanto sobre a heterogeneidade presente neste universo quanto, e
principalmente, sobre o modo como eles gostam de apresentar suas histórias, portanto,
de se apresentarem ou, como prefere dizer Gregori, de se “virar”. Além disso, é preciso
deixar claro que:
“os motivos que alegam em seus discursos para se afastar de suas casas (...) não
parecem ser o fator determinante para se transformarem em meninos de rua. (...) O
processo de incorporação à rua tem dois lados: de um lado, os responsáveis deixam de ir
atrás dos meninos depois de um número de fugas; de outro, os meninos vão
estabelecendo conexões na rua. Ou melhor, ela vai se tornando um espaço com uma
rede de sociabilidade e com chances de sobrevivência. Há um vínculo entre a aptidão
para viver na “viração” e a desistência dos responsáveis de tomar conta deles” (Gregori,
2000:94, grifo meu)
Uma vez ciente da complexidade envolvida no ato de se transformar em
“meninos de rua”, relato agora as atividades que realizam ao longo dos seus dias e que
conformam a rotina de quem está nas ruas.
4. Atividades do dia
Apesar da incrível diversidade de atividades realizadas ao longo do dia, um
contato mais intenso com esse grupo permite verificar a previsibilidade dessas e a
existência de uma rotina, contraditória à primeira vista, na circulação. Como diz
Gregori, “mesmo parecendo paradoxal, essa rua que os nomeia é também um espaço
ordenado e um universo de relações no qual eles encontram lugar – simbólico,
identitário e material” (Gregori, 2000:101).
Nenhum desses adolescentes possui lugar fixo para dormir. Às vezes em casas
abandonadas ou em frente a estabelecimentos comerciais. Dependendo de onde e como
6
Patrícia contou-me inúmeras vezes o fato de que a mãe não foi visitá-la na FEBEM. E este fato é sabido
por todos que, sempre que se referem a Patrícia, comentam: “pra essa aí ninguém nem liga, nem a mãe foi
visitá-la na FEBEM”.
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dormem, conseguem dormir com relativo sucesso7. Normalmente, começam a acordar
por volta das 10 horas da manhã. Comem uma vez ao dia um marmitex que custa
R$4,50 e, dependendo do dinheiro que conseguem no farol ou das doações que
recebem, comem mais. O marmitex é, normalmente, a primeira refeição do dia de
muitos deles. Não tomam banho diariamente.
Para os adolescentes que estão nas ruas, permanecer no semáforo é tarefa quase
que obrigatória ao longo do dia8. No semáforo ganham o dinheiro para a comida, para a
“droga”, e, por ventura, para o hotel (pensões na cidade cuja diária custa em torno de 12
reais). No semáforo é que realizam o jogo da “viração”9, ficam conhecidos dos
transeuntes, pedem e recebem objetos como roupas, sapatos e produtos de higiene. Vão
e voltam a ele inúmeras vezes ao longo do dia. Param para descansar, para usar
“drogas”, para comer, para conversar. Param quando o sol está muito forte, ou quando a
chuva é intensa. Param para “andar pela cidade” ou para fazer alguma atividade com os
educadores quando estes estão no local. Voltam quando o dinheiro acaba, quando a
fome aperta, quando a “larica” bate, quando a “nóia” é grande ou quando a vontade de
dormir em hotel e tomar banho é maior. Voltam também quando estão “sem nada pra
fazer” e mais ainda se vêem carros já conhecidos, quando o ganho é certo.
Na maioria das vezes, estão em grupo. Fazem tudo juntos, mesmo reconhecendo
que “não dá pra ter amigo na rua”. “Só se tiver drogas”. “Se você tem drogas”, me disse
Mário, de 16 anos, “todo mundo quer ser seu amigo, mas se não tiver, ninguém vem
falar com você”10. Ficam no farol até 22hs, meia-noite. Daí vão “curtir” a noite, fumar
7
Cheguei várias vezes enquanto eles dormiam em calçadas pelos arredores. Relatam muito o fato de
serem acordados por comerciantes que vão abrir o estabelecimento e os fazem sair da frente, ou por
seguranças noturnos que os impedem de dormir em determinadas calçadas. Dormir na rua é um problema
também quando se está doente ou pelo tipo de relação de amizade que se estabelece. Como no caso de
Mário, que me contou que quase tinha morrido durante a noite, porque sua bronquite atacou e ele não
tinha o que fazer nem ninguém para contar, já que dorme sempre sozinho. Não dorme com ninguém “de
rua” porque não sabe nunca se vai acordar ou se vão lhe “botar fogo” enquanto dorme. Há, portanto, uma
desconfiança tanto em relação aos transeuntes, quanto entre eles mesmos.
8
É preciso dizer que no semáforo estão também pessoas que não moram e não dormem nas ruas, mas que
vão e voltam todos os dias e lá ganham o sustento mensal. É o caso, por exemplo, de Eugênio e Raquel,
que possuem dois filhos e que chegam ao semáforo entre 9 e 10horas da manhã e voltam para a casa, na
periferia de Campinas, entre 16 e 18horas. Também é preciso dizer que nem todos que estão no farol
fazem uso de “drogas”. Raquel, por exemplo, diz nunca ter usado “drogas”, nem roubado (já que “na rua”
essas coisas normalmente andam juntas) e faz questão de afirmar sua diferença.
9
Refiro-me à palavra “viração”, tal como ela foi empregada por Gregori (2000) no seu livro que, não por
acaso, tem o título de “Viração”. Para a antropóloga, viração pode ser entendida primeiramente como
“um termo usado coloquialmente para designar o ato de conquistar recursos para a sobrevivência”. Mas,
mais que isso, a viração guardaria consigo algo que vai além da mera sobrevivência, embora seja seu
instrumento: “uma tentativa de manipular recursos simbólicos e ‘identificatórios’ para dialogar,
comunicar e se posicionar” – o que implica adotar várias posições de forma não excludente. Nesse
sentido, “viração” é uma noção que sugere uma comunicação persistente com a cidade e com seus vários
personagens (Gregori, 2000:31). Há ainda um círculo viciado na “viração” e que faz dela uma situação
extremamente aprisionante no caso dos meninos de rua, pois há quase uma impossibilidade de ruptura
desse ciclo que perfaz suas vidas e experiências e dificulta, a despeito do apoio institucional, a transição
para a maioridade.
10
Ao ler a descrição, Simone Frangella me chamou atenção para esta frase. Segundo ela, trata-se de uma
frase muito interessante porque tem a ver com a forma de agregação dos meninos de rua e que marca sua
diferença com as gangues, por exemplo. As gangues pressupõem o compartilhamento de uma fidelidade
entre seus membros e o uso de elementos comuns de identificação, como objetos de consumo, por
exemplo. No caso da rua, estes dois elementos são difusos e não coerentes o suficientes para criar um
grupo. Então o que se pode dizer é que as drogas seriam um elemento que é temporalmente agregador,
assim como são a comida e, por vezes, as atividades junto às instituições. Isso é importante, porque
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suas “pedras”, alguns vão roubar. Dormem entre 2 e 4 horas da madrugada até o
começo do outro dia. Mesmo cheio de atividades e aventuras, esse cotidiano é
relativamente previsível. As “drogas” (durante muito tempo o foco central do meu
estudo), portanto, fazem parte de uma rotina e de uma marcação temporal das atividades
diárias sendo possível dizer que é mais uma prática entre as tantas que configuram o seu
cotidiano, e que tal uso ocorre entre as idas e vindas ao semáforo.
Previsibilidade, no entanto, não significa horários fixos. Significa que todas
essas coisas vão acontecer ao longo do dia. O horário de almoço, por exemplo, é
bastante variado, mas todos eles almoçam. Já vi alguns fazerem a refeição às 10hs da
manhã enquanto outros só vão comer às 3hs da tarde. Comem mais cedo quando estão
com muita fome e não comeram nada pela manhã e, provavelmente, fumaram muita
maconha de madrugada. Deixam para comer mais tarde quando o semáforo está muito
“ruim de dinheiro”, ou quando fumaram muito crack durante a madrugada. Dá para
supor a substância usada na noite anterior pelo horário que almoçam.
5. Saber concreto sobre as “drogas”
No cenário da rua, de modo geral, o meu acesso às concepções e vivências com
“drogas” entre os meninos de rua aconteceu do seguinte modo. Estavámos conversando
sobre um assunto qualquer quando, repentinamente, os escuto combinando quem vai
buscar o “bagulho” para “fazer um lance”. Imediatamente algum “some” (quando
precisam buscar a “droga”) ou todos “somem” (quando já estão de posse dela). Daí, só
me resta observar de longe o que é possível. Enquanto alguns se dirigem à praça
localizada a uns quinhentos metros do semáforo, uma pessoa se encarrega de ir até um
posto de conveniência que tem por perto para pegar um guardanapo, que serve de
“seda” para fumar a maconha. Às vezes, vão até à “favela”11 e minha observação tornase nula. Assim que retornam, em no máximo meia-hora, comentam sobre o uso, ou
ainda estão sob efeito das substâncias.
Foi assim que ouvi de Mário que gosta de “cogumelo” porque dá um “tuim” no
cérebro e isso é “muito bom”; que vi Dani voltar com os dedos cheios de cola,
totalmente desnorteado, sem andar em linha reta, enrolando a língua para falar, não
conseguindo manter os olhos em uma única direção. Foi assim também que vi Pedro
ainda com seu copo de cola, sob o efeito da “droga”, mas bastante sem graça com a
minha presença, não querendo continuar o uso comigo perto e que senti Cristiano com
um cheiro de tinner insuportável ao meu nariz. Mais de uma vez observei algum deles
juntar cinco reais que “dá pra uma pedrinha” e em seguida “sumir” por quinze, vinte
minutos. Junta-se um dinheiro, que varia entre três e dez reais, vai-se de ônibus até à
“favela” “fumar um” e volta. Às vezes, uma pessoa se encarrega de ir até à “favela” e
trazer para os outros. Como a idade é muito variável, normalmente são os menores de
18 anos os que buscam e os que “seguram” a “droga” até ela ser ou dividida a todos ou
repassada ao comprador. Isto porque ter 18 anos significa a chegada à maioridade penal,
ou seja, o fato de que podem responder processualmente e inclusive serem presos. Há
uma regra de solidariedade: quem tem sempre divide com os outros. Isso cria vínculos
no momento mesmo em que cria dívidas. Ao fumar a “droga” de um amigo,
automaticamente entram no hau: a oferta terá de ser retribuída.
mostra a importância da droga em um contexto marcado pela fragmentação – o que não significa
imprevisibilidade.
11
“Favela” é o termo que eles usam para referirem-se ao local onde conseguem “drogas”. Do que
consegui apreender, tratam-se de duas favelas da cidade de Campinas: O Jardim Itatiaia e o Jardim São
Fernando. Mas esse termo também pode ser equivalente à “boca”, sem sinalizar um local específico.
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As substâncias mais usadas são maconha, crack, cola, tinner e algumas misturas
como “mesclado” (cigarro + maconha), “pitilho” (cigarro + crack), “cogumelo”
(cigarro + cocaína). Trabalhar no semáforo, realizar pequenos furtos e roubos, vender
“drogas”, caminhar pela cidade, fazer um serviço para alguém e adquirir bens que
possam ser trocados por “drogas” figuram como suas principais atividades diárias.
Ainda que possuam um certo receio de usar “drogas” na minha frente, e ainda que eu
tenha presenciado muito dos efeitos desses usos, o receio acaba quando se trata de
contar sobre como ficam quando estão na “nóia”, sobre o que vêem, sobre os efeitos,
sobre o que sentem. De maneira geral, contam juntos. Ao mesmo tempo. Sempre em
tom de diversão e dão muitas risadas ao falarem disso. Isso parece indicar que ainda que
não haja uma racionalização exaustiva do porquê desse uso, há uma intencionalidade
presente nesses atos. Em atividades com os arte-educadores, freqüentemente desenham
cachimbos onde fumam o crack e a planta da maconha, ou escrevem expressões como
“o bagulho é doido”, “bom é viver na vida loka”, “o juiz é a nóia”. Muitas conversas
como essas foram interrompidas para que eles fossem “fumar um beque”. Aos poucos,
fui percebendo rapidamente quando alguém chegava com “droga”. Imediatamente
saíam. Mas como sabiam que logo voltariam e que eu os esperaria voltar, muitos me
pediam para segurar coisas como o radinho de Dani, o copo cheio das moedas que
ganharam ao longo do dia, blusas de frio, refrigerante, comidas que ganhavam, etc.
Roberta já chegou a me convidar para ir junto ficar com eles enquanto fumavam. Pedro
olhou feio e falou um sonoro “não” ao que Roberta replicou: “mas ela sabe...”
Todos usam as mesmas “drogas”, embora não na mesma quantidade, nem ao
mesmo tempo. Escolhem as substâncias dependendo da hora do dia, do recipiente onde
é preparada e consumida, e de como o corpo está no momento. Por exemplo, Roberta
diz que gosta de “fumar um beque” e que “só uso crack se for no cachimbo”. Alguns
vão “só pra acompanhar e uso o que tem”. Pedro, por sua vez, gosta só “da paulada12
que o crack dá. O resto é fraco”. Cristiano gosta é “da lucidez do tinner”. Gastam entre
20 e 80 reais por dia com “drogas”. Quando o dinheiro do sinal não dá, fumam a de
alguém ou realizam pequenos “negócios” no comércio das “drogas”. Alguns até fazem
desse uso uma identidade. Quando conheci Eric ele se apresentou a mim da seguinte
forma: “sou mais um dos que fica no sinal e usuário do bagulho”.
Já presenciei a fase da “fissura”, quando eles ficam quietos ou muito agitados
porque querem usar “droga” de qualquer jeito. Pedro fica eufórico dizendo querer uma
“pedra” para dar uma “paulada” e grita “quero uma paulada”, “quero uma paulada”. Às
vezes, a “droga” falta e eles não têm como comprar. Isso ocorre com uma relativa
freqüência, uma vez que compram e usam “picado”, conforme o dinheiro vai
aparecendo. Compram, usam, fazem mais um dinheiro e quando voltam para comprar,
já não tem mais. Ou às vezes não tem pedra “da boa”. Pedro usa mesmo assim, mas
Roberta não. A diferença entre a pedra “boa” e a “ruim” tem a ver, segundo eles me
dizem, com a consistência e com a mistura. E a pedra “boa” tem que ser diluída só no
bicarbonato, “é amarelinha”. Há, portanto, uma “ciência do concreto” que vai se
fazendo no decorrer da vivência com as substâncias e com os outros usuários.
Entre as classificações que fazem, a maconha não é considerada “droga” porque
ela “não dá nada”, “é só pra ficar curtindo”, “pra dar risada” e também porque o crack
“detona” tudo. Quando fumam crack, ficam na “nóia”, com bastante medo; já com a
maconha não. Dani, por exemplo, desde que fugiu da FEBEM de Mogi Mirim, está sem
usar crack, “só maconha”, “pra curtir”. Além disso, a maconha “engorda”. E na rua,
12
Pedro conta que quando usa crack sente “como se alguém desse uma paulada na minha cabeça”.
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estar bem é “estar gordo”. Sabe-se que alguém usa “pedra” (crack) e “farinha”
(cocaína), “porque fica só o caco”, emagrece. E ainda segundo essa classificação, as
mulheres se “acabam” primeiro que os homens. Um exemplo interessante dessa
classificação ocorreu quando surgiu a possibilidade de Roberta ir passar um final de
semana na casa de sua mãe junto com Pedro, seu namorado. Ela estava aflita, pois não
queria que ele usasse crack na frente de sua mãe. “Só maconha”. Ela o avisava disso a
todo momento e inclusive disse que ia comprar toda a maconha necessária para que ele
não sentisse falta do crack e não precisasse sair para comprar. As “drogas” ainda servem
como demarcação de prestígio e hierarquia, e há uma certa valorização daqueles que
consomem “drogas” como crack e tinner, mas não se “acabam” com elas.
Eles têm muito medo de serem presos. Mesmo os que nunca foram, sabem que
isso pode acontecer a qualquer momento. Ainda que suas contravenções não se
restrinjam ao uso de “drogas”, principalmente os mais velhos evitam usá-las em lugares
onde a polícia pode aparecer. Os adolescentes sabem que ser homem e morar na rua
implica em estar sempre em confronto e em conflito com a polícia e que, portanto,
“todo o cuidado é pouco”. Aqui, tráfico e uso são realidades que se confundem e se há
algo que une esses jovens, esse algo é o medo e a desconfiança da polícia. Sem dúvida,
muitos dos seus problemas, principalmente com a polícia, têm a ver com o fato de que
estes usos são indissociáveis de outras atividades que transgridem a Lei.
Tendo toda essa complexidade em vista, pode-se dizer que há, no espaço da rua,
uma relação íntima entre “droga”, uso abusivo das substâncias, criminalidade e dívida.
Entre os meninos de rua, a relação com a polícia é ainda mais delicada. Eles possuem
com ela relações ambíguas de troca de favores e ao mesmo tempo de confronto. Isto
porque, na rua o uso de “drogas” está ligado ao tráfico de “drogas” e a outras
contravenções legais. No entanto, é errôneo afirmar que esta relação de enfrentamento
seja fruto somente das práticas de usos de “drogas” entre os meninos de rua. Os
adolescentes sabem que ser do sexo masculino e morar na rua implica em estar sempre
em confronto e em conflito com a polícia e que, portanto, “todo o cuidado é pouco”. Em
muitos momentos, é a própria condição de “meninos de rua”, enquanto categoria
identitária, que faz dessa população alvo dileto dos policiais.
Somado a isso, se a relação com a polícia é conflituosa; a relação com o tráfico
de “drogas” e com os traficantes também não é diferente. Embora seja possível dizer
que as dívidas de “drogas” sejam o principal motivo de envolvimento neste comércio,
em alguma medida são elas também que lhes garantem um ciclo de sociabilidade e de
prestações de favores infinitos. Isto pode ser exemplificado com a história de Roberta
que, em determinado momento de sua trajetória na rua, pegou “farinha” (cocaína) para
vender, mas Pedro, seu namorado, usou todo o “pó” que estava com ela. Roberta não
deu satisfações ao traficante, até que o encontrou no centro de Campinas cerca de três
meses depois. A princípio, tentou fugir dele, que a perseguiu e lhe disse: “olha, sei que
sua vida vale mais que 280 reais (o valor da cocaína). Por isso, vou perdoá-la, desde que
você venda essa quantidade para mim” e lhe deu mais embalagens (“papelotes”) com o
“pó”. Ao me contar a história, Roberta comentou: “tá vendo como ele é legal, tia?”
6. Considerações Finais
Assim, nessa forma de vida sinteticamente retratada através desta etnografia e
nesse modo de contar experiências que mistura gosto pela aventura, uso de “drogas”,
contravenções legais e negociação constante do espaço e do tempo, os adolescentes que
vivem nas ruas do centro de Campinas criam uma relação específica com as “drogas”
que vão se tornando mais que meras substâncias a serem consumidas e experimentadas.
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Elas constituem parte importante da dinâmica do cotidiano previsível, mas também
conflituoso e hierárquico. O dia-a-dia com a rua vai permitindo a esses adolescentes a
aquisição de um saber próprio sobre todas as relações que envolvem seu cotidiano que
implica em encontrar tanto a “droga” certa e a “dose” adequada, quanto as “boas
companhias”. Saber esse que é a garantia de “não se acabar”, de conquistar um “bom
relacionamento” com a polícia e com os traficantes e de pertencer a um grupo que, no
limite, é a garantia da própria sobrevivência social e física desses meninos nas ruas.
Sobretudo no cotidiano da rua, há uma homologia (que com o tempo passa a ser
visível) entre o uso de “drogas”, a solidariedade com a comida, as infrações, a
afetividade, as tatuagens e o cenário urbano que potencializa a circulação e a “viração”.
Em todas essas práticas, vê-se um universo marcado, antes de tudo, por regras e
regularidades de relações. Não é à toa que, por exemplo, são os menores de 15 anos os
maiores de consumidores de “drogas”. Acredito que isso é indicativo de uma certa
reflexão que se desenvolve ao longo da experiência com a rua e com esse universo que
possibilita, pela prática, a aquisição de um saber concreto a respeito da “droga” certa, da
dose e da qualidade desejadas. Um saber que lhes garante maiores chances de
sobrevivência, bem como uma planejada gestão das dívidas e dos confrontos. Além
disso, a lógica interna desse saber indica, sim, uma racionalização em torno da
experiência. Esses adolescentes trazem ainda, através das marcas em seus corpos, suas
próprias histórias. As marcas ficam e “falam” de conflitos gerados no enfretamento com
a polícia, com o cotidiano da rua, com as instituições presidiárias, entre os grupos rivais,
entre eles próprios, e do uso que fazem das “drogas”. Há, portanto, uma homologia que
se apreende a partir de todas essas relações concretas, práticas e corporais
Como disse anteriormente – e esse é o ponto, embora vivam nas ruas, acredito
não ser possível falar que esses adolescentes estão desamparados ou desorganizados
nela. Ainda que estes não sejam os melhores termos e ainda que o espaço deste texto
seja curto, a idéia implícita nessa afirmação é a de que eles (os “meninos e meninas de
rua”) conformam uma espécie de unidade, com condutas perceptíveis e modos de ser e
agir identificáveis. Isso ocorre primeiro porque, ainda que não estejam circunscritos a
um cotidiano interno às instituições, os meninos de rua vivem numa dinâmica em que
elas são referenciais. Além disso, a “rua” também possibilita uma relação singular com
a cidade de Campinas, com os seus moradores, com as “drogas” e seu comércio. Por sua
vez, a categoria “meninos de rua” em certa medida os unifica e, a despeito das
heterogeneidades de trajetórias, homogeneíza suas vivências e experiências com
“drogas”. Identidade esta que, por sua vez, está materializada – ao mesmo tempo que
em construção – nos seus corpos, nas roupas sujas, nos pés descalços, no cheiro que
exalam, no tipo de solidariedade que estabelecem, no cotidiano balizado pelo tempo de
consumo da “droga”.
Neste espaço, há um paralelismo semântico entre “drogas”, tatuagens,
contravenções e códigos partilhados de hierarquia, prestígio e poder que torna possível
vislumbrar uma determinada previsibilidade no modo de ser e de agir desses que,
considerados pela sociedade mais ampla como “meninos de rua”, também se vêem e se
reconhecem enquanto tal. Ou seja, tratam-se de práticas e de representações que ganham
sentido e se tornam inteligíveis apenas para quem vive nas ruas e que são recortadas por
uma relação específica com o próprio corpo e com os padrões e valores do grupo. É este
sentimento e essas práticas que garantem às “drogas” parte importante na configuração
de uma sociabilidade, de um tempo e de um espaço, mesmo para quem vive acima de
tudo “circulando”. Mas circulando por relações e espaços relativamente previstos, isto é,
a imprevisibilidade está, em alguma medida, limitada por um determinado espaço e
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tempo circular – o que faz com que até mesmo o imprevisível se torne previsível.
Ironicamente, quem melhor afirmou isso foi Sônia, numa frase que escreveu enquanto
desenhava com um educador: “na rua, quando algum imprevisto acontece, é sinal de
que as coisas estão melhorando”.
7. Referências Citadas
Frangella, Simone Miziara. Capitães do asfalto: a itinerância como construtora da sociabilidade de
meninos e meninas “de rua” em Campinas. Campinas – SP. Dissertação de Mestrado. IFCH/Unicamp,
1996.
Gregori, Maria Filomena. Viração: experiência de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
Rui, Taniele C. Uso de ‘drogas’, marcadores sociais e corporalidade: uma pesquisa comparada.
Dissertação de mestrado. Unicamp/IFCH, 2007.
Rui, Taniele C. “Só se vive uma vez: uma reflexão acerca de distintas concepções e práticas do uso de
‘drogas’”. Revista Mediações, vol.11, n.2 (jun/dez.2006). Londrina: midiograf, 2006.
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O corpo em movimento: uma etnografia da corporalidade dos
trecheiros de São Carlos
Mariana Medina Martinez
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
[email protected]
Resumo: A etnografia sobre a população de rua da cidade de São Carlos tem como recorte
metodológico a abordagem da corporalidade neste segmento social. Privilegio a dinâmica de
sociabilidade dos sujeitos estudados para adentramos a lógica de criação e significação
desta realidade. Utilizo então o termo trecheiro, sendo “morador de rua” um termo exógeno
ao grupo estudado, e numa avaliação de como se dá a construção do corpo nos trecheiros,
procuro entender como as práticas corporais e os elementos identitários explicam a vivência
da rua e a percepção do trecheiro quanto a sua experiência. A constituição do corpo
trecheiro é avaliada a partir da nutrição deste, sendo a pinga o principal elemento de
nutrição e formação deste corpo. As marcas no corpo demonstram a experiência da rua, e
portanto, comunicam a experiência trecheira, assim como estas marcas também trazem em si
a história e particularidade de cada indivíduo, bem como o galo – mochila em que carregam
seus pertences – se torna extensão do corpo e a corporalização da memória. A experiência do
trecheiro é ainda avaliada como um estilo de vida em que a própria representação corporal
comunica uma lógica nômade.
Palavras-chaves: população de rua; corporalidade; nomadismo urbano
1. Introdução
A experiência de viver na rua parece ser uma questão intrigante aos olhos dos cientistas
sociais. Como sobreviver às adversidades da rua, como se estabelecem as relações sociais
nestas condições, quais as motivações e dificuldades que levam um sujeito a romper com um
estilo de vida para experienciar uma condição marginalizada. Estas foram algumas das
indagações que me motivaram a adentrar à realidade da população de rua da cidade de São
Carlos.
As questões que abordam o tema referente à população de rua estão inseridas nas agendas dos
cientistas sociais há mais de três décadas. O tema, embora tenha sido estudado por outras
áreas do conhecimento (Comunicação social, Economia, História, Pedagogia, Psicologia,
Serviço Social), nas Ciências Sociais teve seu primeiro indício de pesquisa na Sociologia
Urbana, por volta dos anos de 1970. No repertório das pesquisas realizadas sobre esta
temática, população de rua é um termo ainda em via de desenvolvimento, aberto para
reflexões sobre a natureza deste fenômeno urbano. Muitos são os termos utilizados para a
definição daqueles que vivem na rua, o que necessariamente implica uma variação nos modos
de vida deste contingente nos diversos contextos sócio-históricos urbanos. Por conta deste
quadro heterogêneo que caracteriza a vivência na rua, muitas são as implicações para a análise
e definição deste segmento social.
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Os primeiros estudos no Brasil utilizam o termo mendigo1 para caracterizar esse grupo2,
enfatizando a mendicância como meio de auferir recursos financeiros. As principais autoras
são: STOFFELS (1977) e Di FLORA (1987). Estas pesquisas se dirigem essencialmente a
abordar a problemática do desemprego no contexto urbano. Conduzida pela questão do
trabalho, a abordagem inicial está orientada pela busca da categoria não-trabalho neste
segmento social. Os mendigos são prioritariamente aqueles que expõem com maior clareza os
resultados dos processos de exclusão social, ocasionados pelo modelo de organização política
e econômica do contexto urbano. O termo mendigo omite todas as variações dos modos de
vida na rua, já que o ponto de consonância - causa principal e esclarecedora do fenômeno –
diz respeito à problemática do desemprego.
Numa pesquisa desenvolvida pela Secretaria Municipal de Assistência Social/FIPE da cidade
de São Paulo, foi realizado um Censo da população de rua no ano de 20003. Os critérios
utilizados para a definição da população de rua abrangem principalmente a questão da
moradia: “indivíduos que não têm moradia e que pernoitam nos logradouros da cidade –
praças, calçadas, marquises, jardins, baixos de viadutos – ou em casarões abandonados,
mocós, cemitérios, carcaças de veículos, terrenos baldios ou depósitos de papelão e sucata.”
(FRANGELLA, 2004, P.81)
Numa outra linha teórica, as pesquisas sobre população de rua apontam a mobilidade e a
itinerância como categorias que incidem para uma abordagem que privilegia a dinâmica e
sociabilidade destes grupos, os processos identitários variados, a composição das relações
sociais entre estes atores e suas relações com o espaço e o corpo. São utilizados diversos
termos para a classificação destes sujeitos, tais como: trecheiro, (JUSTO e NASCIMENTO,
2000), andarilhos (JUSTO, 2000), nômade urbano (MAGNI, 2006). Aqui, as pesquisas
deslocam o foco do desemprego para a dinâmica da rua, procuram incidir sobre temas que
ilustrem suas vivências nas ruas, a apropriação do espaço público, a construção do espaço
privado nas ruas, e a fabricação do corpo sob tais circunstâncias. O desemprego aparece como
um dos fatores explicativos para a saída da casa e a “entrada” para a rua, mas não como a
questão que orienta as pesquisas. Emergem destas investigações etnográficas diversos
elementos que apontam as causas da situação de rua – alcoolismo, doenças mentais, perda de
entes familiares, etc. No entanto, a prioridade destas investigações não se volta para a origem
inicial da questão (saída de casa), mas para a dinâmica das relações que se estabelecem nas
ruas e para o entendimento das realidades vivenciadas por estes atores.
Como se vê existem muitas balizas metodológicas para a definição da população de rua, no
entanto, numa breve retomada bibliográfica é possível perceber que a multiplicidade de
termos utilizados para nomear os sujeitos nos revela que a vivência na rua é experimentada de
diversas formas por seus agentes. Dentre a população de rua de São Carlos, esta pesquisa
relata a vivência dos trecheiros na cidade. Esta etnografia pretende entender a dinâmica de
construção e concepção do corpo dos trecheiros e os principais elementos que compõem a
sociabilidade entre estes agentes, como são pensadas as relações entre a produção do corpo e
1 O mendigo, segundo STOFFELS (1977), são pessoas deixadas à margem do mercado de trabalho, na sua maioria homens
solteiros, migrantes à procura de trabalho em São Paulo, que fazem o exercício da mendicância, encarados ora como
incapazes, ora como “malandros”.
2 Os primeiros estudos sobre a população de rua são realizados em meados da década de 1970. Antes desse período são
poucas as abordagens midiáticas, o que não significa dizer que a categoria morador de rua era inexistente, mas que a questão
não possuía uma relevância social. Cleisa Maffei Rosa (1999) fez o levantamento de reportagens que culminou na produção
de um acervo em CD-Rom, procurou artigos sobre a década de 60 e não encontrou.
3 Um novo Censo foi realizado sobre a população de rua no ano de 2007. Os resultados e metodologias estão divulgados na
homepage
do
Ministério
do
Desenvolvimento
e
Combate
a
Fome,
disponível
em:
http://www.mds.gov.br/institucional/secretarias/secretaria-de-avaliacao-e-gestao-da-informacao-sagi/pesquisas.
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a utilização das instituições que os assistem, as diversas formas de se apropriar e se deslocar
pelos espaços urbanos, a construção das redes de relações entre tais agentes e, sobretudo,
apreender como as técnicas corporais comunicam uma lógica nômade.
A etnografia da corporalidade dos trecheiros nos revela o corpo como o indicador social da
situação de rua e comunicador desta vivência. É no corpo que se carregam as marcas da
violência e da precariedade, os cheiros da rua e a materialização de suas histórias de vidas.
Mais do que isso, o corpo tomado como suporte de signos pode ser um caminho interessante
para se pensar também a dinâmica e os diferentes modos de se viver na rua, deixando ressaltar
as categorias de maior potencial explicativo do universo êmico. “A corporalidade não é vista
como experiência infra-sociológica, o corpo não é tido por simples suporte de identidade e
papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade, que articula significações sociais e
cosmológicas; o corpo é uma matriz de símbolos e um objeto de pensamento” (SEEGER et
allii, 1987, P.20).
O corpo, enquanto um instrumento do ser humano, é suporte das relações e transformações
sociais. Viveiros de Castro comenta sobre a fabricação dos corpos nas sociedades xingüanas:
“o corpo humano precisa ser periodicamente submetido a processos intencionais de
construção. As relações sexuais entre os pais de um futuro indivíduo são apenas o momento
inicial desta tarefa. E tal construção é concebida principal, mas não exclusivamente, como
uma combinação sistemática de intervenções sobre as substâncias que ligam o corpo ao
mundo: fluídos corporais, alimentos, eméticos, fumo, pigmentos e óleos vegetais.”
(VIVEIROS de CASTRO, 1979, P.31)
O universo do trecheiro é também apreendido no corpo porque é nele que a dimensão
simbólica desta realidade está ordenada, assim, todos os processos físicos e sociais estão
inscritos no corpo. O princípio de nomadismo - o movimento contínuo do trecheiro transpassa por todas as circunstâncias destes sujeitos. Mais do que isso, o movimento é
percebido como conceito e prática da realidade trecheira, isto é, a condição para a construção
de seus corpos e o deslocamento destes. Imbuídos pela lógica da não-acumulação,
reciprocidade e instabilidade, o trecheiro desenvolve formas criativas de sobrevivência na
rua: cria redes de sociabilidades e lugares comuns para a socialização de seus pares, se
apropriam de serviços urbanos de assistência e reproduzem sua lógica itinerante, comunicam
através de todas as suas práticas o movimento contínuo que traduz o percurso que cada sujeito
traça em sua caminhada. É do movimento que o trecheiro concebe sua forma de ser e estar no
mundo.
2. O trecheiro no trecho
No universo simbólico dos trecheiros, os trechos são espaços urbanos apropriados por eles,
nos quais eles pingam (transitam). Toda cidade possui um ou mais trechos, o trânsito dos
trecheiros pode se dar numa mesma cidade ou intermunicipalmente, sendo que as duas
práticas coexistem. Esta etnografia foi realizada num único trecho que se localiza na Praça
Nossa Senhora do Carmo, pois se trata do principal ponto de fluxo entre os migrantes e
itinerantes da cidade. Notamos que a composição daquele trecho era bastante diversificada
quanto à faixa etária, que varia entre 20 e 50 anos de idade, no entanto a grande maioria era
do sexo masculino. Embora muitos deles tenham família em São Carlos, outros eram
provenientes do interior do Estado de São Paulo e ainda dos estados do Rio de Janeiro, Goiás,
Mato Grosso e Maranhão. Ao contrário do que se pensa, os imigrantes em sua maioria é da
região rural de São Paulo e não de um fluxo imigratório da região Nordeste do país. Este é o
lugar comum dos trecheiros, é nele que se concretizam os caracteres identitários dos sujeitos,
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embora estes lugares passem por um processo de apropriação e significação são espaços
públicos e comuns a todos.
No trecho, os códigos e valores compartilhados são determinados e negociados pela banca
(termo utilizado para denominar um grupo de trecheiros), assim um sujeito pode não ser
aceito pela banca ao quebrar os códigos de condutas negociados. Embora o trecho seja o
lugar apropriado pela banca, o cotidiano dos trecheiros consiste em transitar pelos espaços
urbanos constantemente. Alguns lugares são parte de suas rotinas que incluem espaços para
pedir dinheiro, para pedir comida, para lazer, para aquisição e uso de drogas, para receber
ajuda de instituições que assistem à população de rua. A cidade de São Carlos é mapeada
segundo o percurso dos trecheiros onde os principais pontos são as praças, rodoviária, estação
de trem.
Diante da realidade do trecheiro, a categoria correria assume uma conotação de extrema
importância. De acordo com a concepção local, correria diz respeito aos mecanismos de
busca e aquisição de pinga, drogas, comida e medicamentos, bem como o dinheiro necessário
para a realização dessas trocas.4 É a partir desta partilha e troca de bens que se estabelece uma
relação de respeito na banca. O termo respeito é de extrema importância para a organização
do grupo, pois, trata-se de um conjunto de valores compartilhado entre eles que, dessa
maneira, garante consonância ao trecho. Ajuda mútua, consciência dos limites estabelecidos
pela simbologia do trecho e até o tempo de vivência na rua são alguns fatores abrangidos por
esse.
A reciprocidade é um princípio importante para a sobrevivência na rua, uma vez que os bens
são entendidos para a coletividade e não apenas individualmente, assim como é levado em
conta não apenas o dinheiro que se recolhe, mas os bens que são partilhados e as ajudas que
são prestadas à banca. A correria e os sistemas de trocas materiais entre os trecheiros
permitem o estabelecimento de alianças através da circulação de bens e prestação de favores,
uma vez que esta circulação garante a inclusão de todos os trecheiros na participação da
aquisição e na partilha dos bens. É diante desta dinâmica de trocas e o estabelecimento de
laços de reciprocidade, seja num trecho, ou em diversos deles, que os trecheiros de São
Carlos afirmam que “ninguém passa fome aqui, um olha pelo outro”.
Existem diversas maneiras de se viver na rua que exemplificam como o processo de saída de
casa é feito de modo variado. Segundo os trecheiros eles classificam em três maneiras: a.
alguns alternam vivência na rua com vivência em residência da família; b. possuem família
em São Carlos, mas vivem na rua; c. não permanecem num lugar fixo por muito tempo. Estas
três classificações acabam produzindo diferenciações e singularidades entre eles. Pudemos
perceber a utilização dos termos trecheiro e pardal. O tipo ideal de um trecheiro é aquele que
não pára em lugar nenhum, vive na rua, pingando de cidade em cidade e sobrevivendo de
bicos e correrias. Essas categorias são definidas a partir da territorialidade, sendo que o
trecheiro está relacionado com a instabilidade e transitoriedade e a categoria pardal seu
inverso, aquele que se fixa territorial e afetivamente num trecho. Tratam-se de categorias
opostas e complementares, uma vez que só é possível definir a figura do trecheiro a partir da
oposição do pardal. Todos os sujeitos abordados se auto-denominam trecheiros, o pardal é
sempre a categoria para classificar o outro. Esta dinâmica se dá por conta da aproximação dos
atributos identitários do pardal ao “morador de rua”5. A negação do ser “morador de rua” se
4
Não há uma obrigatoriedade prévia das práticas a serem realizadas, ao contrário, cada trecheiro faz a correria da maneira
que lhe convier, alguns roubam outros não.
5
O termo morador de rua foi negado por todos os trecheiros da praça, isto se dá por conta dos atributos estigmatizantes
atrelados ao termo. No entanto, este termo foi utilizado apenas por aqueles que não compartilham da vivência do trecho.
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dá por conta de seu aspecto estigmatizador, ou seja, sua vinculação com a figura frágil,
alcoólatra, doente mental e abandonada pela família. Apesar disso, a definição de pardal
aproxima-se mais da conotação de “morador de rua”, no que diz respeito a uma certa fixidez
que em si pressupõe sua condenação à marginalidade e não a uma opção de vida.
3. Nutrição do corpo
Os cuidados com o corpo na realidade do trecheiros são, sem dúvidas, rearranjos criativos
diante da escassez material de roupas, remédios, e até mesmo comida. Mas paralelamente, e
ainda assim em contraponto, não só a escassez material e simbólica condiz com as práticas de
cuidados com o corpo, e é neste sentido que nos debruçamos nos usos do corpo como sendo
uma expressão daquilo que o trecheiro vive e concebe como sua própria experiência.
Dentre os cuidados com o corpo, a nutrição dele parece ser o mecanismo que melhor
exemplifica como a experiência da rua se recria cotidianamente e, ao mesmo tempo, como se
notam os elementos prioritários de saúde e alimentação para a vivência na rua. Para além de
se pensar o consumo de certas substâncias enquanto práticas de sobrevivência, a dinâmica de
aquisição destas reflete um exercício de construção diária do corpo em que a itinerância é o
principal eixo orientador destas práticas.
A busca pela comida também é feita através da correria. Os trecheiros recorrem à vizinhança
e aos restaurantes para pedir comida, e também pedem dinheiros para a compra da mesma.
Existem casos em que a correria é colocada em comum para toda a banca. Geralmente
quando compram refrigerantes, biscoitos, bolachas. Estes alimentos são mais raros no
consumo dos trecheiros e, portanto, possuem uma valoração diferenciada dentro das
categorias de alimentos consumidos por eles. Mas dentre as substâncias consumidas pela
banca, o cigarro é um signo de socialização. Os maços de cigarros são colocados para toda a
banca e consumidos pela grande maioria dos trecheiros. Na banca o ritual do fumo é sempre
acompanhado de muitas conversas e brincadeiras. Os cigarros comprados individualmente são
compartilhados na banca, assim como se faz correrias para comprar cigarros a todos.
Os remédios também são conseguidos através da ajuda mútua e rateio dos trecheiros. Embora
eles sejam utilizados para o tratamento terapêutico do doente, a banca ajuda na compra destes
quando o caso está se agravando, como uma forma de contribuição para a recuperação do
doente. Uma frase atraiu nossa atenção: “aqui um olha pelo outro e ninguém fica doente aqui,
só fica doente quem quer”. Quando pensamos a lógica de instabilidade e não acumulação na
qual os trecheiros vivem, a construção diária do corpo reflete e ao mesmo tempo está
permeada pela mesma lógica. Ao avaliarmos os mecanismos diários para busca de alimentos,
podemos pensar como a prática da correria para a supressão da alimentação acaba sendo um
mecanismo reafirmador da construção diária do corpo trecheiro, que é aquele corpo em
movimento e não dependente, que necessita fazer suas correrias todos os dias.
O consumo da pinga se mostrou como a principal substância que nutre o corpo trecheiro,
assim como é também o principal vetor de sociabilidade no trecho e reafirmador dos
princípios que compõe a experiência do trecheiro. A pinga revela-se como um símbolo
poderoso e ambivalente, através do qual pode se atingir um estado de saúde e de doença. A
principal característica da pinga que torna o seu uso importante para a sobrevivência no
trecho, é a capacidade de alterar a consciência6. Quando a consciência se altera e provoca a
6
A alteração da consciência se dá porque a pinga “sobe na mente”. Pudemos perceber que a noção de mente se relaciona à
consciência, como é notável nas expressões de uma trecheira quando narrava sobre situações de perturbar e estar sendo
perturbada por alguém, como: “Eu entrei na mente dele”, “dá o ar na minha mente”.
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sensação de ficar na brisa, a pinga pode promover descontração e união entre os trecheiros. A
conotação negativa causada pelo álcool é manifesta pelos efeitos considerados negativos tais
como descontrole das ações e a perda das capacidades individuais. Ainda outra função
importante da pinga – e que faz com que esteja constantemente presente no cotidiano do
grupo – é expressa em sua competência em “produzir” saúde e influenciar na dinâmica da
sociabilidade.
O ficar na brisa, a emergência do estado de alerta (ficar esperto), a euforia e animação são
efeitos produzidos pelo álcool que produzem a saúde do trecheiro, isto porque estas são
condições primordiais para a vivência na rua e para a realização das correrias. Todos estes
fatores são possíveis graças ao uso contínuo e consciente da bebida. Não obstante, o mesmo
vetor “produtor de saúde” pode transfigurar-se em doença, em fenômeno desajustador da
realidade do grupo. Embora o uso da pinga seja constante e cotidiano, o consumo
descontrolado pode ter como conseqüência a inatividade e a dependência de outrem. Uma
trecheira nos fala que “a gente que tem que beber a pinga e não a pinga beber a gente”,
porque o consumo excessivo faz com que a pessoa pare de comer, enfraqueça e se perca na
pinga.
Diferentemente, quando se está doente por qualquer outro motivo que não a bebida, casos
como gripes, infecções e inflamações, são tomadas algumas medidas quase sempre
envolvendo a regulação do uso da pinga, e neste caso os procedimentos terapêuticos são
acompanhados por toda a banca. Na maioria das vezes em que um dos membros está
passando por procedimentos terapêuticos, o grupo parece agir de maneira a impedir que faça
uso de pinga, sendo que a suspensão desta contribui (juntamente com a utilização de remédios
em alguns casos) para a própria experiência da cura. A abstinência da pinga é fundamental
para a cura do sujeito uma vez que a miscigenação desta com algum tipo de remédio vêm a se
tornar tóxica para o organismo7.
Tendo em vista a experiência do ser trecheiro sob a ótica da nutrição do corpo fica evidente
como o corpo é algo em constante construção, nos quais alguns elementos nos mostram de
forma enfática a continuidade da construção do corpo, sejam nos mecanismos de busca de
alimentos e remédios, os procedimentos de cura dos sujeitos e o uso continuado da pinga “produtora” de saúde e de doença. A correria se constitui como o principal meio de
sobrevivência e aquisição de bens materiais, e ainda assim o principal elemento para se
compartilhar dos valores da banca e se incluir nela. Ao mesmo tempo em que tal mecanismo
reforça os laços de solidariedade da banca e propõe uma maneira de se viver na rua, também
torna evidente que para a constituição destes elementos é preciso cotidianamente exercer tais
práticas.
4. Marcas no corpo
As marcas são símbolos que visivelmente comunicam situações de violência e precariedade,
assim como o corpo se torna algo completamente vulnerável na situação da rua. Mas para
além de pensar o corpo somente como um resultante de disputa de poder e de processos de
exclusão, ele também é portador de expressões culturais, que diariamente reconstrói a própria
percepção de ser trecheiro.
7 É importante destacar que esta concepção trecheira (de que a mistura de remédio e bebida é necessariamente tóxica)
diferencia-se daquela compartilhada pelos grupos altamente medicalizados, na qual o uso do álcool elimina os efeitos do
remédio, idéia esta pautada em categorizações bioquímicas.
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Um poderoso símbolo de classificação e diferenciação da população de rua é a sujeira. A
higienização do corpo no cotidiano do trecheiro é feita de maneiras criativas. Os banhos são
tomados no Albergue Noturno e em banheiros públicos, sendo que existem organizações
sociais que oferecem produtos de higiene à população de rua da cidade. Os cheiros marcam o
processo de despojamento corporal que caracteriza a dinâmica da rua. A fabricação do corpo
sujo ocorre de forma gradual, conforme a adesão da socialização na rua, às degradações do
clima, ao uso contínuo do álcool – fatores próprios da movimentação pelas ruas. Os cheiros é
a marca corporal que mais demonstra a degradação do corpo da população de rua. Os
mecanismos de falta de higienização do corpo estão marcados no corpo e constituem
fundamentalmente o estigma deste segmento.
Além dos cheiros causados pela falta de assepsia, o cheiro causado pelo consumo do álcool é
um grande diferencial que marca este segmento social. O cheiro forte da pinga não transgride
somente as normas de assepsia do corpo, mas “ficar na brisa” ou alterar a consciência fere um
conjunto simbólico que confere o padrão normativo do corpo no contexto urbano.
Neste sentido, podemos pensar a sujeira não só na assepsia do corpo e roupas, mas como
alguns elementos e hábitos trecheiros estão correlacionados com um sistema cultural
hegemônico. A sujeira só é considerada como tal se inserida num sistema simbólico de
pureza. Mary Douglas comenta: “Sujeira, então, não é nunca um acontecimento único e
isolado. Onde há sujeira há sistema. Sujeira é o subproduto de uma ordenação e classificação
sistemática de coisas, na medida em que a ordem implique rejeitar elementos inapropriados.
Esta idéia de sujeira leva-nos diretamente ao campo do simbolismo e promete uma ligação
com sistemas mais obviamente simbólicos de pureza” (DOUGLAS, 1976, p.50) A marca da
sujeira no trecheiro está em forte oposição às demais normas de higiene, e por conta disso, os
signos da sujeira reafirmam o modo de vida do trecheiro, assim como opera como um
identificador da experiência da rua.
As tatuagens e cicatrizes são marcas constantes no corpo destes sujeitos, tais insígnias
corpóreas são um distintivo que caracteriza o corpo trecheiro, e também está vinculada a
construção e atualização da memória. É possível dizer que a reconstrução e atualização da
memória no trecheiro se tornam corporalizadas através das cicatrizes e tatuagens, uma vez
que o corpo é suporte de signos e comunica e apresenta visivelmente histórias dos sujeitos. As
marcas adquiridas na rua, também se tornam memória para o trecheiro e operam como um
reafirmador da situação de rua, da vulnerabilidade do corpo e da construção do trecheiro.
As cicatrizes também possuem um potencial simbólico que faz a ponte com o passado.
Geralmente, são marcas de ferimentos mal curados, tiros, facadas, espancamentos. Estas
marcas estão fortemente associadas à violência que os sujeitos sofreram na família, na Febem
(Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), nas penitenciárias e na rua. Uma trecheira nos
conta sobre a cicatriz de uma facada na barriga, enquanto estava na rua. Um outro trecheiro
também nos conta sobre as marcas na pele que adquiriu quando contraiu sarna no albergue.
No entanto, como caráter de toda lembrança, a memória pode se tornar um fardo8 quando
correlacionada a experiências ruins e um afeto quando uma lembrança é afetiva e boa.
Um elemento de primordial importância para o trecheiro é o galo, que diz respeito a qualquer
tipo de sacola, mala ou mochila que sirva como espécie de relicário para os bens pessoais de
cada trecheiro. São guardados no galo roupas, fotos, bilhetes, cartas e etc. Vale lembrar que,
8 Termo utilizado pelos trecheiros para denominar as lembranças ruins.
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de uma forma quase que unânime, somente os documentos não devem ser guardados no galo 9,
uma vez que esses deveriam estar sempre junto do próprio corpo. Sobre a importância do galo
como meio de guardar e transportar seus únicos bens pessoais, uma trecheira explica que a
origem do termo galo provém de galo de briga, expressão inerentemente ambígua que
explicita a relação de dualidade que há entre objeto e portador, tanto no que tange à dicotomia
interno (corporalidade) versus externo (bens pessoais), como também na dicotomia da
significação da memória. No que se refere à primeira dicotomia (interno x externo) temos que
o galo pode tanto significar um conjunto de bens sobre posse do trecheiro como a própria
extensão do corpo deste. Nesse sentido, ele representa algo como uma memória corporalizada.
No entanto, a relevância dos bens pessoais para expressar o passado, torna a memória
“materializada” nos objetos. Assim como as cicatrizes e tatuagens, e se referindo a segunda
dicotomia, a memória tanto pode se manifestar como uma lembrança afetiva boa quanto um
fardo da lembrança de experiências ruins, posto que “se o galo tá pesado vira um fardo”.
O galo é uma marca distintiva na população de rua que caracteriza fortemente o estilo de vida
no trecho. Além da funcionalidade prática do galo, já que dada as dificuldades de
armazenamento e transporte dos pertences e a precariedade de sua posse, a impossibilidade de
se carregar excedentes denotam o estilo de vida do trecheiro que pinga pelos trechos.
Além da possibilidade de se estabelecer elos com o passado, as marcas corporalizadas
também possuem o potencial de singularização e individualização dos sujeitos, já que
expressam a biografia de cada trecheiro. Toda experiência pessoal é transmitida através das
cicatrizes, tatuagens e os pertences no galo, tão particular de cada sujeito. O galo está a todo
tempo junto ao corpo do trecheiro, e só se confia a guarda do galo para alguém de muita
confiança, e ainda assim mexer no galo dos outros é quebrar com o respeito. Portanto, é
possível dizer que estas marcas corporalizadas constituem a individualidade de cada sujeito.
Mas a mesma potência de singularização e de corporalização da memória que o galo possui,
ele também pode ser uma metáfora da própria vida do trecheiro. Certa vez, uma trecheira
apontou para o galo de outro trecheiro em cima da árvore e disse: "Ele jogou tudo para o
alto!" Ao mesmo tempo em que expressa a singularização dos trecheiros, as marcas
corporalizadas também expressam a produção da pessoa social, uma vez que cicatrizes,
tatuagens e galo são elementos explicativos da experiência na rua, assim como constituiu
impreterivelmente o corpo trecheiro.
A relevância do corpo para se entender a experiência e a constituição do trecheiro é revelada
através das marcas que são corporalizadas. O corpo é o suporte das experiências no qual os
sujeitos se reconhecem como sujeitos singularizados e como pessoas, tal como fica claro nas
insígnias corpóreas que operam como possibilidades de construir, reconstruir e atualizar a
memória na esfera do corpo.
5. Considerações Finais
O universo da rua é de grande abrangência sociológica e tendo em vista seus diversos agentes
sociais que fazem dela palco das relações sociais cotidianas, o trecheiro representa um destes
9
A valorização dos documentos é dada pela funcionalidade prática cotidiana como o cadastro para utilização do albergue,
viagens e até mesmo em fiscalizações policiais. Além disso, o fato de se constituírem como um grupo estigmatizado reafirma
o valor dos documentos, já que possuir uma identificação formalizada e burocrática é uma das únicas maneiras, para eles, de
se exercer uma cidadania efetiva: “sem documento a gente não é nada”.
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sujeitos. Tendo em vista a dinâmica de movimentação, sendo o princípio que estrutura as
relações sociais dos agentes, assim como este princípio é igualmente estruturante da
concepção de vida para os trecheiros, o corpo é a unidade primordial de suporte e significação
do nomadismo urbano. Claudia Magni sugere que convivem no meio urbano certos
segmentos sociais nômades, identificados pela não-fixação domiciliar que caracteriza o modo
de vida da maior parte dos habitantes de rua, promove uma imensa mobilidade espacial e,
portanto, existencial, que faz deste segmento um dos representantes nômades da cidade.
(MAGNI,2006, P.11)
A vida no trecho é igualmente vivida de contradições e negações aos valores de normalidade
estabelecidos pela moral institucionalizada pelo Estado. Assim, o corpo trecheiro comunica
esta experiência numa negação primeira da noção de moradia. Estar na rua impede a criação
de uma relação estável e de propriedade, bem como a utilização dos espaços públicos se torna
uma afronta às domesticações dos espaços citadinos. “Desta maneira nômade de experienciar
as cidades, os habitantes das ruas constróem a sua visão de mundo, em que nada, ou quase
nada, é estável ou contido. Seu espaço doméstico se constrói no aberto, no provisório, no
território que “dominam”, mas não possuem, e do qual podem ser expulsos a qualquer hora ou
então podem querer abandonar por interesses próprios; o nômade é o “vetor de
desterritorialização” (op.cit, p.99)
Assim como o habitar a rua é causa de contradição, seja pela invasão dos espaços públicos ou
a apropriação do lócus da impessoalidade ou da subversão, a experiência do trecheiro também
comunica o processo de estigmatização que vivenciam cotidianamente. A situação de rua é
expressa numa pobreza sem lar, desabrigada, é sinônimo de desapego e de vida humilde, mas
que nas sociedades contemporâneas tornou-se um mal que atenta contra a ordem social e
moral. O nomadismo urbano concebido em seu movimento contínuo possui suas raízes na
pobreza, assim como notamos que grande parte dos trecheiros provém de classes populares,
são vítimas do desemprego e sobrevivem com o mínimo material. Mas, quando se trata de
modos de vida diferenciado, a movimentação dos trecheiros é englobada pelo sistema
simbólico normativo dos contextos urbanos e produzem abismos marginais estanques.
É neste sentido que os trecheiros comunicam a particularidade deste modo de vida em
movimento e a renegação de valores morais hegemônicos através de códigos comuns da rua,
expressos nos valores morais do grupo pesquisado e na formação de identidades exógenas a
este grupo em contraste com a representação do “morador de rua”. Além disso, as
representações simbólicas singulares a eles são fortemente apresentadas e constantemente
formuladas no corpo trecheiro, através das marcas de sujeira, da memória corporalizada nas
tatuagens, cicatrizes e no galo, bem como a formação diária deste corpo através do consumo
da pinga e das correrias. Todos estes elementos compõem a lógica da movimentação que
caracteriza a vida trecheira, que faz da cidade sua caminhada diária, dos fluxos urbanos seus
pontos de chegadas e partidas.
Referências
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1987.
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Mônica Siqueira Leite de Barros (Trad.). São Paulo: Perspectiva, 1976.
FRANGELLA, S. M. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em
São Paulo. Tese de doutorado, Departamento de Antropologia -IFCH-UNICAMP, Campinas, 2004.
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MAGNI, Claudia Turra. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de rua de Porto Alegre, Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.
NASCIMENTO, Eurípides Costa do. JUSTO, José Sterta. Vidas errantes e alcoolismo: uma questão social. In:
Revista Reflexão crítica, V. 13, nº 3, Porto Alegre, 2000.
ROSA, C. M. M. Vidas de rua, destino de muitos. São Paulo, CD-ROM. apoio: Instituto de Estudos Especiais
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - IEE-PUC-SP, 1999.
SEEGER, Anthony. MATTA, Roberto. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Construção da pessoa na
sociedade xinguana. In:OLIVEIRA FILHO (org). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1987
STOFFLES, M. G. Os Mendigos na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1977.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A fabricação do corpo na sociedade xingüana. Boletim do Museu
Nacional, nº 32, junho, 1979.
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O processo de organização política da população em situação de rua na
cidade de São Paulo: limites e possibilidades da participação social1
Rosemeire Barboza Silva
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
[email protected]
Nosso objetivo é aprofundar o debate sobre os limites e possibilidades da participação social do
coletivo de pessoas em situação de rua.
No presente texto buscaremos, por meio de um panorama teórico demonstrar como a concepção
forjada academicamente sobre a população em situação de rua acaba tendo tanto seus reflexos no
cotidiano dessa população como também originando processos que questionam a eficácia de tais
conceituações.
