krewe da mística

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krewe da mística
PARTE XIII
3
DTI I
Folkcomunicação
Políticas Culturais e folkmarketing nas festas juninas
para o desenvolvimento de Campina Grande-PB
Cristina Schmidt1
Débor a Odeth L eôncio
de
Lucena2
Resumo: As manifestações culturais abrangem todo conhecimento que é transmitido durante a história individual e coletiva e mantém o sentimento de pertencimento identitário. As expressões aí construídas ganham valores de uso e
de troca, acentuadas pelas demandas contemporâneas de lazer e entretenimento,
transformando-as em produtos importantes para o desenvolvimento local. Nesse
Contexto, o objeto dessa pesquisa é a Festa Junina de Campina Grande, com o
aprimoramento da comunidade em torno do produto cultural, estimulando o
turismo, e aperfeiçoando aspectos administrativos. Com objetivo de analisar
a Festa como produto cultural que beneficia a cidade com melhorias sociais e
econômicas, e o envolvimento de diferentes profissionais; a pesquisa é fundamentada nas teorias de folkmarketing e em marcos legais locais e nacionais.
A investigação estrutura-se de modo exploratório com abordagem qualitativa,
para a análise de conteúdo dos jornais de Campina Grande. Conclui-se que
as políticas públicas de valorização da cultura, para a formação de um grupo
social mais coeso crítico e com atuação profissionalizada, faz do espaço da festa
um local de socialização de saberes e oportunidade de desenvolvimento local.
Palavras-Chave: Folkmarketing, Políticas Públicas, Festa Junina, Desenvolvimento Local.
Abstract: The cultural events include all knowledge that is transmitted during
the individual and collective history and maintains a sense of identity belonging.
The expressions constructed there earning use values and exchange, accentuated
by contemporary demands of leisure and entertainment, turning them into
important products for local development. In this context, the object of this
research is the June Festival of Campina Grande, with community improvement
around the cultural product, stimulating tourism, and improving administrative
aspects. In order to analyze the festival as a cultural product that benefits the
city with social and economic improvements, and the involvement of different
professionals; research is grounded in folkmarketing theories and local and
national legal frameworks. The structure is an exploratory mode research with
1. Cristina Schmidt é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, mestre em Comunicação e jornalista
pela UMESP-SP, pesquisadora e professora no Mestrado em Políticas Públicas da Universidade de Mogi
das Cruzes, pesquisadora da Cátedra Unesco/UMESP, professora e coordenadora de curso na Faculdade
Bertioga – Fabe. Brasil. E-mail: [email protected].
2. Débora O.L. de Lucena é bacharel em direito pela Universidade de Mogi das Cruzes, onde também
especializou-se em Direito Processual Civil, Penal e Trabalhista. Atualmente é mestranda em Políticas
Públicas na UMC.
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Políticas Culturais e folkmarketing nas festas juninas para o desenvolvimento de Campina Grande-PB
Cristina Schmidt • Débora Odeth Leôncio de Lucena
a qualitative approach to content analysis of Campina Grande newspapers. It
follows that public policy appreciation of culture, to the formation of a cohesive
social group most critical and professionally-performance, makes the party
a space of knowledge socialization local and local development opportunity.
Keywords: Folkmarketing, Public Policy, June Festival, Local Development.
INTRODUÇÃO
RABALHAR COM tema ligado ao folclore no Brasil é englobar várias categorias:
T
como o lendário do Saci-Pererê, Negrinho do Pastoreio e Iara; as festividades
populares, que englobam as festas e procissões consagradas aos santos, as comemorações cotidianas de aniversários e casamentos; as expressões espontâneas com danças
e músicas; a gastronomia típica, com comidas e bebidas como feijoada e cachaça, ou os
pratos mais simples que revelam a história e os sabores; as profissões e atividades tradicionais, que possibilitam a transmissão de conhecimentos com elementos específicos
ligados a expressões e saberes enraizadas em determinados grupos. (TINHORÃO, 2000).
Nesse campo folclórico que envolve as manifestações culturais, abrange todo um
arsenal de conhecimento que é transmitido durante a história individual e coletiva.
Nesse cenário é estruturado e se mantém o sentimento de pertencimento identitário,
comunitário. A partir daí, as expressões que são construídas nesse bojo vão ganhando
valores de uso e também de troca. E, cada dia mais, com as demandas contemporâneas de
cultura, lazer e entretenimento, essas produções culturais transformam-se em produtos
importantes para o desenvolvimento das localidades de onde se originam.
Todas as representações populares são como um constante fluir de emoções, assim
as bases da preservação da identidade cultural devem ser estruturadas com o objetivo
de considerar “o objeto antigo”, e prosseguir em direção a novas perspectivas e situações
presentes. Lembrando que a preocupação com a preservação do patrimônio cultural,
no Brasil teve início no princípio do século XX. As teorias iluministas tinham por base
a razão e o método científico que vinham desde o século XVIII alterando as relações
culturais e fazendo com que todas as manifestações artísticas sofressem grandes
mudanças (GIDDENS, 2002).
O centro das reflexões deste artigo está no que se refere às manifestações populares
festivas, particularmente a Festa Junina de Campina Grande, utilizando-se para tal as
palavras de Lucena Filho (2011, p. 2) quando se refere sobre a festa junina em Campina
Grande:
No Nordeste do Brasil as festas juninas sempre estiveram associadas ao mundo rural. É
um ciclo de festas transposto da Europa, que aqui comemora especialmente a colheita do
milho, cuja plantação coincide, mais ou menos, com o dia 19 de março, no qual o catolicismo
homenageia a São José. Nesse período, o catolicismo comemora, ainda, os santos populares
Antônio (13 de junho), João (24 de junho) e Pedro (29 de junho).
Nesse texto analisamos como a comunidade de Campina Grande vem ao longo
dos anos aprimorando a Festa Junina como um grande produto cultural, estimulando
o turismo para o local, e aperfeiçoando a parte administrativa e gerencial de sua festa
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junina que pelo lado cultura e de acordo com os relatos de Lucena Filho (2007, p. 8) é:
[...] durante a realização do evento junino de Campina Grande, seus gestores promovem
programações gastronômicas, musicais, religiosas, apresentações e representações que visibilizam e retomam as crenças, os costumes, os ensinamentos do cotidiano rural para os públicos
que buscam recordar fatos ligados aos festejos juninos que estavam guardados na memória.
Os condutores dos processos de comunicação organizacional, das diferentes organizações, se
apropriam desses conhecimentos populares para dinamizar suas campanhas publicitárias
junto aos seus públicos de interesse, com objetivos mercadológicos e institucionais.
Os resultados, apresentados abaixo, trouxeram dados importantes para a constituição
do panorama local, dos envolvidos e das formas de divulgação da Festa de São João de
Campina Grande. A pesquisa exploratória de abordagem qualitativa com observação
empírica da festa e levantamento documental possibilitou a análise de jornais de
Campina Grande, que realizaram a cobertura da Festa de São João em junho de 2014.
Na classificação dos materiais, identificamos as empresas patrocinadoras, as ONGs, e
Setores Públicos envolvidos na realização do evento. As empresas patrocinadoras, de
acordo com o site da festa e materiais de divulgação, são de vários segmentos comerciais,
industriais e do terceiro setor.
É fato que o turismo na região do nordeste, nas cidades litorâneas, é largamente
explorado hoje no que se refere aos aspectos naturais ligados às praias e rios, e ao
artesanato regional. Em se tratando de Nordeste, sabe-se que o terceiro setor ligado ao
turismo vem a cada ano crescendo, ofertando mais e mais empregos diretos e indiretos,
em qualquer que seja a ramificação turística, dependendo logicamente da época do ano.
Hoje, grande parte do Produto Interno Bruto é oriunda do setor de serviços. E, o
aspecto que se refere aos serviços turísticos é muito importante. Nessa linha, a Festa
de Campina Grande se coloca como um produto cultural que beneficiará toda uma
localidade e contribuindo em melhorias sociais e econômicas para o setor turístico e
cultural. Como enfatiza Schmidt (2012) em outras festividades, com o mesmo caráter do
que é levado em Campina Grande, observa-se que o envolvimento da sociedade se torna
mais efetivo em cada nova edição. O que faz agregar a participação de profissionais de
áreas afins como artesãos, engenheiros, designers, músicos entre outros.
De acordo com a expressão da cultura e as atuações dos vários atores, as “políticas
culturais são formulações e/ou propostas desenvolvidas pela administração pública,
organizações não governamentais e empresas privadas, com o objetivo de promover
intervenções na sociedade através da cultura” (FELIX E FERNANDES, 2014).
Os resultados, apresentados abaixo, trouxeram dados importantes para a constituição
do panorama local, dos envolvidos e das formas de divulgação da Festa de São João de
Campina Grande. A pesquisa exploratória de abordagem qualitativa com observação
empírica da festa e levantamento documental possibilitou a análise de jornais de
Campina Grande, que realizaram a cobertura da Festa de São João em junho de 2014.
Na classificação dos materiais, identificamos as empresas patrocinadoras, as ONGs, e
Setores Públicos envolvidos na realização do evento. As empresas patrocinadoras, de
acordo com o site da festa e materiais de divulgação, são de vários segmentos comerciais,
industriais e do terceiro setor.
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FOLKMARKETING E POLÍTICAS CULTURAIS
Sabe-se que unir pessoas é um processo complicado e que demanda ordem, manutenção de um objetivo pré-determinado, eficiência, engajamento, obediência a um cronograma determinado, entre outros elementos necessários ao bom desenvolvimento
de um determinado projeto. Desta forma, a elaboração de estratégias bem planejadas
de marketing cultural, no caso o folkmarketing, apoiadas em políticas públicas locais e
nacionais se intensifica no sentido de aprimoramento social e desenvolvimento.
Para o Marketing tradicional, Kotler (1998) afirma que a fim de conceber um plano
estratégico para uma empreitada, primeiro deve-se conhecer o mercado em que se
atua, buscar informações sobre seus concorrentes, comparar preços, custos, canais de
distribuição e propaganda, analisando assim o princípio daquilo que pretende arquitetar
como o seu diferencial.
Estudos sobre prestação de serviços, como é o caso aqui estudado revelam que elas
partilham de algumas virtudes comuns relacionadas à qualidade dos serviços. Primeiro,
as empresas de serviços de alto nível são obcecadas pelos clientes, e tem uma estratégia
característica para satisfazer as necessidades dos clientes que conquistam. Segundo, elas
têm um histórico de compromisso da alta administração com a qualidade total. Terceiro
lugar, os melhores organizadores definem elevados padrões de qualidade e em quarto
é comum que nestas festas também se tenha sistemas para observar ao final como foi
o desempenho (KOTLER, 1998, p. 460).
Já há muito tempo que as cidades brasileiras dependiam exclusivamente da
agricultura ou da indústria para sobreviverem. Hoje grande parte do retorno econômico
é oriunda do setor de serviços. E, por isso que o planejamento detalhado da oferta dos
serviços turísticos é muito importante. Nessa linha que a Festa de Campina Grande
se coloca como um produto cultural que beneficia toda uma localidade e contribui em
lucratividade para o setor turístico e criativo. E, como enfatiza Schmidt (2012) em outras
festividades, com o mesmo caráter do que é levado em Campina Grande, observa-se
que o envolvimento da sociedade se torna mais efetivo em cada nova edição. O que
faz agregar a participação de profissionais de áreas afins como artesãos, engenheiros,
designers, músicos entre outros.
Agora, quando se fala em termos de folkmarketing, verificamos que essa atuação
transforma a Festa de São João em espetáculo cultural com identidade local e faz
com que o evento tenha lugar destacado na grande mídia, e resulte em um público
cada vez maior de todas as partes do mundo. De acordo com os estudos de Trigueiro,
Folkmarketing é “(...) conjunto de procedimentos de intercâmbio de informações, ideias,
opiniões e atitudes dos públicos marginalizados urbanos e rurais, através de agentes e
meios direto ou indiretamente ligados ao folclore”. (2005, p. 3) O termo folk que significa
povo, unido à palavra marketing, que de acordo com a literatura é uma das ferramentas
administrativas organizacionais que se dispõe a melhorar a imagem de algo ou alguém,
vender produtos e serviços entre outras utilidades, resulta na expressão folkmarketing
que, traz a união de significados culturais de uma dada sociedade com o fim de melhorar
a comunicação, no intuito de oferecer melhores produtos e serviços aos seus clientes
em potencial (BENJAMIN, 2004).
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A ação comunicacional do folkmarketing é uma estratégia que pode ser considerada
integrada aos processos culturais da região. Para contextualizá-la, é necessário que as
marcas dos saberes da cultura popular sejam mobilizadas em apropriações e refuncionalização, para geração de discursos folkcomunicacionais dirigidos ao contexto da
sociedade massiva (LUCENA FILHO, 2007).
Nesse sentido que as políticas públicas destinadas ao segmento da festividade pode
ser encontrado em diferentes instâncias de governo – a nível federal, existem políticas de
apoio para a estruturação de produtos turísticos-culturais nos ministérios da Cultura,
da Indústria Criativa, do Turismo e das Cidades; no Estado da Paraíba encontra-se
possibilidade de apoio e incentivo ao empreendimento festivo principalmente nas pastas
do turismo e cultura. Enquanto que, na instância municipal, a maioria das Secretarias
volta-se para apoio e realização do evento Junino.
Nessas instâncias, diferentes políticas abrangem a oferta turística-cultural de modo
a garantir o engajamento de um número representativo da população na preparação
do evento quanto à definição de estratégias, estabelecimento de metas, organização e
execução de maneira a alcançar o sucesso esperado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse sentido, é fundamental identificar as políticas públicas destinadas ao
desenvolvimento cultural local e, por conseguinte, ao atendimento das expectativas
daqueles que visitam turisticamente o evento de Campina Grande para participar das
festas juninas. E, ainda, vimos que essas políticas abrangem a oferta turística de modo
a garantir o engajamento de um número representativo da população na preparação
do evento quanto a definição de estratégias, estabelecimento de metas, organização e
execução de maneira alcançar o sucesso esperado.
E, como pudemos constatar, existe uma organização da festa que envolve os
diferentes setores da sociedade local. Esses segmentos preparam toda a estrutura visando
atender o turista, muito mais que a população local. E, para a população, o retorno está
vinculado ao rendimento que a festividade trará. Isso significa que a Festa de São João
contribui para o desenvolvimento local.
Para que o evento surta o esperado sucesso, a comunidade, comerciantes, autoridades
públicas e civis se unem traçando metas, objetivos e distribuindo tarefas e as devidas
obrigações àqueles que participam efetivamente dos festejos, considerados como um dos
maiores eventos no cenário cultural brasileiro. Motivo esse que ao longo dos anos em
que vem sendo realizado, consegue aumentar a participação de turistas, sejam aqueles
que já conhecem e retornam a festa, ou que estejam em sua primeira visita.
De acordo especificamente com a cultura e as atuações dos vários atores, Felix
e Fernandes (2014) trazem que: “Políticas culturais são formulações e/ou propostas
desenvolvidas pela administração pública, organizações não governamentais e empresas
privadas, com o objetivo de promover intervenções na sociedade através da cultura”.
As reflexões evidenciam a importância das políticas públicas de ação para
a valorização da cultura e da formação de um grupo social mais coeso crítico com
atuação profissionalizada e corresponsável com o desempenho da comunidade, ciente
das necessidades da mesma. É relevante observar que o espaço da festa não tem caráter
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meramente festivo e comercial, mas um espaço de socialização onde se comunicam
valores culturais. E, é aí que as pessoas entram no ambiente, são acolhidas, e têm
oportunidade de participar efetivamente de todo o processo de organização do evento
(TINHORÃO, 2000).
Por isso, ao apresentar uma descrição do cenário festivo por meio do folkmarketing
possibilitou identificar as os agentes e os processos culturais relevantes para cada grupo
envolvido e, o modo como cada um atua para o crescimento econômico do evento e da
localidade sem perder de vista seus vínculos populares e identitários. E, assim, localizar
as políticas que mais se adéquam às necessidades de todos.
Por fim, pensar em políticas públicas nessa Festa de São João de Campina Grande
é pensar na participação e fortalecimento do cidadão, pois envolvendo e fortalecendo
cada um, ele se vê no todo, toma consciência de sua participação para o bem do coletivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
BENJAMIN, Roberto Emerson Câmara. Folkcomunicação na sociedade contemporânea. Porto
Alegre: Comissão Gaúcha de Folclore, 2004.
FELIX, Paula; FERNANDES, Tatiane. Mais definições em trânsito. Disponível em: <http://
www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/POLITICACULTURAL.pdf>. Acesso e: 198 nov. 2014.
LUCENA FILHO, Severino Alves de. A Festa Junina em Campina Grande-PB:uma estratégia
de folkmarketing. João Pessoa: Universitária/UFPB, 2007.
LUCENA FILHO, Severino Alves de. FOLKMARKETING: Uma Estratégia Comunicacional
Construtora de Discurso. REVISTA INTERNACIONAL DE FOLKCOMUNICAÇÃO, VOL.
6, NO 12 (2008). Disponível em: http://www.revistas.uepg.br/index.php?journal=folkc
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SCHMIDT, Cristina. Diversidade Cultural na mídia regional: marcas da culinária popular
na imprensa do Alto Tietê – SP. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares
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TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. 34. ed.São Paulo. 2000.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. A espetacularização das culturas populares ou produtos culturais
folkmidiáticos. 2005. Disponível em: <http://bocc.ubi.pt/pag/trigueiro-osvaldo-espetacularizacao-culturas-populares.html>. Acesso em: 20 nov. 2014.
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O São João Midiatizado:
A Mídia a Economia da Festa Junina no Sul da Bahia
The Midiatic São João: The media and the Party
Economics of the June Celebration in South Bahia
Fernando José R eis Oliveir a 1
Marcelo Pires Oliveir a 2
Resumo: Os festejos juninos chegaram ao Brasil com os colonizadores portugueses
e foram se espraiando pelo interior do país.. Quando examinamos a festa de
São João no domínio da economia da cultura e da festa, ela se apresenta como
empreendimento cultural e artístico do mercado de bens simbólicos, tal como
postulado por George Yúdice. Para embasar o artigo utilizaremos a teoria da
Folkcomunicação de Luiz Beltrão. Também utilizaremos a teoria da Análise do
Discurso de linha francesa. O material coletado para este artigo foi obtido junto
às emissoras locais e também de uma produtora da cidade de Itabuna.O material
publicitário foi de anunciantes locais que aproveitaram o motivo junino para
divulgar suas marcas e produtos. Já a cobertura telejornalística mostrou eventos
patrocinados e criados pelas emissoras locais. Ao analisarmos a economia da
festa de São João constatamos que a cultura popular exerce a qualidade de sua
ação produtora de cultura e de discursos das camadas ditas “inferiores ou de
baixo”, pondo em relevo o cotidiano das minorias, dos pobres e dos excluídos.
Todavia, verifica-se que a mídia atua como produtora de ressignificação de signos
e símbolos da festa, ao promover sua reutilização para o universo do consumo.
Palavras-Chave: Folkcomunicação; Economia da Cultura; São João; Midia
Abstract: The June festivities came to Brazil with the Portuguese colonists and
spread across the country. When we look at the feast of São João in the field of
culture and party economy, it presents itself as a cultural and artistic development
of symbolic goods market as postulated by George Yúdice. To support the article
we will use Luiz Beltrão’s theory of folkcommunication. We will also use the
theory of French Discourse Analysis. The material collected for this article was
obtained from the local TV and radio stations and also from a producer of the
city of Itabuna. the advertising material was from local advertisers who took
the June season to promote their brands and products. The TV news coverage
showed sponsored events and created by local broadcasters. Analyzing the party
economy we found that popular culture has the power to produce the culture
and the speeches of the “inferior or low” classes, emphasizing the daily lives of
1. Doutor em Semiótica PUC-SP, Professor Adjunto UESC; [email protected]
2. Doutor em Multimeios UNICAMP, Professor Adjunto UESC, [email protected]
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O São João Midiatizado: A Mídia a Economia da Festa Junina no Sul da Bahia
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minorities, the poor and the excluded. However, it appears that the media acts
as producer of reframing signs and party symbols, to promote their reuse for
the universe of consumption.
Keywords: Folkcommunication; Party Economy; São João; Media
1. BREVE HISTÓRIA DO SÃO JOÃO
S FESTEJOS juninos chegaram ao Brasil com os colonizadores portugueses e foram
O
se espraiando pelo interior do país, acompanhando o processo de aculturação,
transformando-se com inclusões e exclusões nas distintas regiões do Brasil, até
conquistar status de grande festa popular. A origem da festa junina remonta a tempos
longínquos, anteriores ao cristianismo. É preciso lembrar que nas sociedades primitivas
as festas estavam associadas ao cultivo da terra e aos ciclos de plantio e colheita, que
determinavam os ritos do calendário.
