história da cardiologia
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história da cardiologia
HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA 2 SOCESP 30 ANOS INSTANTES DE SUA HISTÓRIA EVOLUÇÃO DA CARDIOLOGIA As intensas transformações socioeconômicas que a humanidade vivencia desde o final do século XIX, caracterizadas especialmente pela industrialização e pela urbanização das populações, continuam a agir como mola propulsora das modificações dos hábitos de alimentação, da redução do grau de atividade física e do aumento do estresse emocional. Estas mudanças ocorreram simultaneamente ao controle das doenças infecto-contagiosas e as doenças cardiovasculares passaram, portanto, a ser a principal causa de morte no mundo, especialmente no Ocidente. Além disso, o grande progresso tecnológico em geral e da tecnologia da informação, especialmente nos últimos anos, beneficiaram grandemente a especialidade, que hoje se encontra mais preparada para enfrentar os desafios representados pela ampla prevalência destas doenças. Por isso é natural que a especialidade, atualmente, alcance tamanho destaque na medicina e em toda a mídia leiga. Contudo, o interesse pelo funcionamento do coração tem raízes mais antigas. Povos e civilizações procuraram estudar este órgão que sempre despertou a investigação e inspirou mitos. LINHA DO TEMPO A história da Cardiologia inicia-se com o interesse em aprofundar os conhecimentos sobre a circulação. No papiro de Smith, atribuído a Imhotep, encontra-se uma descrição do coração e da sua ligação com os vasos sangüíneos – naquele documento chamados de canais –, os quais se distribuíam pelo corpo. Este papiro, com datação estimada em 3000 a.C., já demonstrava também que havia o conhecimento da existência da pulsação. Os chineses, cerca de 2300 anos atrás, também descreveram os fundamentos da anatomia do sistema circulatório e ainda adicionaram à sua investigação o dado de que havia movimento do sangue no interior destes vasos. HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA Imagem da 19ª dinastia tebana, do Livro dos Mortos de Hunefer (c. 1300 a.C.), representando Anúbis, que possui cabeça de chacal, segurando o ataúde que contém o corpo embalsamado de Hunefer diante da família que o pranteia e de sacerdotes executando a cerimônia de “Abertura da Boca”, que prepara o falecido para a vida após a morte. Extraído de Medicine: an illustrated history, 1978, Harry N. Abrams, Inc. 3 Já na Grécia Clássica, os conhecimentos médicos foram significativamente enriquecidos em conseqüência do desenvolvimento de métodos de pesquisa racionais, com destaque especial à observação criteriosa, e das primeiras formas de estruturação do pensamento humano. Assim, Platão já afirmava que o coração era o órgão central da circulação e que o sangue se encontrava em constante movimento. Hipócrates ensinava aos seus discípulos que o coração era dividido em cavidades, algumas delas separadas por válvulas e que a coloração do sangue diferia nas cavidades direitas e esquerdas. Hipócrates também caracterizava o coração como um órgão tão nobre que seu adoecimento seria incompatível com a vida. Hipócrates descreveu as veias como os vasos que conduziam o sangue, mas ensinava que as artérias eram os canais responsáveis pela distribuição do ar no organismo. Na mesma ilha de Cós, onde Hipócrates praticava a medicina, Praxágoras ensinou que o exame atento do pulso poderia dar informações importantes sobre muitos tipos de doença. No entanto, o avanço da medicina grega foi beneficiado também pela intensa atividade dos filósofos, dentre os quais se destaca Aristóteles, que descreveu em detalhes a aorta e já afirmava que o coração era o último órgão a morrer, o que acontecia quando suas batidas cessavam. Herófilo, no III século a.C., descreve a diástole, a sístole, além de quatro aspectos fundamentais do pulso: freqüência, amplitude, força