O estudo em questão busca compreender as articulações entre academia, população de rua e
Igreja desde a década de 70 no Brasil para em seguida discutir a emergente organização coletiva da
população de rua que se apresenta no cenário público brasileiro como uma possibilidade
emancipatória.
O artigo finaliza com uma reflexão sobre as possibilidades e impossibilidades do conhecimento
científico nesse contexto e uma sugestão de agenda que fortaleça a colaboração entre a ciência e seus
informantes.
Palavras-chaves: População em Situação de Rua; Participação Social; Organização Coletiva.
1. O pano de fundo:
Retrato dramático e chocante, a população em situação de rua no Brasil, os homeless nos países
de língua inglesa, os sans domicile fixe (SDF) na França, os vadios em Portugal são hoje expressões
contundentes dos paradoxos da sociedade.
Em um mundo globalizado, onde a ordem política é o neoliberalismo vemos crescer de modo
sem paralelo, o número de pessoas, que sem um emprego fixo entra em um círculo vicioso de
vulnerabilidade social. Vulnerabilidade essa que é caracterizada pela prestação de serviços informais e
dependência dos serviços de assistência promovidos pelo Estado ou então por entidades filantrópicas,
ONG’s etc. As conseqüências desse círculo são fáceis de notar: baixa auto-estima, dificuldade cada vez
maior de inserção no mercado de trabalho formal, ruptura ou perda de vínculos com familiares e
amigos, dependência do álcool e drogas e o estigma de uma identidade negativamente reposta.
Relacionar população de rua com cenário político e questões econômicas e conjunturais é
premente nesse contexto e direciona nossas reflexões justamente no sentido de compreender como esses
matizes se entrecruzam, não só criando, mas também mantendo e ampliando esse fenômeno. Outra
questão que também nos vem a mente é compreender quem é e quem vive nas ruas 2 . Muitos estudiosos
1
Este trabalho é dedicado sobretudo à Cleisa Moreno Maffei Rosa, Alderon Costa, Sebastião Nicomedes, Anderson Lopes,
Paulo Ivan Fonseca e aos demais amigos e amigas do Movimento Nacional da População de Rua e do Fórum de Debates
sobre a População de Rua da cidade de São Paulo, incansáveis lutador@s por um mundo mais justo e que reforçam, cada
um a sua maneira, a minha esperança em utopias possíveis.
2
Neste artigo será usada a expressão população em situação de rua ou população de rua dentro desta concepção de
processo. A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de se constituir num abrigo para os que, sem recurso, dormem
circunstancialmente sob marquises de lojas, viadutos ou bancos de jardim ou pode constituir-se em um modo de vida para
os que já têm na rua o seu habitat e que estabelecem com ela uma complexa rede de relações. “Seria possível identificar
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já se debruçaram sobre essa problemática (STOFFELS, 1977; VIEIRA, 1992; ROSA, 1999 et al), o que
resultou em uma grande produção teórica sobre o tema.
De um lado e de forma preconceituosa, essa população é considerada pela sociedade como
mendigos e com pouca capacidade de se organizar; estão à mercê de organizações socioassistenciais
que desenvolvem no seu dia-a-dia atividades que reiteram a submissão, o preconceito, e reproduzem a
repressão, a humilhação e o desrespeito. Por outro lado, observam-se na atualidade, iniciativas de
mobilização e presença significativa de pessoas em situação de rua em inúmeras formas de participação
na sociedade na busca incessante da conquista de direitos quase sempre negados 3 .
A questão do morar na rua em São Paulo não é recente (STOFFELS, 1977). Este artigo,
entretanto, será focado a partir da década de 1980, conhecida como “a década perdida” para os
economistas brasileiros, devido a pauperização cada vez maior da população, aumento do desemprego,
altos índices inflacionários e o endividamento crescente com o FMI (Fundo Monetário Internacional).
A população em situação de rua é encarada atualmente por meio do discurso da
heterogeneidade, pois segundo pesquisadores, ela é composta de inúmeros segmentos que podem ser
analisados a partir das categorias apontadas por Vieira (1992), como ficar na rua, estar na rua e ser da
rua, que descreve características diversas conforme sua inserção social e tempo de permanência na rua.
Essa heterogeneidade pode, também, ser observada nas inúmeras denominações utilizadas,
como: mendigo (STOFFELS, 1977), sofredor de rua e povo de rua (SILVA, 1988), população de rua
(VIEIRA, 1992; ROSA, 1999; BARROS, 2004). Conforme ROSA “(...) Nas três últimas décadas
observa-se uma variada nomenclatura em relação à população que vive nas ruas (...) carregada de
significados, que, por sua vez, expressa, não apenas as representações que a sociedade tem sobre ela,
mas também a articulação com determinadas conjunturas sociais, econômicas e político-institucionais.
(...). Verifica-se uma tendência de buscar um denominador comum, uma expressão que abarque a
heterogeneidade de situações de rua, tanto no sentido generalizante, de desqualificar a população que
mora e sobrevive nas ruas e em albergues – mendigos – como uma outra expressão que funcione como
contraponto e que atenue preconceitos ou explicite posições – povo de rua”.(ROSA, 1999:18)
De um lado, os números mostram a relevância e a emergência social de se compreender essa
questão, de outro lado, os estudos (STOFFELS, 1977; SILVA, 1988; GOHN, 2003 et al) mostram a
necessidade de se compreender formas organizativas dessa população, sempre tratada de maneira
individualizada e dependente da rede assistencial (NEVES, 1995).
Como, a partir de uma situação de extremo desamparo e fragilidade, ela consegue se unir, e
principalmente a partir do novo século consegue protagonizar em momentos dramáticos 4 uma
situações diferentes em relação à permanência na rua: ficar na rua − circunstancialmente; estar na rua − recentemente; e
ser da rua − permanentemente. (...) Essas situações podem ser dispostas num continuum, tendo como referência o tempo
de rua; à proporção que aumenta o tempo de rua, torna-se estável a condição de morador. O que diferencia essas
situações é o grau maior ou menor de inserção no mundo da rua” (VIEIRA, 1992: 93-94).
3
Na cidade de São Paulo, segundo o último recenseamento realizado em outubro de 2003, há aproximadamente 10.000
pessoas, isto é, (...) “indivíduos que não têm moradia e que pernoitam nos logradouros da cidade – praças, calçadas,
marquises, jardins, baixos de viaduto – ou em casarões abandonados, mocós, cemitérios, carcaças de veículos, terrenos
baldios ou depósitos de papelão e sucata. (...) aquelas pessoas, ou famílias, que, também sem moradia, pernoitam em
albergues ou abrigos, sejam eles mantidos pelo poder público ou privado” (FIPE/SAS, 2003: 7); verifica-se crescimento
progressivo nos últimos 14 anos, época em que estudos quantitativos foram iniciados.
4
Em Agosto de 2004, São Paulo presenciou com horror a chacina de 7 moradores de rua, espancados até a morte. Os
crimes impactantes, por sua natureza violenta, permanecem sem solução até hoje, Maio de 2005. Os delitos tiveram ampla
cobertura da mídia nacional e até mesmo internacional (Jornal O Clarín, The New York Times, Le Monde e no El Pais com
a manchete mais impactante: “Mais rica e excludente cidade do Brasil mata moradores de rua”) e publicizaram de forma
até então nunca vista, o drama do morar na rua, não só do ponto de vista da grande imprensa, mas pela primeira vez houve
um movimento de tentar divulgar quem eram as pessoas que estavam nas ruas, a partir do olhar dessas mesmas pessoas. A
maior emissora de TV do país, em número de espectadores, dedicou um programa em horário nobre, para desmistificar
quem está nas ruas: desempregados da construção civil, químicos com curso superior completo, designers talentosos e
idosos sem vínculos com a família. A meu ver, essa reviravolta traz em seu bojo, a concepção, já apontada pela academia
(ROSA, 1999) que quem está na rua é o trabalhador, pessoas com habilidades em idade produtiva e qualificadas, que foram
expurgadas do sistema por questões muito mais econômicas e conjunturais do quê por questões pessoais.
Como veremos a seguir, esse evento sem precedentes também agiu de forma contundente na futura organização política da
população de rua.
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identidade coletiva? Responder a esta questão central não é trabalho fácil dada a complexidade de seus
aspectos constitutivos e que apontam igualmente outras indagações também complexas. Contudo, para
que se esclareça os objetivos desse artigo, faz-se necessário descrever o pano de fundo histórico, as
mudanças operadas no Brasil a partir da década de 70, tanto no contexto organizativo da população de
rua, como no contexto dos movimentos sociais.
O primeiro trabalho voltado para a população de rua foi escrito, na década de 70 por MarieGhislaine Stoffels, intitulado “Os mendigos na cidade de São Paulo” como resultado da tese de
doutorado da autora. Nesse livro, Stoffels coloca como principal objetivo: “[expor] a complexidade e
especificidade das atividades e ideologias características da mendicância” (STOFFELS, 1977, p.13).
Para nós é importante assinalar que nesse trabalho, pela primeira vez, a academia voltou-se para
a questão organizativa da população de rua, ou dos mendigos, como descreveu a autora. Stoffels (1977)
relacionou a categoria dos mendigos à de lumpemproletariado 5 e baseando-se nas idéias de Marx,
defendeu a idéia de que os mendigos são uma categoria a-política: “Essa camada caracteriza-se, além
da periculosidade, pela irregularidade de remuneração, o caráter a-revolucionário – ausência de
projeto autônomo de transformação social – e uma forte apatia” (STOFFELS, 1977: 248).
É possível ainda apontar no estudo de Marie-Ghislaine Stoffels, o que a autora chama de “grupo
carente de uma organização voltada para a reivindicação e o protesto” (Idem, 1977: 249), os que
sobrevivem da mendicância, para ela estão fadados a uma não-organização, contudo, alguns
questionamentos levantados pela autora, continuam instigantes: “a partir da estruturação existente e do
tipo de protesto que a acompanha, até que ponto de organização os mendigos poderiam chegar, e quais
os fatores que os diferenciam desse ponto?” (Ibidem, 1977: 249). Os itens seguintes apresentados no
livro são uma tentativa de responder a esses questionamentos. Para a autora, alguns fatores intervêem na
organização de um movimento autônomo por parte dessa população, esses fatores estariam ligados à
condição histórica da camada (pois a prática de mendicância não passa pela organização política) e a
posição individual a respeito do próprio destino, que segundo Stoffels, inviabiliza o agrupamento e a
transformação numa coletividade. Para ela, uma das questões capitais que se colocam como impeditivo
dessa organização coletiva é “a possível recusa de auto-identificação através do semelhante” (Ibidem,
1977: 256).
Percebemos, portanto, que a idéia de que a população de rua é historicamente compreendida
como de difícil mobilização é reiterada no discurso acadêmico como também nas práticas caritativas e
assistenciais da Igreja.
Assim a população de rua foi tornando-se aos olhos da sociedade aqueles que sobreviviam da
caridade alheia. Estavam ali, delatavam as ambigüidades da organização social, mas eram
compreendidos como apáticos e sem capacidade de luta, sem possibilidades de reivindicação. De um
lado tinham a caridade da Igreja e de outros serviços sócio-assistenciais 6 que por meio de sua prática
referendavam a dependência e de outro lado, a academia que mesmo voltando-se ao estudo dessa
população era agora responsável por forjar uma identidade a-política, apontando a questão da falta de
uma identidade coletiva, no entanto, sem buscar compreender porque isso não era possível naquele
momento.
Aqui poderíamos pensar na proposta formulada por Santos (2004), as práticas assistenciais da
Igreja e os acadêmicos, dessa época, são responsáveis por produzirem uma não-existência: “Há
produção de não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível,
ininteligível ou descartável de um modo irreversível”. (SANTOS, 2004: 787). Negando a possibilidade
de organização dessa população, estão mais uma vez legitimando a supremacia do conhecimento
5
Para Marx, a idéia de lumpemproletariado está ligada às suas categorias de superpopulação relativa: “o último resíduo”
que “mora no inferno do pauperismo” (MARX apud STOFFELS, 1977: 248).
6
Refletir sobre a criação e manutenção dos serviços assistenciais corrobora com a hipótese de que as políticas públicas são
em sua maioria produtores de uma não-existência (SANTOS, 2004). Dessa forma, os programas para essa população
deveriam ser pautados em seus direitos como homens e não apenas na satisfação das necessidades básicas, como comer e
dormir: “Assim é preciso interrogar a montagem dos programas de atendimento à população de rua, seu papel e seus
conteúdos para além da defesa da vida, como produto de reivindicação ancorada no direito natural e na comunidade,
como antídoto para a exceção capitalista que, não só não conseguiu ser absorvida, mas que foi produzida por este mesmo
modo de produção” (BARROS, 2004: 42).
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científico sobre o saber popular. O conhecimento e as práticas da população não são importantes e nem
compreendidas como uma forma de resistência, mas sim como meras estratégias de sobrevivência.
O conhecimento fechado sobre si mesmo, cria para a sociedade a imagem de uma população de
maltrapilhos e caídos (NASSER, 2001), de preguiçosos e desocupados. Dessa forma a academia “fecha
as portas a muitos outros saberes sobre o mundo” (SANTOS, 1987: 53), rende-se à idéia higienista de
que a população de rua é o que, sem uma identidade coletiva não pode ser nomeada e estabelece uma
relação de superioridade e distanciamento, que vai se propagar até os dias atuais em estudos que
demonstram a perplexidade diante do fenômeno da miséria e abandono, mas que não se aproxima do
campo e dos sujeitos, ou ainda, dispensam-lhe a categoria de “objetos”: “Nestes termos, o conhecimento
ganha em rigor o que perde em riqueza (...) esconde os limites de nossa compreensão do mundo e
reprime a pergunta pelo valor humano do afã científico (...) inscrita na própria relação sujeito/objeto
que preside à ciência moderna, uma relação que interioriza o sujeito à custa da exteriorização do
objeto, tornando-os estanques e incomunicáveis” (SANTOS, 1987: 54).
Percebemos, portanto que até a concepção marxista, utilizada por Stoffels (1977), carrega a
crença de que há uma população incompetente para responder ao liberalismo.
Enquanto a academia começa a se voltar para essa população, diversos estudos dão conta que a
população de rua aumenta rapidamente a partir de 1970 (VIEIRA, 1992; ROSA, 1999). A Igreja que já
tinha uma prática social junto a essa população, desde 1955, em parceria com a OAF 7 , começa a rever
seu papel por meio das Pastorais do Povo de Rua e de outros serviços que começaram atender essa
população.
Essa postura tem impacto direto na organização da população: nos anos 80 e a Igreja, marcada
por seus trabalhos junto a movimentos sociais de base é extremamente influenciada pelos teólogos da
então conhecida Teologia da Libertação 8 , e a carta escrita em Puebla 9 também tem um papel
fundamental na revisão do caráter assistencialista dos trabalhos oferecidos.
Não podemos ignorar também o cenário político de mobilização e organização social, que não
acontece só no Brasil 10 mas em toda a América Latina (SADER, 1988). São movimentos sociais,
associações de moradores e campesinos, movimentos rurais e urbanos que reivindicam direitos e maior
participação política.
Durante os anos 80, a idéia de organização política entra na pauta da re-democratização do país,
e partidos de esquerda, chegam ao poder no final da década, em capitais importantes como Porto
Alegre, Belo Horizonte e São Paulo.
A OAF-SP que continua seu trabalho, agora revisto, voltou-se especificamente para a população
adulta em situação de rua e chegou no final dos anos 80 defendendo a idéia que seu trabalho deveria ser
muito mais denominado como “movimento da rua” (DOMINGUES JR., 2003: 45).
Contudo, apenas um trabalho faz menção, ainda que de maneira rápida a uma organização da
população de rua, na década de 80: “houve ainda o surgimento de um movimento inédito entre as
classes populares, o dos Moradores de Rua. Seus atores são uma categoria social que antes era vista
de forma individual, através da filantropia, como mendigos, e que agora assume caráter coletivo, pois
são famílias inteiras que passaram a morar debaixo das pontes, viadutos e outros espaços públicos,
devido ao empobrecimento, desemprego (...)” (GOHN, 1997: 138).
7
A OAF. (Organização de Auxílio Fraterno) foi fundada em 1955 por um grupo de religiosas e de leigos com o objetivo de
agir no centro de São Paulo: “voltada para o centro urbano, tinha como missão a busca de soluções para o problema da
pobreza nas regiões centrais” (DOMINGUES JR., 2003: 43).
8
A teologia da libertação é um movimento teológico que quer mostrar aos cristãos que a fé deve ser vivida numa práxis
libertadora e que ela pode contribuir para tornar esta práxis mais autenticamente libertadora. O termo libertação foi
cunhado a partir da realidade cultural, social, econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina, a partir das
décadas de 60/70 do último século.
9
Alusão a Carta escrita na cidade de Puebla no México. Essa carta contém os desígnios da “igreja popular” e como essa
igreja deveria se voltar aos movimentos sociais de base, e caminhar sempre ao lado do povo excluído.
10
A década de 80 é marcada no Brasil especificamente por momentos de participação popular de grande envergadura como
o movimento pelas “Diretas Já” e a queda de um governo militar, os movimentos sindicais, a criação e articulação nacional
do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) entre outros.
A Carta constituinte brasileira de 1988 também é um importante marco na história da democracia brasileira e como um
exercício de poder político, já que alguns artigos garantem a iniciativa popular como iniciadora de processos legislativos
(ver artigos 14 e 29).
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Nessa década, são escritos trabalhos importantes sobre a população como: De lixo também se
vive de Idalina Farias Costa e o livro de Marilene Cabello Di Flora, chamado: Mendigos: por que
surgem, por onde circulam, como são tratados. Embora, o trabalho de José Roberval Freire Silva: A
Igreja dos Excluídos: vida e morte do povo que mora na rua, publicado em 1988 seja, o que melhor
expõe o retrato do trabalho dessa década, estudando o papel da Igreja como articuladora, defensora e
organizadora dos movimentos sociais e conquistas da população de rua.
Após esses trabalhos, veremos, na década seguinte, que a Igreja e a Assistência Social serão os
grandes responsáveis pela produção escrita sobre o tema. Os trabalhos falam, sobretudo, da relação
entre rua e casa, assistência e “exclusão”, mas continuam estudando quem é a figura do mendigo. É
também na década de 80, que começam as primeiras críticas sobre a denominação da população de rua:
o termo “mendigos” começa a ser abandonado e será paulatinamente substituído por “povo de rua”.
A emergência dos movimentos sociais e populares na sociedade brasileira nos anos 70 e 80
possibilitou a entrada de novos atores na cena política e, por conseguinte, criou novos sujeitos coletivos
(SADER, 1988). “Esse processo de experiência demarcou um novo campo de atuação da sociedade
civil, relativo à participação dos cidadãos na vida pública (...) as ONG’s se preocupavam em fortalecer
a representatividade das organizações populares, ajudavam a própria organização a se estruturar, e
muitas delas trabalhavam numa linha de conscientização dos grupos organizados” (GOHN, 2005,
p.88-89).
Nesse contexto, a década de 90 traz uma nova configuração em vários setores, tanto na vida
política, como na vida cotidiana da população. Os reflexos das mudanças políticas no Brasil
influenciam diretamente o trabalho dos pesquisadores. O cenário político que já exigia os direitos
sociais básicos da Revolução Francesa (GOHN, 2005), começa também a exigir os direitos sociais
modernos e a palavra cidadania passa a ser incorporada aos discursos militante, político e acadêmico.
Com esse clima de inquietação, ampliação e re-democratização do país, algumas experiências
são implantadas no campo político como os Fóruns e Conselhos (GOHN, 2003).
Agora na pauta das discussões, cidadania, autonomia e emancipação são compreendidas a partir
de uma perspectiva qualitativa e antipositivista de ciência. O novo paradigma que vigora nas ciências
humanas busca a escuta, a compreensão do fenômeno in loco, o aprofundamento das questões e a
compreensão dos modos de vida da população (HAGUETTE, 2003) em detrimento da perspectiva
positivista, que não dava conta de apreender a complexidade do sujeito histórico.
São trabalhos escritos nessa perspectiva que iniciaram na década de 90, estudos exploratórios
importantes para compreendermos quem está nas ruas. Esse pano de fundo dos anos 90 fomenta uma
produção científica diversificada, trabalhos importantes como Sair para o mundo - Trabalho, família e
lazer: relação e representação na vida dos excluídos de Ana Cristina Nasser são publicados.
Nessa década, também são escritos dois importantes livros, que continuam sendo um guia
dialógico para a compreensão da população em situação de rua, não só de São Paulo, mas de outras
grandes cidades do Brasil: População de Rua, Quem é, Como vive e Como é vista, resultante de uma
parceria entre diversas entidades e o poder público e População de Rua: Brasil e Canadá, publicação
bastante heterogênea, no formato de artigos escrito após o I Seminário Nacional sobre a População de
Rua realizado em São Paulo em 1992.
A contribuição da dissertação de Cleisa M.M. Rosa Vidas de Rua, Destino de Muitos no ano de
1999 é fundamental, pois nele a autora expôs, por meio de um trabalho meticuloso de estudos de
trajetórias individuais, que quem estava nas ruas eram os trabalhadores.
É importante ressaltar que, para nosso tema: os limites e possibilidades do processo de
organização política da população de rua e a participação social, esses trabalhos são um marco
importante na compreensão da problemática da rua, não só do ponto de vista acadêmico, como político.
As autoras, por meio de um posicionamento político levam o tema da rua para a universidade e dentro
dela rompem com a idéia até então reiterada pela academia e as organizações que trabalham com a
população de rua, que essa é tradicionalmente a-política, um grupo “carente” e que necessita de
“cuidados” e atenção integral.
Na mesma década podemos citar outros trabalhos, mas é importante assinalar que a principal
força desse período é a diversidade e a sensibilização das autoridades e universidades para as questões
concernentes à população de rua. Algumas vitórias importantes marcam esse período como a Lei
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Nº12.316/97 11 , o que tem impacto também não só na produção teórica sobre a população, como
também na articulação política.
Nessa década a população irá protagonizar, mesmo que algumas vezes de forma “controlada” 12
pelas organizações, reivindicações e passeatas em ruas e avenidas, sendo que podemos assinalar que os
anos 90 são definitivamente o período gestacional dos movimentos que ecoarão a partir da década
seguinte.
Em 1989, por iniciativa da SEBES (Secretaria do Bem Estar Social) se estabelece o Fórum das
Organizações que Trabalham com a População de Rua. Esse espaço se constituiu uma parceria entre o
poder Executivo e a sociedade civil, e que segundo DOMINGUES JR (2003: 98): “fez emergir [em suas
discussões] a população de rua como pessoas de direitos”.
O trabalho conjunto de entidades que lidam com a população de rua procurou estabelecer um
espaço que rompe com a idéia de sujeitos que não se liberaram de um imaginário tutelar. Buscou ao
contrário novas formas de emancipação dessa população e a mobilização social é a saída que
encontraram.
Algumas iniciativas, como a criação por parte da Pastoral de Rua de São Paulo do Fórum da
População de Rua e o Dia de Luta da População de Rua (que teve início em maio de 1991) representam
maneiras de publicizar e dar visibilidade pública a essa população. Ambos, tanto o Fórum, como o “Dia
de Luta” representam também a necessidade da população se mobilizar em torno de reivindicações
exigindo das autoridades acesso a moradias coletivas, atendimento médico sem discriminação e
alojamento durante o inverno. E ainda, que a questão do morar na rua não é uma questão de fracasso
pessoal, mas um processo resultante de uma lógica que apesar de ter sua gênese na constituição do
sistema capitalista, apresenta-se de forma muito mais pungente a partir da globalização hegemônica
consolidada na década de 90, com o aumento dramático dos índices de desemprego.
Percebemos, portanto que juntamente com o cenário político dos anos 90, as transformações
recentes ocorridas nas relações de trabalho e nas formas de sociabilidade demonstram uma relação
explícita com o fenômeno da rua e mais implicitamente com a questão da mobilização social. Segundo
Castel (1998: 27 e 33): “há homologia de posição entre, por exemplo, os ‘inúteis do mundo’ e
diferentes categorias de ‘inempregáveis’ de hoje. (...) São supérfluos. Também é difícil ver como
poderiam representar uma força de pressão, um potencial de luta, se não atuam diretamente sobre
nenhum setor nevrálgico da vida social. Assim inauguram sem dúvida uma problemática teórica e uma
prática nova. Se, no sentido próprio do termo não são mais atores porque não fazem nada de
socialmente útil, como poderiam existir socialmente? No sentido, é claro, de que existir socialmente
equivaleria a ter, efetivamente, um lugar na sociedade. Porque, ao mesmo tempo, eles são bem
presentes – e isso é o problema, pois são numerosos demais”.
Curioso, é que Castel (1998) irá apontar de forma diferente, duas décadas depois a mesma
questão apresentada por Stoffels (1977): a população de rua é ainda vista como uma população sem
força de pressão, sem força política e incapaz, portanto de protagonizar a criação de um movimento
social reivindicatório de direitos.
Entretanto, a partir dos anos 2000, percebemos movimentos que questionam, por sua natureza
eminentemente política o que foi produzido até então sobre a impossibilidade de organização dessa
11
Lei de Atenção à População em Situação de Rua, que “cria política de atenção à população de rua”. Essa lei é resultado
de uma intensa disputa entre o Fórum de Entidades e Fórum da População de Rua, ao longo dos anos 90 como parte da
reivindicação por direitos da população de rua. Contudo, alguns autores (BARROS, 2004) levantam questões importantes
sobre essa lei, que na verdade será regulamentada apenas em 2001 pelo decreto 40.232. Essas questões dizem respeito à
não-nomeação da população a quem a lei e o decreto se referem. No texto podemos ler apenas: “população em estado de
abandono e marginalidade na sociedade”. “Tal fato pode parecer não ter grande importância para o desenvolvimento do
programa, mas demonstra a incapacidade de nomear publicamente, através de um instrumento jurídico, quem são os
‘objetos’ de uma lei como esta. O ato de nomeação dos destinatários e sujeitos de direitos desta ‘política’ constitui mais
do que uma descrição, poderia constituir-se numa nova maneira de nomear a pobreza urbana e sua origem na
desigualdade constitutiva do capitalismo”(BARROS, 2004: 50).
12
Esse não é o objetivo principal, do artigo, contudo para se compreender as relações estabelecidas entre entidades, poder
público e população de rua a que se refletir necessariamente sobre questões de dominação, controle social e
disciplinarização, além do espírito tutelar dos trabalhos, que embora digam buscar a autonomia da população,
ambiguamente decidem por eles, retirando a possibilidade emancipatória de tais decisões, perpetuando assim um ciclo de
subordinação e opressão.
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população: os catadores de materiais recicláveis (parte dessa população) sugerem para as entidades que
trabalham com a população adulta em situação de rua e organizam um encontro nacional, no mês de
junho de 2001 13 ; dois acampamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)
iniciam uma experiência conhecida como “rururbano” e promovem o que é conhecido em São Paulo
como o programa: “Da rua para a terra”, onde a população de rua é o foco principal. Também em São
Paulo, a experiência dos Conselhos e dos Fóruns, a eleição de delegados, representantes da população
de rua, para o programa de Orçamento Participativo na capital paulista entre outros dão notícias de uma
organização que se consolida cada vez mais em iniciativas contra-hegemônicas e emancipatórias, numa
luta contra a opressão, o preconceito e a discriminação.
Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que desenvolve seu trabalho por meio de uma
teoria crítica influenciada pelos recentes desdobramentos da teoria dos estudos culturais pós-coloniais,
tal dinâmica emancipatória é possível, pois segundo ele: “diferentes formas de opressão ou de
dominação geram formas de resistência, de mobilização, de subjetividade e de identidade coletivas
também distintas (...) Nessas resistências e em suas articulações locais/globais reside o impulso da
globalização contra-hegemônica”. (SANTOS, 2003: 61).
Duas dessas iniciativas se relacionam diretamente aos objetivos deste artigo. O primeiro é a
criação em setembro de 2003, de um Fórum de Estudantes Universitários sobre a População em
Situação de Rua (que em 2004 iria se tornar: o Fórum de Debates sobre a População em Situação de
Rua da cidade de São Paulo) e o segundo, a retomada e ampliação nos anos 2004 do Fórum da
População de Rua, que mais tarde em 2005 irá originar o Movimento da População em Situação de Rua
da cidade de São Paulo, empreendido pela própria população.
Um fórum de estudos não era uma proposta nova (já havia sido criado em 1993 um fórum
intitulado Fórum de Estudos sobre a População de Rua, contudo esse era um fórum fechado onde só
participavam alguns profissionais). A originalidade desse novo Fórum residiu não nos estudos, mas no
fato de ser um espaço aberto: estudiosos, professores, profissionais e população em situação de rua se
encontram quinzenalmente para discutirem e debaterem questões ligadas às ruas. Temas como
estratégias de lutas, metodologia e formação no MST, conjuntura político-institucional da cidade,
direitos dos cidadãos e o papel dos conselhos são debatidos por técnicos e usuários dos serviços. As
reuniões ocorrem em um espaço cedido e o Fórum apesar de uma iniciativa da sociedade civil, não tem
nenhum vínculo institucional, a não ser, alguns apoiadores que cedem o espaço para a realização das
reuniões como é o caso do Centro de Formação do MST e a rede de comunicação Rede Rua, que cede
um espaço num jornal voltado a essa população para a divulgação das atividades do Fórum.
Esse diferencial que reside justamente no fato de aproximar o lado de lá (a população de rua) do
lado de cá (estudiosos, estudantes, profissionais etc.), tem demonstrado que a formação e acesso ao
conhecimento se configuram ainda como uma dos maiores potenciais revolucionários. As reuniões, de
acordo com a avaliação dos participantes têm fomentado discussões cada vez mais conscientes e menos
ideologizadas, favorecendo a percepção da população de um estar e fazer no mundo. Detentora de um
papel político, passível de mobilização autônoma e participação social.
Dessa forma, percebemos o fórum como um espaço provocador que ampliando o conhecimento
científico, busca torná-lo senso comum (SANTOS, 1987), levando-o até os sujeitos acerca dos quais
esse conhecimento foi feito. Esses sujeitos por sua vez, num espaço de igualdade de posições
questionam a verdade científica, refletem sobre ela e se apropriam dela para mais tarde também
construírem possibilidades dentro da “impossibilidade” que lhes fora outorgada anteriormente.
Estão realizando em seu cotidiano a “experiência de reconhecimento” de que fala Santos (2004),
e procedendo a uma lógica inversa da não-existência e da classificação social, pois se essa reside no
13
Passados 4 anos do 1º encontro nacional ocorrido em Brasília, os catadores organizados já tiveram vitórias significativas
em seu percurso, como o reconhecimento da ocupação de catador e inclusão no C.B.O. (Cadastro Brasileiro de
Ocupações), a organização e realização de dois congressos latino-americanos, entre outros e mais recentemente no governo
Lula, a criação de um comitê interministerial para atenção e qualificação dos catadores filiados ao M.N.C.R. (Movimento
Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis).
É emblemático observar que os catadores relacionam superação de preconceitos e desafios a organização quando se
referem ao 1º encontro nacional dos catadores: “O encontro marcou a superação dos velhos preconceitos em torno do
catador que, além do respeito por parte da sociedade, está conquistando força política e social”. (Catadores de Vida,
publicação do M.N.C.R. e Fórum Nacional de Estudos sobre a População em Situação de Rua – Edição 1/2002)
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fato de se naturalizar hierarquias, numa lógica assentada sobre o fato da naturalização das diferenças, o
Fórum de Debates busca desconstruir essas verdades com a participação efetiva da população na
construção do conhecimento.
Em consonância com a proposta de uma “sociologia das emergências” proposta por Santos que:
“consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a
identificar neles as tendências de futuro” (SANTOS, 2004: 796). O conhecimento sobre a população é
legitimado pela própria população e transformado por ela. Profissionais, estudiosos, estudantes e
população de rua, vivenciam assim um ciclo contínuo de formação e reflexão política de suas práticas e
produções científicas, disseminando conhecimento “com” a população de rua, com o objetivo não só de
compreender, mas de criar possibilidades efetivas de saídas das ruas.
A outra iniciativa, contudo, resume em si, o próprio percurso de quem está nas ruas: o Fórum da
População de Rua criado nos anos 90 também sofreu o desmantelamento e os efeitos do desmonte das
políticas sociais pelas políticas neoliberais levadas a cabo nessa década. A fragmentação da sociedade e
a globalização (GOHN, 2005) são importantes sinais do enfraquecimento do Fórum e também da
paulatina não-mobilização da população.
No ano de 2004, meses antes do Dia de Luta da população, alguns ex e atuais participantes do
Fórum, que também freqüentam as reuniões do Fórum de Debates, articularam-se e reivindicaram a
organização autônoma desse dia. As entidades, até então responsáveis pela formatação das
reivindicações mostraram resistência e em 2004, o Dia de Luta demonstrou na quase não participação
da população em situação de rua, que ocorreu uma fissura na relação assistência/população e que a
autonomia e o protagonismo por parte dessa população é uma questão emergencial.
O tom das reivindicações também divergiu: enquanto as entidades lutavam por programas de
moradias provisórias, a população lutou por moradia própria; enquanto as entidades lutavam por mais
vagas em albergues, a população lutou por acesso à educação. E o descompasso segue, agora não só nos
discursos reivindicatórios, mas também cresceu o questionamento e a cobrança por melhores serviços
prestados pelas entidades, transparência na prestação de contas e os mecanismos de governança de que
lançavam mão o poder público, imbuído da lógica do controle social, para manter essa população à
margem.
Ainda em 2004, uma chacina perpetrada contra a população que dormia nas ruas, com grande
repercussão internacional mobilizou mais de 2000 pessoas numa passeata no centro de São Paulo. Os
assassinatos, não só chocaram a sociedade, como também pareceram ter sido um dos pontos cruciais
para a organização posterior da população de rua. O discurso da heterogeneidade da rua, que sempre
esteve entre a questão da igualdade e da diferença: quem é a população de rua? Quem é o
desempregado? É aprofundada e a população busca mudar a natureza de suas reivindicações: políticas
públicas sim, mas qual o teor dessas políticas? Como elas são organizadas? Eles exigem
reconhecimento social e começam a penetrar espaços hegemônicos como o poder público. São eleitos
representantes da população para um conselho, que o governo municipal da cidade de São Paulo dá o
nome de “Conselho de Monitoramento dos Serviços que atuam com a População em Situação de Rua”.
Essas vitórias, e essas possibilidades de perfurar o sistema hegemônico agem, a nosso ver,
positivamente na organização da população que de forma criativa e autônoma, comemorou em
dezembro de 2004, em plena Praça da Sé (conhecida como palco de várias mobilizações populares em
São Paulo) um Natal com shows, música, teatro, venda de artesanatos entre outras atividades. A
tradicional distribuição de alimentos e donativos foram substituídos pelo microfone aberto que delatou
impiedosamente a realidade das ruas, a ineficiência das políticas públicas e as contradições do sistema
econômico.
Inaugurando o ano de 2005, mais uma vez a população se uniu em torno de problemáticas
comuns, a heterogeneidade, que em alguns momentos serviu para reforçar uma identidade negativa, um
não querer identificar-se, é respeitada, mas é questionada: até que ponto somos desiguais? Até que
ponto somos diferentes?
Se, de um lado, a afirmação da igualdade, com pressupostos universalistas pode reforçar e
conduzir “à descaracterização e negação das identidades, das culturas e das experiências históricas
diferenciadas, especialmente à recusa do reconhecimento coletivo”. (SANTOS, 2003: 63). Por outro
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lado, o movimento da população de se pensar por meio de um grupo de pertença (PRADO, 2002),
também corrobora com a idéia que é possível um movimento social surgir da própria população.
Os dois fóruns iniciam, portanto, desde o Natal de 2004, uma forte colaboração entre si, a
população vai aos poucos internalizando e aprofundando no seu Fórum as problemáticas surgidas no
Fórum de Debates, por outro lado, o Fórum de Debates utiliza o saber da população de rua para
direcionar os temas de suas discussões.
Em maio de 2005, um novo momento: a população que já amadurecia a idéia, por meio de
alguns representantes, mobiliza mais de 200 pessoas para uma votação dos delegados do Conselho de
Monitoramento, 3 titulares e 3 suplentes e divulga a criação de um movimento social da população em
situação de rua, que com penetração em instâncias do poder público, Ong’s, cooperativas e
universidades lutará pelos direitos da população.
2. Refletindo sobre o processo de organização política da população em situação de rua
Este artigo propôs compreender as manifestações e formas de organização existentes desde 1980
até os dias de hoje na cidade de São Paulo e verificar como elas se articulam com os dois Fóruns e o
Movimento destacados anteriormente: o Fórum da População de Rua, o Fórum de Debates sobre a
População em Situação de Rua e o Movimento da População e apontar limites e possibilidades de
organização política deste segmento populacional.
Buscou compreender como uma população, considerada historicamente a-política e sem
possibilidades de mobilização autônoma (STOFFELS, 1977; CASTEL, 1998; GOHN, 2003), vem nos
últimos anos se constituindo como um grupo que reivindica direitos, busca inserção em atividades
diversas, participa ativamente de Conselhos e Fóruns e se declara, recentemente em maio de 2005 como
movimento social.
Nesse contexto, gostaríamos de direcionar nossas reflexões por meio de algumas questões: É
possível falarmos em identidade coletiva? Quais são as estratégias de luta? Qual é a natureza das
reivindicações dessa população? A organização dessa população significa um enfrentamento ao estigma
de uma identidade negativa? O que essa organização tem a nos ensinar? Será que o acesso à informação
por meio da internet, dos fóruns de debates, jornais e revistas especializadas funciona como mediadores
na constituição de uma identidade coletiva? Quais são as relações estabelecidas por essa população com
instâncias antagônicas (MOUFFE, 2001) que se configuram numa diversidade de atores e instituições
políticas?
Além disso, é necessário pensarmos aqui que a situação de rua, por sua condição dada como
histórica, foi por muito tempo considerada estrutural, ou seja, aceitando-se algumas explicações
produzidas pelos saberes científicos, começamos a olhar a população em situação de rua como apática e
visceralmente incapaz de lutar por seus direitos.
Aqui novamente somos remetidos à idéia de “lógica da classificação social”: “a não-existência
é produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural” (SANTOS, 2004: 788). Porque
considera a situação de rua natural, a ciência não busca compreendê-la, aproximando-a, mas sim efetuar
uma análise rigorosa de seus motivos ocultos e a “amargura” que é ser da rua, sem se voltar para
movimentos como esse, que dão conta de possibilidades, até então, inimagináveis de organização,
mobilização e resistência.
Como percebemos, tanto no cenário político como no cenário assistencial, esses valores foram
sendo incutidos à própria população e não nos surpreende o fato de que no decorrer dos anos a
iniciativa de organização de atos públicos e mobilização da população tenha passado pela organização,
não só da Igreja (que ainda hoje reivindica o direito por essa organização) como também das entidades
que trabalham com essa população e inclusive pelo poder público.
Essa mobilização, que é compreendida de forma ampla, como proposto por PRADO (2002),
levando-se em conta o processo de desenvolvimento de condições materiais, psicossociais e políticas,
são capazes de articuladas com outros mecanismos possibilitarem a formação de uma identidade
política. Contudo nessa perspectiva, a identidade política só emerge num cenário antagônico.
Para Chantal Mouffe (2001): o antagonismo é “constitutivo e irreduzível” nas relações sociais,
ou seja, a população de rua, que sempre esteve sobre a égide e a tutela de organizações e do poder
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público, para se constituir como um movimento social na arena política, precisa nomear um antagonista,
instalando assim um conflito, saber quem é diferente do NÓS estabelecido por ELES (PRADO, 2002) e
nesse movimento criar um grupo de pertença. Será isso possível? Como se identificar por meio de uma
identidade já tão estigmatizada (CASTEL, 1998; ROSA, 1999; STOFFELS, 1977; et al)?
Acreditamos que dada à complexidade do tema, a emergência de se estudar e compreender essas
relações apresentam alguns desafios, tanto à academia como a sociedade. De um lado, não temos até
hoje uma sistematização das lutas e conquistas dessa população, o conhecimento criado por meio dessas
organizações encontra-se fragmentado e por outro lado, compreendermos essa possibilidade de
organização autônoma nos traz pistas sobre como superar “impossibilidades” naturalizadas, não só para
a população de rua, mas para outros grupos vulneráveis socialmente.
Essa necessidade de compreensão de práticas plurais de organização política aliada ao
conhecimento acadêmico, motiva não só por seu caráter inédito14 , mas também por seu caráter
emblemático das relações sociais e culturais estabelecidas em nosso tempo.
Aliado a isso, o a ampliação das formas de “conhecimento formal” e acesso à informação parece
ter um lugar privilegiado na articulação e criação do movimento social da população de rua, sendo que
sua disseminação possibilita que esses atores tenham acesso a informações globais, visitem chats de
bate-papo em tempo real e se organizem em redes que ultrapassam os limites de cidade, estado e país o
que era totalmente impossível há alguns anos.
3. Para aprofundar o debate: entre a organização política e a emancipação
Na perspectiva da Psicologia social sociológica, que busca não sendo essencialista compreender
o homem inserido no mundo em que vive e como atua nas relações que estabelece, o pluralismo teórico
e o intercâmbio são agentes fomentadores de debates mais consistentes e amplos. Nesse sentido,
concordo com Santos (1987), quando ele afirma que: “a ciência do paradigma emergente (...), sendo,
analógica, é também assumidamente tradutora, ou seja, incentiva os conceitos e as teorias
desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser
utilizados fora do seu contexto de origem” (SANTOS, 1987:77). Desse modo, a quebra da idéia de
disciplina estanque e formação diversa favorece o conhecer científico e a troca de saberes.
Nesse sentido, o envolvimento que tenho com o tema proposto, desde 2000, as observações e
inserções no campo, demonstram que conhecimento e produto do conhecimento são inseparáveis, assim
o respeito aos sujeitos corrobora com a idéia de que o conhecimento militante e ativo só tem a
contribuir com a universidade e possibilitar a construção de novos saberes por meio da práxis. Essa
“crença”, está embasada num dos postulados da sociologia da ausência e das emergências, propostas
por Boaventura de Sousa Santos, em que o autor afirma que “todo conhecimento é autoconhecimento”
(Santos, 1987).
Contudo, fomentar discussões a respeito do papel da ciência no mundo moderno, seus impactos
e a serviço de quem ela está é um dos eixos centrais que buscamos abordar no decorrer de nosso artigo.
Além disso, se a governança das sociedades no capitalismo tardio e as relações entre ciência e
sociedade alterou o padrão e o modo de pensar a gestão dos bens públicos, criando novos mecanismos
de participação como os conselhos, esses por sua vez, têm por meio da experiência de participação,
desempenhado um papel educativo. Papel esse que também pode ser questionado, uma vez que a
governança local é responsável pelo engajamento popular como recurso produtivo central, a
participação dos cidadãos nas informações e diagnóstico de problemas sociais é fundamental.
Aprofundar essas questões articulando-as com a mobilização recente de uma população
considerada até então lúmpen (STOFFELS, 1977), parece apontar para pontos importantes na
perspectiva da governança, do conhecimento e inovação.
14
A bibliografia disponível sobre população em situação de rua, não só no Brasil, como no mundo é bastante ampla e
diversificada, contudo como apontam os próprios estudiosos, a população em situação de rua, sempre foi encarada por
meio de estudos individuais, de enfrentamento de questões pessoais e pouco se tem falado sobre a questão de políticas
públicas (BARROS, 2004; ANDERSON & SNOW, 1998 e ARAPOGLOU, 2004), e até onde conhecemos pouco se
estudou sobre as formas de organização dessa população.
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A participação da população em Conselhos, Orçamento Participativo e outras formas de
governança são importantes para se compreender se esse tipo de atividade abarca uma possibilidade
emancipatória ou se configura apenas um modo diverso de controle social. O caráter público desses
novos experimentos políticos tanto pode resultar em cidadãos críticos, mais politizados como em
cidadãos tarefeiros. (GOHN, 2003)
Daí a importância da criação de instrumentos interdisciplinares que possibilitem uma crítica
consistente, trabalhando em prol de uma ciência que busca traduzir suas experiências e conferir sentido
à transformação social.
4. Bibliografia
ANDERSON, Leon & SNOW, David. Down on their Luck – A Study of Homeless Street People. California, University of
California Press, 1992.
ARAPOGLOU, Vassilis. The governance of homelessness in Greece : discourse and power in the study of philantropic
networks. Athens, Urban studies forthcoming, 2004.
BARROS, Joana da Silva. Moradores de rua – Pobreza e Trabalho: interrogações sobre a exceção e a experiência
política brasileira. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade São Paulo, 2004.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998.
DI FLORA, Marilene Cabello. Mendigos: por que surgem, por onde circulam, como são tratados. Petrópolis: Vozes, 1987.
DOMINGUES JR., Paulo Lourenço. Cooperativa e construção da cidadania da população de rua. São Paulo: Edições
Loyola/Editora Universitária Leopoldianum, 2003.
GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil: Movimentos sociais, ONG’s e Redes Solidárias. São Paulo,
Cortez, 2005.
_____. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. São Paulo, Cortez, 2003.
_____. Os sem-terra, ONG’s e cidadania. São Paulo, Cortez, 1997.
HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias Qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 1987.
MOUFFE, Chantal. Identidade Democrática e Política Pluralista. In: MENDES, Candido (Coord.) Pluralismo Cultura,
Identidade e Globalização. Rio de Janeiro, Record, p. 410-430, 2001.
NASSER, Ana Cristina Arantes. Sair para o mundo – Trabalho, família e lazer: relação e representação na vida dos
excluídos. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2001.
PRADO, Marco Aurélio Máximo Prado. Da mobilidade social à constituição da identidade política: reflexões em torno
dos aspectos psicossociais das ações coletivas. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v.8, n.11, p.59-71, 2002.
ROSA, Cleisa Moreno Maffei. (Org). População de Rua – Brasil e Canadá. São Paulo: Hucitec, 1995.
_____. Vidas de Rua, Destino de Muitos. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Estudos PósGraduados em Serviço Social – Puc-SP. São Paulo: 1999.
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo - 1970 –
1980. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: Um discurso sobre as ciências
revisitado. São Paulo, Cortez, 2004.
________. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2003.
________. Um discurso sobre as ciências. Lisboa, Edições Afrontamento, 1987.
SÃO PAULO – Secretaria de Assistência Social (Sas) / Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe), São Paulo, 2003.
SILVA, Roberval Freire da Silva. A igreja dos excluídos. Vida e morte do povo que mora na rua. São Paulo, FTD, 1988.
STOFFELS, Marie-Ghislaine. Os Mendigos na Cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa, BEZERRA, Eneida Maria Ramos & ROSA, Cleisa Moreno Maffei. (Org.). População
de Rua: Quem é, Como Vive, Como é Vista. São Paulo: Hucitec, 3a. edição, 2004.
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O psicólogo de instituição sócio-educativa para pessoas em situação de
rua: um estudo sobre sua identidade
Jéssica Kobayashi Corrêa1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP
[email protected]
Resumo: Este estudo objetivou investigar o movimento da constituição da identidade
profissional do psicólogo que atua em instituição sócio-educativa para pessoas em situação
de rua. A constituição da identidade se deu segundo a perspectiva de Ciampa, que concebe a
identidade como metamorfose.Trata-se de uma pesquisa qualitativa de base sócio-histórica.
Como procedimento utilizou-se de entrevista reflexiva para apreensão da história de vida de
um profissional psicólogo que atuou por mais tempo em uma instituição sócio-educativa para
pessoa em situação de rua da cidade de São Paulo. Verificou-se que a constituição da
identidade do psicólogo se dá na construção de uma prática psicológica em que ocorre um
movimento contínuo de aprendizagem. Essas práticas são desenvolvidas a partir da interação
do psicólogo com o meio social em que está inserido. O trabalho é visto como um local de
aprendizagem. O estudo aponta para a compreensão de que o trabalho desenvolvido é
educativo, tendo o psicólogo um importante papel na formação dos educadores. A pesquisa
indica que o aspecto educativo como fator determinante na constituição da identidade do
psicólogo é percebido de maneira limitada, apontando para a necessidade de mais estudos
sobre esse aspecto.
Palavras-chave: constituição da identidade; população em situação de rua; identidade
profissional
1. INTRODUÇÃO
O interesse pelo segmento populacional denominado população em situação de rua tem
aumentado, assim como o número das pessoas assim denominadas e as formas como as
políticas públicas têm atuado para o atendimento dessa população.
Sendo assim, a presente pesquisa busca contribuir para a compreensão dessa temática,
trazendo à luz uma nova maneira de ver o atendimento realizado com essa população, com
foco no trabalho sócio-educativo desenvolvido e, em especial, a maneira como o profissional
psicólogo atua em um serviço específico que compõe a política de atendimento a essa
população, os albergues.
Consideramos, para este estudo, como população em situação de rua:
(...) todo indivíduo migrante, imigrante ou nascido numa
grande metrópole que não consegue (...) prover o seu
bem-estar. Após atravessar um momento em que ocorre
o afastamento do mercado de trabalho, a desestruturação
familiar e o rompimento com as antigas relações que
compunham sua rede de sociabilidade (...), esses
indivíduos passam a depender da rede pública de
1
Psicóloga formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestranda em Psicologia da Educação pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
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proteção social, quando não se apropriam do espaço
público, transformando-o em moradia. (Giorgetti, 2006,
p. 25).
Apesar do entendimento de que os fatores sócio-econômicos, por si só, não são determinantes
para a situação de rua, percebe-se que a situação sócio-econômica do país, bem como a falta
de acesso de grande contingente de pessoas a serviços públicos de qualidade como educação e
saúde, favorecem o aumento dessa população.
Na medida em que o número de pessoas em situação de rua aumenta, tem-se um movimento
de reorganização e readequação do funcionamento do Poder Público no atendimento a essa
população.
Nesse contexto, a cidade de São Paulo é uma das pioneiras e referência nacional no
desenvolvimento do atendimento voltado especificamente para o segmento populacional das
pessoas em situação de rua, buscando minimizar essa questão nas diversas áreas de
atendimento.
De uma maneira geral, podemos dizer que esse atendimento, na sua quase totalidade, é
desenvolvido por organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, caracterizando um
atendimento institucional, dividido em diversas modalidades.
A relação institucional que se estabelece entre a pessoa em situação de rua e a instituição de
atendimento que a recebe pode ter um importante papel nos rumos que aquela pessoa tomará
em sua vida, uma vez que o objetivo institucional que se apresenta é o de resgate da autoestima, promoção da autonomia e reinserção social.
Sendo um espaço de caráter transitório, o tempo que a pessoa é atendida nesse local pressupõe
que ela consiga estabelecer novas relações, elaborar um novo projeto de vida, retomar o
convívio social, resgatar sua cidadania e se transformar em um sujeito de direitos. Busca-se,
com isso, que a pessoa ao ser atendida na instituição possa adquirir novos conhecimentos por
meio de um processo de desenvolvimento social e humano, em que o diálogo, a troca de
idéias e a convivência promovam situações que possibilitem esse desenvolvimento.
Aqui vale a pena dar um destaque para o que estamos entendendo por instituição, autonomia e
como entendemos ser possível a realização dessa proposta institucional. Segundo Libâneo,
(...) as práticas educativas não se restringem à escola ou à
família. Elas ocorrem em todos os contextos e âmbitos
da existência individual e social humana, de modo
institucionalizado ou não, sob várias modalidades. Há,
também, as práticas educativas realizadas em instituições
não convencionais de educação, mas com certo nível de
intencionalidade e sistematização, (...) caracterizando a
educação não-formal. (apud Lisita, 2007, p. 513)
Partindo desse pressuposto, considero que as instituições ligadas ao atendimento da Política
de Assistência Social, com ênfase nas instituições que atendem população em situação de rua,
devem ser consideradas como instituições de educação não-formal, uma vez que as mesmas
apresentam certa sistematização e intencionalidade no desenvolvimento de suas práticas
educativas.
Em outras palavras, podemos dizer que a educação não-formal é “o conjunto de processos,
meios e instituições específicas organizadas em função de objetivos explícitos de formação ou
instrução que não estão diretamente vinculados à obtenção de graus próprios do sistema
educativo formal É distinta da escola, mas é ato planejado, intencional e apresenta
organização específica” ( Trilla, )
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Difere da educação informal, que é aquela que acontece decorrente de processo espontâneo na
trajetória de vida do indivíduo em interação com a família e as experiências de vida, e da
educação formal, que é a educação escolar.
No caso específico das instituições que atendem população em situação de rua, os albergues,
além de ofertar local para dormir, comer, fazer sua higiene e lavar roupa, promovem
atividades sócio-educativas e acompanhamento social com vistas aos objetivos institucionais,
tendo em vista que, uma vez sanadas as necessidades básicas de sobrevivência, faz-se
necessário o desenvolvimento de um atendimento que possibilite a inserção social daqueles
socialmente excluídos.
Entendemos autonomia como a capacidade da pessoa resolver seus problemas e necessidades
por si mesma, possibilitando, dessa forma, sua inserção social e independência dos serviços
públicos de acolhimento.
Partindo da premissa apresentada, de que as instituições albergues devem ser vistas sob uma
ótica para além da proteção social, mas também com um caráter educacional, o presente
estudo busca contribuir para uma transformação na maneira de olhar para esse tipo de serviço,
que ultrapassa a acolhida, o abrigamento e a escuta qualificada e que joga luz para o trabalho
social e educativo desenvolvido, que deve adotar procedimentos e atividades de cunho
pedagógico e educacional que trabalhem as questões subjacentes que envolvem a promoção
da autonomia, uma vez que o educar, segundo Libâneo (2004), é
(...) conduzir de um estado a outro, é modificar numa
certa direção o que é suscetível de educação. O ato
pedagógico pode, então, ser definido como uma
atividade sistemática de interação entre seres sociais,
tanto a nível do intrapessoal quanto a nível da influência
do meio, interação essa que se configura numa ação
exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos visando
provocar neles mudanças tão eficazes que os torne
elementos ativos desta própria ação exercida. ( Libâneo,
2004, p 166)
Sendo assim, percebe-se que a relação que se estabelece entre a pessoa em situação de rua e a
instituição que a atende é um fator determinante para o bom desenvolvimento do atendimento.
Essa relação já foi objeto de alguns estudos, que auxiliam no entendimento sobre a sua
importância e como ela irá refletir na pessoa em situação de rua atendida.
Estudos apontam que a postura e o comportamento dos educadores no atendimento as pessoas
em situação de rua podem ser contrários à própria proposta de trabalho social do serviço, que
ao invés de incentivar a autonomia do indivíduo, faz com que o mesmo se torne mais
dependente e infantilizado.
Percebe-se, diante dessa realidade institucional, que a rotina de atendimento contradiz a
própria proposta institucional de promoção da autonomia.
Recentemente, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da cidade de
São Paulo-SMADS, visando melhorar o trabalho interno desenvolvido nesses serviços de
atendimento, publicou normatização que amplia o quadro de recursos humanos para o serviço,
incluindo profissionais para suporte administrativo e de gestão e o profissional técnico
psicólogo em todos os albergues que funcionam 24 horas.
No entanto, estudo recente realizado pela própria SMADS dá indícios que o trabalho
desenvolvido pelos profissionais psicólogos, que já atuavam nos serviços, não está claro,
havendo inclusive a co-existência de diferentes formas de atuação.
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Outro dado levantado pela SMADS sobre a atuação dos psicólogos que já trabalham nos
albergues revela que há casos em que há sobreposição no trabalho desenvolvido pelo
psicólogo e pelos assistentes sociais que trabalham no mesmo serviço, havendo a necessidade
de uma maior clareza nas atribuições e competências de cada um.
Fazendo um paralelo com a própria história da Psicologia no Brasil, o presente estudo busca
analisar o processo de constituição da identidade do psicólogo que trabalha em instituição
sócio-educativa para pessoas em situação de rua, visando contribuir para um melhor
esclarecimento sobre suas atribuições nesse trabalho.
Tendo em vista estudos que apontam a necessidade de uma maior clareza metodológica no
atendimento institucional realizado, faz-se necessário verificar de que forma o profissional
psicólogo tem atuado e como ele constitui sua identidade profissional na atuação dentro dessa
instituição.
A importância deste estudo está na contribuição para verificar como o trabalho do psicólogo
pode colaborar para o atendimento ofertado pelas políticas públicas de abrigamento,
mostrando as condições e dificuldades que o profissional vivencia quando inserido num
espaço institucional já instituído. Possibilita também perceber o movimento de constituição
de uma prática profissional, instituindo uma proposta de atuação.
