A descoberta da América Latina como terra de missão e continente

Transcrição

A descoberta da América Latina como terra de missão e continente
Estudios Latinoamericanos 6, p. II (1980), pp.343-361
A descoberta da América Latina como terra de missão e
continente-problema pela opinião católica belga (1895 1970).
Eddy Stols
Dentro da enorme massa de informações e imagens sobre a América
Latina que se veícularam na Europa se destacam a partir da última
década do século XIX um interesse crescente e uma preocupação
especial de grupos católicos belgas pelo continente latino-americano,
Estas imagens latinoamericanas dos católicos belgas refletem sem
dúvida parcialmente a evolução da opinião geral a esse respeito mas
merecem tanto mais um estudo na medida em que tem influído e
interferido sobretudo nos últimos vinte anos nos outros países da
Europa Occidental e até na própria América Latina. Pode-se hoje
falar de todo um grupo de latino-americanistas, fascinados e
preocupados pela América Latina, de origem e formação católica
belga, mesmo que se incluam neste figuras bastante contraditórias
como J. Comblin e R. Vekemans.
Antes de 1890 a opinião católica belga participava apenas na imagem
geral bastante difusa de um continente exótico com suas
peculiaridades de sangue latino exaltado tal qual a difundiram
ocasionalmente os numerosos naturalistas, viajantes e diplomatas
belgas em dezenas de livros, artigos e relatórios consulares1. Se bem
que a tentativa de colonização belga na Guatemala na década de
1840 foi acompanhada de perto pelo cardeal de Malines e pelos
1
Para uma bibliografia ver, embora incompleta, J. Dequenne, Amérique Latine, Essai de bibliographie
des ouvrages belges publiés sur l'Amérique Latine, 1875-1962, in «Bibliographica Belgica», 88,
Bruxelas, 1965. Faltam sobretudo os numerosos artigos de revistas. Ver ainda o Recueil Consulaire, de
1850 a 1914.
jesuítas belgas – que aliás procuraram utilizá-la como trampolim para
recuperar posições perdidas naquêle país – os católicos belgas
dirigiram seus primeiros interesses e esfôrços missionários antes para
a América do Norte, a Ásia e já para a África a partir de 18752.
Certamente a idéia do império latino de Maximiliano no México, a
questão religiosa brasileira em torno de dom Vital e o caso do
presidente equatoriano Garcia Moreno suscitaram certa simpatia
sobretudo em relação com o conflito interno com os liberais3. Alguns
eclesiásticos decidiram a título individual servir a igreja latinoamericana tal como Costenoble no Chili de 1848 a 1862 ou
acompanhar emigrantes tal como Vanesse para o Brasil ou Marichal
para a Argentina4. Todavia de modo geral os católicos belgas, a sua
hierarquia, as ordens religiosas, o partido católico não se davam
conta da progressiva decristianização da América Latina, apesar que
poderiam ter constatado a maior parte dos numerosos estudantes
latino-americanos na Bélgica então preferirem antes as universidades
laicistas de Bruxelas, Gand e Liege do que a católica de Louvain5.
Uma exceção sem maiores consequências formavam os padres
jesuïtas de Gand que editavam uma pequena revista «L'Etudiant
Catholique», na qual alertavam sobre os avanços do liberalismo ateu
na América Latina e procuravam influenciar alguns estudantes
latinoamericanos6. Sem eco, também, ficaram a participação e a
intervenção de Monsenhor Macedo y Maia, bispo da Bahia, e do
padre Ignacio Montes de Oca no México na Assembléia Geral dos
2
Ver a respeito do Guatemala, J. Fabri, Les Belges au Guatemala (1840-1845), Bruxelas, 1955 e sobre
o padre Walle, os Précis Historiques, parsim de 1843 a 1882.
3
B. Stols, Les étudiants brésillens en Belgique (1817-1914), in «Revista de História», C, 1974, p. 653692; Idem, Latijns-Amerikaanse studenten aun de Rijksuniversiteit te Gent (1854-1914), in Uit het
Verleden van de R. U. G., I,1976; A. Van Dorpe, Garcia Moreno, voorzitter van Ecuador, een
slachtoffer der vrijmetselarij, Oostakker, 1907 e 1940.
4
A. Deboutte, Leven van Charles-Lauis Costenoble, Apostolisch Missionaris in Chili, Eerste pastoor
van Jonkershove, Louvain, 1973; B. Stols, Colonisation et intérêets belges en Argentlne (1830-1914), in
«Wirtschaftskrafte und Wirtschaftswege» Festschrift für Hermann Kellenbenz, Nürnberg, 1978, IV.
5
E. Stols, Les étudiants brésiliens en Belgique..., o. c.; ver também a participação de um estudante
peruano ao movimento revolucionário em J. Bartier, Etudiants et mouvement révolutionnaire au temps
de la premiere internationale. in Mélanges offerts à G. Jacquemyns, Bruxelas, 1968, p. 35-60.
6
B. Stols, Latijns-Amerikaanse studenten..., o.c.
Católicos em Malines em 18647. Constatamos que não existia ainda
uma América Latina encarada como um problema.
Foi o papa Leão XIII que despertou os católicos belgas para uma outra
visão da América Latina, apresentada como ameaçada pelos
protestantes anglosaxônicos e pela maçonaria. Esta repentina tomada
de consciencia do perigo coincide plenamente com, o arranque do
surto expansionista dos meios econômicos belgas em direção a
América Latina8. Em pouco tempo, a partir de 1893, beneditinos
oriundos da congregação de Beuron e das abadias de Maredsous e
Saint-André-lez-Bruges – esta última especialmente fundada para
suscitar vocações para o Brasil – tomaram sob a liderança e o ímpeto
de Monsenhor Gerard van Caloen conta das antigas abadias
brasileiras de Olinda, Babia, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraíba e de
suas dependências de Campos, Santos e Sorocaba e formaram naves
núcleos no Ceará em Quixadá e no Rio Branco na Amazônia9. Logo,
seguiram, em 1896, os premonstratenses, os conegos brancos, das
abadias belgas de Averbode e do Park perto de Louvain
respectivamente para Pirapora em São Paulo, Jaguaráo no Rio
Grande do Sul e em Minas Gerais para Congonhas e posteriormente
para a diocese de Montes Claros10. Já no século XX missionários do
Sagrado Coração foram, desde 1911, trabalhar na diocese de Pouso
Alegre e em algumas cidades do interior de São Paulo, seguidos
posteriormente por padres josefitas, enquanto irmãos de la Salle se
estabeleceram em Porto Alegre. Alguns dominicanos exerceram seu
apostolado na Ilha de Trinidad, no Equador e também no Chile, onde
aliás franciscanos belgas povoaram conventos antigos11. Das
pequenas ilhas antilhanas, Dominica e Antigua, onde obravam desde
7
Assemblée Générale des Catholiques en Belgique, Deuxième Session à Malines, Bruxelas, 1865, I, p.