e ritmo – sendo o primeiro estudioso a analisar as arritmias. Erasitato aprofunda os conhecimentos hipocráticos e descreve as valvas aórtica e pulmonar, além de anunciar, contrariando os preceitos do mestre de Cós, 4 SOCESP 30 ANOS INSTANTES DE SUA HISTÓRIA que as artérias também continham sangue e que se comunicavam com as veias. A medicina romana apresentava caráter peculiar, pois recebeu muitas influências gregas, mas admitia também práticas advindas de regiões mais longínquas do Império, principalmente de onde era adotado o latim como língua cotidiana. Contudo, foi um profissional que chegou a ocupar o cargo de médico pessoal do imperador Marco Aurélio o responsável pelo maior desenvolvimento dos conhecimentos sobre anatomia em geral e, também, sobre a anatomia do coração. Trata-se de Cláudio Galeno. Ele angariou a maior parte de seus conhecimentos a partir da prática diária de dissecções em animais, as quais realizava com o objetivo principal de aperfeiçoar sua técnica cirúrgica. Além disso, Galeno era um fiel seguidor da ciência grega e indicava a observação sistemática e rigorosa como a melhor forma para fazer avançar o conhecimento da medicina. Todavia, a contribuição mais conhecida de Galeno foi a de descrever a existência e a fisiologia de três “espíritos” no corpo, sendo o coração a sede do espírito vital, segundo o médico romano. Durante a Idade Média e o início da Idade Moderna quase não houve avanços no conhecimento médico que, durante quase um milênio, mantinha como base os ensinamentos de Hipócrates, Aristóteles e Galeno, além de lançar mão de um vasto arsenal de práticas empíricas e supersticiosas. Foi com o advento da Renascença que avanços científicos voltaram a acontecer, e mais uma vez a medicina foi beneficiada. Não seria possível, nesse contexto, desprezar os conhecimentos trazidos pelos trabalhos de Leonardo da Vinci. Este pontificou em diferentes áreas do conhecimento e trabalhou com sistemática na investigação da anatomia humana. O notável homem das artes e das ciências se dedicou com afinco à realização de dissecções, muitas delas feitas em indivíduos recém-falecidos. Seus esquemas e desenhos Médico examinando paciente pela medida da pulsação, talvez a mais importante característica do diagnóstico médico na China antiga. Cortesia de Wellcome Trustes, Londres. Extraído de Medicine: an illustrated history, 1978, Harry N. Abrams, Inc. HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA 5 trouxeram ao conhecimento da humanidade a existência do endocárdio, do aparato valvar incluindo os músculos papilares e o saco pericárdico. Leonardo da Vinci caracterizou o músculo cardíaco como sendo o mais potente do corpo humano e, por ter examinado cadáveres de pessoas jovens e idosas, fez descrição pioneira da aterosclerose, relatando e desenhando muitas modificações que comprometem os vasos arteriais com o progredir da vida. Homem ferido sendo colocado na biga para ser removido do campo de batalha. Detalhe de urna etrusca que também representa o perito em Medicina, Aquiles, cuidando de Patroclus. Museu Arqueológico, Florença. Extraído de Medicine: an illustrated history, 1978, Harry N. Abrams, Inc. As publicações de Andreas Vesalius, que editou De Humani Fabrica Corporis, foram os trabalhos, ainda durante o Renascimento, que mais impulsionaram o conhecimento da anatomia humana. Porém, o pesquisador que realizou a maior contribuição individual no período foi William Harvey. Este médico inglês, nascido em 1578 no condado de Kent, estudou na Universidade de Pádua. Harvey tornou-se médico pessoal dos reis James I e Charles I da Inglaterra. No ano de 1628, publicou seu trabalho fundamental Exercitatio Anatomica De Motu Cordis et Sanguinis in Animalibu (Exercício Anatômico Relacionado ao Coração e à Circulação em Animais), que revolucionou o conhecimento do sistema circulatório corrigindo e superando os