A alma brasileira à sombra das chuteiras imortais
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A alma brasileira à sombra das chuteiras imortais
A alma brasileira à sombra das chuteiras imortais: Quando Nelson Rodrigues e Jung discutem brasilidade Rubens Bragarnich* Objetivo: o autor oferece uma perspectiva analítica, de viés complexo-histórico, do sentimento de inferioridade típico à alma brasileira, através da analise da identidade anímica do brasileiro com o futebol da seleção nacional (‘a pátria de chuteiras’). Justificativa: o autor vem estudando desde os anos 80 os aspectos psicológicos envolvidos no fenômeno do futebol como fenômeno arquetípico, e sua interface com a questão de gênero, a violência e também com questão da identidade nacional. Observa como floresceu uma farta e criativa discussão sociológica, antropológica, econômica e naturalmente desportiva sobre o tema, o qual, entretanto, não tem sido bem explorado na Psicologia Analítica, com raras exceções conhecidas, como James Hillman, abordando a agressividade e cânticos de guerra das torcidas nos campos de futebol e de Carlos Byington, com seus ideais democráticos sobre o futebol. O autor pretende compartilhar uma reflexão psicológica mais abrangente e fecunda, examinando o persistente sentimento de inferioridade brasileiro através do reconhecido fator de brasilidade que o futebol representa. Desenvolvimento do tema: O fenômeno do futebol atinge todas as latitudes e longitudes do planeta; é o esporte praticado por quase 300 milhões de pessoas, entre crianças, jovens e adultos, já há vinte e cinco anos por ambos os sexos, na modalidade futebol de campo, society e futebol de salão. O esporte envolve uma coleção de variáveis, tratadas por múltiplos eixos de analise, de várias ordens que envolvem estratosféricos valores financeiros, sob a coordenação da Federação Internacional de Futebol Associação (FIFA) (3) sobre federações e confederações continentais, regionais e nacionais, milhares de clubes profissionais e com numero de membros similar ao da ONU. Entretanto, o nosso escopo neste Congresso é outro; é tratar de entender o futebol como expressão do sentimento de inferioridade marcante da nação e cultura brasileira, quer dizer, como expressão do sentimento de inferioridade nacional, fenômeno de caráter paradoxal e disfuncional, justamente por se constituir, desde os anos 30 do século passado, em uma área que paradoxalmente envolve, ao mesmo tempo, a nossa potência admirável, excelência e gloria, e que fracassava recorrente e presumidamente devido ao efeito do complexo cultural brasileiro de inferioridade, através da expressão psicopatológica descrita pelo famoso ’Complexo de Vira-Lata, cunhada pelo dramaturgo, escritor, jornalista e cronista esportivo Nelson Rodrigues, conceito que se encontra eternizado no seu livro “À sombra das Chuteiras Imortais”, editado pela Companhia de Letras, sob a coordenação de Ruy Castro, que nos diz: Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. (1) Lembrando C.G.Jung, originalmente o termo ‘complexo’ pode ser entendido como um conjunto autônomo de impulsos agrupados em torno de ideias e imagens carregadas de energia, ou carregadas emocionalmente. ‘É a imagem de uma determinada situação psíquica, com acentuada carga emocional e, além disso, incompatível com a atitude habitual da consciência’ (CW 8, par. 201) (2) Para entender o Complexo Cultural, noção fundamental da primeira grande teorização de C.G.Jung. e expandida contemporaneamente por Thomas Singer e Samuel Kimbles (2013) (4), o autor recorre a uma abordagem histórica que se estabelece na nossa origem como colônia de exploração agrícola e de exploração mineral portuguesa, passa por processos de povoamento e ocupação mercantilista, passa pelo processo de miscigenação dos povos locais indígenas, importação de contingente africano escravizado, sob o poder da elite branca nascente brasileira subordinada à lógica europeia. Séculos depois, a intelectualidade nacional começa a discutir a nossa identidade com o brasileiro cordial de Sergio Buarque de Holanda, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, o Jeca Tatu rural de Lobato, as crônicas cariocas de João do Rio, as discussões sobre as teorias raciais da superioridade branca sobre as demais raças, a nossa presumida má-formação étnica que será compensada com tentativas culturais recorrentes de refundações nacionais, como Semana de Arte Moderna, a erupção do samba, a criação da Bossa Nova, o jazz brasileiro, a contracultural Tropicália, o discurso nacionalista e ufanista no Império, Republica, ditadura getulista, ditadura militar 64. O futebol não ficaria fora, ao contrario, tornou-se massa de constituição do caráter e orgulho nacional. O futebol, com sua origem elegante em SP, trazido por jovens brasileiros que estudaram na Inglaterra e por operários ingleses que para aqui vieram para trabalhar na construção de ferrovias e empreender no comercio, agricultura e indústria muito incipientes. Foi a participação coadjuvante de locais, especialmente mulatos, mestiços, negros e demais pobres, que trouxe a “ginga” e o estilo “macunaímico-tricksteriano” ao futebol brasileiro. Frágeis física e culturalmente, esses mestiços ingressavam nos campos como meros figurantes, sem os mesmos direitos de atuação dos brancos que jogavam. O processo de esquiva, desvios e evitações constantes para fugir do confronto físico com os brancos, desproporcional e em geral injusto, ajudou a construir o estilo artístico, barroco, curvilíneo, da firula, do drible, da ginga, mudando radicalmente o caráter vertical do futebol. Essa riqueza do populacho coadjuvante em terras brasileiras transformou o esporte bretão no prazer do futebol, transportado