Douglas Crimp – Apropriando

Transcrição

Douglas Crimp – Apropriando
APROPRIANDO-SE
DA APROPRIAÇÃO
Texto retirado do livro: “As Ruínas do museu” de Douglas Crimp. (pgs. 115 a 129)
e tal leitura era um pouco simplista demais.
Apropriação, pasche, citação - esses métodos estendem-se virtualmente a todos
os aspectos da nossa cultura, dos produtos mais
cinicamente calculados da indústria da moda e do
entretenimento às avidades crícas mais compromedas dos arstas; das obras mais claramente retrógradas (os edicios de Michael Graves, os filmes
de Hans Jürgen Syberberg, as fotografias de Robert
Mapplethorpe, as pinturas de David Salle) às prácas
aparentemente mais progressistas (a arquitetura de
Frank Geluy, o cinema de JeanMarie Straub e Daníêlle Huíllet, a fotografia de Sherrie Levíne, os textos
de Roland Barthes). Se todos os aspectos da cultura
usam esse novo processo, então o próprio processo
não pode ser o indicador de uma reflexão específica
sobre a cultura.
A ubiqüidade mesma de um novo modo de produção cultural, contudo, realmente acentua o fato
de que ocorreu uma importante mudança cultural
nos úlmos anos, urna mudança que ainda quero
designar como a mudança do modemismo para o
pós-modernismo. O termo pós-modernismo talvez
comece a adquirir significado, além de simplesmente nomear um Zeitgeist, quando formos capazes de
empregá-lo para disnguir entre as diversas précas
de apropriação. O que eu gostaria de fazer aqui, então, é propor algumas formas possíveis de abordar
essas disnções.
Talvez eu deva, para começar, olhar mais de perto
as afirmações quanto ao caráter regressivo/progressista dos usos da apropriação feitas pelos arstas
previamente citados. Como, por exemplo, podemos
disnguir os usos que Graves faz do pasche dos de
Gehry? Por urna questão de conveniência, tomemos
as obras mais famosas que cada um dos arquitetos
fez - de Graves, o prédio da administração pública
A
de Portland; de Gehry, sua própria casa em Santa
Mônica. O prédio de Portland apresenta uma mistura
ecléca de eslos arquitetônicos do passado
geralmente originários do orbe do classicismo. Mas
Graves se volta para um classicismo já ecléco - o
neoclassicismo de Boulléc e Ledoux, o pseudoclassicismo dos edicios públicos Art Déco e floreios ocasionais da pompa da Beaux-Arts. A casa de Gehry, ao
contrário, apropria-se de apenas um elemento do
passado. Não é, contudo, um elemento de eslo; é
uma casa de madeira de 1920 já existente. Foi então aplicada uma colagem na casa (contornando-a e
perpassando-a) com materiais de construção de uso
generalizado que constam do catálogos - chapa ondulada, malha de aço, madeira compensada, asfalto.
As diferenças entres essas duas prácas são imediatamente óbvias: Graves apropria-se do passado
arquitetônico; Gehry apropria-se lateralmente do
presente. Graves apropria-se do eslo; Gehry do material. Quais as diferentes leituras que resultam desses dois modos de apropriação? A abordagem que
Graves faz da arquitetura é um retorno a uma compreensão pré-modernista da arte enquanto combinação criava de elementos derivados de um vocabulário historicamente dado (diz-se também que
esses elementos são derivados da natureza, tal como
era compreendida no século XIX). A abordagem de
Graves, por tanto, é parecida com a dos arquitetos
da Beaux-Arts, contra quem os arquitetos modernistas iriam se voltar. Embora não se possa alimentar a
ilusão de que os elementos de eslo são invenção do
arquiteto, há de fato uma ilusão muito forte em relação ao produto final como um todo e em relação à
contribuição criava do arquiteto para a ininterrupta
e connua tradição da arquitetura. Desse modo, o
eclesmo de Graves mantém a integridade de uma
história do eslo arquitetônico fechada em si mes-
ma, uma pseudo-história imune às incursões problemácas dos acontecimentos históricos concretos
(um dos quais seria a arquitetura moderna, se ela for
considerada como algo mais que simplesmente outro eslo).