ensinamentos de Galeno e outros de seus predecessores. Suas conclusões também foram fruto de intensas pesquisas baseadas em autópsias, as quais esclareceram a verdadeira natureza da circulação, das funções das valvas e demonstraram que não há fluxo através do septo do coração, mas sim que a corrente sangüínea 6 SOCESP 30 ANOS INSTANTES DE SUA HISTÓRIA atravessa o parênquima pulmonar. William Harvey esclareceu também a passagem do sangue dos átrios para os ventrículos e seus feitos são ainda mais notáveis se lembrarmos que ele os realizou sem a ajuda do microscópio. Na verdade, suas conclusões eram tão revolucionárias que somente foram aceitas integralmente pela medicina por volta de 1827. O reconhecimento dos seus esforços, porém, faz com que hoje muitos o considerem o fundador do moderno método de aplicação da medicina e como o pai da fisiologia. William Harvey, no entanto, não conseguiu determinar como o sangue passava das artérias para as veias, mas os vasos capilares foram descritos ainda no século XVII por Malpighi. Por sua vez, Giovanni Battista Morgagni publicou De Sedibus et Causis Morborum que relatava, dentre outros achados de necropsia, diversas doenças do sistema cardiovascular, tais como rupturas cardíacas, aneurismas da aorta, valvopatias e da doença isquêmica do coração. Contudo, (talvez) um de seus relatos mais impressionantes certamente seja aquele referente à presença de pulso bradicárdico (22 batimentos por minuto) num paciente portador de síndrome de StokeAdams que apresentou convulsões durante o exame físico realizado por Morgagni. A acurácia da descrição das irregularidades do pulso e a importância da associação entre os dois achados impressionam ainda hoje. Ainda no curso do século XVIII, Raymond de Vieussens aperfeiçoou os conhecimentos sobre a anatomia cardíaca, em especial descobrindo bandas musculares e peculiaridades da circulação arterial e venosa coronária, com enfoque particular nas estruturas do lado direito do coração. No campo da prática clínica, nesse mesmo século, foi feita ainda uma das mais notáveis descrições de uma doença, realizada por William Heberden, médico inglês que também deixou seu nome ligado a pacientes com artrite. Heberden foi um brilhante acadêmico, mas se destacava por apresentar perspicácia e intensa disciplina intelectual. Durante toda a sua carreira tomou Esboço de Leonardo da Vinci, mostrando a distribuição das veias do coração. (c. 1475 d.C). HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA 7 nota, em latim, das principais queixas relatadas pelos pacientes e procurou associar doenças a achados anatômicos, buscando sinais que fossem úteis para auxiliar no esclarecimento diagnóstico. Escreveu sua principal obra já em idade avançada e nela fez brilhante descrição da angina, termo que ele mesmo utiliza no seu trabalho original. Neste, Heberden caracteriza a apresentação da angina, sua localização, irradiação, os sintomas que a acompanham, tal como a sensação de morte iminente e, de modo muito especial, a associação entre o sintoma e a realização de atividades físicas. São Benedito, fundador da ordem dos Beneditinos (c. 529), em afresco por Spinello Aretino (c. 1378). São Benedito encorajava seus monges a cuidar dos doentes, mas proibia o estudo da Medicina por acreditar que as curas somente eram possíveis pela intervenção divina. San Miniato al Monte, Florença. Extraído de A medicina e sua história, 1989, EPUC. No mesmo século tivemos a introdução do digital (digitalis purpurea) por William Whitering, que publicou trabalho em 1753 descrevendo com acurácia a utilização deste medicamento, até hoje parte fundamental do arsenal terapêutico da Cardiologia. Antes disso, em 1711, houve o estabelecimento dos princípios de dois procedimentos fundamentais para o futuro da Cardiologia feitos por Stephen Hales, que estudou profundamente a hidrostática da circulação e pela