A partir do século IV, com a oficialização do cristianismo como religião do Império
Romano, a expansão da religião conduziu à adoção de certas estratégias de conversão,
que giravam em torno do binômio repressão/ressignificação. A percepção de que os
muitos elementos culturais poderiam ser reelaborados e introduzidos em uma nova
conjuntura pareceu uma estratégia mais eficaz e que deveria contrapor as resistências
de alguns povos. Assim a tradição de se festejar a chegada do verão e seu potencial
agrícola se transfigurou na celebração do nascimento de São João Batista. Segundo a
tradição, em ocasião de seu nascimento, dia 24 de junho, sua mãe, Santa Isabel, a fim
de anunciar a sua prima, a Virgem Maria, sobre o nascimento de seu primeiro filho,
mandou que acendessem uma fogueira e içassem um mastro com uma boneca em seu
cume. É proveniente desta fábula a tradição de erguer o mastro e atiçar à fogueira, esta
última é considerada como símbolo de São João. De acordo com Frazer (1978), o costume
de acender fogueiras e tochas, estava associado ao objetivo de livrar as plantas e colheitas
dos maus espíritos, que impediam a fertilidade. Quando os Portugueses chegaram
ao Brasil, as festas de São João coincidiram com a tradição indígena de realização de
cerimoniais referentes à preparação dos novos plantios e colheitas. Esta feliz justaposição
certamente contribuiu para que o São João fosse uma das festas mais importantes do
calendário de festas populares na região nordeste do Brasil.
2. A ECONOMIA DA FESTA E SUAS PRODUÇÕES SIMBÓLICAS
Se tomássemos a festa como fenômeno da cultura, pela ótica da sociologia a veríamos
como uma atividade semelhante ao jogo ou ao ócio. Nessa perspectiva a festa sempre foi
tratada como atividade associada ao tempo livre e pertencente ao campo das atividades
recreativas, abordagem bem distinta da noção de economia da cultura e da festa dos dias
atuais, cuja noção emerge das leituras contemporâneas relativas ao desenvolvimento
da economia da cultura e do entretenimento. Quando examinamos a festa de São
João como fenômeno pertencente ao domínio da economia da cultura e da festa, ela se
apresenta como empreendimento cultural e artístico do mercado de bens simbólicos, que
mobiliza os elementos do campo tradicional da festa junina, associado às manifestações
culturais e artísticas – as atividades do artesanato junino, as indumentárias, as danças
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típicas, a gastronomia, os elementos ritualísticos das fogueiras e dos balões, bem como
as comemorações religiosas, como as trezenas de Santo Antônio, etc.- e circunscreve-se
também ao conceito mais amplo de cultura tomada como recurso, tal como postulado
por George Yúdice (2004). A noção de cultura como recurso, absorve e elimina distinções
prevalecentes nas velhas definições que a antropologia e a sociologia fizeram no passado
da ideia de cultura, baseada na separação entre “alta cultura” e “cultura de massa”,
rompendo com aquelas dicotomias reconhecidamente desgastadas, para absorver as
novas práticas materiais e simbólicas, que o mercado cultural lança mão para dinamizar
a cadeia produtiva da economia da festa, que tem na música, nas festas in door ou festas
de camisa, e no turismo de entretenimento, o feixe de atividades dinâmicas e criativas
que mobilizam vultosos recursos para a realização das festas de São João nas cidades
da região sul do Estado da Bahia, objeto dessa pesquisa.
O cenário contemporâneo das festas juninas, cujo ciclo estende-se por todo o mês
de junho, tem início com as trezenas de Santo Antônio, de primeiro a treze de junho,
passando pela festa de São João, celebrada no dia 24 de junho e culminando com a
festa de São Pedro, celebrada em 29 do mesmo mês, e desenvolve-se a partir de um
conjunto de ações articuladas, seja por iniciativa de gestores públicos – prefeituras,
fundações culturais municipais, entidades culturais e artísticas, etc., seja por iniciativa
de empresas do segmento de shows, festas e espetáculos, envolvendo profissionais do
mercado de produção cultural e artística, que veem nas festas juninas uma oportunidade
para exploração das atividades integradas à economia da festa, que conta ainda com o
envolvimento das comunidades locais, além de movimentar a economia de segmentos
do mercado direta e indiretamente integrados à economia da festa: as atividades dos
artesãos, a contratação de artistas, músicos, cantadores, trovadores, dançarinos, forrozeiros, animadores, organizadores de concursos de quadrilhas e demandar produtos
e serviços dos segmentos de bebidas, alimentos, hoteleiro e têxtil. A rentabilidade que
a economia da festa proporciona para estes setores faz com que as empresas que os
exploram estejam entre os organismos que prestam apoios financeiros e patrocínios
culturais para as entidades envolvidas na organização da festa de São João. Tudo isso
influencia direta e indiretamente a dinâmica e o desenvolvimento econômico da festa
junina, que por se tornar um negócio altamente rentável destinada à satisfação de um
público consumidor cada vez mais exigente, vem crescendo como opção para o turismo
cultural sazonal e de entretenimento.
3. A MÍDIA E A REPRESENTAÇÃO DA FESTA JUNINA:
O SÃO JOÃO MIDIATIZADO
Na qualidade de fenômeno da cultura e da mídia, a festa junina revela-se como
um grande texto cultural carregado de códigos e símbolos, com significados próprios
e reconhecidos por todos os que estão inseridos na festa. O São João midiatizado
apresenta-se assim como um texto cultural que se desdobra em textos secundários,
perceptíveis aos que estão inseridos direta ou indiretamente na ordem simbólica da
festa, a exemplo dos textos da cultura popular, que guardam certos vínculos com os
traços culturais da tradição. Nesse contexto é possível observar a presença de uma
rede de códigos culturais e simbólicos, perpassando as linguagens da festa junina
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O São João Midiatizado: A Mídia a Economia da Festa Junina no Sul da Bahia
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nas comunidades, a saber: os códigos das musicalidades e dos ritmos da festa, os
códigos da corporalidade, as vestes e indumentárias que remetem à ordem de grupos
culturais específicos dessas comunidades – o vaqueiro, o sertanejo, e o trabalhador
rural, etc, estereótipos que se aplicam ao universo masculino e os vestidos floridos
de xita, da mulher do campo, remetendo às colhedeiras de cacau, e em outras regiões
às rendeiras, etc, ilustrando o texto cultural próprio do universo feminino. Por outro
lado identificamos outros textos culturais secundários, que decorrem da transformação
da festa junina em mercado cultural e simbólico, em campo de midiatização que se
dissemina como oferta da indústria de festas e entretenimentos entre os milhares de
consumidores de festas in door.
O São João aqui já não guarda maior proximidade com os códigos culturais e simbólicos da tradição cultural próprio da festa junina, mas se apresenta enquanto São João
midiatizado, que se irradia através das mídias por toda a cultura a cada ano, entre os
meses de maio a julho. Tamanha é a sobrecarga de signos e símbolos mobilizados pela
mídia com a proximidade da festa, que as massas consumidoras expostas à intensidade desses estímulos assumem o comportamento típico do ato do consumo, agindo de
maneira nervosa, agressiva, competitiva, em estado de disputa, em busca pelo melhor
São João da região. É nesse ambiente de evolução da produção cultural e simbólica da
economia da festa junina, como parte da economia da cultura, que devemos analisar os
modos de produção, apropriação que as mídias fazem dos códigos culturais e simbólicos
da festa para entender as operações de intertextualidades e de ressignificação, utilizados
para difundir as imagens simbólicas que passam a dar um novo sentido midiatizado
para a festa de São João. Ao analisar a festa junina que o jornalismo e a publicidade
produzem e difundem no ambiente cultural das cidades do sul da Bahia, através dos
anúncios e reportagens veiculados no rádio e na TV, verificamos em última instância
como as mídias se inserem no cotidiano da cultura Baiana a cada ano, revelando sinais
de manipulação simbólica no portfólio de imagens que dão conformação ao campo
simbólico da festa junina na atualidade, transformando-a em território de consumo e
de celebração de estereótipos, cujo objetivo último consiste em fazer crer, fazer-fazer
e estimular o consumismo, que gira ao redor da economia da festa, sobretudo pela
celebração daqueles produtos culturais formatados pelo mercado cultural, a saber:
as festas in doors e seus compostos mercadorias. Também podemos observar a crescente
penetração de uma cultura juvenil na ordem cultural da festa de São João, que sofre o
crescente contágio do discurso da mídia e do mercado cultural, em seu intuito de mobilizar esse público, ao redor da economia da festa junina, onde os produtores culturais
de festas “in door” – ou das famosas festas de camisa - empenham-se na produção de
suas marcas, cuja imagem é estrategicamente trabalhada pela publicidade, associada ao
São João das cidades onde são realizadas aquelas festas, organizadas como verdadeiros
shows de música e pirotecnia, misturando ritmos diversos, forró, xaxado, xote, baião, e
sobretudo dos novos ritmos, sertanejo universitário, o chamado tecnobrega, ritmos do
cenário pop, próprio das bandas eletrônicas de forró, somadas às velhas influências do
axé e do carnaval, tal o perfil dos grupos musicais que dominam a pauta e o repertório das festas de camisa. Elas se materializam nas imagens simbólicas associadas aos
desejos de realização e satisfação pessoal, vínculos de consumo e sedução, associados
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à conquista de prazer individual e coletivo, através do consumo de comidas e bebidas,
bem como da “quase garantia” de ser desejado/consumido/cobiçado como um produto
em si mesmo da própria festa, já que na prática cada indivíduo se vê ofertado ao outro
como mercadoria nas imagens dos corpos sensualizados, que se oferecem e convidam
o outro para viver as inúmeras possibilidades de aventuras amorosas propiciadas pela
festa in door, território de liberdade de expressão e de êxtase, entorpecimento, prazer
e realização.
Para garantia do êxito desses empreendimentos culturais e artísticos movimenta-se
elevado volume de recursos ao redor da economia da festa, todavia não encontramos
informações disponíveis sobre o montante de recursos investidos, gastos e arrecadados
na produção da festa junina no Sul da Bahia, capaz de avaliar o impacto econômico e
cultural da festa de São João no Estado da Bahia, ou ainda acerca do volume de recursos
movimentado pelo mercado cultural3, do investimento financeiro, cultural e simbólico
realizado direta ou indiretamente para a produção da festa junina, sobretudo no que
tange aos recursos aplicados em comunicação midiática, mobilizados pela publicidade
e pelo jornalismo, veiculados no rádio e na TV, e através das mídias digitais, durante o
período que antecede e durante a festa junina.
O poder simbólico dos meios de comunicação expande-se continuamente pela inflação de signos e símbolos e através de sua disseminação pelas imagens simbólicas. A cada
dia investem-se mais e mais recursos na publicidade comercial e na propaganda para
que o êxito da dominação seja assegurado. Esse poder que se materializa na repetição
temporal das classes de símbolos sempre iguais é que dá fundamento ao ritual midiático
do São João. A festa junina configura-se como um ritual e, como tal, baseia-se na repetição anual de atos simbólicos continuamente reafirmados, na execução desses rituais e
na celebração do próprio significado dos símbolos, que todavia gozam sempre de certo
estatuto de elemento simbólico identitário da festa. Nos meios audiovisuais esse caráter
de ritualidade e de celebração do São João também se repete todos os anos e se atualiza
através das imagens carregadas de signos e símbolos, que dão orientação e sentido mercadológico à festa junina, mas que também vão se degenerando e vulgarizando-se no
consumismo e na perda do valor simbólico associado, arrefecendo sua força e seu caráter
de texto cultural. A tentativa de persistir na repetição temporal da classe de signos e
símbolos do São João – a dança, a fogueira, o milho, o casamento, a fogueira, os fogos, a
música, a comida, etc. - e de fazê-lo sempre de igual forma, para a realização dos anseios
dos anunciantes, patrocinadores, empreendedores e comerciantes, etc, que se apropriam
3. Não há registros do montante de recursos movimentados pela cadeia produtiva das festas juninas – e da
festa de São João propriamente dita - não obstante seu reconhecimento como setor dinâmico da Economia
da Cultura e das economias criativas. Isto passa pelas inúmeras festas de camisas, ou o setor de “festas in
door”, pelo impacto da festa na indústria têxtil, no setor aluguel de casas, pousadas e hotéis nas localidades,
no segmento de bebidas e alimentos, no setor de transporte, e no mercado cultural pelos diversos shows
“ao vivo” de grupos, bandas, etc., montagem e desmontagem de palcos, camarotes, patrocínios e apoios
culturais, montagem de barracas em grandes localidades, aumento da arrecadação de impostos pelas
Prefeituras, com o aumento do contingente de consumidores; isso também impacta a criação de empregos
temporários e o aumento da demanda de serviços públicos nas localidades onde a festa atinge grandes
proporções de públicos. Estes são apenas alguns nichos que podemos vislumbrar, cuja avaliação dos
números da festa de São João poderia dar testemunho do impacto da festa junina no desenvolvimento da
economia da cultura e na economia como um todo.
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dos sentidos da festa - é o fundamento maior de que a festa junina se reveste de um
mecanismo ritualístico midiatizado, no qual a mídia atualiza a representação da festa
guiada pelo calendário, mas sobretudo para produzir a sincronização da ordem social
do consumo e do mercado, mas que, por outro lado, interfere definitivamente no ritmo
e na percepção que as pessoas passam a ter da tradição cultural da festa de São João.
4. AS LINGUAGENS (JORNALÍSTICA E PUBLICITÁRIA)
NAS MÍDIAS (RÁDIO E TV)
Cabe ressaltar que a midiatização dos festejos juninos passa pela percepção da
existência da festa de São João pelos veículos de mídia e de sua publicização para a
sociedade mais ampla. Com esse fenômeno, ao longo dos três últimos anos, as festas
juninas do interior da Bahia voltaram a ser eventos importantes e alguns deles passaram
a ser apresentados pela mídia regional com maior destaque. Veículos como as duas
emissoras de televisão regional organizaram a sua cobertura jornalística sobre as festas
juninas nas cidades de Ilhéus e Itabuna, bem como em sua programação publicitária
muitos anunciantes aproveitaram os festejos para associarem suas marcas e produtos à
festa. São estas emissoras, TV Cabrália (Grupo Record News) e TV Santa Cruz (Grupo
TV Bahia-TV Globo), ambas patrocinaram algumas celebrações para que elas fizessem
parte da sua programação jornalística. Para embasar a análise e observação iremos
abordar esta cobertura por meio da teoria da Folkcomunicação idealizada por Luiz
Beltrão que se:
[…] constitui uma disciplina científica dedicada ao “estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias”, como bem definiu seu fundador, Luiz
Beltrão, na tese de doutoramento defendida em 1967 na Universidade de Brasília.(MELO,
In BELTRÃO, 2004 p. 11)
Esta teoria que tem como pressuposto a investigação dos processos comunicacionais
presentes nas manifestações de cultura popular, entre elas o folclore, também é utilizada
para entender como os meios de comunicação apresentam e representam estas mesmas
manifestações.
A folkmídia, se propõe a investigar a presença de elementos da cultura popular na mídia de
massa, e analisar a maneira como são utilizados (LUYTEN, 2002), ou seja, como os emissores
da mass media utilizam, interpretam e reinterpretam os elementos da cultura popular nas
emissões massivas dirigidas aos seus públicos de interesse. (LUCENA FILHO, 2007 p.67)
Desta maneira, com este aporte teórico e também com o apoio da teoria da Análise do
Discurso(AD) de linha francesa, em especial a noção de poder em Foucault, uma vez que
o material analisado está em consonância com ações ou associações com o poder público,
e, portanto, dele indissociável. Devemos esclarecer que a noção de poder perpassa toda
a obra de Foucault, e, como ele afirma, não é um poder estático, único, mas “uma análise
diferencial dos diferentes níveis de poder dentro da sociedade” (FOUCAULT, 2001 p.
1680). O material coletado para este artigo foi obtido junto às emissoras locais que nos
cederam extratos de sua programação e também de uma produtora de comerciais para
televisão da cidade de Itabuna que autorizada pelos seus clientes nos cedeu o material
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para análise. De posse do material citado, procedemos à análise que foi dividida em
quatro etapas: 1) assistência do material em sua totalidade; 2) decupagem do material
para análise; 3) interpretação do material segundo as categorias da AD; 4) conclusão da
análise com discussão e comparação (quando possível).
Podemos falar que o material publicitário audiovisual coletado foi um apanhado
de anunciantes locais que aproveitaram o motivo junino para divulgar suas marcas e
produtos, como bem diz Severino Lucena quando descreve o Folkmarketing:
O termo folk=povo, ajuntado à palavra marketing (que tem o significado de um conjunto
de meios de que uma organização dispõe para entender e atender o mercado), resulta na
expressão folkmarketing que, segundo uma visão genérica, significa o conjunto de apropriações das culturas populares com objetivos comunicacionais, para visibilizar produtos
e serviços de uma organização para os seus públicos-alvo. (LUCENA FILHO, 2007 p. 85)
A linguagem tem dentre suas características a pluralidade de funções. No discurso
publicitário sua construção é formada pela escolha das palavras (cada expressão é
calculada para que gere identificação com o target) e pelos recursos simbólicos, que
devem remeter a situações cotidianas desse público, aconselhando o publico a escolher
o produto que anuncia. A campanha publicitária do supermercado Meira, apresenta
uma festa junina convidando o consumidor a participar do evento.
Anunciante: Supermercado Meira Compre que o Meira garante!
Duração: 30 segundos. Veiculação: TV Santa Cruz, em 20/05/2011.
Um músico canta: compre que o Meira garante! Compre que o Meira garante: a
qualidade, o atendimento, o preço baixo! Vá lá no Meira meu povo, se adiante. Cheio
de ofertas, pra sua alegria, vamos comprar no Meira na levada da economia. O Meira é
o preferido do sul da Bahia. A maior rede no combate a carestia! Compre que o Meira
garante!
A música não menciona o São João, tampouco aspectos juninos, no entanto a objetiva faz um passeio pelo espaço geográfico apresentando uma mesa repleta de pratos
tradicionais das festas juninas regionais, com produtos que podem ser encontrados no
supermercado. A mensagem se legitima pelas imagens simbólicas que transmite e pelos
signos e símbolos da cultura junina, que dão vida ao cenário da “festa junina do Meira”,
ganhando um colorido com a batida musical no ritmo do arrasta pé do forró, no qual o
músico-apresentador da festa, portando uma indumentária tradicional das festas caipiras,
convoca os consumidores a fazerem a festa do São João no Meira, coroando a apropriação simbólica da festa junina pela utilização das imagens simbólicas que compõem o
cenário dessa festa, a saber: mesa com pratos típicos, quadrilha, personagens vestidos
como caipiras, embalados pelo ritmo do forró. A narrativa publicitária fundamenta-se na
estratégia de persuasão do cliente, convidado a vir ao supermercado para adquirir produtos alimentícios e produzir uma festa de São João com a mesa farta de iguarias juninas
tanto quanto a mesa sugerida pelo comercial. Reconhecemos o apelo à autoridade, uma
vez que a propaganda se utiliza da figura de um cantor famoso na região para induzir o
consumidor a adquirir o produto Meira; ele faz uma paródia com uma música conhecida,
o que gera reconhecimento no target. João Carrascoza (2004) cita que o apelo à autoridade
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consuma-se na “utilização de citações de especialista que dão seu testemunho favorável,
validando o que está sendo afirmado. A publicidade costuma se valer de médicos, atletas,
figuras do show business etc. para tornar mais crível e ‘verdadeira’ sua mensagem.
Como estes exemplos foram os demais anúncios audiovisuais vistos e analisados,
e que nos levaram a perceber que a teoria do folkmarketing de fato se aplica a esta
região durante os festejos juninos quando algumas empresas associam suas marcas e
seus produtos à festa de cultura popular para conseguir maior aproximação com seus
públicos-alvo.
Já a cobertura telejornalística mostrou eventos diretamente patrocinados pelas duas
emissoras regionais. Como descrevemos a seguir.
5. SÃO JOÃO NOS BAIRROS (TV SANTA CRUZ)
A emissora local, afiliada da Rede Globo, iniciou em 2011 uma ação no mês de
Junho chamada de “São João nos Bairros”. Esta ação consistiu na realização de festas
juninas nos finais de semana que antecederam o São João em quatro bairros da cidade
de Itabuna: Sarinha; Ferradas; California e Mangabinha. Neste mesmo ano não houve
esta ação na cidade de Ilhéus. Os locais escolhidos para a ação da emissora Tv Santa
Cruz são bairros que compõem a periferia da cidade de Itabuna, cuja população em sua
maioria é de baixa de renda. Os espaços destinados a esta festa foram sempre associados
a praças e escolas conhecidas nos bairros. As barracas e a estrutura foram montadas
com as parcerias (patrocínios) conseguidos pela emissora em acordo com a prefeitura.