Caracterização do(a) psicólogo(a) que atua em instituição sócio-educativa
Breve história da Psicologia no Brasil
Entendemos que o processo histórico de constituição da identidade profissional do psicólogo,
como categoria profissional, influencia e está ligada à maneira como o profissional psicólogo
se insere dentro de uma política pública de atendimento e, principalmente, como se dá sua
inserção dentro de uma instituição com profissionais de outros campos de atuação.
Após a regulamentação da profissão em 1962, a Psicologia foi marcada pela despolitização,
alienação e elitismo da profissão, inclusive contribuindo para o entendimento de que o
psicólogo só faz psicoterapia. (CFP, 2007)
Na década de 1980, trabalhos de pesquisa passaram a questionar o papel do psicólogo, sua
identidade profissional e o lugar da Psicologia numa sociedade de classes. Já no final dos anos
1980, iniciou-se um novo processo de mudança na atuação profissional, adotando-se como
lema o compromisso social da profissão. Psicólogos e entidades da Psicologia Brasileira
mobilizaram-se e fomentaram a construção de práticas comprometidas com a sociedade
brasileira, com a transformação social visando a emancipação e o enfrentamento das situações
de vulnerabilidade social. (CFP, 2007).
A partir desse histórico de constituição da atuação do psicólogo no Brasil, percebe-se
atualmente que a inserção do psicólogo e da Psicologia nas políticas públicas aumentou, tendo
como resultado, inclusive, sua inserção na Política de Assistência Social e, mais
especificamente, nos albergues para adultos em situação de rua da cidade de São Paulo.
A inserção do psicólogo nos albergues, enquanto política pública, reflete o entendimento de
que a psicologia está acompanhando as necessidades sociais, demonstrando que a mesma é
vista como necessária para atuar em conjunto com outras profissões no combate às situações
de exclusão e vulnerabilidade social.
Atuação do psicólogo nos albergues
Buscando qualificar o atendimento ofertado nos albergues, alguns foram implantados, já com
um profissional psicólogo no seu quadro, como é o caso do albergue para mulheres com
filhos.
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Em 2006, a SMADS realizou um levantamento sobre a atuação dos psicólogos nos serviços,
constatando que havia seis serviços que atendiam população em situação de rua que tinham
em seu quadro o profissional psicólogo.
Em um outro levantamento mais recente, realizado pela SMADS, verificaram-se novos dados
que nos levam a melhor compreender quem é esse profissional psicólogo que está atuando nos
albergues para pessoas em situação de rua.
De um total de 11 psicólogos atuando na rede, somente 03 estavam formados há mais de 10
anos, sendo que 05 estavam formados entre 4 a 8 anos e 1 estava formado há menos de 2
anos, tendo 2 que não responderam.
Em relação ao tempo que atuavam no albergue, um dado interessante foi que somente uma
psicóloga trabalhava há mais de um ano no serviço, totalizando 5 anos atuando nesse tipo de
serviço.
O restante trabalhava com um tempo variando entre 02 a 10 meses. Percebe-se, com isso, que
a atuação do psicólogo nesse tipo de serviço é recente e que há grande rotatividade desse
profissional no serviço.
Nesse mesmo levantamento foi indagado às psicólogas se elas exerciam atividades que
consideravam não condizer com a sua formação profissional e todas afirmaram ter atribuições
que não eram de sua competência. Mencionaram que às vezes o trabalho do psicólogo se
sobrepõe ao do assistente social, havendo a necessidade de uma maior clareza sobre as
atribuições de cada um dentro de um atendimento multidisciplinar.
Outro dado de relevância é que nos albergues, independentemente da quantidade de pessoas
atendidas, somente há um profissional psicólogo para atender a todos, ou seja, se o serviço
atende 100 pessoas e um outro atende 300 pessoas haverá apenas um profissional psicólogo
por serviço.
Essa lógica quantitativa não é a mesma para os orientadores sócio-educativos e assistentes
sociais, uma vez que a normatização vigente prevê que para cada 50 pessoas atendidas tem-se
um orientador sócio-educativo enquanto que para cada 75 pessoas atendidas tem-se uma
assistente social.
Percebe-se, com isso, que apesar do avanço em inserir o psicólogo nesse serviço, muito ainda
há que se discutir e estudar sobre a atuação desse profissional no serviço.
2. OBJETIVO
Identificar os fatores determinantes e constitutivos da identidade do profissional psicólogo
que atua em instituição sócio-educativa para pessoas em situação de rua, partindo do
pressuposto que a identidade é constituída na relação com o meio social a que o sujeito
pertence, nesse caso, o meio institucional do albergue para adultos em situação de rua.
3. REFERENCIAL TEÓRICO
A presente pesquisa utiliza o referencial teórico de Ciampa (2005), que concebe a identidade
como metamorfose.
Para ele, a constituição da identidade ocorre ao longo da vida do sujeito, partindo do seu
nascimento, da escolha do nome que é dado ao recém-nascido, e do seu sobrenome.
Nesse primeiro momento, com a escolha do nome, se estabelece o processo de constituição da
identidade, um processo dialético entre o singular do sujeito e o social do qual é parte. O
nome indica seu singular, o sobrenome indica suas primeiras relações sociais, sua posição
social ao nascer.
Segundo Ciampa (2005), o movimento dialético entre a igualdade e a diferença é uma das
características essenciais da identidade, uma vez que a mesma se constitui por meio dessa
articulação.
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Desde o início da vida, tem-se esse movimento, pois o nome que é dado representa o seu
singular, o seu aspecto diferenciador de outros bebês e a junção do sobrenome que lhe é dado
demonstra que o mesmo faz parte de um dado grupo social, sua família, igualando-se aos
demais membros da família pelo sobrenome.
Iniciado esse processo de constituição da identidade, ao longo da sua história de vida, o
sujeito irá vivenciar esse movimento ao apresentar características próprias e, ao mesmo
tempo, se igualar aos grupos sociais dos quais é parte (família, amigos, escola, trabalho,
cidade, etc.).
Por meio dessa relação com os grupos sociais é que se dá a representação do sujeito nos
diversos papéis sociais que assume ou que lhe é atribuído, como filho, amigo, namorado, etc.
A partir dessa representação que se dará a vivência de diversos personagens, ligados aos
diversos papéis sociais que lhe são atribuídos.
A identidade passa a se compor da articulação de várias
personagens que podem, em diferentes momentos,
permanecer, desaparecer, reascender, progredir ou
regredir. (Baptista, 1997, p. 18)
A vivência desses personagens caracteriza um movimento complexo em que há uma relação
entre o sujeito e o seu meio social historicamente construído, configurando uma identidade
pessoal que é determinada e “partilhada nas relações com os outros” (Fortes, 2006, p. 74).
Alguns personagens permanecerão durante o percurso, por meio da re-posição de uma
identidade pressuposta. Essa repetição do personagem é caracterizada como “mesmice” e,
quando esta impede a pessoa de superar as contradições vivenciadas, é denominada de
“identidade-mito”.
Aqui vale destacar que é próprio do ser humano a transformação. Manter-se inalterado é
impossível. No entanto, é possível manter a inalteração por algum tempo, com muito esforço,
para conservar uma condição prévia para manter a mesmice.
Alguns, à custa de muito trabalho (...) protelam certas
transformações, evitam a evidência de determinadas
mudanças, tentam de alguma forma continuar sendo o
que chegaram a ser num momento de sua vida, sem
perceber, talvez, que, estão se transformando
numa...réplica, numa cópia daquilo que já não estão
sendo, do que foram. (Ciampa, 2005, p. 165).
Em um ambiente institucional de trabalho, com hierarquias já postas, condições de trabalho já
estabelecidas, normatizações e expectativas externas a serem superadas, o profissional
psicólogo pode, muitas vezes, vivenciar uma situação que impeça a transformação, que
dificulte seu processo de metamorfose e, com isso, se mantém na mesmice.
Assim como o histórico do desenvolvimento da identidade do psicólogo no Brasil é um dos
determinantes da constituição de sua identidade profissional, o histórico do atendimento às
pessoas em situação de rua também o é, pois o psicólogo chega numa dada instituição já
estabelecida, com uma demanda de trabalho já posta e que a ela o psicólogo tem que se
adaptar.
Demonstra-se, com isso, a interdependência que existe entre a constituição da identidade do
homem e a das organizações em que atua (Baptista, 1997, p. 19). Diz Ciampa:
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Na origem, uma organização, como qualquer instituição,
é sempre uma solução para um problema humano. À
medida que se consolida, que se institucionaliza, deve
garantir sua própria autoconservação. (...) As
organizações e instituições também precisam sofrer suas
metamorfoses, evidentemente, para preservar sua
racionalidade. (2005, p. 231)
Com isso, a importância de se estudar a constituição da identidade do psicólogo, a partir do
histórico da constituição da identidade profissional da categoria, bem como também do
histórico do serviço em que ele atua, faz-se necessário para tentar acompanhar essa relação
dialética, que se estabelece entre o singular e individual do psicólogo e o social e coletivo de
seu ambiente de trabalho.
4. MÉTODO
O embasamento teórico-metodológico escolhido para a realização dessa pesquisa foi o da
abordagem sócio-histórica, uma vez que a mesma permite “compreender o conjunto das
relações sociais tais como se apresentam num momento histórico” (Ozella e Sanchez, 2007, p.
153) e, ao mesmo tempo, permite a investigação da subjetividade do sujeito na medida em
que possibilita a apreensão dos sentidos “que o sujeito atribui ao mundo, a si e ao seu lugar no
mundo e como tudo isso o vem constituindo ao longo do tempo” (Fortes, 2006, p.91).
Dessa forma, ao se buscar compreender o processo constitutivo da identidade do psicólogo,
busca-se apreender como o psicólogo foi se modificando no seu desenvolvimento, na sua
relação com o social na qual faz parte.
Para isso, faz-se necessário que os processos internos desse sujeito sejam exteriorizados, por
meio de entrevista.
O tipo de entrevista escolhida se baseou na proposta teórica da pesquisa, a identidade, tendo,
portanto, um foco na história de vida.
Isso porque, segundo Baptista (1997) a literatura existente sobre identidade demonstra haver
uma relação intrínseca entre história de vida e identidade, uma vez que é por meio do estudo
sobre a história que o entendimento sobre como a identidade se transforma ao longo da vida é
possível.
Optamos por realizar entrevista reflexiva, uma vez que a mesma permite a interação humana
e, a partir disso, a possibilidade de construção de um conhecimento organizado em que ocorre
a participação do entrevistador e do entrevistado no resultado final. (Szymanski, 2004, p. 14)
Sujeito
Para a escolha do sujeito, optou-se por entrevistar a psicóloga que atuou há mais tempo em
um albergue na cidade de São Paulo, totalizando 5 anos, e que tem seu trabalho reconhecido
pelos seus pares e equipe técnica envolvida.
Entrevista
A entrevista ocorreu no novo local de trabalho da psicóloga, em ambiente calmo e sem
interrupção. Foram realizados 2 encontros.
5. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
A partir da fala do sujeito entrevistado, organizei a mesma em núcleos significativos que se
destacaram e que auxiliam na percepção do movimento vivenciado pelo sujeito para
constituição de sua identidade profissional. O sujeito inicia sua fala se apresentando pelo
nome e pela formação que lhe outorga a profissão, em seguida relata seu percurso de trabalho.
Esse percurso reflete o próprio movimento de constituição da Psicologia como ciência e
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profissão, pois relata que ao sair da faculdade inicia o trabalho atuando em consultório e que
depois vai para o social
“(...) assim que eu terminei a faculdade o meu objetivo foi
formar consultório. Então eu fui para consultório com
amigos da faculdade. Fiquei em consultório por 2 anos e
depois (...) eu saí e decidi começar na área social da
psicologia.(...) Eu estava na clínica é, e na verdade, porque
tinha uma necessidade minha de estar fazendo alguma coisa
diferente que na verdade nem eu sabia o que era. Porque na
clínica era legal, mas me parecia muito restrito, dentro do
consultório, tinha alguma coisa ainda que não era só
aquilo(...), essa questão do problema social era alguma coisa
que me sensibilizava e então parece que eu me satisfazia
profissionalmente era por aí, é a área social”
Após a regulamentação da profissão em 1962, a Psicologia foi marcada por um período de
elitismo da profissão que contribuiu para o entendimento de que o psicólogo só faz
psicoterapia. (CFP, 2007)
Na década de 1980, alguns psicólogos passaram a questionar o papel do psicólogo, sua
identidade profissional e o lugar da Psicologia numa sociedade de classes, que culminou com
a adoção do lema o compromisso social da profissão. Psicólogos e entidades da Psicologia
Brasileira mobilizaram-se e fomentaram a construção de práticas comprometidas com a
sociedade brasileira, com a transformação social visando a emancipação e o enfrentamento
das situações de vulnerabilidade social. (CFP, 2007).
Outro ponto de destaque refere-se a construção de uma prática psicológica na instituição, que
se dá por meio de um movimento contínuo de aprendizagem em que as dificuldades e
limitações são percebidas para, em seguida, buscar superá-las e aprender com elas, sendo o
trabalho um local de aprendizagem.
(...) a minha metodologia era de aplicar dinâmica,
(...) Mas eu também pensava que faltava alguma
coisa, estava sempre faltando, então o que eu poderia
utilizar, até para eu sensibilizar melhor essa
população. E ter mais recursos, mais instrumentos
para trabalhar. Parece-me que faltava ainda alguma
coisa, então eu pensei numa metodologia que pudesse
contemplar esse trabalho com os grupos e aí eu já
conhecia o psicodrama de um trabalho de faculdade,
(...) fui buscar justamente essa metodologia e aí
estudei e vi que de fato era isso que contemplava e aí
comecei então a trabalhar com psicodrama e vi que
essa metodologia com o grupo era muito interessante.
(...) e aí anterior a isso, ao estudo do psicodrama. eu
também fiz um ano de especialização em
dependência química, para entender um pouco essa
dinâmica toda, então foram estudos e pesquisas que
acabaram também me ajudando a entender melhor
tudo isso, toda essa questão com dependência
química, o trabalho com grupo. Então tudo isso,
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também, foi compondo um pouco melhor esse meu
papel como psicóloga, mas tudo isso aconteceu
também estando no lugar e diante dessa necessidade
“O que eu posso fazer para conseguir ajudar melhor
essa pessoa?”. Então essa busca de ser melhor
profissional e de estudar, isso também foi uma
questão que me ajudou bastante.
Percebe que o trabalho social desenvolvido é um trabalho educativo e que as pessoas que ali
trabalham são educadores.
(...) algumas pessoas (...) não entendiam a missão e
o objetivo da entidade. Não conseguiam entender que
era um tipo diferente de trabalho (...)Então a gente
parecia perceber que tinha algumas pessoas que
ainda não estavam entendendo ainda esse espírito,
que tinha uma missão social, então eles não
conseguiam entender que era educador, que tinha um
papel educativo de fato ajudar essa pessoa a pensar
diferente a ter uma atitude diferente.
(...) a gente foi compreendendo que na verdade todos
nós ali éramos educadores, educadores (...) a gente
sempre dizia que todos éramos educadores e que os
auxiliares eram educadores então não era apenas
servir a comida ou então lavar a louça ou ver se o
quarto está limpo, mas era na própria atitude ter
uma atitude educativa, então quando tinha que
recepcionar o convivente, recepcionar o convivente de
que maneira? De qualquer jeito? De que maneira
abordar o convivente alcoolizado, ou sobre efeito de
drogas? De que maneira?
Assume o papel de formadora dos educadores, investindo na formação dos funcionários para
a melhora do trabalho educativo desenvolvido.
“Começamos a pensar em investir em formação para
o funcionário e isso ficou muito forte, da gente poder
investir na formação e poder estar falando, continuar
falando dessa questão do papel profissional já que
nem todos estavam entendendo isso.
(...) um trabalho que eu desenvolvi já no último ano,
um trabalho mesmo de formação com os educadores,
os auxiliares de serviço, de a gente pensar um pouco a
conjuntura social, essa questão da dependência
química, da gente ter um lugar que a gente pudesse
refletir certas coisas.(...) foi legal porque a gente
percebeu que as pessoas também entendiam melhor o
que é trabalhar com a população de rua antes de ir
direto para esse trabalho e elas próprias iam se
integrando com as outras.”
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Apesar de perceber o trabalho desenvolvido como educativo, apresenta o mesmo como uma
maneira de atuar no atendimento à pessoa em situação de rua, uma maneira de se relacionar
com a pessoa durante o atendimento. Não aponta sobre práticas e atividades educativas, de
cunho pedagógico, com finalidades específicas.
Dessa maneira, apresenta a necessidade de mais estudos sobre as práticas educativas nessas
instituições.
6. CONCLUSÃO
Verificou-se que a constituição da identidade do psicólogo se dá na construção de uma prática
psicológica em que ocorre um movimento contínuo de aprendizagem. Essas práticas são
desenvolvidas a partir da interação do psicólogo com o meio social em que está inserido. O
trabalho é visto como um local de aprendizagem. O estudo aponta para a compreensão de que
o trabalho desenvolvido é educativo, tendo o psicólogo um importante papel na formação dos
educadores. A pesquisa indica que o aspecto educativo como fator determinante na
constituição da identidade do psicólogo é percebido de maneira limitada, apontando para a
necessidade de mais estudos sobre esse aspecto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAPTISTA, M. T. D. S. Identidade e Transformação: o professor na universidade brasileira.
São Paulo: Unimarco Editora/EDUC. 1997.
CIAMPA, A.C. A estória de Severino e a história de Severina: um ensaio de psicologia social.
São Paulo: Brasiliense. 2005.
FORTES, V. M. R. B. A constituição da identidade do professor do ensino secundário em
Cabo Verde: uma abordagem sócio-histórica. s.p. Dissertação ( Mestrado em Psicologia da
Educação) – Programas de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da Educação, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2004.
MACHADO, E.M. Pedagogia e Pedagogia Social: educação não-formal. S.p. Dissertação (
Mestrado em Educação). Universidade Tuiuti do Paraná.
http://www.boaaula.com.br/iolanda/producao/me/pubonline/evelcy17art.doc
Acessado em 10 de outubro de 2008.
OZELLA, S. , SANCHEZ, S. G. In: BOCK, GONÇALVES, FURTADO (Orgs.). Psicologia
Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez. p. 141-162. 2007.
SZYMANSKI, H. A entrevista na pesquisa em educação: a prática reflexiva. Brasília: Plano.
2004.
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Perspectivas do administrador público nas políticas públicas do serviço
social na Casa Transitória de Araraquara.
Rafael Rodriguez Dan
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Araraquara
[email protected]
Resumo: O presente artigo apresenta uma proposta de ação dirigida para o atendimento à
população em situação de rua que pretende inserir-se na rede pública de serviços sociais cujo
foco é o enfrentamento da exclusão e para que isso aconteça, venho por meio deste, apontar
mecanismos de desempenho do administrador público a fim de otimizar a prestação de serviços
sócio-assistenciais da rede pública na Casa Transitória de Araraquara, a partir do projeto de
estágio obrigatório e supervisionado do curso de Administração Pública da Faculdade de
Ciências e Letras de Araraquara.
Palavras-chave: população de rua; políticas públicas; administração pública.
1. Introdução
Pelo fato da cidade de Araraquara se encontrar localizada, geograficamente, na região central do
Estado de São Paulo e por ter sua economia baseada na indústria suco-alcooleira, observa-se um
fluxo significativo de migrantes e itinerantes que vêm em busca de uma melhor condição de vida.
Esse fator contribui para que o município se constitua num pólo aglutinador de migrantes,
itinerantes e moradores de rua que aqui chegam à procura de emprego ou de passagem para
outros municípios.
Para o atendimento a essa população, a Secretaria Municipal de Inclusão Social e Cidadania
mantém a Casa Transitória, onde são acolhidos, entrevistados e atendidos em suas necessidades
específicas, pois o local oferece abrigo provisório, alimentação, banho, orientações e
encaminhamentos para obtenção de documentos e tratamento de saúde, reinserção familiar e no
mercado de trabalho, atividades de terapia ocupacional e artesanato, passagens para outros
municípios, etc.
Numa visão estereotipada, as pessoas que lá se encontram (moradores e itinerantes) estão
desprovidas de pertences elementares como roupas e calçados, além da própria aparência
descuidada pela falta de higiene, apresentando-se com cabelos e unhas cumpridas, barbas sem
fazer, etc. o que contribui para reforçar a sua identidade negativa construída pela sociedade. Na
realidade, elas apresentam uma situação de grande exclusão social, desde a ausência do meio
familiar até a falta de oportunidade de trabalho para se ter uma vida digna.
A Casa Transitória contribui para que sejam supridas as necessidades básicas e emergentes das
pessoas em situação de rua durante a permanência na instituição que, como muitas outras
instituições públicas, apresenta muitos problemas externos (estruturais) e internos
(funcionamento).
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Portanto, o foco do presente artigo é apresentar proposta para uma possível otimização do
atendimento na Casa Transitória para os moradores, usuários itinerantes e migrantes.
2. Um breve histórico
Os dias atuais da classe operária são marcados pelos fracassos do passado. Segundo Robert
Castel (2005, p.21), “Estar na condição de assalariado era instalar-se na dependência, ser
condenado a viver ‘da jornada’, achar-se sob o domínio da necessidade. Alguém era um
assalariado quando não era nada e nada tinha para trocar, exceto a força de seus braços. Alguém
caía na condição de assalariado quando sua situação se degradava: o artesão arruinado, o
agricultor que a terra não alimentava mais, o aprendiz que não conseguia chegar a mestre...”.
Este estudo mostra que as desvantagens de ser assalariado foram superadas em 1960, quando se
tornam a matriz de base da “sociedade salarial” moderna.
Castel (2005) afirma que a caracterização do indivíduo se dá devido ao que ele faz (se trabalha ou
não) e onde mora caindo no poço das temáticas: precariedade, vulnerabilidade, exclusão,
segregação, desterro, desfiliação.
O pensamento de Castel (2005) segue um raciocínio onde mostra a vulnerabilidade como zona
intermediária entre a integração (processo de participação ativa na sociedade; trabalho) e a
desfiliação (processo de um percurso sem vínculos familiares, empregatícios e sociais gerando,
assim, a exclusão).
Nesse momento é que entram em cena as Políticas Públicas, que segundo as autoras Vieira,
Bezerra e Rosa (2004, p.114) acreditam que é a ação do Estado “[...] ao fornecer um fluxo de
serviços e bens necessários à sobrevivência dos trabalhadores, procura reforçar sua capacidade de
impor à sociedade como um todo os interesses políticos e sociais das classes hegemônicas, bem
como obter legitimidade em sua tarefa de administrar as desigualdades sociais”.
Uma série de medidas foi tomada no fim do século XVIII e meados do século XIX que deram
início ao Serviço Social prestado pelo Estado. Mas, o direito dos cidadãos necessitados é “[...]
submetido a condições de recurso muito estritas, e sua outorga depende de controles
administrativos: o indigente deve provar que está ‘privado de recursos’, isto é, deve exibir os
sinais de sua desgraça”. (CASTEL, 2005, p.368).
Recentemente, em 1988 foi promulgada a Constituição que reconheceu a assistência social como
dever de Estado no campo da seguridade social e não mais política isolada e complementar à
Previdência as Políticas Públicas. E, também, em 2004 o Presidente Luis Inácio Lula da Silva
criou o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) que, sob o comando de
Patrus Ananias, acelerou e fortaleceu o processo de construção do Sistema Único de Assistência
Social, que poderá dar melhor direcionamento ao serviço público.
Portanto, “Muitos são os desafios em uma conjuntura política bastante agravada pela recessão,
que acentua o estado de profunda precariedade de vida dos trabalhadores, em particular de uma
parcela historicamente não atendida pelas instituições públicas – A POPULAÇÃO DE RUA”.
(VIEIRA, BEZERRA E ROSA, 2004, p.13).
3. O desempenho do administrador público
O desempenho do administrador público é, de fato, apresentar uma caracterização real e
funcional da Casa Transitória “Assad Kan” que é subordinada à Secretaria da Inclusão Social e
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Cidadania da Prefeitura Municipal de Araraquara e se encontra na Rua Castro Alves (Av. 16),
2697 – Santana – CEP 14.801-450 – Araraquara/SP.
No início, a observação foi uma etapa importante para existir uma interação na instituição. A
seguir, o acompanhamento e o auxílio nos atendimentos foram sendo inseridos nas minhas
atividades, gradualmente, para se ter o mínimo de vivência empírica.
Em todo estágio, informações teóricas são sempre importantes, por isso, fiz diversificadas leituras
de leis, políticas, planos, artigos, periódicos, livros, etc. para uma melhor argumentação no
processo de elaboração do relatório e um entendimento aprofundado sobre as políticas públicas
como direito do cidadão num contexto histórico.
3.1. Coleta de dados
A Casa Transitória “Assad Kan” tem como serviços prestados, dois eixos:
- Casa transitória: serviço de passagens para itinerantes e migrantes.
- Albergue: serviço prestado a moradores de rua e pessoas que precisem pernoitar por motivos
que são submetidos à triagem da assistente social, respeitando a capacidade máxima de 70 vagas.
Um dos objetivos específicos deste projeto de estágio foi tirar um perfil dos usuários itinerantes e
migrantes da Casa Transitória de Araraquara e para isso foram consultados dados secundários.
De um total de 712 pessoas, que passaram na Casa Transitória nos meses de junho e julho de
2008, foram coletadas informações de uma amostra de 240 (duzentos e quarenta) fichas
cadastrais que equivalem a 33,7% de todos os usuários itinerantes dos respectivos meses, sendo
que 120 (cento e vinte) atendimentos no mês de junho e 120 (cento e vinte) no mês de julho. De
acordo com os dados coletados, o perfil dos itinerantes da Casa Transitória apresenta as seguintes
características:
•
Faixa etária entre 30 e 40 anos;
•
Grande parte do sexo masculino;
•
Nascidos no estado de São Paulo;
•
Estado civil solteiro;
•
Apresentam Ensino Fundamental Incompleto como grau de instrução;
•
Têm famílias com endereço fixo;
•
Ocupam-se em cargos de Construção Civil e Serviços Gerais;
•
A cor de sua pele é parda;
•
O documento que apresentam e, geralmente, o único que possuem é o RG;
•
Vêm de cidades aqui da região de Araraquara;
•
A maioria se destina à São Carlos e Matão, mas muitos permanecem aqui na cidade de
Araraquara;
Numa visão genérica, o Município de Araraquara repassa os recursos para o Programa da
População em Situação de Rua com valores/empenhos a seguir descritos:
•
Despesas Correntes (Convênio) = R$ 29.436,00
•
Passagens = R$ 18.965,00
•
Pessoal = R$ 110.000,00
•
Material Permanente = R$ 10.000,00
Já numa visão interna, através de dados consultados das requisições para obter informações sobre
os recursos públicos de despesas correntes destinados à Casa Transitória e seus respectivos gastos
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no ano de 2008, sendo que, os recursos pertencem a um convênio estadual num valor de R$
2.453,00/mês chegando a um total de R$ 29.436,00/ano (vale lembrar que essas despesas são
tanto dos moradores quanto dos usuários itinerantes). A seguir, uma síntese das despesas:
TABELA 1: Descrição por tipo das despesas.
Tipo
Valor
Alimentos
8023,75
Produtos de higiene
4114,20
Produtos de limpeza
1041,60
Material de escritório
2210,42
Material de artesanato
4445,06
Lazer / Esporte
753,60
Roupas
3202,47
Calçados
285,00
Equipamentos
1173,00
Utensílios
255,50
Total
25504,60
Fonte: Pesquisa nas requisições existentes na Casa Transitória até o mês de setembro/2008.
Em relação às passagens, pode-se ter como regra a emissão de uma passagem no período de um
ano para o solicitador (itinerante ou migrante), mesmo porque os recursos públicos são bem
escassos, estes são repassados pelo convênio municipal no valor de R$ 18.965,00/semestre. A
seguir, uma amostra do gasto com passagens oferecidas aos itinerantes e migrantes que passam
pela Casa Transitória:
TABELA 2: Gastos públicos com passagens.
Destino
Valor Unit. Quant. Util.
Valor Util.
Quant./Sem. Valor/Sem.
Jaú
14,90
66
983,40
500
7450,00
São Carlos
3,50
151
528,50
600
2100,00
Matão
3,15
136
428,40
600
1890,00
Ribeirão Preto
15,05
111
1670,55
500
7525,00
Total
-464
3610,85
2200
18965,00
Fonte: Pesquisa nos relatórios da Casa Transitória referentes aos meses de junho e julho/2008.
O quadro de funcionários da Casa Transitória é composto por:
•
01 (um) Gerente de Programa (Cientista Social)
•
01 (uma) Assistente Social (Coordenadora)
•
01 (uma) Assistente Social
•
01 (uma) Psicóloga
•
01 (uma) Agente Administrativa (Auxiliar Administrativo)
•
01 (uma) Agente Administrativa (Recepcionista)
•
03 (uma) Agentes de Serviços Sociais (Recepcionistas)
•
04 (quatro) Porteiros (Frente da Cidadania)
•
06 (seis) Serviços Gerais (Frente da Cidadania - limpeza e cozinha)
•
04 (quatro) Motoristas
•
02 (dois) Guardas Municipais
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•
•
•
01 (uma) Professora Monitora de Terapia Ocupacional
04 (quatro) Estagiárias do curso de Terapia Ocupacional
01 (um) Estagiário do curso de Administração Pública
3.2. Apresentação dos problemas
Um administrador está sempre atento à percepção dos problemas, então foram encontrados
alguns na instituição a seguir detalhados:
•
Descumprimento de regras por parte dos funcionários e usuários;
•
Falta de organização hierárquica;
•
Falta de apoio e incentivo dos órgãos superiores do poder público;
•
Ausência de capacitação profissional para os usuários a fim de reinseri-los na
comunidade e mercado de trabalho;
•
Ausência de treinamento profissional para os funcionários;
•
Necessidade de melhorias no prédio;
•
Necessidade de profissionais de atuação na área jurídica e enfermaria;
•
Falta de recursos destinados a parte técnica e patrimonial (levando em conta o
crescimento tecnológico, é necessário que haja meios para facilitar o atendimento e o
processamento de dados, por exemplo, a falta de microcomputadores mais modernos para
auxílio na demanda existente de atividades do programa e mesmo para a melhoria da
organização burocrática e, também, a falta de automóvel e/ou transporte coletivo para uso
exclusivo da Casa Transitória);
•
Furtos de materiais da instituição e objetos pessoais dos moradores;
•
Uso exagerado de álcool e drogas por parte dos moradores.
3.3 Críticas e propostas
Todo sistema precisa estar em perfeito funcionamento para atingir os objetivos propostos e todas
as partes deste precisam ter responsabilidades e sentimentos de coletividade, mas se uma pára, as
outras se sobrecarregam e assim, tornam-se gargalos para a efetivação do sucesso de trabalho da
instituição. Mas, não podemos agir radicalmente nessas situações, pois, existem imprevistos e,
consequentemente, prejuízos. Entretanto, seria necessário que os funcionários fossem capacitados
para atuar na instituição nas diversas funções presentes, cada um na sua área. A partir daí, surge
um novo problema: se todos soubessem exercer todas as atividades, o trabalho poderia ser menos
eficiente, pois não haveria especificação do funcionário no seu devido cargo. De fato, sempre
existe contradição, então a capacitação profissional juntamente com orientações e regras mais
severas que partissem da cúpula gerencial, a unidade poderia atingir um nível melhor de
satisfação.
Porém, outro problema com os funcionários: a Frente da Cidadania (vulgo Frente de Trabalho)
que atua na Casa Transitória. Num ponto de vista social, é preciso oferecer emprego às pessoas
de baixa renda e incluí-las na sociedade, trabalhando para se ter uma vida digna. Mas, de acordo
com as ocorrências e conflitos internos da instituição seria necessário que a contratação de
pessoal fosse mais seletiva, já que muitas vezes os funcionários apresentam características
semelhantes aos moradores na questão de comportamentos indisciplinados e até mesmo de
alcoolismo, comparadamente aos moradores, que apresentam muitas dificuldades, tornando o
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trabalho da Casa Transitória mais problemático, e assim, nessas condições desvia-se do foco
central que é o atendimento às pessoas em situação de rua.
O mesmo problema é encontrado na questão das penas alternativas, onde fica difícil diferenciar
quem é que precisa realmente da assistência social, pois as pessoas que lá pagam serviços
comunitários se envolvem com drogas e são alcoólatras.
Em Araraquara está sendo implementado o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que
direcionará melhor os serviços públicos e para o ano de 2009, há uma previsão da instalação de
um Centro de Referência Especializada de Assistência Social voltado às questões das pessoas em
situação de rua. Consequentemente, espera-se que contrate mais funcionários, principalmente, um
assessor jurídico e profissional da saúde exclusivo do programa, que hoje, não existem. Também
poderá aumentar o número de estagiários para as áreas de cultura, esporte e educação, deixando
assim, um sistema completo e de satisfação de acordo com a demanda de atendimentos.
Há também, necessidades básicas que não são supridas: a falta de um transporte exclusivo para
visitas e buscas por pessoas nas ruas e computadores mais modernos, pois hoje nos encontramos
num mundo globalizado e repleto de informações importantes, dependentes de comunicação via
internet, por exemplo.
Enfim, não é tão simples requisitar equipamentos, materiais, recursos em geral e mesmo fazer
alterações no funcionamento, pois apesar do governo explicitar que a assistência social não é
mais assistencialismo, há fatores políticos por trás, em especial à população em situação de rua,
que não são produtivos para eles tratando-os simplesmente como mão-de-obra barata. O real
problema, então, é na estrutura do sistema externo, nos órgãos públicos superiores e até mesmo
na administração pública, que contém um número relevante de leis, políticas, normas, parâmetros
e institucionalizações, mas que não passam de uma “burocracia romântica”.
4. Considerações finais
O projeto de estágio que iniciou a formulação deste artigo apresenta a Casa Transitória, assim
como outras instituições públicas ou ONGs, como espaço de atuação da Administração Pública.
Em defesa dessa afirmação, pode-se dizer que o administrador público tem a capacidade de
planejar, organizar, coordenar, controlar o processo de políticas públicas oferecido para a
sociedade e, em conseqüência, avaliar todo planejamento estratégico dentro da instituição.
Esse processo elenca atividades práticas e burocráticas, como por exemplo, contratação de
pessoal (Recursos Humanos), controle de recursos (Finanças), elaboração de projetos, coleta de
dados, emissão de requisições e busca por convênios.
De acordo com sua habilidade, o administrador público, além de estar integrado ao planejamento
e operações administrativas, também deveria se preocupar com a seguridade e a proteção básica
da sociedade, principalmente pessoas em situação de vulnerabilidade, que são portadoras de
necessidades sociais especiais, contribuindo de forma tática e de assessoria, além de apresentar
especificidades de forma a facilitar a organização da instituição, como: conhecimentos de direito,
estatísticos, contábil-financeiros, econômicos, políticos e sociais. Portanto, o administrador
público tem capacidade, direito e obrigação de atuar em instituições e entidades na área das
Políticas Públicas da Assistência Social que hoje, segundo a Lei Orgânica da Assistência Social –
LOAS, já são consideradas de direito do cidadão.
Nos dias atuais, o sistema de governo e da sociedade mostra que são raras as atuações do
administrador público nos órgãos públicos, apresentando uma desqualificação do serviço público
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e falta de incentivo do Estado na formação superior de gestores públicos, que não deixa de ser
uma problematização a ser enfrentada e corrigida.
Proporcionar e participar de discussões sobre o serviço social pode ser uma prática do
administrador público em conjunto com todo sistema de assistência social: “Desencadear a
discussão e o processo de reestruturação orgânica da política pública de assistência social na
direção do Sistema Único de Assistência Social - SUAS, ampliando e ressignificando o atual
sistema descentralizado e participativo, e retrato, portanto, do compromisso conjunto ao
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e demais gestores da política
de assistência social, à frente das secretarias estaduais e municipais, da potencialização de todos
os esforços políticos e administrativos necessários ao enfrentamento das grandes e crescentes
demandas sociais, e dos inéditos compromissos políticos assumidos pelo novo Governo Federal”
(Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004).
Conforme foi proposto, há uma perspectiva de contribuição do administrador público
apresentando mecanismos de intervenção no serviço social, já que na prática, um administrador
público trabalharia juntamente com cientistas e assistentes sociais, psicólogos, advogados,
educadores e a comunidade prestando serviços técnicos e, sobretudo, na tomada de decisões. E,
consequentemente, uma iniciativa de gestores da administração pública buscar parcerias entre o
poder público, ONGs, empresas privadas e a sociedade como um todo.
Referências
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BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social. Lei 8742. Brasília, 07 dez. 1993.
CAPELLA, A. C. N. Perspectivas Teóricas sobre o Processo de Formulação de Políticas Públicas. Trabalho
apresentado no GT. Políticas Públicas no 29º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, FCL, Universidade Estadual
Paulista, Araraquara, out. 2005.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
MARTINS, M. de F. A. A caminho da rua: o encontro com as redes de assistência e a formação de laços sociais
entre moradores de rua de Belo Horizonte. 2001. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia Ciências e Letras,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
MATTOS, R. M.; FERREIRA, R. F. Quem vocês pensam que elas são? – Representações sobre as pessoas em
situação de rua. (Artigo atrelado à Iniciação Científica/FAPESP), Universidade São Marcos, 2004.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. A história da Assistência Social
Brasileira. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/suas/conheca>. Acesso em: 28 out. 2008.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Norma Operacional Básica de
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MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Política Nacional de Assistência
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2006. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) – FCL, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2006.
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VIEIRA, M. A. C.; BEZERRA, E. M. R.; ROSA, C. M. M. (Org.). População de rua: Quem é, como vive, como é
vista. 3. ed. Hucitec. São Paulo, 2004.
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Perspectiva da criança em situação de rua
Moneda |Oliveira Ribeiro
Escola de Enfermagem da USP – EEUSP
[email protected]
Karen Murakami Yano
Escola de Enfermagem da USP – EEUSP
[email protected]
Hui Ting Yang Chang
Escola de Enfermagem da USP – EEUSP
[email protected]
Resumo: O artigo discorre sobre parte dos dados de uma tese referente à trajetória da vida
de um grupo de crianças com experiência de viverem nas ruas de São Paulo. Tem o objetivo
de apresentar os resultados de uma das categorias da pesquisa, referente às perspectivas das
crianças em relação ao seu futuro. Os dados, coletados por meio de entrevistas individuais,
foram sistematizados segundo o método de Análise Temática, uma das formas de Análise de
Conteúdo. Os temas, surgidos dos textos transcritos das entrevistas, foram agrupadas em
experiências significativas para as crianças formando categorias, entre as quais “o futuro”.
A análise desta categoria evidenciou que as perspectivas das crianças em relação ao futuro
são tão restritas que elas não conseguem estabelecer metas nem mesmo para um futuro
imediato. A falta de perspectiva deve-se ao estado de vulnerabilidade e adversidade da
situação de rua.
Palavras-chave: Criança de rua; Violência; Exclusão social.
1. Introdução
A criança em situação de rua constitui uma categoria social produzida pela desigualdade
social. Essa discriminação gera grupos sociais em situação de extrema pobreza. As crianças
são as mais afetadas, contrariando o artigo 227 da Constituição de 1998, onde consta que
criança é prioridade absoluta. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado para
assegurar esse principio, mas sua implementação exige nuances que a sociedade brasileira
ainda não vivenciou. (DIREITOS, 1993)
O pleno sucesso das políticas públicas demanda integração dos serviços sociais e participação
popular nos programas sociais. A efetivação desses princípios depende da definição de
políticas públicas e parcerias com segmentos da sociedade. Contudo, ainda há determinações
do ECA que ainda não se concretizaram. É necessário aumentar a articulação da sociedade
civil com as diversas instâncias formais referidas no ECA.
Essa forma de organizar a sociedade exige um compromisso principalmente por parte das
autoridades brasileiras. E é justamente este o maior desafio: pressionar a elite brasileira para
assumir esse compromisso. Há muitos interesses em jogo e, para uma pequena (mas
poderosa) parcela da sociedade, a criança não é prioridade, contrariando o princípio jurídico
estabelecido por Lei.
Enquanto isso, parte significativa da população de crianças sobrevivem em meio hostil, com
os recursos que dispõem. Utilizam as ruas como meio de sobrevivência e espaço para seu
desenvolvimento. Mas, nas ruas, estão expostas às distintas formas de violência que colocam
em risco sua sobrevivência ou prejudicam seu desenvolvimento. Para ajudá-las, é necessário
identificar os efeitos dessa realidade sobre essa categoria social e refletir sobre as
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possibilidades de intervenção que possam, ao menos, minimizar os danos causados nas
crianças enquanto mudanças estruturais não se configuram em fatos.
Nessa perspectiva, o presente trabalho consiste em apresentar uma análise atualizada de parte
de uma tese sobre a trajetória de vida de um grupo de crianças em idade escolar que vivia na e
da rua (RIBEIRO; CIAMPONE, 2001). Dentre as categorias que surgiram do processo de análise
dos dados da investigação, uma dizia respeito às perspectivas futuras das crianças tendo em
vista o modo como representam sua história e a realidade que a cercam. O estudo teve o
propósito de conhecer a criança em situação de rua para que os profissionais de saúde,
solidários a elas, possam consolidar propostas alternativas de assistência com vistas à
promoção de seu desenvolvimento.
2. Método
Participaram do estudo crianças em idade escolar (entre 7 e 12 anos) que viviam na cidade de
São Paulo. Levou-se em conta que a criança nessa faixa etária tem capacidade para
comunicar-se através da linguagem e, portanto, consegue enunciar sua representação de
mundo e a compreensão que tem da realidade vivida. Assim, a entrevista individual, semiestruturada, foi o meio de se obter dados que possibilitassem identificar sua representação e
perspectivas em relação a si mesma e ao seu meio social. Foram entrevistadas catorze crianças
que freqüentaram duas entidades da cidade de São Paulo: um abrigo (moradia) e um albergue
(acolhimento noturno).
A autorização para realizar as entrevistas com as crianças que tinham história de vivência na
rua ocorreu em duas instâncias: junto aos responsáveis pelos refúgios e através das próprias
crianças. Cada criança e seu responsável (guardião legal) eram esclarecidos sobre o objetivo
da pesquisa, o sigilo de sua identidade, a utilização de sua informação e o procedimento da
entrevista. Assim, manifestaram o consentimento informado conforme preconizado pelos
princípios éticos das pesquisas com seres humanos. (CONSELHO, 1996)
As entrevistas começavam com uma pergunta inespecífica como “conte-me sobre sua
experiência na rua” ou “como você se sente estando na rua” e prosseguiam com intervenções
curtas, apenas para estimular as crianças a se expressarem.
Tendo em vista que a linguagem escrita possibilita a decomposição e reconstrução do texto
discursivo, tornando possível a compreensão do conteúdo da mensagem, este foi o recurso
utilizado para viabilizar a apreensão da realidade das crianças em relação ao objetivo do
estudo. Assim, os dados foram registrados por meio de gravação e transcritos na íntegra,
identificando a pesquisadora com a letra “p” e as crianças com as demais letras do alfabeto.
A sistematização do texto transcrito foi organizado conforme a Análise Temática (MINAYO,
1993), um dos métodos da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1979). Esse referencial possibilita
apreender a realidade subjetiva do indivíduo em relação à realidade objetiva, atendendo ao
propósito deste estudo.
Assim sendo, os temas significativos às crianças (destacados dos textos transcritos) foram
agrupados em categorias. A interpretação dos dados foi realizada em função dos temas
emergentes que representaram a reconstrução das dificuldades enfrentadas por elas em seu
processo de desenvolvimento. Assim, uma das unidades temáticas que surgiu da análise do
discurso das crianças entrevistadas originou a categoria “futuro”.
Devido ao estudo consistir em um enfoque psicossocial, os referenciais teóricos que
nortearam a análise dos dados foram pautados em autores que consideravam a determinação
social na visão de mundo do indivíduo e que realizaram estudos relacionados ao
desenvolvimento infantil numa abordagem humanista e histórica.
3. Resultados
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3
As crianças, em geral, aparentavam não terem uma perspectiva futura previamente refletida.
Parecia que só pensavam a respeito no momento presente em que eram questionadas.
Manifestavam, sem hesitação, desejo de “mudar de vida”, mas hesitavam quando eram
indagadas sobre que rumo pretendiam tomar em suas vidas. As crianças pareciam viver
basicamente o dia presente, não definiam metas a serem atingidas. Tinha-se a impressão de
que “o passado deveria ser esquecido” e o “futuro determinado pelo destino”.
Embora, na fase escolar do desenvolvimento infantil, a criança possa manifestar algum
interesse em determinada profissão, somente no final de sua adolescência está apta a fazer sua
escolha profissional. Mas, a clássica pergunta “o que você quer ser quando crescer” tinha
apenas o intuito de levar as crianças a pensarem sobre suas perspectivas atuais para se atingir
uma meta futura. Assim, inevitavelmente, elas teriam que definir para si mesmas onde
pretendiam morar para, de aí em diante, construírem seu futuro.
As crianças sabiam que a vivência na rua é uma situação passageira. Uma delas expressou
“ninguém fica na rua pra sempre”, mas suas restritas possibilidades de escolha as levam a
protelarem a decisão sobre que caminho seguir. Desprovidas de perspectivas cativantes,
deixam de ser agentes de sua própria história.
3.1. Onde morar?
As crianças que não tinham antecedentes de serem vítimas de violência doméstica pensavam
na possibilidade de retornarem para casa. As que não tinham essa alternativa esboçaram
preferência por morar com algum parente. As que não tinham nem essa alternativa, depois de
muito hesitarem, decidiam recorrer a algum abrigo de sua escolha. Nenhuma delas ponderou
sobre a possibilidade de adoção.
3.1.1. Perspectivas de retorno à família
P. Você quer sair desta vida? L. Quero. (Pausa) P. O que você pretende fazer? L. Eu vou pra casa.
P. O que você quer que aconteça com você? J. Eu quero que eles (a equipe técnica do abrigo) vão
atrás da minha avó pra mim morar com ela. Eles estão procurando ela. P. Você não sabe onde ela
está? J. Não.
3.1.2. Preferência por ficar no abrigo
P. O que você quer fazer agora? B. Não sei. P. Você prefere ficar aqui (no abrigo) ou quer voltar pra
casa? B. Eu ainda não sei. P. Está pensando...! B. Preferia ficar aqui.
P. O que você tem vontade de fazer? M. Estudar. P. Você quer ficar aqui ou quer sair? M. Ficar aqui.
P. Você não quer voltar pra casa? M. Não. P. Então você quer estudar e morar aqui? M. É.
Em um momento da entrevista, uma criança revelou o sonho de ter sua própria casa, mas
excluiu a perspectiva de uma convivência familiar.
M. Quando eu crescer, vou ficar grande. Aí vou comprar uma casa pra mim. P. Quem vai morar
nessa casa? M. Eu. P. Mais alguém? M. Não sei. P. Você não vai pôr ninguém? M. Vou. Uma mulher.
P. Quem mais você vai pôr na casa? (Pausa) M. Não respondeu.
3.1.3. Possibilidade de mudar para outro abrigo
P. Você tem vontade de mudar de vida? E. Como assim? P. Você gostaria de sair da rua, de morar
numa casa, ir para a escola? E. Eu gostaria de voltar para um abrigo, não pra minha casa. Voltar
para um abrigo que tenha um lugar pra mim ficar, pra mim trabalhar, pra mim estudar, aí sim. Igual
ao lugar que eu tava... é muito mais legal do que aqui.
Essa criança desejava viver em um abrigo que não a impedisse de ser livre e queixava-se
também da demora quanto ao seu encaminhamento para um abrigo de sua preferência. Ela
esperava viver em um abrigo que não a impedisse de sair para a rua quando desejasse. Na
ocasião, essa perspectiva era restrita. O ECA mudou essa realidade, mantendo os abrigados
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em casas residenciais com número reduzido de moradores para preservar a identidade e
liberdade da criança.
3.2. Afinidade profissional
As crianças mostravam-se coerentes quanto às perspectivas futuras e suas possibilidades reais:
aquelas que manifestaram desejo de se tornarem profissionais de nível médio, pareciam
referir-se a um futuro tão remoto que, ao adentrar no terreno da possibilidade, tudo é passível
de acontecer.
P. O que você tem vontade de ser na sua vida? K. Cantor. Eu gosto de cantar. (Pausa)
P. Você vai à escola? W. Não. P. Você já foi alguma vez? W. Já. P. O que você quer ser quando
crescer? W. Vou trabalhar na prefeitura. P. O que você vai fazer na prefeitura? W. Vou desentupir
fossa, arrumar poste.
P. O que você quer ser quando crescer? M. Quero ser trabalhador. P. Que trabalho você quer fazer?
M. Arrumar carro. P. Então, você vai ser mecânico? M. É.
Uma das crianças manifestava bem a coerência entre sua realidade e suas possibilidades. Ela
demonstrava claramente que só é possível reproduzir aquilo que se conhece ou que se
convive. No caso, a arma-de-fogo fazia parte do seu cotidiano e, aos seus olhos, tem poder
quem a possui. A criança de rua sonha torna-se poderosa para conquistar uma posição mais
vantajosa que suas atuais circunstâncias. Ela percebe que seu horizonte de escolha
profissional é restrito e, diante das limitadas opções, vê como alternativa para conquistar um
status social se vier a ser um policial. Tornar-se policial satisfaz essa necessidade de ascensão
social porque, no limite, inverte-se o papel de oprimido a opressor.
P. O que você tem vontade de ser, quando crescer? E. Não sei ainda. Repórter, polícia, deixa eu ver...
segurança. Que trabalha com arma. P. Você tem vontade de trabalhar com arma? Por que? E.
Porque eu gosto. Eu gosto de ficar com arma na mão. P. Você não acha perigoso usar arma? E. Não.
Só, quando eu crescer... aí sim. Eu vou ficar com a minha arma. Eu vou ficar de segurança, eu vou
querer trabalhar de noite.
P. Você pensa em mudar de vida ou não? G. Penso. P. O que você pensa em fazer? G. Eu quero ser
polícia. P. E como você pensa em fazer isso? G. Estudar. P. Você está estudando? G. Assentiu com a
cabeça. P. Onde você estuda? G. No CCCA1. P. Você vai lá sempre? G. Sempre não.
3.3. A falta de perspectiva
Realizar tarefas que sejam úteis é um dos requisitos necessário para o pleno desenvolvimento
da criança em idade escolar. Nessa fase, a criança sente necessidade que os adultos
reconheçam sua produção. Mas, a criança em situação de rua não tem a oportunidade de
produzir um trabalho passível de elogio, seu tempo é ocioso, ou é ocupado com atividades
ilícitas. O fracasso na realização desse requisito leva a criança a desenvolver um sentimento
de inferioridade, comprometendo sua auto-estima.
P. O que você tem vontade de ser quando crescer? L. Quero ser um homem honesto. (Pausa) P. Você
já não é um menino honesto? Como você é agora? L. Pra mim, eu sou um moleque de rua. P. Como é
ser um moleque de rua? L. Ah! É nada.
É provável que a necessidade de fazer algo na vida seja uma das razões que torna a rua um
espaço efêmero na vida dessas crianças. Sem dúvida, a condição à qual estão sujeitas na rua já
consiste em estímulo suficiente para que essa estada seja transitória. Mas, a frustração de não
poder realizar algo de que se orgulhe também é motivo suficiente para um escolar desejar
1
O CCCA (Centro Comunitário da Criança e do Adolescente) é uma ONG que proporcionava algumas atividades
educativas às crianças em situação de rua, mas não constituía ensino formal. Atualmente, a entidade desenvolve
ações preventivas, atende crianças em situação de risco, vulneráveis a tornarem-se moradoras de rua.
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mudar de vida. Por isso, ainda que não tenham definido que rumo tomar, as crianças têm
esperança de viver dias melhores.
P. Faz quanto tempo que você está na rua? T. Tem um ano já. P. O que você pensa em fazer daqui pra
frente? T. Eu não sei. P. Você não tem um plano pra sua vida? Você pretende ficar na rua para
sempre? T. Na rua pra sempre ninguém fica, né, porque chega uma hora que não se agüenta mais.
P. Você pensa, às vezes, no seu futuro? S. Acenou negando. P. O que você pensa fazer da sua vida? S.
Eu não sei, tia. P. Pense no que for melhor para você. S. Não sei não, acho que eu vou pra minha
casa; mas se eu for, vou apanhar a mesma coisa. P. Não tem outro lugar para você ir? S. Não tenho,
tia.
Essa criança, ao dar-se conta da falta de uma perspectiva futura mais satisfatória, decidiu
retomar seu trabalho de engraxate que, até o momento, estava inativo.
S. Acho que eu não vou voltar pra minha casa. Tô pensando em ir para outro abrigo... Não. Eu não
sei se eu quero ir para lá. P. O que faz você ter dúvidas? S. Melhor eu ficar aqui (no albergue), é mais
divertido. P. Mas, se você ficar aqui, de dia fecha, você tem que ficar na rua. S. Mas tem um lugar
(CCCA) que, se nós quiser ficar lá dentro de dia, nós fica. P. Tem escola lá? S. Não. P. Você não
pensa em estudar? S. Ah, aqui a gente faz atividade, aqui também é legal. Eu tenho que pegar minha
caixa de engraxar lá com o tio. P. Você trabalha? S. Não, eu vou começar a trabalhar esta semana,
segunda-feira.
Algumas crianças ainda não tinham definição quanto aos seus destinos, mas sabiam que para
conseguirem atingir qualquer meta, antes teriam que superar seu maior desafio, a dependência
da cola.
P. Como você acha que vai ser sua vida daqui pra frente? A. Não sei. P. Você pensa nisso? A. Ah, eu
penso que eu preciso parar de cheirar cola, senão minha vida vai se estragar toda, vai encher o
pulmão de cola e eu vou ficar morto, vou morrer igual o moleque que passou na reportagem. (…) P.
Você estudou? Chegou a ir pra escola? A. Assentiu com a cabeça. P. Até quando? A. Terceira série,
porque eu repeti três anos a segunda série.
A falta de perspectiva manifestada por uma das crianças a levava a renunciar à sua própria
infância. Segundo ela, a solução para o seu problema era “crescer rápido, muito rápido”. Com
isso, deixava implícito que a saída para o seu problema seria conquistar uma independência
que só seria possível quando atingisse a fase adulta. Sabendo que ainda faltava muito tempo
para essa conquista, apelava para a ajuda divina.
E. Eu comecei a ficar na rua, ficar na rua, na rua. Agora eu tô cheirando cola, fumando pedra e já tô
na... tô na... tô na solidão. Aqui, eu já arrumei muitos amigos. Jogo muita capoeira. Agora, não sei o
que vai acontecer comigo. Tomara que eu cresça muito rápido, mas rápido, pra mim trabalhar
rápido. Pra ajudar meus amigos, minha namorada, meu pai, minha tia, meu tio e todo mundo...
(família da rua2) que estão precisando de mim. Eu tô precisando de muita ajuda. (Pausa) Agora minha
mãe (uma amiga) tá me procurando. Tô aqui (no albergue). Todo mundo... aqui cuidando de mim. E
eu não sei... vamos ver se Deus faz eu parar de cheirar cola, fumar pedra, mas tomara que eu arrume
um lugar pra mim ficar.
4. Discussão
Na fase escolar do desenvolvimento infantil, a criança torna-se muito sociável e amplia suas
relações para além do âmbito familiar. Fora de casa, passa a conhecer outros conceitos
morais, distintos dos de seus pais, mas estes (quando bem sucedidos em seu papel de
educadores e provedores de afeto e proteção) continuam a ser sua referência de valores.
Gradativamente, o escolar passa a construir sua própria consciência moral, a partir do
2
A família de rua é constituída pelos próprios amigos a quem as crianças atribuem papéis sociais de uma
família. Assim, constróem uma família fictícia com a qual se relacionam no cotidiano como se fosse real.
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exercício de refletir sobre conceitos fora do âmbito familiar e compará-los com os de seus
pais. Ele necessita desse processo para elaborar ações que avalie ser importante para si e seu
meio. Na ausência dos pais, a presença de uma figura significativa à criança, que substitua em
qualidade a função dos pais, pode ajudá-la na formação de sua consciência moral.