primeira vez mediu a pressão sangüínea. Para alcançar este feito, Hales realizou o cateterismo cardíaco em três cavalos, sendo, portanto, pioneiro também neste tipo de intervenção em animais vivos. A partir do século XIX, observam-se avanços na área da propedêutica e o primeiro fato notável a ser citado é a invenção do estetoscópio por René Teophyle Hyacinthe Laennec, médico francês nascido em 1781 que pontificou em diversas áreas, tendo 8 SOCESP 30 ANOS INSTANTES DE SUA HISTÓRIA sido o primeiro a tentar associar sinais e sintomas de doenças com achados de necropsia. Laennec, que era também flautista, observou crianças brincando com tubos longos que eram utilizados para transmitir sons para outras crianças e considerou que o mesmo princípio poderia ser utilizado para investigar, de forma mais profunda, os sons dos órgãos do tórax – análise que até sua época era feita pela ausculta direta, isto é, com a colocação da orelha do médico diretamente sobre o tórax do paciente. A primeira aplicação deste novo método foi feita pelo próprio autor para examinar uma mulher jovem, tendo como um dos objetivos evitar o contato direto do médico com a sua paciente, devido ao recato da época. Contudo, Laennec relata que descobriu com “espanto e satisfação” que a percepção auditiva dos sons do tórax era muito mais clara com o auxílio de sua invenção do que era até então e o novo aparelho ganhou o uso amplo que até hoje o caracteriza. Tão grandes foram as suas contribuições para a prática médica que seus trabalhos foram comparados aos de Hipócrates e assim ele passou a ser conhecido como o pai da medicina torácica. Com o início do século XX, a humanidade começou a atravessar o período das mais intensas, rápidas e dramáticas mudanças já observadas ao longo de toda a história. A tecnologia passou a avançar de modo extremamente veloz, influenciando a vida das pessoas, mudando seus hábitos e implicando profundas alterações dos padrões de vida. Testemunhou-se o fenômeno da urbanização que passou a ser de tal modo acentuado que, a partir do ano de 2007, pela primeira vez na história da humanidade, havia mais pessoas vivendo nas cidades do que nos campos. O sistema de saneamento básico, a vacinação, o desenvolvimento dos antibióticos, o melhor tratamento da água distribuída para a população e o controle mais adequado das doenças infecciosas e parasitárias trouxeram inúmeros benefícios para o ser humano, reduzindo a mortalidade infantil e aumentando a expectativa de vida. Todavia, a passagem rápida do ser humano para um hábitat e um padrão de vida que não lhe eram habituais acabou por impor um ônus. Hipócrates, como imaginado por uma artista bizantino do século XIV, tornou-se o mais famoso nome da antiga Medicina Grega e era associado a uma expressiva coleção de textos chamada “Corpus Hippocraticum”. Do Museu Grego (c. 1342) 2194, f. 10v., Bibliotèque Nationale, Paris. Extraído de A medicina e sua história, 1989, EPUC. HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA 9 O PULSAR DAS METRÓPOLES A vida na cidade é mais sedentária do que aquela do campo, além do que o padrão alimentar tende a incluir grande quantidade de gorduras, carboidratos refinados e de fácil digestão. Também há maior facilidade de se adquirir o hábito de fumar e de alcançar o etilismo. A vida na sociedade industrial, e em especial no mundo moderno, mantém níveis constantes de competitividade e estresse que causam malefícios perpétuos para o ser humano. Todos estes fatores contribuem para a obesidade, a maior prevalência de aterosclerose, da hipertensão arterial e de diabete melito. Conseqüentemente, houve grande aumento na prevalência das doenças cardiovasculares, que há décadas mantêm-se como a maior causa de morte no mundo, tendo sido responsável por um terço dos óbitos em todo o planeta nos anos de 2002 a 2005, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. O conceito