Houve ainda a participação do efetivo da polícia militar que garantiu a segurança dos
frequentadores. A emissora também organizou em parceria com as escolas dos bairros
apresentações de quadrilhas juninas e outras atividades integradoras. Toda esta ação
foi devidamente registrada e propagandeada durante a programação da emissora, em
especial nos seus telejornais. Os programetes foram exibidos nos horários nobres da
emissora(meio dia e sete da noite) e todos eram referentes à ação e ao que havia acontecido
no bairro visitado durante o final de semana. Havia ainda, durante a programação, a
veiculação da agenda desta ação com as atrações, horários e locais. A ação aconteceu
durante o mês de maio de 2011 e teve por intenção a recuperação da tradição da festa de
rua no São João, como pode ser percebido em um dos comerciais exibidos após a festa,
no qual a emissora contabiliza o sucesso do evento:
Agradecemos a você, nosso parceiro, que acreditou e nos ajudou a mostrar que a tradição
não morreu e que ainda é possível se divertir em família como se fazia antigamente [...]
(extraído do programete “Clip Review” DVD “São João dos Bairros”)
Os bairros contemplados pela ação tiveram a cobertura jornalística da emissora com
matérias exibidas nos telejornais e entradas ao vivo exibidas durante o dia do evento.
As matérias abordavam a ação, as atrações e o vínculo da emissora com a cidade e a
preocupação em recuperar a tradição junina das famílias. “... O Projeto São João dos
Bairros da Tv Santa Cruz resgatou a tradição junina da comunidade em parceria com a
prefeitura...” (extraído da matéria Ferradas 1 – DVD “São João dos Bairros”). Nas matérias
é destacada a importância do envolvimento da comunidade no evento, a preocupação de
que as atrações musicais sejam também regionalizadas, o que pode acarretar em uma
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busca de desenvolvimento econômico para as bandas locais, que também são divulgadas
pelas matérias, os patrocinadores são sempre destacados de alguma maneira, como por
exemplo a sua presença nas barracas da festa com jogos, brincadeiras e comidas típicas
e a existência de premiações pela efetiva participação dos moradores locais, seja por
estarem animados, seja por estarem devidamente caracterizados:
[…] as marcas que os enunciadores visibilizam, nos seus discursos organizacionais, são
apropriadas dos saberes populares da tradição junina, para constituírem os discursos
folkcomunicacionais. Estas são contaminadas por características sociais, políticas, culturais,
segundo a posição e a condição que cada enunciador ocupa no espaço onde atua. (LUCENA
FILHO, 2005 p. 193)
Todas as matérias e comerciais sempre destacam as parcerias com a alusão das
empresas patrocinadoras. O destaque dado ao envolvimento do poder público municipal
também está presente nas matérias como uma ação de aproximação entre as comunidades e a prefeitura. Mais uma vez, a escolha dos bairros para receber a ação se mostrou
intencional de atender alguma demanda de uma estratégia governamental de aproximação que venha a proporcionar dividendos futuros nas negociações com as comunidades destes bairros nas suas demandas não atendidas pelo poder público municipal.
Estes bairros por estarem na periferia da cidade, tem alto índice de criminalidade e
violência, e também são bairros populosos que reivindicam maior atenção da prefeitura e que poucas vezes são atendidos4. Esta ação da Tv Santa Cruz aconteceu em dois
espaços distintos, mas que se complementaram. Um foi o espaço real da praça e da rua
nos bairros, no qual as pessoas da comunidade foram brincar a festa junina. E o outro,
“virtual”, que foi o espaço de veiculação na programação da emissora que tratava de
contabilizar os números da festa e destacar os elementos estratégicos de comunicação
da emissora para a propagação do evento e maior envolvimento das comunidades nos
bairros que foram atendidos pela festa.
6. SÃO JOÃO NA TV CABRÁLIA (RECORD NEWS)
A cobertura da Tv Cabrália de Itabuna (Record News Nordeste) foi dividida em dois
tipos: 1) Matérias sobre a comemoração em cidades do interior da Bahia; e 2) Cobertura
da festa promovida pela emissora em Itabuna com o nome “Record News Forró e Folia 3”.
Foram duas matérias analisadas sobre a festividade de São João. Ambas de cidades
do interior da Bahia, uma foi Itapé (cidade localizada a 22 km de Itabuna) e a outra foi
Porto Seguro ( cidade localizada a 275 km de Itabuna). Estas matérias abordaram a
realização por parte do poder público municipal das festas de São João, sendo a de Itapé,
um São João antecipado e a de Porto Seguro a celebração da festa junina por um período
maior. Na matéria da festa de Itapé há a percepção de um envolvimento da emissora
com a promoção da administração municipal com a fala da repórter: “ O Prefeito Jackson
Rezende falou da importância da festa junina para a cidade, onde os compromissos
estão sendo cumpridos...”(extraído da Matéria “Itapé”), havendo ainda a entrevista com
o prefeito que falou exatamente da sua administração e da realização da festa sem apoio
4. Segundo pesquisa coordenada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2009 IVJ.
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do governo do estado. A fala do prefeito indica o tom político e clientelista da ação da
prefeitura visando vincular sua pessoa com a celebração e dissociá-lo da gestão estadual
como parceira da promoção da festa junina na cidade. Esta matéria denota uma intenção
de alinhamento com o poder público municipal para que haja uma continuidade de
poder, mas aqui destacamos Foucault, quando fala do poder:
Quando se fala de poder, as pessoas pensam imediatamente em uma estrutura política,
um governo, uma classe social dominante, o mestre frente ao escravo etc. Isto não é de
nenhum modo aquilo que eu penso quando falo de relações de poder. Eu quero dizer que,
nas relações humanas, qualquer que sejam - que trate de comunicar verbalmente, como
fazemo-lo agora, ou que se trate de relações amorosas, institucionais ou econômicas -, o
poder continua presente: eu quero dizer a relação na qual um quer tentar dirigir a conduta
do outro. Estas são, por conseguinte, relações que se pode encontrar em diversos níveis, sob
diferentes formas; estas relações de poder são relações móveis, ou seja, elas podem alterar-se, elas não são dadas de uma vez para sempre. (FOUCAULT, 2001, p. 1538)
Uma vez que há a noção da mobilidade do poder, a matéria analisada mostra os
agentes públicos e jornalísticos em consonância para construir um discurso vitorioso
da administração local na capacidade de realizar uma festa que agrada e atende uma
demanda da comunidade e em consequência alude à procura da manutenção e continuidade dos festejos no caso da haver a permanência do grupo que neste momento
controla a prefeitura, e, portanto, detém o poder no município.
Mesmo de um ponto de vista estritamente político, (o fato acontece) em certos países do
Ocidente, o poder, o poder político é exercido por indivíduos ou classes sociais que não
detêm absolutamente o poder econômico. Estas relações de poder são sutis, a diversos níveis,
e nós não podemos falar de um poder, mas antes descrever relações de poder. (FOUCAULT,
2001, p. 1510)
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O século XXI vê emergir um novo entendimento do papel da cultura na sociedade
contemporânea - que ultrapassa de longe as velhas definições clássicas, marcadas pelo
longo debate entre correntes antropológicas e sociológicas, sobre o estatuto teórico da
cultura - apontando para uma interpretação mais pragmática e convergente daqueles
campos conceituais, cuja noção foi sintetizada na definição amplamente difundida pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO. Na
percepção da UNESCO a cultura contemporânea define-se pelo conjunto de características distintivas espirituais, materiais, intelectuais e afetivas, que caracterizam uma
sociedade ou um grupo social. Nessa perspectiva a cultura envolve, além das artes e das
letras, os modos de vida, os sistemas de valores, as tradições e as crenças, constituindo-se em repositório de conhecimentos, de significados e valores materiais, espirituais e
afetivos, permeando todos os aspectos de nossas vidas. Essa conformação do campo
cultural não indica apenas o esvaziamento das noções convencionais de cultura, mas
uma completa reorganização na percepção da noção de cultura e do caráter de transversalidade que é reivindicado para o campo cultural, atribuindo-lhe prestígio e dimensão
de centralidade no século XXI.
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A cultura de nosso tempo caracteriza-se como uma cultura de globalização acelerada, como
um recurso.[...] A cultura passa a ser dirigida como um recurso para a melhoria sóciopolítica
e econômica, ou seja para aumentar sua participação nessa era de envolvimento político
decadente, de conflitos acerca da cidadania (Young, 2008) e do surgimento daquilo que
Jeremy Rifkin (2000) chamou de capitalismo cultural. (YUDICE, 2004, p.25).
É nesse contexto que devemos entender a emergência da economia da cultura e da
festa de São João, enquanto empreendimento cultural e artístico envolvendo os segmentos tradicionais da economia da cultura e os novos setores dinâmicos das chamadas
indústrias criativas, que giram ao redor da festa: a indústria da música, do audiovisual
e cinema, artes teatrais e visuais, telecomunicações, radiodifusão (produção de conteúdo) editorial (livros e revistas), arte popular e artesanato, festas populares, patrimônio
histórico material e imaterial, software de lazer e entretenimento (videogames), design,
moda, arquitetura e publicidade e propaganda (criação). Nessa parceria entre a economia
e o mundo intangível da cultura, envolvendo artistas, produtores e gestores culturais,
patrocinadores, realizadores e entidades apoiadoras, públicos culturais, etc., a economia
entra analisando as formas de organização da produção cultural e simbólica da festa
junina, os mecanismos de estruturação do mercado cultural da festa, a distribuição de
produtos e serviços culturais e simbólicos, destinado ao setor de turismo cultural e de
entretenimento, bem como o impacto da festa junina na renda e no nível de emprego
da região ou localidade, etc. Mas certamente o aprofundamento desejado para tais
questões exige a realização de outro artigo específico para este fim e demanda novas
investigações, fugindo ao escopo proposto por esse trabalho.
Ao analisarmos a festa de São João como fenômeno da cultura popular constatamos
que ela atua como instância produtora de discurso, fortalecendo o sentido de existência
e pertencimento das camadas mais humildes da população, pondo em relevo o cotidiano
das minorias, dos pobres e dos excluídos, por meio da exaltação de seus códigos e seus
valores. Todavia, verifica-se também a atuação da mídia como instância produtora de
ressignificação de signos e símbolos, ao promover o São João midiatizado, permitindo
sua reutilização para a edificação do universo do consumo e das marcas. A midiatização do São João transforma o fenômeno cultural da festa junina, ao atribuir-lhe valores
culturais e simbólicos próprios, que se associam menos à espontaneidade própria da
cultura popular e tradição cultural da festa junina, e mais ao universo peculiar do
consumo e das marcas, no qual o indivíduo se reconhece pertencente ao campo da
mercadoria-imagem, nas imagens simbólicas das festas in door em que se transformou,
predominantemente, o São João nas cidades da Região Sul da Bahia e que passam a
contar uma história da festa junina que lhe é própria, associadas à evolução de suas
marcas: o Forró do Tico Mia na cidade de Ibicuí, o Forró da Margarida em Jequié, o
Forró do Brega-Light e a Festa da Vaca Loca, em Itapetinga-Bahia, dentre outras. Vale
ressaltar que esses fenômenos ainda são muito recentes e pouco estudados. Eles devem
ser investigados principalmente pelo potencial de seus rebatimentos inovadores para a
sociedade midiatizada, bem como pela contribuição que o fenômeno da festa proporciona
para a compreensão do desenvolvimento da cultura e da mídia – e seus entrelaçamentos
- na sociedade contemporânea.
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REFERÊNCIAS
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Foucault, M. (2001). Dits et écrits. Édition établie sous la direction de Daniel Defert et François
Ewald. Collaboration de Jacques Lagrange, Vol. I et II. Paris: Quarto Gallimard.
Frazer, J. G. (1978). O ramo de ouro. São Paulo: Círculo do Livro.
Lucena Filho, S. A. de. (2005). A festa junina em Campina Grande - Paraíba: evento gerador
de discursos organizacionais no contexto do folkmarketing. PUC/RS.
Lucena Filho, S. A. de. (2007). A festa junina em Campina Grande -PB: uma estratégia de
folkmarketing (p. 219). João Pessoa: Editora Universitária da UFPB.
Yúdice, G. (2004). A Conveniência da Cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte:
editora UFMG.
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Telecentro “Pesca Maré” em Abreu e Lima:
análise das marcas folkcomunicacionais no contexto
do desenvolvimento local/inclusão social
E r n a n d e s L u i z T ava r e s
Bruno Emmanuel
de
da
S i lva 1
Oliveira Ferreira2
S u e lly M a u x 3
Resumo: O artigo se propõe a apresentar as atividades desenvolvidas no Telecentro
“Pesca Maré”, na cidade de Abreu e Lima, tanto em uma perspectiva de inclusão
social, quanto a partir de suas marcas folkcomunicacionais. Assim, ele se estrutura
em dois eixos: inicialmente, apresentamos a história do projeto, qual o perfil do
público atendido, as suas experiências recentes. O segundo eixo busca abordar as
marcas folkcomunicacionais presentes na atuação do Telecentro a partir de uma
taxionomia proposta pelo pesquisador José Marques de Melo, em seu livro “Mídia e
Cultura Popular”. Como contextualização, apresentamos um breve resumo sobre a
cibercultura, as TICs, e folkcomunicação. A metodologia utilizada na pesquisa consistiu em uma análise quali-quantitativa centrada em uma observação participante
onde constatamos a presença de algumas marcas folkcomunicacionais. Através de
entrevistas semi-estruturadas buscamos apresentar o processo de inclusão social
desenvolvido pelo Telecentro. A seguir apresentamos esses resultados, bem como
as devidas considerações sobre a pesquisa desenvolvida.
Palavras-Chave: Redes sociais, Telecentro, inclusão digital, colônia de pescadores,
folkcomunicação
Abstract: The article aims to present the activities developed in the Telecentro
“Pesca Maré” in the city of Abreu e Lima, both in a perspective of social inclusion,
as from their folkcommunicational brands. Thus, it is structured in two areas:
first, we present the history of the project, which the public profile seen, their
recent experiences. The second axis seeks to address the folkcomunicacionais
brands present in the Telecentre performance from a taxonomy proposed by the
researcher José Marques de Melo, in his book “Mídia e Cultura Popular”. As context, we present a brief summary of cyberculture, ICT, and folkcommunication.
The methodology used in the research consisted of a qualitative and quantitative
analysis focused on a participant observation where we found the presence of
some folkcommunicational brands. Through semi-structured interviews we
1. Aluno Especial do Programa de Pós Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local (Posmex),
UFRPE. E-mail: [email protected].
2. Aluno Especial do Programa de Pós Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local (Posmex),
UFRPE. E-mail: [email protected].
3. Suelly Maux. Profa. Dra do Decom/Associada I. Coord. do GP/Capes Folkcomunicação e Discursos
Organizacionais. Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPgEM)/UFRN/
PNPD/Capes. [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7419
Telecentro “Pesca Maré” em Abreu e Lima: análise das marcas folkcomunicacionais no contexto do desenvolvimento local/inclusão social
Ernandes Luiz Tavares da Silva • Bruno Emmanuel de Oliveira Ferreira • Suelly Maux
present the process of social inclusion developed by the Telecentre. The following
are the results, as well as due consideration of the developed research.
Keywords: Social networks, Telecentre, digital inclusion, fishing colony,
folkcommunication
INTRODUÇÃO
MBORA TENHA atingido um importantíssimo número de pessoas e chegado às
E
camadas mais pobres do país, ou melhor dizendo, às classes consideradas marginalizadas da sociedade, a inclusão digital ainda não se tornou uma realidade de
todos. Fazer com que jovens moradores e trabalhadores do meio rural ou dos espaços
rurbanos, que é a proposta de discussão deste artigo, possam ter acesso ao ensino e
prática da informática semanal, com computadores conectados à internet, possibilitando
o aprendizado e busca de novos mundos, é o que as políticas públicas devem almejar
para erradicar, ou pelo menos minimizar, a exclusão digital.
Navegação em sites de notícias ou entretenimento, acesso a jogos on-line, a vídeos e
filmes pelo youtube, bem como inserção nas demais redes sociais e a partir daí, interagir com pessoas de outros estados ou outras nações que compartilhem de sua visão de
mundo, vontades e preferências são algumas das inúmeras vantagens proporcionadas
aos jovens que superam a barreira da exclusão digital. A partir desses benefícios, o
jovem pode ampliar sua visão de mundo, aprimorar seu senso crítico, desenvolver sua
cognição junto às novas mídias. Essa experiência também fortalece a ciberdemocracia,
já que, nas palavras de Lemos (2002, p. 101): O lema da microinformática será: “computadores para o povo”.
É partindo deste princípio e com esse objetivo que a rede possibilita que a Colônia
de Pescadores Artesanais Z33, situado no Porto Jatobá, no município de Abreu e Lima,
na Região Metropolitana do Recife (RMR), desenvolve o projeto Pesca Maré na sede da
instituição, onde abriga um Telecentro que dá aos jovens moradores desta localidade,
a oportunidade destes recursos e de acesso a esse mundo.
Ao fazerem uso das redes teleinformáticas, do potencial das mídias digitais, os
jovens se inserem nessa nova forma de vida que é a cibercultura, entram em conexão com
o ciberespaço, e passam a aprender o linguajar dessas novas ferramentas de comunicação
e interação social.
No rastro desses jovens no ciberespaço, haveria algo de suas tradições e cultura
local? Existem elementos de cultura popular propagados em suas interações nas redes?
Em contrapartida, o que se absorve, o que ele tira da rede e incorpora em seu repertório
identitário após as experiências no Telecentro? Foi com base nesses questionamentos
que conduzimos a pesquisa que se segue, alicerçada na ideia de identificar marcas
folkcomunicacionais na experiência dos jovens usuários do Telecentro.
Iniciamos o percurso trazendo alguns apontamentos sobre o surgimento das novas
mídias, a cibercultura, o ciberespaço e as redes sociais para em seguida fundamentarmos
o referencial acerca da folkcomunicação e do percurso metodológico de nossa pesquisa.
Em seguida expomos os resultados da pesquisa e as respectivas conclusões.
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Telecentro “Pesca Maré” em Abreu e Lima: análise das marcas folkcomunicacionais no contexto do desenvolvimento local/inclusão social
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INFORMÁTICA E CIBERCULTURA
A cibercultura, a vida social mediada por computadores, nasce em meados dos
anos 1970 (LEMOS, 2002, p. 101). Apesar de o surgimento da microinformática poder
ser situado nos anos 1970, as pesquisas em tratamento automático da informação, ou
informática, datam entre 1940 e 1960 (LEMOS, 2002, p. 102). De uso restrito, acessível
somente a cientistas e militares, as máquinas que posteriormente constituiriam as TICs
ocupavam salas inteiras e tinham objetivos de uso puramente corporativos.
Essas tecnologias de informação sofreram uma transformação em meados dos
anos 1970: de máquinas gigantescas, convertem-se em dispositivos de uso doméstico.
O advento do computador pessoal e o aprimoramento das tecnologias informáticas e de
telefonia (teleinformática), passam a conectar as pessoas em todo o mundo. Trabalho,
lazer, relacionamentos, pesquisas, educação, compras, crimes; os anos 1990 e 2000 são os
anos da consolidação da cibercultura, a cultura de controle digital, onde o contexto de
suas formas de interação se dá no ciberespaço. O ciberespaço pode ser entendido como
“o lugar onde estamos quando entramos em um ambiente simulado (realidade virtual),
e como o conjunto de redes de computadores, interligadas ou não, em todo o planeta, a
internet.” (LEMOS, 2002, p 128). Sobre esses termos, LEVY (1999, p.17) esclarece:
O ciberespaço, que também chamarei de rede, é o novo meio de comunicação que surge da
interconexão mundial de computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura
material da comunicação mas também o universo oceânico de informações que ela abriga,
assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo “cibercultura”, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de
práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente
com o crescimento do ciberespaço.
Como afirma Levy (1999), grande parte de práticas e de formas de pensamento, bem
como novos valores são desenvolvidos no espaço virtual, o ciberespaço. Ter o domínio da
tecnologia que permite o acesso ao ciberespaço, se torna essencial como caminho de participação social. “A emergência do ciberespaço, de fato, provavelmente terá – ou já tem hoje
– um efeito tão radical sobre a pragmática das comunicações quanto teve, em seu tempo,
a invenção da escrita.” (LEVY, 1999, 113). As limitações são semelhantes: os “desplugados”
da rede, isto é, aqueles sem acesso ao ciberespaço, à internet, passam a sofrer limitações e
exclusões análogas as que passam os analfabetos em uma sociedade alicerçada na escrita.
Um dos pontos centrais dos relacionamentos e modos de vida na cibercultura são as
redes sociais. Na verdade, estudos em redes antecedem a cibercultura e a informática,
e se propõem a analisar interação de sistemas onde se pode observar a comunicação
entre seus elementos ou mesmo entre dois sistemas. A biologia (interação entre seres
vivos), a física (interação entre moléculas) e a engenharia (interação entre componentes
de uma máquina ou estrutura) são algumas das áreas em que estudos em redes podem
ser desenvolvidos.