O escolar busca desempenhar um papel social compatível com os padrões de valores dos
adultos. Sente necessidade de pertencer a um grupo para realizar coisas em conjunto com os
pares. Observa e imita pessoas, representando ocupações que consegue entender, como
bombeiros, policiais, mecânicos, etc. Anseia ser capaz de fazer coisas, “de fazê-las bem e até
perfeitamente”. Enfim, sente necessidade de ser útil em seu meio e espera ser reconhecido por
suas contribuições. A satisfação desse requisito contribui para a aquisição de uma autoimagem positiva. (ERIKSON, 1987)
Considerando que a construção “envolve fazer coisas ao lado de outros e com outros,
desenvolve-se neste período um primeiro sentido de divisão de trabalho e de oportunidade
diferencial”. Esse senso de indústria justifica a influência que a atividade social produtiva
exerce sobre a consciência moral da criança em idade escolar. Daí a importância de se
valorizar toda construção realizada pela criança. A frustração na satisfação do sentimento de
realização e competência desencadeia um sentimento de inferioridade. “O sentimento de que
nunca prestarei para nada, é um perigo que pode ser minimizado por uma professora que saiba
enfatizar o que uma criança pode fazer”. (ERIKSON, 1987)
As atividades escolares contribuem significativamente para a construção de um sentimento
positivo em relação ao autoconceito da criança, mas a que está em situação de rua não
freqüenta a escola, não pode contar nem com o apoio de uma professora para ajudá-la a
construir uma auto-imagem saudável. Sua ausência na escola agrava sua condição já tão
desfavorável ao seu desenvolvimento. Além disso, a criança de/na rua precisa enfrentar a
discriminação social, outro componente desfavorável à construção de uma identidade
positiva.
A discriminação é um “perigo que ameaça o indivíduo e a sociedade quando o escolar começa
a sentir que a cor de sua pele, os antecedentes de seus pais, a qualidade de suas roupas
decidirão, mais que seu desejo e sua vontade de aprender, de seu valor como aprendiz”. E
ainda, “há outro perigo mais fundamental, que é a auto-restrição do homem e a construção de
seus horizontes, para que só abranjam seu trabalho. Se aceita o trabalho como sua única
obrigação, e o produtivo como seu único critério de valor”. (ERIKSON, 1971)
Segundo a ordem moral vigente na sociedade ocidental, o valor do indivíduo está associado
ao que produz, sobretudo se seu produto atende às exigências sociais. Critérios como
honestidade, esforço e boas intenções, não constituem prioridades no rol de valores do mundo
moderno, onde os fins justificam os meios. Somente o produto acabado tem valor. Por isso, a
realização de algo que tenha valor social é imprescindível para uma criança que constrói sua
auto-imagem face ao que é capaz de realizar.
A criança que pertence a um grupo minoritário está “vulnerável à hostilidade e à
discriminação por parte de grupos majoritários de outras crianças e adultos”. São
significativos “os efeitos prejudiciais que a discriminação e a pobreza (que freqüentemente
aparecem juntas) podem ter no ajustamento psicológico e na auto-estima de crianças e
adolescentes”. “Um indivíduo que se perceba pertencendo a um grupo passível de ser tratado
discriminatoriamente, e visto de modo degradante pela maioria das pessoas de uma sociedade,
pode tornar-se compreensivelmente ressentido e amargo”. O mais grave é se o indivíduo
incorporar essas opiniões como sendo suas, resultando em alienação de si mesmo e
construção de uma identidade negativa. (MUSSEN; CONGER; KAGAN, 1997)
Na fase escolar, a criança pode incorporar uma auto-imagem negativa se assimilar atributos
pejorativos sobre si, sobretudo a criança em situação de rua, que está muito vulnerável a
assimilar identidade negativa. A ociosidade e o envolvimento com atividades ilícitas,
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7
justamente na fase do desenvolvimento em que é crucial satisfazer a necessidade de se sentir
útil e de participar de atividades socialmente valorizadas, compromete a formação de uma
identidade positiva. Somando-se aos fatores que interferem no seu desenvolvimento, o uso de
drogas agrava a situação, uma vez que levam à perda de controle sobre seu comportamento,
dificultando suas relações sociais.
Face ao exposto, a criança de rua não consegue ter controle sobre sua vida, não dispõem de
requisitos pessoais que a torne capaz de definir suas próprias metas. Para romper o processo
de rebaixamento da auto-estima, é preciso solidariedade a ela. Isso significa que, além do
conhecimento e da experiência, o sentimento empático, a intuição e o afeto são pré-requisitos
imprescindíveis para uma atuação efetiva junto a esse grupo de risco.
5. Considerações finais
Nas ruas, as crianças podem ser hostis, mas em circunstâncias em que não se sentem
ameaçadas, são meigas, educadas, gentis e amorosas. São amargas ou tão doces como
qualquer outra criança. Quando recebem afeto, expressam seus sentimentos com palavras e
gestos amigáveis. A agressividade delas é uma reação às diversas formas de violência a que
são submetidas. Suas ações nem sempre objetivam agredir: “Roubar e ser preso pode servir
como um modo inconsciente de a criança chamar a atenção sobre si e seus problemas, pedir
ajuda e se punir por transgressões reais ou imaginárias”. (MUSSEN; CONGER; KAGAN, 1997)
Referências
DIREITOS da criança e do adolescente. Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo. São Paulo:
IMESP, 1993.
CONSELHO Nacional de Saúde. Resolução nº196/96 sobre Pesquisa Envolvendo Seres Humanos. Bioética,
Brasília, v.4, n.2, p.15-25, 1996.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979.
ERIKSON, E.H. O ciclo vital: epigênese da identidade. In: ERIKSON, E.H. Identidade, juventude e crise. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1987. p.90-141.
ERIKSON, E.H. Oito idades do homem. In: ERIKSON, E.H. Infância e sociedade, 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar,
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MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 2.ed. São Paulo/Rio de Janeiro:
Hucitec/Abrasco, 1993.
MUSSEN, P.H.; CONGER, J.J; KAGAN, J. Desenvolvimento na média meninice. In: Desenvolvimento e
personalidade da criança. 4.ed. São Paulo: Harbra, 1977. p.351-402.
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Advance Nursing, Oxford, v.35, n.1, p.42-49, jan. 2001.
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Pessoas em situação de rua no Município de São Carlos-SP:
subsídios à reflexão participativa em torno das possibilidades de superação de
dimensões econômicas e extra-econômicas de vulnerabilidade
Juliana Sartori
Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos; integrante do o Núcleo de
Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED); bolsista do Projeto de Extensão financiado pela
PRo-Ex.
[email protected]
Karina Granado
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Engenharia Ambiental da Universidade de São Paulo PPGSEA/USP; integrante do o Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED),
integrante do Projeto de Extensão financiado pela PRo-Ex.
[email protected]
Lassana Sano
Graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos; integrante do o Núcleo de
Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED); bolsista do Projeto de Extensão financiado pela
PRo-Ex.
[email protected]
Resumo:
A população em situação de rua, grupo de vulnerabilidade extrema, é invisível aos
olhos da sociedade que o despreza por desconhecer e ignorar o fator humano. O
presente trabalho foi baseado em Projeto aprovado pela Pró-Reitoria de Extensão da
Universidade Federal de São Carlos – PROEX-UFSCar, de iniciativa do Departamento
de Sociologia que primou por três eixos de pesquisa: 1) O entendimento de si como
sujeitos de direitos; 2) A centralidade do trabalho na vida social e 3) A riqueza do
conhecimento empírico na interpretação ambiental: a pessoa em situação de rua e o
seu potencial de prestação de serviços ambientais no Município de São Carlos-SP. As
oficinas realizadas forneceram subsídios preliminares de análise e serão discutidos
nesta oportunidade.
Palavras-chave: População em situação de rua; Direitos Humanos.
Introdução:
O Município de São Carlos situado no interior do Estado de São Paulo é considerado
um pólo de produção do conhecimento tecnológico e do desenvolvimento. Entretanto,
possui um número significativo de pessoas em situação de rua, que acaba refletindo um
paradoxo: mesmo diante das teias do progresso, existe um grupo em situação de risco e
de vulnerabilidade extrema, demonstrando um esfacelamento das relações sociais.
A invisibilidade social do grupo em estudo parte tanto sociedade (que ignora ou
desconhece as reais necessidades), quanto do Poder Público (que não garante seus
direitos básicos). Então, por mais que a miserabilidade seja pauta dos discursos
políticos, essa preocupação não é retratada nas rotinas cotidianas, pois os significados
são diversos daqueles. Essa situação é naturalizada e legitimada através da
culpabilização das pessoas vulneráveis pela situação em que se encontram.
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É de grande importância conceituar o termo pessoas em situação de rua para iniciarmos
o debate. A palavra pessoas indica pertencimento à humanidade, homogeneidade,
categorização dessa população como seres de direitos, por mais que estejam isentos
deles. Mas além dessa caracterização de unidade, pessoas está no plural para indicar a
heterogeneidade dos indivíduos que constituem essa população; em situação, porque o
fato que um indivíduo esteja vivendo nas ruas não quer dizer, necessariamente, que será
permanente: indica uma situação transitória e de rua, é porque a população em destaque
faz do especo público o seu local privado.
Essa conceituação encontrada na obra de Mattos (2006) reflete a heterogeneidade dessa
população, mostrando a necessidade de caracterizar as diferenças das pessoas que estão
em situação de rua, e não simplesmente agrupá-los em uma única categoria: a do
morador de rua.
(...) a população em situação de rua é bastante heterogênea. Tal
heterogeneidade está ligada a alguns aspectos, como as peculiaridades
da situação de rua nas diversas regiões brasileiras e a infinidade de
histórias de vida desses indivíduos em uma mesma região.”
(MATTOS, 2006, p.38).
Este grupo não se encaixa no padrão de normalidade dos valores hegemônicos e, para
que a normalidade possa seguir seu curso, o grupo acaba por tornar-se excluído e
invisível. A formulação do modelo moral dos estabelecidos (ELIAS & SCOTSON,
2000) constitui-se da combinação da tradição, influência e autoridade (LEITE, 2005) e,
visando manter a ordem, os estabelecidos têm que legitimar a sua dominação
inferiorizando quem não se enquadrar naquilo que denominam ‘normal’, ou seja, os
outsiders precisam aceitar e interiorizar o estigma (Goffman, 1978) imposto pelo grupo
dominante que os rotulam como “vagabundo”, “desgraçado”, “desprezível”, “sujo”,
“imprestável”, “bêbado”, entre outros.
Diante desse quadro, formulou-se a iniciativa de um Projeto que buscava vincular os
saberes científicos da Academia e os da população em estudo que, junto a uma parceria
com o Poder Público, visava formular sugestões capazes de subsidiar políticas públicas
includentes, além de fortalecer os laços entre Universidade, Sociedade Civil e o
Executivo Municipal. Para tanto, a Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal
de São Carlos – PROEX-UFSCar, aprovou o projeto do Departamento de Sociologia,
que em conjunto com parceiros externos (Secretaria de Cidadania e Assistência Social
da Prefeitura de São Carlos e um grupo de voluntários que assistem a população em
situação de rua1), elaborou atividades participativas com o grupo vulnerável com o
objetivo de permitir ao referido grupo vocalizar suas necessidades e, assim, dar
visibilidade da sua condição atual.
O projeto “Pessoas em situação de rua inseridas no Município de São Carlos-SP:
subsídios à reflexão participativa em torno das possibilidades de superação de
dimensões econômicas e extra-econômicas de vulnerabilidade” foi fragmentado em
três blocos de trabalho:
1) O entendimento de si como sujeitos de direitos;
2) A centralidade do trabalho na vida social e
1
Posto de Rua “Eurípedes Barsanulfo” surgiu em Maio de 2002 e desde então, semanalmente, fornece alimento,
roupas, calçados e kits de higiene.
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3) A riqueza do conhecimento empírico na interpretação ambiental: a pessoa em
situação de rua e o seu potencial de prestação de serviços ambientais no Município de
São Carlos-SP.
As experiências e resultados obtidos serão detalhados sucintamente a seguir.
1. O entendimento de si como sujeito de direitos:
As pessoas em situação de rua são vítimas de um processo de estigmatização que marca
o sofrimento social ao longo de suas trajetórias, levando-as a se esquecerem das suas
memórias, raízes, sonhos, capacidades, simbologias.
Esta primeira parte do projeto visou trabalhar na desconstrução do estigma interiorizado
pela população em situação de rua participante do projeto, procurando resgatar em cada
indivíduo o reconhecimento de sujeitos portadores de direitos que são, e não mais como
seres desacreditados.
Preferiu-se atividades lúdicas. Primeiramente foram utilizados bonecos gigantes que,
através de uma fala, era apresentado o contexto que o grupo vivencia, sugerindo
reflexões próprias acerca do estigma, auto-estima e reconhecimento do próprio valor.
Em outra atividade, foi realizado um teatro interativo, almejando que o grupo se
identificasse com a peça apresentada pelos pesquisadores, incitando os quadros de
memória dentro das multiplicidades e riquezas das experiências humanas por eles
vividas. Os elementos da narrativa continham uma versão clássica de êxodo rural
devido o rompimento dos laços familiares e uma tentativa frustrada de ganhar a vida nas
cidades. A exposição inicial, voltada para uma memória de emigração rural, partiu de
uma pesquisa inicial (prévia ao projeto) e que indicou esses vínculos na maioria dos
indivíduos integrantes do grupo vulnerável. O objetivo da dinâmica era resgatar as
raízes e trajetórias que muitas vezes ficaram esquecidas em um passado feliz ou
doloroso e longínquo e recupera, na discussão, o valor intrínseco dos hábitos. A busca
dessa memória propiciar-se-ia um novo olhar sobre as agruras presentes, da sua relação
com o território e da auto-estima.
Atividade (06.04.08): “Estar no
mundo e ser no mundo: os sentidos
e significados do ser, do fazer, do ter e
dos relacionamentos sociais”.
Atividade (13.04.08): “Origem e
trajetória: raiz, caminhos, buscas,
percalços e horizontes”.
Em um terceiro momento, buscou-se um contato efetivo com a rotina diária das pessoas
que utilizam a rua como espaço privado. Os pesquisadores puderam observar as
dificuldades nas mais simples atividades do “dia-a-dia”, tal como dormir, comer, acesso
à água potável, manter a salvo os poucos pertences de valor, banho, lavar roupa, obter
qualquer tipo de fonte de rendas (seja por mendicância, artesanatos, reciclagem ou
“bicos”), lazer e a questão dos vícios, fato presente em alguns dos indivíduos que os
pesquisadores mantiveram contato. O projeto proporcionou a constatação de que a
população em situação de rua reproduz - de maneira precária - no espaço público, todas
as atividades atinentes a um contexto privado.
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Nas entrevistas realizadas, todos são conhecedores das dificuldades a serem enfrentadas,
mas nas falas obtidas, a palavra ‘esperança’ fora sempre recorrente:
(...) só eu sei o quanto a gente pasta na rua viu...Mas mesmo assim eu
tenho esperança que vai melhorá, senão...senão eu já tinha partido pro
caminho errado de vez2 (...) (g.n.);
(...) Eu ainda tenho fé e esperança que uma oportunidade vai bater na
minha porta3 (olhar para cima – suspiro - e, logo após, risos pelo
trocadilho com a palavra ‘porta’) (g.n.);
(...) Sabe o que me dá força pra enfrentá tudo isso? Sabê que eu não
nasci assim, na rua qui nem bicho...(olhar para o chão) e que então eu
vou conseguir! Sei que vai sê difícil, mais ainda tenho esperança, viu!
Num vô desisti não4!! (g.n.).
2. A centralidade do trabalho na vida social:
O segundo bloco do projeto de extensão teve importância fundamental. Não cabe neste
momento discorrer sobre todos os motivos que levaram o indivíduo a viver em situação
de rua. O fato é que, dentre tantas hipóteses, a que se faz comum a todas as histórias é a
falta de trabalho.
A limitação econômica (advinda por conta do desemprego) é apenas um dos fatores que
mantém a população atrelada à miséria onde, muitas das vezes, reduz drasticamente
qualquer possibilidade de reação. É no trabalho que se mantém a constituição da
identidade. Sem ele o sujeito não se insere socialmente e permanece sem dignidade.
Com isso e no sentido de resgatar as habilidades, experiências e aspirações para
inclusão social e do trabalho, é que as oficinas direcionaram no resgate das profissões,
ofícios ou saberes, assunto que alguns confessaram há muito terem se esquecido desta
possibilidade.
Atividade (25.05.08): “Identidade
Ocupacional: experiências, habilidades e
disposição para reintegração no mundo do
trabalho
Atividade (20.06.08): “Grupo elaborando
os próprios currículos e cartões oferecendo
seus serviços”(laboratório informática
UFSCar)
2
Entrevista ‘C’ (06.04.08)
Entrevista ‘E’ (06.04.08)
4
Entrevista ‘H’ (13.04.08)
3
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Atividade (25.07.08): “Montagem de
porta-cartões (das profissões mapeadas
do grupo) para fixação em lugares possíveis”.
A primeira oficina deste segundo bloco de atividades primou, também, pelo resgate de
trabalhos anteriores. Com a população em situação de rua na cidade de São Carlos não
foi identificado nenhum caso de que o indivíduo tenha nascido em situação de rua:
todos eles, antes da situação atual, possuíam trabalho, ofício ou profissão e com eles se
sustentavam. Identificado este passado de labor, foi sugerido que cada um pensasse e
verbalizasse alguma atividade futura que lhe traria alegria ao desenvolver. A riqueza
nos depoimentos revelou homens que ainda possuem sonhos, na maioria da vezes,
possíveis de serem alcançados. Ato contínuo, a Secretaria de Cidadania e Assistência
Social da Prefeitura de São Carlos preparou encontros com representantes do Balcão de
Emprego oferecendo capacitação inicial para que a imagem do indivíduo
correspondesse às exigências do mercado de trabalho atual (etiqueta, orientações sobre
o ‘portar-se’ perante uma entrevista, vestuário, vícios, etc.). Iniciou-se um trabalho de
identificação dos indivíduos que pudessem, o quanto antes, realizarem curso de
capacitação para futura formação profissional, quer seja relacionada com a atividade
atual, quer seja com o desempenho de novas profissões.
O projeto realizou outras atividades focadas ao trabalho. Em uma delas, os moradores
de rua foram até o laboratório de informática da Universidade Federal de São Carlos,
após as autorizações pertinentes, para que eles próprios confeccionassem seus currículos
e alguns cartões de visita (para atividades como pintor, jardineiro e pedreiro).
O contato com a tecnologia (muitos pela primeira vez) desdobrou o interesse de voltar a
estudar e a constatação da importância da qualificação nos dias de hoje, fato colocado
em prática com a ajuda da Prefeitura Municipal que disponibilizou à esta população,
professores de português e matemática, duas vezes na semana, tanto para a alfabetização
como para reforço e incentivo de matricularem-se regularmente nas instituições
competentes.
3. A riqueza do conhecimento empírico na interpretação ambiental: a pessoa em
situação de rua e o seu potencial de prestação de serviços ambientais no Município
de São Carlos-SP
Essa última etapa do projeto enfatizou a importância das representações sociais em
torno das águas, do verde, dos animais e do lixo. O mérito atribuído à relação da
população em situação de rua com o meio ambiente está intimamente ligado às suas
práticas sociais de reprodução do seu universo, apesar de não ser assim reconhecido
pela sociedade.
As atividades propiciaram a descoberta de muitos saberes ambientais e das mais
diversas ordens. Em visita ao Parque Ecológico, eles demonstraram um grande interesse
pelas diversas espécies de plantas e animais, muitas vezes pela trajetória rural, pela
infância junto à natureza; outras vezes, os saberes advieram do ‘trecho’, ou seja, pelo
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tempo que vive nas ruas e em tantos lugares diferentes, adquiriram um vasto
conhecimento sobre plantas e animais.
O mesmo se diga para o lixo. Em atividade pelas ruas de São Carlos, foram
identificados pontos onde o lixo se acumula (ironicamente na maioria das vezes) em
áreas localizadas ao lado de bairros residenciais de alto padrão, onde pudemos constatar
que fora produzido pelos próprios estabelecidos. O lixo, para esta população vulnerável,
muitas das vezes é fonte de renda e, na verdade, acabam ‘limpando’ muitas áreas,
situação que a sociedade ignora.
Atividade (27.07.08): “Parque Ecológico
em São Carlos – leitura de painel sobre o
impacto da educação ambiental na
sociedade”.
Atividade (27.07.08): “Parque Ecológico
São Carlos – saberes em torno do verde e
animais”.
Atividade (12.08.08): “Reciclagem”.
O histórico de conflito social que vivenciam (territorialização e desterritorialização)
acaba por exigir desta população, diariamente, que as estratégias de sobrevivência5
sejam adaptadas às rotinas que vivem. O simples fato de sair em busca de água potável
(dessedentação, banho, cozinhar e higiene em geral), de conhecer local seguro para
dormir, de saber onde encontrar materiais para reciclagem (fonte de renda), esconder-se
da chuva, frio e calor, lidar com as doenças que são suscetíveis, são saberes reveladores
de grande importância social, mas, devido ao preconceito ou desconhecimento, a
população acaba desacreditada no seu potencial.
5. Considerações Finais:
O projeto de Extensão realizado pela Universidade de São Carlos em parceria externa
da Secretaria de Cidadania e Assistência Social do Município e do Posto de Rua
“Eurípedes Barsanulfo” unificou a vocalização das demandas das pessoas que vivem em
5
Vale a pena evidenciar apenas recentemente foi disponibilizado às pessoas em situação de rua no
município de São Carlos que as mesmas permaneçam no albergue noturno ou, durante o dia, em uma casa
cedida pela Prefeitura e administrada por assistentes sociais da Secretaria de Cidadania e Assistência
Social. Lá recebem comida, possuem lugar para lavar suas roupas e participam de atividades/oficinas
incentivadoras para permanecerem temporalmente longe das ruas, constituindo um primeiro passo para a
inclusão.
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extrema vulnerabilidade e que são simplesmente ignoradas pela sociedade como um
todo. A importância desse projeto justificou-se na medida em que despertou as reais
necessidades, bem como demonstrou, indubitavelmente, o valor e potencial do grupo
em situação de rua.
Referências Bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução: Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico / Pierre Bourdieu.- Lisboa : Difel, 1989.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor.1993. 307 p.
ELIAS, N. & SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações
de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução, Vera Ribeiro.Tradução do
posfácio à edição alemã, Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. 187p.
LEITE, Izildo Correa. Representando a miséria e os miseráveis: desconhecimento,
piedade de distância. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP,
Idéias-Campinas, 2005, p. 357-410.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 2ª
Ed. Tradução: Márcia B. de M.L.Nunes. Zahar Editores, 1978.
MATTOS, R. M.. Situação de rua e modernidade: a saída das ruas como processo de
criação de novas formas de vida na atualidade. 2006. 244 f. Dissertação (Mestrado em
Psocologia). Universidade São Marcos, São Paulo. 2006.
MATTOS, R. M.; FERREIRA, R. F. Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua. Psicologia & Sociedade.
Print ISSN 0102-7182.
Psicol.
Soc. vol.16 no.2 Porto
Alegre May/Aug. 2004.
Universidade São Marcos.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA:
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Políticas públicas e homelessness: uma discussão conceitual sobre a
pobreza
Aline Ramos Barbosa
Universidade Federal de São Carlos- UFSCar
[email protected]
Resumo: O foco de análise deste trabalho é a discussão metodológica da categoria pobreza,
que deve ser entendida, entre outras perspectivas de análise, como acesso a bens de consumo
e a redes de proteção social estatal. Dessa forma, pobreza aqui é entendida como uma
categoria não-homogênea, visto que há diferentes níveis de acesso aos recursos
supracitados. Na mesma linha, será discutida a categoria da população em situação de rua,
sua heterogeneidade – que necessita ser levada em conta para a criação de políticas públicas
para este segmento – e são trazidos, ao final, dados sobre este segmento populacional
referentes ao município de São Carlos, como forma de trazer à discussão argumentos, com
bases empíricas, que desmistificam a categoria morador de rua elaborada no imaginário
social.
Palavras-Chave: Políticas Públicas; Pobreza; Homelessness.
I- O peso das políticas públicas na mensuração da pobreza
Este trabalho procura trabalhar com duas linhas de argumentação: investigar o peso
que as políticas públicas têm na renda (ainda que de maneira limitada e bastante generalizada)
e apresentar uma hipótese de quadro comparativo para a detecção da pobreza (um trabalho
ainda embrionário), a saber:
a) o papel dos serviços públicos na composição da cesta de sobrevivência do
trabalhador. É dado que o salário na moderna economia de mercado cumpre funções
diferentes dependendo do lugar em que é observado na óptica da produção. Como o exército
de trabalhadores é maior que o volume de postos de trabalho (agravado ainda pela introdução
constante de novas técnicas redutoras do uso de mão de obra), há um risco constante de
diminuição do valor pago aos trabalhadores na forma salário.
O impacto dessa diminuição da renda dos trabalhadores, principalmente nos
desequilíbrios possíveis entre superprodução e subconsumo (como dinâmica das crises
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2
cíclicas) levou às formulações de Keynes, ao ferramental do compromisso fordista, ou seja, a
pressão reducionista sobre os salários praticada pelos empresários aparece equilibrada pelo
acesso a bens que saíram da cesta privada de consumo dos trabalhadores e passaram a ser
ofertados pelo Estado como direitos sociais.
Há, portanto, uma enorme diferença na mensuração da pobreza quando olhamos uma
sociedade que possui esses mecanismos de redistribuição de outra onde eles são inexistentes.
Deve-se acentuar também a questão de que os indivíduos estão agregados no domicílio1 –
lugar onde de fato incide a renda dos trabalhadores (remuneração de uns e consumo de todos)
e onde se projeta grande parte das políticas compensatórias.
b) quadro comparativo para a detecção da pobreza – partindo do anteriormente
exposto, e tomando como base a existência fundamental do domicílio (família, lar ou unidade
de consumo, foco das políticas públicas), nos aventuramos a apresentar um quadro ou modelo
de tipificação para detectar a condição de pobreza numa dada sociedade. Consideramos que
pobreza significa genericamente carência:
Assim, a classificação de indivíduos e famílias segundo suas condições de
vida tende a ser realizada por meio da negação, ou seja, são pobres
aqueles que, por exemplo, não dispõem de uma renda mínima
necessária à subsistência ou têm atendimento deficiente de suas
necessidades básicas. Isso faz com que os conceitos e medidas existentes
busquem estabelecer um padrão que permita classificar pessoas ou famílias,
por meio de um ou mais atributos, que representa uma proxy do nível de
bem-estar. (Ferreira; Dini; Ferreira, 2006:5). (negrito meu)
Sendo assim, este quadro, de elaboração própria, que relaciona acesso a bens públicos, dependência do
Estado, patrimônio e renda, consegue tipificar os diferentes níveis de pobreza:
QUADRO 1. Bens privados e bens públicos: níveis de pobreza e de dependência do Estado.
Patrimônio
Bens de
produção
Moradia
Renda
Investimentos
Ótima
Média
superior
Sim
Possível*
Sim
Sim
Média
inferior
Não
Inferior
Exclusão
Não
Não
Situação
Salários
Bens
públicos
Dependência do
Estado
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
baixa
baixa
Não
Não
Sim
Sim
Alta
Não
Não
Não
Não
Possível*
Não
Sim
Possível*
Alta
Altíssima
Pelo quadro é levada em consideração tanto a posse privada de bens quanto o acesso à
proteção pública. A classe inferior caracteriza um alto grau de carência, depende
exclusivamente do acesso aos salários, mas pode encontrar-se facilmente em situação de
desemprego. Como, em geral, aufere uma baixa remuneração acaba dependendo em alto grau
dos serviços públicos (incluindo as políticas de renda auxiliar dos programas
governamentais). A última categoria é a mais preocupante e espelha a condição de exclusão
social. Nesta estão os indivíduos que aparecem fora do mercado de trabalho e também da
proteção do Estado – alguns desses indivíduos conseguem acesso a algum tipo de benefício e
assistência dos poderes públicos, mas a maioria encontra-se fora dessa área de abrangência,
em condições abaixo do mínimo da subsistência e da proteção nos moldes de uma sociedade
moderna.
1
Excetuando-se o caso também aqui debatido dos homeless.
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3
Sendo assim, acredita-se necessário uma melhor exploração dos níveis e
características da pobreza. De acordo com Ferreira; Dini; Ferreira (2006: 6), em relação aos
modos que comumente medimos a pobreza, temos:
É claro que há diversas outras condições que podem favorecer ou dificultar
seus movimentos em relação à linha de pobreza – como posição no ciclo de
vida, características familiares, local em que reside e distintivos étnicos,
citando apenas algumas. Porém, isso só reforça a idéia de que as medidas
tradicionais de pobreza não são suficientes para caracterizar o
fenômeno com precisão. (negrito meu)
Diante dessa argumentação, adiciono à discussão o exemplo contemporâneo, que
acreditamos estar o mais dissociado possível das redes que o permitiria ter acesso à proteção
social: o caso do homeless.
II-População de Rua no Brasil contemporâneo
A questão da pobreza ultrapassa os limites da questão econômica: em uma sociedade
capitalista a questão do trabalho e geração da renda própria está vinculada também à
dignidade humana. Esta ética do trabalho polariza os indivíduos em trabalhadores/honestos e
vagabundos/marginais, ou seja, a identidade individual é fortemente marcada pela inserção no
mundo do trabalho, que não se trata apenas de uma relação de vontade de “ter a carteira
assinada”.
Podemos perceber, também, que além dessa identificação externa, que estigmatiza
esses indivíduos, há um modo de vida que é compartilhado por todos. Contudo, apesar dessas
semelhanças, este é um grupo heterogêneo. Vieira, Bezerra e Rosa vão trabalhar com três
categorias para classificá-los em suas diferenças e semelhanças, quais sejam:
Ficar na rua reflete um estado de precariedade de quem, além de estar sem
recursos para pagar pensão, não consegue vaga em albergue. Essas pessoas
procuram ajuda nos plantões de serviço social (...). Rejeitam violentamente a
identificação com o morador de rua, procurando distanciar-se dele (...)
Estar na rua expressa a situação daqueles que adotam a rua como local de
pernoite e já não a consideram tão ameaçadora. Começam a estabelecer
relações com pessoas de rua e reconhecer novas alternativas de
sobrevivência (...). Tentam se diferenciar dos moradores de rua
apresentando-se como desempregados.
Ser da rua [situação em qual] o cotidiano passa a ser pautado por
referências como as bocas de rango, instituições assistenciais, determinados
lugares da cidade onde se reúnem as pessoas na mesma situação. A rua se
torna espaço de moradia de forma praticamente definitiva, ainda que
ocasionalmente possa haver alternância com outros lugares de alojamento.
(pp. 94-5) (negrito meu)
Sendo assim, estas autoras apresentam um esquema que demonstra a relação que essas
pessoas têm com a rua:
QUADRO 2. Esquema das situações de permanência na rua
Moradia
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FICAR NA RUA
pensões, albergues,
alojamentos
(eventualmente na
ESTAR NA RUA
rua, albergues,
pensões
(alternativamente)
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SER DA RUA
rua, mocós
(eventualmente
albergues, pensões)
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4
Trabalho
Grupo de referência
rua)
construção civil,
empresas de
conservação e
vigilância
companheiro de
trabalho, parentes
bicos na construção
civil, ajudante geral,
encartador de jornal,
catador de papel
companheiros de rua e
de trabalho
bicos, especialmente
de catador de papel,
guardador de carro,
encartador de jornal
grupos de rua
Fonte: Vieira; Bezerra; Rosa (2004).
Ainda, é importante destacar a diferenciação que eles mesmos fazem em relação ao
grupo. Além dos grupos referenciais adotados que são diferentes (vide quadro acima), a
estigmatização também é interior ao grupo: os indivíduos que não tem um trabalho e já se
habituaram à rua de tal sorte que utilizam-na como meio de sobrevivência, sem maiores
preocupações com a sua auto-sustentação são chamados pelos outros de maloqueiros2.
III- População em Situação de Rua no município de São Carlos
O município de São Carlos tem o início de sua história demarcado no final do século
XVIII, com a abertura de uma trilha que levava às minas de ouro de Cuiabá e Goiás. Em
começo de 1831, com a demarcação da Sesmaria do Pinhal, começou a existir o núcleo de
povoamento que deu origem à cidade. Na data da fundação, 4 de novembro de 1857, a
povoação era composta por algumas pequenas casas ao redor da capela. A cidade São Carlos
foi elevada à categoria de vila em 1865 e a Câmara Municipal foi empossada. Em 1874, a vila
contava com 6.897 habitantes e destacava-se na região pelo seu rápido crescimento e
importância regional. Em 1880, passou de vila à cidade e em 1886, com uma população de
16.104 habitantes, já possuía ampla infra-estrutura urbana.3
Hoje, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano (1991-2000)4, São Carlos tem
uma área de 1.143,9 km², com densidade demográfica de 168,7 hab/km². É um município do
interior de São Paulo e, portanto, conta com altos índices de desenvolvimento. Está situado a
213,2 km da capital, dividindo com Araraquara (município vizinho) o referencial de cidade de
médio porte para dos demais municípios menores da região. Tem cerca de 190 mil habitantes
e apresentou na última década uma taxa média de crescimento de 2,32% ao ano, sendo,
95,04% direcionada à área urbana. Ainda, os domicílios possuem: 99,6% água encanada;
99,9% energia elétrica e 99,7% coleta de lixo (somente em domicílio urbanos). Seu índice de
desenvolvimento humano é de 0,841, apresentando boas condições em educação (0,928),
longevidade (0,801) e renda (0,795):
No período 1991-2000, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
(IDH-M) de São Carlos cresceu 4,73%, passando de 0,803 em 1991 para
0,841 em 2000. A dimensão que mais contribuiu para este crescimento foi a
Educação, com 60,0%, seguida pela Longevidade, com 20,9% e pela Renda,
com 19,1%.
Neste período, o hiato de desenvolvimento humano (a distância entre o IDH
do município e o limite máximo do IDH, ou seja, 1 - IDH) foi reduzido em
19,3%. Se mantivesse esta taxa de crescimento do IDH-M, o município
levaria 16,6 anos para alcançar São Caetano do Sul (SP), o município com o
melhor IDH-M do Brasil (0,919).
2
Segundo o Glossário apresentado no final deste livro (Vieira, Bezerra e Rosa, 2004: 162), maloqueiro é o
“termo usado entre a população de rua para indicar o que, entre eles, não trabalha”.
3
Informações encontradas no site da cidade: <www.saocarlos.sp.gov.br>.
4
Disponível em: <http://www.fjp.gov.br/produtos/cees/idh/atlas_idh.php >.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
5
São Carlos, então, ocupa a 63ª posição em relação aos municípios brasileiros – sendo
que 62 municípios (1,1%) estão em situação melhor e 5444 municípios (98,9%) estão em
situação pior ou igual. No Estado de São Paulo, ocupa a 17ª posição – sendo que 16
municípios (2,5%) estão em situação melhor e 628 municípios (97,5%) estão em situação pior
ou igual. Ou seja, segundo a avaliação do Atlas de Desenvolvimento Humano, o município
ocupa posições boas em relação à União e ao Estado de qual faz parte. Todavia, esses índices,
assim como demais índices encontrados que são representativos do desenvolvimento das
cidades brasileiras, não levam em consideração a população em situação de rua no
município.
Segundo os dados da Secretaria de Cidadania e Assistência Social do município de
São Carlos5, neste ano de 2007, está cadastrado na SMCAS (Secretaria Municipal de
Assistência Social) o número de 89 (oitenta e nove) pessoas em situação de rua na cidade
de São Carlos.
IV- O Perfil médio da População em Situação de Rua em São Carlos - SP
Diante da análise desses dados coletados na Secretaria de Cidadania e Assistência
Social de São Carlos, podemos descobrir o perfil médio da população de rua de São Carlos.
São majoritariamente homens (84,3%), na fase adulta (24-40 anos com 32,58% e 41-60 com
42,69%), com ensino fundamental incompleto (31,47%), além de apresentarem um número
significativo com ensino fundamental completo (15,74%). Contrariando o senso comum, que,
muitas vezes, os associam às pessoas que migram do nordeste para a região sudeste, eles são
em sua maioria provenientes do sudeste (51, 69%) ou mesmo, são munícipes de São Carlos
(25,84%). A grande maioria apresenta problemas de saúde (assim denominados pela
Secretaria de Cidadania e Assistência Social do município), ou seja, apresentam dependência
química (64,04%) e transtorno mental (14,60%). Muitos deles têm familiares em São Carlos
(60,67%). O que aponta para causas outras de permanência na rua além da tradicional
explicação (perda de emprego e baixo poder aquisitivo): há muitos que lá estão por terem
sofrido traumas ou brigas familiares e, apesar dos mesmos ainda morarem no mesmo
município, os laços familiares e de conseqüente solidariedade não se encontram mais
estabelecidos.
Embora haja algumas semelhanças entre eles, este é um grupo heterogêneo, que
precisa ser melhor estudo afim de que as políticas assistenciais possam melhor atender suas
demandas. Tradicionalmente, temos de aparato de atendimento da população de rua duas
grandes matrizes: a) assistencialismo governamental; b) assistencialismo da sociedade civil,
especificamente, de orientações religiosas.
Outro ponto importante a ser destacado, é a diferença entre as redes existentes e a
postura da população de rua em relação às mesmas, que pode ser tanto na rede (apropriação
de bens e serviços providos por instituições outras não organizadas por eles) e em rede
(organizações auto-geridas por este segmento social). No município de São Carlos, não há
indícios de uma forte organização da população de rua. Claro que existe uma imensa rede de
informação entre eles, regras próprias de convivência e demais compartilhamento de
experiências/vivências/comportamentos que os aglutina como, em alguma medida,
semelhantes.
V- À guisa de conclusão
5
Os dados aqui apresentados não foram coletados com o norteamento de uma pesquisa. Foi realizado um
levantamento a posteriori dos dados existentes nos prontuários de atendimentos da Secretaria, usados na triagem
da população em situação de rua, para caracterizar minimamente esse segmento.
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Vivemos numa sociedade de radicalização de conceitos fundantes da modernidade e
temos que conviver com a frustração da profecia não realizada: a modernidade não trouxe
todas as benesses prometidas, muito pelo contrário, proporcionou uma imensa disparidade na
apropriação dos bens produzidos. Essa falta de eqüidade distributiva provoca tensões que
necessariamente precisam ser resolvidas no domínio público, ou seja, no campo da política.
No entanto, essa problemática carece de repostas institucionais.
A hegemonia neoliberal encontrou perfeita legitimação no individualismo
radicalizado, expresso no conceito de self made man. Este ideário aqui criticado, encontra
correspondência na necessidade de canalizar a fúria ao diferente, que não tem capacidade de
se “auto-produzir” e, portanto, é um consumidor falho (Menezes, 2005). Essas classes
perigosas estão aglutinadas sob o estigma de máxima exclusão social: são passíveis, inclusive,
de extermínio.
Todo este cenário mundial, somando à modernização excludente do caso brasileiro,
traz à tona disparidades gigantescas, que, além de eticamente nebulosas, são deletérias à
estabilidade da política nacional e não permitem a realização de um projeto de futuro. Uma
das parcelas mais afetada com esses efeitos deletérios, e, praticamente destituída de sua
condição humana, é o segmento da população de rua. A hipótese aqui levantada é a que esse
segmento tem somente como salvaguarda última de sua cidadania os documentos de
identificação que alguns possuem. Ou seja, eles são alienados de seus direitos civis, já que
não podem ir e vir livremente pelos espaços públicos; não possuem força política como grupo
de pressão e raramente votam (direitos políticos) e, por fim, não possuem acesso aos serviços
de saúde, educação, lazer (direitos sociais) proporcionados já precariamente pelo Estado aos
cidadãos honestos e trabalhadores.
Sempre estigmatizados e associados por todos ao alcoolismo e às doenças metais,
mesmo por quem trabalha de perto com esse segmento, eles são vitimizados. Sem dúvida, as
condições econômicas são capazes de influenciar a permanência nas ruas e até ditar regras de
sobrevivência, no entanto, eles são, acima de tudo, pessoas que, em alguma medida,
escolheram essa vida alternativa. Esse argumento em hipótese alguma isenta o Estado se seu
papel social, todavia, é necessário não perder do horizonte de análise as vontades próprias
dessas pessoas. Como diria Freire, pessoas não são objetos, nós, pesquisadores/as, que
construímos juntos com essas pessoas a análise de nosso objeto: a realidade concreta.
Sendo assim, estes dados aqui apresentados vêm somente trazer embasamento
empírico para constatação de que o perfil médio do morador de rua é diferente do que o senso
comum prevê. Estes dados contradizem basicamente todas as informações que os leigos no
assunto julgam ter sobre esse segmento da população.
Somando-se a estas observações, podemos adicionar à discussão sobre a categoria
pobreza e seus níveis de acesso a bens. Essas duas discussões complementares indicam para a
necessidade de pensarmos melhor nossas categorias heurísticas e sistematicamente
colocarmos as mesmas à prova, com metodologias que envolvam o empírico. Afinal, estes
apontamentos aqui feitos para mostrar incongruências conceituais demonstram que as
categorias nada mais são do que hipóteses comprimidas em poucas palavras e, assim sendo,
necessitam serem constantemente postas à prova e, se necessário for, reelaboradas.
Diante deste contexto, este trabalho sinaliza para a necessidade de estudo dessa
configuração, pois, faz-se necessário entender quais os mecanismos que permitiram tantos
avanços nos direitos sociais nas últimas décadas. O que faria tal avanço ter-se dado? Seria ele
parte de uma nova visão de gestão da questão social? Estariam tais extensões de cidadania
ligada ao programa de governo de um presidente de origem popular e, portanto, com dívidas
morais e de trajetória pessoal com setores menos privilegiados da sociedade? Ou seria, ainda,
parte de um projeto de modernidade?
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Infelizmente, o tempo de realização desta pesquisa ainda é demasiadamente curto e
existe falta de distanciamento temporal desse contexto atual. Assim sendo, é complicado
tentar responder a estas indagações. Dessa forma, mesmo sem chegar a conclusões
satisfatórias, neste primeiro momento, este trabalho é considerado o resultado exploratório de
uma questão muito mais complexa e servirá de norteador para futura investigação a respeito
do tema aqui levantado.
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Políticas públicas para a população infanto-juvenil em situação
de rua: tensões entre os discursos e as práticas
institucionais e sua população-alvo
Ana Paula Serrata Malfitano
Doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e Terapeuta
Ocupacional e Pesquisadora do Núcleo da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) do
Projeto Metuia
[email protected]
Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da USP
[email protected]
Resumo: O presente trabalho traz análises sobre as incongruências entre o desenvolvimento
de políticas públicas voltadas para a população infanto-juvenil em situação de rua e os
objetivos e as necessidades de sua população-alvo. Apresenta-se parte dos dados da tese de
doutoramento da primeira autora, na qual se realizou uma pesquisa sobre a política para
essa população desenvolvida no município de Campinas, no período de 2001 a 2006,
interrogando se houve o estabelecimento de inovações sociopolíticas e a produção de
mudanças na vida de seus usuários. Na tese, realizaram-se entrevistas semidirigidas com
gestores, coordenadores e técnicos dos serviços, bem como junto aos usuários. Também
efetuaram-se grupos de atividades com os jovens em instituições, assim como observação
participante. Lançou-se mão ainda do acompanhamento de alguns jovens nas ruas.
Observou-se que a dinâmica entre os atores configura-se sob uma tensão com compreensões
nem sempre congruentes entre os objetivos institucionais e de seus usuários, gerando pouco
avanço na produção de direitos para esse grupo populacional. Apontam-se as possibilidades
e limites das políticas sociais, demarcando o desafio de as ações sociais incorporarem
metodologias inovadoras e efetivas para a promoção de direitos.
Palavras-chave: Políticas Públicas; Criança e Adolescente; Juventude; Situação de Rua.
1. Apresentação
O presente trabalho apresenta parte das reflexões da tese de doutoramento da primeira autora,
sob orientação do segundo autor, na qual se investiga a rede de serviço voltada aos meninos e
às meninas em situação de rua da cidade de Campinas, SP, no período de 2001 a 2006.
Interroga-se sobre as inovações sociopolíticas estabelecidas para o público de crianças e
adolescentes de classes populares, notadamente aqueles que vivem nas ruas. Para tanto,
realizaram-se entrevistas semidirigidas com gestores das diferentes Secretarias componentes
da rede, coordenadores e técnicos dos serviços, bem como junto aos usuários. Também
efetuaram-se grupos de atividades com os jovens nas instituições, assim como observação
participante em um equipamento da área da Saúde. Lançou-se mão ainda do acompanhamento
de alguns jovens nas ruas. Esse processo deflagrou a ausência de ações para o público juvenil,
após a maioridade, e a necessidade de um real estabelecimento de uma Política para
Juventude.
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Recorta-se, aqui, a discussão específica sobre os serviços e programas sociais para o público
infanto-juvenil em situação de rua, apontando as contradições entre os objetivos institucionais
– pautados pela política pública, pelos projetos e organizações sociais – e as necessidades
daqueles que são seus usuários.
2. Vivência nas ruas
A presença de pessoas nas ruas e o uso das ruas para uma forma de vida divergente da
padronizada socialmente, ou mesmo em confronto com a ordem social citadina (MAGNI,
2006), consistem em um temário com diferentes inferências na história e foi (e ainda é)
nomeado de múltiplas maneiras em determinadas épocas: errantes, desviantes, marginais,
vagabundos, coitados, miseráveis, excluídos, entre outros termos.
Quando se trata de crianças, adolescentes e jovens, a discussão sobre estar na rua e fazer dela
o espaço de vida e sobrevida preocupa-se com a proteção, o cuidado e a tutela daqueles que
ainda não podem responder por si mesmos, por estarem em uma condição peculiar de
desenvolvimento, conforme termos preconizados pela lei brasileira, o Estatuto da Criança e
do Adolescente (BRASIL, 1990). Cabe aqui uma importante dife renciação entre criança e
adolescente, na medida em que a situação da criança deve prever uma proteção especial. Já
para os adolescentes, assegurados pelo ECA, e mesmo para os jovens, após a maioridade, a
discussão circunscreve a esfera da autonomia e liberdade.
É comum a referência à formação de uma “cultura de rua” entre grupos de jovens nas ruas. A
cultura de rua é entendida como o desenvolvimento de hábitos e habilidades que inserem o
jovem na rua, na busca de um pertencimento a ela e ao grupo que nela está. Permanecer em
situação de rua implica buscar novos códigos e aprendizagens que demandam outros
conhecimentos, diferentes daqueles socialmente estabelecidos como prioritários e aprendidos
no contexto familiar e/ou escolar. Tais códigos remetem-se à aquisição de outros
conhecimentos, outros capitais sociais, segundo o conceito de BOURDIEU (1980).
O capital social pode ser referido como o conjunto de recursos potenciais ligados a uma rede
de relações, mais ou menos institucionalizada, de interconhecimento e inter-reconhecimento
propiciado pelo pertencimento a um grupo. Esses capitais desenvolvidos serão transformados
em recursos pessoais e coletivos para a vivência nesse novo espaço apresentado: no nosso
caso, a rua. Para PÉREZ LÓPEZ (2006) nesse novo contexto marginal, da rua, os meninos
desenvolverão “recursos adaptados”, os quais são considerados “frágeis” pela sociedade
“normativa” e que precisam ser interrompidos para sua reinserção na lógica predominante.
Porém, por um lado, os capitais sociais da via social “normativa” não são úteis para a vida na
rua; por outro lado, eles adquirem outros capitais, que são essenciais para a sobrevivência
nesse contexto, mas não são avaliados segundo a norma social “moral” (PÉREZ LÓPEZ,
2006, p. 127).
Podemos associar o pertencimento à rua como vivências que demandam novos códigos,
novos capitais, novos trânsitos, novas estadas, novas formas e possibilidades de inserção no
contexto social. Permanecer na rua exige, por exemplo, uma agilidade para as situações de
conflito com a polícia; um deslocamento constante, devido à ação dos diferentes atores
urbanos que se mobilizam para a “retirada” dessa população dos espaços públicos; uma busca
pela alimentação; a aquisição de dinheiro, para as necessidades básicas e para aquelas
compreendidas como lazer; e outras diversas demandas que se pautam dentro da produção de
um circuito próprio e particular que associa necessidade e prazer, sofrimento e sociabilidade,
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precariedade e diversão, pertencimento e ruptura. Fala-se, então, da construção de um
“circuito de sociabilidades” advindo da permanência na rua, a qual tem uma dimensão
complexa, a todo momento.
Na análise sobre a juventude, sua ocupação do espaço urbano e sua interação com a cidade,
MAGNANI (2005) define circuito a partir do uso do espaço urbano, seus equipamentos e
sociabilidades traçadas, e diz que o circuito tem uma “existência objetiva e observável: pode
ser identificado, descrito e localizado” (p. 179). ADORNO (1997/98), referindo-se
especificamente ao circuito de jovens na rua, define: “Por circuito entende-se a caracterização
de um grupo que passa a freqüentar, circular e adotar comportamentos e práticas que o tornam
reconhecido e reconhecível por outros que também freqüentam este circuito, e que
reflexivamente passam a incorporá-los como parte das suas identidades” (p. 13).
A passagem para a rua e a ruptura com a vida familiar e do bairro, notadamente em bairros
populares e empobrecidos, caracterizam-se por uma transição de liminaridade, definida por
TURNER (1994) como um momento de passagem entre uma “estrutura” e a filiação a outra
“estrutura”, podendo cristalizar-se como uma situação permanente. TERROLLE (1995)
discursa que a passagem para a rua se associa a uma “irreversibilidade”, seguindo as fases
subseqüentes e liminares de: desagregação de uma vida precedente, passagem para a vida nas
margens entre duas vidas (a anterior e a atual) e, por fim, a integração a uma nova vida com
um novo estatuto: o morador de rua. Posteriormente essa degradação social soma-se aos
outros níveis da vida social, como degradação do estado de saúde, da condição de
escolarização, de trabalho, de moradia, das relações familiares, das relações na rua e outras
dimensões, caracterizando uma identidade de “ser de rua”, a partir de uma vida vivenciada à
margem daquela formalmente estabelecida, compondo novas relações de tempo, espaço e
pertencimento.
Comumente faz-se uma leitura sobre a vida nas ruas como características identificadas apenas
com o sofrimento, a precariedade e onde as necessidades básicas não são supridas. Esses
fatores são evidentemente verificados quando se fala sobre as más condições de saúde física
desse grupo (SCANLON, 1998), como as baixas condições nutricionais que apresentam, as
inadequadas condições de higiene e indumentárias, segundo o padrão social; as
vulnerabilidades psíquicas vivenciadas pelos episódios de violência física e simbólica –
segundo PANTER-BRICK (2002) as questões de saúde mental passam pela vulnerabilidade
psicológica e resiliência em curso; além da vivência de situações de sofrimento diversos,
como estar sob as variações climáticas, submetidos à permanência na chuva e no frio, dentre
muitos outros fatos por eles relatados e vivenciados.
Reconhecendo todo a veracidade do quadro acima apresentado, aponta-se, contudo, há a
necessidade de não demarcar esse grupo como um “grupo sociológico único” (ALVIM,
2001). Dentro das contradições, multiplicidades e vivências no universo da rua, alguns autores
trabalham com a idéia de sociabilidades, prazeres e ins erções pelo universo da rua, ou seja,
tornam complexa a situação de rua e interrogam-se sobre outras possibilidades de
interpretação em torno dela. MAGNI (2006) aponta o modo de vida nas ruas como um
confronto direto à ordem social citadina, calcada no sedentarismo, em oposição ao
nomadismo, e, ainda, uma resistência à pressão socioeconômica de expulsão da classe popular
para as periferias dos grandes centros urbanos. “(...) ele [morador de rua, chamado pela autora
de ‘nômades urbanos’] usa livremente os espaços da cidade, construindo circuitos territoriais
e invadindo fronteiras que deveriam demarcar os limites das classes sociais (p.39)”.
PANTER-BRICK (2002) critica o termo “criança de rua” (street children) e a dualidade
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presente entre o apelo emocional, do lugar da pena e da “vitimização” da criança, e, em
contraposição, a visão de hostilidade e medo em torno dessa população, colocando-a como
“vilã”. Acrescenta a necessidade de abordagem dos fatores sociais e de pobreza associados à
condição de estar na rua para se falar de seu controle e intervenção. ADORNO (1997/98;
1999) discute sobre as sociabilidades vivenciadas nos circuitos de rua e os prazeres,
adrenalinas e diversões possíveis de serem vivenciadas em oposição às oportunidades que o
bairro de onde eles vêm oferecem, criando uma oposição ainda às suas casas, por meio da
criação de outros territórios que permitam o rompimento com a dimensão do tempo e dos
limites, em uma experimentação sobre o possível e o impossível (p. 95). Nessa linha, da
investigação sobre a rua como produção de referências, PÉREZ LÓPEZ (2006) defende a
proposição da rua como um modo de vida alternativa permanente, que se caracterize por uma
inserção social alternativa, pelas margens.
Portanto, a compreensão sobre o estar na rua pode suplantar as interpretações dominantes,
principalmente àquelas guias das ações das políticas sociais, e interrogar, dessa forma, as
funções das intervenções com essa população. A possibilidade de análise da rua como espaço
de sociabilidade e inserção, pela margem social, modifica seus parâmetros fundadores e
pontua os objetivos e tipos de políticas sociais para serem desenvolvidas para esse grupo.
3. Políticas sociais e a incorporação de inovações sociopolíticas
As questões sociais contemporâneas requerem do Estado moderno a busca de respostas às
problemáticas apresentadas pela realidade vivida. Reconhecer a presença de demandas sociais
e a necessidade de intervenção estatal sobre essas questões é condição prévia para se falar
sobre políticas sociais. Vivemos um modelo de Estado capitalista contemporâneo, com o
componente democrático como pressuposto implícito, no qual as intervenções via políticas
sociais são dadas a partir do reconhecimento de demandas e a busca de respostas para as
mesmas.
Em termos gerais, pode-se associar a idéia de políticas sociais ao conjunto de ações
articuladas com recursos financeiros e humanos, desenvolvidas num determinado tempo e
com alguma capacidade de impacto sobre uma realidade eleita como destinatária das ações.
Envolve-se, portanto, as dimensões ética e política para a escolha da população-alvo, bem
como os métodos para sua execução. Importante ressaltar que se filiam ao projeto econômico
em curso, explicitando as relações entre Estado e sociedade.
Dentre as possibilidades de análise dos Estados capitalistas, a política pública pode ser um
dos primeiros recursos de dados empíricos sobre o Estado, pois elas são o “Estado em ação”,
nos seus aspectos determinados e intencionais, distintos através de meios instituciona is
mobilizados. As políticas sociais representam a incorporação de “necessidades humanas”,
segundo os “interesses” do sistema capitalista no qual estão inseridas. Em muitos momentos,
é gerada uma tensão a fim de que haja uma ampliação do reconhecimento dessas
“necessidades”. Para que elas sejam incorporadas, o Estado responsabiliza-se, com maior ou
menor grau de envolvimento, segundo parâmetros democráticos e sociais estabelecidos na
esfera dos direitos reconhecidos e legitimados.
As políticas sociais apresentam as diretrizes nacionais para o encaminhamento e o
enfrentamento de problemáticas sociais criando, ou não, os mecanismos para a
operacionalização de direitos em diversas áreas, tendo como base a Constituição
Brasileira, cumprindo seu papel para o desenvolvimento da cidadania social, conciliando,
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contudo, (...) as exigências admitidas para a reprodução do capital e as necessidades
humanas socialmente sancionadas (LOPES e MALFITANO, 2007, p.233).
As inovações sociopolíticas no campo das políticas sociais serão implementadas na medida
em que haja mudanças na forma de gerar, financiar e distribuir as prestações de serviços
sociais pelos gestores do Estado (OFFE e LENHARDT, 1984). Sua inovação será decorrente
dos resultados das tensões ocasionadas pelas relações de força entre a sociedade civil, a
sociedade política e os demais atores sociais.
3.1 Atenção à infância e juventude de segmentos populares
O histórico de ações sociais voltadas à infância e juventude no Brasil percorrem a trajetória da
filantropia ao direito. A criança e o adolescente passam a ser uma população específica para
abordagem quando saem da posição de “adultos em miniatura” e ganham um status cultural
próprio, no qual se apóia o discurso sobre a preocupação com o acesso à educação, o
desenvolvimento de ações programáticas em saúde, o controle de doenças, a realização de
ações higienistas, a instauração de programas especiais de assistência social para as classes
populares, direcionados para as mães, as crianças pequenas e outros grupos-alvo. No
desenvolvimento da assistência social com as classes populares, as crianças assumem, desde o
início, um lugar central de abordagem às famílias, a partir do momento em que se nomeia a
mulher como mãe e como alguém que precisa de ajuda para garantir o bem-estar das crianças.
Essa abordagem possibilita as ações de “gestão” das famílias populares, com ações para sua
educação moral (DONZELOT, 1977).
Para as famílias populares consideradas incapazes de cuidar dos filhos, instauraram-se as
intervenções públicas – realizadas pela esfera privada e estatal, porém, prioritariamente pela
esfera privada sem fins lucrativos. Essas intervenções têm raízes no debate sobre a
benemerência, a caridade e a subserviência, uma vez que essas instituições foram efetivadas,
predominantemente, por ordens religiosas, em sua missão de cuidar dos “pobres”. Dessa
maneira, a criação e a administração de intervenções na população infanto-juvenil foram, e
muitas ainda são, calcadas no discurso da filantropia e compreendiam, e ainda compreendem,
uma gama de atos para a sua abordagem, defesa, intervenção e “controle”.