A práca de Gehry contudo, retém as lições históricas do modernismo mesmo enquanto crica a
dimensão idealista do modernismo de uma perspecva pós-moderna. Gehry rera da história um objeto
real (a casa existente), não um eslo abstrato. O uso
que ele faz de produtos do dia-a-dia do mercado da
construção reflete as condições materiais atuais da
arquitetura. Diferentemente do arenito e do mármore que Graves usa ou imita, os materiais de Gehry
não podem aspirar a uma universalidade atemporal.
Além do mais, os elementos individuais da casa de
Gehry conservam firmemente sua idendade. Não
passam a ilusão de um todo sem emendas. A casa
apresenta-se como uma colagem de fragmentos e
afirma sua efemeridade como o faria um cenário de
cinema num estúdio (a casa pede claramente por
tal comparação); e esses fragmentos nunca indicam
um eslo. A casa de Gehry é uma resposta a um programa arquitetônico específico; ela não pode ser
indiscriminadamente copiada em outro contexto. A
linguagem de Graves, por outro lado, parecer-lhe-á
tão apropriada para uma chaleira ou uma linha de tecidos como para um showroom ou um arranha-céu.
O que acontece, então, com essas diferenças quando aplicadas à fotografia? Será que podemos fazer disnções análogas entre os emprésmos fotográficos
de Robert Mapplethorpe, de um lado, e os de Sherrie
Levine, de outro? As fotografias de Mapplethorpe, sejam elas retratos, nus ou naturezas-mortas (e não é
Frank Gehry, A casa de Frank Gehry,
Santa Mônica, Califórnia, 1978
(fotos: Tim Street-Porter/Esto)
coincidência o fato de se encaixarem tão bem nesses
gêneros ar!scos tradicionais), apropriam-se da eslísca da fotografia de estúdio do pré-guerra. Suas
composições, poses e iluminação, e mesmo seus temas (personalidades mondaines, nus glaciais, tulipas),
lembram a Vanity Fair e a Vogue daquela conjuntura histórica em que arstas como Edward Sechen e
Man Ray emprestaram a essas publicações um conhecimento ínmo da fotografia ar!sca internacional. A
abstração e a fechização que Mapplethorpe faz dos
objetos remete, através da mediação da indústria da
moda, a Edward Weston, enquanto suas abstrações
do tema remetem aos simulacros neoclássicos de George Pla" Lynes. Exatamente como Graves encontra
seu eslo em alguns instantes da história da arquitetura cuidadosamente selecionados, assim também
Mapplethorpe ergue de suas raízes históricas uma
visão “pessoal” sintéca que, todavia, é mais um elo
criador na interminável corrente de possibilidades da
história da fotografia.
Quando Levine quis fazer referência a Edward
Weston e à variante fotográfica do nu neoclássico,
ela simplesmente fotografou novamen te as fotos
que Weston rara de seu jovem filho Neil- nada de
combinações, transformações, acréscimos ou síntese. Como a casa de 1920 que está no centro do
design de Gehry, os nus de Weston são apropriados
em seu todo. Ao roubar descaradamente imagens já
existentes, Levine não faz nenhuma concessão às noções convencionais de criavidade arsca. Ela faz
uso das imagens, mas não para constuir um eslo
próprio. Suas apropriações só têm um valor funcional para os discursos históricos específicos nos quais
estão inseridas. No caso dos nus de Weston, esse discurso é exatamente o mesmo no qual as fotografias
de Mapplethorpe ingenuamente parcipam. Quanto
a isso, a apropriação de Levine reflete a estratégia da
própria apropriação - a apropriação do eslo da escultura clássica por Weston; a apropriação do eslo
de Weston por Mapplethorpe; a apropriação tanto
de Weston como de Mapplethorpe pelas instuições
de arte erudita, ou, na verdade, a apropriação da
fotografia em geral; e, finalmente, a fotografia enquanto ferramenta de apropriação. Usando a fotografia instrumentalmente como faz, Levine não está
limitada ao meio específico da fotografia. Ela é capaz
também de se apropriar de pinturas (ou de reproduções das pinturas). Em comparação, a rejeição da
fotografia como uma possível ferramenta assegura o
atavismo ‘dos recentes pasches dos pintores, já que
eles connuam a depender de modos
de imitação/transformação que não diferem em
nada dos pracados pelos arstas acadêmicos do século XIX. Assim como Graves e Mapplethorpe, tais
pintores apropriam-se do eslo, não do material, exceto quando usam a forma tradicional de colagem.