A importância desses estudos no contexto das ciências sociais se dá na tendência
de agrupamentos humanos interagirem em rede. Assim redes sociais (sociais porque
referem-se justamente à interação humana) antecedem a cibercultura, mas o advento
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desta, nos permite visualizar como se configura os relacionamentos humanos no ciberespaço. “Estudar redes sociais é estudar, portanto, o padrão de conexões no ciberespaço. É explorar uma metáfora estrutural para compreender elementos dinâmicos e de
composição dos grupos sociais”. (RECUERO, 2009, p.24). Pela definição da autora, uma
rede social poderia ser definida como:
Um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede)
e suas conexões (interações ou laços sociais) (Wasserman e Faust, 1994; Degenne e Forse,
1999). Uma rede, assim, é uma metáfora para observar os padrões de conexão de um grupo
social, a partir das conexões estabelecidas entre os diversos atores. A abordagem de rede
tem, assim, seu foco na estrutura social, onde não é possível isolar os atores sociais e nem
suas conexões. (RECUERO, 2009, 24)
Assim, é interessante distinguir essa definição mais ampla de rede social. Diferente
dos tradicionais sites de redes sociais, entre os quais temos facebook, twitter, instagram
como grandes expoentes desse gênero, trataremos por rede social, nos limites desse
trabalho como as formas de interação entre atores no ciberespaço.
Dessa forma, salientamos a importância da inclusão digital trabalhada por iniciativas como a do Telecentro “Pesca Maré”, pois dada a cibercultura como norteadora
da vida social contemporânea, se faz necessário pensar em como tirar dessa exclusão
os jovens que têm de superar barreiras, financeiras ou sociais, familiarizar-se com o
ciberespaço e inserir-se em suas novas formas de relações humanas. Apresentaremos,
logo adiante, a análise realizada neste Telecentro onde buscamos identificar a existência
de marcas folkcomunicacionais resultantes da inserção dos usuários do Telecentro no
ciberespaço. Contudo, antes se faz necessária a devida contextualização dessas marcas,
bem como situar onde ocorre essa ação de inclusão digital.
FOLKCOMUNICAÇÃO E AS MARCAS
FOLKCOMUNICACIONAIS NO CIBERESPAÇO
Em 1967 o jornalista Luiz Beltrão definiu, em sua tese de doutorado, a folkcomunicação como “o conjunto de procedimentos de intercâmbio de informações, ideias, opiniões
e atitudes dos públicos marginalizados urbanos e rurais, através de agentes e meios
ligados direta ou indiretamente ao folclore” (BELTRÃO, 1980, p 24). A folkcomunicação
tornou-se um amplo campo de estudos sobre as formas de comunicação manifesta no
foclore, isto é, no repertório simbólico desse público, excluído socialmente, marginalizado, segundo a definição.
Conforme o pesquisador Roberto Benjamin, a folkcomunicação foi ampliando seu
escopo teórico através da verificação das manifestações folclóricas desse público com
os meios de massa. Com as inovações tecnológicas do século XX, entre elas a eletrificação rural e rurbana, a chegada e hegemonia do rádio e da televisão e a presença de
antenas parabólicas junto às comunidades tradicionais, constata-se que estas não são
ilhas isoladas na sociedade, mas estão sobre influência da cultura de massa e de seus
meios (BENJAMIN, 2004, p. 11).
Benjamin cita diversos exemplos de apropriação de mídias de massa por agentes
folkcomunicacionais: desde o uso de tecnologia de edição na produção de cordéis, a
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gravação em cd do trabalho de cantadores de viola. Nesses espaços de ação da folkcomunicação, as TICs se fazem presente. Sua presença e grau de influência tendem a ser
hegemônicos nos próximos anos, segundo o pensamento de Lemos (2002). Em seu estudo
sobre a cibercultura e a vida social alicerçada no ciberespaço, ele apresenta uma visão
determinista sobre a configuração das realizações humanas ao longo de nosso século:
Toda a economia, a cultura, o saber, a política do século XXI, vão passar (e já estão passando)
por um processo de negociação, distorção, apropriação a partir da nova dimensão espaço-temporal de comunicação e informação planetárias que é o ciberespaço. (LEMOS, 2002, p 127)
Levando em conta esse ponto de vista e pensando na convergência entre folclore
ou cultura popular das comunidades tradicionais e o ciberespaço, nos aproximamos
do pesquisador Marques de Melo, quando este afirma:
Se a disciplina acadêmica vem experimentando tamanha expansão, mais significativa tem
sido a trajetória da folkcomunicação nos espaços propiciados pela internet. Esse territótio
mostrou-se fértil, principalmente para a germinação e o cultivo de relatos sobre as atividades
desenvolvidas pelos agentes folkcomunicacionais, ampliando consideravelmente seu raio
de ação. (MELO, 2008, p. 97)
Este autor propõe uma metodologia de classificação de gêneros e formatos em que a
folkcomunicação pode manifestar-se. Considerando que se trata de um fenômeno comunicacional que tem as tradições populares como suporte, ele pode apresentar uma ampla
variedade de suportes. Assim, Melo agrupa o repertório folkcomunicacional segundo
uma classificação conforme seu gênero, formato e tipo. Onde se define por gênero: forma de expressão determinada pela combinação de canal e código (MELO, 2008, p. 91); a
definição de formato é: estratégia de difusão simbólica determinada pela combinação
de intenções (emissor) e de motivações (receptor) (MELO, 2008, p. 91) ; por fim, tipo é
definido como: variação estratégica determinada pelas opções simbólicas do emissor,
bem como por fatores residuais ou aleatórios típicos da recepção (MELO, 2008, p. 91).
Sintentizando essas definições conforme a definição do autor, segue a tabela:
Gênero
Formato
Tipos (pertencentes a um
formato específico)
Folkcomunicação Oral (canal
auditivo/ código verbal/ código
musical)
Canto, música prosa, verso,
colóquio, rumor, tagarelice,
zombaria, passatempo, reza
aboio, baião, conto de fada, cantoria,
gíria, palavrão, anedota, charada,
ladainha, etc.
Folkcomunicação Visual (canal
óptico/ código linguístico/
pictórico)
Escrito, impresso, mural ou
pictográfico
abaixo-assinado, literatura de cordel,
corrente, panfleto, santinho de
propaganda, xilogravura popular, etc.
Folkcomunicação Icônica (canal
óptico/táctil/ código estético/
funcional)
Devocional, decorativo,
diversional, nutritivo, bélico,
funerário, utilitário
amuleto, ex-voto, medalha, bolos,
biscoitos, boneca de pano, estandartes,
mortalhas, lápides, jogos infantis,
vestuário, etc.
Folkcomunicação cinética
(múltiplos canais/ códigos gestual/
plátisco)
Agremiação, celebração,
distração, manifestação, folguedo,
festejo, dança, rito de passagem
campanha, comício, bloco carnavalesco,
bumba-meu-boi, canbomblé, festa junina, batizado, coco-de-roda, amarelinha,
capoeira, quermese, frevo, etc.
Fonte: MELO, 2008, p 91-95
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De posse dessa taxionomia proposta por Marques de Melo e cientes da
contextualização cibercultural das TICs, propomos a pesquisa no Telecentro Pesca Maré,
onde buscamos mapear essas marcas folkcomunicacionais nas redes socais dos usuários
do Telecentro. Antes, da pesquisa propriamente dita, faremos uma rápida exposição da
cidade que abriga esse Telecentro, a cidade de Abreu e Lima.
A CIDADE DE ABREU E LIMA
Abreu e Lima é considerada uma das maiores cidades da Região Metropolitana do
Recife (RMR), está localizada na Zona da Mata Norte de Pernambuco, distante 18 quilômetros da capital. A cidade passou 400 anos sobre o domínio político e administrativo
do município de Igarassu e outros 47 anos, de Paulista. Em 1982, pela lei estadual nº
421, Abreu e Lima foi separada de Paulista, tornando-se uma cidade autônoma. O atual
nome do município é uma homenagem ao general José Inácio de Abreu e Lima, filho de
um dos principais líderes da Revolução Praieira, o padre Roma, e também um notável
político, escritor e jornalista pernambucano que lutou ao lado de Simon Bolívar pela
independência da Venezuela. Sua extensão territorial possui mais de 75% de área na
zona rural e segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de
2010, a população era de 94.429 habitantes, a maior parte na zona urbana onde residem
86.627 pessoas. Na zona rural vivem outras 7.802.
Quanto à economia, a cidade possui um variado comércio e um crescente parque
industrial que abriga empresas pernambucanas, nacionais e multinacionais. Na área
rural, os trabalhadores do campo cultivam frutas e verduras que são comercializadas
na tradicional Feira Livre do munícipio, localizada às margens da BR-101 Norte e em
cidades vizinhas como: Paulista, Igarassu, Camaragibe e até na Ceasa – o maior centro
de hortifruti do Estado. Na região, ainda podem ser vistas plantações de flores tropicais
e pequenas criações de suínos, gado, aves e abelhas para a produção de mel.
MATERIAL E MÉTODOS
Área de estudo
A Colônia de Pescadores Z33 Porto Jatobá recebeu este nome porque na beira do
porto do local, às margens do Rio Timbó – para pequenas embarcações de pescadores
– havia um grande Jatobá cujas sementes caiam dentro da água. Existem cerca de 400
famílias sobrevivendo na localidade quase que exclusivamente de práticas do setor
primário, como a pesca e a agrícola. Antes, a localidade abrigava uma associação, que
na época era a instituição que cuidava de todos os interesses dos trabalhadores rurais
e pescadores artesanais. Somente no ano de 2008, foi que a associação se tornou de fato
uma colônia, através de muitos pedidos dos moradores e mudança nos registros para
razão social.
Segundo o presidente da Colônia de Pescadores Artesanais Z33, Manoel Vicente
Rodrigues Filho, após a fundação da colônia houveram diversas mudanças e benefícios
para a população desta região, como a inclusão de alguns programas do Governo Federal (Chapéu de Palha, Pesca Maré, Sementes da Gente e outros). Também foi possível
identificar, regularizar e cadastrar todos os pescadores e pescadoras artesanais. Hoje
já são 410 cadastrados. Relatos dão conta de que antes de existir a sede onde funciona
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atualmente a colônia, o Rio Timbó e as áreas de manguezais onde é feita a pesca de todos
os frutos do mar, vivia sempre poluído devido ao derrame e despejo de matérias não
tratadas, vindas de empresas próximas a região. Rodrigues Filho ainda afirmou que a
sede continua recebendo ajuda do Governo Federal, por meio da Superintendência da
Pesca no Estado e da Prefeitura Municipal de Abreu e Lima.
O Telecentro Pesca Maré iniciou suas atividades no ano de 2009, no Porto Jatobá,
após a submissão de inscrição na seleção pública do Edital nº 08/2008, onde a Secretaria
Especial de Aquicultura e Pesca tornava público o interesse das entidades em se cadastrar
para concorrer ao Telecentro, beneficiando jovens moradores da localidade e filhos de
pescadores. Estes puderam se inscrever no curso de informativa e a partir daí, muitos
tiveram o primeiro contato com a ferramenta tecnológica. Inicialmente, o quantitativo
de alunos foi dividido em quatro turmas, pois assim facilitava o aprendizado. Bem antes
do início do projeto foi aberto um edital, por meio do Governo Federal, possibilitando
a chance de todas as Colônias de Pescadores se inscreverem. Foi então que a Colônia
de Pescadores Z33 realizou a inscrição, concorreu e ganhou o Telecentro, que hoje faz
parte como uma de suas instalações na sede da Colônia.
Telecentro Pesca Maré (FONTE: Arquivo do pesquisador)
De acordo com documento proposto na época da abertura do edital, explanando
todas as normas e exigências para a abertura do mesmo, assim como os objetivos,
requisitos e justificativas, diz que:
“A instalação de Telecentros comunitários traz ganhos em gestão de conhecimento, qualificação profissional, aumento da auto-estima nos usuários residentes em comunidades
isoladas e carentes de políticas públicas, que ao se apropriarem da ferramenta tecnológica
e do software livre, desenvolvem uma consciência histórica, política e ética, associada à
cidadania e de transformação social”. (EDITAL PÚBLICO Nº 08/2008)
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Portanto, utensílios modernos de informação e comunicação permitem aos usuários
e atores sociais desta ou de qualquer outra comunidade rural um desenvolvimento em
curto prazo associado aos estudos e uso da informática no dia a dia.
Com a implantação do Telecentro na Colônia de Pescadores Z33, foi adquirido um kit
de equipamentos de informática e de multimídia, composto por: 10 microcomputadores,
um servidor, uma switch 16 portas, nobreak, impressora compatível com software livre,
cabos conectores, estabilizadores, máquina fotográfica digital, um projetor multimídia,
um telão, webcam e head set. Posteriormente, ao longo das aulas e formações de turmas,
houveram outros acréscimos ao kit.
Ao todo, foram mais de 50 alunos beneficiados pelo projeto, que divididos em turmas facilitava o acesso às aulas. Muitos não tinham noção do que era um computador
e devido à falta do mesmo a essa tecnologia com o projeto, passaram a se integrarem
a nova ferramenta. Aprendendo a utilizá-la no dia a dia inserida em atividades como
pesquisa escolares passadas pelos monitores e outros assuntos de interesse. Outro
ponto relatado durante entrevista com alguns dos formados no Telecentro foi o despertar para a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que muitos nem
tinham conhecimento, pois a partir daí, começaram a realizar a própria inscrição e
a importância e o resultado desta avaliação, como oportunidade para ingresso num
curso superior. Também foi citado a Carteira do Pescador, outro benefício que trouxe
segurança e aquisição dos direitos dos pescadores artesanais da localidade, além do
reconhecimento da categoria.
TRABALHO DE CAMPO
Para a realização desta etapa, foram feitas entrevistas semiestruturadas com alguns
alunos e ex-alunos do Telecentro, além de monitores, secretária e o presidente da Colônia de Pescadores Z33, Manoel Vicente Rodrigues Filho (seu Dega), como é conhecido
na localidade. Em determinadas visitas ao laboratório onde eram submetidas as aulas
do Telecentro Pesca Maré, pude comprovar pessoalmente pelo método de observação
o desenrolar dos alunos diante do computador quando na ausência da monitora, navegavam em sites e páginas na internet, sendo isto fora do conteúdo de ensino do dia.
Percebi que muitos possuíam conta nas redes sociais, que ficavam minimizadas sem que
a professora os visse e num momento de distração voltavam à conversa no bate papo
do facebook, alternando teoria, prática e diversão, tudo no mesmo horário de ensino,
segundo os mesmos definiram.
MARCAS FOLKCOMUNICACIONAIS NO TELECENTRO PESCA MARÉ
Os estudantes de informática do projeto de inclusão digital no Telecentro Pesca Maré
vivenciaram alguns processos folkcomunicacionais descritos na obra de José Marques
de Melo, “Mídia e Cultura Popular História, Taxionomia e Metodologia da Folkcomunicação”,
tais como: “Folkcomunicação Visual”, onde é possível incluir não apenas as expressões
“manuscritas”, mas também as “impressas” e as “pictográficas”, todas captadas pela visão
e que ajudava no aprendizado dos alunos no momento que as monitoras explicavam
passo a passo um determinado programa de computador as duplas que dividiam uma
máquina, antes que eles partissem para a prática em si. Nesta etapa da captação de
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Telecentro “Pesca Maré” em Abreu e Lima: análise das marcas folkcomunicacionais no contexto do desenvolvimento local/inclusão social
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informações visuais os jovens se prendiam na maioria das vezes a algo que o chamassem
a atenção, configurando estarem inseridos numa tribo juntamente com outros jovens
da mesma idade ou não, caracterizando como resultado algumas redes sociais, jogos
online, sites de exibição de vídeos, sites de músicas e outros.
Ainda neste modelo os estudantes se abstêm do: canal óptico, de códigos linguísticos e pictóricos. No gênero “Folkcomunicação Visual” outros formatos encontrados
foram os escritos (quando eram passados no quadro branco alguns ensinamentos da
aula) e impressos (apostilas contendo o ensino teórico dos programas). Também foi
possível visualizar nas instalações do Telecentro um quadro de avisos, caracterizando
um jornal mural e um cartaz que informava sobre determinado assunto de interesse
dos frequentadores do local, o que no capítulo 5 do livro de Melo (2008) está dentro do
que se denomina como: gêneros, formatos e tipos.
Outra importante marca e característica folkcomunicacional identificada no trabalho
foi a “Folkcomunicação Cinética”, que no formato rito de passagem o tipo encontrado
foi a formatura. Momento bastante aguardado por todos que cursavam as aulas e mais
ainda pelos pais ao verem seus filhos formados e aptos no uso de um computador e
pela grande festa que realizavam.
RESULTADOS
Nesta etapa utilizou-se como forma de obter a resposta dos resultados obtidos,
uma pergunta individual para cada um dos entrevistados descritos acima no trabalho
de campo, “O que você enxerga de resultados neste trabalho do Telecentro?”, além da análise
de observação própria e depoimentos de alguns moradores da localidade, que não
eram estudantes do curso de informática, mas que apreciavam o trabalho e tinham
conhecimento dos benefícios alcançados. O próprio Dega reconhece no projeto um
avanço inovador e satisfatório como algo somatório para o trabalho e luta da Colônia
em favor dos trabalhadores (as) rurais e pescadores (as) artesanais do Porto Jatobá, em
Abreu e Lima.
É notório os avanços que o projeto trouxe ao bairro, assim como na vida destes
jovens que até então pouco tinha ou não tinham nenhum acesso a essa ferramenta
ligada às novas tecnologias. Muitos começaram a partir de então, a criar laços de amizades, trabalho, troca de ideias com relação ao que desenvolviam como atividade social
e expandir a comunicação com outros jovens e adultos de lugares diversos da rede
online, a partir do conhecimento adquirido nas aulas de informática no Telecentro.
Descobriram então, como os mesmos afirmaram, novas possibilidades de comunicação
por meio da era digital. Outro importante fato e considerado por todos os associados
da Colônia e moradores da localidade, como a descoberta do ouro foi a emissão da
carteira de pescador. Benefício que antes só era possível com a entrega de uma lista de
associados, feito pela secretária da Colônia Z33, com os nomes de todos os pescadores
(as), na Superintendência da Pesca do Estado. Diante disso, esperavam meses para que
este documento fosse emitido, confeccionado e entregue ao presidente da Colônia, que
após receber as carteiras fazia a entrega aos beneficiados. Com o documento em mãos
passaram a ter direitos e garantias assegurados, pois a cédula passou a ser um comprovante da atividade que exercem e tiram sustento e subsistência.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente, a ideia central deste trabalho era analisar as marcas folkcomunicacionais
existentes na temática do desenvolvimento local/inclusão digital do Telecentro Pesca
Maré, na Colônia de Pescadores Z33, no Porto Jatobá em Abreu e Lima, o qual foram
identificados esses aspectos a partir de categorias sugeridas por Melo (2008), no livro
Mídia e Cultura Popular História, Taxionomia e Metodologia da Folkcomunicação. Fora isso,
durante visitas a campo e em conversas com os atores sociais desta realidade local,
foi possível constatar resultados positivos dentro do que foi proposto o projeto inicial,
levar a inclusão digital para estes jovens esperando uma gama de possibilidades como
produto final.
Considerando como um método educacional, a informática introduzida no cotidiano
dos alunos de Telecentro trouxe habilidades no manuseio desta ferramenta que até
antes de chegar à conclusão do projeto, com as aulas práticas e teóricas, não fazia parte
da realidade desta juventude moradora da localidade. De modo que, a interatividade
dos alunos com outras culturas e mundos além do que viviam nos espaços rurbanos
tornou-se um fato concreto.
A luta contra o despejo de dejetos e substâncias químicas no rio Timbó, que corta
o Porto Jatobá e é o principal local onde os pescadores (as) realizam seu trabalho, teve o
total apoio destes jovens nas redes sociais, como também informações acerca de protestos
e movimentos de trabalhadores desta categoria no estado e fora dele. Contudo, esses e
outros benefícios somam-se a parte de um conjunto de melhorias para a localidade e
de fontes de pesquisas e estudos para outros estudantes e pesquisadores do tema como
descoberta de uma comunidade que se uniu um prol do avanço e desenvolvimento
tornando um sonho, uma liderança, a realidade que todos queriam e esperavam.
REFERÊNCIAS
Beltrão, Luiz (1980). Folkcomunicação, a comunicação dos marginalizados, São Paulo:
Cortez, 1980.
Benjamin, Roberto (2004). Folkcomunicação na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Com.
Gaúcha de Folclore.
Edital Público Nº 08/2008: Publicado no Diário Oficial da União do
dia 24 de novembro de 2008, pag. 10. Seleção pública de entidades interessadas
em implantar “Telecentro da Pesca Maré”. Disponível em: http://tuna.seap.gov.br/seap/
Jonathan/Editais/2008/edital_publico_n8.doc
Lemos, André (2002). Cibercultura tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto
Alegre: Sulina.
Levy, Pierre (1999). Cibercultura. São Paulo: Ed 34.