de Galeno do sistema circulatório. Extraído de A medicina e sua história, 1989, EPUC. A importância epidemiológica assumida pelas doenças cardiovasculares, associada aos avanços tecnológicos, fez que a Cardiologia experimentasse seus maiores avanços e chegasse a transformar-se, nos últimos 70 anos, numa das mais avançadas especialidades médicas. O SÉCULO DOS CIRURGIÕES Logo no início do século XX, Willem Einthoven introduziu o eletrocardiograma, método propedêutico que revolucionou o exame do coração e que ocupa, até hoje, papel de destaque na linha de frente da avaliação cardiológica. Ele iniciou com o uso clínico do galvanômetro de fita e foi capaz de estabelecer o padrão de diferentes arritmias, além da associação da inversão da onda T com a angina e a aterosclerose, publicados em 1910. Einthoven foi agraciado com o Prêmio Nobel em virtude de sua importante contribuição para a saúde das pessoas. Em 1912, James B. Herrick, iniciando a fase das enormes contribuições norte-americanas para o progresso da Cardiologia, 10 SOCESP 30 ANOS INSTANTES DE SUA HISTÓRIA fez importantes observações para o estudo da anemia falciforme. No campo das doenças cardíacas, contudo, sua contribuição mais importante foi a de associar a aterosclerose com a presença de locais de necrose miocárdica e sua elaboração de uma teoria para explicar o mecanismo do infarto do miocárdio. Herrick foi um grande incentivador do uso do recém-inventado eletrocardiograma para estudar os fenômenos ligados ao infarto do miocárdio. Sociedades americanas ligadas à Cardiologia mantêm até hoje premiações e palestra com o nome deste importante médico, reconhecendo desta forma o vulto de suas contribuições. No século XX, que também já foi chamado de o “século dos cirurgiões”, fizeram-se muitos progressos também nesta área, tais como a realização da primeira cirurgia cardíaca pelo americano Robert E. Gross e a criação de próteses sintéticas para a substituição da valva aórtica por Charles Hufnagel. A primeira cirurgia cardíaca a céu aberto foi feita por F. John Lewis que, em 1953, realizou o primeiro fechamento de uma comunicação interatrial com sucesso, numa criança de 5 anos de idade, empregando o método de hipotermia profunda que Wilfred Bigelow havia desenvolvido em animais em 1949. O desenvolvimento da máquina coração-pulmão por John H. Gibbon permitiu que ele e seu grupo realizassem, mais uma vez, o fechamento de uma comunicação interatrial, um feito celebrado por todos os cirurgiões cardíacos. Walton Lillehei iniciou a era da operação sob visão direta para tratar uma anormalidade da valva mitral, prática que logo ganhou ampla aceitação. As técnicas cirúrgicas de tratamento da doença coronária têm seus princípios no trabalho de dois pioneiros. Claude Beck, que em 1939 sugeriu que um segmento do músculo peitoral aplicado sobre o coração pudesse aprimorar a oferta de sangue para o miocárdio isquêmico. E Arthur Vinenberg, que em 1946 rea- HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA A Aula de Anatomia do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt, demonstra a importância da anatomia no ensino médico do século XVII, uma herança do Renascimento. Mauritshuis, The Hague. Extraído de Medicine: an illustrated history, 1978, Harry N. Abrams, Inc. 11 lizou o implante direto da artéria torácica interna numa região do miocárdio comprometida pela redução do fluxo de sangue, procedimento que ganhou ampla aceitação, tendo sido feita em mais de 5 mil casos. Mais tarde, Vasilii Kolessov e Robert Goetz realizaram anastomoses da artéria mamária interna com a artéria descendente anterior, o primeiro fazendo a ligação entre os vasos por meio de suturas tradicionais e o segundo por meio de um anel metálico especialmente desenhado para este fim. René Favaloro descreveu a técnica da revascularização cirúrgica com ponte de veia safena para tratar uma obstrução na artéria