392-394 e II p. 567.
8
E. Stols, Colonisation..., o.c.; Idem, L'expansion belge en Amérique Latine vers 1900, in Bulletin de
l'Académie Royale des Sciences d'Outre-Mer, no prelo.
9
M. E. Scherer, Ein grosser Benediktiner, Abt Miehael Kruse von Sao Paulo, (1866-1929), Munique,
1963: E. Neut, La restauration du monachisme au Brésil, Lophem-lez-Bruges, 1927; G. van Caloen,
Lettres intimes à sa famille, Bruges, 1933; G. Lefebvre, Un grand moine et apôtre du XXe siècle,
Lophem-lez-Bruges, 1933.
10
E. de Moreau e J. Masson, Les missionnaires belges de 1804 jusqu'a nosjours, Bruxelas, 1924, p. 8797; Les Missions Belges, in La Belgique, Institutions, Industrie, Commerce, Bruxelas, 1905, p. 819-830.
11
A. M. Bogaerts, Bouwstoffen voor de Geschiedenis der Dominikanen in de Nederlanden, Bruxelas,
1965. p. 157-158.
1858, os redentoristas passaram em 1929 para Haiti. Alguns padres
seculares, cujo levantamento está longe de ser completo, seguiram
para o Brasil ou a Argentina em relação com a emigração ou foram
ocupar postes de ensino como Charles Sentroul na Faculdade de
Filosofia de São Bento em São Paulo12.
Mais impressionante ainda foi o esforço das congregações femininas,
que sem dúvida contavam com um pessoal ainda mais pletórico por
aquela época. Nada menos que seis congregações se estabeleceram
no Brasil entre 1896 e 1914: as irmãs vicentinas de Gijseghem
primeiro no Recife e em seguida em São Paulo, as damas da
instrução cristã de Dooresele no Recife, as irmãs do Sagrado Coração
de Maria de Berlaar em Minas Gerais, as cônegas de Santo
Agostinho de Jupille e as damas de Saint-André de Ramegnies-Chin
ambas em São Paulo e ainda as irmãs do Sagrado Coração de Jette no
Rio de Janeiro. Vale, aliás, assinalar que prosperaram mais
facilmente que seus congêneres masculinos e se abrasileiraram com
maior êxito. Mencionamos ainda o estabelecimento das irmãs da
Providence de Champion no Equador, das franciscanas de Gand na
Argentina e das filhas de Maria de paridaens de Louvain no Haiti.
Não só eclesiásticos mas tambén leigos, católicos militantes, partiram
em visita a América Latina, seguindo um pouco a moda dos políticos
ou militantes do laicismo francês que naquela época visitaram em
grande número este continente como Georges Clémenceau, Anatole
France ou Paul Doumer13. Certamente se destaca aquí a viagem de
Emiel Vliebergh prócer da incipiente democracia cristã ruralista – era
ligado ao Boerenbond, as Ligas Camponesas – e professor da
Universidade de Louvain. Participou no Rio de Janeiro no Congresso
Católico de 1908, e teve contatos similares em Montevidéu e em
Buenos Aires14. Henry Carton de Wiart da ala renovadora do partido
12
L. van Acker, Mgr. Sentroul en de filosofie, in Ad Harenas, Bruges, 1960, p. 237-243.
Ver por exemplo G, Clémenceau, Notes de voyage dans l'Amérique du Sud, Paris, 1911.
14
E. Vliebergh, Correspondance du Brésil, in «Revue Norbertine», sept. 1908; Idem, Voyage dans l'
Amérique Latine,, in «Revue sociale catholique», junho 1909, p. 3-28; Idem, Godsdienstige toestanden
in Brazilië, in Dietsche Warande en Belfort, 1909; Idem, L'agriculture au Brésil, en Uruguay et en
Argentine, in «Revue générale agronomique», doc. 1911 e jan. 1912; Idem, Conferencias feitas no Rio
de Janeiro, Juiz de Fora e S. Paulo em 1908, Rio de Janeiro, «Jornal de Comercio», 1910; Idem,
Segundo Congresso Catholico Brasileiro, Discurso: Tendencias dos pavos de raça latina e dos de raça
germanica na pesquiza da solução da questão social, p. 134-149.
13
católico fez igualmente uma viagem para o Brasil como também seu
parente Edmond Carton de Wiart, secretário do rei Leopoldo II15.
Outros como Edmond Leplae, agrônomo de Louvain, ou Jean de
Brouwer, advogado e industrial de Bruges, foram a título duplo de
viagem de informação e de negócios16. A viagem de informação
estava se tornando um hábito cada vez mais frequente no meio dos
professores universitários não só em Louvain como também nas
universidades não-católicas como aquela do jurista e historiador –
Charles de Lannoy17. Em geral, estes não se mostravam tão prolíficos
na difusão de suas impressões como os membros das ordens
religiosas.
Estes publicaram com profusão cartas, relatórios e notícias em revistas
e livros, sobretudo senão quase que exclusivamente sobre o Brasil.
Os beneditinos abriram primeiro uma crônica brasileira no seus
«Nouvelles Bénédictines» a partir de 1895 até 1898 mas lançaram
em seguida em 1899 um «Bulletin des Oeuvres Bénédictines au
Brésil», posteriormente aumentado com uma secção sobre o Congo e
intitulado «Bulletin des Oeuvres Bénédictines au Brésil et au
Congo», e depois da primeira guerra mondial transformado em
«Bulletin des Missions» com doravante pouquíssimas informações
sobre o Brasil. Os premonstratenses do Park publicaram primeiro
várias noticias e cronicas brasileiras na sua «Bibliothèque
Norbertine, Revue de l'Ordre de Prémontré», também a partir de
1899. Ao contrário dos beneditinos, que se dirigiam sobretudo, pelo
menos a julgar pelos contribuintes e doadores, a um público de
pequena nobreza e alta burguesía francófones, os cônegos brancos
encontravam seus simpatizantes mais na classe média e nos pequenos
proprietários rurais de expressão flamenga e editaram portanto a
partir de fins de 1901 «'t Park's Maandschrift», um boletim em língua
flamenga, aliás, um dos primeiros do gênero, com um noticiário
variado mas principalmente orientado sobre o Brasil. Vários
premonstratenses aproveitando a capacidade editorial da sua ordem
15
H. Carton de Wiart, Mes vacances au Brésil, Bruges-Paris, 1928; E. Carton de Wiart, Le Brésil
d'aujourd'hui, Notes de voyage, in «La Revue Générale», julho-agosto 1901, 41p.