Melo, José Marques de (2008). Mídia e cultura popular: história, taxionomia e metodologia
da folkcomunicação. São Paulo: Paulus.
Recuero, Raquel (2009). Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina.
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Folkcomunicação, identidade e religiosidade popular:
O grupo Fandango Batido de São Gonçalo de Cananéia-SP
Folkcomunication, identity and popular religiosity:
The Fandango Batido group of São Gonçalo of Cananéia-SP
R e n a t a C a s t r o C a r d i a s K aw a g u c h i 1
Resumo: O presente trabalho apresenta as inter-relações entre comunicação e cultura, em especial às comunidades caiçaras que habitam o município de Cananéia,
litoral sul do Estado de São Paulo. Como objeto de estudo, analisa o grupo de
Fandango Batido de São Gonçalo, que vem se destacando desde 2005 no contexto
local. O fandango caiçara está ligado à organização do trabalho coletivo, assim
como está presente na religiosidade popular, principalmente à louvação a São
Gonçalo, onde é representado como pagamento de promessas. Por intermédio
de pesquisa bibliográfica, apresenta-se as contribuições de alguns pesquisadores
dos Estudos Culturais, tais como Raymond Willians, Stuart Hall, Edward Said
e do Pensamento Latino-americano através das contribuições de Luiz Beltrão,
Nestor Garcia Canclini, José Marques de Melo, em relação a permanência das
“culturas tradicionais” na contemporaneidade, assim como na construção de processos comunicacionais presentes nas interações culturais-religiosas. Enquanto
resultado parcial da pesquisa, verificamos que o Fandango, à partir do grupo
estudado, é fundamental para a construção e firmação da identidade cultural
e religiosidade, caracteriza-se como um elemento folkcomunicacional intercomunitário, pois possibilita o tecer de redes de sociabilidade, configuradas pelos
sentimentos de pertença, coletividade e participação.
Palavras-Chave: Folkcomunicação. Globalização. Hibridismo. Identidade.
Resistencia cultural.
Abstract: This paper presents the interrelations between communication and
culture, in particular the so called caiçara (fisgermen) communities that inhabit
the city of Cananéia, south coast of São Paulo. As object of study, analyzes the
Fandango Batido Group of São Gonçalo, which has been increasing since 2005 in
the local context. The caiçara fandango is connected to the collective work organization, and is present in popular religiosity, mainly to praise the Gonçalo Saint,
which is represented as a payment promises. Through literature, presents the
contributions of some researchers of Cultural Studies such as Raymond Williams,
Stuart Hall, Edward Said and the Latin American Thought from the contributions of Luiz Beltrão, Nestor Garcia Canclini, José Marques de Melo, regarding the permanence of “traditional cultures” in contemporary as well as in the
1. Bacharel em Turismo e Mestre em Comunicação pela UNIP (Universidade Paulista), Especialista em
Gestão Cultural pelo SENAC-RJ, Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Metodista –
UMESP). E-mail: [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Folkcomunicação, identidade e religiosidade popular: O grupo Fandango Batido de São Gonçalo de Cananéia-SP
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construction of communication present cases in cultural - religious interactions.
While partial result of the research, we found that the Fandango, for the studied
group, it is essential for the construction and affirmation of cultural identity and
religion, is characterized as an intercommunity folk communicational element
because it enables the weaving of social networks, set up by feelings of belonging, community and participation.
Keywords: Folkcommunication. Globalization. Hybridism. Identity. Cultural
Resistence.
INTRODUÇÃO
PRESENTE TRABALHO desenvolveu-se à partir de indagações sobre comunicação
O
e cultura, ao nos referirmos em especial às comunidades caiçaras, mais precisamente aquelas que habitam o município de Cananéia localizado na região do Vale
do Ribeira no Estado de São Paulo: O que sabemos dessas comunidades? Como mantém
sua identidade e suas tradições? Como desenvolvem seus processos comunicacionais?
O mosaico identitário brasileiro é formado também pelas comunidades “tradicionais”,
que possuem como base de sua estrutura sociocultural: a natureza. Porém essas
populações foram e são atualmente marginalizadas política e economicamente. Embora,
mesmo tendo pouca presença nas grandes mídias, desenvolvem meios de comunicação
mais rústicos para estabelecerem suas trocas culturais.
Nesse sentido, o trabalho busca analisar como a folkcomunicação está inserida
nos processos de interações sociais das comunidades caiçaras de Cananeia, presente
na sua cultura principalmente nas expressões da religiosidade popular e também no
Fandango, onde destaca-se o grupo Batido de São Gonçalo.
No Brasil são muitas as manifestações culturais oriundas da rica diversidade
presente em nosso território, formas e expressões folclóricas seculares, configuram o
nosso fértil calendário de festas tradicionais. Essas manifestações de caráter popular
revelam aspectos importantes na comunicação de muitos municípios e regiões, pois
mobilizam a comunidade nos espaços aonde se manifestam, provocam uma maior
interação e articulação social.
AS INTER-RELAÇÕES ENTRE COMUNICAÇÃO E CULTURA
Ao iniciarmos nossas reflexões acerca do tema proposto neste trabalho, é importante
considerar a complexidade do conceito cultura, o que implica à nós pesquisadores
e estudiosos associa-lo não apenas no singular, mas também no plural. A cultura é
concebida e manifestada partir dos contextos sociais. Raymond Williams, um dos
membros fundadores dos Estudos Culturais britânicos, contribuiu significativamente
para o debate e ampliação da temática cultura opondo-se ao conceito elitista, considerando
também sua vertente oriunda das camadas populares no livro Marxismo e Literatura.
Cultura para Williams é (1979, p.23) “(...) um processo social fundamental que modela
modos de vida específicos e distintos é a origem efetiva do sentido social comparativo
de cultura e de seu plural, já agora necessário, de culturas”. O autor aponta a cultura
como uma experiência ordinária, que designa os significados comuns a uma sociedade
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humana, abarcando seus modos de vida e suas produções intelectuais e artísticas,
considerando também os meios de comunicação.
Concordando como William, Stuart Hall outro expoente do Contemporary Cultural
Studies da Universidade de Birmingham, na sua obra Da diáspora: identidades e mediações
culturais (2008) afirma que a cultura se entrelaça a todas as práticas sociais e essas práticas
se referem às experiências adquiridas, suas inter-relações e condições históricas. O autor
apresenta que há duas maneiras de conceituar cultura
A primeira relaciona cultura à soma das descrições disponíveis pelas quais as sociedades
dão sentido e refletem suas experiências comuns. Essa definição recorre à ênfase primitiva
sobre as “ideias”, mas submete-a a todo um trabalho de reformulação. (...) a segunda ênfase
é mais deliberadamente antropológica e enfatiza o aspecto da “cultura” que se refere às
práticas sociais. (HALL, 2008, p.126-127).
As interações sociais entre comunicação e cultura fazem parte da relação homem-sociedade, estabelecem representações simbólicas e visões de mundo. As diferentes
manifestações culturais vão além de um modo de vida, refletem ações e reações entre
grupos diversos, ou seja, ser e estar na sociedade implica estabelecer relações de alteridade, portanto, podemos dizer que essas dinâmicas culturais se caracterizam não só pelas
trocas sociais entre sujeitos e grupos, mas também pela luta, confronto e tensões sociais.
No atual contexto global, não há como ignorar a forte relação entre o modelo econômico capitalista e a produção/consumo e perecibilidade de bens e serviços. A hegemonia
está presente nos discursos e produtos midiáticos, é caracterizada pela capacidade de
um grupo social unificar em torno de seu projeto político um bloco mais amplo não
homogêneo, marcado por contradições de classe. O grupo ou classe que lidera este bloco
é hegemônico e muitas vezes é organizado e estruturado com interesses unicamente
mercadológicos e políticos e podem valorizar ou desprezar determinadas práticas culturais dos demais grupos em um jogo de relações de poder.
A “hegemonia” é um conceito que inclui imediatamente, e ultrapassa, dois poderosos conceitos: o de “cultura” como “todo um processo social”, no qual os homens definem e modelam
todas as suas vidas, e o de “ideologia”, em qualquer de seus sentidos marxistas, no qual um
sistema de significado de valores é a expressão ou projeção de um determinado interesse
de classe. (WILLIAMS, 1979, p.111)
Como podemos ver o conceito de cultura, também incorpora-se aos conceitos de
hegemonia e ideologia, que segundo Williams, à partir das ideias de Gramsci, estão
além da ação política. Para o autor a hegemonia se constitui a uma determinada moral,
a uma concepção de mundo, assim como exige também um orquestramento de ações
de ordem cultural que utiliza-se das diferentes mídias para estabelecer e incorporar
mensagens simbólicas, produzindo vivência ideológica (onde significados e valores são
produzidos) através de uma realidade prática.
Na contemporaneidade, verificamos que, após um processo intenso de globalização
e padronização de usos e costumes, surgem movimentos contrários no sentido de
configurar novas e valorizar as identidades locais, Hall em A identidade cultural na pósmodernidade (2011), afirma que a globalização
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(...) tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais
políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. (...) Algumas
identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de “Tradição”, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido
perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política,
da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias
ou “puras”; e essas, consequentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins (seguindo
Homi Bhabha) chama de tradução.” (HALL, 2011, p.87)
Conforme as ideias apresentadas por Hall, em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes
posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais;
e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada
vez mais comuns num mundo globalizado.
Para o autor, a tradução, descreve aquelas formações de identidade que atravessam
e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas de
sua terra natal, retendo fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições,
mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas negociam com as novas culturas em
que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente
suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e
das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e
nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de
várias histórias e culturas interconectadas, portanto estão irrevogavelmente traduzidas.
Em nosso país não é possível definir a cultura e a identidade brasileira como única,
é preciso reconhecer a diversidade presente em nosso país como resultado de várias
vivências e interculturalidades de muitos outros povos que se estabeleceram em nosso
país, em diversas circunstâncias econômicas, políticas e sociais.
Podemos dizer que as interações entre grupos diversos geraram processos híbridos,
ocasionados de forma planejada ou como resultado imprevisto de processos migratórios,
turísticos e do intercâmbio econômico e comunicacional. Nestor Garcia Canclini,
estudioso eminente do pensamento latino-americano, em suas discussões sobre as
identidades culturais na obra Culturas Hibridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade
(2006), nos apresenta uma noção de hibridação como um conceito social, versátil para
abarcar diversas misturas interculturais como a mestiçagem (entre raças) e o sincretismo
(funções religiosas e de movimentos simbólicos tradicionais).
O autor, enfatiza que os entrelaçamentos não ocorrem sem contradições e conflitos, ou seja, podemos dizer que as experiências de hibridação são parte dos conflitos
da modernidade latino americana. A hibridação, segundo Canclini não é uma simples
mescla de estruturas e práticas sociais discretas, puras, que existem em forma separada,
ao combina-las geram novas estruturas e novas práticas, o que podemos denominar de
reconversão cultural.
Para o autor latino-americano, a globalização é assimétrica, certas formas de hibridação e resistência presentes na América Latina, são resultados da injustiça social e
da relação entre dominantes e dominados, como é o caso das comunidades e povos
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tradicionais brasileiros. Os acessos a essas tecnologias não aconteceram de forma igualitária, os meios de comunicação ainda não são acessíveis à toda população mundial,
em nosso país é evidente a concentração da produção e transmissão das narrativas da
realidade, através dos monopólios e oligopólios, que servem aos grupos hegemônicos,
reforçam preconceitos e ferem os direitos humanos
Além da falta de políticas públicas efetivas para a democratização dos meios de
comunicação, essas comunidades tradicionais têm vivido uma situação de agravamento
em relação às possibilidades de permanência e controle de seus territórios, constantemente são ameaçadas por pecuaristas, incorporações imobiliárias ou até mesmo o
autoritarismo ambiental por parte do Estado. As comunidades tradicionais, assumem
uma postura de enfrentamento e criam meios de comunicação rústicos para se fazerem
presentes e resistirem e lutarem pela sua cultura e também pelo seu território.
Essas populações travam lutas contra as formas de dominação contemporânea citadas
anteriormente, as articulações e pressões de grupos hegemônicos são consideradas as
“novas roupagens” do imperialismo, termo usado conforme Eduard Said em Cultura e
imperialismo (2011), para
(...) para designar a prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante
governando um território distante; “o colonialismo”, quase sempre uma consequência do
imperialismo, é a implantação de colônias em territórios distantes. (...) Em nossa época, o
colonialismo direto se extinguiu em boa medida: o imperialismo, como veremos, sempre
existiu, numa espécie de esfera cultural geral, bem como em determinadas práticas políticas,
ideológicas, econômicas e sociais. Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples
ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes
formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e
imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação (SAID,
2011, p.42-43).
Assegurar o acesso ao território significa para esses povos e comunidades manter
vivos a memória, as práticas sociais, os sistemas de classificação e de manejo dos recursos,
os sistemas produtivos, os modos de distribuição e consumo da produção. Perante a um
panorama desfavorável, essas comunidades resistem e lutam para que sejam inseridas e
reconhecidas nos processos de elaboração de bens simbólicos e na circulação e recepção
de suas narrativas identitárias. Estabelecem seus próprios meios de comunicação e
continuam lutando para bradar suas vozes, serem ouvidos e aceitos de fato.
COMUNIDADES CAIÇARAS DE CANANEIA: HIBRIDISMO,
IDENTIDADE E RESISTÊNCIA CULTURAL
De acordo com o Instituto Socioambiental (2013), o Vale do Ribeira está localizado no sul do estado de São Paulo e norte do estado do Paraná, abrangendo a Bacia
Hidrográfica do Rio Ribeira de Iguape e o Complexo Estuarino Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá. A região destaca-se pelo alto grau de preservação de suas matas
e por grande diversidade vegetação, fauna e flora. Seus mais de 2,1 milhões de hectares
de florestas equivalem a aproximadamente 21% dos remanescentes de Mata Atlântica
existentes no Brasil.
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Porém não é só a riqueza ambiental que torna a região do Vale do Ribeira singular.
Seu patrimônio cultural é rico e diverso, em seu território se encontram o maior número de
comunidades remanescentes de quilombos de todo o estado de São Paulo, além de comunidades caiçaras, índios guaranis, pescadores tradicionais e pequenos produtores rurais.
A identidade caiçara é híbrida, fruto da miscigenação entre portugueses, índios e
negros acompanha a ocupação litorânea e desenvolvimento econômico nas regiões sul e
sudeste e possui como características a combinação da agricultura de subsistência, baseada na mandioca, com a pesca artesanal e com baixo impacto ambiental. Caracteriza-se,
portanto, pela relação de interação com a natureza, seus ciclos e recursos renováveis.
Tal como a economia, as atividades culturais e sociais são pautadas na organização em
torno da unidade familiar, domiciliar ou comunal.
Segundo Diegues (2001, p.4) as comunidades caiçaras à partir da década de 1960
viram o seu território reduzir pelas novas formas de imperialismo representada especulação imobiliária e pela transformação de seu espaço em áreas protegidas pelo Estado
através da proibição do cultivo de subsistência. Os caiçaras, à partir do início da década
de 1980, começaram reconstruir sua identidade no sentido de resistência e lutam atualmente contra o mercado imobiliário e o autoritarismo ambiental que não respeitaram
seu direito às suas terras e modo de vida.
No município de Cananéia cerca de 30 comunidades caiçaras se dedicam
prioritariamente à produção camaroeira por meio de pesca em canal e mar aberto.
O termo caiçara tem origem no vocábulo Tupi-Guarani caá-içara, que era utilizado
para denominar as estacas colocadas em torno das tabas ou aldeias, e o curral feito
de galhos de árvores fincados na água para cercar o peixe. Com o passar do tempo,
passou a ser o nome dado às palhoças construídas nas praias para abrigar as canoas e
os apetrechos dos pescadores e, mais tarde, para identificar o morador de Cananéia e
posteriormente, passou a ser o nome dado a todos os indivíduos e comunidades do litoral
dos Estados do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Para Diegues, pesquisador exímio
do Núcleo de apoio à pesquisa sobre populações humanas e áreas úmidas brasileiras
da Universidade de São Paulo,
A cultura caiçara é aqui definida como um conjunto de valores, visões de mundo, práticas
cognitivas e símbolos compartidos, que orientamos indivíduos em suas relações com a
natureza e com os outros membros da sociedade e que se expressam também em produtos
materiais (tipo de moradia, embarcação, instrumentos de trabalho) e não materiais (linguagem, música, dança e rituais religiosos. (...) (DIEGUES, 2004, p.22)
Ao nos referirmos as comunidades tradicionais como as caiçaras, a tradição é
compreendida não como algo imutável, mas como um processo histórico pelo qual
elementos da cultura contemporânea são continuamente reinterpretados e incorporados
ao modo de vida. O autor afirma que na cultura caiçara
Essa tradição herdada dos antepassados, é constantemente reatualizada e transmitida ás
novas gerações pela oralidade. É por meio da tradição que são usadas as categorias de
tempo e espaço e é por meio dessas últimas que são interpretados os fenômenos naturais.
(DIEGUES, 2004, p.22-23).
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A identidade cultural pode ser entendida como um conjunto de valores, visões do
mundo, práticas cognitivas e símbolos compartidos, como no caso da cultura caiçara,
que orientam os indivíduos em suas relações com a natureza e com outros membros da
sociedade e que se expressam também em manifestações materiais (tipo de moradia,
embarcação, instrumentos de trabalho) e não materiais (linguagem, música, dança, rituais religiosos) associadas à periodicidade das atividades de terra e de mar, de ligações
afetivas fortes com o sítio, a praia e o mar.
Nas comunidades caiçaras as relações entre o homem e a natureza apresentam duas
formas de apreensão da realidade e do imaginário: uma empírica: técnica, racional,
através do acumulo dos saberes botânicos, zoológicos e ecológico e etnotecnológico e
outra simbólica, mitológica e mágica. Essas formas são praticadas unicamente, de acordo com Eliade (1991), o espaço e o tempo são os mesmos e ao mesmo tempo diferente,
as formas de representação e expressão cultural do modo de vida caiçara está ligada a
representação simbólico do cíclico: tudo nasce, morre, renasce.
As representações simbólicas de sua cultura caiçara estão unidas aos sinais dos
ciclos, dos ritmos lunares: criação (lua nova); crescimento (lua crescente, lua cheia); Morte
(lua minguante). A lua determina as marés, consequentemente a pesca, as atividades
agrícolas (plantio/colheita), assim como é representada em sua religiosidade popular, esta
última, pautada pelo misticismo e sincretismo da ligação entre o sagrado e o profano,
assim como apresenta heranças de um catolicismo ibérico associado às fortes influências
de elementos das religiões de matriz africana.
O FANDANGO CAIÇARA: ASPECTOS FOLKCOMUNICACIONAIS
E RELIGIOSIDADE POPULAR
A vertente popular da cultura não ficou parada no tempo, assimilou as transformações
tecnológicas e comunicacionais que não a condenaram à destruição e sim proporcionaram
de alguma forma a sua ressignificação. Relacionam-se o global e o local, assim como as
questões entre espaço e identidade. Nessas dinâmicas contemporâneas possibilitamse diferentes experiências comunicacionais. Para Cristina Schimdt, a cultura popular
Para o meio acadêmico e político, principalmente, adquire valor comunicacional, uma vez
que as expressões culturais são tomadas como meio de mobilização e identificação de grupos locais no contexto globalizado, ao que Beltrão (1980) apresenta como um meio próprio
e linguagem adequada ao receptor. (SCHIMIDT, 2009, p.1)
Nesse sentido, a Folkcomunicação enquanto teoria toma como objeto de estudo,
aspectos da prática cotidiana de grupos marginalizados que criam meios próprios para
transmitir seus fazeres e saberes, ou seja, é uma teoria permite verificar e analisar os
processos comunicacionais que ocorrem nas manifestações da cultura popular.
A folkcomunicação adquire cada vez mais importância pela sua natureza de instância
mediadora entre a cultura de massa e a cultura popular, protagonizando fluxos bidirecionais e sedimentando processos de hibridação simbólica. (MARQUES DE MELO, 2008. p.25).
Na cultura caiçara em Cananéia, há diversas expressões do folclore/cultura popular
como o Fandango Caiçara e suas comemorações como a Festa de Reis, Festa de Nossa
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Senhora dos Navegantes, a Festa do Divino a Procissão de Corpus Christi, entre outras.
Essas manifestações remetem-se à religiosidade popular e ocorrem em diversos bairros
de Cananéia e são consideradas como fortes e significativos elementos comunicacionais,
principalmente no que diz respeito as interações sociais e ativação das relações humanas:
às relações entre emissores (quem) e receptores (para); aspectos de permanência e
continuidade; organização e desenvolvimento das atividades religiosas e profanas e os
vínculos originados com os meios de comunicações sejam eles locais ou não.