Frank Gehry, A casa de Frank Gehry,
Santa Mônica, Califórnia, 1978
(fotos: Tim Street-Porter/Esto)
Somente Levine foi suficientemente sagaz para se
apropriar do todo da pintura, em sua forma material, ao montar, em colaboração com Louise Lawler,
uma exposição no/do estúdio do finado pintor Dimitri Merinoff.
A centralidade da fotografia dentro da atual gama
de prácas torna-a crucial para uma disnção teórica
entre modernismo e pós-modernismo. A fotografia
não apenas saturou de tal forma nosso ambiente visual a ponto de fazer com que a invenção de imagens
visuais parecesse arcaica, como também está claro
que a fotografia é múlpla demais e úl demais aos
outros discursos para que as tradicionais definições
da arte possam vir a contê-la em sua totalidade. A
fotografia sempre ultrapassará as instuições de
arte, sempre parcipará de prácas não-arscas,
será sempre uma ameaça à insularidade do discurso
da arte. Neste aspecto, quero voltar ao contexto no
qual a fotografia sugeriu-me pela primeira vez o momento de transição para o pós-modernismo.
Em meu ensaio “Sobre as ruínas do museu”,
afirmei que as obras de Robert Rauschenberg do
início da década de 1960 ameaçavam a ordem do
discurso do museu. O amplo leque de objetos que o
museu sempre tentara sistemazar reinvadia agora
a instuição como pura heterogeneidade. O que me
impressionou como algo crucial foi a destruição feita
por essas obras da resguardada autonomia da pintu-
Michael Graves, O edifício Portland, 1980
(foto: Proto Acme)
Michael Graves, chaleira desenhada para Alessi, 1985
(foto:WilliamTaylor)
ra modernista por meio da introdução da fotografia
na supercie da tela. Esse movimento era importante
não somente porque significava a exnção do modo
tradicional de produção, mas também porque punha
em questão todas as pretensões de autencidade de
acordo com as quais o museu determinava seu conjunto de objetos e seu campo de conhecimento.
Quando os agentes determinantes de uma área
do discurso começam a ruir, abre-se para o conhecimento toda uma gama de novas possibilidades, as
quais não poderiam ter sido vislumbradas do lado de
dentro do ango campo. E nos anos que se
seguiram à apropriação que Rauschenberg fez das
imagens fotográficas - a desintegração muito concreta das fronteiras entre arte e não-arte - realmente
teve lugar todo um novo conjunto de avidades estécas. Essas avidades não cabiam no espaço do
museu nem podiam ser explicadas por seu sistema
discursivo. A crise assim precipitada foi enfrentada,
naturalmente, com tentavas de negar que qualquer
mudança significava vesse ocorrido e de recuperar as formas tradicionais. Um novo conjunto de
apropriações veio ajudar essa recuperação: a retomada de técnicas havia muito tempo ultrapassadas
como a da pintura al fresco (embora feita em pranchas portáteis para garanr a vendagem) e a da escultura fundida em bronze, a reabilitação de arstas
retardataires como os pompiers do século XIX e os
realistas do entreguerras, e a reavaliação de produtos até então secundários como desenhos de arquitetos e fotografias comerciais.
