O Zen e a arte de passear com caes
Transcrição
O Zen e a arte de passear com caes
O Zen e a arte de passear com cães. Cinco vezes por semana eu pratico Karatê, das 6h às 8h. Pratico sozinho, em um dos pátios da minha casa. Em geral, prefiro o pátio descoberto, que fica no lado leste do terreno. Além de permitir treinar ao ar livre, tenho sempre, quando a estação e o clima permitem, a agradável sensação de ser surpreendido pela alvorada em algum momento do treino. Como treino sozinho, pratico Kihon e Kata. Quanto a isso não há nada de especial. Milhares de praticantes de Karatê pelo mundo afora procedem de maneira similar todos os dias. Não é sobre esses Kata que quero falar. Ao invés de falar sobre a forma do Kata ou sobre as técnicas, gostaria de falar sobre a essência da prática. Os mestres de Okinawa e do Japão costumam afirmar que o Karatê e o Zen não são coisas separadas, mas, sim, complementares. Alguns chegam a afirmar que o Kata é o Zen em movimento. Quando encerro o treino, por volta das 8h, é a hora de ir à padaria buscar o pão quentinho para o café da manhã. Esse passeio tem um caráter especial e o considero também como um Kata. Vou sempre acompanhado. Eu, Morena e Pity. Deixem-me apresentá-las: Morena é minha cachorrinha mais velha. Tem cerca de 17 anos. Mas é também a maior e mais forte, pois é, embora sem pedigree, uma rotweiller (ou descendente direta). Apesar das aparências, é muito dócil e praticamente ignora os humanos que encontramos pelo caminho (exceto se alguém correr e/ou gritar em minha direção, o que ativa automaticamente seu instinto de guarda). Fosse apenas pelas pessoas, ela poderia ir ao passeio sem guia ou coleira, pois sempre anda devagar (já foi atropelada e fraturou o quadril e fêmur, quando vivia nas ruas, antes que eu a adotasse) e fica perto de mim. No entanto, ela tem muito ciúme de outros cães, basta algum vir em minha direção que ela imediatamente parte para o ataque. Também não gosta de motocicletas (e motociclistas) e nem de gatos (os da rua, pois nem se importa com os que moram conosco). Pity tem cerca de 7 anos. Por oposição à Morena, que sempre se move devagar, é extremamente agitada, se move muito rápido e detesta que as pessoas se aproximem de nós enquanto passeamos. Basta ela achar que alguém chegou perto demais para avançar como se quisesse destroçar a pessoa. Por sorte, ela é bem pequena e não é tão forte assim. Embora pareça um “diabo da Tasmânia” quando alguém se aproxima, ela é facilmente controlável se eu agir a tempo. Também odeia gatos, mas, diferente da Morena, adora contato com outros cães. Toda vez que encontra outro cachorro, faz a maior festa: pula e brinca numa grande felicidade. Mesmo os cachorros mais tímidos se aproximam e acabam brincando um pouco com ela. O que isso tem a ver com Kata? A relação, espero, logo ficará clara. Como num Kata, nosso trajeto (Embusen) é sempre o mesmo e, assim também, nosso objetivo superficial (Omote): buscar o pão. Também, como num Kata, há um objetivo mais profundo e uma estratégia a ser treinada/aprendida/absorvida: meu objetivo ao levá-las comigo transcende o superficial, que é “ir buscar o pão” ou simplesmente “levar os cachorros para passear”. Para mim são membros da família. São minhas crianças... O objetivo do nosso kata é que elas tenham um passeio agradável. Isso pode parecer simples, mas o meu conceito de passeio agradável para um cachorro é de que ele possa se divertir: além de caminhar, quero que elas possam ver e cheirar o mundo, saborear o passeio e a liberdade que ele representa já que passarão o resto do dia presas em casa (não ficarão em correntes ou canis, pois têm liberdade para entrar e sair de casa a qualquer momento e um grande quintal à disposição, mas isso, claro, não é a mesma liberdade que tem um cachorro de rua, livre para ir e vir ao sabor do vento). Assim, saborear é a palavra-chave. Para isso tomo as seguintes providências: elas não usam coleiras comuns, que apertam o pescoço. Usam peitorais. As guias são especiais, têm 5 metros de