Para Marques de Melo (2008, p.79), as festividades do ponto de vista da identidade
comunicacional, se caracterizam como processos determinados por fluxos convergentes:
a) A festa enquanto ativadora das relações humanas, produzindo comunhão grupal ou
comunitária em torno de motivações socialmente relevantes. Trata-se de um fluxo de comunicação interpessoal;
b) A festa enquanto mobilizadora das relações entre os grupos primários e a coletividade,
através das mediações tecnológicas propiciadas pelas indústrias midiáticas, em espaços
geograficamente delimitados-locais, regionais, nacionais. Trata-se de um fluxo de comunicação massiva;
c) A festa enquanto articuladora de relações institucionais, desencadeando iniciativas de
entidades enraizadas comunitariamente e antenadas coletivamente, que decidem o que
celebrar, em que circunstâncias, com que parceiros. Trata-se de um fluxo de intermediação comunicativa, produzindo a interação das comunicações interpessoais e massivas.
(MARQUES DE MELO,2008, p.79)
As contribuições de Luiz Beltrão sobre a folkcomunicação2, identificam a
comunicação informal, presente na experiência sociocultural comum, ou seja, os estudos
folkcomunicacionais favorecem a análise dos contextos onde as manifestações populares
acontecem, considerando o espaço e os aspectos simbólicos de significações presentes
na cultura popular e como elas “negociam” com a cultura hegemônica.
Nesse novo papel, podemos notar que a comunicação não pode ser apenas
compreendida por quem a faz e a produz intencionalmente, ou restringi-la apenas
pelo o que é produzido por grandes conglomerados empresariais, mas que os processos
comunicacionais estão inerentes às práticas socioculturais não só do emissor, mas
também do receptor, que deixa de ter uma postura passiva e passa a assumir uma
postura ativa.
O Fandango Caiçara, assim como a devoção à São Gonçalo, são expressões que se
encontram e interagem nas festividades da cultura popular da localidade. São essenciais
na construção e afirmação da identidade cultural das comunidades, fortalece a articulação, a resistência, a identidade, e a manutenção de suas práticas culturais. O fandango, é
uma expressão cultural tem como características as cantigas, os versos improvisados ou
de repertórios tradicionais, ou ainda pelos fandangueiros, que também recriam as letras
2. O termo folkcomunicação foi criado pelo professor Luiz Beltrão de Andrade Lima (1918-1986) que
dedicou boa parte de suas pesquisas ao tema. É considerado um importante segmento das Ciências
da Comunicação a partir de 1960, vem conquistando estudantes e pesquisadores em todo o país. Em
1998, foi criada a Rede Brasileira de Folkcomunicação (Rede FOLKCOM) e as Conferências Brasileiras
de Folkcomunicação.
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de acordo com acontecimentos cotidianos (trabalho, bailes, natureza, além de eventos
históricos e midiáticos). Em novembro de 2012 o fandango caiçara foi reconhecido e
tombado como Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN. Classifica-se em batido (os dançantes usam tamancos e precisam
ser preparados, devido à complexidade e variações dos passos) e bailado ou valsado
(os pares se mantêm em roda e todos participam, sem coreografia específica). Muitas
vezes um homem é o mestre ou puxador, seu tamanqueado é uma referência para os
demais batedores.
Na dinâmica do fandango caiçara, não há dança sem a música e não há música sem
o encontro entre tocadores. São nos bailes de fandango que o conjunto – música/dança
- se aglutinam, nestes eventos sejam divercionais ou religiosos se atualizam as notícias,
as relações de parentesco e a camaradagem e, acima de tudo, se vivencia a construção
da pessoa por meio da dança. Desse modo, tanto homens e mulheres, para dançar não
basta saber os passos, é preciso conhecer os códigos e as marcações como acontece no
batido, onde os homens dançam com tamancos.
Originalmente, o fandango está ligado à organização do trabalho coletivo (mutirão),
onde o dono da terra a ser trabalhada convoca a comunidade para auxiliá-lo. Vizinhos
e camaradas se reúnem para ajudar a erguer uma casa, varar uma canoa, fazer lanço de
tainha, ou durante os preparativos para um casamento. Os bailes são acompanhados de
mesas fartas (pratos à base de peixe, mariscos, farinha de mandioca e de milho, carne
de caça, doces, cachaças curtidas em ervas ou com melado).
As comunidades caiçaras de Cananéia comemoram, com fandango, os aniversários,
casamentos, batizados e em suas festas religiosas. Nesses encontros, a comunidade
atualiza as notícias e reforça as relações de parentesco, a convivência entre o grupo
formado por tocadores e dançadores. A comunidade mantém a memória e a prática
das diferentes músicas e danças, e a continuidade do conhecimento musical em torno
do fandango e sua evolução.
Entre tantas devoções que fazem parte da religiosidade popular caiçara, destacase a devoção à São Gonçalo. De acordo com Francisco Van der Poel autor do Dicionário
da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil (2013) o santo em questão é de origem
portuguesa, viveu na cidade de Amarante em Douro, seu culto iniciou-se em 1279 após
a sua morte. Já em nosso país, o culto foi trazido por marinheiros portugueses no século XVI e é difundida em vários estados, principalmente no sul, nordeste e sudeste de
maneiras diferenciadas e de acordo com os contextos locais. Comemora-se em muitos
lugares do Brasil, o dia de São Gonçalo no dia 10 de janeiro.
O Frei Gonçalo era muito alegre, tocava viola e promovia bailes familiares. É
considerado tanto em Portugal como no Brasil como padroeiros de jovens que desejam
um bom casamento, e especialmente em nosso país é considerado como protetor dos
violeiros, tanto a imagem que o representa é do santo com a viola na mão.
Uma das características da devoção à São Gonçalo, além da musicalidade marcada
pelos versos cantados, pela viola e pela rabeca, é a dança. Em diferentes do Brasil, há
muitas variações, sendo muito dificultoso estabelecer padrões, em algumas regiões
expressa-se como Dança de São Gonçalo, já em outras principalmente nas regiões litorâneas o fandango é dançado também em homenagem ao santo protetor. Nas comunidades
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caiçaras de Cananéia, a louvação a São Gonçalo feita na abertura com fandango como
pagamento de promessas.
Nesse sentido, tanto o Fandango quanto a festa de São Gonçalo, estabelecem a
configuração de identidades híbridas e podem ser consideradas à partir das contribuições de Luiz Beltrão em Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados (1980) como
folkcomunicação de conduta, onde consideram-se o trabalho, o lazer, os autos, as danças
e as atividades religiosas. Já a partir de Marques de Melo (2008), podemos classifica-las enquanto gênero como folkcomunicação cinética, o fandango enquanto formato:
folguedo; e a festa enquanto formato: festejo.
A dança além de expressão corporal e lazer, pode ser considerada um gesto voltado
para o divino, e reúne simultaneamente caráter religioso e profano, assim como possibilitam a participação, o viver e a comunicação com o mundo. Podemos dizer que o
sincretismo é presente em todas as formas de religião e constitui-se como característica
central na religiosidade popular, nas procissões, nas comemorações dos santos e nas
diversas formas de pagamento de promessas e nas festas populares de uma maneira geral
O Lazer e sociabilidade na cultura caiçara são elementos híbridos, e estão intrinsecamente ligados às construções sociais emanadas de uma religiosidade rústica e popular.
Há momentos em que a comunidade se reúne para louvar e festejar o santo padroeiro
ou de devoção, através de rezas, terços, cantorias, devoções, novenas, festas, folguedos
e danças dramáticas, para Ferreti em Religiões e Festas populares (2007), afirma que
A cultura popular se exterioriza em grande parte através de festas religiosas. As festas
religiosas populares são ocasião para o pagamento de promessas e momentos de lazer em
que se desenvolvem laços de solidariedade nos meios populares. A festa religiosa ocorre
em determinados momentos do calendário da comunidade e se repete periodicamente.
Constitui oportunidade para expressar a capacidade de organização, a criatividade popular,
a devoção, o lazer e para se constatar o sincretismo religioso. Nas festas a comunidade se
revitaliza, se recria, se encontra e se vê como um todo. (FERRETI,2007, p.1-2)
Dessa forma, a devoção na religiosidade caiçara é marcada pela intimidade do devoto
com a divindade, a comunicação com o sagrado segue um modelo afastado das práticas
litúrgicas tradicionais, baseadas nos dogmas e premissas da Igreja. Neste contexto, as
práticas religiosas populares se concentram inicialmente no âmbito doméstico e se
rompem nos dias santos em rituais festivos como forma de recreação, socialização.
O GRUPO DE FANDANGO BATIDO DE SÃO GONÇALO:
FOLKCOMUNICAÇÃO, COLETIVIDADE E AFIRMAÇÃO CULTURAL
Além da pesquisa bibliográfica, buscou-se também compreender a natureza empírica
das expressões estudadas, a partir da observação da festa e de entrevista informal com
uma das lideranças do grupo de Fandango Batido de São Gonçalo.
O grupo surgiu em 2005, a partir do Projeto Resgatando o fandango caiçara, que
teve como objetivo valorizar e divulgar a cultura tradicional caiçara para sua população jovem, buscando reforçar a identidade cultural através da dança e também com a
convivência de mestres da cultura popular como violeiros, fandangueiros e artesão de
instrumentos musicais, com realização de oficinas, encontros e apresentações culturais.
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Teve um papel de destaque no processo de reconhecimento do Fandango Caiçara enquanto patrimônio imaterial brasileiro no ano de 2012. Além do envolvimento com práticas
religiosas locais, o grupo é forte na articulação da cultura local e faz parte da Associação
de Cultura Caiçara de Cananéia (ACUCA). O grupo e suas lideranças buscaram através
de diferentes dispositivos, a captação de recursos para restaurar um prédio antigo do
casario histórico do patrimônio de Cananéia para a organização da Casa do Fandango,
local para oficinas de rabeca, casa de farinha e reuniões.
De acordo com Rodolfo Vidal, violeiro, na época da fundação do grupo era preciso
escolher um nome que fizesse sentido. Devido a grande devoção à São Gonçalo por
parte da comunidade, fandangueiros e membros do grupo formado principalmente por
jovens, foi definido conjuntamente que o nome do santo iria abençoar e dar muita sorte.
Foi confeccionado o estandarte com a figura de São Gonçalo que o grupo leva em suas
apresentações, para não só identificar-se, mas também marcar a presença do santo no
cotidiano do grupo. Após dez anos o grupo se autodomina como a prova viva de que a
devoção e a confiança a São Gonçalo é o que os mantém forte e resistentes na cultura local.
Ainda com o membro do grupo, a devoção a São Gonçalo não é só ressignificada no
dia 10 de janeiro, conforme calendário religioso, a comunicação com o Santo de devoção
é feita também em diversas apresentações, seja em bailes e ensaios. A primeira moda é
cantada e dançada em homenagem à São Gonçalo.
Verificamos portanto que para o grupo, o reconhecimento do Fandango Caiçara
possibilitou a manutenção da cultura local, porém ainda lutam para estimular nos
adolescentes e jovens, o respeito e o orgulho de serem caiçaras, vivenciarem sua cultura,
pois acredita que através do fandango presente em suas festividades religiosas e profanas
é possível unir a comunidade e provocar vivência entre gerações.
No décimo dia do mês de janeiro de 2015, comemorou-se a sua louvação na Casa do
Fandango no município de Cananéia, um dos os festejos em homenagem a São Gonçalo,
reuniu dezenas de pessoas de diferentes idades e gerações. A louvação iniciou-se as
dezoito horas, ao anoitecer com o levantamento do mastro com estandarte e dança em
adoração à São Gonçalo.
Tanto jovens quanto pessoas de diferentes gerações participavam. O grupo de Fandango Batido de São Gonçalo com seus jovens, dançavam em círculo em sentido anti-horário ao som de violas e rabecas, as figuras masculinas marcavam com tamancos
e com palmas o ritmo do fandango em frente à imagem e ao estandarte do santo de
devoção, assim como as moças dançavam com suas saias rodadas. Nesse momento
à comunicação entre devotos e santo era estabelecida. Além das orações cantadas, a
musicalidade dos instrumentos e dança, a comensalidade também fez parte das comemorações, o comer junto, o momento de partilha foi realizado com alimentos da terra,
com café feito no fogão a lenha, banana assada e bolinho de chuva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Fandango Caiçara encontrado no litoral paulista, mais precisamente em Cananéia
é uma manifestação cultural popular associada ao modo de vida caiçara e sua organização de trabalhos coletivo, assim como está presente e vivo na organização de clubes
de baile, de festas comunitárias e formação de grupos artísticos. Além de continuar a
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Folkcomunicação, identidade e religiosidade popular: O grupo Fandango Batido de São Gonçalo de Cananéia-SP
Renata Castro Cardias Kawaguchi
tradição em eventos religiosos como as festas de santos padroeiros, romarias do Divino,
Festa de São Pedro, louvação a São Gonçalo.
O fandango dançado em devoção a São Gonçalo é um processo híbrido e inserese enquanto processos e meios de comunicações no cotidiano de Cananéia: fluxos e
trocas, pois através deles circulam pessoas, saberes, tocadores, dançadores, festeiros,
instrumentos, versos, articulando a vida social caiçara num todo sistêmico.
Seja nas visitações entre sítios e bairros urbanizados ou não, em apresentações de
grupos de fandangueiros, em festas comunitárias e religiosas ou em eventos regionais
e nacionais, o fandango e a devoção ao santo dos violeiros, seguem suas trilhas atuando
como ponto de contato, aproximações e encontros de pessoas e comunidades que tecem
relações a partir de historicidades próprias, onde o sagrado e o profano fazem parte da
mesma realidade e experiência coletiva.
O grupo de Fandango Batido de São Gonçalo, além de expressar sua devoção,
através de suas ações possibilita experiências comunicativas de troca e diálogos inter-geracionais, afirma-se aí a dinâmica que envolve as manifestações culturais populares.
Neste circuito entre fandango e a fé, criam-se redes onde as trocas ocorrem em nível
material e simbólico, trocam-se e comunicam-se: gratidão, sentimentos, versos, fotografias, instrumentos, afinações, saberes de uma identidade em constante construção.
REFERÊNCIAS
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Cortez.
CANCLINI, Nestor Garcia. (2006) Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4 ed. São Paulo: Edusp.
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______ . (2004) Enciclopédia caiçara volume 1: o olhar do pesquisador. São Paulo: Hucitec.
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FERRETI, Sérgio. (2007) Religião e Festas populares. XIV Jornada sobre alternativas religiosas
na América Latina; Buenos Aires-Argentina.
HALL, Stuart. (2011) A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A.
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SCHIMIDT, Cristina. (2009) Folkcomunicação: caminhos enunciados pela era digital. XXXII
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2009. Curitiba-PR. Resumos... Curitiba:
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, p.01.
WILLIAMS, Raymond. (1979) Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7440
Folkcomunicação, identidade e religiosidade popular: O grupo Fandango Batido de São Gonçalo de Cananéia-SP
Renata Castro Cardias Kawaguchi
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INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. (2001) Dossiê do
registro do Fandango Caiçara. Recuperado em 10 de mar., 2015, de http://www.iphan.gov.
br/baixaFcdAnexo.do?id=3957.
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra
do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e
popular na construção da imagem do monge José Maria
The religiosity in the journalistic discourse on Guerra do
Contestado: Contrasts between hegemonic and popular culture
in the development of the image of the monk Jose Maria
K a r i n a Ja n z Wo i tow i c z 1
Resumo: Ao longo da construção da Guerra do Contestado – conflito que envolveu o Paraná e Santa Catarina no período de 1912 a 1916 – o aspecto messiânico
contribuiu para a caracterização do fanatismo atribuída aos fiéis do monge José
Maria, líder do movimento. Ao analisar o jornal paranaense Diário da Tarde da
época, busca-se recuperar os sentidos produzidos em torno da religiosidade
popular. A análise da imprensa considera a perspectiva teórica da folkcomunicação na caracterização da cultura popular e na identificação do monge como
um líder de opinião. Ao percorrer as narrativas do Diário da Tarde, tendo como
referencial metodológico a análise de discurso, percebe-se que as representações da religiosidade são marcadas pelo contraste entre cultura ‘sulbalterna’ e
‘hegemônica’, revelando a disparidade entre os universos do sertanejo e dos
grupos sociais consolidados. Busca-se, portanto, desvendar os sentidos e as
vozes presentes nos discursos, no que se refere à construção da religiosidade
popular. A análise revela que os jornais contribuíram para a construção dos
acontecimentos na história oficial pelo viés da cultura hegemônica, silenciando, consequentemente, a cultura dos grupos marginalizados, suas práticas e
saberes populares.
Palavras-chave: processos jornalísticos; Guerra do Contestado; religiosidade
popular; folkcomunicação; imprensa paranaense.
Abstract: During the construction of the ‘Guerra do Contestado’ – conflict involving the Paraná and Santa Catarina States in 1912-1916 – the messianic aspect
contributed to the characterization of fanaticism attributed to the monk Jose
Maria believers’, leader of the movement. In analyzing the Paraná newspaper
Diário da Tarde of that time, the research seeks to recover the meanings produced
around the popular religiosity. The analysis of the press considers the theoretical
perspective of folk communication in the characterization of popular culture
and the monk’s identification as an opinion leader. Following the narratives of
the Diário da Tarde, using the methodological discourse analysis, it is realized
1. Professora Dra. do Curso de Jornalismo e do Mestrado em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG/PR). E-mail: [email protected]
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e popular na construção da imagem do monge José Maria
Karina Janz Woitowicz
that the representations of religiosity are marked by the contrast between culture ‘sulbaltern’ and ‘hegemonic’, revealing disparities between the universes
of backcountry and consolidated social groups. It is intended, therefore, to
unveil the meanings and these voices in speeches, in relation to the construction of popular religiosity. The analysis reveals that the papers contributed to
the construction of the events in the official story from the perspective of the
hegemonic culture, silencing hence the culture of marginalized groups, their
popular practices and knowledge.
Keywords: journalistic processes; Guerra do Contestado; popular religiosity;
folk communication; Paraná press.
INTRODUÇÃO
PRESENTE TEXTO procura mostrar como os discursos jornalísticos que tematiza-
O
ram questões relacionadas à religiosidade sertaneja produzem o aspecto messiânico da Guerra do Contestado (1912-1916), na tentativa de explicitar determinados
valores e visões de mundo que, projetados pela imprensa da época, contrastam com
aspectos da cultura popular.
O contato com diversos exemplares do Diário da Tarde permitiu observar que a presença do messianismo nos discursos mediáticos contribuiu para a projeção de uma imagem
predominante do conflito na história contemporânea. Basta lembrar que as expressões
“fanáticos”, utilizada para caracterizar os sertanejos, e “fanatismo”, para identificar um
dos motivos que levou à guerra, são constantes no processo de escrita do Contestado,
figurando como elementos relevantes para a compreensão da guerra pelo jornal.
Entende-se que seria provavelmente impossível recuperar o sentido da religião
para os sertanejos do Contestado. Diante deste dilema, ficam as lacunas resultantes
da inexistência da voz do ‘outro lado’, o contraponto que faria reviver o debate sobre
coisas, fatos e representações relevantes na recuperação do contexto e dos valores da
época. Neste impasse, que impede de compreender as versões existentes sobre a mesma
questão de modo equilibrado, as considerações de Carlo Ginzburg (1998), traçadas na
recuperação da história da Inquisição e das manifestações da cultura popular e erudita do século XVI pelas confissões de um moleiro desconhecido, soam pertinentes e
esclarecedoras. Afinal, considerando que não é possível se pôr a conversar com aqueles
que fizeram a história, resta servir-se de registros intermediários deste ‘mundo’. Mas
as fontes escritas, para Ginzburg, “são duplamente indiretas: por serem escritas e, em
geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos, abertamente ligados à cultura
dominante” (GINZBURG, 1998, p.17).
A relação entre cultura ‘sulbalterna’ e cultura ‘hegemônica’ tratada pelo autor - na
qual a segunda ocupa espaço privilegiado em termos de documentação, em detrimento
da primeira, que se perde na fluidez da oralidade – serve também para compreender a
disparidade entre os universos do sertanejo do Contestado, vítima da exclusão social,
e dos grupos legitimados pela sociedade, que traduzem os valores já consolidados.
Seguindo a mesma perspectiva de Carlo Ginzburg, os discursos produzidos pelo
Diário da Tarde serão considerados como depositários de “resíduos de indecifrabilidade”,
uma vez que o dito e o silenciado sobre a religiosidade no Contestado fazem parte de
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e popular na construção da imagem do monge José Maria
Karina Janz Woitowicz
um mesmo campo simbólico formado por diferenças e ambiguidades constitutivas das
culturas ‘popular’ e ‘erudita’. Poderíamos, então, perguntar: em que medida o aspecto messiânico do movimento do Contestado apresenta relevância para a análise da
imprensa? Basta observar que, ao marcar presença na cultura (popular) da região, os
ensinamentos dos monges provocam também reações principalmente nos representantes do catolicismo oficial, travando assim uma disputa entre poderes e verdades. E
isso, inevitavelmente, também acaba repercutindo nas páginas dos jornais através de
relatos e representações por vezes até caricaturais das crenças e das ideias dos ‘caboclos
fanatizados’.2 Desse modo, apresentando fatos e pensamentos que envolvem as vertentes do catolicismo, a questão religiosa perpassa os discursos jornalísticos referentes à
guerra, contribuindo para a construção dos acontecimentos na história oficial pelo viés
da cultura ‘hegemônica’.