16
E. Leplae, Transport par animaux de bât, in «L'Expansion Belge», IV, 1911, p. 533-539.
17
Ch. de Lannoy, L'enseignement dans la république Argentine, l'Uruguay et le Brésil, Bruxelas, Paris
e Gand, 1913.
apresentarain folhetos e livros sobre suas experiências brasileiras:
Dans le sertão de Minas e Les Prémontrés belges et les missions
étrangères de M. Gaspar (Louvain, 1910 e 1905), Trois mois dans
l'Etat du Parana au Brésil e Une conférence sur le Brésil, L' avenir
d'un grand pays de H. J. Peffer (Louvain, 1908 e 1911) e Drie jaar in
Brazilië de R. Schoenaers (Averbode, 1904, 2 tomos). Foram,
igualmente, bastante ativos com conferências ilustradas com
diapositivos. Alías, ambas revistas missionárias utilizavam já naquela
época com abundância os novos recursos fotográficos, inovavam
assim na matéria e constituem hoje um fundo bastante rico para um
futuro repertório fotográfico do Brasil.
Desta maneira o Brasil não vinha mais senda apresentado sob o ãngulo
da visita diplomática, da excursão turística ou da curta permanência
nas grandes cidades com apenas um passeio pela floresta tropical e
por uma fazenda modêlo como era o caso nas publicações anteriores
de d'Ursel, de Lalaing, de Robiano, Van Beneden, de SélysLongchamps, Verhaeren, Corbisier e outros. Agora, as publicações
se baseavam sobre uma permanência prolongada e tratavam cada vez
mais da vida no interior e no campo. Claro que não podiam dispensar
tópicos clássicos como a omnipresença das serpentes ou a apatia dos
brasileiros. Mas os beneditinos falavam dos fazendeiros e caboclos
encontrados e observados perto das suas dependências e novas
fundações no interior de Pernambuco, em Brotas e no Rio Pardo na
Bahia, em Campos e Sorocaba e no Rio Branco. Aparece até um eco
sobre a atuação do Conselheiro e gens fanáticos. Os
premonstratenses, ao lado de informações sobre o Rio Grande do Sul
e o Paraná, apresentavam sobretudo este Brasil profundo do sertão
mineiro perto do Rio São Francisco. Quase o Brasil inteiro se
desenrolava assim no panorama dos missionários belgas. Os índios
pacificados ou recentemente aproximados ocupavam um lugar de
destaque. As riquezas econômicas recebiam igualmente grande
ênfase já que os missionários tentavam justificar e ligar sua ação
pelos interesses econômicos belgas. A prospecção mais zelosa era
certamente aquela do conego H. J. Peffer18.
18
H. J. Peffer, Aux capitalistes et industriels belges, comment résoudre la question du fer au Brésil ?
Une solution. Louvain, 1908. Ver também nos so L'expansion belge..., o.c.
Predominavam por certo as notícias e apreciações sobre a vida religiosa
e o caráter destes brasileiros do interior. Unânimes salientavam sua
hospitalidade e bondade, simplicidade e frugalidade. Na verdade,
com um retrato tão favorável poder-se-ia interrogar porque ainda
precisavam de missionários estrangeiros não fossem uma certa
superficialidade de sua fé, suas superstições e gostos pela magia, a
falta de padres brasileiros e de sacramentos, as uniões livres e os
perigos de espiritismo, do protestantismo e da maçonaria. Sobretudo
esta última tornou-se rapidamente o alvo preferido e o bode
expiatório dos padres belgas, tanto mais que atrás do conflito
ideológico desvendavam-se um nacionalismo um pouco xenófobo e
uma luta pela liderança social e pela força econômica. Além disso os
belgas se mostraram interessados em aliciar os católicos brasileiros
num partido político no modêlo belga ou alemão. Mas estes fatores
não-religiosos não se enunciavam claramente. Os premonstratenses
tiveram problemas sérios em Congonhas e em Jaguarão por recusar
sacramentos ou serviços religiosos aos maçons notórios e por ataques
mútuos na imprensa. Em conseqência, tiveram que abandonar seu
colégio em Jaguarão. Já o título do jornal que editavam em Montes
Claros, «A Verdade», deixa entender que enxergavam abusivamente
o Brasil sob o prisma impróprio das lutas e oposições ideológicas
belgas. De maior envergadura foram os confiitos dos beneditinos,
primeiro no Rio de Janeiro, onde tiveram que receber escolta armada
para permanecer na abadia de São Bento tomada dos ocupantes
brasileiros em 1903, e depois no Rio Branco em 1910 onde foram
maltratados pelos capangas do chefe político de Boa Vista. Este
coronel Bento Brazil, embora maçom, tinha primeiro acompanhado e
protegido os beneditinos na sua instalação, mas foi em seguida
apresentado como usurpador dos bens eclesiásticos e explorador dos
índios19. Os incidentes estouraram quando um monge recusou seu
filho como padrinho num batismo alegando que era também maçom.
Estas escaramuças não levaram os padres a desligar-se das elites e
19
Ver sobre estes acontecimentos a revista e o arquivo dos beneditinos em Saint-André-lez-Bruges e
para o contexto os estudos de M. E. Scherer, Abt Geraldo van Caloen und die Beneditktinermission am
Rio Branco (Amazonas) von 1908-1918, in «Erbe und Auftrage» XL, 1964, p. 128-143; F. Knobloch,
Geschichte der Missionen unter den Indianerstämmen des Rio Negro-Tals, in «Zeitschrift für
Missionswissenschaft und Religionswissenschaft», LVI, 1972, p. 81-97, 172-185 e 283-304.
tomar o partido do povo, aliás ainda inexistente, mas antes a procurar
o apoio das elite s católicas e até fomentar a constituição de um
partido católico, tampouco com êxito. Contudo não obnubilavam a
imagem geral de um «futuroso país», que continuaram a apresentar.
Entretanto por este enfoque o Brasil ingressava um pouco mais no
quadro dos países pagãos ou no poder dos demônios. O Brasil
começou assim a sofrer de todas as simplificações constatadas para
os outros continentes missionários por J. Pirotte no seu admirável
Périodiques missionnaires belges d'expression française. Reflets de
cinquante années d' évolution d'une mentalité, 1889-1940 (Louvain,
1973). Esta involução é muito bem simbolizada pela inclusão de
brasileirinhos – pequenos flamengos fantasiados de brasileiros – no
cortejo de negrinhos e chinesinhos organizado por ocasião de um
congresso missiológico em Eeklo em 1926. Perdeu-se, as si m, uma
chance de aprofundamento dos conhecimentos brasileiros e de
tomada de consciência dos problemas reais.