comprimento máximo e são retráteis. Essa é parte física. Manusear as guias adequadamente, travar, liberar, tensionar, recolher, trocar de mãos, girar, etc. pertencem ao domínio da técnica (Waza) e destreza (Jutsu). Do meu lado vem a parte emocional/psicológica/espiritual: a minha atitude é a de que possam saborear o passeio e isso quer dizer que procuro interferir o mínimo possível. Minha missão não é puxá-las (ou arrastá-las) até a padaria e depois voltar. Meu trabalho é, controlando o comprimento e tensão das guias, direcioná-las (guiá-las) SUAVEMENTE ao longo do caminho. Tenho que me preocupar com a segurança das pessoas, cachorros e gatos no trajeto. Devo me preocupar também com a segurança delas, pois vamos pela calçada, próximo a pistas movimentadas. No entanto e mais importante, como o objetivo do kata é que elas saboreiem o passeio, devo controlar o ritmo das duas (pois Morena anda bem devagar e Pity está sempre correndo), e devo me abster de controlá-las através de puxões, safanões, gritos, tapas, etc. O controle deve ser apenas com conversa suave, gestos, olhares, carinho, movimento e expressão corporal. Se eu controlá-las pela força ou no grito, o passeio não será natural. E, pior que tudo, estarei dando mau exemplo de como cuidar e passear com cachorros. E meu desejo é que todos os cachorros sejam bem tratados. Por isso meu exemplo é importante. Espero que as outras pessoas que têm cachorros vejam, sintam a nossa integração e aprendam conosco. Assim, todas as manhãs, com Yin na mão direita e Yang na mão esquerda, iniciamos nosso kata. Antes de abrir o portão e sairmos para a rua, uma abraço em cada uma delas, pois todo Kata começa com cortesia e reverência (Rei). Daí em diante o conjunto formado por nós é, para todos os efeitos, uma entidade única. Penso nelas como sendo o corpo e eu como sendo a mente. Parte de mim (Pity) quer ir rápido, parte de mim quer ir devagar (Morena). Eu, a mente, tenho que controlar o ritmo para que uma parte do corpo não seja puxada e a outra não seja arrastada. Isso é Hyoshi (cadência, ritmo). Devo também controlar o alcance de meus movimentos, pois meus “braços e pernas” podem se alongar por cinco metros. Isso é Maai (espaço-tempo). Devo ficar alerta aos obstáculos e percalços físicos do caminho como buracos, meios-fios irregulares, etc. devo ficar alerta para que a Pity não avance nas pessoas que aparecem nem a Morena nos cachorros que cruzam nosso caminho. Devo também deixar que a Pity brinque com os cachorros que simpatizarem com ela e evitar que a Morena os ataque. Isso é Zanshin (vigilância, o espírito que permanece). Tenho que ter alguma destreza nas mãos para receber o pão, pagar, pegar o troco, comprar o jornal e carregar tudo tendo as duas mãos ocupadas com as guias. E, claro, durante todo o percurso tenho que trocar as guias de mão rapidamente sempre que elas se movem trocando de lado para evitar que as guias se entrelacem. Isso é Waza (técnica) e Jutsu (destreza). E, mais que tudo, como desejo que o passeio seja divertido do ponto de vista delas, minha mente deve permanecer serena. Muitas situações ocorrerão para eu perder a paciência, com elas ou com as pessoas no caminho. Eu posso estar com pressa num certo dia, mal-humorado, com sono, cansado, preocupado. Nada disso pode importar ou interferir. Isso é Fudoshin (a mente inamovível) É o passeio DELAS e EU não posso atrapalhar. Para executar o kata corretamente e o passeio ser harmonioso, o mais natural possível, é necessário que eu praticamente me anule (o ego) ou alternativamente, que eu consiga ser um com elas (Aiki). Mente (Shin), intenção (Ki) e corpo (Tai) em harmonia. Mente serena para permanecer alerta aos perigos (zanshin) e poder expressar/controlar ritmo (Hyoshi), distância (Maai) e técnica (Waza). Mente serena é Fudoshin (a “mente inamovível”). Se a mente não estiver serena, inevitavelmente eu vou perder a paciência com as travessuras que qualquer criança comete e vou, no mínimo, ralhar com elas. Quando iniciamos, procuro colocar minha respiração no