Esta caracterização da cultura popular dialoga com a perspectiva teórica da folkcomunicação, na medida em que compreende o lugar atribuído aos grupos marginalizados
e as tensões que se estabelecem, por meio do jornalismo, em meio ao reconhecimento
da religiosidade oficial e a invisibilidade das crenças e práticas populares.
Ao longo do artigo, são recuperados elementos históricos que permitem traçar
a participação de um líder religioso (José Maria) no desencadeamento dos fatos que
envolveram a Guerra do Contestado, destacando aspectos que marcam a cultura sertaneja e que permitem caracterizar o monge como um líder de opinião, na perspectiva
de Luiz Beltrão (1980). Com base neste cenário, são observados, a partir do referencial
metodológico da análise de discurso, os discursos sobre a religião no jornal Diário da
Tarde, de modo a contrapor a cultura hegemônica e a cultura subalterna e a perceber os
estereótipos presentes na caracterização dos sertanejos, reconhecidamente entendidos
como um grupo marginalizado.
MESSIANISMO NA REVOLTA SERTANEJA: O PAPEL DO LÍDER
FOLK JOSÉ MARIA
O conceito de líder de opinião adotado neste trabalho para caracterizar o monge
José Maria diz respeito a uma forma de atuação horizontal, com papel na difusão de
informações e conformação de opiniões em pequenos grupos sociais. Trata-se da figura
do folk-mediador, conforme trabalhado na perspectiva de Luiz Beltrão (2004).
É a partir da observação dos meios informais de comunicação utilizados pelos
grupos subalternos que Beltrão reconhece o papel dos agentes de comunicação popular. Para o autor, são diversos os “meios através dos quais as camadas menos cultas e
economicamente mais frágeis da sociedade urbana e rural se informam e cristalizam
a sua opinião para uma ação” (2001, p. 74).
Luiz Beltrão classifica os grupos em três categorias: grupos rurais marginalizados; grupos urbanos marginalizados e grupos culturalmente marginalizados (rurais e
urbanos).3 Estes últimos são assim caracterizados por representarem “contingentes de
2. Este costuma ser, na maioria das vezes, o tratamento dado pelo Diário da Tarde aos integrantes do
movimento do Contestado, acompanhado de argumentos relacionados à incultura e à ignorância da
população.
3. Os grupos culturalmente marginalizados são assim descritos por Beltrão (1980, p. 103): “Constituem-se
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e popular na construção da imagem do monge José Maria
Karina Janz Woitowicz
contestação aos princípios, à moral ou à estrutura social vigente” (2004, p. 84). Como
exemplo, o autor identifica, como grupos contestatórios, os messiânicos, político-ativistas
e erótico-pornográfico.
No caso da Guerra do Contestado, entende-se que o movimento sertanejo é marcado pela articulação de um discurso de liberdade ancorado na religião. Percorrendo
as expressões dessa religiosidade nos discursos históricos, percebe-se que a questão
messiânica e o modo como as expectativas dos rebeldes em torno do líder povoam o
imaginário sertanejo e as páginas da imprensa é fundamental para a compreensão do
processo de ‘escrita’ do movimento na história contemporânea. Isso parece justificar a
necessidade de analisar os sentidos produzidos em torno da religiosidade e as questões
de fundo que a cercam.
Para compreender as marcas discursivas e os vestígios de sentido do jornal Diário da
Tarde a respeito da religiosidade cabocla – denominada de “catolicismo rústico”4- parece
oportuno rever o aspecto messiânico do movimento através dos personagens que se
incorporaram à vida humilde dos sertanejos misturando a crença religiosa à crítica
social: a trajetória dos monges João Maria de Agostini, João Maria de Jesus e José Maria.5
O primeiro monge, João Maria de Agostinho, passou pela região Sul por volta
de 1840. Italiano, natural de Piemonte, usava barbas longas e roupas rústicas, sendo
considerado um profeta, pregador da palavra de Deus e um curandeiro para pessoas
de muita fé, utilizando-se de orações, água benta e ervas. De acordo com Ivone Cecília
D’Avila Gallo, a sua figura “simboliza o primeiro passo dado por aquela população, no
sentido de uma mobilização contra a ordem estabelecida” (GALLO, 1999, p.95), fazendo
de sua doutrina uma crítica à organização social da época.
João Maria de Jesus, o segundo monge – cujo nome verdadeiro era Anastás Marcaf
- foi confundido na religiosidade cabocla com o primeiro João Maria, ao ponto de os
fiéis acreditarem que fosse o mesmo monge, com mais de 100 anos. Adepto das forças
maragatas de Gumercindo Saraiva, carregava uma bandeira branca com uma pomba
vermelha no centro, dizendo ter recebido, através de um sonho, a missão de caminhar
pelo mundo pregando os ensinamentos de Jesus Cristo. Profetizava castigos de Deus,
entre eles a guerra santa de São Sebastião e pragas de gafanhoto, fome e eclipses. Na
de indivíduos marginalizados por contestação à cultura e organização social estabelecida, em razão de
adotarem filosofia e/ou política contraposta a ideias e práticas generalizadas da comunidade. Desse modo,
forçada ou voluntariamente, tais grupos se acham apartados dos demais que, entretanto, procuram atrair
às suas fileiras, utilizando no proselitismo métodos e meios acessíveis ao público rural e urbano a que
se destinam suas mensagens, sejam convencionais ou de folk, que manejam com habilidade e audácia”.
4. A expressão “catolicismo rústico” diz respeito a uma vertente do catolicismo que apresenta uma
forma sincrética de apego ao sagrado. A partir do momento em que este tipo de catolicismo assume
dimensões coletivas e políticas, passa a ser considerado “fanatismo”. Conforme observa Duglas Teixeira
Monteiro, afastando resolutamente preconceitos intelectualistas e elitistas, “é preciso reconhecer que o
catolicismo popular brasileiro, de um modo geral, e em sua modalidade rústica, em particular, tem suas
raízes mais importantes plantadas no solo da Grande Tradição judaico-cristã, onde sobressaem, às vezes
contraditoriamente, a esperança messiânica no Reino de Deus numa terra renovada, e as expectativas de
uma expiação individual. Apresenta, por isto mesmo, características que estão presentes no cristianismo
europeu mediterrâneo e, com maior razão, nas manifestações populares do catolicismo em toda América
Latina” (MONTEIRO, 1978, p.50).
5. Os elementos utilizados para a caracterização dos monges foram retirados dos principais estudos sobre
a Guerra do Contestado. Embora apareçam de maneira parcial e limitada, compreendem o esforço de
traçar, a partir da presença e influência dos líderes religiosos, o caráter místico e messiânico da Guerra.
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e popular na construção da imagem do monge José Maria
Karina Janz Woitowicz
avaliação de D’Avila Gallo (1999, p. 96), o segundo monge “é considerado o monge
político, pelo seu discurso apocalíptico que situa o advento da República como o marco derradeiro, anunciador da guerra escatológica, quando, então, os justos e os eleitos
serão recompensados”.
Desde 1840 até por volta de 1908 estes monges deixaram registro em todo sul do
Brasil, muitos no Contestado. Depois deles, o terceiro monge a aparecer no sertão foi
José Maria de Agostinho, por volta de 1912. Ex-militar no Paraná, Miguel Lucena de
Boaventura (seu nome verdadeiro), assim como os monges anteriores, pregava a igualdade e o bem, chegando a organizar o povo em acampamentos e marchas baseando-se
nesses princípios. Formou também uma guarda pessoal, formada por 24 sertanejos,
que foram chamados de 12 pares da França. Simpático à monarquia e crítico do regime
republicano, inspirava-se nas aventuras do rei francês Carlos Magno. Em sua peregrinação, envolve-se com o clima de exploração e miséria dos sertanejos6.
De maneira semelhante ao monge João Maria de Jesus, difundia em sua pregação apocalíptica vários castigos dos céus, identificando a República como a “ordem do
Demônio” e a Monarquia como a “ordem de Deus”. Pela sua atitude junto à população
dos sertões, e também pelo desfecho dos acontecimentos, foi considerado o monge
‘guerreiro’. Esta caracterização é encontrada inclusive nos jornais da época, embora de
maneira menos ‘lisonjeira’, como revelam as expressões “sanguinário”, “rebelde impostor”, “belicoso”, “inimigo da ordem”, entre outras.7 Foi este homem que entrou na história
como líder de um dos mais importantes movimentos políticos e messiânicos do País.
A trajetória dos monges pela região contestada é considerada pela historiografia
um dos motivos que levou os sertanejos a pegar em armas para lutar por uma nova
sociedade. O messianismo8 constitui um elemento marcante na compreensão do contexto
social da época, assim como o modo como é entendido pelas classes dominantes. Desse
modo, adequando-se à prática social e à esfera ideológica da população dos sertões, a
religião converte-se em esperança de ‘regeneração’ do mundo (a terra sem males, o reino
dos céus), orientando os rumos do movimento. Para Vinhas de Queiroz,
Numa região e numa época em que os valores religiosos e mágicos perpassam toda a
ideologia, onde a religião possuía sentido tão pragmático que as roças eram benzidas e se
acreditava curar as pessoas rezando sobre as feridas, onde servia inclusive para justificar
as desigualdades e legitimar a estrutura social existente, não há que estranhar tenha sido
impregnada de crenças religiosas e de misticismo a atmosfera explosiva e emocionalmente
carregada que as tensões produziam. (QUEIROZ, 1981, p.250)
6. De acordo com Gallo (1999, p. 72): “Apesar de ser considerado um homem bom e pacífico, cuja intenção
principal era estimular a fé, sua presença na região provocou o receio das autoridades, temerosas dos efeitos
supostamente nefastos dos seus ensinamentos para a ordem estabelecida. Essa conduta das elites parecia
uma regra no Contestado, pois o temor, na verdade, provinha da reunião de gente”.
7. Estas expressões apresentam-se diluídas nos textos jornalísticos do Diário da Tarde que fazem referência
ao monge do Contestado.
8. O conceito de messianismo, para Vinhas de Queiroz, “compreende todo e qualquer conjunto de crenças
religiosas, ideias e atividades, através dos quais uma coletividade dada expresse a sua recusa diante de
intoleráveis condições de existência, manifestando a esperança de que um herói sobrenatural abrirá as
portas de uma vida livre de misérias e de injustiças” (QUEIROZ, 1981; p. 250).
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e popular na construção da imagem do monge José Maria
Karina Janz Woitowicz
Relacionados alguns elementos da cultura e do imaginário sertanejo, interessa
compreender de que modo a figura do monge, a crença dos sertanejos e a religiosidade
que eles constroem são representadas pelo jornalismo, no trabalho simbólico de atribuição de sentido aos fatos. É baseando-se na presença e na influência dos valores do
‘catolicismo rústico’ que se pode ver e compreender parte da história do Contestado e
explicar determinadas relações sociais e construções discursivas.9
É importante considerar que os valores de uma ‘nova’ sociedade projetada pelo
advento da República implicam também em uma visão negativizada de práticas que
se chocam com as perspectivas de ‘civilização’. É na luta contra velhos hábitos coloniais
que as formas ‘não-oficiais’ de religiosidade passam a ser condenadas pela sociedade
(e, obviamente, também pela imprensa). Na análise de Sevcenko (1983), não era de se
esperar a tolerância para com as formas de cultura e religiosidade populares. “Afinal, a
luta contra a ‘caturrice’, a ‘doença’, o ‘atraso’ e a ‘preguiça’ era também uma luta contra
as trevas e a ‘ignorância’; tratava-se da definitiva implantação do progresso e da civilização” (1983, p. 33).
A proibição de festas populares, como a de Judas e do Bumba-meu-boi, e o combate
policial a todas as formas de religiosidade popular (líderes messiânicos, curandeiros e
feiticeiros) fazia parte do processo de urbanização e desenvolvimento que se estendeu
por todos os estados brasileiros. Essa negação de manifestações religiosas também
encontra respaldo nos discursos que envolvem o Contestado, instituindo uma polêmica
pautada, na maioria das vezes, pelo viés do ‘fanatismo’ em torno do líder religioso José
Maria. Desse modo, o conjunto de observações, opiniões e pré-conceitos sobre a cultura
popular contribui para a compreensão de uma das nuances do conflito: a divergência
existente entre a racionalidade republicana e o modo de vida caboclo ou, em outros
termos, a incompreensão e o desprezo das elites em relação aos pobres.
OS SENTIDOS DA RELIGIOSIDADE POPULAR NO JORNALISMO
O messianismo é um aspecto indissociável dos movimentos sociais e um fenômeno
que se repete na história, quando o povo clama por justiça. No caso do Contestado, o
messianismo se pauta na crença na ressurreição de José Maria, quando videntes (em sua
maioria crianças e mulheres) passam ‘ordens’ recebidas do monge aos demais integrantes das ‘cidades santas’ (redutos). A simbologia das orações, dos rituais e das práticas
de guerra também reafirmam o caráter místico e religioso do movimento, constituindo
importante fonte para a compreensão da cultura popular.
Interessa neste trabalho analisar a presença deste discurso religioso nos jornais
paranaenses, na tentativa de identificar as marcas e os argumentos que perpassam os
conflitos do Contestado. Observando os jornais, pode-se compreender como a Guerra do
Contestado foi sendo traçada, à revelia de uma “guerra santa” idealizada pelos sertanejos.
9. A simbologia presente nas mais diversas práticas dos integrantes do movimento do Contestado figura
entre as principais características do conflito. Ela se manifesta no símbolo da ‘guerra santa’ – José Maria -,
nos princípios religiosos e comunitários que regem a vida nos redutos, nas orações, na crença no Exército
Encantado de São Sebastião e até mesmo nas práticas de guerra. Nas ‘cidades santas’, os sertanejos reuniamse duas vezes ao dia ao toque de um velho tambor. Punham-se em forma e, enfileirados, percorriam o
gramado gritando vivas a todos os santos, a José Maria e à liberdade.
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e popular na construção da imagem do monge José Maria
Karina Janz Woitowicz
Mesmo antes da eclosão da Guerra do Contestado, já aparecem relatos sobre a atuação de José Maria junto à população sertaneja. De início, não há um tom abertamente
alarmista sobre o assunto, e nem mesmo a condenação explícita de suas pregações.
Aparece apenas a descrição curiosa de um monge que foi notícia até mesmo nos jornais
da capital, devido aos seus anseios religiosos e ‘revolucionários’.
Não há quem não tenha ouvido falar em nosso Estado desse José Maria Agostinho, o monge de longas barbas e de cajado à mão (ilegível), errante pelos sertões, inculcando-se um
ser divino e vindo ao mundo para redimir a humanidade. José Maria (ilegível) percorria
os nossos sertões fazendo prédicas e distribuindo cinzas e água com que, dizia, curava
qualquer moléstia. José Maria dizia-se profeta e onde quer que ele pousasse, os crédulos
plantavam uma cruz. Distribuía raízes milagrosas, dava água santa e tisanas de efeitos
curativos extraordinários. Assim, ele andou por Canoinhas, Timbó, Putinga, Três Barras e
outros lugares, que eram o campo de peregrinação do ‘santo’.
Quando uma moça queria casar contra a vontade dos pais, bastava um benzimento do monge
para que ela desistisse da sua intenção. (...) O peregrino dos sertões chegou a conquistar
inúmeros adeptos que o acompanhavam, em romaria, de um lugar para o outro. Ele resumia
toda a filosofia nesta frase: o homem é bom; os homens é que são ruins. E assim pensando
é que o velho vivia isolado do mundo. Tal foi o renome de José Maria que a imprensa deste
Estado dele se ocupou. Pelos jornais do Rio, se verá que o “santo” transformou-se em um
revolucionário. Tal como o Antônio Conselheiro, de Canudos. (DT, 25/09/1912)
Tal como Antônio Conselheiro, a imagem de José Maria desloca-se de “santo” para
revolucionário, e desta para bandido, fazendo transparecer, ainda que de maneira sutil,
os prenúncios de inquietação diante da possibilidade de reunir indivíduos descontentes
com o sistema social vigente e promover um movimento capaz de assumir um caráter
contestatório, que se intensifica na medida em que os fatos se desenvolvem. Ênfases como
esta variam conforme os momentos, os eventos e o jogo das forças sociais que atuam
no Contestado, fornecendo leituras e imagens diferenciadas do líder dos sertanejos e
do movimento social que originou. É o que revela o trecho publicado no Diário da Tarde:
O monge José Maria, também conhecido como João Maria, e que é o mesmo que tem percorrido
muitas vezes os sertões de nosso Estado, é o chefe desse movimento de fanáticos que, segundo
telegramas do Rio, tem por fim restaurar a monarquia. A princípio pareceu ser isso coisas de
um fanático qualquer que, com alguns adeptos, andasse por aí iludindo uns pobres caboclos.
Todavia, os despachos de hoje já emprestam bastante gravidade aos acontecimentos que se
estão dando no vizinho estado de Santa Catarina. E é tamanha a gravidade que o governo
federal resolveu mobilizar tropas do exército que seguem para a região dominada pelos
fanáticos. (DT, 26/09/1912)
Os jornais já tratam o assunto, neste período, como uma ameaça à ordem e à paz.
A informação de que indivíduos armados ameaçam as cidades por onde passam traduz a dimensão da violência, que ganha adesão nos receios da população. Do mesmo
modo, a ordem de deslocamento do Regimento de Segurança para a “cidade ameaçada”
é revestida de brilhantismo nos jornais, representando, diante dos numerosos adeptos
armados, uma garantia de segurança e vitória antecipada.
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e popular na construção da imagem do monge José Maria
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Acionadas as forças do exército, o jornal passa a se pautar exclusivamente nas formas
utilizadas para conter o movimento, à revelia dos reais objetivos do monge e de seus
seguidores. É neste clima de exaltação e insegurança que se dá o primeiro combate, em
Irani, que resulta na morte de José Maria, conforme ele mesmo havia anunciado.
O jornal procurava assinalar um tom de “desordem” ao movimento, imprimindo
uma imagem de descrédito à religiosidade de José Maria, que vai se repetir nas páginas
impressas quando novos personagens aparecem como ‘mensageiros’ de suas ordens.
Depois de um ano da morte do monge, quando a guerra inicia propriamente, os antigos
seguidores místicos e messiânicos se organizam, crentes na ressurreição de José Maria.
Não havendo mais uma figura para racionalizar as características de revolta, são os
novos líderes que se tornam alvos de avaliação do jornal.10 Através de informantes, o
Diário da Tarde toma conhecimento dos acontecimentos que se passam na região e procura
traduzir as inquietações. A respeito da provável reorganização dos seguidores de José
Maria, o periódico divulga, pelas informações de um correspondente de Curitibanos:
Desde o dia 3 do corrente Euzébio Ferreira dos Santos, ex-companheiro do falecido monge
José Maria, acompanhado de um filho de nome Manoel, de 18 anos de idade e que se diz
vidente intérprete da vontade do monge, reuniu muitos indivíduos que acreditam na ressurreição do monge e vieram ocupar o lugar Taquaruçu, onde armados e em atitude hostil
fazem procissões e beijam quotidianamente os pés de Manoel. Esses mesmos indivíduos
fanatizados ciliciam-se e aplicam castigos, tudo para fazer a vontade do monge por intermédio do vidente Manoel, que prega a guerra santa de São Sebastião, a qual deve ser feita
à arma branca.
Desta cidade por meio de cartas aconselhou-se a esses indivíduos que se dispersassem, não
logrando bom resultado essa interferência. Do mesmo modo deram resultados negativos
as interferências de pessoas enviadas ao local, bem como a missão do padre Rogério, que
confiava ser obedecido e foi desobedecido, insultado e ameaçado de morte. Quando aqui
tenho ciência de que o grupo era calculado em 180 pessoas; atualmente o movimento atinge
a 400 pessoas de todas as idades e sexos. (DT, 17/12/1913)
Além dos argumentos utilizados para explicitar o estágio de ‘fanatismo’ dos sertanejos, é interessante notar que a partir da reunião de pessoas em Taquarussu são
registradas várias tentativas de ‘pacificação’, com os sucessivos líderes do movimento.
Neste momento, o aspecto religioso volta a ser tematizado pelo jornal, se sobrepondo
à imagem de banditismo e criminalidade presente em outras situações da guerra. No
ressurgimento de enunciados dessa natureza, sobressaem os sentidos da ‘ignorância’ e
da ‘incultura’, justificando assim o fanatismo da população.