Constrói-se uma trajetória de intervenções institucionais fixada pela abordagem e ação com as
classes populares, na qual “a identificação da assistência social – prática social de ajuda
científica ou empírica – com a filantropia e a benemerência é comum” (MESTRINER, 2001,
p. 13), demonstrando o legado sócio-histórico construído, que perpassa do ideário da caridade
benemerente ao princípio dos direitos reconhecidos e juridicamente estabelecidos no final do
século XX. Nesse contexto, a história de atenção à criança pobre é traçada e marcada pela sua
institucionalização, preferencialmente de um grupo denominado de “órfãos abandonados”
(MARCÍLIO, 1998). Porém, o abandono não estava representado na sua condição de
transcrição literal de seu sentido, não se tratava de “órfãos” propriamente, mas sim dos filhos
cujos pais não dispensavam cuidados adequados a eles, por isso se justificavam intervenções,
direcionadas, especialmente, às famílias de classes populares. Tal aspecto contribuiu para a
institucionalização da cultura de caridade frente às “crianças abandonadas”, “crianças de rua”,
“crianças pobres” e outros marginalizados socialmente, bem como para o imaginário que
relaciona que toda criança em situação de rua é abandonada, pobre e perigosa.
Desenrola-se, assim, um processo histórico-social de criação de instituições,
institucionalizações e cuidados com essa população que culminaram na criação de um
imaginário social sobre o lugar da população infanto-juvenil de classes populares e a
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delimitação de suas esferas de acesso. Esse imaginário permeia a visão cultural predominante,
fazendo com que não só historicamente, mas também ainda hoje, o olhar direcionado para
essa população seja baseado na piedade e no medo.
Portanto, “fazer o bem ao próximo”, sem que se discutam as causas dessa problemática nem
mesmo as ações que demandam, originou uma cultura da dádiva e da benemerência, na qual a
cidadania é concedida e configurada pela subserviência, associada à dimensão do “favor”,
regendo, historicamente, e em muitas ocasiões continuando a reger, as relações de cidadania
no Brasil (SALES, 1994). Articuladamente, o imaginário cultural de “correção” e
“governamentalidade das crianças” (PASSETTI, 2004), baseado na lógica instalada na prisão
e no orfanato, previa “corrigir comportamentos ou reeducar o jovem” (p. 356) e instituiu o
valor da “educação pelo medo”, apontando esse fundamento também como princípio para a
esfera estatal e trazendo a dimensão do “medo” e da “correção” para a constituição do
imaginário social frente aos jovens populares.
Assim, a constituição do plano jurídico específico destacava uma política pautada pelo
“controle da ordem” e “correção” dos jovens, marcada na promulgação do Código de
Menores, em 1927, quando se legislou sobre a intervenção com os menores, os menores de 18
anos, referindo-se ao grupo de abandonados e/ou delinqüentes. Fixou-se, então, a categoria
“menor” como sendo a criança e o jovem pobre, na medida em que os enquadrava na
condição de orfandade ou infração, ou ainda nas duas situações, criando-se uma mistura de
interpretações que se configurou como o estabelecimento de um rótulo de “menoridade
social”. contribuição para a constituição de um imaginário popular sobre a infância e
juventude que associou, e associa, a pobreza e o delito, o abandono e a infração, reforçando
um pensamento causal sobre origem de classe e condição jurídica de vida. Soma-se, ao
estabelecimento deste imaginário popular, a questão de raça/etnia como elemento componente
da associação: abandono, delinqüência e repressão. A criança e o adolescente negro e pobre
são, rapidamente, relacionados à infração, para os quais é necessário o controle por meio da
violência e punição. Portanto, a denominação “menor” tornou-se sinônimo de criança e
adolescente pobres (LOPES, SILVA e MALFITANO, 2006).
Essa ordem, ainda hoje presente no imaginário e em ações estigmatizantes, foi questionada
pelos movimentos sociais de democratização do Brasil, na década de 1980, e também pelos
movimentos de militância pelos direitos da infância e da juventude, que estavam juntos na
luta pelo fim da ditadura brasileira. Entre 1988 e 1990, houve intensa mobilização em torno
da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990), sancionado
em 13 de julho de 1990 (Lei Federal no .8069). Os destinatários do ECA já não eram mais os
“menores”. A nova legislação se aplica a todas as crianças e a todos os adolescentes do
território nacional, que passaram a ter seus direitos básicos garantidos. Pela primeira vez em
nossa história, as crianças e os adolescentes deixaram de ser objeto e se tornaram sujeitos de
Direito, o ECA veio substituir a “doutrina da situação irregular” pela “doutrina da atenção
integral” (VOGEL, 1995).
Sobre os mesmos pressupostos, concernentes com a Carta Constituinte, a política e legislação
brasileira da Assistência Social que a define como direito do cidadão e dever do Estado,
realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para
garantir o atendimento às necessidades básicas (BRASIL, 1993). Este escopo legislativo rege,
também, os serviços que intervêm com a população infanto-juvenil, somando suas ações à
legislação específica, o ECA. Seu processo culmina no Plano Nacional da Assistência Social
caracterizado como “um sistema público não-contributivo, descentralizado e participativo que
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tem por função a gestão do conteúdo específico da Assistência Social no campo da proteção
social brasileira” (BRASIL, 2005, p.15).
Apesar de todos os avanços das leis, que realizam a ampliação do reconhecimento das
necessidades sociais da população brasileira, há dois fatores que co-atuam. Em primeiro lugar,
a realidade brasileira marcada por uma elevadíssima concentração de renda que resulta nas
altas taxas de desigualdade social e miséria. Um segundo fator é o imaginário social que
permanece, prioritariamente, calcado na visão de benemerência, piedade e periculosidade para
quando olham para essa população.
Tem-se, portanto, uma incongruência entre os princípios jurídicos que reconhecem a esfera
dos direitos e a realidade das políticas sociais para as camadas populares. Tais políticas, por
um lado, forma m, em muitos exemplos, uma rede de serviços precária, com poucos recursos
efetivos disponíveis, para diversos grupos, dentre eles a população em situação de rua ; por
outro lado reproduzem valores morais e caritativos na oferta de suas ações, afastando-se das
necessidades de seus usuários.
Nosso trabalho de campo junto às crianças e adolescentes em situação de rua mostrou que as
instituições componentes da rede de serviços, na sua maioria, apontavam como missão de
trabalho a abordagem da população com a finalidade de “seu retorno para casa”, de “inclusão
social” e de “promoção de cidadania”. Esses princípios são repetidos como jargões
institucionais para os quais não há um aprofundamento sobre seus significados. Contudo, as
intervenções realizadas confrontam-se com poucos resultados efetivos que caminhem na
direção publicamente estabelecida como norteadora.
Do ponto de vista dos usuários, os meninos e meninas, havia uma utilização dos
equipamentos sociais como um ponto de apoio para a sua rede pessoal e social, como uma
estação, acessada de acordo com as suas necessidades, que viabilizava sua vida nas ruas.
GREGORI (2000) denominou esse processo de “viração”, no qual a passagem pelos serviços
ocorre quando há interesse dos usuários naquilo que os locais podem oferecer e que
correspondem às suas necessidades momentâneas. Eles fazem um giro, uma virada, entre
todas as instituições, por isso o nome “viração”, as quais mantêm pouco diálogo entre si e
repetem ofertas e ações.
Os meninos e meninas viviam uma integração social pela margem, através da vivência nas
ruas, enquanto os serviços demonstravam o objetivo de sua retirada das ruas e retorno para a
casa daquela população. Esse desencontro é fundante nas ações sociais desenvolvidas.
Faz-se, portanto, necessário reconhecer a visão e necessidades das populações-alvo das
políticas sociais e direcioná- las como componentes concretos para promoção de direitos e
acesso aos princípios já estabelecidos no plano formal jurídico.
4. Política para a população em situação de rua: desafio de ampliação de discursos e
práticas
Sublinhamos a necessidade da consolidação de inovações sociopolíticas implementadas via
Estado, sob uma perspectiva de universalização da atenção, para que a população em situação
de rua encontre, efetivamente, espaços alternativos à “cultura de rua ” e possa vislumbrar
novas condições de sociabilidade e vida para além do grupo a que já pertence e nele
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permanece, com as contínuas proposições focais que apenas permitem a convivência deles
com eles.
Urge que se faça a adoção de objetivos claros para as ações sociais com essa população, para
que não se repitam propósitos distantes, impalpáveis e com pouca possibilidade de alcance,
como aqueles encontrados atual e majoritariamente, nos serviços dessa natureza. É necessário
que seja assumida uma vertente clara, planejada, atingível e avaliada para que as ações
públicas com essa população direcionem-se, verdadeiramente, para o acesso a seus direitos.
Nessa direção, destacamos a relevância de investimento em um sistema de ação central e
direcionador que, por algumas vezes, precise adotar intervenções coercitivas, impedindo
radicalmente a presença de crianças nas ruas, na defesa extrema do direito superior à proteção
em sua fase peculiar de desenvolvimento. Apontamos a necessidade de uma estrutura
institucional e política, com relevante dotação orçamentária, que se direcione ao cumprimento
desse princípio, afastando qualquer criança da possibilidade de inserção na situação de rua
pela premissa de sua proteção. Esse posicionamento, polêmico, demarca a opção pelo
princípio do direito superior à proteção sobre a liberdade de ir e vir, para a qual a criança
precisa de orientação, limites e educação.
Não se trata de estabelecer julgamentos sobre a vida nas ruas, pelo contrário, pois pontuamos
abaixo a necessidade do reconhecimento dessa modalidade de vida como forma integrativa
marginal; entretanto, estabelecer-se- ia, assim, a proteção de toda e qualquer criança para que
houvesse um desenvolvimento mínimo para, a partir de então, poder exercer uma escolha
autônoma.
No interior dessa proposta, levanta-se o debate sobre até quando caberia tal proposição, sobre
o marco do fim da infância e a passagem para a adolescência e a juventude, definidas pelo
limiar de passagem da proteção para a autonomia, condizente com a mudança de fases da
vida. O princípio jurídico brasileiro estabelecido pelo ECA prevê a infância até os 12 anos
incompletos. Contudo, debatemos a insuficiência dos marcos biológicos de ciclos de vida,
influenciado pelas mudanças contemporâneas e a ação cultural. Portanto, se a proposição
acima fosse uma vertente concreta a ser colocada em funcionamento, ela demandaria um
franco debate sobre os limites da infância e a necessidade de sua proteção integral, bem como
os marcos de passagem para condições autônomas e decisórias sobre o próprio curso de vida,
como adolescente e/ou jovem, e, a partir de então, a possibilidade de ida para as ruas e
vivência de sociabilidades e formas de sobrevivência.
Defendamos a proposição acima compreendendo a existência de uma necessidade urgente que
fizesse a proteção radical de todas as crianças brasileiras, independentemente de sua classe
social de origem.
Embora façamos essa demarcação, visualizamos poucas possibilidades para sua
implementação, na medida em que demandam largos investimentos e pautariam uma
alteração importante, porém aparentemente distante, sobre os preceitos nas políticas sociais
com relação às crianças de classes populares.
Em uma outra linha de caracterização, poder-se- ia contar com serviços que partissem do
reconhecimento da vida nas ruas como uma modalidade integrativa marginal em um sistema
de desigualdade socioeconômica estabelecido, como possibilidade em relação à vida
empobrecida nos bairros periféricos. Trata-se de assumir que a vida nas ruas pode ser
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interpretada, entre outros fatores, como uma integração marginal e, portanto, como local
potencial de vivência de algum nível de acesso à cidadania (PÉREZ-LÓPEZ, 2006).
Partindo desse fundamento e reconhecimento, os serviços para a população em situação de
rua abandonariam as missões atuais e assumiriam os objetivos de ofertar ações de promoção
de condições dignas de vida, possibilitando o acesso a elementos básicos para a sobrevida,
assim como disponibilizando estratégias de redução de danos às doenç as e às precariedades
suscetíveis nas ruas, além de destinar elementos concretos para a viabilidade desse curso de
vida. Assim promoveria o acesso a direitos básicos e mínimos. Trata-se de assumir a vivência
na rua nas grandes cidades e buscar as possibilidades da rede de serviços sob a perspectiva de
redução de danos e riscos.
Por fim, reforçamos as potencialidades das políticas sociais, sua possibilidade de avanço na
promoção dos direitos, a partir de sua ressignificação interpretativa e conjuntural sobre a
população em situação de rua na contemporaneidade, para a viabilização de ações universais,
proteção, redução de danos, sobrevida e acesso à esfera dos direitos e da cidadania.
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População de rua: um estudo sobre a condição e os significados da
vida na rua no município de Balneário Camboriú (SC)
Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo
Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI
[email protected]
Neusa Maria Sens Bloemer
Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI
[email protected]
Resumo: O presente artigo trata da caracterização do modo de vida das populações de rua
em Balneário Camboriú e os significados por eles atribuídos aos espaços nos quais circulam
bem como os motivos que os levaram a “morar” na rua. O estudo bibliográfico permitiu
elaborar o seguinte questionamento: quem são estas pessoas que vemos todos os dias nas
ruas da cidade de Balneário Camboriú? Colaboraram para a presente reflexão e análise os
estudos sócio-antropológicos tanto em nível nacional quanto internacional frente às
especificidades da temática estudada em Balneário Camboriú. A configuração da situação de
rua neste município apresenta nuances e especificidades próprias de uma cidade turística e
que se propõe suntuosa. Para a execução da proposta recorreu-se, além do levantamento
exploratório da bibliografia específica, à realização de entrevistas semi-estruturadas com
pessoas em situação de rua no centro da mencionada cidade, bem como com pessoas que já
não se encontram mais nesta situação. Este artigo pretende fornecer um panorama da
situação de rua em Balneário Camboriú, enfatizando algumas de suas características.
Palavras-chave: População de Rua; Poder público; Antropologia Urbana;
1. Introdução
O presente trabalho decorre da constatação da presença de pessoas em situação de rua no
município de Balneário Camboriú. Este fato motivou a problematização sobre o modo de vida
desses sujeitos sociais que, ao que tudo indica, se opõe às expectativas e prerrogativas de uma
cidade caracterizada como turística e que deseja mostrar aos seus visitantes apenas o belo e o
admirável.
Situada no litoral de Santa Catarina, Balneário Camboriú atrai turistas de todas as partes do
país, assim como estrangeiros. Mesmo sendo uma cidade relativamente pequena, apresenta
características de uma metrópole. Como salienta Manfio, “Balneário Camboriú é diferente de
outras cidades pela enorme capacidade de desvinculação social com os indivíduos e por se
caracterizar como local de moradia temporária” (MANFIO, 2004, p.9). Para o mesmo autor a
cidade se configura como
Uma cidade de épocas, dividida por temporadas, anonimatos e por pessoas
que fazem parte dessas em condição de estar; Caracteriza-se como cidade
para estar, e não para ficar, e têm relevâncias que a transformam em um
intrigante local de moradia e de difícil constituição de laços sociais de longa
duração (MANFIO, 2004, p.9).
Estas características compõem a constelação identitária da cidade que ajudam a dar forma às
suas relações sociais específicas. A atividade turística da cidade se reflete nas relações que se
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estabelecem entre seus visitantes, residentes e a gestão pública do município, esta
essencialmente voltada para o turismo. Nesta cidade, a relação forte e permanente com o
turismo, aliada à presença de estudantes que fazem desta uma cidade dormitório, quando
estudam em Faculdades ou Universidades próximas possibilita construir relações
aparentemente superficiais.
É possível afirmar que as relações de trabalho estão, predominantemente, vinculadas às
temporadas em contraposição à continuidade da vida cotidiana ao longo do ano. Tais relações,
muitas vezes passageiras não corroboram para a manutenção de vínculos duradouros entre os
sujeitos que na cidade convivem quer em condição permanente ou temporária. Todos estes
aspectos formam um modo de vida sui generis na cidade em sua totalidade, incluindo nestes
os que vivem em suas ruas.
É neste contexto que se encontra a população de rua em Balneário Camboriú contrastando
com a imagem idealizada pelos gestores públicos de uma cidade na qual a pobreza deve ser
invisibilizada. No entanto, é freqüente a presença destas pessoas, seja solicitando alguma
doação, circulando com carrinhos ou sacolas de materiais recicláveis, vigiando carros,
pedindo comida e esmolas, procurando por “bicos”, oferecendo trabalhos temporários ou até
mesmo fazendo festa nas ruas, brincando, por vezes alucinados pelo efeito de drogas, solidão
ou loucura.
2. Situação de rua em Balneário Camboriú
O termo "situação de rua" parece adequado para a realidade destes sujeitos, uma vez que a
categoria “situação” remete a uma condição momentânea que não corresponde ao que poderia
parecer algo definitivo. Da mesma forma, “situação” é uma construção social que expressa
que algo é partilhado por estas pessoas, a saber, sua necessidade de assumir condutas frente
aos problemas que enfrentam, enquanto sujeitos independentes, afastados, por vezes, das
relações convencionais da sociedade.
As pessoas que utilizam a rua como espaço de moradia, não apresentam características
homogêneas, ao contrário, trata-se de um universo complexo, no qual se pode identificar
diferenças e semelhanças. Estas semelhanças dizem respeito às formas que recorrem para a
obtenção de alguma renda, à situação de exposição, à invisibilidade perante a sociedade e o
descaso por parte do poder público.
Entretanto, não se pode esquecer que tal “lugar em comum” ocorre pela oposição entre os que
“pertencem” ao sistema social e os que dele são rechaçados, estigmatizados (GOFFMAN,
1998). Morar na rua exige destes sujeitos sociais um conhecimento específico sobre a cidade.
Assim, constroem relações que revelam valores, percepções, compreensões que são próprios
daqueles que vivem nas ruas quanto daqueles que lhes dirigem um olhar diferenciado.
A pesquisa possibilitou compreender que há um crescente contingente de pessoas que se
utilizam da informalidade e dos recursos produzidos pela própria rua em busca da reprodução
social, mas que ainda assim, atualiza uma forma de constituir e expressar sua própria
personalidade, ou ainda formas de “estar e de ser no mundo".
Deste modo, este contingente de pessoas apropria-se da circulação de pessoas e coisas para
obter recursos econômicos para a sua sobrevivência física como trabalhadores informais,
catadores de reciclados, pela mendicância, venda de produtos nos semáforos, e ainda através
de formas ilegais de renda como o roubo ou o tráfico.
No entanto, estes sujeitos vão além da sobrevivência física quando estão em situação de rua.
É neste espaço que acionam diversos dispositivos quer para atualizar suas relações, como para
re-elaborar sua identidade em torno das atividades que executam enquanto ocupam o espaço
urbano da cidade. (SANTOS, 2000).
São as predisposições da sociedade que colocam os sujeitos em situação de rua em uma
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posição de silenciamento e vulnerabilidade partindo dos discursos que são elaborados em
relação à sua presença na rua. Assim, há um conjunto de idéias que estão previamente
estabelecidas sobre a realidade destes sujeitos. Não se trata de romantizar a situação, nem de
exacerbarmos o sofrimento e o estranhamento que temos sobre essas pessoas, mas, de
perceber que a oposição se dá pela nossa condição de vida estabelecida e domiciliada, cuja
realidade distinta assumiu-se como única e verdadeira.
3. A situação de rua como ordenamento de significados
As circunstâncias constantemente identificadas como “momentos de separação” ou “perda”
estão sempre presentes quando os sujeitos em situação de rua são interrogados sobre os
motivos da vida na rua. Estas ocasiões são caracterizadas em grande parte por um ciclo de
idas e vindas, trajetórias estas sempre acompanhadas por perdas e processos traumatizantes
nos quais pode os colocar em situação de adição a drogas e na situação de rua – em
circunstâncias diversas, mas não necessariamente causais.
Nos relatos dos entrevistados, o uso de substâncias químicas é um dos principais fatores
identificados como o motivo para colocá-los em situação de rua. Como no exemplo de (F),
jovem morador de rua, natural de Balneário Camboriú que passou a morar na rua por
problemas decorrentes da dependência química, ou ainda para (IO) que até mesmo tendo
família em Balneário Camboriú, escolheu a rua como um espaço para assumir o seu
alcoolismo crônico ao invés de permanecer com a família em sua residência.
Não se trata de definir o uso de drogas como um fator preponderante e sim de assumir as
perdas sucessivas (da família, trabalho, amigos, moradia, ou mesmo da sanidade) como uma
dialética na qual a síntese é justamente a situação de rua. Cada uma destas histórias tem em
comum uma “situação-limite” (VIEIRA, et al.. 2004). Um acontecimento marcante que
desencadeia uma série de outros, ou mais comumente, um conjunto de acontecimentos
sucessivos que pode desestruturar de alguma maneira a situação na qual o sujeito se
encontrava anteriormente, como revelaram os entrevistados.
É preciso lembrar ainda que os sujeitos colocados nesta situação necessitam apreender os
significados do “estar na rua” e aprender a lidar com fatos concretos da vida na rua. Assim,
colocados em “situações limites”, os sujeitos necessitam readequar seus referenciais de forma
a resignificá-los, adotando novas “perspectivas” com sentidos específicos e que funcionam
com um referencial, como ilustram Snow & Anderson (1998);
Assim, começa um dia nas ruas. Não é um dia totalmente desestruturado, no
entanto. Pode parecer assim do ponto de vista do cidadão domiciliado e, de
fato, pode ser devido a essa aparência que a vida de rua seja às vezes
romantizada. Mas, do ponto de vista dos que a vivem, a vida de rua tem
uma ordem e ritmo definitivos [...] seu caráter distinto reside num conjunto
padronizado de comportamentos, rotinas e orientações que são respostas
adaptativas à própria situação de rua (SNOW & ANDERSON, 1998,
p.130).
A vida na rua, por mais catastrófico que seja, tem uma ordem própria. Muito embora, as
pessoas nesta situação sejam impelidas a largar grande parte das impressões que constituíam
seu modelo antes de chegarem às ruas, agora necessitam operacionalizar outras concepções e
práticas para que dêem conta da própria condição colocada pela vida na rua, como ressaltam
os autores;
Ser morador de rua não significa apenas estar submetido à condição de
espoliação, enfrentando carências de toda sorte, mas significa, também,
adquirir outros referenciais de vida social, diferentes dos anteriores
baseados em valores associados ao trabalho, à moradia, às relações
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familiares (VIEIRA, et al. 2004).
Com tal perspectiva podemos apresentar algumas considerações. Primeiramente, que a
situação de rua vem se tornando um risco para um número cada vez maior de pessoas, na
medida em que sua origem pode remeter a problemas estruturais da sociedade capitalista. Ou
seja, esta realidade é composta por um conjunto de fatores, uma sucessão de fatos exteriores à
vontade dos sujeitos. Entretanto, esta mesma condição também proporciona uma dinâmica na
qual os sujeitos re-significam sua realidade, de modo a enfrentar seus problemas da melhor
maneira que lhes é possível. Mas não se pode deixar de ressaltar que na perspectiva da
população de rua sua condição é percebida como alheia à vontade ou à escolha ainda que
tenha um ordenamento próprio, uma organização própria.
4. O Balneário e a diferença
Grande parte da bibliografia produzida sobre a situação de rua problematiza ocorrências
muito diferentes da realidade que nos propomos a refletir. A situação de rua é entendida e
refletida, em grande parte, no contexto de grandes cidades, o que define substancialmente o
foco das análises.
A população de rua em Balneário Camboriú é muito específica e possui diferenças
substanciais no que diz respeito a um contexto mais geral. Da mesma maneira, e neste
contexto, é necessário compreender que a própria noção de "população de rua" e
conseqüentemente da "situação de rua", vem sendo modificada paulatinamente a partir das
lutas deste segmento e ainda, por meio da politização dos conceitos que na afirmativa de
Costa (2007), trata-se de uma “invenção social recente e bem datada em nosso país”.
Na cidade de Balneário Camboriú há uma situação de rua que é radicalmente diversa à de São
Paulo e de outras localidades. Seja por suas proporções por se tratar de uma cidade que tem o
turismo como especificidade, ou ainda, por ser uma cidade balneária, que tem a sua dinâmica
orientada pelas estações climáticas, ou ainda por alterações em termos populacionais que
modifica, ainda que temporariamente, o modo de vida dos moradores efetivamente radicados
no município.
Portanto, como bem expressa Costa (2007), a situação de rua ganhou novas nuances na
medida em que cresceu, se expandiu, tornando-se algo cada vez mais presente no cotidiano
das cidades e que juntamente a isto se entrelaçam novos discursos, práticas e instituições que
refletem sua existência.
O que se percebe é que nas últimas décadas houve uma grande comoção – no sentido de uma
grande quantidade de pessoas e instituições – movimentando-se em torno dos sujeitos em
situação de rua em algumas cidades do país, dando maior visibilidade a esta “questão social”.
Costa (2007) enfatiza que a situação nos grandes centros, ou pelo menos em parte deles,
“comove” pessoas e instituições fazendo da situação de rua uma grande questão a ser
debatida, pensada e transformada pelos sujeitos em questão, com salienta o autor,
Até então inumerável, invisível e inominável, nos últimos trinta anos a
experiência de rua ganha número, visibilidade e nome próprio – população
de rua – e assim entra na cena do espaço público paulistano e também de
outras cidades do Brasil. Particularmente no centro de São Paulo a
população de rua parece que está em todo lugar. É alvo de discursos e
olhares, regimes enunciativos e de visibilidade. São implantados insistentes
dispositivos para se ouvir, ver, registrar e falar da população de rua.
Discursividades múltiplas são incitadas: declarações públicas, artigos de
jornais, periódicos científicos, monografias, pesquisas estatísticas, livrosdepoimentos. Visibilidades também são suscitadas: câmeras, filmes, fotos,
sistemas de informação, mapeamentos estatísticos, cartazes, manifestações
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no espaço público. Sem falar nos agentes, instituições e outras instâncias
mais especializadas: ONGs, albergues, uma lei municipal própria, blogs de
discussão, datas e periódicos específicos, Pastoral do Povo da Rua, fóruns e
mais fóruns, e, agora, um comitê interministerial próprio e um movimento
social de escala nacional (COSTA, 2007, p.19).
Entretanto esse campo problemático é decorrente essencialmente da falta de empatia do poder
público aos problemas dos sujeitos em situação de rua. Concebem-se antecipadamente os
problemas de uma pessoa que mora na rua, obviamente, da perspectiva daqueles
domiciliados, mas não das concepções e dos problemas identificados pelos próprios sujeitos
em situação de rua.
A pesquisa revelou que, a falta de recursos materiais para a satisfação da alimentação diária
não é percebida como um grande problema a ser resolvido pelo morador de rua.
Insistentemente afirmaram que há facilidade para se adquirir viveres na rua, como se constata
na emocionada fala: “Para morrer de fome tem que ser um lixo. Só um parasita para morrer de
fome” (D).
Por outro lado, o cotidiano da rua apresenta outras dificuldades, como por exemplo, o
tratamento a eles dispensado pelas pessoas domiciliadas, que não apenas os tratam com
estranhamento, mas também os estigmatizam.
Eu nasci aqui! Isto é muito humilhante. Conheço todo mundo aqui, as
pessoas passam, você tá na rua, elas te vêem e passam, olham para o outro
lado e cospem, te humilham o tempo todo. É muita humilhação essa vida.
(...) É muita humilhação que o cara passa. Você vai pedir um pão, o cara te
humilha, te chama de vagabundo, te xinga, manda você ir trabalhar (F).
Se em determinados momentos as limitações materiais se impõem, em grande parte, elas não
parecem segundo estes sujeitos, o fardo mais pesado de se carregar, mas são as relações
sociais que se estabelecem naquele espaço e no convívio ainda que superficial com os
transeuntes ou com os moradores estabelecidos que lhes escapa do controle quando se sentem
inferiorizados e estigmatizados.
Desta forma, empreende-se o esforço de colocar especial importância na possibilidade destes
sujeitos de terem direitos, que sejam respeitados enquanto cidadãos sem estigmatizá-los como
se fossem cidadãos de segunda categoria.
Registramos algumas reclamações e acusações por parte destes informantes em relação ao
poder público. Em suas falas revelaram que ocorrem fatos que são acobertados pela própria
Secretaria de Migração cuja função seria "cuidar" das pessoas que se encontram em
dificuldade no município. Entretanto, como expressou o informante (J) o poder público local
também os trata de forma discriminatória:
O que acontece é o seguinte: a emigração antigamente, eu não sei agora, eu
não sei como é. Mas antigamente eles pegavam, colocavam as pessoas
dentro da Kombi, batiam sabe, eu vi casos assim. De baterem, de quebrarem
braço, quebrarem perna de pessoas. E depois levavam, vamos supor, como
daqui, entre aqui e Joinville e largar na BR. (...) Quem que instituiu esta
história de emigração em Balneário Camboriú foi o Leonel Pavan. Não
existia isto! Porque o Pavan... o quê que ele quer? Ele quer que Balneário
Camboriú seja uma cidade elitizada, por isto que não é aceito moradores de
rua aqui, por isto que se tem uma emigração (J).
Ou ainda, a partir da fala de outro informante que, ao ser questionado sobre ter sofrido
violência em Balneário Camboriú, argumentou que ao chegar a Balneário teve informações
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sobre os procedimentos e histórias sobre a “migração” e o tratamento dispensado pelo poder
público a estes supostos “migrantes”. Aprendeu rapidamente que deveria usar as ruas de
Balneário Camboriú apenas para fazer suas “correrias” e buscar seu sustento e a cidade
vizinha de Camboriú para dormir por esta ser mais tranqüila e mais segura.
Em um jornal de Balneário Camboriú, publicado entre os dias 15/05 a 21/05 de 2008, a
diretora do setor de Migração ao ser questionada a despeito da queima de pertences dos
moradores de rua, respondeu: "Vou estudar outra maneira de resolver a situação, porque sei
que muitas vezes é tudo o que eles têm". E acrescentou: "Recebemos em média cinco ligações
por dia, denunciando a presença de moradores de rua". O que se constata é que esta situação é
tratada como uma questão policial, de limpeza urbana de uma presença indesejada,
desconsiderando que se trata de problema social e que, portanto, exige providências no
sentido de priorizar o respeito à vida e a dignidade de todos os cidadãos, independente da sua
condição social.
A população de rua de Balneário Camboriú apresenta características específicas na medida
em que parte dela é oriunda de outras localidades onde vivenciaram suas vidas baseadas em
relações sociais que diferem desta cidade. Esta é uma característica que deve ser ponderada
pelo poder público local ao tratar de políticas públicas destinadas a esse segmento que tem a
diversidade como uma particularidade. Assim, estes moradores de rua têm alguns ideais que
norteiam as suas demandas:
Olha o quê que falta em Balneário Camboriú? Pelo que eu vejo, na minha
concepção, é um albergue. Tá. Claro que isto vem a ser uma utopia, porque
jamais vai colocar um albergue em Balneário Camboriú. [...] Por ser uma
cidade turística, por ser uma cidade, como eu te falei, uma cidade que se
projeta pra elite, é... Até pelo lado político da coisa também, então quer
dizer, isto não aconteceria, infelizmente (J).
E ainda,
Eu acredito assim, que o encaminhamento... O quê que devia ser? Primeiro
de tudo, se a pessoa chega, ela tem documentação, ela vem disposta a um
trabalho, por que não você ter um espaço para a pessoa, vamos fazer uma
triagem, vamos dizer assim, faz uma triagem lá, fornece um espaço para a
pessoa permanecer alguns dias, até encontrar um emprego e até conseguir
subsídios, para daí pra frente caminhar sozinho. Seria um ponto positivo.
Por que não a própria “emigração” de repente auxiliar isto ai, fazer um
trabalho paralelo, a gente tem tanto pessoal que poderia se unir nisto. Que
seria a igreja católica, as igrejas evangélicas, que seriam ONGS, né? Então,
todo mundo poderia, caminhar juntos, de mãos dadas ali, focando este lado
da carência deste pessoal ai. Porque na verdade a sociedade não está nem ai.
A sociedade quer, pô, o quanto mais longe melhor. Vai vir parente meu lá
não sei da onde, pra ver a beleza aqui do Atlântico Sul, chega aqui, pô,
chega na praia, quatro, cinco sentado bebendo, ai mais lá pra frente dois,
três desmaiados, por causa da bebida, então quer dizer... Até certo ponto,
claro que não é legal, você ter uma imagem, você ter um cartão de visita.
Mas o que eles têm que colocar na cabeça é o seguinte, não é só Balneário
Camboriú! Nós temos que analisar justamente o Brasil ai. Vamos colocar a
situação dos moradores de rua ai do Brasil todo, ou só aqui de Santa
Catarina. Uma coisa que tem uma dimensão tão grande, que eu acho que
ninguém, nem os políticos em si, tem o número aproximado, vamos dizer,
não tem! (J).
Trata-se enfim, de compreendermos a urgente necessidade de atualização destas demandas
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que apesar de não apresentarem uma organização nos termos do que se constituem os
movimentos sociais, apresentam o desejo de luta, de reivindicação de direitos, de respeito
enquanto cidadãos em situação de rua.
5. Considerações Finais
O presente trabalho identificou alguns dos problemas vivenciados por este segmento social e
sobre as limitações do poder público de Balneário Camboriú para lidar com uma população
que apresenta características peculiares, diversa do conjunto da sociedade. Ou seja, trata-se
para além de um problema social, de um problema político que está vinculado à estrutura da
sociedade.
Entre as questões de ordem estrutural há que se registrar que a organização do trabalho na
sociedade capitalista também contribui para o aumento do número de pessoas em situação de
rua, na medida em que alguns destes perderam seus postos de trabalho, outros, se sentiram
inseguros quanto à durabilidade do mesmo, frustrando-se na realização pessoal e profissional.
Esta instabilidade, por vezes, se converte em problemas de ordem emocional e afetivos, como
revelaram alguns informantes no decorrer das entrevistas, necessitando de atendimento
especializado por parte do poder público.
A cidade de Balneário Camboriú apresenta completa defasagem no tocante ao atendimento às
pessoas em situação de rua. Por não apresentar organização institucional com presença de
profissionais especializados para o trato deste segmento social, apresenta práticas
policialescas e no máximo assistencialistas, que ignoram qualquer política que remeta aos
direitos sociais. O sujeito de rua em Balneário Camboriú apresenta-se nas mesmas condições
daqueles que, estereotipicamente e historicamente, no passado, foram reconhecidos como
mendigos, como aponta Costa (2007), remetendo-se há três décadas, em moldes que,
infelizmente, persistem em Balneário Camboriú.
O que se confere é que as pequenas cidades a exemplo de Balneário Camboriú continuam
defasadas no atendimento a este segmento social em relação às grandes cidades. Nestas as
reivindicações quanto à estrutura mínima de recursos e infra-estrutura para a população de
rua: como albergues, casas de reabilitação à drogadição, restaurantes populares, “bocas-derango” e alternativas de renda, por vezes são atendidas ainda que parcialmente.
A população de rua de Balneário Camboriú embora não apresente organização que
reivindique junto ao poder público, individualmente, demandam o respeito à cidadania e aos
direitos sociais, tornando-se urgente o estabelecimento de espaços e meios que possibilitem
fazer valer as vozes dessas pessoas que se encontram em situação de rua.
Referências
COSTA, Daniel. A rua em movimento: experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. São
Paulo (SP): USP, 2007.
GOFFMAN, E. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deterioriada. 4ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1998.
MANFIO, João. Processo de individualização entre jovens universitários em Balneário Camboriú. Itajaí
(SC): UNIVALI, 2004.
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 5 ed. São Paulo: Nobel, 2000.
SNOW, David A.; ANDERSON, Leon. Desafortunados: Um estudo sobre o povo da rua. Petrópolis: Vozes,
1998.
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VIEIRA. M. A. (org) et al. População de rua : Quem é, como vive, como é vista. São Paulo: Hucitec, 2004.
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Proposta de modelo de atenção à saúde para a população em situação
de rua.
Aline Andréa Pereira
Curso de Especialização em Promoção da Saúde e Desenvolvimento Social / FIOCRUZ
[email protected]
Resumo: A manifestação de desigualdade e injustiça social na sociedade contemporânea,
nunca antes tão acentuada vem se agravando no decorrer da década de 90, com o início do
neoliberalismo, no qual, desencadeou um processo crescente de miséria e de pobreza absoluta.
Esse fenômeno social afeta determinado grupo de pessoas que ficam “excluídas dos serviços,
benesses e garantias oferecidos ou assegurados pelo Estado, pensados, em geral, como
direitos de cidadania” (Bodstein & Zancan, 2002). A relação entre o poder público e a
população deve ser resignificada no que tange a Promoção da Saúde, como uma das funções
essenciais de Saúde Pública, fundamental na intervenção através de projetos sociais que
efetivamente contemplem pactuações exitosas para melhorar as condições sociais das pessoas
em situação de rua.Portanto, essa proposta tem como finalidade ampliar a cobertura de
atendimento do Programa Médico de Família, para as pessoas em situação de rua, de modo
que esse grupo seja beneficiado com os recursos dos serviços de saúde local, para o
enfretamento das diversas enfermidades, minimizando paulatinamente o seu sofrimento.
Palavras Chaves: Promoção da Saúde; População em situação de rua; Ampliação dos
serviços de saúde.
1-Introdução
“As iniqüidades no campo da saúde têm raízes nas desigualdades existentes na
sociedade. Para superar as desigualdades entre as pessoas em desvantagem social e
educacional e as mais abastadas, requer-se políticas que busquem incrementar o
acesso daquelas pessoas a bens e serviços promotores de saúde, e criar ambientes
favoráveis. Tal política deveria estabelecer alta prioridade aos grupos mais
desprivilegiados.” ( OMS,1988)
O presente trabalho apresenta uma proposta de intervenção social no contexto da
promoção da saúde, tendo como objetivo atender a população em situação de rua, no âmbito
da saúde compreendendo as dificuldades de acesso desse grupo aos serviços de saúde.
Expostos a vários riscos devido à alta vulnerabilidade social, esse grupo populacional
está à mercê de diversas contaminações e doenças, comprometendo suas condições físicas,
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emocionais e mentais que muitas vezes, não conseguem ter acesso a um tratamento
adequado.
Os motivos de estarem em situação tão precária seja pelo desemprego, pela falta de
moradia, desvinculo familiar, alcoolismo e por doenças mentais, caracterizam um grupo
diferenciado e heterogêneo que demanda serviços específicos para atender aos direitos sociais
contemplados nas políticas de saúde que embasam o Sistema Único de Saúde (SUS).
“A exclusão social é um processo que afeta a integridade física dos indivíduos,
chegando a produzir um biótipo do excluído, no qual o envelhecimento precoce se
soma a um baixo desenvolvimento de capacidade cognitiva. Afeta, portanto,
diretamente a saúde dos que vivenciam essa situação social, o que, por um lado
aumenta as demandas sociais desses grupos e, por outro, dificulta também o acesso
aos direitos e serviços sociais”.( Escorel ,1994 apud Villela & Pellicioni, 2006, p.9)
A lógica da proposta é ampliar a cobertura de assistência à saúde local do Programa
Médico de Família, de modo a atender a população em situação de rua, visando melhorias nas
suas condições de saúde contribuindo, assim, para o resgate da sua dignidade e a cidadania.
Considera-se, portanto, fundamental desenvolver ações articuladas entre os serviços
de saúde já existentes que permitam o acesso dessa população em situação de rua nas
Unidades Básicas de Saúde, através do Programa Médico de Família.
Portanto, essa proposta se insere dentro de três temas referentes a Promoção da Saúde
e Desenvolvimento Social, são elas:
1. Ações e estratégias vinculadas aos determinantes sociais da saúde local;
2. Ações e estratégias para acessibilidade e ampliação da cobertura da saúde
local;
3. Ações e propostas para o Desenvolvimento Social e Promoção da Saúde.
2-Apresentação do local:
O município tem aproximadamente 450.000 habitantes e apresenta alguns indicadores
que demonstram uma boa qualidade de vida para a população, tais como; baixas taxas de
analfabetismo e de mortalidade infantil, renda média mensal de 7,4 salários mínimos,
expectativa de vida de 70 anos, entre e outros.
Embora não haja uma estatística oficial da população em situação de rua, é constatado
que a grande maioria concentra-se nos grandes centros urbanos nos quais as atividades
comerciais são desenvolvidas no período diurno, favorecendo a existência desse grupo
durante o período noturno. Essa realidade contribui para obtenção de meios de sobrevivência
provenientes, principalmente dos resíduos produzidos diariamente. Essa população serve
também de mão de obra para pequenas atividades ligadas ao trabalho informal.
Algumas atividades sociais realizadas no município atendem a uma parcela da
população em situação de rua sobretudo no centro da cidade e seus entornos: albergues
municipais, Casa da Cidadania, ONGS, instituições religiosas. Essas atividades não
conseguem atender de modo integral as necessidades dessas pessoas devido à complexidade
de demandas existentes e do tipo de ação realizada, muitas vezes de caráter assistencialista.
A ocupação desordenada dos espaços urbanos como calçadas, marquises, viadutos,
pontes, são reflexos desse processo de exclusão social e da falta de alternativas para essa
parcela da população. As precárias condições sociais incidem diretamente sobre a sua
qualidade de vida e saúde.
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A pouca interferência do Estado através de políticas efetivas de garantia dos direitos
sociais, tende a agravar cada vez mais os problemas enfrentados por esse grupo populacional.
3- Antecedentes e Fundamentação
“A saúde não é só a vida no silêncio dos órgãos, é também a vida na descrição das
relações sociais.” (apud Rosa, Cavicchioli & Bretas -Canguilem G.,1995)
No contexto social em que vivemos, a população de rua vem se tornando um
fenômeno social causado principalmente pela desigualdade social, conseqüência da lógica do
capitalismo.
De acordo com Castro (2006, p.10), “fenômeno social decorrente da globalização e
do sistema liberal no Brasil decisivamente nos ano 90, vem acarretar grandes prejuízos na
sociedade brasileira. O aumento do desemprego, a fragmentação da seguridade social e do
trabalho coletivo, a ausência do Estado como responsável pela proteção social, a falta de
inserção no sistema educacional e a insuficiência do sistema de saúde, levam ao caos a vida
de milhares de cidadãos e cidadãs”.
Com os efeitos da “desorganização” do trabalho na sociedade, o trabalho informal é
visto como uma forma alternativa de suprir o desemprego formal. Sobre a questão da
marginalização e da informalidade, Escorel (1999, p.43) destaca:
"Nos anos 80 a noção de marginalidade foi substituída no espaço público pela
de” informalidade “os dois termos tornaram-se intercambiáveis, embora não sejam
equivalentes. A existência de um setor informal, que aparecia como uma etapa de
transição necessária em direção a incorporação posterior e progressiva no setor
formal revelou-se como um estado. Entre 1972 e 1986, o debate fez com que a
informalidade saísse da posição em que era considerada como um sinal da
desestruturação econômica capitalista em países dependentes e periféricos para ser
qualificada como” núcleos dinâmicos e criativos “, uma alternativa ao capitalismo de
mercado.”
A informalidade vem atenuar a questão do desemprego formal. O que parecia um
momento de transição passa a fazer parte da estrutura social capitalista. Em face desta
realidade, podemos identificar as causas do aumento da população de rua, que a cada dia mais
vem fazendo parte da paisagem cotidiana de nossas vidas.
“É a opção que resta àqueles denominados por Castel (1997, p. 28-9) como”
sobrantes “, pessoas normais, mais inválidas pela conjuntura, como decorrência das
novas exigências da competitividade, da concorrência e da redução de oportunidades
e de emprego, fatores que constituem a situação atual, na qual não há mais lugar
para todos na sociedade. O refugo do jogo, antes de explicação e responsabilidade
coletiva, corporificada pelo estado de bem-estar, agora as define como uma situação
individual.” (apud Costa, 2006, p.2)
Pessoas esvaziadas de utilidade pelo mercado capitalista buscam na rua uma forma
“alternativa” para sua sobrevivência vivendo à margem da sociedade. Figuram-se como
órfãos nas grandes cidades sobrevivendo sem nenhuma outra perspectiva. Forma-se, então,
um grupo heterogêneo de pessoas desagregadas de seus meios familiares, deprimidas pela
falta de emprego e de inserção social. Nesse contexto, pode-se dizer que apenas um grupo
minoritário da população tem possibilidade de se inserir nas regras do jogo da classe
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hegemônica.
“Ser morador de rua não é o destino necessário de todo esse grupo; no
entanto, é uma das possibilidades, que se concretizará em função das circunstâncias,
incluindo desde situações que restringem emprego e moradia até condições
individuais, relacionadas a histórias de vida pessoais, condições físicas e mentais.”
(Vieira et al., 1992; Escorel, 1999, apud Villela & Pellicioni,2006, p.6)
Costa (2006), no seu artigo “População em situação de rua: contextualização e
caracterização” apresenta de forma explícita e contundente a problemática visível do
crescimento da população de rua e as implicações do poder público e da sociedade
contemporânea como principal causa desse agravante. O incremento da globalização e do
avanço tecnológico configurou conseqüências negativas nas políticas sociais, contribuindo
demasiadamente para o crescimento da desigualdade social. Nesse contexto, a realidade se
define como um fenômeno de exclusão social, devido à violação dos direitos humanos, o
preconceito e o descaso da sociedade denominada “sociedade de mercado” em cujos
paradigmas ideológicos se destacam a competitividade individualista, alta concentração de
renda e uma visão economicista das relações sociais.
Um plano específico de atenção à saúde da população em situação de rua só será
eficiente na medida em que as políticas públicas se concretizem em ações efetivas também
para essa parcela da população.
Como analisa acertadamente Silva (2000) na citação abaixo:
“não se respeita o princípio da eqüidade, que seria a oferta de uma assistência
diferenciada à população de rua, segundo suas necessidades, para que a igualdade de
direitos seja uma realidade, visto tratar-se de uma condição particular, que exige
também um conjunto de atenções específicas.” (apud Villela & Pellicioni,2006, p.9)
No entanto, dentro do contexto da promoção da saúde cuidar da saúde vai além dos
fatores patogênicos e fisiológicos, é oferecer condições sociais como espaço cultural,
ambiente favorável, atendimento de qualidade nos serviços de saúde, isto é, estratégias de
integração de políticas públicas saudáveis que viabilizem o direito a uma vida com qualidade,
saudável e feliz para a população.
Para obter uma vida com qualidade é preciso ter saúde, e para ter saúde é preciso fazer
parte de um grupo social, onde cada um tem o direito de produzir, de aprender, de escolher, de
participar, de estar envolvido com o mundo em movimento. Onde cada um pode direcionar
sua vida na esfera da cidadania e do direito social.
Como se afirma na Carta de Ottawa, segundo Czeresnia e Freitas (2005, p.25-26):
“A Carta de Ottawa define promoção da saúde como o processo de
capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde,
incluindo uma maior participação no controle deste processo”.
“O documento aponta para os determinantes múltiplos da saúde e para a”
intersetorialidade “, ao afirmar que dado que o conceito de saúde como bem-estar
transcende a idéia de formas sadias de vida, a promoção da saúde transcende o setor
saúde. E completa, afirmando que as condições e requisitos para a saúde são: paz,
educação, habitação, alimentação, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis,
justiça social e eqüidade.”
Portanto, pode-se inferir a partir deste documento, na Carta de Ottawa, que as
4
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
mudanças para uma qualidade de vida transcendem o setor da saúde e que dependem da
integração de todos os setores sociais para a construção de estratégias de enfrentamento aos
determinantes sociais. Para tanto, é necessário criar condições favoráveis para que o cidadão
atue na sociedade de forma consciente e ativa no processo das relações sociais.
4 – Procedimentos Metodológicos
A pesquisa teve caráter exploratório com intuito de levantar alguns pressupostos que
pontuassem aspectos que retratariam parcialmente as necessidades coletivas de um grupo de
pessoas em situação de rua.
A metodologia utilizada foi baseada através da entrevista informal com viés empírico,
a qual, apresento abaixo os pontos que foram mais enfatizados pelo grupo:
A falta de interesse do poder público diante da situação das pessoas que estão
nas ruas.
A dificuldade de atendimento em uma unidade de saúde local devido à falta de
documentos e problemas de acesso às unidades.
A violência e a insegurança.
A falta de oportunidade de trabalho.
A dificuldade em obter a segunda via dos documentos.
“Os dados e indicadores de saúde disponíveis são pouco reveladores deste tipo de
exclusão social, porque aqueles que vivem nas ruas não têm constado de nenhuma estatística,
nem demográfica, nem de saúde.” (Villela & Pelicioni, 2006, p.9)
O perfil de saúde da população de rua é caracterizado na sua grande maioria por
pessoas portadoras de algum tipo de doença, tais como: tuberculose, diabetes, problemas de
pele e outros, o que torna relevante e importante o acesso aos serviços públicos de saúde, em
especial ao Programa Médico de Família.
5- Grupo Meta População
O presente projeto tem como público alvo às pessoas da região metropolitana de um
município de médio porte do Estado do Rio de Janeiro, que vivem em situação de rua. Na sua
maioria é do sexo masculino, desempregada e com idade variando entre 40 e 60 anos.
Essa população é caracterizada pela exclusão das relações sociais, pela falta de
moradia, de emprego, enfim, expropriadas de todos os benefícios sociais e, portanto,
vulneráveis a vários tipos de agravos à saúde.
6- Atores e Marcos Institucionais
Para o desenvolvimento desta proposta é necessária a articulação com o Programa
Médico de Família, através da ampliação da cobertura da atenção à saúde às pessoas sem
moradias fixas.
No entanto, como as questões de saúde não se resolvem apenas neste setor, é
necessário articular com outros setores sociais, instituições civis/religiosas e associação de
moradores que também têm interesse em ações voltado à melhoria das condições de vida das
pessoas em situação de rua.
5
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
A equipe do Programa Médico de Família é composta por médico generalista e o
auxiliar de enfermagem e o grupo de supervisão constituído por clínico geral, pediatra,
gineco-obstreta, sanitarista, enfermeira, assistente social, psiquiatra e pelos representantes da
associação de moradores. Esses atores são fundamentais para o gerenciamento das atividades
e proposição de novas estratégias de atenção à saúde da população em situação de rua.
A participação da comunidade através da associação de moradores será fundamental
na identificação do local mais utilizado pelas pessoas sem moradia fixa, facilitando o processo
de aproximação da equipe de saúde.
Para melhor entendimento apresento um fluxograma da proposta:
Modelo de Atenção à Saúde para a População
em Situação de Rua
Programa Médico de Família
Médico Generalista e
Auxiliar de Enfermeiro
Equipe de Supervisores
Acompanhar e
monitorar o
tratamento.
Identificar a
necessidade de
atuação dos setores
sociais público/
privado e instituições.
Visitas nas ruas e
atendimento na U.B.S
Participação da
comunidade
Associação de
Moradores – mapear
o território ocupado
pelas pessoas em
situação de rua.
USUÁRIO
Processo avaliativo
Melhorias nas condições de saúde do usuário.
7-Considerações Finais
Esta Proposta de Modelo de Atenção à Saúde da População em Situação de Rua,
objetiva, alcançar a melhoria nas condições de saúde das pessoas em situação de rua, através
do Programa Médico de Família valorizando e compreendendo a importância do cuidado e da
atenção, na perspectivas da promoção da saúde.
6
14 de novembro de 2008, UFSCar
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
A inserção desse grupo dentro das unidades de saúde é um marco importante para uma
mudança de concepção e valor entre os profissionais de saúde e a comunidade local. Todos
têm um papel importante no desenvolvimento dessas ações. Articulando saberes e técnicas
dos profissionais com os saberes e práticas da comunidade, viabilizando, dessa forma, atender
os interesses individuais e coletivos da população.
8-Referências Bibliográficas:
Bodsteein e Zancan -Avaliação das ações de promoção da saúde em contextos de pobreza e vulnerabilidde
social. Ano 2002. Disponível em: http://www.abrasco.org.br/GTs/GT%20Promocao/Capitulo%20II%20%20%20Regina%20%20Lena1.pdf. Acesso em 13 de outubro 2008.
Castro, R. P. Contribuição ao debate da qualificação. Apostila da Pós-graduação Latu-Sensus em Educação
Profissional em Saúde. EPSJV. FIOCRUZ. 2006.
Costa, A. P. M.- População em situação de rua. Revista Virtual Textos e Contextos, nº04, dez.2005.
Czeresnia, D.& Freitas,C. M.- Promoção da Saúde conceitos, reflexões, tendências. Editora Fiocruz. Ano
2005.
Declaração de Adelaide Segunda Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde - Equidade, Acesso e
Desenvolvimento.Ano 1988.
Escorel, S.- Vidas ao Léu: trajetória de exclusão social. Rio de Janeiro.Fiocruz. pág.43,Ano1999.
Pedrosa, J. I. S.- Perspectivas na avaliação em promoção da saúde: uma abordagem institucional – Ciência
& Saúde Coletiva, Julho/Setembro. 2004, vol. 9(3):617-626, 2004. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/csc/v9n3/a09v09n3.pdf . Acesso 13 de outubro de 2008.
Rosa, A. Da Silva, Cavicchioli, Brêtas,A. C. P. – O processo saúde-doença-cuidado e a população em
situação de rua.Rev.Latino-am Enfermagem.Julho-Agosto; 13(4):576-82;2005.
Tanaka, O.Y & Melo, C. – Uma proposta de abordagem transdisciplinar para avaliação em Saúde.Revista
Interface – Comunic, Saúde, Educ.Págs.113- 118,Agosto,2000.
Terra, V. & Malik,A.M.-Programa Médico de Família de Niterói. 20 Experiências de Gestão Pública e
Cidadania Programa de Gestão Pública e Cidadania. 1997.
Villela, V. H. L. & Pellicion, M. C. F – Albergue:espaço possível para a promoção da Saúde.Collcción
Monografias, nº34.Caracas: Programa Cultural, Comunicación y Transformaciones Sociales, CIPOST,
FaCES, Universidad Central de Venezuela.59 págs.Ano 2006.
7
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
Anexo I –Proposta de Modelo de Atenção à Saúde a População em Situação de Rua
Indicadores
Objetivo
Geral
Desenvolver estratégias de
inclusão da população de rua no
Programa Médicos de Família
Aumento no
percentual de
atendimento aos
moradores de rua
pelo PMF.
1-Aumento de
Objetivo 1- Viabilizar o acesso dessa
Específico população aos recursos de saúde percentual de
disponíveis.
ações de saúde a
este público alvo.
2-Capacitar a equipe do PMF
para ações diferenciadas de
modo atender as necessidades da
população em situação de rua .
2- Percentual dos
profissionais do
Programa
Médicos de
Família que
participam da
capacitação.
3-Identificar o perfil das pessoas 3- Criação de
em situação de rua.
bancos de dados.
Resultados Ampliação
do atendimento a pacientes sem
moradia fixa pelo PMF.
Atividades Desenvolvimento de Oficinas de
capacitação para a equipe do
P.M.F.
Diminuição dos
problemas de
saúde do público
alvo.
Meios de
Verificação
Análise dos
prontuários do
PMF.
Fatores Externos
Os moradores de rua
têm interesse em ser
atendidos pelo P.M.F.
1-Prontuários
e Grupos Focais
1-O serviço de saúde
tem interesse em
ampliar a cobertura
dos serviços para a
população de rua.
2- Registros de
presença dos
profissionais do
PMF no curso de
capacitação.
2- Equipe do PMF
interessada no
desenvolvimento de
ações votadas para a
população de rua.
3-Questionários
aplicados.
3- Interesse de outros
setores na construção
do banco de dados.
Instrumento de
monitoramento.
-Implantar espaço de negociação
e de articulação intersetorial
(públicos e privado) e parcerias
como ONGs, instituições
religiosas e outros.
Insumos
- Criação do banco de dados
para análise e enfrentamento dos
problemas de saúde da
população em situação de rua.
-Profissionais de saúde
Representante da
Associação de Moradores
-Recursos para bancos de dados
-Prontuários
Consultas/Medicamentos
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SEMINÁRIO
NACIONAL
EM
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DE RUA:
SEMINÁRIO
NACIONAL POPULAÇÃOPESSOAS
EM SITUAÇÃO DE RUA:
Perspectivas
e Políticas Públicas
Perspectivas e Políticas Públicas
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Trabalho voluntário em prol da população em situação de rua: o caso do
Posto de Rua “Eurípedes Barsanulfo” no Município de São Carlos-SP
Karina Granado
Programa de Pós-graduação em Ciências da Engenharia Ambiental da Universidade de São Paulo PPGSEA/USP
[email protected]
Amanda Cristina Murgo
Graduanda em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
[email protected]
Juliana Sartori
Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos; integrante do o Núcleo de Estudos e
Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED); bolsista do Projeto de Extensão financiado pela PRo-Ex.