Foi numa relação com esta úlma resposta à crise
do museu a aceitação indiscriminada da fotografia
como uma arte de museu - que me pareceu situarem-se inúmeras prácas fotográficas recentes que
fizeram uso da estratégia de apropriação. Assim, a
apropriação de imagens publicitárias por parte de
Richard Prince e a intromissão de fotos inalteradas
no contexto da galeria de arte por ele executada simplesmente reproduziram - embora disfarçadamente
- a apropriação de fotografias comerciais angas pelas instuições de arte. Como na moda, parecia que
a assim chamada modalidade autoral da fotografia
de arte (que eu prefiro chamar de fotografia de auteur) era ridicularizada com ironia pelos instantâneos montados de casas de bonecas e de caubóis de
plásco de Laurie Simmons, ou pelos fotogramas arficiais de Cindy Sherman, que implicitamente atacavam o culto ao autor ao equiparar a conhecida arficialidade da atriz diante da câmera com a suposta
autencidade do diretor por trás da câmera.
Certamente eu não esperava que essa obra
funcionasse simplesmente como uma críca progra-
Robert Mapplethorpe, Thomas e Amos, 1987
(fato: cortesia do Espólio de Robert Mapplethorpe)
Robert Mapplethorpe, Ave do Paraíso, 1981
(fato: cortesia do Espólio de Robert Mapplethorpe)
Sherrie Levine, Sem título
(à maneira de Alexander Rodchenko: 3), 1987
(foto: Zindman/Fremont, cortesia da Galeria Mary Boone).
máca ou instrumental da força instucional do museu. Assim como os quadros de Rauschenberg. todas as obras feitas no âmbito das instuições de arte
existentes acabam inevitavelmente encontrando sua
vida discursiva e seu verdadeiro lugar de repouso
dentro dessas instuições.
Mas quando, ainda que de maneira muito sul,
essas prácas começam a se acomodar aos desejos
do discurso instucional- como no caso da extrema
mediação da imagem publicitária em Prince, ou do
abandono da mise-em-scène do fotograma de cinema em favor dos close-ups da “estrela” por parte
de Sherman -, elas se deixam simplesmente entrar
nesse discurso (em vez de intervir nele) em pé de
igualdade com os próprios objetos que outrora pareceram estar prontas a remover. E, nesse sendo, a
estratégia de apropriação torna-se apenas mais uma
categoria acadêmica - a temáca - por meio da qual
o museu organiza seus objetos1.
A obra de Rauschenberg oferece, mais uma vez,
um exemplo parcularmente esclarecedor da atual
situação da arte. Ele retomou, em sua obra recente,
Sherrie Levine, Sem título
(à maneira de Ilya Chasnisk), 1984
(foto: Zindman/Fremont, cortesia da Galeria Mary Boone).
uma de suas primeiras áreas de interesse - a fotografia. Mas ele agora usa a fotografia não como Lima
tecnologia reprodutora por meio da qual as imagens
podem ser transferidas de um lugar da cultura para
outro - do jornal diário, digamos, para a supercie
da pintura-, mas antes como um meio da arte em
sua concepção tradicional. Em suma, Rauschenberg
virou um fotógrafo. E o que ele descobre com a câmera e enxerga através das lentes? Nada além de todos aqueles objetos do mundo que se parecem com
passagens de sua própria arte. Rauschenberg, desse
modo, apropria-se de sua própria obra, transforma-a de matéria em eslo, e a entrega nessa nova forma para sasfazer o desejo de imagens fotográficas
apropriadas que o museu tem.
Um copo.
Pasadena à meia-noite.
Roche, Dinkeloo, & Assoc., Museu Metropolitano de Arte, Galeria André Meyer.
No ano seguinte, sua “gaiola” de vidro permaneceu vazia durante as duas primeiras semanas da
exposição. Quando finalmente foi exposta, um crítico comparou-a a um “feto expelido” que, fosse
ele menor, “ ... nos sentiríamos tentados a conservá-lo em um vidro com álcool”.
Calder, Franzen. Oldenburg, Whitney, Philip Morris
1. A referência, neste caso, foi indicada: este ensaio foi escrito para o catálogo de Catadores de Imagem: Fotografia, parte de uma exposição dupla - que também incluía Catadores de Imagem: Pintura - apresentada no Instituto de Arte Contemporânea da Universidade da
Pensilvânia, de 8 de dezembro de 1982 a 30 de janeiro de 1983, e que usava “apropriação” como um tema organizacional.