coronária direita e Dudley Johnson ampliou o uso desta técnica também para o território da artéria coronária esquerda. Hoje este tipo de cirurgia transformou-se numa das mais utilizadas modalidades de tratamento para a cardiopatia isquêmica. CATETERISMO Outra técnica importante que ganhou amplo uso no século passado foi a do cateterismo cardíaco. A despeito do trabalho pioneiro de Hales, mencionado anteriormente, foi apenas em 1929 que o cateterismo das câmaras cardíacas foi realizado em seres humanos vivos por Werner Forssman. Este pesquisador implantou uma sonda de vias urinárias em sua própria veia braquial e se dirigiu até o departamento de radiologia onde documentou o posicionamento do cateter no seu átrio direito. Por este feito, ele recebeu o Prêmio Nobel em 1956 em conjunto 12 SOCESP 30 ANOS INSTANTES DE SUA HISTÓRIA com Cournand e Richards que, em 1941, utilizaram cateteres para medir o débito cardíaco de seres humanos vivos. Mason Sones, um cardiologista pediátrico, logrou opacificar as artérias coronárias in vivo, utilizando contraste iodado. Paralelamente, Charles Dotter, em 1964, obteve sucesso no tratamento percutâneo de artérias obstruídas por ateromatose, nos membros inferiores. Baseado no trabalho destes pioneiros, Andréas Gruentzig, um angiologista suíço, levou a técnica de tratamento percutâneo até as artérias coronárias e apresentou no congresso do American Heart de 1976 o relato de seus primeiros casos em animais. Esta técnica foi aplicada pela primeira vez, com sucesso, em um ser humano vivo em setembro de 1977. Esta forma de tratamento revolucionou a abordagem da insuficiência coronária e logo ganhou enorme aceitação. Vários trabalhos e registros internacionais documentaram seu sucesso, mas chamaram também a atenção para a possibilidade de retorno da obstrução, o que estimulou a continuação das pesquisas, mesmo após a trágica e prematura morte de Gruentzig em outubro de 1985. Em 1986 e 1987, Sigwart, Puel, Palmaz-Schatz e J. Eduardo Sousa introduzem um novo sistema de tratamento percutâneo, os stents coronários, que se revelaram ser uma evolução neste tipo de intervenção. Os stents trouxeram maior segurança ao procedimento e reduziram as taxas de reestenose que, contudo, continuaram a ameaçar os pacientes submetidos à esta modalidade de intervenção. Devido a isto, em 1999, J. Eduardo Sousa realizou, no Brasil, o primeiro implante de stents farmacológicos, os quais liberam medicamentos após seu implante nas artérias coronárias. Estes stents reduziram dramaticamente as taxas de reestenose. Este trabalho pioneiro apresentou enorme impacto na prática cardiológica e logo ganhou ampla aceitação e utilização em todos os centros do mundo, por representar uma opção segura e eficaz no manejo intervencionista da insuficiência coronária. Anúncio colorido do século XIX de remédios ou panacéias patenteados, de uma época sem regulamentação governamental de ingredientes ou verificação de queixas. Coleção William Helfand, Nova York. Extraído de Medicine: an illustrated history, 1978, Harry N. Abrams, Inc. HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA 13 Os últimos 100 anos foram pródigos também na descoberta e elucidação de diversos mecanismos de doença, as quais permitem a melhor compreensão e, conseqüentemente, o melhor tratamento dos pacientes. Assim, Ignatowski, em 1908 na Rússia, sugeriu que poderia haver uma ligação entre alimentos ricos em gorduras e o desenvolvimento da aterosclerose, termo introduzido em 1904 por Felix Marchand. Diversos outros autores contribuíram nesta investigação, mas Konrad Bloch e Feodor Lynen receberam Prêmio Nobel em 1964 por seu trabalho relativo ao metabolismo do colesterol e dos ácidos graxos. Este feito foi repetido em 1985 por Michael Brown e Joseph Goldstein que descobriram o receptor do LDL e a via metabólica desta fração do colesterol total. Tais descobertas possibilitaram