para as áreas de várzeas dos rios Tamanduateí, Tiete e Pinheiros em São Paulo e em outras cidades do Brasil, saindo das áreas especificas da elite paulista e mesmo carioca. O processo migrou para a periferia das cidades e espraiou pelo Brasil. Esses truques, “tricks”, usados pelos locais, mulatos e mestiços pobres, transformaram o futebol em um esporte democrático e encantador que se transformou no Brasil. O futebol começou a fazer parte de crônicas de João do Rio, de comentários de Gilberto Freire, de jornalistas e autores como Monteiro Lobato sobre o brasileiro e principalmente do pernambucano Nélson Rodrigues e seu irmão Mário Filho, que emprestou seu nome para o Estádio do Maracanã, ambos militando no jornalismo esportivo e Nelson, com a sua capacidade peculiar de enxergar o oculto da alma brasileira e futebol com seu paradoxo de excelência e fracasso entremeados e recorrentes (o Brasil já se destacava na terceira Copa do Mundo na França em 1938), tornou-se o canal de expressão desta marca de inferioridade na alma brasileira, imortalizado em crônicas de À sombra das chuteiras imortais. Esses e outros jornalistas cultivavam os jogadores mais talentosos, hábeis e especiais que, como heróis individuais, tinham o poder de decidir uma partida num jogo que era, basicamente, um processo coletivo, associativo! Centenas de ídolos desde Charles Miller, Friedenreich, passando por Leônidas da Silva, Domingos da Guia, Pelé, Garrincha e seus parceiros de 58 e 62, os ídolos de 70 e 82, chegando aos contemporâneos, Romário, Ronaldo, Roberto Dinamite e tantos outros reverberam pelo imaginário popular. Eles poderiam preencher o sentimento endêmico de inferioridade cultural? Neste contexto, o processo de celebrização e mitologização do futebol que se manifestou especialmente na escrita rodrigueana, foi dando forma e molde ao imaginário do brasileiro com os seus heróis, suas gestas e conquistas, sua coragem para enfrentar adversidades nos cenários épicos dos campos de futebol. Nascimento das lendas! A mitologização do futebol nacional e dos heróis nos conflitos entre clubes locais, com suas torcidas e gritos de guerra, pavimentou as crônicas esportivas e fermentou o imaginário popular. A ‘pátria de chuteiras’ é expressão inequívoca do processo coletivo de identificação da nação brasileira com sua seleção de futebol, onde são projetados materiais psíquicos inúmeros, pessoais e nacionais e onde a brasilidade, o orgulho e sentimento de ser brasileiro, emociona e envolve seus 201 milhões de habitantes. Similar ao funcionamento dos complexos de tonalidade afetiva no plano pessoal, também no âmbito coletivo, nós sofremos as reações emocionais intensas, inflamadas, sentimentais, odiosas, de humilhação e de êxtase e de glória. Choramos e rimos, nos abraçamos como os nossos, e amaldiçoamos, praguejamos ou nos flagelando, conjuramos, falamos mal nas derrotas, somos apaixonados e também somos abomináveis com nossos adversários. Mecanismos de projeção individuais e coletivos em alta intensidade! O ‘Complexo de Vira-Latas’ contem aspectos opostos nem sempre perceptíveis outrora e muito nítido na contemporaneidade: o pólo da inferioridade pode constelar o pólo oposto, o estado da superioridade arrogante, o estado pitbull, onde nos sentimos superiores, especialistas, vencedores, superiores. Este funcionamento de acentuadas oscilações para baixo e para cima não caracterizam a baixa autoestima? A baixa auto imagem? São marcadores do sentimento de inferioridade reconhecíveis no trabalho clinico diário de um psicoterapeuta. O declínio do futebol brasileiro macunaímico, artístico e brincalhão, foi acontecendo no fim do século passado, em função de muitas variáveis inerentes ao processo global de mundialização de recursos, transferência de investimentos, de trabalho, de profissionais e da comunicação sem fronteiras que ocorreram também no negocio do futebol, identificando e fazendo migrar precocemente talentos em países da América, da África e Ásia, homogeneizando modos de jogar, aproximando potencias futebolistas de diferentes níveis internacionais e fulminando a hegemonia do estilo sul americano de jogar, especialmente o jeito artístico brasileiro, que é eminentemente artesanal e por isso extremamente criativo. No inicio do novo século, encerra-se este ciclo extraordinário de setenta anos de historia futebolística. Seu esplendor e gloria orgulharam gerações de brasileiros; o mesmo também ocorreu com determinados ídolos de outros esportes, que compensaram os sentimentos prevalentes de inferioridade cultural, econômica e social que jaz na alma brasileira. Conclusão: O ciclo dourado do criativo futebol brasileiro aparentemente se exauriu. Certamente essa é uma perda muito grande para a autoestima do brasileiro pela profunda identidade do futebol com nossa alma. Entretanto, a alma brasileira está despertando para novos estados e experiências coletivas que podem e consolidar uma identidade nacional calcada em outras bases e estabilizar as flutuações excessivas da autoestima e da autoimagem brasileiras. * Psicólogo Clínico, membro analista do IJUSP, AJB e IAAP. Psicoterapeuta, supervisor e articulista. Editor-assistente dos Cadernos Junguianos da AJB. Coordenador da Comissão Permanente de Ética da AJB (2013/2017) Referências Bibliográficas Provisórias (1) Rodrigues, N – À Sombra da Chuteiras Imortais (2) Jung, C.G Obras Completas de C.G.Jung – vol 1 a 19, Editora Vozes, Petropolis, 1982 (3) http://www.fifa.com/index.html acessado em 28/7/14 (4) Kimbles, S Singer,Th. The Cultural Complex Contemporary jungian perspectves on psyche and society assim reconhecida em procedimento administrativo e disciplinar, em que fique assegurado o direito de ampla defesa