As outras congregações no Brasil e em outros países latino-americanos
não se empenharam tanto na difusão de impressões e notícias, tanto
mais que não dispunham de facilidades graficas comparáveis a
aquêlas dos beneditinos e premonstratenses. Assinalamos, entretanto,
alguns folhetos ou livros, embora já mais tardios como Brazilié, het
land der toekomst (Misionários do Sagrado Coração, BorgerhoutAntuérpia, 1944), Sous le ciel d' Haíti (par une Fille de Marie,
Louvain, Xaveriana, 1929), Haïti, parel der Antillen de H. Ophey
(Malines, 1937), La république d'Haïti de J. Verschueren (Wetteren e
Paris, 1944, 3 tomos) e In den Westindiscehn archipel de A. Boni
(Bruges, 1944). Traduziram-se também outras obras missionárias
sobre a América Latina de autoria estrangeira como Onder de
Roodhuiden e Door Brazilië's Wildernissen do dominicano francês
H. Tapié (Courtrai, 1933, traduzidos por F. Meulepas) ou Onder de
Japanners in Brazilië do jesuita italiano G. del Toro (Louvain,
Xaveriana, 1934), que confirmam este deslize para o quadro do
mundo missionário. Paralelamente pode-se ronda mencionar o
interesse pela hisjória das primeiras missões na América ronda que
seja em nivel de literatura piedosa e de vulgarização. Assim
Zumarraga, O.F.M., Eerste bisschop, aartsbisschop van Mexico of
eenige bladzijden uit de geschiedenis van Nieuw-Spanje e Vijftig
jaren bij de Indianen of levensschets van broeder Pieter de Mura van
Gent de B. Verelst (Roulers, 1907 e Bruxelas, 1909) e várias
publicações na série «Altiora» da abadia de Averbode completaram a
integração do presente missionário da América Latina no seu passado
histórico20.
Neste período de 1890 à primeira guerra mundial os católicos apesar
deste surto repentino estavam ainda longe de exercer o predominio
ou o monopólio na informação sobre a América Latina. Profissionais
da engenharia ou da agronomia, que exerceram na América Latina,
comunicavam suas experiências em revistas especializadas de
circulação limitada como «L'Ingénieur Agricole» da Escola de
Agronomia de Gembloux, que informan sobretudo sobre a vida nas
fazendas brasileiras, argentinas ou peruanas, ou «Bulletin de la
Société Royale Belge de Géographie» e sua congênere o «Bulletin de
la Société Royale de Géographie d'Anvers» e ainda publicações de
cunho expansionista como «Bulletin de la Société Belge d'Etudes
Coloniales» ou «L'Expansion Belge». O acento se colocava quase
que sempre sobre as grandes oportunidades que oferecia a América
Latina.
Nisto concordavam com toda uma literatura propagandística editada a
cargo dos paises latino-americanos. Vale destacar em primeiro lugar
os esforços do Brasil para melhorar sua imagem na Bélgica pelas
numerosas edições da Comissão de Expansão Econômica na Europa
com escritórios em Bruxelas e em Antuérpia, pela participação nas
Exposições de Bruxelas e de Antuérpia e pelo trabalho do
embaixador Oliveira Lima nos meios intelectuais, dando
conferências, promovendo cursos de português na Universidade de
Liège, prefaciando livros. Um destes constituiu valiosa antologia da
literatura brasileira em tradução francesa pelo jornalista Victor
Orban21. Outro propagandista ativo da América Latina foi o
20
Mencionamos ainda A. Wuyts, De apostel van West-Indië, H. Franciscus Solano, Tielt, 1926; P. de
Ceuleneer, Pedro de Gante (Pierre de Mura), Anvers, 1931; G. Meessen, Pierre de Gand, L'épopée
franciscaine au Mexique, 1523-1572, Louvain, Xaveriana, 1932; A. Boni, Pieter van Gent,
Missiedrama in vier bedrijven, Bruges, 1952.
21
V. Orban, Littérature brésilienne, Paris, Porto e Rio de Janeiro, s.d.; Idem, Poésie brésilienne, Paris,
1922. A título de comparação ver também E. Chardonne, Poètes mexicains, Bruxelas, 1908.
representante da Bolívia Joaquim de Lemoine22. Outro panegirista
deste pais era William van Brabant23. Existia assim todo um grupo de
jornalistas e publicistas belgas ou latino-americanos preocupados em
melhorar seu crédito na Europa ou a dar resposta a gens oponentes
exilados. Circulavam assim entre a colonia latino-americana
periódicos como «La Revue Américaine, Organe des pays hispanoaméricains» por volta de 1901, enaltecendo a figura do ditador
venezolano Cipriano Castro, ou «El Correo Latino-Americano» que
servia por volta de 1896 os presumidos intereses da Colômbia. De
menos forte coloração político-partidária eram «O Reporter
Brasileiro» e «Le Chili lndustriel», que apareceram nos anos 19101912. Mas este tipo de publicações é menos interessante pela difusão
e eficiência que alcançaram e sim como testemunha da crescente
preocupação dos latino-americanos pela sua imagem no exterior.
As posições ganhas pelos missionários belgas na América Latina e em
outras partes do mundo colonial tinham outrossim chegado a
inquietar os meios do livre pensamento belga. Num congresso em
Bruxelas, em 1900 salientaram a necessidade de repostar com sua
pregação racionalista. Pensavam, sem dúvida, em primeiro lugar no
Congo onde os Belgas se instalavam cada vez mais, porém a
América Latina tampouco ficou fora de seu enfoque. Eugène Hins
que outrora tinha sido preceptor numa fazenda em Pernambuco e
tinha editado suas impressões no Un an au Brésil, ocupava então
uma posição de secretário de uma organização racionalista e
procurou intensificar as relações com gens correligionários na
América Latina24. As informações a respeito continuam entretanto
bastante sigilosas. Um definido caráter de missão racionalista
revestia a ida de Georges Rouma para a Bolívia, em 1905, para
reorganizar o ensino normal daquêle país a pedido do govêrno liberal
de Ismaêl Montes. Rouma era discípulo do pedagogo Alexis Sluys,
então uma figura de proa do racionalismo belga, e teve sérias
dificuldades com a hierarquia católica de Sucre. Nos seus escritos êle
se mostrava entretanto sempre muito circunspeto e discreto e visava
22
J. de Lemoine, La Bolivie actuelle, Bruxelas, 1909.
W. van Brabant, La Bolivie, Paris, 1908.
24
E. Hins, La libre pensée internationale en 1910, Bruxelas, 1911; p. 11-12, 74-75, 125-127, 144, e146150.
23
um tom de imparcialidade científica. Isto se evidencia no seu Les
Indiens Quitchouas el Aymaras des Hauts Plateaux de la Bolivie,
Résultats de la Mission anthropologique organisée en 1911...
(Bruxelas, 1913)25. Após uma curta estadia em Cuba como consultor
pedagógico, Rouma voltou para Bélgica e tornou-se durante muitos
anos o especialista oficioso da América Latina, chefiando missões
econômicas, dirigindo a «Maison de l'Amérique Latine» em Bruxelas
e escrevendo várias obras sobre todos os paises latino-americanos de
caráter essencialmente informativo26.