[email protected]
Resumo: Este artigo visa uma análise acerca do voluntário que se dedica a um trabalho em
prol da população em situação de rua. Será traçado um breve histórico sobre o voluntariado,
bem como as motivações possíveis que levariam o cidadão a escolher este tipo de atividade.
Foi coletada e sucintamente analisada as falas dos trabalhadores sobre vários aspectos
motivadores e, a cada categoria identificada, foi apontado o extrato correspondente.
Palavras-chave: População em situação de rua; Trabalho voluntário; Motivação.
1. Introdução
A questão do trabalho voluntário organizou-se institucionalmente a partir do governo
Fernando Henrique, idealizado pela antropóloga Ruth Cardoso que foi a primeira Presidente
do Conselho da Comunidade Solidária (lançado em 1997), que visava o fortalecimento da
sociedade civil e sua efetiva participação nas questões sociais, tais como fome, crianças, meio
ambiente, etc.
Antes disso, os grupos que já se reuniam com o mesmo intuito eram movidos pela caridade,
mas com a institucionalização do trabalho voluntário, não quer dizer que a caridade foi
deixada de lado, muito ao contrário: houve uma re-significação tanto do conceito de caridade
como também uma re-significação da própria cidadania (SILVA, A. S, 2006, p. 23) posto que
hoje, o voluntário tem um caráter de integração, tolerância, responsabilidade e cidadania, esta
última até com certa nuance de ‘dever’ perante a sociedade, no sentido de cidadãos
cumpridores de seus deveres para a formação de novos cidadãos.
Assim Landin e Scalon (2000) definem o voluntário como “o cidadão que, motivado pelos
valores de participação e solidariedade, doa seu tempo, trabalho e talento, de maneira
espontânea e não remunerada, para causas de interesse social e comunitário”.
Para Campos e Bresolim (2001) apesar de muitos índices constatarem um aumento no número
de trabalhadores voluntários1, existem dados dando conta de que, em alguns lugares, o
Censo (2000) realizado pela Revista Forbes mostra que entre 1997-1999, o número de voluntários no Brasil
cresceu 73,3% (citado por Campos e Bresolim, 2000).
1
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SEMINÁRIO
NACIONAL
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DE RUA:
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NACIONAL POPULAÇÃOPESSOAS
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e Políticas Públicas
Perspectivas e Políticas Públicas
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número diminuiu (Belo Horizonte, por exemplo2), e as causas variam: desinteresse do
voluntário por algumas empresas não valorizarem funcionários engajados neste tipo de
trabalho; por desinteresse pelo ‘próximo’, de uma maneira geral, além de muitas outras
razões.
Aquele indivíduo que insiste e decide ser voluntário, encontra um leque de atividades muito
amplo, como por exemplo, atividades com crianças, idosos, animais e em hospitais.
Entretanto, ao se falar em trabalho em prol de pessoas em situação de rua, constata-se uma
grande dificuldade em manter fixo um corpo de voluntários comprometidos: alguns dizem
que é porque a figura do morador de rua inspiraria medo; outros devido a sujeira e odor;
outros porque o voluntário ajudaria, mas não veria o retorno de seu trabalho e isso o
desestimularia.
Sejam quais forem as razões, o fato é que este tipo de trabalho enfrenta uma rotatividade alta
de voluntários, exigindo daqueles que abraçaram a causa, uma organização e trabalhos
dobrados.
Exatamente neste ponto é que surgiu o interesse deste trabalho: quais são os motivos que
levam o voluntário para um trabalho que assiste pessoas em situação de rua e o que os
mantém ligados a ele?
1.1.
Estudo de caso: o Posto de Rua “Eurípedes Barsanulfo”
Atualmente, percebemos que tanto o Poder Público quanto a sociedade, voltaram seus olhos
para o grupo social que até então era tido como praticamente invisível: a população em
situação de rua.
O estudo do Ministério do Desenvolvimento Social – MDS (Sumário Executivo de abril de
20083), censos estaduais4 e o noticiário em geral comprovam que a atenção foi despertada.
Entretanto, existem alguns trabalhos que assistem essa população muito antes desse despertar.
Um desses exemplos é o Posto de Rua “Eurípedes Barsanulfo”, que iniciou suas atividades
em Maio de 2002 no Município de São Carlos, inspirado num trabalho similar que acontecia
no Vale do Anhangabaú na cidade de São Paulo.
O Posto de Rua (como todos o chamam) acontece aos domingos, numa praça central do
município de São Carlos e com a devida autorização municipal. Os voluntários reúnem-se às
07:00 na sede da USE – União das Sociedades Espíritas de São Carlos, que fica em frente a
praça onde o trabalho acontece. A atividade consiste em servir leite e bolacha aos que chegam
às 09:00 e a partir daí, inicia-se uma palestra com assuntos ligados à esta população em
situação de rua, tais como álcool, drogas, trabalho, família, saúde e outros. É servido sopa (ou
macarrão, galinhada, arroz de carreteiro), salada de frutas e, concomitantemente, acontece o
‘posto de higiene’ com corte de cabelo, barba e unhas; curativos emergenciais; doação de
roupas, calçados e kits de higiene (sabonete, papel higiênico, creme dental, escova de dente,
2
3
Campos e Bresolim, 2000, p. 06.
BRASIL, MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, SECRETARIA DE AVALIAÇÃO E GESTÃO DA INFORMAÇÃO –
SAGI, in PUBLICAÇÕES/RESULTADOS DE PESQUISAS. Disponível em: <
http://www.mds.gov.br/institucional/secretarias/secretaria-de-avaliacao-e-gestao-da-informacao-sagi/pesquisas>. Acesso em 06
jun 08.
4
BRASIL, Prefeitura de Porto Alegre – RS. Contrato 026/2007 – UFRGS –FASC - Estudos quanti-qualitativos.Relatório Final
Cadastro de Crianças, Adolescentes e Adultos em Situação de Rua e Estudo do Mundo da População Adulta em Situação de
Rua de Porto Alegre/ RS in <www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc>. Acesso em 28 maio 2008.
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NACIONAL
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e Políticas Públicas
Perspectivas e Políticas Públicas
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sabão em barra e aparelho de barbear). O grupo possui um histórico das doações realizadas
preteritamente, mas que ainda carece de aprimoramento. Dentro do próprio grupo, existem
grupos menores que se organizam em escalas intercaladas para fazerem a sopa e salada de
frutas semanalmente (sábado à noite), para que tudo esteja pronto no domingo pela manhã.
O foco de atendimento do grupo não é meramente assistencialista. A preocupação é o resgate
social e de direitos, pois apesar das adversidades diárias da vivência na rua, são indivíduos
que possuem uma identidade e uma história e devem voltar a protagonizar os papéis sociais,
como a reinserção no mercado de trabalho, por exemplo. O grupo identificou nestes 06 (seis)
anos de trabalhos (e, recentemente, em conjunto com o Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais
de Desastres da Universidade Federal de São Carlos - NEPED/UFSCar – Maio de 2007 e
Julho de 2008), moradores de rua com as mais diversas profissões, tais como garçons,
advogados, mecânicos, motoristas, rurais, técnicos de laboratório, químicos, professores,
cozinheiros, pedreiros, serviços gerais, demonstrando, com isso, que a aparente
‘desqualificação’ voluntária do grupo, é desmentida diante do ofício5 de cada um deles.
Antes do início das atividades do Posto de Rua na praça, todos os voluntários se reúnem para
fazer um breve ‘estudo’ (denominação dada pelo grupo de trabalho) que dura cerca de 30
(trinta) minutos para tratar de temas pertinentes ao aprendizado de cada trabalhador sobre a
temática do ‘viver nas ruas’ e, conseqüentemente, melhorar a qualidade do trabalho
desenvolvido junto à população assistida. No final da manhã e, após a limpeza geral, alguns6
voluntários se reúnem para avaliar o dia de trabalho, com seus prós e contras, visando que
cada experiência sirva de modelo para correções e exemplo futuros. O foco de
atenção/sugestão de aprendizado é: “O que eu aprendi hoje?”.
O lema do Posto de Rua “Eurípedes Barsanulfo” é respeitar o indivíduo assistido nas suas
limitações, “plantando uma idéia na mente de cada um deles e aguardar pela germinação,
que tem que partir deles próprios, ou seja, que os frutos cresçam de dentro pra fora e que
eles próprios concluam qual o melhor caminho”.
Indagados os voluntários sobre a possibilidade desta ‘conclusão própria’ não ser a esperada
pelo grupo, responderam que “eles não estarão sozinhos. O Posto de Rua não quer apenas
‘dar coisas’, mas quer fortalecer aquilo que hoje eles não têm: auto-estima, respeito,
reconhecimento das suas capacidades, amizade e amor e aí sim, a partir daí, que eles tenham
condições, como qualquer outra pessoa, de tomarem as melhores decisões pra eles”.7
O grupo luta para que a sociedade mude o olhar repleto de preconceitos lançado para a
população em situação de rua, deixando de ser aquela tradicional imagem do homem e da
mulher sujos, alcoolizados, descompromissados com a vida e que escolheram a situação de
rua por opção. Os voluntários trabalham para que os assistidos sejam reconhecidos como
iguais e como indivíduos integrantes da sociedade que tanto os excluem.
2. O trabalhador voluntário: considerações preliminares
Novo Dicionário Aurélio. (2000) Ofício: [Do lat. officiu, ‘dever’.] 1.Ocupação manual ou mecânica a qual supõe
certo grau de habilidade e que é útil ou necessária à sociedade.
6
Alguns dos trabalhadores são donas-de-casa e, devido aos afazeres domésticos nas suas casas, saem mais
cedo do Posto de Rua.
7
Fala dos voluntários em um momento de avaliação do trabalho (27.04.2008).
5
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NACIONAL POPULAÇÃOPESSOAS
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e Políticas Públicas
Perspectivas e Políticas Públicas
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Muitos autores (Abraham Maslow8 (1954) e David McClelland9 (1967) trabalham com a
questão da motivação, mas diante de tantos pontos de vista, constatam ser a motivação ainda
um conceito de trajetória imprecisa. Joseph Nuttin (1969) pontua que os ‘motivos’ são
“fenômenos psicossociais entendidos como relações requeridas entre o ambiente e o sujeito”
(citado por SAMPAIO, 2006, p. 120) associados a escolhas de metas e objetivos pelo sujeito.
A motivação não se confunde com “razões alegadas para a ação”, pois esta pode ser uma fala
‘politicamente correta’ e que não retrataria o valor pessoal do indivíduo. Para se descobrir o
que motiva o trabalhador voluntário, é necessário uma análise da sua trajetória de vida, da sua
cultura, das suas necessidades (morais e profissionais), das suas tendências, de seus objetivos
e metas, enfim, de todo o seu contexto social.
O aspecto religioso também é uma das facetas de análise: muitos dos trabalhadores
voluntários são impulsionados por um sentimento de compaixão para com o outro ‘carente’.
Nestas relações de ajuda, o processo envolvido é sempre a perda de algo, ou seja, a atenção do
indivíduo fixa-se em eventos onde pessoas estão privadas do mínimo e exatamente isso é o
que desperta a ajuda daquele.
No caso da população em situação de rua, a dificuldade deste grupo resgatar o que foi perdido
é em grau muito mais elevado que qualquer outro grupo necessitado: na maioria das vezes,
além da questão material, eles perderam a própria identidade, a dignidade, a família; perderam
os elos que os mantinham unidos à sociedade estabelecida (ELIAS, 2000).
Por mais que existam organizações que visem angariar recursos para saciar a fome e o frio,
atingir e reverter os focos dos problemas basilares desse grupo é uma tarefa complexa que
exige do voluntário maior disposição e desprendimento.
2. Categorias de ‘motivação’ para a realização de trabalho junto a população em situação
de rua
Segundo Mauss (2003) a motivação possui um ciclo: o ciclo da ‘dádiva’, que é o dar, o
receber e o retribuir, cujas trocas não são feitas somente por indivíduos, mas sim, pela
sociedade representada pelos indivíduos, que acabam por iniciar e/ou fortalecer seus vínculos
sociais. Godelier (2001) aduz que a partir do ‘primeiro gesto’(iniciador do ‘ciclo da dádiva’),
o voluntário que dá (tempo, conhecimento, alimento, etc.) colocaria o ‘outro’ que recebe em
dívida. Este, por sua vez, ficaria com a sensação de dever de retribuição, libertando-se disso a
partir do momento que restituir o que lhe foi dado, revelando uma dicotomia entre doação x
dívida. Nas observações durante o transcorrer do trabalho do Posto de Rua, observamos
algumas frases que comprovam a idéia:
(...) poxa, os caras aí tão aqui com a gente; saíram da cama quente deles pra
ficá no meio da gente aqui na chuva, ó. (...) (palavrão), o mínimo é a gente
se comportá, cara (...).10
8
MASLOW, Abraham H. Motivation and personality. New York: Harper & Brothers. 1954.
MCCLELLAND, David. Personality. New York: Holt & Rhinehart and Winston, 1967.
10
Fala do morador de rua “1” quando na hora de um tumulto na fila da sopa (18 de maio de 2008).
9
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(...) João, os caras aí te deram o sapato, cara (...). Se não te serve, ocê tem
que dar pra outro, meu! (g.n.).11
(...) nossa, Valéria (trabalhadora voluntária), voceis tão aqui todo domingo
me ajudando e eu num tomo jeito.... Eu tenho que fazê alguma coisa em
troca (Valéria responde que ele não deve nada aos trabalhadores, nem ao
Posto de Rua). Não... (choro), eu tenho sim (choro)... mas o quê meu
Deus?... O que eu posso fazê? Eu num tenho nada...12
Identificamos nas falas colhidas esse ‘sentimento de dívida’ para com o trabalho,
comprovando a teoria de Godelier (2001). Apesar disso, a fala (resposta) unânime dos
voluntários era a de que se caso o morador de rua tivesse que “devolver” alguma coisa, que
fosse uma atitude positiva diante da vida tão sofrida deles próprios (resistir aos vícios em
geral, reconhecer-se como capaz, etc.).
A participação observativa das pesquisadoras buscava identificar as razões de trabalhar
voluntariamente com pessoas em situação de rua. Freqüentando o Posto de Rua, foi possível
apontar que, primeiramente, a busca da igualdade era o almejado entre os trabalhadores, ou
seja, antes ou após o trabalho, era despertado em cada indivíduo um sentimento de que sua
presença naquele ambiente poderia contribuir para diminuir as desigualdades existentes entre
a sociedade estabelecida e o grupo outsider (ELIAS, 2000).
Em breve síntese, podemos destacar os seguintes resultados que demonstram várias
‘motivações’ para ser voluntário junto a um trabalho com pessoas em situação de rua:
a)
Preocupação com os moradores de rua, sem vislumbrar retorno/reconhecimento:
A gente sabe que eles não são todos (enfatizou a palavra ‘todos’)
coitadinhos; muitos não quer (sic) mesmo sair das ruas, trabalhar ou parar de
beber e acho que é por isso que antes eu nem me importava. Aí um dia me
convidaram e confesso que vim de má vontade... (risos). Me colocaram pra
servir a sopa e quando vi a fome deles, cara, (silêncio) a minha ficha caiu de
vez. Que me importava se ele tava a fim de sair da rua ou não? (gestos com a
mão). Minha obrigação era mesmo ajudar aquilo ali viu...Vi que eu não era
ninguém pra julgar ninguém.13
b)
Motivação pessoal – melhora como ser humano;
Desde criança fico comovida com estas pessoas que andam pelas ruas, sem
rumo, sem perspectiva. Quando descobri o trabalho foi como realizar algo
que estava pendente.14
Vim pela curiosidade mesmo. Uma amiga me convidou, achei legal. Aí vi
cenas (apontou para um assistido que dava sopa para um cachorro) que
11
Fala do morador de rua “2” quando recebeu doações de roupas e calçados (06 de janeiro de 2008).
Fala do morador de rua “3” quando lhe é servido a salada de fruta e bolo de chocolate (31 de agosto de 2008).
13
Fala do trabalhador (aposentado)(27 de janeiro de 2008).
14
Fala do trabalhador (profissional liberal) (19 de outubro de 2008).
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nunca tinha parado pra prestar atenção e vi como foi importante pra mim,
como ser humano, ter vindo pra cá. Penso que cresci.15
Depois de vir pro Posto de Rua, comecei a dar mais valor na minha vida, nas
coisas que eu tenho... agora percebo que ficava incomodada com coisas tão
pequenas e que não vale a pena. Não precisei mais de terapia.16
c)
Troca/recebimento de contato pessoal e afetivo: fonte de gratificação;
Confesso que estou aqui até acho que por um sentimento egoísta, porque sei
que quando voltar pra casa serei alguém melhor. Cada dia que acordo no
domingo, com vontade de assistir a corrida e ficar na cama, lembro deles
aqui na praça, com fome e frio, sem perspectiva nenhuma e é isso que me
anima. No final, a sensação de ter feito a minha parte não tem preço que
pague. O primeiro beneficiado sou eu.17
d)
Foco de ajuda primeiro no trabalho, antes mesmo do assistido:
Eu não tenho afinidade em ficar lá na praça conversando com eles... Não
sei...ainda não me deu vontade. Venho aqui porque quero trabalhar pelo
próximo e como sou dona de casa, gosto mesmo de ficar aqui lavando a
louça. Acho que eu ajudo, não ajudo? (risos).18
Eu não tenho como vir no Posto de Rua de domingo porque eu trabalho, mas
faço questão de correr atrás de doações. Eles me comovem, sabe?19
e)
Motivação religiosa:
Jesus nos ensinou como devemos agir e eu só to seguindo as palavras dele.
Tento a cada dia amar o próximo. Me faz bem. O Posto de Rua me dá essa
oportunidade, porque é muito fácil amar um ‘próximo’ cheiroso: eu quero
ver é amar um ‘próximo’ sem tomar banho, perdido e cheio de problemas!20
f)
Criação de vínculos de amizades
Esse grupo é muito jóia (risos). Aqui fiz amizades para o resto da vida.21
Diante dos depoimentos obtidos e, após análise, pudemos analisar e concluir que os
voluntários são motivados por diferentes categorias, cada qual afinada com o contexto social
vivificado por cada trabalhador.
15
Fala do trabalhador (estudante universitário) (19 de outubro de 2008).
Fala do trabalhador (dona de casa) (19 de outubro de 2008).
17
Fala do trabalhador (professor) (19 de outubro de 2008).
18
Fala do trabalhador (dona de casa-2) (11 de maio de 2008).
19
Fala do trabalhador (metalúrgico) (09 de março de 2008).
20
Fala do trabalhador (aposentada) (01 de junho de 2008).
16
14 de novembro de 2008, UFSCar
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SEMINÁRIO
NACIONAL
EM
SITUAÇÃO
DE RUA:
SEMINÁRIO
NACIONAL POPULAÇÃOPESSOAS
EM SITUAÇÃO DE RUA:
Perspectivas
e Políticas Públicas
Perspectivas e Políticas Públicas
14 de novembro de 2008, UFSCar
3. Motivações ‘diversas’; orientações ‘únicas’
Após a identificação de várias categorias motivadoras para que o voluntário realize um
trabalho junto à população em situação de rua, as pesquisadoras perceberam que, apesar
destas várias ‘motivações pessoais’, todos os voluntários pautam suas condutas e atitudes
através de orientações ‘únicas’, ou seja, um rol de comportamentos que devem ser seguidos
por aqueles que trabalham junto ao Posto de Rua. O grupo voluntário não se dá conta de que
este tipo de orientação exclusiva existe: o rol é transmitido ao novo voluntário (bem como
ratificado aos demais) no momento de preparação do grupo, antes das atividades
desenvolvidas na praça. Conversando a respeito, percebemos que estes saberes foram
adquiridos durante os anos de trabalho, segundo eles “depois de muitos erros e muitos
acertos”, nunca perdendo de vista que “muitas vezes, a maior caridade é dizer ‘não’” e por
mais difícil que seja.
O rol abaixo indicado é fruto de pesquisa junto aos trabalhadores, nos mais diversos
momentos da atividade por eles desenvolvida:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
Não usar roupas decotadas e/ou curtas;
Não ostentar jóias e/ou aparelhos eletrônicos;
Ter a fala simples;
Olhar cada um nos olhos; ficar no mesmo nível; sentar-se ao lado, sem receios;
Que a pessoa mais importante do dia seja o assistido: “o ouvir é de ouro”;
Jamais repreender! A ‘conversa fraterna’ deverá levar o assistido a concluir (sozinho) de que a
atitude que toma nem sempre é a mais correta;
Respeitar o tempo (despertar/compreensão) de cada um (tanto trabalhador como assistido);
Mesmo diante de tristes histórias, ponderar o dizer ‘sim’ à tudo que for pedido;
Procurar realizar as leituras sugeridas (quando sugeridas) com o fim de sintonia prévia ao
trabalho, sintonia não apenas entre os trabalhadores (fortalecimento dos laços de amizade do
grupo), mas que o conhecimento possa trazer equilíbrio para que o atendimento seja eficaz;
Ser organizado, pontual, engajado e comprometido com todas as atividades, não apenas as que
transcorrem no domingo (dia do trabalho), mas sempre angariar os materiais utilizados no
trabalho: alimentos (frutas, leite, chocolate, macarrão, temperos, frango, bolachas), roupas e
calçados masculinos, kits de higiene, palestrantes, etc.;
Ser prestativo e não escolher trabalho: a rotatividade de atividades desenvolvidas é muito
importante para o andamento perfeito do todo;
Esterilizar (ferver) todos os utensílios de cozinha (preocupação com hepatite);
Tomar vacinas; usar luvas ao fazer curativos e cortar o cabelo;
Cuidar do lugar onde o Posto de Rua realiza suas atividades: ao término, tudo deve estar limpo
e arrumado;
Todos os trabalhadores terem os contatos (telefone, e-mail) de todos os outros com o fim de
diminuir os imprevistos.
4. Considerações Finais
21
Fala do trabalhador (estudante) (04 de maio de 2008).
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SEMINÁRIO
NACIONAL
EM
SITUAÇÃO
DE RUA:
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NACIONAL POPULAÇÃOPESSOAS
EM SITUAÇÃO DE RUA:
Perspectivas
e Políticas Públicas
Perspectivas e Políticas Públicas
14 de novembro de 2008, UFSCar
O tempo de convivência com o grupo demonstrou que o voluntário deve ter afinidade, não
somente com a população em situação de rua, mas também com os demais integrantes do
trabalho. O desejo comum de ‘fazer a diferença’, ‘diminuir as desigualdades’, ‘estimular a
auto-estima do morador de rua, fazendo com que ele corresponda, ao seu tempo, a ajuda
ofertada’, são metas que o grupo demonstrou de maneira coesa. A questão religiosa (80% do
grupo são espíritas kardecistas22) direciona alguns comportamentos (preces antes e depois dos
trabalhos, leitura do Evangelho), mas o discurso-base é o da participação do cidadão na
sociedade que vive, acreditando na importância de trabalhar voluntariamente para que haja
uma efetiva mudança social.
Referências
BAUMAM, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CAMPOS, W.T.; BRESOLIN, A.B. Voluntariado: tendência em crescimento?
<http://www.fundata.org.br/Artigos%20-%20Cefeis/03%20-%20VOLUNTARIADO.pdf>.
2001. Acesso em 21 out 2008.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. (2000). Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro
(RJ): Jorge Zahar Editor.
GODELIER, M. O Enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
LANDIN, Leilah e SCALON, Maria Celi. Doações e trabalho voluntário no Brasil – uma
pesquisa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: Forma e razão da troca nas Sociedades Arcaicas. In
sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
NUTTIN, Joseph. A estrutura da personalidade. São Paulo: Duas Cidades. 1969.
SAMPAIO, J.R. Voluntários: um estudo sobre a motivação de pessoas e uma cultura de uma
organização de terceiro setor. (Tese) Universidade de São Paulo – USP - Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade. 255 p. 2004.
SILVA, A. F. Trabalho Voluntário: considerações sobre dar e receber. (Dissertação)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ - Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas – Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. 126 p. 2006.
22
Doutrina baseada na obra codificada por Allan Kardec.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
VIOLÊNCIA COMO HERANÇA DA EXCLUSÃO SOCIAL:
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na Cidade do Rio de Janeiro
Violência como herança da exclusão social:
Crianças e adolescentes em situação de rua na Cidade do Rio de Janeiro
Samantha Oliveti de Goes
Mestranda em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas
Faculdade de Educação da Baixada Fluminense – FEBF
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
[email protected]
Resumo: Objetiva-se refletir sobre um trabalho realizado em atuação conjunta com
educadores de rua, no que chamávamos de “resgate” de meninos e meninas em situação de
rua. Far-se-á breve relato sobre alguns fatos e termos que são utilizados por profissionais
que lidam com este público. Analisar-se-á a dinâmica de vida de meninos e meninas que,
expostos a negativa histórica da sociedade, criam condições de sobrevivência com
antagonismo e imprevisibilidade. Sem a assistência estatal ou de órgãos responsáveis, esses
sujeitos tornam-se alheios ao exercício da cidadania. O cotidiano coloca-os frente ao
preconceito e ao descrédito, evidenciando sua exclusão social, que é manifestada pelo
discurso do outro, sendo uma via de disseminação do preconceito através da linguagem onde
termos pejorativos desvalorizam a imagem. A banalização da violência aparece nas
agressões e chacinas que ganham destaque na mídia, e nas práticas discriminatórias, na
criação de piadas e apelidos pejorativos, na afirmação do “di menor” em detrimento da
criança ou do adolescente, e na confirmação do “menino de rua” – filho de calçada e asfalto,
sem referências familiares. Acirra-se o “revide” a quem ofende, a violência a quem violenta,
retira-se deles a mínima preocupação com a vida, já que “não se tem nada a perder”.
Palavras-chave: Exclusão Social; Violência; Cidadania.
1. Introdução1
Ao refletir sobre a cidadania, questiona-se até que ponto sua idéia é inserida na prática
cotidiana. Se esta envolve valores morais, éticos e humanos, então a sociedade estaria
praticando uma “descidadania2” ao não observar a prática da exclusão social no seu
cotidiano? Para ser cidadão, é imprescindível ser ético e democrático. Mas, mediante a
violência da exclusão, pratica-se a cidadania? Em que sentido a igualdade mediante a
diferença reforça a democracia ou a exclusão?
A viabilidade das práticas democráticas ocorre através do incentivo à cidadania participativa,
complementar à cidadania regulada. De acordo com YOUNG:
A teoria política moderna afirmou o valor moral igual de todas as pessoas, e
movimentos sociais do oprimido levaram seriamente isto como implicando a
inclusão de todas as pessoas no estado de cidadania debaixo da proteção igual da lei.
Cidadania para cada um, e todo o mundo com o mesmo status quo. Teorias políticas
modernas assumiram que a universalidade da cidadania no sentido de cidadania para
tudo implica no sentido que cidadania transcende particularidade e diferença. (...) A
universalidade da cidadania no sentido da inclusão e participação de todo mundo,
1
Ressalta-se que os nomes dos citados são fictícios.
Entende-se por “descidadania” as práticas cotidianas que, tendo por base a cidadania e igualdade para todos,
retira o caráter e o direito de cidadania dos que são considerados diferentes ou minorias. Ou seja, seria o ato ou
efeito de retirada do individuo dos elementos que constituem, hoje, a cidadania, quais sejam, direito a nome,
propriedade, saúde, bem-estar, moradia, educação, igualdade jurídica, de oportunidades, liberdade física e de
expressão, saúde, trabalho, cultura, lazer, emprego, meio-ambiente saudável, sufrágio universal e secreto,
iniciativa popular de leis, etc. enfim, o que é imprescindível para o mínimo de dignidade do ser humano.
2
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
VIOLÊNCIA COMO HERANÇA DA EXCLUSÃO SOCIAL:
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na Cidade do Rio de Janeiro
está em tensão com os outros dois significados de universalidade embutidos em
idéias políticas modernas: universalidade como generalidade, e universalidade como
tratamento igual. (YOUNG, 1995)
Segundo o IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal):
O conceito de cidadania envolve naturalmente o direito da maior participação
possível dos cidadãos no processo decisório governamental, muito particularmente
no campo dos chamados serviços sociais: educação, saúde, saneamento básico,
transportes coletivos, recreação, cultura, previdência social e várias formas de
assistência social. (IBAM: 2006)
Assim, a universalidade de direitos dar-se-á apenas com a participação popular, que pode ser
incentivada através de uma educação popular no sentido da participação. Entretanto, tendo
como foco a criança e/ou o adolescente em situação de rua, que possui em seu cotidiano a
cidadania negada e não garantida, como então garantir a participação política deste público? E
mediante quais instrumentos?
Hoje, entende-se que cidadania seria a conquista dos direitos civis e sociais mínimos por parte
dos cidadãos, e ao mesmo tempo, implica que os cidadãos também possuem deveres.
Portanto, a cidadania coletiva é a extensão de direitos e deveres aos excluídos, para que se
garanta a inclusão social, através do comprometimento da sociedade. Chega-se à cidadania
plena através da colaboração, negociação e diálogo entre os distintos setores sociais, e a
promoção de políticas públicas tendentes a reduzir a desigualdade social.
Para que a democracia se configure, não é bastante que o Estado atue positivamente na
satisfação das necessidades das camadas populares carentes ou redistribua a riqueza em vista
a maior eqüidade entre as classes sociais. Imprescindível é, para sua existência, a participação
de todos, de todas as classes componentes da sociedade no processo político e econômico.
Não é suficiente que se dêem direitos ou que se permita a eleição direta de representantes se a
população não detém espaço para defender seus interesses.
O direito individual da liberdade de consciência, insuficiente por si só, vem alicerçado pelo
direito social à educação, o qual possibilita um adequado desenvolvimento intelectual e
cultural gerador de capacidade crítica e de discernimento, sem o qual não se alcança um grau
satisfatório de consciência livre de induções ou manipulações. Os Direitos Sociais (saúde,
educação, trabalho, lazer...) surgem como meio ou instrumento para que se alcancem os fins
desejados, almejados pelos Direitos Individuais (liberdade, igualdade, direito à vida digna...).
Torna-se cidadão aquele que possui e exerce todos estes direitos. Formula-se, portanto, o
corrente conceito de cidadania, que é a completa fruição e exercício dos Direitos Individuais,
Sociais, Políticos e Econômicos garantidos pela Constituição. Para o perfeito exercício da
cidadania requer-se igualdade jurídica, de oportunidades, liberdade física e de expressão,
educação, saúde, trabalho, cultura, lazer, pleno emprego, meio-ambiente saudável, sufrágio
universal e secreto, iniciativa popular de leis, etc.
Assim, tratar do assunto “crianças e adolescentes em situação de rua” significa lidar com o
público que, historicamente, herda a não-cidadania, a não participação enquanto reforço de
sua condição de excluído. Tornam-se excluído tanto por sua condição, quanto por suas
próprias definições e foco demográfico, que são contraditórios e, quiçá, desconhecidos.
As discrepâncias existentes quanto ao número de crianças nas ruas se devem, em grande
parte, ao fato de não existir uma definição clara e consensual do que sejam crianças de rua
(BANDEIRA, KOLLER, HUTZ & FORSTER, 1994). Até o início dos anos 80, as crianças e
jovens vistos nas ruas dos grandes centros urbanos, eram tidos como abandonados, carentes,
de comportamentos divergentes ou condutas anti-sociais e, finalmente, de menores infratores.
A estas expressões estava, usualmente associada, a imagem de crianças e adolescentes pobres
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
VIOLÊNCIA COMO HERANÇA DA EXCLUSÃO SOCIAL:
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na Cidade do Rio de Janeiro
que habitavam as ruas, uma vez que não mantinham nenhum vínculo familiar, pois provinham
de "lares desfeitos", "desorganizados e "desestruturados" (RIBEIRO, 1987).
A partir da década de 80, com o surgimento da denominação meninos de rua ou crianças de
rua, e com a realização de uma série de pesquisas (RIZZINI, 1986), que foi desmistificada a
imagem da ruptura dos laços familiares como única e maior causa do ingresso de crianças e
adolescentes nas ruas. Rizzini mostrou que a maior parte destas crianças tinha família e vivia
com os pais, sendo inferior ao número das que de fato residiam nas ruas, sem manter vínculos
familiares ou os mantendo de forma irregular.
A terminologia "meninos de rua" pode ser compreendida sob duas óticas: a das crianças e
jovens que vivem nas ruas e nelas garantem o seu sustento, e a das que são oriundas de
bairros populares e que fazem uso das ruas visando ou não contribuir com o orçamento
familiar. Desta forma, alguns estudos passaram a utilizar dois termos diferenciados, "meninos
de rua", para designar o primeiro grupo, e "meninos na rua", para designar o segundo, isto é, o
dos meninos que apenas passam o dia nas ruas. KOLLER e HUTZ (1996) utilizam a
terminologia "crianças em situação de rua", tornando-o mais adequado para fazer referência
aos dois grupos.
2. A entrada no campo
A banalização da violência contra meninos e meninas em situação de rua aparece não apenas
nas agressões propriamente ditas e nas chacinas que ganham destaque na mídia, mas também
nas práticas discriminatórias, na criação de piadas e apelidos pejorativos (pivetes,
trombadinhas, sementes do mal), na afirmação do “di menor” em detrimento da criança ou do
adolescente, e na confirmação do “menino de rua” – filho de calçada e asfalto, sem
referências familiares. Tal discriminação, independente do grau em que ocorra, afeta a
formação desses indivíduos, gera desmotivação, baixa-estima, negação de identidade,
aceitação de inferioridade, sentimento de incapacidade. Por outro lado, acirra-se o “revide” a
quem ofende, a violência a quem violenta, retira-se deles a mínima preocupação com a vida,
já que “não se tem nada a perder”.
Ingressei como assistente social numa organização não-governamental durante o seguinte
acontecimento: em março de 2002, por volta das 18:00, Diego e seu amigo, Thiago, foram ao
supermercado na Rua do Riachuelo comprar leite para seu irmão, uma criança recém-nascida,
que encontrava-se com sua mãe, Sandra, no Anfiteatro dos Arcos da Lapa. Com Sandra,
também estavam cerca de doze crianças e adolescentes em situação de rua, que a reconheciam
como “mãe” da rua, dada a falta e/ou ausência dos pais biológicos dos que ali estavam3.
Ao retornar do supermercado, Diego foi surpreendido por um oficial do Batalhão de
Operações Especiais (BOPE), de 22 anos que, segundo Sandra, costumava acharcar4 os
meninos para que estes pudessem vender drogas na noite da Lapa e repassar o lucro para ele.
Percebendo que Thiago e Diego não possuíam dinheiro, o oficial mandou que eles corressem,
e acertou três tiros à queima-roupa pelas costas de Diego, que faleceu no local. Thiago só
escapou porque escondeu-se debaixo de uma kombi estacionada.
Revoltados, e com medo de represálias, todos que se encontravam no anfiteatro correram para
se esconder dentro da ONG, que se situava do outro lado da Rua do Riachuelo. Sandra e seus
outros três filhos biológicos se dirigiram à 5ª Delegacia de Polícia para registrar a ocorrência.
O oficial foi preso em flagrante.
No dia seguinte, alguns policiais foram à ONG e ameaçaram toda a equipe e os meninos e
meninas que ali se encontravam, informando que se não retirassem a queixa de homicídio
3
4
Retomo o tema “família” mais a frente.
Cobrar dinheiro de forma abusiva.
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VIOLÊNCIA COMO HERANÇA DA EXCLUSÃO SOCIAL:
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na Cidade do Rio de Janeiro
matariam todos que ali estavam. Os meninos, revoltados, passaram a atirar pedras nos
policiais, que desferiram vários tiros para o interior da instituição.
Neste dia, fui contratada para trabalhar na ONG, sem saber do que ocorria. Quando entrei na
sala de Serviço Social, as outras duas assistentes sociais que ali trabalhavam haviam pedido
demissão, recomendando-me a fazer o mesmo. Não voltei atrás. De repente, deparei-me com
uma instituição que, à época, estava completando 18 anos de existência e dentro de um mês
receberia a Rainha Sylvia da Suécia para parcerias de trabalho e financiamento. Por outro
lado, nunca havia trabalhado com crianças e adolescentes em situação de rua, não havia
nenhum profissional do serviço social que pudesse me orientar quanto a certos procedimentos
técnico-burocráticos adotados pela instituição. Não conhecia a vida de nenhum menino ou
menina que viesse me procurar. Não tinha idéia do tipo de trabalho que poderia fazer com
eles.
O que segue neste trabalho são relatos do que aprendi e vivenciei no período que lá estive,
mas que, ainda hoje, deixa frutos de compreensão e aprendizado, e traz à tona reflexões
acerca de conceitos de cidadania e violência.
3. Cidadania e negação
Após o ocorrido, conversamos com Sandra. Mãe de 6 filhos, na época, seu mais velho, de 23
anos, estava preso por tráfico de drogas. Diego, 12 anos, foi assassinado na sua frente. Seu
filho, recém-nascido, foi entregue para adoção pelo Juizado de Infância e Juventude por ter
sido abandonado no Hospital Municipal Souza Aguiar, já que Sandra não possuía condições
de amamentá-lo por ser portadora do vírus HIV, infectada pelo próprio marido, que a
espancava constantemente. Este havia morrido há mais de um ano, e desde então ela
abandonou seu barraco no morro da providência e passou a recolher latas e papelão na Lapa
para sustentar os filhos. Seu outro filho, Rodrigo, 16 anos, estava em medida sócio-educativa
no Instituto Padre Severino, por roubo. Sua filha, Adriana, 17 anos, prostituía-se e vendia
drogas para auxiliar a mãe e seus “irmãos de rua”.
Ao levantar a árvore genealógica de Sandra, esta informou que já não possuía nenhum parente
vivo. Todos – irmãos, irmãs, pais, avós – estavam mortos, a maioria vítima de traficantes ou
policiais. Na família, seus filhos eram a 4ª geração em situação de rua.
Após esse histórico, fizemos relatório ao Ministério Público, informando as condições de
sobrevivência de Sandra e seus filhos e solicitamos providências para que pudéssemos
oferecer o mínimo de cidadania à mesma. Entretanto, apesar de ter direito a um benefício
especial por ser portadora de HIV, o INSS5 o negou sob a alegação de que esta nunca havia
contribuído com a previdência Social, ou seja, nunca participou de uma vida cidadã, mesmo
que de modo regulado6. O Estado lhe cedeu outra casa no Morro da Providência, como forma
de indenização pelo assassinato de Diego. Porém, Sandra continuou na rua, pois a casa foi
tomada por traficantes 2 semanas depois.
Passamos a nos inserir na “roda” dos meninos por intermédio de Sandra e, aos poucos,
conhecemos a história de cada um, avaliando como se dava a interação social entre eles e
deles com o mundo ao seu redor, e avaliando o trabalho que até então era realizado pela
instituição. Sandra veio a falecer em 2006, na rua, de desnutrição e complicações referentes
ao HIV.
MARSHALL (1967: 63), ao se referir à noção de cidadania, tentou refletir sobre a nova
realidade criada pelas modificações impostas às relações sociais e políticas após um século de
lutas operárias e populares, com a irrupção e extensão do movimento operário internacional
5
Instituto Nacional de Seguridade Social.
A instituição recorreu a esta decisão, mas, infelizmente, Sandra já havia falecido quando deu-se parecer
favorável ao caso.
6
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VIOLÊNCIA COMO HERANÇA DA EXCLUSÃO SOCIAL:
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na Cidade do Rio de Janeiro
durante o século XX e, em particular, a vitória contra o nazi-fascismo e as conquistas sociais,
adequando formulações anteriores sobre os direitos políticos e sociais à situação do
capitalismo britânico do pós-guerra e fazendo um histórico do desenvolvimento da cidadania
moderna, dividindo-a em três partes: a civil (direitos individuais básicos), a política
(participação no poder político) e a social (bem-estar econômico e segurança).
No decorrer do séc. XX, com a crescente ampliação do direito de participação do indivíduo no
Poder do Estado, estabelece-se, gradualmente, a democracia social (MAGALHÃES: 2000,
114-115). O cidadão passa a ser o indivíduo portador de seus direitos políticos (que,
paulatinamente, vão-se incrementando), e detentor de seus direitos individuais, sociais e
econômicos.
O Estado Social, num primeiro momento, assume o paternalismo e o assistencialismo,
decidindo pelos atos da sociedade, direcionando sua vida e anulando sua independência e
vontade própria. A população assume posição passiva de consumidora dos benefícios
concedidos e administrados pelo governo. O indivíduo passa a não possuir nenhum dos
direitos de liberdade, pois não teria condições de se auto-determinar de maneira favorável à
coletividade e a si mesmo. Para BOBBIO (1992: 75-76) este não é o fim que deve ser tomado
como maior do Estado Social, mas uma deturpação dele. Sua meta primordial é colocar o
indivíduo em condições de exercício de sua liberdade de escolha, de opção pelo que quer para
sua vida pessoal e profissional.
A noção do Estado paternalista começa a se modificar a partir da segunda metade do século
XX, acreditando-se que o indivíduo só viveria a plenitude da cidadania se tivesse os meios
para que fosse realmente livre. A liberdade existe a partir de efetiva construção do cidadão
liberto de todas as carências básicas que o impedem de ser livre. Os Direitos Sociais são ainda
emergentes e insuficientes, restringindo-se às questões trabalhistas.
O governo atuava paliativamente, dando ao indivíduo aquilo que ele próprio deveria
conquistar. Porém, para tanto, necessitaria, antes, dispor de meios de obtenção de cesta básica
para si e seus dependentes, de emprego, com salário justo, de manutenção de uma família com
todas as despesas a ela inerentes. O que se precisava oferecer era, portanto, educação, saúde,
cultura, dentre outros Direitos Sociais que só progressivamente foram sendo incorporados aos
originais.
Estabelece-se o Estado Social, mas não o Estado Social Democrático. Isso porque, para que a
democracia se configure, não é bastante que o Estado atue positivamente na satisfação das
necessidades das camadas populares carentes ou redistribua a riqueza em vista a maior
eqüidade entre as classes sociais. Imprescindível é, para sua existência, a participação de
todos, de todas as classes componentes da sociedade no processo político e econômico. Não é
suficiente que se dêem direitos ou que se permita a eleição direta de representantes se a
população não detém espaço para defender seus interesses.
O direito individual da liberdade de consciência, insuficiente por si só, vem alicerçado pelo
direito social à educação, o qual possibilita um adequado desenvolvimento intelectual e
cultural gerador de capacidade crítica e de discernimento, sem o qual não se alcança um grau
satisfatório de consciência livre de induções ou manipulações. Os Direitos Sociais (saúde,
educação, trabalho, lazer...) surgem como meio ou instrumento para que se alcancem os fins
desejados, almejados pelos Direitos Individuais (liberdade, igualdade, direito à vida digna...).
Torna-se cidadão aquele que possui e exerce todos estes direitos. Formula-se, portanto, o
corrente conceito de cidadania, que é a completa fruição e exercício dos Direitos Individuais,
Sociais, Políticos e Econômicos garantidos pela Constituição. Para o perfeito exercício da
cidadania requer-se igualdade jurídica, de oportunidades, liberdade física e de expressão,
educação, saúde, trabalho, cultura, lazer, pleno emprego, meio-ambiente saudável, sufrágio
universal e secreto, iniciativa popular de leis, etc.
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VIOLÊNCIA COMO HERANÇA DA EXCLUSÃO SOCIAL:
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na Cidade do Rio de Janeiro
Entretanto, ao indivíduo que escolhe a liberdade plena e pobre das ruas, lhe é negada a
cidadania. Portanto, escolher entre ser cidadão e ser livre é escolher entre ser incluído e
excluído da sociedade. Estaríamos “descidadanizando” meninos e meninas de rua, ao negarlhes o direito de ir e vir, estabelecido pela Constituição, ao permitirmos que o Estado e a
sociedade higienizem as áreas públicas, praticando uma verdadeira limpeza étnica e social ao
exterminar essa população?7
4. A Violência como herança social
A violência significa uma quebra, mesmo que simbólica, num dos preceitos formadores da
cidadania, qual seja o direito à igualdade, mesmo mediante diferenças. Hoje, frente à
violência, seja qual “tipologia” que se assuma (doméstica, urbana, moral, etc.,) desejase a restauração e ampliação da autoridade no sentido da “firmeza” e da “punição”, o
que é uma reprodução dos anseios da sociedade quanto a violência estrutural, sensação
de insegurança e impunidade. Essa visão é partilhada entre conservadores e liberais,
movimentos de direita e de esquerda – o ponto convergente, onde o pobre, preto,
favelado, sem referências deve ser punido e, se possível, excluído ou mesmo
exterminado.
A falta de acareação dos problemas originários da violência tomam voz com o aumento de
denúncias contra tais ações. Cabe relembrar que, nos últimos 10 anos, não foram os casos de
violência que aumentaram, e sim as denúncias e buscas de soluções sociais e jurídicas para os
temas, revelando mal-estar social e permitindo que os casos de aviltamento de direitos
humanos deixem de ser invisíveis, sem solução, silenciados. Tais casos deixam a esfera da
vida privada e passam a ser tema de políticas públicas e sociais.
Há diversos tipos de violências implicando diversos atores, vítimas ou algozes, que a encaram
e/ou praticam sob diferentes formas (violência física, psicológica, emocional, simbólica),
exigindo-se também respostas diferenciadas. Em todo caso de violência existe vítima(s),
direta(s) e indireta(s), e algoz(es).
Destaca-se a evolução do conceito “violência”, analisando brevemente as mudanças
socioculturais, marcadas pelo individualismo, a nova constituição da família, a crise de
valores e falta de participação social, portanto, não-cidadania participativa.
“Violência” denomina os mais diversos atos e a noção que se tem da mesma é ambígua: não
existe uma violência, mas uma multiplicidade de manifestações de atos violentos, cujas
significações devem ser analisadas dentro do contexto social e histórico em que ocorrem.
Há controvérsia na redução da violência à delinqüência, que é produto de origens históricas de
identificação da violência com a criminalidade, muito presente no senso comum. Credita-se à
mídia uma atuação capaz de contribuir para a manutenção desta identificação, criticada por
MINAYO (1994: 7-18), por deixar de incluir a dominação política e econômica nas
sociedades e todas as implicações dela decorrentes, desconsiderando, portanto, as violências
estruturais e de resistência. Essa visão reducionista e preconceituosa, de acordo com CRUZ
NETO e MOREIRA (1999: 33-52), aponta para a segurança pública e a repressão policial
como as únicas esferas em que se dariam o combate e a prevenção da violência. Não se pode
separar as ações de praticar-sofrer violência, porque elas não são independentes, nascendo
uma dentro da outra de forma tão estrita que, muitas vezes, torna-se impossível delimitá-las.
Aqui, utilizar-se-á o termo “violência” considerando os elementos consensuais existentes
sobre o conceito: a noção de coerção ou força; o novo referencial da violência que abarca
manifestações que perpassam níveis diversos da vida cotidiana, tais como as relações
7
Digo étnica e social porque o perfil dos meninos e meninas em situação de rua geralmente é o mesmo: mais de
90% são negros, paupérrimos, oriundos de favelas e de bolsões críticos de miséria, segundo dados da Associação
Beneficente São Martinho. In: http://www.saomartinho.org.br. Acesso em junho de 2008.
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familiares, relações de gênero, relações nas instituições dentre outras; o fato de ser um
fenômeno que se manifesta nas diversas esferas sociais, tanto no espaço público quanto no
privado, e de poder manifestar-se de forma física, moral, psicológica e simbólica,
apresentando-se difundida em situações de humilhação, exclusão, ameaças, brigas,
desrespeito, indiferença, omissão e negação do outro. A violência, como parte das ações
humanas, é um fenômeno socialmente construído e, portanto, qualquer estratégia que pretenda
combatê-la deve trilhar o caminho da construção de uma nova história.
O que meninos e meninas de rua recebem e, em conseqüência, oferecem à sociedade que os
violentam seria a própria violência como resposta. Para que “defendam a liberdade”, o “viver
sem limites”, usam-se dos meios que se dispõe e os quais se aprendem, que é a violência, no
entendimento da punibilidade social. Enquanto não se oferecem meios alternativos de
sobrevivência e de inclusão – alternativo não no sentido de “regulado”, não se pode esperar
outra resposta a não ser aquela que esses meninos recebem todos os dias.
A título de ilustração e reflexão: atendemos três irmãos enquanto trabalhava na instituição –
Ezequias, Ezequiel e Thiago. Ezequiel era o mais velho, com 18 anos. Saiu de casa aos 14,
viciado em cocaína, oferecida por um amigo. Desligou-se dos laços familiares. Ezequias, na
época do atendimento, tinha 17 anos. Saiu de casa à procura do irmão mais velho. Na “pista”
viciou-se em cocaína e solvente (Thinner). Thiago, com 15 anos, seguiu os irmãos e também
se viciou em drogas.
Ezequiel engravidou Elisângela, 17 anos, também em situação de rua, sob alegação que “iria
com seu homem onde ele fosse (sic)”. Quando estava sob efeito de drogas, Ezequiel
espancava a mulher, exigindo que esta saísse das ruas, porque não queria que seu filho
nascesse ao relento. Para sustentá-la e a seu vício, ele traficava, e buscava a droga onde
Ezequias a endolava, alegando que era para ajudar os irmãos. Thiago realizava pequenos
roubos e furtos.
Todos os três irmãos tinham mais de 20 passagens pelo sistema DEGASE (Departamento
Estadual de Ações Sócio-Educativas). Nunca cumpriram nenhuma medida judicial por
completo, evadindo sempre que conseguiam uma brecha no sistema, que conheciam muito
bem. Entretanto, os três confessavam seus anseios e sonhos nos momentos em que
conversávamos. Sonhos de escola, casa, trabalho, comuns a qualquer um.
Em setembro de 2003 a polícia invadiu o morro, capturando Ezequiel e Ezequias. Ambos
foram duramente torturados pelos policiais, que os entregaram aos próprios traficantes do
morro, dizendo que estes haviam “vendido” (delatado) o dono do morro e entregue toda a
carga de drogas. Foram ainda mais torturados e morreram nas mãos dos traficantes.
A mãe, que há pouco havia concordado em recebê-los novamente em casa, subiu o morro para
pedir permissão ao “dono” e recolher os pedaços dos filhos, irreconhecíveis para um enterro
digno.
Elisângela foi morar com a sogra, e cria seu filho junto com esta. Thiago revoltou-se com a
morte dos irmãos. Não retornou para casa, não se envolveu com o tráfico, mas passou a ser
cada vez mais violento em seus assaltos. Em 2006, praticou um assalto a uma senhora que
estava parada com o carro num sinal. Esta era esposa de um policial. 30 minutos depois,
Thiago foi morto com um tiro nas costas, e outro que atingiu a veia femoral. O policial alegou
legítima defesa.
5. A família e a rua – desfazendo e recriando laços
A visão que a maioria da sociedade possui e reproduz em depoimentos é de que o menino ou
menina em situação de rua é aquele que já não possui laços familiares, sendo mesmo o órfão
de pai e/ou mãe. Entretanto, em pesquisa realizada em 2003 com os cerca de 600 atendidos
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pelo serviço social da instituição a qual atuava, notou-se que 98% dos meninos e meninas
tinham, pelo menos, um dos progenitores vivos, em sua maioria a mãe.
O que se percebe é que a rua, sem limites, espaço total de liberdade onde as paredes não
encerram os atos, é preferencial à própria família, no sentido de sobrevivência e mesmo de
auto-afirmação. Quando perguntados sobre o motivo de estarem nas ruas, um pouco mais de
28% respondeu que é devido à violência doméstica, com alguns casos comprovados por
marcas no corpo, levantamento de denúncias em Conselhos Tutelares ou mesmo
presenciando-se a agressão que alguns sofriam quando seus familiares os encontravam.
Outros casos não apresentaram confirmação.
Cerca de 20% afirmava que estava na rua devido à difícil situação sócio-econômica
enfrentada pela família. Ou seja, a pobreza é um dos motivos que leva uma criança ou
adolescente para a vida nas ruas, mas não é o principal motivo.
Mais de 50%, no entanto, afirmava que estaria nas ruas devido a situações relacionadas ao
tráfico de drogas no local de origem – guerra de facções, acusações de roubo ou “volta” na
droga, etc. Nesses casos, percebemos que a família acaba “abandonando” a criança ou o
adolescente, que assume o grupo com o qual vive na rua enquanto sua nova família. Segundo
alegações deles, “se você não vive em grupo acaba morrendo” (sic).
Apenas 2% não deram nenhuma declaração, ou afirmavam apenas que gostavam de estar na
rua (sic).
As relações familiares recriadas na rua incluem um modo alternativo de vigília mútua, de
sustento do grupo através de ganhos lícitos ou ilícitos, e mesmo de cuidados aos pequenos,
por mais que pareçam relações deterioradas. A relação entre casais acontece, mas privilegiase a fidelidade a todo custo. Caso um casal se separe, o próprio grupo se incumbe de vigiar
para que estes não se envolvam rapidamente com outros. Caso isso ocorra, o grupo parte para
o espancamento e expulsa o “traidor” do grupo, reconhecendo uma “quebra” nos laços que os
mantém unidos.
Há casos especiais que fazem com que crianças e adolescentes se refugiem na rua. Um dos
casos que muito chamou a atenção foi o de Clayton. Enquanto era observado ao tentar se
inserir no grupo, percebíamos que este sempre falava com uma educação mais dirigida ao
formal: “por favor”, “obrigado”, etc. Também evitava brincadeiras de cunho violento e
costumava se isolar nos momentos em que o grupo reunia-se no entorno da dinâmica do uso
de drogas.
Clayton, 13 anos, era filho de negra com um renomado artista plástico. Sua avó materna não
aprovava a relação de seus pais. Ao realizar uma turnê fora do país, os pais deixaram Clayton
aos cuidados da avó materna, que o expulsou de casa em represália à mãe. Após conversa
com o adolescente, conseguimos contato com seu pai e informamos a situação. Clayton ficou
abrigado ainda por cerca de 1 mês, até que sua família retornasse e pudéssemos restituir a
guarda do mesmo.
6. Recusa da/na instituição
A expressão da recusa institucional parte dos dois lados da moeda. De um, a insistência de
muitos meninos e meninas em situação de rua em não serem encaminhados ou simplesmente
permanecerem em abrigos ou outras instituições que tratem da questão. De outro lado,
deparamo-nos com instituições que, mesmo formadoras de uma rede de atendimento
específico à criança e ao adolescente, impõem tantos critérios de elegibilidade para
atendimentos que acabam por recusar o atendimento, excluindo mais do que incluindo.
Não há política pública que seja a “solução” definitiva para a retirada desses meninos e
meninas da rua. Muitos desses meninos e meninas declaram que não dormem em abrigos ou
albergues por causa das normas, ou simplesmente não querem declarar o nome ou se deixar
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conhecer. Ainda, há relatos de violência praticada por outros internos e até mesmo por
profissionais de alguns abrigos.
Não se sabe ao certo quantos são, pois com eles o recenseamento oficial não funciona.
Também não se sabe o que fazem quando as luzes se apagam na calada da noite. Têm em
comum a recusa e a vida na pobreza, no mais constituem-se em multiplicidade, fazendo com
que, inclusive, desta forma, não se deixem pegar.
É necessário estar atento às políticas de estado e à incomunicabilidade entre o mundo real –
dos corpos, dos sentidos e desejos – e o mundo das instituições e burocracias. Para efetivar o
abrigamento de alguma criança ou adolescente, tínhamos que seguir os procedimentos
burocráticos que, até hoje, são realizados por muitos profissionais8. Mesmo mediante tanta
burocracia (6 relatórios e encaminhamentos, no total), não tardava, no máximo, 3 dias (em
média) para que a criança ou o adolescente estivesse novamente às ruas.
O caso de Mineirinho é emblemático. Veio de Leopoldina (MG) para o Rio de Janeiro no
carnaval de 1992 e, desde então, vivia nas ruas, passando por quase todos os abrigos e
instituições do DEGASE que se tenha notícia na cidade do Rio de Janeiro. Em 2003, numa
conversa informal, onde discutia no grupo quais eram seus desejos mais imediatos,
Mineirinho confessou que o único desejo que ele tinha no momento era ter um papel que
dissesse que ele era alguém. Não sabia nem a idade que tinha, nem o dia do aniversário. 11
anos passando por uma infinidade de instituições e ninguém sabia sequer as verdadeiras
origens de Mineirinho...
A primeira providência tomada foi entrar em contato com o Juizado de Infância e Juventude
de Leopoldina, onde alegaram que só dariam algum auxílio ao caso se Mineirinho se
apresentasse para cumprir medida sócio-educativa de exatos 11 anos atrás! Retrucamos
informando que o mesmo se apresentaria após conseguirmos as primeiras evidências de
cidadania que ele merecia que era, em primeiro lugar, sua Certidão de Nascimento. Qual
nossa surpresa ao recebê-la em 3 dias. Mineirinho chorava como se tivesse recebido um
presente muito especial. A partir daí, providenciamos o restante da documentação.