o desenvolvimento de terapias voltadas para o manejo do colesterol, o qual ocupa lugar de destaque na moderna Cardiologia. Xilogravura usada por William Harvey para demonstrar sua prova de circulação sangüínea em De Motu Cordis… (1628), um dos livros mais importantes de medicina e biologia. World Health Organization, Geneva. Extraído de Medicine: an illustrated history, 1978, Harry N. Abrams, Inc. O maior conhecimento do mecanismo das doenças e a importância do conhecimento do comportamento populacional fizeram que a Cardiologia procurasse desenvolver estudos de grande porte voltados para o esclarecimento dos mecanismos das doenças e da eficácia dos métodos de prevenção. Dentre estes trabalhos, tem destaque o estudo de Framingham que introduziu o conceito de estudo numa comunidade e que trouxe e traz inúmeros ensinamentos aos cardiologistas. Após o estabelecimento, em 1980 por Richard Wood, da relação causal entre trombose coronária e infarto agudo do miocárdio, a abordagem desta entidade passou por enormes modificações. Objetivando a recanalização da artéria relacionada ao infarto, 14 SOCESP 30 ANOS INSTANTES DE SUA HISTÓRIA desenvolveu-se a terapia trombolítica, consagrada em estudos como ISIS e GISSI, posteriormente aperfeiçoada com a desobstrução mecânica da artéria ocluída. Este procedimento, associado ao uso das unidades coronárias introduzidas em 1961 por Gaston Bauer e Malcom White e consagradas no relato de Thomas Killip e John Kimball em 1967, permitiu expressiva redução na mortalidade na fase aguda desta entidade, que ainda apresenta enorme importância epidemiológica. The Agnew Clinic (1889), de Thomas Eakins, reflete o crescente prestígio das escolas de Medicina norteamericanas. No entanto, ainda demorou mais vinte anos para que os novos padrões fossem reconhecidos. University of Pennsylvania, School of Medicine, Filadélfia. Extraído de Medicine: an illustrated history, 1978, Harry N. Abrams, Inc. HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA 15 A realização do primeiro transplante cardíaco no mundo, em 1967, pelo cirurgião sul-africano Christian Barnard, e repetida mais tarde no Brasil por cirurgiões como Zerbini e Jatene, dentre outros, trouxe nova perspectiva e esperança aos portadores de insuficiência cardíaca avançada, representando um importante recurso terapêutico. O tratamento das arritmias passou a ser abordado de modo mais efetivo, com a introdução dos marcapassos e dos desfibriladores automáticos, sendo estes últimos também considerados fundamentais no tratamento de pacientes com alguns tipos de insuficiência cardíaca. Ilustrações de catálogo (1880) de vários tipos de estetoscópios. National Library of Medicine, Bethesda. Extraído de Medicine: an illustrated history, 1978, Harry N. Abrams, Inc. Não poderíamos deixar de mencionar os significativos avanços no campo do diagnóstico, os quais compreendem desde a introdução da radiografia por Conrad Roentgen, da Doppler-ecocardiografia por Inge Edler e Hellmuth Hertz, da ressonância magnética por Edward M. Purcell e Felix Bloch e da tomografia computadorizada por Geoffrey Hounsfield. Estes métodos permitem a realização de diagnósticos cada vez mais complexos e seguros, os quais oferecem aos cardiologistas muitas informações fundamentais para a melhor condução dos casos de seus pacientes. Na verdade, o progresso destas tecnologias possibilita hoje a sua utilização também com a finalidade de se realizar a prevenção de doenças cardíacas. O DESENVOLVIMENTO CARDIOLÓGICO NO PAÍS No Brasil, a Cardiologia como especialidade estabelece-se a partir de 1941 com o Dr. Dante Pazzanese, que organizou o primeiro serviço especificamente voltado para o diagnóstico e tratamento 16 SOCESP 30 ANOS INSTANTES DE SUA HISTÓRIA das doenças do coração e, ao mesmo tempo, passou a ministrar cursos para a formação de profissionais, cursos estes que persistem até hoje. A