Neste ponto lhe era completamente oposto Isidore Poiry, também
imbuído da nova pedagogia racionalista e que dirigiu em Lima de
1904 a 1911 a Escola Normal. De regresso na Bélgica êle ajudou a
fundar em 1921 «Le Monde Espagnol et Hispano-Américain, Illustré
mensuel pour développer l'entente intégrale entre la Belgique et les
Pays Hispano-Américains», que entretanto não teve vida longa. Foi
uma segunda permanência no Peru em 1944 que decidiu Poiry a
escrever não mais tanto sobre problemas pedagógicos como sim
sobre suas experiências e sua visão do Peru. Em 1946, saiu publicado
seu Les pays ibéro-américains e em 1948 seguiu Voyage et Séjour au
Pérou, en 1944-45-46, suivi de I. La Loi des Peuples et II.
L’évolution rationnelle des Pays 1ndoaméricains. Amargurado pela
pouca consideração que recebeu desta vez do governo peruano, saiu
da sua reserva de ex-consul do Peru em Bruxelas para lançar umas
verdades cruas em forma de invectivas sobre o excesso de luxo em
Miraflores, a baixa moralidade e a depravação da burguesia, a
jactância e a influência excessiva dos militares, as escolas
convertidas em anticamaras das casernas, a submissão da mulher, o
imperialismo norteamericano, a imposição das corvéias aos índios, a
insalubridade dos casebres. O alvo principal de suas diatribes foi
25
De Rouma ainda sobre o mesmo tema: La civilisation des Incas et leur communisme autocratique,
Notes et commentaires, Bruxelas, 1924 e Quitchouas et Aymaras; étude des populations autochtones
des Andes boliviennes. Bruxelas, 1933. Comparável pelo interesse indigenista é A. Courboin. Chez les
Indiens, Notes et souvenirs d'un séjour dans l'Amazonie. in «Bulletin de la Société Royale de
Géographie d'Anvers», XXV, 1901, p. 83-128.
26
G. Rouma, De Buenos Aires à Sacre, in La vie intellectuelle, 1912, 34 p.; Idem, Terres d'avenir,
Bruxelas, 1928; Idem, Les Républiques latines du Nouveau Monde, Bruxelas, 1948; Idem, Les
ressources économiques de l'Amérique latine, Bruxelas e Paris, s.d.; Idem, L'Amérique latine, L'essor
sous la République et la liberté, Bruxelas, 1948.
entretanto o clero e mais especialmente o clero estrangeiro, que ele
via transformando o Peru num vasto convento. Na sua visão do Peru
pode-se descobrir quase toda a problemática avançada alguns anos
antes pelo indigenismo e aprismo de Mariategui e Haya de la Torre,
embora Poiry fôsse demasiadamente consciente da força e
originalidade de seu racionalismo pedagógico para admitir qualquer
influéncia de outros. Ele se comportava, se possível, de maneira
ainda mais peremptória e auto-suficiente que os missionários
católicos. Assim seu anticlericalismo obsessivo, seu antisemitismo e
alguns lugares-comuns sobre o caráter latino-americano diminuem
certamente o valor e a originalidade de seus livros, que aliás tiveram
repercussão reduzida uma vez que Poiry se tinha tornado uma figura
bastante isolada dentro do racionalismo belga e editou a custas de
autor.
Outro professor belga no Peru, August Borms, posteriormente duas
vezes condenado à morte como colaborador durante as guerras e
finalmente executado, escreveu no jornal da prisão de Louvain
pequenas crônicas que seus simpatizantes políticos editaram como
livro: Vier jaar in 't land der Incas (Borgerhout-Antuérpia:, 1931).
Ele fez um sério esforço para descobrir e mostrar o Peru do interior
com seus peões, «chunchos», chinos, com sua pobreza, sujeira e
doenças. Ele destacou o tratamento dos índios como verdadeiros
escravos e, na sua visão dos Incas submetidos, apontou um
paralelismo, bastante discutível, com o povo flamengo. Sua
clarividência e seu realismo corajoso não o impediram de
compartilhar algumas trivialidades frequentes na época sobre a
exagerada ceremoniosidade, a tendência de protelação, a pouca fé, a
exibição dos latino-americanos.
Contra esta pretensa psicología dos povos, marcada pelas teorias
racistas vigentes, reagiu Lucien Marchal em Ceux du Sud (Bruxelas,
1934). Este autor tinha trabalhado alguns anos em Buenos Aires e
dirigiu depois uma fazenda em Minas Gerais. Na base de suas
experiências e leituras êle criticou autores latino-americanos como
Bunge, Ingenieros, Garcia Calderón e o francês Gustave Le Bon, que
espalhavam a imagem bastante negativa do homem latino-americano.
Na sua opinião, antes de mais nada o meio geográfico e a
independência recente e bem menos os fatores raciais poderiam
explicar o atraso da América Latina frente aos Estados Unidos ou a
Europa. Alías êle insistiu nos progressos récentes, na capacidade de
inovação e de criação dos brasileiros. Marchal escreveu ainda vários
romances como Le mage du sertão (Bruxelas, 1952), inspirado no
episódio de Canudos e no romance de Euclydes da Cunha, La chute
du Grand Chimu sobre o Perú dos Incas, La 33e Révolution sobre a
Venezuela e mais umas novelas policiais com cenário brasileiro
como Le crime d'à Beira-Mar. Comparável pela sua adesão ao
otimismo brasileiro foi o depoimento de um homem de negócios,
consul da Bélgica em São Paulo, Henry Van Deursen, que publicou
sob o pseudômino Henri Van Kempen Crépuscule (São Paulo, 1944).
Um fundo racista, pelo contrário, se encontra no livro de Henry van der
Meerschen L'Amérique du Sud blanche, Terre de Paix et de Liberté
(Bruxelas, 1948 e 1950, 2 tomos), que claramente opõe e privilegia
uma América Latina branca constituída pelo Brasil meridional,
Uruguay, Argentina e Chile frente as Américas indígenas e africanas.
Apesar desta dicotomia forçada o livro tem, assim mesmo, o mérito
de tentar um estudo sistemático aprofundado e global incluindo
tópicos como o ensino, a imprensa, as artes, os esportes, a culinária.
Neste sentido êle ultrapassou a tradicional literatura de viagem sem
entretanto iniciar um americanismo mais científico.