A partir disso, Mineirinho contou sua verdadeira história: tentou esfaquear o padrasto ao ver
que o mesmo agredia covardemente sua mãe. Fugiu depois do fato. O padrasto separou-se da
mãe e esta, recusando a receber o filho de volta, mudou-se de cidade sem informar paradeiro.
Nunca mais teve contato com a família.
As seguidas institucionalizações de Mineirinho retiraram-lhe todo e qualquer desejo em sair
das ruas. Da última vez que o matriculamos numa escola formal, o expulsaram em uma
semana, como tantos outros meninos e meninas. Professores alegam que não possuem
preparação suficiente para lidar com um público que não tem disciplinas, nem limites. De
fato, o que são limites, quando se tem um espaço aberto, sem paredes, sem rédeas? Alegam-se
que esses meninos e meninas são hiper-ativos, porque querem e fazem tudo ao mesmo tempo.
Realmente, seus corpos não seguem o ordenamento imposto por uma vida regrada, pósmoderna. Come-se quando se tem fome. Droga-se quando se deseja o “barato”. Dorme-se
quando o cansaço afeta o corpo... Como impor regras a quem não segue nenhuma?
7. Considerações finais
8
São estes os procedimentos: 1. Localizar vaga em algum abrigo (preferencialmente na área ou município de
origem da criança ou adolescente); 2. Encaminhar formalmente a criança ou adolescente ao Conselho Tutelar; 3.
Elaborar relatório com breve histórico de vida e solicitar providências quanto aos direitos garantidos pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente; 4. Solicitar que o Conselho Tutelar elabore encaminhamento formal ao
abrigo previamente contactado; 5. Informar os procedimentos tomados via relatório à 1ª e 2ª Varas de Infância e
Juventude, solicitando acompanhamento do caso mediante Conselho Tutelar; 6. Informar os procedimentos
tomados via relatório ao Ministério Público, informando também dos relatórios ao Conselho Tutelar, 1ª e 2ª
Varas de Infância e Juventude, solicitando acompanhamento do caso.
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A invisibilidade condena os “cidadãos sem cidadania” preservando a sua existência. O que
pode existir de mais livre e pobre do que viver nas ruas? A liberdade do pobre é tanta que ele
vence a própria morte. Ou seja, para que ele viva a sua condição, ele antes tem que vencer a
morte que o espreita dia a dia. Portanto, reforçam a vida, e não a morte.
São excêntricos, e por estarem fora do centro é que podem ver o que a visão que está dentro
da média não enxerga.
Segundo MARX, aqueles que não concorrem no capitalismo e não se inserem no papel do
operário da indústria nascente seriam os “sem concerto”, que hoje são os vagabundos, os
malandros que não lucram, mas que também não se constituem como classe, sendo a
expressão mais pura da recusa.
Esses meninos e meninas, de certo, são invisíveis. Subvertem, por sua insistente existência, a
lógica da sociedade de controle, resistindo ao poder constituído – direito à cidade, direito de
todos? Vias públicas são locais de explosão e manifestação de potência. A liberdade, assim,
nasce nas ruas. São tipos sociais não domesticados, e não domesticáveis – porém não
selvagens. São nômades, e também um pouco esquizos. São corpos que recusam
determinados controles, mas aceitam outros não-institucionais (ilegais? Não-legais?).
Entretanto, embora clandestinos, e invisíveis, os meninos não se escondem. Estão ali, na rua,
na área, na pista, este espaço interativo, entre carros, barraquinhas de camelô e pedestres. Não
são santos nem demônios, são apenas elementos de negação da cidade moderna. A cidade que
o status quo quer.
7. Referências
BANDEIRA, D., KOLLER, S. H., HUTZ, C. & FORSTER, L. O cotidiano dos meninos de rua de Porto Alegre.
In Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Org.), Anais, XVII Internacional School
Psychology Coloquium (Tomo II). Campinas: ABRAPEE, 1994, p.133-134.
BARACHO, J. A. O. Teoria geral da cidadania, a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e
processuais. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 1.
BOBBIO, N. A era dos direitos. São Paulo: Campus, 1992, p. 75-76.
BRASIL. Lei 8069 de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente.
CHAUÍ, M. “Senso Comum e Transparência”. In: O Preconceito. São Paulo: Secretaria da Justiça e Defesa da
Cidadania/Imprensa Oficial, 1996/1997.
CRUZ NETO, O & MOREIRA, M. R. A concretização de políticas públicas em direção à prevenção da
violência estrutural. Rio de Janeiro: Ciência e Saúde Coletiva no. 4(1), 1999. p.33-52.
GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 2002.
GOFFMAN, E. Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara,
1988.
HELER, A. "Sobre os preconceitos" In: Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e terra, 1988.
IBAM. Informativo eletrônico do Instituto Brasileiro de Administração Municipal. In:
http://www.ibam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=243&sid=13. Acesso em 21/06/2008.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA / IBGE. Pesquisa Nacional de Amostragem
Domiciliar / PNAD. 2004. in http://www.ibge.gov.br. Acesso em 22/06/2008.
KOLLER, S. H. & HUTZ, C. S. Meninos e meninas em situação de rua: Dinâmica, Diversidade e Definição.
Coletânias da ANPEPP: Aplicações da Psicologia na Melhoria da Qualidade de Vida, 1 (12), 1996, p. 11-34.
MAGALHÃES, J. L. Q.. Direitos humanos: evolução histórica. São Paulo: Cortez, 2000, p. 114-115.
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MARX, K. O Capital. Livro I, vol.2, 8ª Ed. São Paulo: Difel, 1982, p. 679
MINAYO, M. C. S. A violência social sob a perspectiva de saúde pública. Rio de Janeiro: Cadernos de Saúde
Pública no. 10 (Suplem. 1), 1994. p.7-18.
PELBART, P. P. Vida Capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
RIBEIRO, I. Sociedade e família no Brasil contemporâneo: de que menor falamos? Em I. RIBEIRO & M. L. V.
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RIZZINI, I. A geração de rua: Um estudo sobre as crianças marginalizadas no Rio de Janeiro. Em Série
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YOUNG, I. M.. Polity and Group Difference: A Critique of the Ideal of Universal Citizenship. In BEINER, R.
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Vivendo no trecho: um ensaio etnográfico sobre “moradores de rua”
Clara Zeferino Garcia
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
[email protected]
Marcos Castro Carvalho
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
[email protected]
Mariana Medina Martinez
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
[email protected]
Mariana Miranda Zanetti
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
[email protected]
Resumo: Este trabalho é resultado de uma rica experiência de campo vivenciada por nós
estudantes de graduação com os “moradores de rua” da cidade de São Carlos. Trata-se de
um ensaio etnográfico, no qual não nos restringimos em delimitar um recorte específico, mas
procuramos ficar atentos às questões que surgiam no decorrer do contato com o grupo.
Dentre elas, observamos a relação dos moradores com as instituições, as quais o grupo se
utiliza para sua sobrevivência (embora ressignifiquem e reapropriem as práticas de políticas
públicas e os programas assistencialistas oferecidos por essas); a relação das práticas
corporais com os tratamentos terapêuticos diferenciados de outras concepções de saúde; a
dinâmica da construção/descontrução/reconstrução de uma identidade ora contrastiva entre
trecheros/morador de rua, ora construída a partir de um processo de territorialidade; e o
processo de formação da memória, não só subjetivada, mas materializada. Entendemos que
estes aspectos são os pontos mais latentes para a compreensão da cosmologia do “ser”
trechero.
Palavras-chave: antropologia urbana; população em situação de rua; identidade;
corporalidade; políticas públicas.
1. Introdução
Aceitando o desafio de refletir sobre a cosmologia e a sociabilidade de um determinado grupo
de “moradores de rua” a da cidade de São Carlos (interior do estado de São Paulo), sob uma
perspectiva antropológica, iniciamos um ensaio etnográfico. A escolha desse objeto se deu,
em boa medida, pelas inquietações teóricas e pessoais de cada um e pela escassez de análises
voltadas para o tema. Tendo em vista as limitações dessa pesquisa – sem a utilização direta de
uma bibliografia - admitimos que os resultados são preliminares, parciais e de difícil
generalização. Nesse sentido, a análise aqui desenvolvida não tem a pretensão de esgotar a
discussão proposta, mas apontar algumas possibilidades interpretativas e fomentar futuras
teorizações.
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Inicialmente, partilhávamos de uma série de pré-noções a respeito do objeto, o que, num
primeiro momento, trouxe-nos algumas dificuldades de efetivação da pesquisa, desde a
identificação visual/espacial à abordagem primeira dos agentes envolvidos.
Conseqüentemente, vivenciamos momentos iniciais de frustração e incerteza, que inclusive
nos fizeram repensar nossas próprias concepções e posturas teórico-metodológicas sobre
“moradores de rua”.
Como primeira tentativa, imaginávamos encontrá-los em lugares específicos (como
rodoviária, praças escuras e becos soturnos) durante o período da noite, sozinhos ou em
pequenos grupos. Desse modo, pretendíamos estabelecer contato, com café e cigarros, para
uma conversa informal. Contudo, nossas pretensões foram mal sucedidas e, após algumas
horas de “busca”, resolvemos mudar nossa estratégia, recorrendo ao albergue noturno de São
Carlos para mais informações.
Numa segunda tentativa, após localizar o grupo em questão – reunido na praça Nossa Senhora
do Carmo, ao lado do cemitério na Avenida São Carlos – aproximamo-nos desse com
cautela e receio, temendo produzir má impressão que levasse a uma subseqüente não
aceitação. Após estabelecer um primeiro contato, vale ressaltar a rápida percepção de nossos
objetivos ilustrada na frase: “Vocês não vão tirar foto não, né?”. Também foi levantada a
hipótese de que nós, estudantes, estaríamos lá para “pegar as idéias da galera e botar num
computador, escrever livros, fazer a história da gente”.
A partir desse episódio, apesar de nos apresentarmos como estudantes de Ciências Sociais,
optamos pela não utilização de nossas câmeras, gravadores de som e mesmo de entrevistas
como recurso metodológico.b Além disso, nossa escolha por trabalhar, preferencialmente, na
praça deve-se ao fato de que se trata de um local apropriado pelos “moradores”, onde as
interferências institucionais se dão de forma mais amena. Dado que nossa equipe, desde o
início, foi composta por quatro pesquisadores, foi possível abordar temáticas diversificadas e
abrangentes no contexto em questão.
2. Trecheiros e trecho: identidade e dinâmica espacial
À medida que estabelecemos diálogo com as pessoas, notamos que o grupo é heterogêneo em
sua composição. A maioria é do sexo masculino, com idades que variam entre 20 e 50 anos,
provenientes das zonas urbana e rural das cidades de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro,
Maranhão, Mato Grosso e Goiás. Contudo, devemos ressaltar que, de acordo com uma das
assistentes sociais entrevistadas durante a pesquisa, o maior percentual da população em
situação de rua do estado de São Paulo é proveniente da própria região Sudeste, contradizendo
a noção do senso comum de que viria da região Nordeste.
Optamos por trabalhar com a praça do cemitério por se tratar do principal ponto de fluxo de
uma população migrante e itinerante. No universo simbólico nativo utiliza-se o termo trecho
para designar esses espaços urbanos apropriados pelos trecheiros e pelos quais eles pingam
(transitam). Toda cidade pode possuir um ou mais trechos. Desse modo, o trânsito de
trecheiros pode se dar dentro de uma mesma cidade ou intermunicipalmente sendo que, na
maioria das vezes, as duas práticas coexistem, estando altamente organizadas e delimitadas
para o uso dos mesmos.
Apesar de a praça ser um ambiente público, há uma demarcação simbólica do trecho que se
dá a partir da ocupação não aleatória do espaço com seus pertences, de modo que a
apropriação desse ambiente pelo grupo seja perceptível para as outras pessoas. Algumas
vezes, quando surge a necessidade de se mudar de trecho devido à não-aceitação de um novo
membro, a mudança ocorre gradualmente, “de um em um para não dar na cara”. Na verdade,
existem determinados códigos que não permitem a inserção de qualquer indivíduo na banca
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(categoria nativa usada para definir um grupo de trecheiros), o que caracteriza a formação de
diversos trechos.
A dinâmica do grupo é extremamente instável e sua composição varia constantemente.
Embora a identidade trecheira seja compartilhada por todos num mesmo território, existem
diferentes modos de “viver na rua” (mesmo em se tratando de uma mesma banca), na qual: a)
alguns alternam vivência na rua com vivência em residência da família; b) possuem família
em São Carlos, mas vivem na rua e c) não permanecem num lugar fixo por muito tempo.
3. Trecheiro no trecho: uma identidade compartilhada
Adotaremos o conceito de identidade para caracterizar um estilo de vida trecheiro no que
tange à formação de um grupo, mesmo instável, que compartilha uma simbologia e valores
em comum. Esse conjunto de códigos está mais atrelado ao território (trecho) do que aos
sujeitos. Sendo assim, o fluxo contínuo desses indivíduos não altera a simbologia daquilo que
diz respeito ao “ser” trecheiro dentro de determinado trecho.
Algumas noções compartilhadas pelo grupo de trecheiros são: correria e respeito. De acordo
com a concepção local, correria remete aos mecanismos de busca c como pedir esmolas, olhar
carros, praticar furtos e, eventualmente, trabalhar, informalmente, para aquisição de
aguardente, drogas, comida e medicamentos, bem como o dinheiro necessário para a
realização dessas trocas. Dinheiro este que deve ser compartilhado com toda a banca que,
como vimos, trata-se do grupo de pessoas presentes e aceitas no trecho.
Dentro da realidade dos trecheiros, a idéia de respeito assume extrema importância para a
organização do grupo. Trata-se de um conjunto de valores que, compartilhado, garante
consonância ao trecho. Ajuda mútua, consciência dos limites estabelecidos pela simbologia
nativa e até o tempo de vivência no trecho são alguns fatores abrangidos por esse. Além disso,
a correria também é uma forma de obtenção de respeito na banca, pois, tratando-se de um
mecanismo eficaz de aquisição de dinheiro e tendo em vista que esse é coletivo e não
individual, é fato, como observamos, que quem mais contribui é mais respeitado pela banca.
4. Morador de rua versus Trecheiro: uma identidade contrastiva
Ao questionarmos sobre o que seria um Trecheiro, d nos foi explicado que se tratava daquele
que não pára em lugar nenhum, vive na rua, pingando de cidade em cidade e sobrevivendo de
bicos e correrias. Em contraposição, notamos mais uma categoria nativa, a do pardal: aquele
que se fixa numa cidade, igualmente sobrevivendo de bicos e correrias. Dado que Trecheiro
está pautado numa lógica de instabilidade, a partir do momento em que se fixa em um único
trecho adquire outra conotação, podendo tornar-se pardal. Nesse sentido, ser pardal é fixarse afetiva e territorialmente em um trecho específico ou - nas palavras de uma trecheira - “é
pardal porque fica numa árvore, faz um ninho”. O termo Trecheiro é uma construção
produzida exclusivamente para se distinguir da figura frágil de pardal. Desse modo, tem-se
categorias opostas e complementares, uma vez que só é possível definir a figura de Trecheiro
a partir de sua oposição ao pardal.
Por sua vez, o termo pardal é por eles construído estritamente para a negação daquilo que
seria um “morador de rua”, já que esta segunda qualificação só é utilizada por aqueles que não
compartilham do universo simbólico trecheiro. A negação do “ser morador de rua” se dá por
conta de seu aspecto estigmatizante, ou seja, sua conexão com a figura frágil, alcoólatra,
doente mental e abandonada pela família. Apesar disso, a definição de pardal aproxima-se
mais da conotação de “morador de rua”, no que diz respeito a uma certa fixidez que em si
pressupõe sua condenação à marginalidade e não de uma opção de vida. Por outro lado, a
figura do Trecheiro relaciona-se ao nomadismo, remetendo a um estilo de vida escolhido pelo
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individuo, o que garante ao termo uma valoração mais positiva. A partir daí, torna-se
plausível compreender porque dificilmente alguém se autodenomina pardal, adaptando,
quando necessário, o tipo ideal Trecheiro à sua condição circunstancial, de modo que ele
possa se encaixar dentro do mesmo.
É importante ressaltarmos que Trecheiro e pardal são dois tipos ideais; classificam-se em
circunstâncias especificas e são tomados como abstrações e combinações de um indefinido
número de elementos. Ainda que tais elementos sejam encontrados na vivência cotidiana, são
raramente ou nunca descobertos nestas formas ideais. Os conceitos de Trecheiro e pardal são
categorias de pensamento sobre a identidade do grupo, sendo que todas as pessoas com quem
conversamos compartilham a mesma concepção sobre esses termos.
5. Instituições e políticas públicas
Os diferentes pontos de vista sobre a população trecheira da cidade de São Carlos podem ser
ilustrados a partir das quatro instituições que os assistem: S.O.S Albergue Noturno, Secretaria
de Cidadania, Posto de Rua e Pastoral na Rua. Notamos que a visão do albergue distingue-se
das demais, vinculando a imagem do “morador de rua” à de “vagabundo”, enquanto que as
demais partem da suposição de que se trata de “excluídos sociais”.
5.1 O albergue e a imagem do vagabundo
O S.O.S. Albergue Noturno, a princípio, era uma entidade filantrópica que sobrevivia de
doações e que assistia somente aos “itinerantes” e “migrantes”. Posteriormente, devido a um
convênio com a prefeitura, passou a direcionar seus serviços também aos “moradores de rua”
de São Carlos. Os serviços de assistência à “população em situação de rua” dessa instituição
consistem em: pernoite, banho, duas refeições diárias (café da manhã e jantar) e fornecimento
de passagens para migrantes. O expediente vai das 18h às 7h, permitindo a entrada espontânea
de usuários das 18h às 20h. A partir desse horário são realizadas rondas, com funcionários do
albergue oferecendo estada àqueles que estão dormindo na rua. Na verdade, trata-se de uma
política de higienização do ambiente urbano financiada pela prefeitura.
Sobre esses serviços, é importante destacar o fornecimento das passagens: elas são
distribuídas às terças e sextas-feiras, para quatro destinos predeterminados: Rio Claro,
Araraquara, Descalvado e Itirapina. As passagens orientam o destino do “itinerante/migrante”,
geralmente encaminhados para a cidade mais próxima à sua escolha. Trata-se de uma política
voltada diretamente para aqueles que não possuem um endereço na cidade de São Carlos,
associada à norma que prevê um tempo máximo de três dias no albergue, refletindo uma
postura de controle municipal da população de rua para evitar a permanência e até a criação
de vínculos com a cidade.
De acordo com a visão do albergue, existem três tipos de usuários: “morador de rua” (aquele
que não se adapta mais a um estilo de vida rigoroso e disciplinado), o “migrante” (aquele que
viaja com toda a família em busca de emprego, procurando habitualmente trabalhar no corte
de cana ou de caseiro em chácaras) e o “itinerante” (aquele que transita de cidade em cidade,
que “vive do expediente de itinerante”) . O que diferencia o “itinerante” do “morador de rua”
é o fato de o primeiro corresponder ao conceito de Trecheiro, por conta da instabilidade e
transitorialidade que o caracteriza, enquanto que o segundo passaria mais tempo num mesmo
local.
Tendo em vista essa definição, somente os que condizem com a descrição do “migrante” estão
realmente à procura de uma reinserção na sociedade por meio do trabalho. Logo, o itinerante e
o “morador de rua” são aqueles que, nas palavras do diretor geral do albergue: “não vão pra
frente; eles não querem; eles não se adaptam mais à vida familiar, à responsabilidade”. É
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possível afirmar que, sem negar a existência de fatores externos que impossibilitem a
reinserção social, o itinerante e o “morador de rua” não têm a intenção de abandonar o estilo
de vida adotado. Essa conotação, associada ao modo de vida hegemônico, possibilita a leitura
dessa conduta como “vagabundagem”.
Devido ao fato de o “itinerante”, muitas vezes, dividir o mesmo espaço com os “moradores de
rua” - seja no albergue ou no trecho -, ele adquire informações sobre o funcionamento das
instituições locais e suas brechas, fazendo uso das assistências e fazendo uso das políticas
públicas conforme suas necessidades. É o caso das passagens, que muitas vezes são usadas
para reproduzir seu estilo de vida. Alguns as utilizam para visitar familiares ou, ainda, pingar
de trechos em trechos.
5.2 Secretaria da Cidadania, Posto de Rua e Pastoral na Rua: a imagem do excluído
social
Dentro da Secretaria da Cidadania, existem alguns profissionais voltados para as políticas de
assistência à “população em situação de rua” da cidade de São Carlos. Entre os principais
serviços oferecidos estão: a providência de documentos, auxílio na busca por emprego,
tentativa de reconciliação com a família, encaminhamento para tratamentos médicos,
psicológicos e para dependentes químicos. Durante nossa pesquisa, estava em pauta a
elaboração e a tentativa de implementação do projeto de uma casa diurna. Devido a isso, esses
profissionais foram os únicos a elaborarem um levantamento estatístico da população
trecheira local.
Durante uma de nossas visitas ao trecho, presenciamos a atuação da Pastoral na Rua, um
grupo de jovens católicos que distribui marmitas, aos sábados, nos diversos trechos da cidade.
Diferentemente do Posto de Rua, trata-se de uma instituição que tem como um de seus
principais objetivos a supressão das necessidades imediatas dos indivíduos. E que, além disso,
interage com outras instituições formais, realizando algumas de suas visitas dentro do próprio
albergue e até mesmo consultando a Secretaria da Cidadania para obter maiores informações
sobre algumas pessoas.
Por meio da pesquisa de campo, conhecemos o grupo Posto de Rua, formado
majoritariamente por espíritas kardecistas, que oferecia, aos domingos, sessões de corte de
cabelo, barba e unhas, doação de produtos higiênicos pessoais e refeições. Esse grupo
utilizava as políticas assistencialistas como estratégia de aproximação, tendo como principal
objetivo uma possível “regeneração” e restauração da “dignidade” das pessoas. Para isso,
realizavam pequenas palestras aparentemente sem motivação religiosa e discursos eventuais
do A.A. (Alcoólicos Anônimos). Percebe-se, a partir deste objetivo de “regeneração”, o
caráter incisivo da proposta, voltada para a conversão a um estilo de vida tomado como ideal
pelos componentes do Posto. Isso se tornou evidente a partir do momento em que a própria
instituição nos apresentou um “ex-morador de rua” como sua “maior conquista”, sendo que
este atua, presentemente, em conjunto com o Posto e o A.A., colocando-se como um exemplo
de “evolução” a ser seguido.
Podemos dizer que aquilo que conecta essas três instituições é a visão sobre a população
trecheira que a vincula à imagem de pessoas frágeis, marginalizadas e doentes (alcoólatras).
O que explica o fato de seus serviços estarem voltados, em maior ou menor grau, para uma
suposta reinserção desses “excluídos” na sociedade. Esta visão, de maneira geral, produz
discursos que, apesar de não serem compactuados pelos trecheiros, não fazem com que
dispensem (ao menos eventualmente) os recursos oferecidos por tais serviços. Entretanto, os
recursos são apropriados na medida em que são incorporados a seu modo de vida e visão de
mundo. Não foi por acaso que notamos que, apesar de consumirem o alimento distribuído,
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muitos não permanecem para a reunião com o A.A. ou, quando o fazem, criticam arduamente
seu discurso, já que se contrapõe às percepções trecheiras sobre bebida, demonstradas
adiante.
6. Pinga, saúde e doença
Antes de tudo, devemos esclarecer que o consumo de pinga é rotineiro e unânime no grupo.
No decorrer do trabalho etnográfico, pudemos perceber que, além de usual, a pinga é um
elemento simbólico central entre os trecheiros, destacando-se por ser, primordialmente, um
símbolo ambivalente e poderoso, através do qual se pode atingir tanto o estado de doença
como o estado de saúde.
Uma das manifestações do poder da pinga é percebida por sua capacidade de alteração da
consciência, o que por si só não possui valoração positiva ou negativa. Sua conotação positiva
se dá quando entrelaçada a efeitos considerados benéficos, possibilitando momentos de
descontração e união. A conotação negativa, por sua vez, manifesta-se quando correlacionada
a efeitos considerados maléficos como o descontrole das ações e a perda das capacidades
individuais, podendo ocasionar a quebra do respeito. Ainda outra função importante da pinga
– e que faz com que esteja constantemente presente no cotidiano do grupo – é expressa em
sua competência para “produzir” saúde e influenciar na dinâmica da sociabilidade. A
“produção” de saúde é possível graças à alteração da consciência (“ficar na brisa”), a
emergência de estado de alerta (“ficar esperto”), a animação e euforia. Todos estes fatores são
frutos de um uso continuado e consciente da bebida. Além disso, a pinga pode ser também
agente de estabilização emocional quando permite alterar os malefícios da memória. Sem
contar que estar em alerta - ou ficar esperto – é condição sine qua non para a realização das
atividades diárias como fazer as correrias (importante na manutenção do respeito, como já
analisado acima) ou proteger-se das possíveis vulnerabilidades da rua.
Não obstante, o mesmo vetor “produtor de saúde” pode transfigurar-se em vetor de doença,
em fenômeno desajustador da realidade do grupo. Pois, se beber é essencial para a efetivação
das atividades cotidianas, beber sem controle pode ter como conseqüência a inatividade e a
dependência de outrem. Levada ao extremo, a situação de descontrole, através do consumo
excessivo, faz com que o sujeito enfraqueça, pare de se alimentar, “se perca na pinga”.
Citando a esclarecedora fala de uma trecheira, “a gente que tem que beber a pinga e não a
pinga beber a gente”.
É interessante notar que em situações nas quais “a bebida bebe a pessoa” não existem práticas
terapêuticas visando cura.e Diferentemente, quando se está doente por qualquer outro motivo
que não a bebida, são tomadas algumas medidas quase sempre envolvendo a regulação do uso
da pinga, sendo que esta pode, também, atuar como elemento de intermediação entre saúde e
doença. Na maioria das vezes em que um dos membros está passando por procedimentos
terapêuticos, o grupo parece agir de maneira a impedir que faça uso de pinga, sendo que a
suspensão desta contribui (juntamente com a utilização de remédios, em alguns casos) para a
própria experiência da cura. A não utilização de remédios e a abstinência de pinga,
conjuntamente, associam-se, ainda, a uma concepção nativa de que a ingestão das duas
substâncias vem a se tornar tóxica para o organismo.f De modo geral, pode-se concluir que
beber pinga é uma maneira de reafirmar seu estado de saúde, pois tudo que se relaciona à
abstinência relaciona-se, conseqüentemente, ao estado doentio.
7. Corpo e memória
Outra importante e elucidativa ação observada foi o fato de um trecheiro ter confiado a outro,
quando necessitou se ausentar para a realização de uma correria, a guarda de um dos seus
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mais preciosos bens, seu galo. É imprescindível esclarecer aqui que, de acordo a concepção
local, galo significa qualquer tipo de sacola, mala ou mochila que sirva de relicário para os
bens pessoais de cada trecheiro (roupas, fotos, bilhetes, cartas etc.). Vale lembrar que, de
uma forma quase que unânime, somente os documentos não devem ser guardados no galo,
uma vez que esses deveriam estar sempre junto ao próprio corpo. A valorização dos
documentos é dada por sua funcionalidade prática cotidiana, como o cadastro para utilização
do albergue, viagens e até mesmo em fiscalizações policiais. Além disso, o fato de se
constituírem como um grupo estigmatizado reafirma o valor dos documentos, já que possuir
uma identificação formalizada e burocrática é uma das únicas maneiras, para eles, de
exercerem uma cidadania efetiva: “sem documento a gente não é nada”.
Sobre a importância do galo como meio de guardar e transportar seus únicos bens pessoais,
uma trecheira explica que a origem do termo galo provém de galo de briga, expressão
inerentemente ambígua que explicita a relação de dualidade que há entre objeto e portador,
tanto no que tange à dicotomia interno (corporalidade) versus externo (bens pessoais), como
significação da memória. No que se refere à primeira dicotomia (interno x externo) temos que
o galo pode tanto significar um conjunto de bens sob posse do trecheiro, como a própria
extensão do corpo deste. Nesse sentido, representa algo como uma “materialização” da
memória. Porém, e já introduzindo a segunda dicotomia, a memória tanto pode se manifestar
como uma lembrança afetiva boa quanto um fardo da lembrança de experiências ruins, posto
que “se o galo tá pesado, vira um fardo”. Podemos concluir, então, que o galo assume um
significado muito mais simbólico que material, sendo uns dos fatores responsáveis pela
construção do “ser” trecheiro.
Percebeu-se, no decorrer da etnografia, um significativo número de pessoas tatuadas (estas,
em geral, tinham em comum a passagem pela penitenciária) o que, em alguma medida,
também se vincula à questão da memória. Freqüentemente, as tatuagens se associavam à
trajetória de vida de cada um, refletindo experiências passadas através de nomes ou figuras
representando filhos, ex-cônjuges, familiares e situações especificas, como ilustra o exemplo
de um trecheiro que tatuou no corpo a figura de um menino com o rosto numa lata de cola.
Isto talvez demonstre – ainda mais pelo fato de que embora ele tenha feito uso de cola,
atualmente condene a utilização desse tipo de droga – a capacidade da tatuagem de
estabelecer diálogos com o passado: seja afetivamente, seja como fardo. Deste modo, assim
como no caso do galo, as insígnias corpóreas são a “materialização” das lembranças negativas
e positivas, sendo também fardo e afeto. Alguns trecheiros têm o hábito de guardar no galo
papéis com anotações de acontecimentos e nomes, o que fazem também no próprio corpo –
dois trecheiros anotaram nossos nomes nas mãos, com caneta. Pode-se dizer, então, que o
galo e as tatuagens são possibilidades de construir, reconstruir e atualizar a memória na esfera
do corpo.
8. Conclusão
Tendo em vista nossa escolha de uma perspectiva etnográfica, com o objetivo de realizar uma
pesquisa que se desprenda de análises teóricas, acreditamos que nosso olhar antropológico
contribua para abrir novas possibilidades interpretativas sobre a questão do “viver na rua”. A
partir dessa abordagem, posicionamo-nos criticamente quanto ao estereótipo do excluído
social, freqüentemente presente no imaginário coletivo, bem como em algumas interpretações
científicas, priorizando uma visão embasada na noção que o trecheiro tem sobre si mesmo.
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Notas
a
Optamos por relativizar o termo “moradores de rua”, através do emprego das aspas, devido
ao fato de que a experiência em campo revelou a incompatibilidade de tal com a identidade do
grupo estudado, evitando desta maneira ocultar a complexidade do mesmo. Sendo assim,
passamos a fazer uso das próprias categorias nativas que, por sua vez, são dotadas de grande
flexibilidade e alto potencial explicativo da realidade em questão.
b
É importante esclarecer que não fizemos uso de entrevistas também pelo fato de que
optamos por trabalhar com a observação participante num contato mais informal. Já no caso
das instituições realizamos entrevistas gravadas e semi-estruturadas.
c
Sobre esses mecanismos de busca, torna-se necessário ressaltar que se trata de escolhas
flexíveis, isto é, determinadas práticas de obtenção não são previamente impostas.
d
Utilizamos as formas Trecheiro e trecheiro no intuito de diferenciar o tipo ideal (com letra
maiúscula) da banca como um todo (com letra minúscula).
e
Uma comparação entre as atitudes dos trecheiros e de grupos provenientes de outros estratos
sociais (como as classes médias) frente às pessoas que fazem uso abusivo de bebida alcoólica
poderia propiciar conclusões interessantes. Ao menos como indicação inicial, notamos o
contraste entre as interpretações dos trecheiros a respeito daqueles que foram “bebidos pela
pinga” – que se pautam na visão destes como pessoas que escolheram “se perder na pinga” e,
portanto, não há tratamento nestes casos – e as interpretações de outros segmentos sociais
acerca dos que fazem uso excessivo de bebida, pautadas por sua vez na idéia da existência de
uma dependência fisiológica, sendo a pessoa considerada irresponsável pelos seus atos e,
portanto, passível de submissão a tratamentos terapêuticos (quase sempre de cunho
psicológico/psiquiátrico).
f
É importante destacar que esta concepção trecheira (de que a mistura de remédio e bebida é
necessariamente tóxica) diferencia-se daquela compartilhada pelos grupos altamente
medicalizados, na qual o uso do álcool elimina os efeitos do remédio, idéia esta pautada em
categorizações bioquímicas.
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1
Experiência de Gestão do Município de Araraquara para a População em Situação de Rua
Luciano Márcio Freitas de Oliveira 1
Apresentação
Eles estão em vários lugares nas ruas, praças, sob os viadutos e marquises, casas
abandonadas ou nos albergues públicos. Quem são esses homens e mulheres que historicamente
foram alvos de curiosidades, lendas, de repressão e violência por encontrarem nas ruas das cidades
sua sobrevivência?
O objetivo desse texto é apresentar um breve histórico do atendimento a população em
situação de rua no município de Araraquara, as intervenções realizadas pela Prefeitura Municipal
através da Casa Transitória na construção de um projeto que apresente oportunidades para
superação da situação de rua vivida por esse grupo.
Partimos da proposição de que a população em situação de rua tem sofrido significativas
mudanças nos últimos anos. A população que hoje ocupa os logradouros públicos, ruas, praças,
imóveis abandonados ou necessitam dos albergues, não correspondem mais a figura do andarilho ou
mendigo tradicional que pede esmolas, não sendo um fenômeno exclusivo das grandes cidades. São
trabalhadores desempregados ou subempregados, jovens sem qualificação profissional que
aumentam o número de excluídos em todo o mundo. Historicamente foram estigmatizados de
vagabundos e criminosos, sobrando a assistência e repressão para suas vidas.
Histórico do Atendimento
A cidade de Araraquara, conhecida como a Morada do Sol, é um município que cresce no
interior paulista tendo o comércio e agroindústria importante participação no processo de
desenvolvimento da região, com isso atraindo uma parcela significativa de migrantes e itinerantes à
procura de emprego todos os anos.
Com o crescimento urbano, a cidade de Araraquara começou a presenciar a existência de
pessoas que procuravam se estabelecer na cidade. Para atender esse grupo que buscava alternativa
de sobrevivência ou estava apenas de passagem pelo município foi criada a Casa Transitória “Assad
Kan”. Esta instituição está vinculada a Secretaria Municipal de Inclusão Social e Cidadania e tem
como objetivo atender a população itinerante, migrante e a população em situação de rua do
município.
O atendimento na Casa Transitória teve como prioridade os itinerantes 2 e migrantes que
1 Cientista Social formado pela Unesp – Universidade Estadual Paulista e Gerente do Programa População em
situação de rua do município e Araraquara.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
2
passavam pela cidade. Essa migranção que encontramos principalmente no Estado de São Paulo e
atendida pela Casa Transitória é a migração sucessiva, aquela que não tem parada, não tem
resultado definitivo. Os intervalos de tempo para a mudança do local são pequenos, sendo
insuficiente para que o indivíduo fixe residência, tenha um endereço ou ponto de referência. Essa
população também é conhecida como trecheira.
Nesse sentido, o trabalho desenvolvido em Araraquara e em outros municípios paulistas,
justificados pelo discurso da migração, aplicaram uma política de migração isolada baseada numa
concepção higienista de cidade na qual todos que passassem pelo albergue deveriam ser atendidos e
encaminhados para outros destinos.
A partir da década de 90 com a municipalização do atendimento, os usuários que
procuravam a Casa Transitória eram majoritariamente itinerantes, porém, alguns casos de pessoas
em situação de rua em Araraquara já começavam a aparecer. Os dados dos atendimentos na Casa
Transitória referente ao período de 1999 a 2007 apontam para essa situação.
Período
Nº de atendimentos Nº de atendimentos
Itinerantes
a moradores de rua
1999
3.271
266
2002
4.065
744
2005
5.054
3.040
2007
4.864
7.040
Fonte: Cadastro dos atendimentos da Casa Transitória
Com o aumento no número de pessoas em situação de rua frequentando a Casa Transitória,
iniciou-se uma mudança gradual no atendimento para esse grupo, concretizando-se em 2005 com o
I Encontro Regional sobre a População em Situação de Rua e Itinerantes. Este evento envolveu a
participação do poder público, as entidades sociais que atendem a população em situação de rua no
município e outras cidades na tentativa de buscarmos alternativas comuns para o enfrentamento
dessa problemática. O evento também apresentou o diagnóstico da população em situação de rua do
município de Araraquara, onde cerca de 145 pessoas estavam em situação de rua no período de
junho de 2004 a fevereiro de 2005.
A partir da apresentação dos dados, iniciamos um trabalho de sensibilização para possíveis
mudanças no atendimento destinado a nova demanda que necessitava dos serviços da Casa
2 Utilizaremos este termo para classificar a mobilidade e itinerância característica do grupo.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
3
Transitória. Os dados da pesquisa, inédita no município, revelaram que 97% eram homens, apenas
3% de mulheres, 63% estavam na idade entre 18 à 44 anos, 70% com ensino fundamental
incompleto, 41% com profissões na área da construção civil.
O dado referente à naturalidade do grupo mudou a concepção que existia em relação as
pessoas em situação de rua no município, pois 38% eram nascidos em Araraquara e 28% nas
cidades do interior de São Paulo. Esses dados serviram para a Casa Transitória mudar o foco de
atendimento para essa população.
As mudanças que ocorreram nos atendimentos e a construção de um novo projeto para a
Casa Transitória foram discutidos juntamente com os usuários, através de reuniões com o grupo e a
equipe técnica de várias secretarias municipais. Buscamos elencar as prioridades em conjunto
(poder público, entidades sociais e a população usuária) para uma intervenção que estivesse mais
próxima da realidade que se apresentava naquele momento.
A proposição de um trabalho articulado com a rede municipal de serviços foi discutida e
várias parcerias foram construídas, destacamos as Secretarias municipais de Educação, Saúde,
Cultura, Fundo Social de Solidariedade. Para geração de trabalho e renda incluímos uma cota para a
população de rua no programa Frentes da Cidadania (Frentes de Trabalho). As universidades
também se fizeram presentes na construção do projeto com isso destacamos os cursos de Terapia
Ocupacional, Biomedicina, Jornalismo e Psicologia do Centro Universitário de Araraquara e do
curso de Psicologia da Universidade Paulista. Estas mudanças e parcerias contribuíram para a
reestruturação no atendimento à população em situação de rua.
Após as parcerias construídas, o serviço da Casa Transitória passou a funcionar vinte quatro
horas, no período da manhã com as atividades, orientações e encaminhamentos e abordagens de rua
diurnas. No período noturno oferece abrigamento a população em situação e rua de Araraquara e
aos itinerantes. Com o início dos trabalhos diurnos destacamos que no período de março de 2006 a
março de 2008 saíram da situação de albergados na Casa Transitória aproximadamente 56 pessoas.
Na tentativa de definirmos quem é a população em situação de rua de Araraquara,
procuramos realizar periodicamente o diagnóstico de quem são os usuários da Casa Transitória. Por
se tratar de uma população que esta em constante movimento, o perfil dessa população pode variar
frequentemente, para isso apresentaremos alguns dados que demonstram essa mudança.
Período
Quantidade
Idade
Profissão
Naturalidad Gênero3
Escolaridade4
3 Referente aos dados sobre as mulheres em situação de rua destacamos que no levantamento realizado em 2008 45%
dessas mulheres tem idade entre 21 a 30 anos. Como atividade profissional 45% são domésticas, 80% possuem
vínculos familiares na cidade sendo que 54,5% nasceram em Araraquara.
4 E.F.I – ensino fundamental incompleto; E.F.C – ensino fundamental completo; E.M.I – ensino médio incompleto;
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4
e
2005 (julho 2004 à
fevereiro 2005)
145
18 a 44 anos - Construção Araraquara - Homens - E.F.I - 70%
63%
civil – 41% 38%
140
E.F.C - 8%
E.M.I - 4%
Mulheres E.M C -5%
-5
2007 (janeiro à julho)
86
28 à 57 anos - Construção
76,5%
civil - 43%
Araraquara - Homens 51,1%
78
Mulheres
-8
E.F.I – 65%
E.F.C – 6,9%
E.M.I – 8,1%
E.M.C. - 10,7%
2008 (abril à maio)
99
30 à 59 anos - Construção
67,6%
civil 47,6%
Araraquara - Homens
42,4%
– 88
mulheres
- 11
E.F.I – 66%
EFC – 7%
E.M.I - 7%
E.M.C - 6%
Os dados nos expressa que a população em situação de rua de Araraquara é composta em
sua maioria por homens, porém, comparando os períodos percebemos um aumento no número de
mulheres, em maio de 2008 existiam 11 mulheres em situação de rua. A faixa etária nos mostra o
aumento na média de idade do grupo. A construção civil ainda permanece com o maior número de
profissionais. Sobre a naturalidade observamos que desde 2005 uma parcela significativa dessa
população é araraquarense. Consideramos esse dado relevante, pois provoca o município de
Araraquara repensar a forma de atendimento para a população em situação de rua.
Em maio de 2008 realizamos o II Encontro Municipal sobre a população em situação de rua.
Este encontro teve como parceiro o curso de Terapia Ocupacional do Centro Universitário de
Araraquara. O objetivo do evento foi apresentar os trabalhos realizados na Casa Transitória e
discutir com a sociedade civil novos olhares e projetos para esse grupo. Aproveitamos para
aproximar as discussões com o Movimento Nacional da População em Situação de Rua no sentido
da construção da Política Nacional para essa população.
Apresentamos também um novo diagnóstico sobre a população de rua de Araraquara. Entre
os meses de abril e maio de 2008 estavam em situação de rua 99 pessoas. Destas 99 pessoas, 67
recebem atendimentos diários na Casa Transitória, 28 estão nas ruas sedo atendidos ou
acompanhados eventualmente e 4 internados.
Destacamos algumas informações importantes sobre esse diagnóstico, relacionado ao
gênero, 88 são homens e 11 mulheres. Referente ao quesito raça/cor 33,3% se declararam pardos,
23,7% negros e 41% brancos. Em relação as outras pesquisas a média de idade aumentou pois
67,6% estão com idade entre 30 e 59 anos. Escolaridade 66% com ensino fundamental incompleto e
10% analfabetos, destacamos para 6 com ensino médio completo. Como profissão 47,6% na
E.M.C – ensino médio completo
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
5
construção civil.
Referente a naturalidade 42,4% nasceram em Araraquara, 20% em outros estados e 27,6%
em cidades do interior do Estado de São Paulo. Relacionado aos vínculos familiares em Araraquara
destacamos que 68% têm algum parente na cidade. Nossa pesquisa aponta que o número de pessoas
nascidas em Araraquara e que estão em situação de rua aumentou, isso mostrando a diferença
quando comparamos com a pesquisa na cidade de São Paulo.
Relativo ao uso de substâncias psicoativas 20% declararam que são dependentes e em
relação ao álcool em torno de 85% fazem uso contínuo. Também destacamos para casos de saúde
mental onde 14% apresentam algum transtorno psiquiátrico.
Um dado que se faz muito importante é o tempo de rua dos usuários da Casa Transitória,
vejamos o gráfico:
Tempo de rua
2,02%
1 mês à 11 meses
29,29%
29,29%
1 ano à 1 anos e 11
meses
2 anos à 2 anos e 11
meses
3 anos à 3 anos e 11
meses
4 anos à 4 anos e 11
meses
5 anos á 5 anos e 11
meses
3,03%
14,14%
6,06%
6,06% 5,05%
6 anos à 6 anos e 11
meses
Mais de 7 anos
Não declarado
5,05%
As informações concernentes ao tempo de rua nos mostra que as pessoas com menos de um
ano na instituição são 29,29% e com mais de 4 anos temos 43, 29%, esse dado revela a permanência
dessas pessoas na situação de rua, é uma parcela que está institucionalizada e que a intervenção
realizada na Casa Transitória, no sentido de alternativas para saída da situação na qual se encontram
de albergado não está atingindo esse grupo. Para essas pessoas é urgente repensar alternativas
visando a desinstitucionalização. Esse grupo apresenta também como característica a frequência
diária no albergue e nas instituições assistenciais que atendem a população de rua.
Considerações finais
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
6
Consideramos que as parcerias firmadas a partir do ano de 2006 foram importantes para o
avanço no atendimento a população em situação de rua de Araraquara. Nosso objetivo é através das
ações propostas, buscarmos alternativas para superação da situação rua dos usuários da Casa
Transitória. No entanto, para oferecermos um atendimento de qualidade necessitaremos de algumas
mudanças no projeto que a Casa Transitória oferece.
A realização do II Encontro Municipal sobre a população de rua foi um espaço para a
construção de um novo olhar para esse grupo. Foi deliberado pelos participantes a criação de um
espaço para as pessoas em situação de rua de Araraquara, bem como ações que mostrem os
trabalhos desenvolvidos principalmente utilizando os recursos da mídia. A necessidade da parceria
com a Secretaria de Saúde foi ressaltada principalmente os casos de saúde mental e o atendimento
aos alcoolistas e dependentes de substâncias psicoativas. As parceria constituída com o curso de
Terapia Ocupacional, que começou seus trabalhos como estágio curricular, em 2008 foi criado o
grupo de extensão “Terapia ocupacional e população em situação de rua”. Para o ano de 2009 as
atividades terão como objetivo a reinserção no mercado de trabalho através da oficina de geração de
renda.
A primeira mudança significativa que foi apontada no encontro é a transferência do
atendimento diurno para um Centro de Municipal de Atendimento a População em situação e rua. A
abertura desse serviço integrará as ações que hoje são desenvolvidas na Casa Transitória bem como
a abordagem de rua e todos os encaminhamentos dos usuários para os demais serviços.
A mudança de local para o atendimento é necessária devido a capacidade que hoje a Casa
Transitória disponibiliza. Durante o dois anos de atuação concluímos que o local onde oferece
pernoite não deve ser utilizado também para atividades durante o dia, pois a permanência dos
usuários durante todo o período na Casa Transitória reforça o processo de institucionalização dessas
pessoas dificultando o processo de desligamento da instituição.
Percebemos que a vinculação com o albergue dificulta os trabalhos que visam a saída da
situação de rua. Para isso é necessário que Casa Transitória ofereça apenas o atendimento noturno e
que futuramente esse serviço de acolhimento seja específico para a população em situação de rua de
Araraquara e um outro serviço de acolhimento para os itinerantes.
Na tentativa de definirmos a população que esta em situação de rua e quem deve ser
atendida pela Casa Transitória surgiram algumas dificuldades a serem enfrentadas. Dentre elas
destacamos para casos de pessoas idosas abandonadas pela família, pessoas em situação de risco
pessoal, pessoas com alta hospitalar sem autonomia para realizar as necessidades básicas, famílias
desabrigadas e casos de saúde mental. Nosso questionamento é quem deve atender essa demanda?
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
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E quais os mecanismos que poderemos recorrer para que essas situações não se tornem casos para
atendimento nas instituições destinadas a população em situação de rua.
Enfim, os dados e as informações que apresentamos sobre a população em situação de rua
de Araraquara demonstram que o mendigo tradicional não expressa a realidade que temos em
Araraquara. São adultos que vivem em extrema instabilidade, sem lugar fixo e nem trabalho
regular. Essa pessoas não existem como cidadãos araraquarenses, são considerados como
estrangeiros dentro da própria cidade.
Em relação aos itinerantes salientamos que as políticas municipais de distribuição de
passagens reforçam um fluxo migratório que não tem destino, sendo uma forma fácil sem muitos
custos para resolver esse problema. Enquanto não houver consórcios regionais e a efetiva
participação dos governos Estadual e Federal estaremos sem solução para essa população.
O poder público não pode se isentar de sua parcela de culpa em relação a essas pessoas e
deve ser o primeiro a lutar contra os estigmas historicamente construídos, e não reforçá-los com
políticas higienistas (retirada das pessoas das ruas utilizando a força) e segregacionistas que ainda
se fazem presentes principalmente nos atendimentos dos albergues.
Ressaltamos que a Casa Transitória luta para a construção de um trabalho educativo,
procurando romper com as práticas coercitivas que se fizeram presentes ao longo de sua história.
Procuramos respeitar cada pessoa que esta em situação de rua em sua singularidade, buscando
alternativas para superação dessa desigualdade histórica que que leva um ser humano a romper com
todos os seus vínculos de suporte, tendo seus direitos violados e por fim ter rua como única forma
de sobrevivência.
Bibliografia Utilizada
ARARANHA, Valmir. Os albergues dos migrantes no interior do Estado de São Paulo: programas
de ação social ou políticas de circulação de pessoas. Travessia – Revista do migrante, 1996.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica sobre a sociedade salarial.
Petrópoles: Vozes/ Zero à Esquerda, 1998a.
OLIVEIRA, Luciano Márcio Freitas. Vidas sombrias na morada do sol: um estudo sobre a
população em situação de rua no município de Araraquara. Trabalho de Conclusão de curso em
Ciências Sociais, Faculdade de Ciências e Letras, Unesp, Araraquara, 2006.
VIEIRA, Maria Antonieta costa. ROSA, Cleisa Moreno Maffei. População de rua: quem é, como
vive, como é vista. São Paulo: Hucitec, 1994.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
Experiência de Gestão Municipal
Atendimento a Pessoas em situação de rua. São Carlos – 2008
Vivian Fernandes Silva1
Ana Laura Herrera2
Apresentação
Este texto busca apresentar um panorama sobre o atendimento a população em
situação de rua no município de São Carlos. Para tanto levantaremos alguns pontos que
nortearão nossa discussão, para posteriormente, chegarmos ao nosso objetivo. Gostaríamos
de salientar que não se trata de um texto acadêmico, mas de reflexões entorno das formas
de trabalho junto às pessoas em situação de rua e principalmente de nossa experiência de
trabalho e do processo de implementação da política de atendimento a população de rua no
âmbito da Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social do município.
Caracterização
A quem estamos chamando de população em situação de rua?
Essa resposta não é algo simples, pois existem vários conceitos, denominações para
as pessoas que utilizam os espaços públicos para sua sobrevivência. Entretanto uma pista
já foi dada, ou seja, fazemos referência a pessoas singulares com histórias de vida diferentes
que, com o tempo, perpassaram situações problemáticas, seja a perda do emprego, seja o
rompimento de algum laço afetivo, seja a dependência de consumo de álcool e drogas,
fazendo com que aos poucos estas pessoas percam a perspectiva de projetos de vidas,
passando a utilizar o espaço da rua como sobrevivência e moradia, reproduzindo o seu
cotidiano e sua privacidade num espaço considerado “inadequado” para essas práticas
denominadas privadas: tomar banho, dormir, comer, etc.
Essas pessoas consideradas, por alguns, como mendigos, pedintes, andarilhos,
moradores de rua, entre outras denominações, passam a conviver com o anonimato que a
rua produz. Quando esse contingente de pessoas passa a ser notado, ou se faz notar, gera
uma reação por parte da sociedade civil e dos órgãos públicos, que são cobrados a dar
respostas a essas situações.
1Assistente
Social, formada em 2004 pela Universidade Estadual de Londrina – PR. Coordenadora do Centro de
Referência Especializado de Assistência Social II da cidade de São Carlos.
2Assistente Social, formada em 2004 pela Universidad Nacional de Entre Ríos – Argentina. Assessoria técnica do
Centro de Referência Especializado de Assistência Social II da cidade de São Carlos.
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Experiência de Gestão Municipal em Atendimento a Pessoas em situação de rua. - São Carlos - 2008.
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Ana Laura Herrera
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
Quais as diferentes formas de atendimento direcionadas a esta população?
O atendimento as pessoas que se encontram em situação de rua, pode passar pela
ajuda ao próximo quando inspirada por práticas humanistas e/ou religiosas, por ações de
repressão e expulsão desse grupos dos espaços públicos, ou através de políticas públicas
voltadas as necessidades específicas dessa população gerenciadas pelo Estado.
Temos conhecimento de muitas situações em que a população de rua é tratada como
caso de polícia, ou seja, é responsabilizada pela situação que vivencia, passam a ser alvos de
abordagens intimidadoras, são consideradas pessoas perigosas que não podem permanecer
no lugar onde estão. A violência que sofrem passa a ser banalizada por se tratar de
“indivíduos vagabundos”, que enfeiam o ambiente e trazer uma sensação de insegurança.
Consideramos que geralmente as políticas de segurança pública dirigidas a esse público não
são voltadas para a sua proteção, mas sim para a criminalização e repressão (em relação
aos seus atos de “transgressão”) que acabam justificando-se na busca por higienização e
segregação social.
Outra prática que já foi alvo de escândalo em todo o país, foram os municípios que
disponibilizaram “lotações” que levavam as pessoas em situação de rua para longe e as
“descarregavam” em cidades vizinhas ou estradas longínquas. Poderíamos citar outras
tantas, como jogar os pertences (cobertor, panela, roupa etc.) da população de rua para
obrigá-las a deixar o local onde residem, fazer rondas para inibir a presença em diferentes
locais etc. Eis que todas essas ações podemos caracterizá-las como práticas higienistas, uma
vez que correspondem a abordagens que afastam, de modo autoritário, os “sem domicílio
fixo” dos centros das cidades e dos lugares onde eles estão sujeitos a “incomodar” o restante
da população.
Por outro lado, existem pessoas que se solidarizam com o “sofrimento do outro”, que
vêem a necessidade de ajudar, acolher, atender e minimizar a situação de desprovimento do
semelhante. Essas ações de auxilio são realizadas por pessoas, grupos ou entidades
principalmente de cunho assistencialista, através de: doação de roupas, alimentos, orações,
diálogos etc. Consideramos que, embora essas ações sejam necessárias e importantes para o
atendimento a esse grupo vulnerável, são insuficientes, pois atuam de forma pontual e
emergencial, na imediaticidade que se propõem.
O que acreditamos que deva nortear o atendimento a população em situação de rua?
Nesses dois anos e meio que trabalhamos com as pessoas em situação de rua,
2
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buscamos direcionar nossa atuação na Perspectiva da Cidadania, procurando soluções que
viabilizem o acesso dessa população aos direitos, com o objetivo de possibilitar uma melhor
qualidade de vida. Portanto, reconhecemos que esta problemática deve estar inserida na
agenda pública como questão social, entendendo que o Estado deve ser o gestor de
programas, ações, serviços de atendimento a população de rua através de políticas públicas,
norteado pelo respeito, autonomia do individuo, emancipação e liberdade de escolha.
Sobre a Política Nacional de Assistência Social – CREAS
Atualmente, o nosso trabalho se desenvolve no espaço do Centro de Referência
Especializado de Assistência Social – CREAS II – Atendimento a pessoas em situação de
rua, o qual detalharemos mais adiante, vinculado à Secretaria Municipal de Cidadania e
Assistência Social (SMCAS), onde trabalhamos com as pessoas em situação de rua e com
organizações e instituições da área, tentando efetivar uma política específica de
atendimento a essas pessoas, entendendo que esta problemática é extremamente complexa
e requer respostas - tanto da SMCAS, responsável pela execução da Política de Assistência
Social no município quanto de outras políticas públicas da área de Saúde, Educação,
Trabalho e Moradia, além da sociedade civil - que atendam com qualidade essa realidade
que é econômica, social e política.
Nosso trabalho segue as orientações da nova Política Nacional de Assistência Social
– PNAS (2004) e o Sistema Único de Assistência Social – SUAS (2005), gerenciados pelo
Ministério de Desenvolvimento Social -MDS. A partir de 2004 a Política Nacional de
Assistência Social está dividida em dois níveis de Proteção Social, a saber:
–
Básica cujo objetivo é prevenir situações de risco por meio de desenvolvimento de
potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários,
sendo o principal equipamento os Centros de Referência de Assistência Social - CRAS.
–
Especial cuja modalidade de atendimento está destinada a famílias e indivíduos que se
encontram em situação de risco pessoal e social, por exemplo, mulher vitima de
violência, crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas em situação
de rua. Este tipo de proteção compreende serviços de média e alta complexidade, sendo o
primeiro ofertado pelo CREAS atendendo famílias e indivíduos com seus direitos
violados e cujos vínculos familiares não foram rompidos; e o segundo ofertado por
serviços de atendimento integral (albergues, casa lar, família acolhedora, etc.)
Antes da implantação do CREAS II Atendimento a Pessoas em Situação de Rua, o
3
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principal equipamento para atendimento desta população era o Albergue Noturno SOS
Santa Izabel, entidade conveniada com a prefeitura municipal, com funcionamento das
18:00 às 07:00h., oferecendo serviços de janta, banho, pernoite e passagem para pessoas
itinerantes. Além deste serviço, o município contava com o atendimento social oferecido na
SMCAS, caracterizado por abordagens de rua, atendimento individual, visitas domiciliares,
regularização de documentação, encaminhamentos e concessão de benefícios eventuais.