mesmo diapasão de quando treino karatê, Aikidô ou Jodô. No Karatê chamamos isso de Ibuki, é a respiração da prática do zazen. É assim que considero o treino de kata. Cada kata, seja de Karatê, Aikidô ou Jodô é uma coisa viva e dinâmica e não uma coreografia morta. Do mais simples ao mais complexo, encaro todos assim. No caso ideal, enquanto o passeio transcorre, tento manter a respiração assim, lenta, abdominal, profunda. Procuro até mesmo contar quantas respirações no trajeto. É claro, que nesse quesito, sempre falho. Assim como, a cada dia, falho em alguma coisa. Às vezes me irrito com uma delas, às vezes deixo que elas avancem além do que é seguro, me distraio ao travessar a rua, etc. Mas tenho fé que é possível. E esperança que o passeio do dia seguinte será ainda mais perfeito. Ou quase... O importante que elas cheguem felizes em casa e que estejam ansiosas e entusiasmadas para ir novamente, no dia seguinte. Isso quer dizer que o kata foi bom e perfeito naquele dia. O Kata inicia no portão de casa e termina ali. Termina onde começou. Entramos e fecho o portão. Elas me olham com um maravilhoso olhar de contentamento. Olhando nos olhos delas não haverá dúvida ou intervalo para responder o famoso Koan: “Um cão tem a natureza do Buda?” Elas param e sentam ao meu lado, esperando alguma coisa... O que falta? Tirar as guias e peitorais? Hora do abraço! Um abraço para iniciar e um abraço para terminar. Assim é o Kata. Começa com Rei e termina com Rei. Embora seja o mesmo Kata, cada dia é diferente, assim também é cada execução do Kata. E assim também será cada vez que for necessário usar a arte marcial em alguma ocasião da vida (não só em combate). O perfeito, o ideal, existe ou existiu (talvez) apenas na mente de quem criou o kata. Quem criou, provavelmente estava passando adiante uma experiência de combate, de vida e morte. Ele aplicou, talvez espontaneamente, sem pensar, aquela técnica, aquela tática, aquela estratégia pela primeira vez. E sobreviveu. Talvez machucado, quem sabe. Mas sobreviveu e codificou isso num kata para passar o conhecimento adiante. Assim, um evento que foi perfeito para o que sobreviveu (perfeito justamente porque sobreviveu), tornou-se conhecimento para ser passado adiante, para a próxima geração até você, que executa o kata nesse momento. Podemos procurar fazer cada vez melhor a cada repetição do kata, mas se não tivermos consciência disso, degeneraremos no perfeccionismo neurótico e sairemos do caminho (ou estacionaremos). Esse é o espírito de quem percorre o caminho. A perfeição, embora impossível, é um ideal a ser perseguido. Mesmo que você nunca vá conseguir um passeio “perfeito” você ainda continua praticando, esperando fazer melhor a cada vez. Não para que seja perfeito por si mesmo. Mas para saborear, de novo e de novo, a união entre a mente serena e inamovível e o corpo vivo, dinâmico e móvel. União que sempre existiu e que você redescobre um pouco a cada vez que pratica. Quando você consegue isso, o passeio é realmente “divertido”. Os cachorros ficam felizes e eu, eu me sinto muito bem, sereno e satisfeito. Pleno. Em estado de graça. Sensação de graça que vem, em última análise, de algo muito simples: tentar realizar com perfeição (dedicação) qualquer tarefa que se apresenta acaba por ser uma recompensa em si mesma. Porque dedicar-se e tentar realizar com perfeição cada ato, transcende o meramente físico. É uma ORAÇÃO. Uma oração de agradecimento pela tarefa e por ter à disposição os meios para realizá-la: corpo, mente e espírito. Seu agradecimento por estar vivo para realizar algo. O cansaço, os pulmões ardendo, o coração batendo mais forte, as dores musculares são dádivas. Amplificam a sensação de estar vivo. É assim que me sinto após a execução de cada Kata. Bem-aventurado. Vivo. Pois cada Kata é uma aventura. Uma viagem. Uma oração. Um Kata deve ser Zen em movimento. Um passeio com os cães É Zen em movimento. Anderson Gomes de Oliveira. Brasília, 22 de junho de 2012.
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