Entrementes a literatura de viagens continuou em voga com a já citada
obra de Henry Carian de Wiart, com Sur la crête des Andes en
automobile, 12 000 km à travers l'Amérique du Sud de Buenos-Ayres
à Caracas de Hubert Carton de Wiart (Paris, 1937), com Où dorment
les Atlantes; paysages brésiliens de Ch. Bernard (Anvers, 1921),
com as obras do «globetrotter» profissional Jules Leclercq27. Ela
marcou certamente uns pontos com as reportagens de Lous Pierard,
jornalista e deputado socialista. Nos seus Films brésiliens (Bruxelas,
1920) êle relatou suas viagens e seus encontros no Brasil por ocasião
da visita do rei Alberto, que despertou, então, no público belga novo
interesse para o Brasil. Pierard apreciava a arte barroca de Minas
Gerais, as modinhas da música popular e os desafios e insistia na
27
J. Leclercq, Voyage au Mexique, de New York à Vera Cruz en suivant les routes de terre, Paris, 1885;
Idem, L'étoile du Sud, Bruxelas, 1920; Idem, De Rio de Janeiro à Mycènes, Paris, 1927.
necessidade de ler autores como Machado de Assis ou Graça Aranha.
Na sua ótica o Brasil devia mais ousar mostrar os ranchos dos negros
de que a Avenida Central. Parece que nas suas páginas já se anuncia
o Brasil da Semana de Arte Moderna. Ele continuou esta
aproximação e descoberta da América Latina sob o ponto de vista
intelectual e artístico com Rimouski-Puebla (Bruxelas, 1931) e Terre
des Indiens (Argentine, Mexique, Pérou, Bolivie) com prefácio de
Paul Rivet (Bruxelas e Paris, 1938). Esta última obra foi escrita por
ocasião de sua participação num congresso em Buenos Aires em
1937 do «Institut international de coopération intellectuelle» onde êle
se encontrou com Alfonso Reyes e cujas palavras êle citou «Nous
avons atteint notre majorité». Neste sentido também êle reconheceu a
contribuição indígena na arte latino-americana e revelou a obra de
Diego Rivera. Provávelmente, começou aí uma influência da arte
mural mexicana sobre alguns pintores belgas como Roger Somville
ou Octave Landuyt. De fato os meios artísticos começavam a
descobrir o continente como fonte de inspiração. Um jovem literato
flamengo, Karel Jonckheere utilizou um subsídio governamental para
visitar Cuba e México por volta de 1936, mas seus relatos não
passam de conversas de botequim, Cargo e Tierra caliente
(Antuérpia, 1941 e 1953). Outro literato, francófono, o surrealista
Henri Michaux procuran no Equador inspiração um pouco como
André Breton a tinha procurado na Martinique28.
Frente a esses ensaios, que pelo menos tinham o mérito de pensar, ou as
descobertas talvez ingênuas de um Borms ou um Pierard ou as
tentativas de síntese de Rouma ou van der Meerschen, a literatura
católica dedicada à América Latina neste periodo entre as duas
guerras enveredou quase que exclusivamente para a questão
mexicana. O motivo de sta súbita preocupação pelo México não foi
qualquer envolvimento missionário belga naquêle país mas o
sentimento de solidariedade entre dais movimentas de ação católica
que na década de 1920 conheceram em ambos países um
desenvolvimento rápido e um verdadeiro acesso de militantismo, a
ACJB e a ACJM. Os estudos na Bélgica do padre jesuíta Pro e sua
participação em reuniões da J.O.C. (a Juventude Operária Católica)
28
H. Michaux, Ecuador, Journal de voyage, Paris, 1929 e 1968.
talvez tenham constituído um laço a mais quando ficou sabido que
êle foi fuzilado. Havia também uns poucos estudantes e refugiados
mexicanos em Louvain como Margarita Farfan, irmã de outro
fuzilado José Garcia Farfan29. Contatos em Roma ou visitas na
Bélgica de prelados mexicanos exilado s também podem ter influído.
A participação de frades flamengos na primeira cristianização do
Mexico e o intéresse belga pelo império latino de Maximiliano
justificaram como antecedentes históricos para alguns esta
intromissão duvidosa na vida política interna de um país estrangeiro.
Mesmo assim a repentina paixão mexicana dos católicos belgas por
um país que até lá mal conheciam continuará senda um tanto quanto
misteriosa até que o acesso aos documentos dos envolvidos for
facilitado.
Dois próceres da ACJB, Monsenhor Louis Picard e Giovanni Hoyois se
engajaram bastante a favor dos rebeldes mexicanos. Organizan-se em
Louvain uma «Union internationale pour la défense de la liberté
religieuse» principalmente orientada sobre os acontecimentos
mexicanos. Uma antologia dos martírios sorridos pelos cristeros foi
apresentada sob o título sensacional de Jusqu' au sang ... La tragédie
mexicaine (Louvain e Paris, 1928). Andres Barquin den com
Giovanni Hoyois uma espécie de sequência ao que foi visívelmente
em certos meios católicos um best-seller com La tragédie mexicaine,
Sous l'ombre d'Obregon (Louvain e Paris, 1929), no qual saiu
publicado o famoso discurso de Louvain do bispo de Huejutla,
Monsenhor Manríquez y Zárate. Monsenhor Picard ilustrou seu
manifesto Le Christ-Roi (Louvain e Paris, 1929) com o caso dos
cristeros e recidivou com Nouvelles fureurs de la persécution
(Louvain, 1933). Em flamengo veio o livro de P. Ghyssaert Bloedig
Mexico (Bruges, 1928). Este último relata no seu diario vários
episódios de Sua participação nesta campanha como sua
apresentação de uma peça teatral Viva Christo Rey ou Sua pregação
pro-cristera numa escala neutra do estado, que merecen alias severas
críticas do jornal liberal «La Dernière Heure»30. A encíclica papal de
29
A. Rius Facius, Mejico Cristero, Historia de la ACJM, 1925-1931, México, 1966, p. 409 e 411;
«Annuaire de l'Université Catholique de Louvain», 1924-1930; J. A. Meyer, Le catholicisme social au
Mexique jusqu'en 1913, in «Revue Historique», CCLX, 1978, p. 143-159.
30
P. E. Ghyssaert, Een godsdompelaar. Tielt, 1969, p. 179, 182, 192 e 215.
Pio XI No es muy sobre a situação religiosa no México foi também
publicada em Louvain em 1937 com outra edição em Bruxelas pela
J.O.C. Surpreendente é a insistência no tema cristero durante dez
anos31.
Na reapreciação do movimento cristero por Jean Meyer apareceram as
motivações sociais de revolta popular, mas estas não parecem ter
recebido qualquer atenção da parte dos pro-cristeros belgas32. Estes
não deram quase que nenhuma publicidade as reivindicações sociais
das guerrilhas cristeras e se concentraram exclusivamente sobre as
perseguições religiosas sobretudo nas cidades. Chegaram a
identificar completamente a revolução mexicana com o bolchevismo
e a pregar uma verdadeira cruzada. Nada entretanto difundiram sobre
os motivos democráticos da revolução mexicana e suas primeiras
realizações em matéria de política social, agrária ou cultural. Toda
esta campanha merece certamente um estudo mais aprofundado pelo
seu desdobramento e pelas suas conexões em outros países da
Europa e pelo seu prolongamento na própria Bélgica.