Cabe mencionar, que desde 2006 viemos trabalhando com um grupo de pessoas em situação
de rua, tentando desenvolver um trabalho coletivo, realizando reuniões, oficinas culturais,
participação de encontros em São Paulo e região, propiciando um olhar crítico sobre a
própria realidade da rua, buscando um reconhecimento “do estar da rua” e um
envolvimento para a busca de alternativas e possibilidades de “saídas da rua”.
Com o trabalho realizado, percebemos a necessidade da implantação de um Centro
de Referência para atendimento desta população, que viesse articular as parcerias
realizadas com outras organizações e políticas públicas municipais. Promovendo um espaço
de reflexão para a fomentação de outras políticas voltadas para o atendimento a população
de rua, efetivando um trabalho em rede, promovendo discussões, capacitações para: as
parcerias, a rede de serviço e a comunidade em geral; propiciando a quebra de estigmas,
preconceitos e discriminação das pessoas que se encontram em situação de rua, além de
acompanhamentos e serviços prestados aos usuários e a aproximação com seus familiares.
CREAS II Atendimento a Pessoas em Situação de Rua – São Carlos 2008
Dessa forma, a implantação do CREAS II Atendimento a Pessoas em Situação de
Rua na cidade de São Carlos, julho de 2008, faz parte do esforço de estabelecer às diretrizes
e rumos que possibilitem a (re) integração do público atendido às redes familiares e
comunitárias, o acesso a oportunidades de desenvolvimento social pleno, considerando as
relações e significados próprios produzidos pela vivência do espaço público da rua.
O espaço do CREAS funciona das 07:30 às 17:00h., ofertando 03 (três) refeições
diárias, área de serviço para lavar roupa, cuidados com higiene pessoal, área de lazer (sala
de leitura, sala de TV) propiciando um espaço de convivência, um ambiente de socialização,
desenvolvendo ações educativas, ocupacionais e recreativas, como aulas de apoio de
matemática e língua portuguesa, oficinas de música, de confecção de bonecos de madeira, de
grafite, de recuperação de histórias de vida, de expressão corporal, além de atividades livres
de lazer (leitura, cinema, desenho), espaços coletivos de reflexão de projetos de vida
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individuais e coletivos e assembléias para definição de normas de funcionamento do local. A
equipe técnica do serviço está conformada por 01 (uma) Assistente Social funcionária
concursada da prefeitura municipal, 01(uma) Assistente Social, 01 (uma) Psicóloga e 01
(uma) Terapeuta Ocupacional que desenvolvem assessorias técnicas por contratos de 06
(seis) meses, e 01 (um) Cientista Social cedido pelo Albergue Noturno.
Qual é o público atendido?
Atualmente temos cadastrado no Serviço de Atendimento do CREAS II um número
variável de 95 (noventa e cinco) pessoas em situação de rua na cidade de São Carlos
(prontuários ativos de 2006-2008). Por sua vez temos o conhecimento de aproximadamente
10 pessoas em situação de rua sem registro nessa instituição, além de contar com um
arquivo morto de 97 pessoas que já estiveram em situação de rua (1999-2008), das quais a
maioria se desconhece a situação atual.
Essas 95 pessoas apresentam problemas diversos, como uso de substâncias
psicoativas, desemprego ou baixa renda, doenças, deficiências, não possuindo referência
domiciliar, com fragilidade de vínculos familiares e afetivos, situação que as expõem a uma
situação de extrema vulnerabilidade. O Serviço de atendimento do CREAS tem capacidade
de atendimento de 40 pessoas, no mês de setembro acompanhamos 33 pessoas, as tabelas e
gráficos abaixo caracterizam o público atendido:
Sexo
Pessoas
Homens
29
Mulheres
4
Faixa Etária
18 a 24
25 a 39
40 a 59
mais de 60
%
88
12
Pessoas
04
13
12
04
%
12
40
36
12
5
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Naturalidade
Pessoas
%
Cidade de São Carlos
Estado SP
Estado MG
Estado PR
08
16
02
01
24
49
06
03
Estados do Nordeste
Estrangeiro
05
01
15
03
Escolaridade
Analfabeto
Fund. Incompleto
Fund. Completo
Médio Incompleto
Médio Completo
Tempo de rua
até 01 ano
02 a 05 anos
mais de 6 anos
%
06
70
12
09
03
Pessoas
02
23
04
03
01
Pessoas
09
14
10
%
27
43
30
Familiar na Cidade Pessoas
Possui
24
Não possui
9
Dependência Química Pessoas
Sim
20
Não
13
até 01 ano
02 a 05
mai s de 6
%
73
27
%
60
40
6
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Ana Laura Herrera
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Estado Civil
Pessoas
Solteiro
16
Divorciado/ Separado
13
Casado
02
Viúvo
02
Renda
Bicos esporádicos
BPC
INSS
Nenhuma renda
Pessoas
14
03
01
15
%
48
40
06
06
%
42
09
03
46
O serviço de atendimento a Pessoas em Situação de Rua no espaço do CREAS II
realiza, em média mensal, 510 atendimentos. O que resulta em 26 pessoas por dia acolhidas
no local, seja para participar de atividades, para usar os serviços da casa ou para
atendimentos e orientação.
Como resultados e impactos quantitativos do trabalho desenvolvido nesse período
podemos destacar:
-
07 pessoas estão inseridas no mercado de trabalho informal.
-
06 pessoas conseguiram moradia, deixando de freqüentar o Albergue Noturno.
-
08 pessoas passaram a pernoitar no Albergue Noturno diariamente, deixando de
dormir na rua.
-
Todas as pessoas atendidas no CREAS II estão sendo acompanhadas pela rede
básica de saúde.
-
15 pessoas tiveram alguma aproximação familiar.
Entendemos que o CREAS é um dos principais articuladores da Política de
atendimento a pessoas em situação de rua, em função disso, temos desenvolvido parcerias e
trabalhos conjuntos com outras instituições, organizações e políticas públicas do município:
 Secretaria Municipal de Desenvolvimento Sustentável, Ciência e Tecnologia: Centro
Público de Economia Solidária:
- Realização de 02 (dois) encontros com Pessoas em Situação de Rua no Centro Público de
Economia Solidária trabalhando a questão de “Trabalho, Emprego e Geração de Renda”,
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
encontros desenvolvidos conjuntamente com funcionários da Secretaria de Ciência e
Tecnologia.
- Planejamento e execução de um curso de capacitação oferecido pelo Balcão de Empregos
de “Entrevista e realização de curriculum”.
- Planejamento e execução de um Curso Profissionalizante de um ramo de Construção Civil
que será oferecido no mês de novembro em parceria com o Centro Público de Economia
Solidária e a ONG Teia – casa de criação.
 Secretaria Municipal de Saúde:
Hospital Escola:
- Reuniões de articulação com o Hospital Escola buscando estabelecer um fluxo de
atendimento das pessoas em situação de rua dependentes químicos.
- Encaminhamentos para Hospital Psiquiátrico Caibar Schutel.
UBS Vila São José:
- Agendamento preferencial (urgências, encaixes por contatos telefônicos) para consultas
médicas.
UBS Santa Felícia:
- Reunião para apresentação de ambos serviços e realizada a parceria para:
- Palestra de Orientações de higiene bucal e avaliações odontológicas individuais.
- Agendamento preferencial (urgências, encaixes por contatos telefônicos) para consultas
psiquiátricas.
UBS Santa Paula:
- Campanha de Vacinação e agendamento preferencial (urgências, encaixes por contatos
telefônicos) para clinico geral.
 Secretaria Municipal de Educação e Cultura – Departamento de Artes e Cultura:
- Desenvolvimento de 02 (duas) oficinas sócio-educativas no espaço do CREAS II de:
Apreciação musical e Grafite.
- Ciclo de Cinema: Cinema para todos, como duas sessões mensais no espaço do Albergue
Noturno.
 Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento - Banco de Alimentos:
- Fornecimentos de hortaliças, verduras e frutas uma vez por semana.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
 Guarda Municipal
- Segurança e apoio na portaria do CREAS II, de segunda à sexta-feira no horário de
expediente.
 Universidade Federal de São Carlos:
- Trabalho conjunto em Projeto de Extensão com dois alunos bolsistas (além de integrante
do Posto de Rua): “Pessoas em situação de rua inseridos no município de São Carlos - São
Paulo: subsídios à reflexão participativa em torno de possibilidades de superação de
dimensões econômicas e extra-econômicas de vulnerabilidade”.
- Organização conjunta do Seminário Nacional de População de Rua.
 Ministério de Desenvolvimento Social:
- Recebemos um financiamento para execução do projeto “Normas para Cooperação Técnica
e financeira na implantação de projetos de promoção da inclusão produtiva no âmbito do
SUAS” (Edital 001/SNAS/MDS - 2007), proposta cujo objetivo geral foi “Oferecer apoio à
formação e capacitação à população em situação de rua, tendo como objetivo o exercício da
cidadania, o (re)conhecimento e fortalecimento dos direitos humanos, por meio de ações
sócio-educativas e profissionalizantes, que resgatem saberes e desenvolvam capacidades e
potencialidades individuais e coletivas, para uma autogestão na perspectiva da Economia
Solidária”. Este projeto começará a desenvolver-se no início de 2009.
 Fundação Educacional de São Carlos (FESC)
- Realização de 03 (três) Oficinas e Cursos profissionalizantes desenvolvidos no espaço do
CREAS II: Saúde e Corpo, Retalho de Memórias e Confecção de Bonecos em madeira.
 Albergue Noturno SOS Santa Izabel
- Fornecimento de alimentação e 02 (dois) funcionários cedidos para trabalho no espaço do
CREAS II.
 Pastoral de Rua
- Trabalhamos na coordenação conjunta de aulas de apoio de matemáticas e língua
portuguesa, doações esporádicas (colchão, roupa, etc) e comemoração de aniversários do
semestre.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
 Posto de Rua
- Trabalho conjunto em parceria com a UFSCar (Projeto de Extensão).
- Trabalho voluntário de uma integrante da organização nas atividades cotidianas da casa,
vez por semana.
- Mutirão de corte de cabelo.
Considerações
Ao longo deste texto tentamos evidenciar algumas polêmicas em torno das diferentes
formas de atuação junto à população em situação de rua, caracterizando o processo de
implantação da Política de atendimento municipal para essa população na cidade de São
Carlos. Ao longo do trabalho de quase 03 (três) anos fomos aproximando-nos as diferentes
situações da população atendida, conhecendo suas realidades, definindo formas de atuação,
o que veio a ganhar força e forma com a implantação do CREAS II nesses últimos 04
(quatro) meses.
Os apontamentos para um serviço municipal, que funcionasse durante o dia, foram
diagnosticados através do levantamento dos próprios usuários das necessidades vivenciadas
por eles no dia a dia. Um local que oferecesse condições de contemplar algumas
necessidades básicas como: higiene, alimentação, vestuários, que propiciasse espaços de
convivência, de socialização, educativo-recreativo e ocupacional, com uma equipe
interdisciplinar e principalmente um local articulador da rede de serviço, canalizador da
política pública municipal voltada para essa parcela da população são-carlense sempre
esteve latente como um dos nossos objetivos de trabalho.
Contudo, nosso trabalho apenas está começando; acreditamos que a partir da
abertura do CREAS II muitos avanços aconteceram, entretanto alguns desafios são
colocados:
Construção de uma Política Intersecretarial Municipal de atenção à população em
situação de rua.
Co-responsabilidade das políticas públicas de geração de emprego, saúde, habitação etc.
Consolidação do CREAS II através de financiamento e ampliação da equipe técnica e de
apoio para o ano 2009.
Municipalização do Albergue Noturno, considerando a imprescindível necessidade de
melhoria das instalações e a qualificação dos recursos humanos existentes.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
Com certeza estes e outros desafios vão além do âmbito municipal; e de acordo com
a nova legislação3, o poder público passa a ter a tarefa de manter serviços e
programas de atenção à população de rua, garantindo padrões básicos de dignidade
e não-violência na concretização de mínimos sociais e dos direitos de cidadania a
esse segmento social. Neste sentido, conforme relatamos anteriormente, o trabalho
desenvolvido no CREAS II Atendimento a Pessoas em Situação de Rua faz parte do
esforço de estabelecer às diretrizes e rumos que possibilitem a (re) integração destas
pessoas às suas redes familiares e comunitárias, o acesso a oportunidades de
desenvolvimento social pleno, considerando as relações e significados próprios
produzidos pela vivência do espaço público da rua.
Por fim, acreditamos, como destacado na Preliminar da Política Nacional
para Inclusão Social da População em Situação de Rua, que para que as pessoas em
situação de rua se sintam parte da sociedade e planejem o próprio futuro depende,
em parte, de uma mudança de atitude social no sentido de acolhimento e ruptura de
preconceitos, como também de políticas públicas específicas que direcionem
trabalhos à proteção social dessa população e não à segregação, afastamento e/ou
“criminalização” de comportamentos sociais.
3
Em 1993, o Congresso Nacional aprovou a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que regulamentou os
Artigos 203 e 204 da Constituição Federal, “reconhecendo a Assistência Social como política pública, direito do
cidadão e dever do Estado, além de garantir a universalização dos direitos sociais”. Posteriormente, a LOAS
recebeu alteração para a inclusão da obrigatoriedade da formulação de programas de amparo à população em
situação de rua, por meio da Lei n 11.258/05, de 30 de dezembro de 2005.
11
Experiência de Gestão Municipal em Atendimento a Pessoas em situação de rua. - São Carlos - 2008.
Vivian Fernandes Silva
Ana Laura Herrera
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
Bibliografia
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12
Experiência de Gestão Municipal em Atendimento a Pessoas em situação de rua. - São Carlos - 2008.
Vivian Fernandes Silva
Ana Laura Herrera
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
Vidas de rua em jogo
Políticas Públicas, Segurança e Gestão da População de Rua em São Paulo1
Daniel De Lucca Reis Costa
Centro de Estudos da Metrópole (CEM)
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)
[email protected]
Resumo: Tendo por intenção problematizar certas práticas e racionalidades políticas voltadas
à população de rua em São Paulo, este artigo desdobra-se em quatro movimentos: introduz
alguns argumentos mobilizados a respeito da esmola e da ajuda aos pobres de rua; apresenta o
surgimento das políticas públicas para a população de rua; situa o albergue como principal
peça institucional no conjunto destas políticas; e termina vinculando os mecanismos de gestão
desta população ao problema da segurança e da prevenção dos riscos. Considera-se aqui que a
população de rua constitui-se enquanto objeto de poderes que agem diretamente sobre as
condições pelas quais se pode jogar com a vida e com a morte nas ruas de São Paulo.
Palavras-chave: Vida de rua; Albergue como política pública; Segurança.
1. Como ajudar os pobres da rua?
No início da gestão municipal Serra-Kassab (PSDB-DEM, 2004-2008), armou-se uma
polêmica em torno da questão da esmola. Num quadro esquemático poderíamos colocar, de
um lado, o sociólogo Floriano Pesaro, novo responsável pela Secretaria Municipal de
Assistência e Desenvolvimento Social, que afirmava que a esmola apenas piora a miserável
situação daquele que a recebe. O então secretário, preocupado com o reencaminhamento e a
eficiência dos programas municipais agora sob sua gestão, assegurava que a esmola incentiva
e facilita a reprodução das vidas de rua. Ela atrapalharia o trabalho dos agentes sociais que
tentam convencer as pessoas a saírem das ruas e seria responsável pelo aprisionamento e pela
dependência do morador de rua à caridade. “Ao clichê de que a caridade dá o peixe se opõe
um outro, que tem a pretensão de ser libertador: teríamos de ensinar o pobre a pescar”, diz
Pesaro. Com o intuito de “mudar os costumes dos paulistanos” e “conscientizar as pessoas”, o
novo secretário lança a campanha “dê mais que esmola, dê futuro”, dizendo que a opção do
cidadão pela não-esmola seria também um voto de confiança para a ação social praticada pelo
poder público. E nesta empreitada a doação nas ruas é anunciada não só como imoral, mas em
alguns casos até mesmo ilegal, como atesta a censura aos sopões nas ruas2.
Do outro lado desta polêmica poderíamos situar Padre Júlio Lancelotti que,
reconhecido pelo título de Vigário do Povo da Rua, desde meados da década de noventa é o
1
As considerações deste artigo resumem o centro dos argumentos apresentados em palestra no Seminário Nacional
População em Situação de Rua. As informações aqui contidas resultam e integram um conjunto de pesquisas mais amplas,
ainda em andamento, de caráter etnográfico no Centro de São Paulo, onde desde 2001 desenvolvo trabalho de campo
acompanhando os circuitos da rua e do lixo, participando de eventos políticos, visitando cooperativas, serviços da assistência
e, até mesmo, dormindo em albergues. Aproveito aqui para agradecer à Profa. Dra. Norma Valencio pelo convite e pela
oportunidade de participar do evento, e também à Lívia Detomasi e Gabriel Feltran, cujas interlocuções ajudaram-me na
feitura deste texto.
2
Os artigos de Floriano Pesaro, publicados em jornais de grande circulação, “Não dê esmola, dê futuro”, “Sopão nas ruas” e
“Morador de rua – o que fazer?” (este último, assinado também por Andréa Matarazzo, na época subprefeito da região
central) atestam a posição do secretário em relação à questão. Estes artigos podem ser acessados no próprio blog do exsecretário, que nas últimas eleições candidatou-se e foi eleito como vereador de São Paulo pelo PSDB
(http://www.florianopesaro.com.br/biografia/quem-e-floriano-pesaro.php). Aponto apenas para o fato de que a mendicância
em muitas cidades brasileiras é proibida e classificada como prática ilegal, sendo que capitais como Florianópolis, Brasília,
Vitória, Maceió, Campo Grande, Fortaleza e João Pessoa, assim como São Paulo, desenvolvem campanhas anti-esmola. O
problema das doações fica ainda mais agudo quando o assunto são meninos de rua. Aqui a esmola é acusada de contribuir
para o trabalho infantil, pois, como diz as campanhas publicitárias, “atrás de uma criança pedindo há sempre um adulto
explorando”.
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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas
responsável pela Pastoral do Povo da Rua em São Paulo, importante referência católica sobre
o tema. Lancelotti, ao ser interrogado a respeito das ações do secretário, disse que a decisão
sobre “dar ou não” era uma “discussão de foro íntimo” não cabendo ao poder público legislar
sobre a experiência da caridade. Para o padre, a doação seria um “diálogo pessoal que cada
um deve ter consigo mesmo”, por isso “a decisão não deve ser tutelada pelo Estado”.
Afirmava, ainda, que a crítica à esmola passa a impressão de que as pessoas que pedem
ganham muito dinheiro e fazem da rua um lugar gostoso e agradável de se viver. Num debate
público em que estes argumentos foram lançados diretamente e em tom de afronta para o
próprio Secretário, Padre Júlio Lancelotti afirmava: “quem dá esmola é o Estado que não
apresenta políticas públicas adequadas para o povo da rua”3.
Dar ou não dar? A esmola é um assunto público ou privado? Qual a relevância da
caridade? O que deve o Estado fazer aí? Quais seriam as políticas públicas adequadas para
esta população? Longe de experimentar algumas das razões expostas ou decidir-se por algum
dos lados, trata-se de considerar esta polêmica como um campo adequado para a
problematização dos discursos e das práticas que envolvem as vidas de rua na cidade de São
Paulo. Não sendo nem contra nem a favor da esmola e de tudo mais que o debate carrega
consigo, haveria que se interrogar sobre as formas pelas quais esta questão é enunciada, quais
as razões mobilizadas pelos poderes governamentais e pastorais, suas justificativas e as
soluções expostas, seus vínculos históricos e o solo comum sob o qual os antagonistas
apóiam-se. E, atentando mais detalhadamente para os argumentos aventados pelos dois
interlocutores, pode-se perceber que estes temas não são nem um pouco novos, estão em
verdade atados a práticas e experiências históricas já conhecidas.
Jacques Donzelot (DONZELOT, 1994), ao descrever a ascensão e o aparecimento, no
século XIX, deste setor específico de intervenção que chamou de o “social”, mostrou que o
debate entre caridade e filantropia não só foi o fundamento da assistência moderna, mas
também o próprio anúncio da possibilidade de recuperação, reforma e integração social destes
“derrotados” pela vida. Segundo Donzelot, a filantropia apareceu contra a caridade,
justamente como uma resposta racional ao problema da pauperização em massa que passou a
caracterizar a vida das grandes cidades. A esmola, esta reciprocidade assimétrica que honra o
doador (já que este não espera troco) e não integra quem recebe (pois mantém e aceita uma
existência desviante), além de recolher um tributo competitivo com o próprio Estado, seria
contrária ao esforço racional de intervenção, condução e transformação destas vidas,
aumentando os custos e embaraçando todo o investimento público de capitais e pessoal ali
aplicado.
Aí se situa o cerne do argumento filantrópico: não distribuir peixes, mas ensinar a
pescar; em vez de dom, conselho (é muito mais econômico). Através de uma tutela
esclarecida a assistência busca recuperar no miserável e no dependente o senso de
responsabilidade por sua pobre existência. Sobre a questão social voltam-se os recursos
privados, antes doados dispersamente, e as agências públicas de administração, responsáveis
agora pela supervisão da ajuda. O auxílio não é mais efetuado presencialmente. A dádiva não
é mais direta. Ela deve ser mediada por instituições “idôneas”, responsáveis pela tutela e que
se encontram atreladas a complexos circuitos que conectam desde o Estado, suas burocracias
e aparatos jurídicos, passando pelas empresas e seus departamentos de “responsabilidade
social”, até a exposição pública do cotidiano de privação das vidas de rua. São instituições e
tecnologias de gestão que misturam e conectam o público e o privado, hoje constituem um
3
O debate em questão foi o “Seminário de políticas públicas para a região central”, realizado do auditório do Sindicato dos
Engenheiros no Estado de São Paulo (SEESP) no dia 6 de Junho de 2004. Este conturbado evento contou com a presença de
jornalistas, políticos de peso, religiosos, representantes de ONGs e de movimentos sociais, sobretudo aqueles ligados à
população de rua e aos catadores de materiais recicláveis. Uma etnografia deste evento foi mais detalhada em De Lucca,
2005.
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lugar próprio, o chamado terceiro setor, e participam ativamente da montagem daquilo que
François Ewald (EWALD, 1986) chamou de “diagrama liberal”4. Vemos aí um tipo de
racionalidade que conduz boa parte do debate sobre as políticas públicas para a população de
rua em São Paulo, uma cidade com cerca de 13.000 pessoas nomeadamente “em situação de
rua” e que hoje possui a maior rede de atendimento a este segmento na América Latina.
2. Políticas públicas para população de rua
A primeira vez em que se falou em “políticas públicas para população de rua” foi na
virada para os noventa, durante a gestão Erundina, momento este em que também se fez a
primeira contagem, coordenada pela própria máquina pública, para se saber quantas vidas
efetivamente se encontravam nas ruas do centro de São Paulo. Na ocasião, já se começava a
reconhecer na rua um fenômeno coletivo e de massa. A partir de pesquisas e de inúmeras
discussões sobre “quem são estas pessoas”, “como vivem” e “como são vistas” (VIEIRA et
al, 1994), esta realidade ganhou caixa de ressonância e passou a ser nomeada publicamente
em termos de “população”, uma categoria mensurável e previsível em suas regularidades
internas, uma categoria estatística que, como diz Michel Foucault, remete diretamente à
“razão de Estado” (FOUCAULT, 2008). Nesta virada, a miséria das ruas passou a adquirir
outro estatuto de inteligibilidade, deixando de ser vista simplesmente como decorrente da
“preguiça”, “vagabundagem” e da “má-escolha”, e passando a ser entendida como uma
condição forçada, como um fenômeno ligado ao desemprego, ao crescimento da pobreza e à
falta de moradia.
Espécie de acontecimento discursivo e urbano, a população de rua emergiu num dado
campo histórico como uma questão pública relevante e aos poucos foi deixando de ser tratada
pelos aparelhos estatais unicamente pela violência e pela coerção. Viu-se que a simples
repressão à vagabundagem tornou-se incondizente com o tipo e o tamanho do problema.
Transformação da qualidade e da quantidade da questão, portanto. Agora, os poderes públicos
e os agentes da ordem precisariam conhecer melhor esta realidade, para cuidar e organizar as
vidas de rua, vidas incertas que, ao serem agregadas por critérios estatísticos e de
probabilidade, transformaram-se em um grupo populacional de risco, caracterizado, entre
outras coisas, pela extrema miséria, pela ausência de vínculos familiares e empregatícios e
pelo nomadismo urbano. É deste campo de práticas que nasce a população de rua: um
público-alvo para políticas focais e de inclusão urbana; objeto de poder e saber que, anos
depois, se transfigurará em um novo sujeito de direitos, com um movimento social próprio a
representar os interesses desta população5.
À época dos debates na gestão Erundina, a reflexão prática e governamental sobre o
problema ocorreu juntamente com a busca por modelos de intervenção a serem estabelecidos
como política pública. Dada as condições históricas daquele momento (a democratrização, o
papel das Comunidades Eclesiais de Base e todo o referencial discursivo da época), as
4
Este seria um regime de relações pautado, de um lado, no princípio simétrico da igualdade e da equivalência contratual,
assegurando a liberdade individual de todos aqueles que possuem uma autonomia econômica. Do outro lado, o “diagrama
liberal” estaria fundado em relações hierárquicas e desiguais, impondo a tutela e a sanção normalizadora para todos aqueles
“incapazes de andar por suas próprias pernas”. Como explica Donzelot, “a tutela permite uma intervenção estatal corretiva e
salvadora, mas às custas de uma despossessão quase total dos direitos privados” (DONZELOT, 87:2001). A diferença que
articula o contrato e a tutela é, portanto, efeito direto de uma racionalidade governamental do tipo liberal que postula que,
para os que “vão bem”, laissez faire, laissez passer, já para aqueles que “não andam muito bem” a solução é a ação
interventora do Estado, destituindo a autonomia das vidas desregradas e impondo rígidas normas para que estas “andem na
linha”.
5
Até os anos noventa, a rede de práticas e a linguagem que dava inteligibilidade a questão era radicalmente outra. As
classificações existentes, além dos já conhecidos “mendigos”, “trecheiros” e “maloqueiros”, eram aquelas utilizadas pelos
atores ligados à Igreja Católica, tais como “povo da rua” e “sofredores de rua”. Uma reflexão mais aprofundada sobre o
nascimento da população de rua como figura original da questão social em São Paulo pode ser encontrada no meu mestrado
(DE LUCCA, 2007). Outras referências históricas sobre o fenômeno também podem ser consultadas em ROSA, 1995 e 2005,
DOMINGUES, 2003, BARROS, 2004, além do formidável trabalho de FRANGELLA, 2004.
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respostas de caráter mais institucional eram mal-vistas, pois se imaginava que as vidas de rua
poderiam ser modificadas através de técnicas pautadas na formação de comunidades,
trabalhos de grupo e casas de convivência. As grandes estruturas de albergamento eram
interpretadas como ineficazes e desumanas, e as experiências comunitárias e religiosas com os
então “sofredores de rua” acenavam para a importância de se lidar com estas vidas através de
dinâmicas coletivas em espaços menores de troca e diálogo. No entanto, o que se viu
posteriormente, foi um radical deslocamento dos ideais épicos agenciados naquele período.
A intensidade das lutas travadas em torno do tema, os múltiplos conflitos entre as
várias administrações municipais e os atores envolvidos, a proliferação dos discursos sobre o
tema, bem como o crescimento numérico do fenômeno, toda esta complicada trama de
mediações acabou por suscitar a criação de uma malha institucional que passou a colonizar
estas vidas. De modo que o circuito dos espaços e dos pontos de referência existentes para a
população de rua se integrou e se ampliou no desdobramento desta história. De um conjunto
de elementos escassos, dispersos e desarticulados, no decorrer dos anos noventa, uma rede se
articula e se estende, ganhando peso e densidade, com mais funcionários e usuários, com
outros equipamentos e procedimentos, novos diagnósticos e técnicas terapêuticas, e, na
passagem para o novo século, adquire uma lei própria que busca regulamentar e orquestrar o
conjunto do dispositivo, hoje totalmente informatizado. E a principal peça desta complicada
aparelhagem técnico-institucional é o albergue.
Sendo até então um tipo de equipamento voltado unicamente para os enfermos e para
os migrantes que chegavam à cidade em busca de trabalho, com o tempo o albergue passou a
adquirir novas formas, funções, usos e usuários. Tornou-se a principal política pública para a
população de rua, sendo que atualmente seu objetivo é servir como lugar de abrigo
emergencial para este contingente. Contudo, o discurso emergencial e provisório assumido
pelo albergue tem na sua base uma prática que o coloca como moradia permanente para um
grande número de pessoas. Na última década do século passado, a quantidade dos albergues
cresceu significativamente e, na prefeitura de Marta Suplicy (PT, 2001-2004), seu número
praticamente dobrou. Entretanto, a última gestão municipal, Serra-Kassab (PSDB-DEM,
2005-2008), apresentou pelo menos uma diferença assinalável em relação a veloz criação de
novos albergues: buscando evitar a permanência de moradores de rua no centro da cidade, as
novas instituições que estão sendo abertas agora não se localizam mais nesta região,
gradativamente estão sendo deslocadas para as periferias da metrópole, retirando as vidas de
rua do centro das atenções e dos olhares, e misturando-as com outras figuras da pobreza
urbana.
3. A maquinaria albergal
De um ponto de vista conceitual, o albergue poderia ser definido como uma instituição
semi-fechada, já que seus praticantes participam de um intenso fluxo entre o dentro e o fora.
Não podendo lá permanecer todo o dia, os usuários entram à tarde e têm de sair de manhã
cedo. Na sofisticada acepção de um usuário ele seria “um campo de concentração semiaberto”. Ora, “semi-fechado” ou “semi-aberto”, não há dúvida que a dinâmica do albergue
possui inúmeros traços comuns com as instituições totais analisadas por Michel Foucault e
Erving Goffman. O jogo das forças ali investido busca incentivar seu usuário na
transformação de sua vida, na busca de seus documentos e de sua família, de sua “motivação”
e “auto-estima”. Para isso, o corpo do indivíduo, seus desejos, seus gestos e sua fala, são
colocados sob a vigilância atenta da câmera, da assistente, do monitor, do educador e, por
vezes, do próprio colega ao lado. Ali o usuário, de um modo ou outro, tem de se submeter à
horários, lugares, normas rígidas, números, fichas cadastrais e filas para quase tudo.
Examinadas e organizadas por tais mecanismos, estas vidas não só são interpretadas como um
fenômeno populacional e de massa, elas efetivamente são tratadas como tal. São vidas que se
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tornaram anônimas graças aos aparatos de controle que, estabelecendo senhas, números e
cifras, segmentam uma multiplicidade de vidas através de tecnologias informatizadas de
individualização e serialização coletiva.
Para se conseguir uma vaga no albergue, o candidato tem de passar por sucessivos
procedimentos e rituais de instituição. Desta codificação é que se define sua identidade e seu
lugar na maquinaria albergal. Após as filas de espera, o candidato é questionado sobre o
“porquê de sua situação de rua”. Ao ser entrevistado pela assistente, o interrogado elabora um
discurso sobre si, sobre sua existência e as ínfimas tragédias pelas quais passou. De modo a
incentivar a narrativa, as perguntas freqüentemente se voltam para a relação dele com o
álcool, com a droga, com o corpo, com a lei, com sua família, com sua casa e seu trabalho.
São nestas relações que são investidos os discursos, tanto daquele que interroga, quanto
daquele que confessa.
Neste processo, o fino fio da linguagem vai passando e costurando os pontos do
acolchoado autobiográfico, vai ligando os pequenos retalhos da vida, tecendo uma narrativa
explicativa sobre as minúsculas incapacidades e falhas do dia-a-dia. Irregularidades mínimas
que, talvez, se fossem manifestas em outras condições e por outras pessoas seriam tidas como
sem importância. O desabafo de um usuário explicita isto: “Todo mundo deste planeta bebe,
fuma, fica na rua, falta algum dia no trabalho e briga com os filhos. Mas a gente não pode
fazer isso. E se eu fizer qualquer coisa dessas o assistente vai e briga comigo. E por que isso?
Porque acham que todo mundo aqui é mendigo!”. Mas é justamente todo este conjunto de
desordens pequenas e ordinárias que o discurso do atendimento tem o poder de fazer aparecer,
trazer à realidade. Irregularidades banais que aos poucos vão se transformando numa poderosa
e insistente verdade, definindo a identidade do albergado e definindo o perfil de um sujeito
problemático.
O conjunto dos rituais da instituição permite a feitura de uma ficha social que é
registrada, acumulada e arquivada no Sistema Integrado de Informação da População de Rua
(SISRUA). A partir de então, o insignificante destas vidas ínfimas e infames, “existências
destinadas a passar sem deixar rastro”, como fala Foucault (2006), cessa de pertencer ao
silêncio, surge como discurso, aparece na tela de um computador e passa a circular no interior
de um grande dispositivo sócio-técnico. A comunicação instantânea permite monitorar
continuamente as singularidades individuais e os comportamentos globais destas vidas.
Mas todas as informações retidas no SISRUA são efeitos de perguntas muito bem
orientadas. Isso porque a linguagem que escreve é a mesma linguagem que prescreve. Toda
pergunta determina seu horizonte de resposta e exclui do jogo discursivo aquilo que não foi
efetivamente perguntado. Entendemos, então, por que é que estas fichas sociais são quase
unicamente compostas de falhas, fraquezas e incapacidades: quem procura acha. Um usuário
nos esclarece o assunto: “o SISRUA é um sistema que só aponta as coisas ruins das pessoas,
todas as coisas boas da gente não estão lá”. São justamente estas “coisas ruins”, estas
desqualificações e distúrbios que delimitam discursivamente um campo de conhecimentos
que define a população de rua. Assim, este aparelho administrativo não é apenas agente da
assistência, dos serviços e dos encaminhamentos dos indivíduos para outros serviços da rede,
mas um aparelho que é também um aparato de saber. Os cadastros, relatórios e fichas sociais
permanentemente produzidas, constituem um saber sobre esta população, um saber que é coextensivo ao próprio exercício de sua gestão, já que lhe indica o que existe e o que é possível.
É este saber que justifica os financiamentos públicos e privados, as parcerias e as ações
institucionais, orienta as campanhas envolvidas (tais como a “anti-esmola”), aperfeiçoando os
mecanismos de gestão da população de rua. Assim, estas técnicas informatizadas que
implicam diferentes indivíduos num mesmo conjunto de arquivos digitalizados tem o poder
de codificá-los e nomeá-los oficialmente como população de rua, uma categoria definida
unicamente por sua negativa, por suas faltas e incapacidades.
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Daí se entende um pouco mais toda resistência que se têm para com estas instituições.
Como que por uma repetição tautológica de tragédias e rupturas, estes mecanismos
institucionais impõem aos usuários o reconhecimento do fracasso de suas vidas, asseverando
seus erros, por mais banais que sejam. Todos aqueles que se vêm capturados por este aparato
são automaticamente classificados como “população de rua”, independente de terem ou não
experiência de rua. Com isso, num mesmo e precário espaço concentram-se figuras e
vulnerabilidades das mais diversas: idosos, deficientes físicos, casos de saúde mental, expresidiários, foragidos (da polícia ou do crime organizado), toxicômanos (cada vez mais
jovens), gente desalojada de suas casas, soropositivos e tuberculosos. O conjunto dos
desfiliados e dos rejeitados urbanos, não tendo para onde ir, vão parar no albergue,
transformando-se, fazendo parte e inflando o número dos “indivíduos em situação de rua”.
Extremo paradoxo este, no qual um grupo tido como excluído agora se torna uma categoria de
inclusão: todos desfavorecidos agora podem por ela serem incluídos. Mas é uma inclusão
perversa, visto as abomináveis condições de higiene dos albergues em São Paulo, seus
espaços insalubres, em muitos casos superlotados, onde as pessoas amontoam-se e convivem
rotineiramente com brigas e doenças6.
Em São Paulo são mais de 9.000 pessoas que vivem deste gerenciamento institucional
da precariedade. E no circuito das ruas fala-se muito dos albergues, sobre o que é e sobre o
que eles deveriam ser. Todos esses comentários voltados unicamente para problemas de
atendimento e de equipamento, direcionados unicamente para fatores internos à instituição,
apenas demonstram a dificuldade que se tem de imaginar, pensar e criar um outro modelo de
moradia e abrigamento para estas vidas. No entanto a resistência a estas instituições
permanece sendo enorme. Ao mesmo tempo em que o albergue passou a estruturar parte do
cotidiano das vidas de rua, ele também se tornou inimigo delas, alvo incessante de
reclamações, exigências e acusações. Em relação ao albergue as vidas de rua estabeleceram
um complicado jogo de complementaridade e oposição, vinculação e recusa, dependência e
resistência, tal qual o nômade e o sedentário.
Feito para quem não tem para onde ir, “feito para quem não têm onde cair morto”,
como ali se ouve, o albergue efetivamente tornou-se a principal política pública para a
“inclusão social” da população de rua em São Paulo. Funcionando como um dispositivo de
estocagem, ele recolhe, armazena e mantém sob vigilância uma heterogênea multidão de
sujeitos e subjetividades. Ao intervir homogênea e negativamente sobre a diferença, a
maquinaria albergal torna-se uma fábrica de produzir identidades maculadas, trabalhando na
redução da intempestiva alteridade que lá se manifesta, e, por vezes, recusando o significado
que estas vidas dão para suas próprias vidas. Tudo se passa como se este aparato não buscasse
nem a “reinserção” e nem a “autonomia” dos moradores de rua, mas sua neutralização e seu
esquecimento, preparando-os, talvez, para esta forma derradeira de ostracização que é a
aniquilação física. Este lugar feito especialmente para proteger a vida dos riscos e perigos que
6
Seria necessário lembrar que as péssimas condições do albergue não afetam apenas seus usuários, mas também todos
aqueles que trabalham neste espaço. Isso, pois os funcionários também são tratados em termos de massa e respondem por
números no anonimato da instituição. Além disso, as dificuldades de se trabalhar ali são enormes, não há para onde
encaminhar as infinitas demandas que aparecem, os hospitais e as clínicas de desintoxicação parecem nunca ter vagas e ao se
chamar uma ambulância no albergue ela pode demorar horas e até mesmo não aparecer. Um funcionário me disse: “a saúde
não se interessa por atender este pessoal, eles dizem que são casos sociais e não de saúde”. Também ouvi em campo vários
relatos de pessoas que morreram nos albergues na espera da ajuda médica. Além destes problemas, muitos profissionais dos
albergues fazem duas jornadas por dia para melhorar sua renda em casa, possuem contratos de trabalho altamente precários e
lidam diretamente com um público que se encontra, também, numa situação precária. E é neste espaço sobreprecarizado que
se busca “inserir os moradores de rua na sociedade”. Mas, mesmo com todos estes problemas, esses trabalhadores sociais
conseguem, de um jeito ou outro, se apresentar publicamente como participantes de organizações racionais, planejadas e
eficientes na reforma e reintegração social de seus assistidos. Vemos aqui mais uma dificuldade com a qual tais trabalhadores
têm de lidar cotidianamente: o hiato entre aquilo que realmente fazem e aquilo que oficialmente dizem e lhes é cobrado fazer.
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emanam da rua, tornou-se, ele também, um lugar de morte, senão de uma morte física, ao
menos uma espécie de morte social em fogo brando.
4. Vida e rua: assegurando os riscos
Mas não haveria aí uma contradição? Ao que parece não. Isso porque as péssimas
condições dos serviços prestados a estas pessoas são totalmente condizentes com o objetivo
desta política inclusiva que busca fornecer apenas os “mínimos sociais”. O próprio Floriano
Pesaro, ex-secretário da assistência social, explicou isso ao visitar um albergue: “existem os
mínimos sociais e o albergue é o mínimo do mínimo. Agora, o albergue não pode ser tão ruim
que a pessoa não queira entrar, e não pode ser tão bom a ponto que a pessoa não queira sair”.
Então, se é verdade que tais instituições foram criadas para prover o “mínimo” a estas vidas,
também é verdade que elas possuem uma outra função: a segurança e o ordenamento da
própria rua.
Desde o advento da cidade moderna e suas utopias, a rua adquiriu uma função
estratégica, encarnando o valor de espaço público, de circulação e de disciplina. Por isso a
importância de se cuidar da rua, de se ter uma boa rua, de fazer a rua funcionar bem,
garantindo as circulações, as trocas econômicas, sua limpeza e as normas de civilidade. O
bom governo das ruas assegura a reprodução da cidade e a qualidade da vida urbana. Por
outro lado, viver nas ruas e viver das ruas é um modo de existência que coloca em xeque os
valores instituídos tanto em relação à rua como à vida. As vidas de rua deslocam e borram
nossos princípios e limites entre privado e público, sujo e limpo, saúde e doença, também
razão e desatino. Poder-se-ia afirmar, portanto, que vida e rua são termos que se repelem, daí
sua junção ser tão problemática, tão desestabilizadora. O primeiro termo deve ser prevenido
dos riscos da morte e do sofrimento que a rua lhe pode causar; o segundo deve ser assegurado
para que sua função urbana, de espaço público e de circulação, não seja desvirtuada por vidas
que queiram se fixar nas ruas e que supostamente privatizem-nas indisciplinadamente.
Com isso, quero argumentar que as políticas públicas para a população de rua devem
ser entendidas como parte de um dispositivo de segurança, ao mesmo tempo social e urbano,
que tem em seu horizonte a prevenção dos riscos que ameaçam a reprodução da vida e da
cidade. Isso porque a expulsão e a recolha das pessoas dos espaços públicos se faz
simultaneamente em nome da “proteção social” e da “limpeza das ruas”.
Diariamente uma rede de arrasto atravessa as ruas de São Paulo banindo pessoas e
recolhendo mediante a força física seus pertences (sendo que alguns destes são os próprios
documentos e instrumentos de trabalho, como a carroça e os materiais dos catadores). O
grande elevado da região central, também conhecido como “minhocão”, onde se concentram
muitas pessoas dormindo, bebendo e comendo debaixo do viaduto, é um alvo exemplar destes
aparelhos de captura. Noite sim noite não, uma ampla comitiva de policiais, agentes sociais e
profissionais da limpeza urbana revista as pessoas, tenta levá-las para os albergues, retira os
materiais que ali se encontram e lava as ruas com jatos de água. Junto com as viaturas da
polícia, os caminhões de lixo e os carros pipa, estão também as peruas da CAPE (Central de
Atendimento Permanente), que transportam os moradores de rua para os albergues. Ali, na
lataria da Kombi, se pode ler o nome do programa que orienta esta política: “São Paulo
Protege”.
Ambivalência imanente à própria questão: de um lado, trata-se de proteger as vidas de
rua, tutelá-las, retirá-las da rua, conjurar os perigos que ameaçam suas vidas e conduzi-las à
autonomia e à maximização de suas forças; de outro lado, o foco é justamente cuidar da rua,
garantir sua vital importância para o conjunto da cidade, defendendo a vida urbana como um
todo, prevenindo a “desordem urbana que traz a criminalidade” e mantendo a “cidade limpa”.
Vemos então que entre inclusão e exclusão, entre cuidado e repressão, entre proteção social e
higienismo urbano, nenhuma exterioridade, mas passarelas e comunicações entre
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racionalidades políticas parceiras e solidárias. É que a população de rua enquanto um sujeito
de direitos foi constituída justamente na base da “queixa”. Apareceu primeiro como problema
público através das constantes reclamações que os comerciantes, transeuntes e moradores
faziam aos órgãos da municipalidade. As exigências dos cidadãos pela retirada dos moradores
de rua, deram visibilidade a estes, à suas condições indignas de vida e à necessidade de serem
reconhecidos eles também como cidadãos.
Contudo, esta última parece nunca ter se consumado efetivamente. É o que se vê
atualmente no Centro de São Paulo, alvo de políticas de gentrification7 e de poderosos
investimentos em nome da “qualidade total” da vida urbana. Na tentativa de “banir os
mendigos do Centro”, como falam os jornais, as técnicas de poder voltam-se para a própria
materialidade das ruas, quando não diretamente para os corpos itinerantes. O meio de vida
torna-se também um modo de se atingir a vida, agindo não diretamente sobre os corpos e as
vidas de rua, mas sobre suas causalidades laterais e suas condições de sobrevivência. Com
isso, os mecanismos de gestão da população de rua atravessam toda uma série de variáveis e
mediações que vão afetar o fenômeno que se busca governar. São campanhas públicas “antiesmola” e contra as doações de alimentos nas ruas, fechamentos de depósitos de materiais
recicláveis, a proibição das carroças circularem, o trancamento dos lixos nas ruas, o
deslocamento dos albergues para a periferia, também a “rampa anti-mendigo”, o banco “antimendigo” e várias outras tecnologias e pedagogias do espaço urbano.
A obsessiva afirmação pelo “direito à segurança” está diretamente implicada no
aumento dos mecanismos de controle e contenção de populações consideradas de risco. O
estilo policial e penal das políticas made in USA, importadas hoje no atacado, também estão
sendo muito bem recebidas pela atual gestão municipal paulistana em sua preocupação com a
administração da insegurança social. Na boca das autoridades e dos meios de comunicação de
massa, a violência e a segurança tornaram-se a explicação primeira para a dinâmica da cidade
e do espaço público. O medo e o discurso do crime acabam por transformar a própria
materialidade da cidade instaurando um novo padrão de segregação urbana. Como as ruas
foram tomadas por “marginais”, “gente de bem” não pode mais usá-las e, temendo o perigo,
enclausuram a si mesmos em condomínios fechados e shoppings centers (CALDEIRA, 2003).
Assim, todos aqueles que não seguem à risca as normas de incivilidade, tornam-se
possíveis alvos de coerção e expulsão. Tendo como potente retaguarda um sistema carcerário
e albergal em franca expansão, as técnicas de “tolerância zero” investem pesadamente sobre a
incivilidade das ruas e seus pequenos delitos. No entanto, como diz Wacquant
(WACQUANT, 2001), tais técnicas policiais revelam-se em verdade enquanto uma
“tolerância seletiva”: selecionam sempre os mais despossuídos. Na “guerra contra os
bandidos”, não se busca impedir o crime e a corrupção, mas estabelecer uma guerra contra os
pobres.
Michel Foucault teve o mérito de nos lembrar que os mecanismos de segurança e de
defesa social sempre estiveram atrelados ao discurso da guerra, senão uma guerra contra
7
Os processos de gentrification referem-se às transformações das paisagens de centralidades urbanas históricas.
Tais processos são acompanhados, mormente, por uma série de características entrecruzadas nas quais se podem
constatar: a violenta e agressiva expulsão dos setores das classes baixas; os investimentos imobiliários
extremamente concentrados; a ação do Estado operando como um importante indutor deste processo (fraco
indutor como no caso dos EUA, ou forte indutor como no caso brasileiro); a organização de iniciativas privadas
locais em associações buscando publicizar o fenômeno e atrair fontes externas de financiamento; as parcerias
público-privadas de caráter eminentemente especulativo (em que muitos casos o setor público assume os riscos e
o privado fica com os benefícios); e a tentativa de transformação da paisagem em um cenário espetacular que
hipoteticamente poderia lançar uma sombra benéfica sobre toda região metropolitana. A bibliografia
internacional sobre o tema é vasta. Para uma análise do caso paulistano ver FRÚGOLI JR., 2005 e para um
maior detalhamento do papel dos movimentos sociais neste contexto ver FRÚGOLI, DE LUCCA e AQUINO,
2006.
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inimigos externos, ao menos uma “guerra interna”, contra os perigos que nascem do próprio
corpo social. E num momento em que os elos discursivos entre pobreza e criminalidade
ganham cada vez mais força no país, facilmente uma população que se encontra ameaçada,
pode ser vista como ameaçadora. Também aí, facilmente as políticas de combate à pobreza
transformam-se em política de combate aos pobres. Submetidos às burocracias da assistência
social e seus aparelhos panópticos de gestão da pobreza, os indesejáveis urbanos são
investidos por um poder que age sobre suas vidas – a rigor, o biopoder que fala Foucault
(FOUCAULT, 2004).
Mas e aqueles que permanecem resistindo, desviando e burlando todos estes
dispositivos de poder? O que resta aos indivíduos ingovernáveis refratários às respostas
institucionais para eles criadas e que vivazmente a recusam? Aos que não aceitam se tornar
dependentes da assistência e promovem diariamente uma espécie de desobediência civil, ou
mais precisamente, uma desobediência à civilidade, estes, sim, têm de aprender a jogar com
sua própria vida. A territorialização de suas existências se faz nas próprias linhas de fuga,
traçadas no limite do risco entre o tornar-se público-alvo cativo da assistência e vivenciar as
violências da rua, entre o ter sua vitalidade neutralizada e apagada e morrer de morte-matada.
A mesma potência daqueles que contornam e escapam dos dispositivos de segurança, pode
muito bem levá-los à morte.
Mas esta é uma morte que também se pode realizar em nome da própria segurança. A
prova disto é o “massacre dos moradores de rua”, cujos principais suspeitos são policiais
militares e agentes da segurança privada. Dos suspeitos, o único condenado até agora foi um
policial militar, mas não por estar implicado no massacre e sim por matar uma testemunha
que tinha presenciado o crime8. De modo que a impunidade destes assassinatos (ainda que os
policiais acusados os tenham confessado) permanece sendo um foco de indignação para
muitos. Mas a violência contra as vidas de rua pode ser agenciada por objetivos dos mais
variados, como, por exemplo, diversão. Um caso amplamente noticiado pela imprensa (em
verdade, o primeiro do tipo que chegou à grande mídia) explicita bem o valor dado a estas
vidas. Após terem queimado vivo o índio pataxó Galdino dos Santos, que em 1997 dormia
num abrigo de ônibus em Brasília, os dois jovens de classe média justificaram para a
imprensa e para si mesmos o ato: “não sabíamos que era um índio; pensávamos que fosse
apenas um mendigo”!9
Ora, num caso como no outro, o que conecta e explica tais mortes é o simples fato de
serem “mendigos” as vítimas. Assim, aos que negam, não querem ou não conseguem inserirse nos canais formais de identificação, estes podem ter suas vidas totalmente devassadas. É
por isso que têm de aprender a viver no limiar que estabelece aquela distinção, feita por Pierre
Clastres, entre etnocídio e genocídio (CLASTRES, 2004). Para o antropólogo, tanto um
quanto outro teria em comum o fato de pautarem-se por uma perspectiva etnocêntrica e ver a
alteridade, essencialmente, como uma diferença má e inferior. Contudo, o objetivo do
8
O “Massacre do Povo da Rua”, como também ficou conhecido, refere-se ao acontecimento ocorrido em agosto de 2004,
quando quinze pessoas que pernoitavam nos arredores da Praça da Sé foram agredidas com fortes pancadas na cabeça.
Destas, sete pessoas foram mortas de imediato, alguns sobreviventes morreriam posteriormente e outros estão até hoje
desaparecidos. Devido ao número de vítimas – sete mortos e oito feridos –, o caso saiu da esfera do 1° Distrito Policial, que
cuida das ocorrências do Centro Velho da cidade, e foi parar num departamento “especializado em chacinas”, a Delegacia de
Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil. No período, os jornais anunciavam que os investigadores dos
ataques trabalhavam com quatro hipóteses: “briga de facções rivais de mendigos em luta pelo território”, “represálias por
traficantes da região”, “crime encomendado pelos comerciantes locais para limpar a área” e “prática de extermínio por
gangues de skinheads”. Como as agressões haviam sido praticadas através dos mesmos procedimentos, com o tempo a idéia
de um crime premeditado foi se estabelecendo de forma cada vez mais forte. Posteriormente, os suspeitos do crime foram
tidos como policiais militares atrelados a um “esquema de segurança privada” e as matérias dos jornais passaram a associar
diretamente o evento com a Chacina da Candelária no Rio de Janeiro.
9
Apesar de terem sidos acusados de crime hediondo, os jovens tiveram sua pena abrandada pela justiça e despeito de se ter
comprovado que os acusados haviam comprado dois litros de álcool para a ocasião. Apenas lembro que estes casos figuram
em meio a outras práticas de extermínio, inúmeras, que ocorrem frequentemente, não só em São Paulo, mas em todo país.
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etnocídio não é a destruição física do outro, mas a destruição de seus modos de fazer, pensar e
ser, a aniquilação de seu modus vivente. Já no caso do genocídio (termo que só foi definido
juridicamente após o holocausto), sua finalidade é o extermínio e a negação da existência
física de uma dada alteridade vista como descartável e prejudicial. Em ambos casos, trata-se
sempre da morte, mas de uma morte diferente: no primeiro caso, supressão da forma de vida,
e no segundo, supressão da própria vida; num caso, o diferente é visto como um desvio
passível de recuperação; no segundo caso, admite-se que sejam vidas incorrigíveis,
incuravelmente perdidas e, por isso mesmo, vidas matáveis.
E é entre etnocídio e genocídio que se decide sobre aquilo que Giorgio Agambem
chamou de “vida nua”, uma zona-limite de negociação onde se traça o ponto em que a vida
cessa de ser politicamente relevante e onde se joga com o limiar além do qual a vida pode ser
impunemente eliminada (AGANBEM, 2007). Entendemos então por que os assassinatos e as
mortes de rua nem sempre são reconhecidos como homicídio, mas apenas como perpetuação
da “limpeza das ruas”. Os “vagabundos”, como ainda se diz por aí, são tratados como “nãogente”, “inúteis ao mundo” e “supérfluos”. É essa espécie de racismo que dá azo à violência e
às mortes de rua: ambas tornaram-se uma solução possível, quando não “a solução final”, ao
problema das vidas de rua.
Viver nas ruas implica em saber sobreviver na adversidade frente às duas faces dos
dispositivos de segurança, sejam eles governamentais ou não-governamentais. E é
precisamente nesta bifurcação que os movimentos sociais, seus colaboradores e ativistas
envolvidos também têm de lutar. Em manifestações e eventos políticos reivindicam o “direito
à vida” afirmando “somos um povo que quer viver!”. Contra a expulsão do espaço público e a
violência dos agentes da ordem urbana, os gritos de guerra também lançam “temos o direito à
rua!”. Vida e rua: são nestes dois flancos que os conflitos em torno da população de rua
atualmente desenrolam-se. Uma luta agonística que não parece apresentar nenhuma solução
fácil. Mas é neste mesmo ponto liminar e de indiscernibilidade, que as vidas de rua revelamse enquanto potência, afirmando sua existência como vida digna de ser vivida e colocando em
pauta a importância de se repensar a própria rua como um espaço urbano digno para a vida e
para o trabalho.
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AGAMBEN, G. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I, Belo Horizonte: UFMG; 2007.
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Hucitec; 1994.
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ÍNDICE ONOMÁSTICO
A
Aline Andréa Pereira ................................154
Leandro Tosta de Oliveira.............................6
Aline Ramos Barbosa . .............................129
Lirene Finkler ............................................51
Amanda Cristina Murgo . .........................162
Luciano Márcio Freitas de Oliveira............189
Ana Laura Herrera....................................196
Luciene Macedo de Queiroz .........................1
Ana Paula Granzotto . ................................51
M
Ana Paula Serrata Malfitano.....................136
André Peralta Grillo....................................61
B
Marcia Yumi Kano .......................................1
Marcos Castro Carvalho . .........................180
Maria Cecilia Loschiavo dos Santos.............31
Beatriz Janine Cardoso Pavan ...................41
Maria Regina de Freitas Gergul ....................1
C
Mariana Medina Martinez .................77, 180
Clara Zeferino Garcia . .............................180
Cleide de Souza de Oliveira.........................21
D
Daniel De Lucca Reis Costa......................208
Débora Dalbosco Dell’Aglio .......................51
E
Elisabete do Rocio da Silva Buiar................21
H
Mariana Miranda Zanetti ........................180
Mariana Siena ...........................................41
Moneda Oliveira Ribeiro............................115
N
Neusa Maria Sens Bloemer .....................146
Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio ..41
R
Rafael Rodriguez Dan .............................108
Rafael Silveira Cintra ................................13
Hui Ting Yang Chang................................115
Rosângela Huehara Ikeda ............................1
J
Roseli Carvalho Muraski.............................21
Jéssica Kobayashi Corrêa...........................98
Rosemeire Barboza Silva ............................87
Julia Obst .................................................51
S
Juliana Sartori ..............................122 , 162
Samantha Oliveti de Goes.........................170
K
T
Karen Murakami Yano..............................115
Taniele Rui ................................................67
Karina Granado ..............................122 , 162
Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo .146
L
V
Lara Leite Barbosa . ..................................31
Victor Marchezini . .....................................41
Lassana Sano .........................................122
Vivian Fernandes Silva.............................196