instituição fundada pelo Dr. Dante transformouse no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, entidade pública que apresenta excelência no atendimento a pacientes com diferentes formas de doença cardíaca e local onde foram desenvolvidos inúmeros avanços no tratamento das cardiopatias, em especial na área da cirurgia cardíaca e da cardiologia intervencionista. A cirurgia cardíaca brasileira também é responsável por grandes e expressivas contribuições para a Cardiologia mundial, de início com o trabalho de médicos como o Dr. Eurícledes de Jesus Zerbini, que deu impulso à especialidade em nosso país. Trabalhador incansável e entusiasta da cirurgia cardíaca, Zerbini foi fundamental, ao lado de cardiologistas como Luiz Decourt, Radi Macruz, Fúlvio Pillegi, dentre outros, no desenvolvimento do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, um centro destacado na realização de pesquisas clínicas e epidemiológicas e que promove a medicina brasileira em todo o mundo. Diversos cardiologistas, como Jairo Ramos, Silvio Carvalhal, Mendonça de Barros, Cantídio Moura Campos, dentre outros, foram fundamentais para o progresso da Cardiologia no Brasil. Jairo Ramos e Dante Pazzanese trabalham juntos na fundação da Sociedade Brasileira de Cardiologia, entidade-mãe da Cardiologia brasileira. Contudo, não se pode esquecer das contribuições prestadas por J. Eduardo de Sousa, já mencionadas na área da cardiologia intervencionista, e por Adib Jatene no campo da cirurgia cardíaca. Dotado de espírito desbravador, este último introduziu técnicas cirúrgicas que se transformaram no procedimento de primeira escolha para o tratamento de doenças como a transposição das grandes artérias, que ficou conhecida como cirurgia de Jatene e para a reconstrução geométrica do ventrículo esquerdo. Estes profissionais dão orgulho a todos nós e já fazem parte da nossa história. HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA O impressionante avanço do conhecimento aliou-se às novas tecnologias permitindo que os cardiologistas possam contar com sofisticadas técnicas diagnósticas que revelam o coração de modos nunca antes imaginados. Estes exames, associados ao acúmulo de conhecimento clínico, epidemiológico e farmacológico, fazem possível que para cada paciente se possa escolher o melhor procedimento terapêutico. Estes avanços encontram-se disponíveis no Brasil, onde a cardiologia alcançou patamares de excelência. 17 Como pode ser depreendido dos últimos parágrafos, grande parte dos avanços da Cardiologia brasileira aconteceu dentro do Estado de São Paulo. Este, com sua vocação pioneira que data da época dos bandeirantes, sempre acolheu com alegria e hospitalidade os migrantes e imigrantes de diferentes partes do Brasil e do mundo, servindo de berço, além de fomentar o progresso científico. Ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, São Paulo experimentava grandes mudanças no seu perfil, na composição de sua população, nas atividades aqui exercidas. A capacidade de trabalho dos habitantes do Estado de São Paulo tornou a região responsável por grande parte do produto interno bruto do Brasil e por uma expressiva parcela de sua produção artística, intelectual e científica. Assim, a Cardiologia paulista encontrava-se madura já no início da década de 1970, fazendo milhares de cirurgias cardíacas, de cateterismo cardíaco e tratando inúmeros pacientes com diferentes tipos de doenças cardíacas. Sentindo a oportunidade e os cônscios do dever, um grupo de cardiologistas une-se nos anos de 1976 e 1977 para criar a Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, a nossa SOCESP, que agora completa 30 anos de atividade. Este livro é uma obra que tem por objetivo homenagear e reconhecer o trabalho dos que contribuíram para a história desta sociedade, perpetuando a sua memória para as gerações futuras. DR. IBRAIM MASCIARELLI FRANCISCO PINTO