Na verdade esta febre mexicana da ação católica belga ia revelar-se
uma terra fértil para o fascismo belga, o rexismo dirigido por Léon
Degrelle. Este, ainda como estudante escreveu sobre o assunto na
revista estudiantil «L'Avant-Garde» e se reconhece seu estilo na
publicação já citada La tragédie mexicaine ... Pretende ter ido ao
México, com subsídios do jornal «Le Vingtième Siècle», onde se
teria encontrado com lideres anti-governamentais, e editou um livro
sob o título Mes aventures au Mexique (Paris, Louvain e Milão, s.d.),
traduzido em alemão como Meine Abenteuer in Mexiko (Augsburgo,
1937)33. O livro não contém na verdade muitas informações
interessantes e pelo conteúdo não pode averiguar-se se o autor
realmente esteve no México. No fundo é do pior estilo exóticofolclórico e apresenta um México caricatural. Sob pretexto de estudar
31
M. Kenny, La crise mexicaine, ses causes, ses conséquences, Liège, 1928; A. Dragon, Pour le ChristRoi, Le Père Pro, de la Compagnie de Jésus, exécuté au Mexique le 23 novembre 1927, Louvain, 1929;
J. Clautriaux, Sang mexicain, Le martyre du P. Pro, Louvain, s.d.; B. van Meurs, Miguel Pro, S. J., een
martelaar voor Christus Koning, Alken, 1933; A. Dragon, Inhet roode Mexico, De eerste Martelares uit
de rangen der katholieke actiije: Maria de la Luz, Courtral, 1938.
32
J. A. Meyer, La Christiade, L'Eglise, l’Etat et le Peuple dans la Révolution Mexicaine (1926-1929),
Paris, 1975.
33
W. Dannau, Zo sprak Léon Degrelle, Wemmel, 1973, I, p. 275-300.
o povo mexicano de recto êle solía frases como: «Il fait très
pittoresque: les Indiens drapés dans leurs “uarapes” multicolores ont
des airs de pharaons en weekend, les Indiennes trottent dans la
poussière, chargées comme des petits mulets» e lugares-comuns
sobre sua crueldade, corrupção e preguiça como «[...] le train s'arrête
pour que le machiniste puisse saluer son arrière-cousin et la soeur de
lait de la belle-mère de son coiffeur». Da situação político-religiosa
êle não revela nada senão o tópico sempre repetido na imprensa da
época: «ces ligues téléphoniques avec des grappes de catholiques se
balançant à dix mètres de hauteur». Não insistiriamos fiesta prosa,
atràs da qual se esconde talvez apenas uma deboche mais do
exibicionista patológico que Degrelle era, não fosse sua influência
através da revista em quadrinhos «Tintin». O desenhista Remy
Georges, alias Hergé consacrou tres livros a temas latino-americanos:
L'oreille cassée, Le temple du soleil e Tintin et les picaras (Tournai,
Casterman, 1937, 1949 e 1976), com ampla repercussão no mundo
inteiro através varias traduções. Nestes, como ainda recentemente
nas caricaturas do jornal «De Standaard» do desenhista «Alidor»,
proliferam todos os chavões tradicionais sobre os mexicanos em
particular e os latino-americanos em geral. Temos certamente um
estudo a fazer sobre a semiótica e o impacto de tais quadrinhos
muitas vezes de um humorismo bastante infantil, duvidoso e de certa
maneira pernicioso34.
Entre esta agitação pro-cristera, que só foi abafada pela segunda guerra
mundial, e o grande interesse pela América Latina, que envolve a
partir de meados da decadade 1950 a opinião católica belga,
aparecem no mesmo tempo uma evidente oposição e contradição e
de outro lado uma certa continuidade. De fato finitos daquêles, que
desempenhariam um papel de vanguarda fiesta nava descoberta
católica da América Latina, conheceram na sua adolescência este
ambiente exaltado dos anos 1920 e 1930. Continuam senda
impulsionados pelo espírito da ação católica e marcados pela
arregimentação ideológica devida a guerra fria no plano internacional
34
Ver por exemplo de F. Dineure Will, Tif et Tondu en Amérique Centrale, in Spirou, 1950-51, de W.
Vandensteen, Het zoemende ei, Suske en Wiske, Antuérpia, 1977, de J. Nys, De belevenissen van
Jommeke, Het geheim van Macu Ancapa, De strijd de Inca-schat e De verborgen tempel, Gand e
Bruxelas s.d.
e a «guerra escolar» no plano nacional. Acontecimentos e episódios
como o conflito de Peron com a Igreja na Argentina, o govêrno de
Jacob Arbenz na Guatemala, as resistências encontradas pela J.O.C.
na sua implantação na América Latina, os primeiros contatos de
ativistas democrata-cristãos como A. Vanistendael ou A. De
Schryver com seus correligionários latino-americanos alimentaram o
reflexo de medo e reforçaram o espectro de um continente ameaçado
pelo ateismo e pelo comunismo35. Isto pode ser verificado num artigo
de um dos protagonistas desta redescoberta, François Houtart em
Une paroisse missionnaire de Buenos-Aires ou ainda nos primeirost
rabalhos de Michel Schooyans36.
Outro aspecto desta continuidade é a participação de leigos ao lado de
padres junto com o predomínio do clero secular sobre o clero regular,
que antes da primeira guerra mundial havia mantido a iniciativa. Os
bispos belgas fundaram em 1953 o «Collegium pro América Latina»
em Louvain sob a proteção da Universidade desta cidade, onde
queriam preparar sacerdotes e seminaristas para remediar a pobreza
vocacional das igrejas latino-americanas37. Em poucos anos centenas
de padres belgas e estrangeiros receberam aí um preparo para ir
desempenhar suas funções nas paróquias e obras de assistência na
América Latina, mas também muitos leigos voluntários passaram
pelos estágios do colégio. Aliás, estes esforços repercutiriam nos
meios das congregações regulares e o centro de estudos missionários
«Pro Mundi Vita», organizado em 1961 pelo franciscano holandês
Versteeg e orientado em boa parte para a América Latina, foi
transferido em 1964 de Tilburg para Bruxelas.
Há agora entretanto uma série de marcantes diferenças com a febre
mexicana do período de entre as duas guerras. Os integrantes desta
nova descoberta latino-americana tiveram quase todos uma solida
formação universitária de estudos sociológicos, políticos e
filosóficos, que não tinha ficado alheia as renovações operadas nestas
35
Sobre a imagen da Argentina Peronista ver B. Mazur, Belgisch-Argentijnse betrekkingen onder
Peron, 1946-1955, Louvain, 1978, datilografado, memória.
36
F. Houtart, Une paroisse missionnaire de Buenos-Aires, in «Lumen Vitae», X, 1955, p. 344-356; M.
Schooyans, Les catholiques brésiliens face au comrnunisme, in «Economie et Humanisme», 1962, p.
35-50; Idem, O comunismo e o futuro da igreja no Brasil, São Paulo, 1963.
37
W. Promper, Priesternot in Lateinamerika, Louvain, 1965.
ciências em meios nao-católicos. Além do mais tiveram uma
experiência viva de vários anos de um ou mais países da América
Latina, que tinha faltado completamente aos pro-cristeros. F. Houtart
organizou e dirigiu de 1958 a 1961 dentro da FERES, com sede em
Bogota, uma equipe de pesquisadores leigos e eclesiásticos, belgas e
estrangeiros, sobre as mudanças sociais, politicas e religiosas da
América Latina. Neste contexto ou paralelamente apareceram
dezenas de estudos e artigos38. A problemática, o tom e o acento
mudaram rápidamente do perigo da decristianização e do comunismo
para a descoberta do subdesenvolvimento. Esta alteração profunda de
enfoque se explica em parte pelos gens métodos e resultados
científicos mas também por uma série de acontecimentos na vida
política internacional e latino-americana. A Bélgica passou por volta
de 1960 a viver a decolonização do Congo de maneira não tão
indiferente como poderia aparecer à primeira vista. O impacto da
revolução cubana foi considerável na Bélgica como nos países
vizinhos39. O golpe militar no Brasil pelo contrário logo suscitou
reservas e temores. De outro lado, a presença de latino-americanos
mais radicais na Universidade de Louvain, como por exemplo
Camilo Torres, não deixou de influenciar os mais moderados40.
Alguns jovens belgas parecem ter tido contatos com as guerrilhas e
outros foram expulsos por atividades subversivas41.
A repercussão foi importante sobre a imagem da América Latina junto
ao público católico e belga em geral, que assim descobriu, atras do
exotismo, da exaltação política e das revoluções de opereta, as várias
faces do subdesenvolvimento. A tomada de consciência foi tanto
mais rápida que os meios de divulgação se tinham entrementes
38
Sem dar aqui uma bibliografia exaustiva mencionamos F. Houtart, Notes de voyage en Amérique
latine, Bruxelas, 1959; Idem e E. Pin, L'Eglise à l'heure de l'Amérique latine, Tournai, 1965; e os
nomes de Albert Sireau, Frédéric Debuyst, Rudolf Reszohazy, Jacques Dorselaer, Joseph Comblin e
Michel Schooyans.
39
Axel Buyse, aluno nosso, prepara um trabalho sobre a imagem da revolução cubana na Bélgica.
40
F. Houtart, A. Prades e G. Gutterrez, Camilo Torres R. en tant que prêtre, sociologue et colombien,
Louvain, 1966; F. Houtart e A. Vanistendael, Presencia y memoria de Camilo Torres, Montevideo,
«Vispera», 1967, 1, p. 56-76.
41
Ver C. Detrez, Pour la libération du Brésil en collaboration avec Carlos Marighela, Paris, 1970;
Idem, Les mouvements révolutionnaires en Amérique Latine, Bruxelas, 1972. O tema desta colaboração
e simpatia é também tratada em forma literária, ver C. Detrez, L'herbe à brûler, Paris, 1978 e W.
Ruyslinck, De heksenkring, Bruxelas, 1972.
amplificado e diversificado. A televisão belga em programas para o
grande público como «Neuf millions» consagrou reportagens a
problemas latino-americanos. Em nível acadêmico a nova revista
«Justice dans le monde», lançada pela Universidade de Louvain,
tratava em cada número aspectos da realidade latino-americana. Com
maior circulação nos meios intelectuais, revistas como «La Revue
Nouvelle», «Streven» ou «Kultuurleven» dedicavam cada vez mais
atenção ou até números especiais a América Latina e esta informação
tinha tanto mais importância que a imprensa cotidiana belga não
dispunha de informantes e correspondentes próprios. Tradicionais
revistas missionárias como «Pro Apostolis», dirigido pelos jesuítas e
destinado sobretudo a juventude colegial se adaptaram e
reorientaram sua linha42. Os beneditinos de Saint-André-lez-Bruges
focalizavam sua revista «Rythmes du Monde» sobre temas latinoamericanos como a reforma agrária43. Outros ordens e organizações
missionárias colaboraram para poder oferecer com «Wereldwijd»
uma revista mais atualizada e sensível as dificuldades socioeconômicas do terceiro mundo. O «Collegium pro América Latina»
editou a partir de 1956 um boletim que apesar de seu estilo untuoso
contém uma mina de depoimentos e experiências vividas44.
Localmente surgiram grupos de simpatizantes que difundiram entre
os contribuintes uma imagem bem mais realista, tal como a
«Guatemateca» em Roulers. Campanhas de âmbito nacional para
angariar fundos para as missões e para apoiar projetos de assistência,
como «Partage de carême» e «Opération 11.11.11», salientavam a
cada ano mais a miséria material e as injustiças sociais do continente
latino-americano. Várias organizações, como «Internationale
Bouworde»e «Iteco», formaram voluntários para trabalhar alguns
anos nos projetos, que por suas cartas ou quando da sua volta não
deixaram de espalhar suas impressoes. A América Latina acabou,
assim, perdendo sua auréola exótica e seu pitoresco e ingressando no
quadro do terceiro mundo.
42
Ver por exemplo no número 315 de 1959 o artigo de W. van Marsenille sobre Tierra y libertad.
Ver os números 3 e 4 de 1963, XI sobre a igreja no Brasil ou o número especial de 1964 sobre a
reforma agrária.
44
«Aux amis de l'Amérique Latine, Bulletin trimestriel d'information du Collège de l'Amérique Latine à
Louvain».
43
Sob muitos aspectos esta evolução da imagem da América Latina foi
bastante positiva. Existem agora na Bélgica uma compreensão e uma
aproximação muito mais realista deste continente, que deveriam
condicionar cada vez mais as relações mútuas. Subsistem, entretanto,
perigos de deformação na medida em que a problemática socioeconômica leva às vezes a um miserabilismo excessivo – alguns
fazem uma espécie de turismo da miséria – e a um paternalismo
ingênuo. Perde-se de vista muitas vezes os próprios valores e as
riquezas culturais da América Latina e dá-se ainda insuficientes
oportunidades ao latino-americano para apresentar-se a si mesmo.
Deste último ponto de vista a crescente tradução de romances latinoamericanos para o francês e o neerlandês constitui certamente um
passo na boa direção. De outro lado a evidente politização e o
engajamento ideológico desta aproximação à América Latina
apartam muitos daquêles que pelas facilidades de turismo aéreo
procuram, cada vez mais numerosos, o fascínio da América Latina e
devem contentar-se com o superficialismo dos folhetos turísticos.
Parece existir um público para uma abordagem de síntese entre a
realidade socio-econômica e o encantamento cultural da América
Latina.

Documentos relacionados