Percebe-se, através dos valores e procedimentos dos sertanejos, a importância da
religiosidade em suas vidas. Toda essa simbologia, no entanto, não conquistava a simpatia dos representantes do catolicismo oficial, que se empenharam em tentar uma
10. Na primeira fase do movimento, liderada pelos fazendeiros Euzébio Ferreira dos Santos e Chico Ventura,
acredita-se que Teodora, neta de Euzébio Ferreira dos Santos, teria recebido uma visão do monge debaixo de
uma árvore, e pouco tempo depois, uma mensagem pedindo aos seus adeptos para que se reorganizassem
em Taquarussu para a guerra santa. Na sequência, assume o movimento o filho de Euzébio, Manoel, que
tendo recebido de José Maria orientações, preparava os sertanejos para práticas de guerra. Vários outros
líderes assumiram o movimento, mantendo as orações e rituais nas várias ‘cidades santas’ erguidas no sertão.
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‘pacificação’, quando perceberam a possível dimensão do movimento. Neste contexto,
a figura que mais se envolveu com a organização dos sertanejos foi o padre franciscano
que se instalou em Lages/SC no final do século XIX, frei Rogério Neuhaus, homem este
que conheceu José Maria antes dos primeiros conflitos e registrou o clima de animosidade entre as diferentes vertentes religiosas.
Marli Auras (1997) registra o trabalho do frei Rogério junto aos moradores da zona
contestada, que foram excluídos da formação religiosa, destacando o objetivo pedagógico de “diminuir as trevas da ignorância” religiosa da população. Segundo a autora,
O frei exercia uma atividade de mediação: do mundo inculto, ignorante do catolicismo
rústico, ao mundo culto, civilizado, do catolicismo erudito. Levar os ensinamentos doutrinários da igreja oficial aos pecadores do Contestado era, portanto, o seu grande trabalho
pedagógico. (...) Frei Rogério também era tido como santo por muita gente. Mas sua ortodoxia e a facilidade com que circulava nas ante-salas do poder criavam, nos sertanejos, um
comportamento defensivo que se manifestava numa confiança desconfiada. Na medida
em que os sertanejos, naquele contexto histórico opressor, exploravam mais a autonomia
relativa de seu catolicismo rústico, o padre aliava-se explicitamente ao Estado, ambos contra
o inimigo comum. (AURAS, 1997, p.57)
O crescente descrédito do discurso pautado no catolicismo erudito nas comunidades
do interior evidencia um contexto de marcantes contrastes com a vida do sertanejo. A
recusa da religiosidade ‘oficial’ representa uma forma de resistência e luta face ao cotidiano opressor a que os seguidores de José Maria estavam submetidos. No entanto, o
jornal, assumindo as ‘verdades’ do referido frei, acaba por ironizar a crença sertaneja,
condoendo-se da ignorância dos fanáticos. A opinião do religioso, diluída no relato e na
transcrição das falas “do outro lado” no texto que segue, não deixa dúvida quanto aos
sentidos que foram sendo tecidos desde o surgimento do monge e de seus seguidores
até os primeiros contratempos entre os sertanejos e as forças armadas. É neste cenário
que a Igreja, há anos distante da vida dos caboclos, procura cumprir o seu compromisso
‘humanitário’.
Como se sabe, logo que se deu o levante de Taquarussu, Frei Rogério, um velho missionário muito estimado pelos sertanejos, foi enviado pelo superior a Taquarussu, com o fim
de pacificar. O pobre frei Rogério foi muito mal recebido pelos fanáticos, que o quiseram
esbordoar. O missionário descreve assim a sua missão:
“A causa principal de todo esse movimento é a crassa ignorância do povo em matéria de
religião, abusada por alguns homens mal intencionados que tinham a astúcia de antes
indispor o povo contra os padres aos quais está entregue a cura espiritual daqueles sítios.
Foi assim que no ano passado o já célebre pseudo-monge José Maria incitava o povo contra
os padres da Igreja Católica, pregando depois doutrinas em desacordo com as leis do país
e perigosas para a sociedade.
Quando o governo de Santa Catarina tomou enérgicas providências contra ele, retirou-se
com alguns fervorosos adeptos de Taquarussu para Irany, onde, com onze companheiros
de Taquarussu, pereceu no combate dado pela polícia do Paraná.” (DT, 03/01/1914)
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Este primeiro trecho do relato do frei ponta para o temor da propagação de “doutrinas em desacordo com as leis do país e perigosas para a sociedade” que poderiam ainda
“indispor o povo contra os padres”. Além disso, insiste na ideia de que a ignorância
religiosa, por si só, orientou as ações dos sertanejos e conseguiu reuni-los por quatro
anos. O texto pode ser observado a partir dos valores da religião erudita, caracterizando
o movimento como uma exaltação de ‘homens de espírito rude’. Na continuação do relato
da missão do frei Rogério, outros elementos tornam ainda mais evidentes os interesses
da Igreja em manter a ordem. Aqui, trata-se de um longo diálogo do religioso com os
‘fanáticos’, em que se torna explícita a recusa aos valores ortodoxos do catolicismo.
Notícias alarmantes chegaram à vila de Curitibanos, as autoridades ficaram com receio
de que os fanáticos viessem à vila. Fizeram ciente o exmo. Sr. Governador que, tendo em
consideração a seriedade do movimento, logo mandou seguir forças.
Por ordens do meu superior fui a Taquarussu a fim de aconselhar aquele povo fanatizado.
No dia 8 de dezembro, às 10 horas da noite, cheguei, debaixo de uma chuva torrencial, à
casa do sr. Praxedes Gomes Damaceno.
Disseram-me que o grupo de Euzébio estava ali a dois quilômetros, na casa do Chico Ventura.
Combinamos visitar no dia seguinte aquele povo, bem cedo, e de convidá-lo para assistir a
missa que eu queria celebrar na capela do Bom Jesus no Taquarussu. Às 7 horas do dia 9 de
dezembro fui convidado a ir para o acampamento. Logo expus o motivo da minha visita.
Disse o seguinte:
“Um homem bom quer bem aos seus filhos e quando os vê em perigo apressa-se para acudi-los. Eu vos considero como meus filhos, quero bem a vós todos; até estou pronto a dar a
minha vida por vós; por isso vim ontem debaixo de muita chuva, sacrificando a minha saúde.
Convido-vos para assistirdes a santa missa e depois cada um volte para a sua casa, pois se
ficardes aqui estareis num grande perigo. Por isso peço-vos pelo amor de Deus, pelo amor
de vossas famílias, pelo amor de vossas almas, que vos retireis.”
O velho Euzébio disse: “Eu não posso dizer nada, o nosso comandante, o filho dele alucinado, só ele é que pode decidir.”
Outro gritou: “Os soldados terão coragem de vir aqui?” Outro disse em voz alta: “Estamos
debaixo da proteção da Virgem, graças a Deus!” E todo o povo, homens, mulheres e crianças
bradaram várias vezes, com as mãos erguidas: “Graças a Deus”.
Logo depois aconselhei, particularmente, algumas pessoas conhecidas que se retirassem;
nesta ocasião apresentou-se diante de mim o comandante Manoel, filho de Euzébio, mocinho
de dezessete anos, com a cara de uma pessoa transformada de idéias, e disse: “O que quer
o senhor aqui? Retire-se, cachorro, senão apanha!”
Mais ou menos trinta homens, com facões e espadas em punho, rodearam o seu comandante.
Perguntei quem era aquele moço. Ele me respondeu: “Sou eu quem manda aqui”.
“Então, senhor – disse eu – mande que este povo se vá embora: pois ficando aqui, ele sofre!”
Eu – “O senhor também vai sofrer!”
Ele – “Retire-se, corvo!”... E o velho Euzébio exclamou: “Liberdade! Nós estamos num outro
século!”
O povo, apoiando, dava tiro pelos ares. Depois pedi a várias senhoras que se retirassem,
senão haviam de sofrer muito. Uma mocinha disse: ‘Se nós morrermos morreremos na fé
de Deus’. (DT, 03/01/1914)
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Trata-se de um amplo diálogo que explicita a enorme distância entre a religiosidade
cabocla e os valores dos representantes da Igreja Católica. A proximidade tentada pelo
frei, no momento em que argumenta ser um homem bom que apenas “quer bem aos
seus filhos e quando os vê em perigo apressa-se para acudi-los”, ao ponto de “sacrificar a
própria vida” enfrentando a chuva, acaba não encontrando eco nos anseios da população.
Interessante notar que as frases “se ficardes aqui estareis em grande perigo” e
“mande que esse povo se vá embora: pois ficando aqui ele sofre” marcam com clareza a
forma da pacificação pretendida e os limites da “escuta” do frade. A tentativa do religioso
de ‘esclarecer’ a população, alertando sobre os perigos que estariam correndo, confere
a ele um papel específico na mediação dos atores envolvidos no conflito; contudo, a
incompreensão do universo sertanejo e o descrédito à fé sustentada pelo ‘catolicismo
rústico’ torna impossível o estabelecimento de um diálogo pacífico entre os dois lados.
É de se destacar que nas tentativas de pacificação divulgadas pelo jornal ressurgem
sempre os argumentos do fanatismo e da ignorância dos sertanejos, de modo a justificar
a adesão do periódico ao discurso e aos valores instituídos. Exemplo disso é o reaparecimento do mesmo assunto no Diário da Tarde, apenas dois dias depois do instigante
episódio registrado e produzido pelas palavras do frei Rogério, contendo, de maneira
parcial, os dois lados da questão, as duas visões do catolicismo. Desta vez, o jornal
reproduz as impressões do missionário e reproduz as falas anteriores, reafirmando
assim a legitimidade das intenções humanitárias do frei, mal compreendidas pelo povo.
Uma centena de indivíduos, míseros sertanejos, reúnem-se num certo ponto do território de
Santa Catarina, a fim de seguir o seu vidente, um perfeito tipo de desequilibrado, atacado
de exaltação religiosa. Homens, mulheres e crianças reúnem-se em torno do vidente. Um
missionário, o virtuoso frei Rogério, é enviado pelo superior de sua ordem para pacificá-los.
O velho missionário é mal recebido; os fanáticos não aceitam o seu conselho e recusam a
sua religião. Frei Rogério contou-nos singelamente o que se passou entre ele e os pobres
exaltados.
Pelas palavras dos fanáticos, pelas respostas aos conselhos do missionário, pelas ameaças
às censuras que este articulara contra os erros de sua crença absurda, torna-se evidente o
estado de perturbação daqueles rudes espíritos, de sertanejos abandonados à sua própria
sorte e entregues à mais completa ignorância. Frei Rogério atribui o movimento “à crassa
ignorância do povo em matéria religiosa, abusada por alguns homens mal intencionados
que tinham a astúcia de indispor o povo contra os padres, aos quais está entregue a cura
espiritual daqueles sítios.”
(...) É um homem insuspeito que fala, um religioso que não tem interesse em ocultar a
verdade. (05/01/1914)
Certamente o religioso não tem a intenção de ocultar a verdade. Por outro lado,
fica evidente, pelo texto reproduzido, que sua formação religiosa ortodoxa o impede de
perceber o sentido da religião das pessoas humildes. Assim, mesmo que as descrições
apresentem uma inegável fidelidade com os acontecimentos presenciados pelo frei, o
relato parte de um ponto de vista fixado no ‘atraso’ das populações sertanejas (ou “rudes
espíritos”), que seriam incapazes de compreender o que se intitula de “verdadeira”
religião.
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Mesmo encerradas as mediações dos religiosos ou de outros atores sociais com os
sertanejos, a religião continua a ocupar espaço nos jornais, na divulgação de práticas
dos integrantes do movimento do Contestado. Contudo, outros sentidos vão sendo
produzidos pelo jornalismo, que se movimenta entre o aspecto religioso e um discurso
pautado na rebeldia e na violência. Entre registros militares e informações de grupos
políticos, aspectos místicos do movimento são tematizados no Diário da Tarde, muitas
vezes como simples detalhes das operações militares ou policiais11.
Acompanhando o processo de ‘escrita’ do Contestado, pode-se dizer que em meio
às diferentes maneiras de tratar o messianismo o jornal vai tecendo linhas de significação profundamente marcadas por uma produção ‘hegemônica’ de sentidos. Assim,
guardadas as diferenças entre os objetivos e intencionalidades que pautaram os diversos
discursos jornalísticos aqui relacionados, interessa destacar que, em todos os casos,
acontece a manutenção de uma narrativa marcada pela oposição entre dois mundos
que não partilham dos mesmos valores e práticas sociais no campo religioso. Assim,
são estes mesmos espaços que contradizem a religiosidade popular no Contestado que
oferecem importantes elementos para compreender o distanciamento da Igreja em relação à realidade do povo dos sertões e as questões sociais que motivaram um tipo de
rebeldia ancorado na crença em um líder místico e messiânico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos discursos jornalísticos que construíram a religião e a simbologia dos
sertanejos do movimento do Contestado procurara mostrar a disputa de valores, verdades e sentidos no/pelo Diário da Tarde, relacionando o tratamento dado pelo jornal às
formas de religiosidade popular no transcorrer do conflito. Por este caminho, foi possível
encontrar nas páginas do jornal a construção de uma ‘ordenação’ social que coloca em
relação e em circulação dizeres autorizados e dizeres anônimos, dando a ilusão de consensos ou dissensos polarizados em meio às falas que permeiam a temática da religião.
No aspecto religioso abordado na pesquisa, procurou-se levantar elementos para
perceber a disputa (ou o confronto) de valores que se estabelece em meio à discursivização da Guerra do Contestado. De “causa principal” do movimento a “pretexto para a
revolta”, a religiosidade vai sendo construída na imprensa paranaense e se integra a um
pensamento social que, cada vez mais, se desvincula dos anseios originais dos sertanejos.
Pode-se dizer que a crença no monge ‘revolucionário’ e os sentidos produzidos em
torno da religiosidade sertaneja pelos jornais permitiram a inscrição discursiva dos
acontecimentos na produção da história da Guerra do Contestado, revelando concepções contrastantes. Constata-se que o líder folk José Maria e seus fieis foram falados nos
jornais, mas não representados em sua cultura e posicionamentos. Afinal, no caso do
Contestado, o campo de ação dos sertanejos, entendidos como grupos marginalizados,
figura nas práticas cotidianas da cultura popular e nos modos de expressão das mensagens pela oralidade, crenças e práticas religiosas, intransponíveis nos discursos oficiais.
11. É o caso deste fragmento discursivo do jornal Diário da Tarde, em que os objetos encontrados com os
sertanejos não chegam a ser tratados pelo valor simbólico que representam (prática esta que insistiria nos
argumentos ligados ao fanatismo): “Até hoje, 1763 fanáticos apresentaram-se em vários redutos. Carregavam
enorme quantidade de cruzes, orações, patuás. Estão sendo processados” (07/01/1916).
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A religiosidade no discurso jornalístico sobre a Guerra do Contestado: Contrastes entre cultura hegemônica e popular na construção da imagem do monge José Maria
Karina Janz Woitowicz
REFERÊNCIAS
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Woitowicz, K. J.; Gadini, S. L. (2015). Contrastes (e tensões) entre os fluxos comunicacionais massivos e populares na constituição da esfera pública. In: Renó, D.; Martínez, M.;
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Woitowicz, K. J. (2014). Imagem Contestada: a Guerra do Contestado pela escrita do Diário
da Tarde (1912-1916). Ponta Grossa: Editora UEPG.
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A relação da fé e a estética dos ex-votos:
Comunicação e arte-popular kitsch
The relationship of faith and the aesthetics of ex-votos:
Communication and popular art kitsch
G e n i va l d a C â n d i d o
J o s é C l a u d i o A lv e s
da
de
S i lva 1
Oliveira2
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar como os objetos ex-votivos
possibilitam o estudo dos processos comunicacionais, sendo este um dos víeis
pelos quais as manifestações da cultura popular se expandem se socializam
e convivem e sofrem modificações por influência da comunicação massiva e
industrializada. Observou-se então a necessidade à reflexão sobre o compromisso
dos museus com a cultura e a comunicação, já que os objetos expostos foram,
em algum momento, acervo da sala de milagres.
Palavras-Chave: Folkcomunicação. Ex-votos. Kitsch. Sala de Milagres. Museu.
Abstract: This study aims to analyze how former votive objects enable the study of
communication processes, which is one of the viable by which the manifestations
of popular culture expand, socialize and live and suffer modifications under the
influence of mass communication and industrialized. Then observed the need
to reflect on the commitment of museums with culture and communication, as
the exhibits were, at some point, miracles room acquis.
Keywords: Folkcommunication. Ex-votos.Kitsch. Miracles room. Museum.
A FÉ COMO PROCESSO DE VIDA E DE ARTE NA COLONIZAÇÃO.
DESCOBERTA DAS Américas pelos europeus abriu as portas aos colonizadores,
A
e com eles o catolicismo se expandiu, mais precisamente a partir do Concilio
de Trento, e efetivamente na América Latina, tendo como alguns dos pontos
marcantes a afirmação dos sete sacramentos, o uso das relíquias, a veneração a Virgem
Maria, a posição do Papa foi mais fortalecida, dentre outros pontos que até hoje fazem
parte da vida episcopal, como afirma Jonathan Hill:
O Concílio concordava com os protestantes de que a fé era necessária para a salvação, mas
discordava que ela apenas era suficiente. Ao contrário como consta na Carta de São Tiago,
2:24 “boas ações são também necessárias”. O concílio explicava que a Carta aos Romanos 3:28,
afirmava que a fé é o ponto de partida necessário. Sem a fé, as obras são inúteis. Novamente a
compreensão tradicional da missa, dos sacrifícios era firmemente mantido. (HILL, 2009, 259).
1. Museóloga. Mestranda do PPGMUSEU da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista FAPESB.
Integrante do GREC/NPE e Projeto Ex-votos do México.
2. PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas; Professor Associado da UFBA e Chefe de Departamento
do curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia, e-mail: [email protected].
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A relação da fé e a estética dos ex-votos: Comunicação e arte-popular kitsch
Genivalda Cândido da Silva • José Claudio Alves de Oliveira
Com base no que foi aludido por Hill, e nos fatos históricos considerados, sabemos
que durante o período colonial, o clero secular estava imerso, principalmente subalterno
nas grandes reservas que eram planejadas em formas de quadrados, com cruzes em
cada extremidade e tendo ao centro uma grande igreja, completando a área por vivendas
para o clérigo local, e o restante da população local ao redor.
Observamos que o processo da arte cristã, nesse ponto, como procedimento de
repovoação e recriação do país Luso no Brasil Colônia, pode ser considerado como um
processo que vai da representação simbólica à representação histórica com fim edificante,
como frisado anteriormente.
Por esse viés, podemos perceber a importância do papel da igreja no Brasil, como
sendo um dos fatores determinantes na política e na educação. Visto que a igreja tinha
à sua disposição a arma da excomunhão e à época as chaves do paraíso. Também era o
único poder existente no período colonial, que além do latim, conhecia ao mesmo tempo a diplomacia, ciência, técnica, arte, letras e negócios; tais elementos do Catolicismo
sobreviveram e se ressignificaram com a evolução dos tempos.
No entanto, os “colonizadores” tinham como base primordial ensinamentos e
pregações que forneciam uma ideologia ancorada na teologia, onde era justificada e
dava suporte aos padrões socioeconômicos existentes na época. Foi uma luta de forças à
procura de um equilíbrio provisório, o que poderíamos dizer, atualmente, um pensamento
Hegeliano em que “a religião era mais que moralidade, era a união do mundo com o
espírito absoluto” (ARGAN, 1997, pg. 256).
Com exceção dos jesuítas que procuravam ajudar os nativos daquele período a
evoluírem o mais possível, pelo desenvolvimento de sua própria cultura, não importando os modos europeus, na verdade era uma tentativa de manter a tradição local, os
costumes e valores aqui já existentes. Maria Helena Flexor (2001, p. 04), cita que entre
os programas de reorganização “social”, à época, dos fatores que mais auxiliaram no
desenvolvimento do Brasil, além da recusa da cultura Luso, foram as reorganizações
administrativas, judiciais e políticas.
Porém, quando a igreja toma uma atitude precisa de direcionamento com relação
à arte, ela produzirá, portanto, a atitude do Estado, substituindo a finalidade civil pela
religiosa, negando que a arte possa ter um valor em si, um caráter sagrado, porém, reconhecerá que a arte pode, sim, ser dirigida para a educação religiosa e moral dos fiéis.
Hill (2007, p.260) frisa que foi de maneira notável que se desenvolveram os processos de
acompanhamento dos capelães, que estavam atrás da conquista de novos fiéis e escravos, a
igreja católica estava vigilante, e com ela instruções educativas e difusão das artes para tal.
Aqui, é importante fazer menção à arte, porque ela sobressai às fortalezas das
igrejas. A arte é vista como um dos marcos das resistências da colônia e do catolicismo
respectivamente, que, além da arquitetura, mostra o poder, a monumentalidade e a
riqueza de Ordens e do militarismo a partir do século XVIII.
Naquele século, foi muito constante o apelo com o uso de imagens, que em um
processo contra reformistas trouxe como base uma catequização mais agressiva, mais
teatralizadora e encenativa, onde a publicização de passagens bíblicas e o “sofrimento”
do Cristo era o grande tema referido, como uma arte programaticamente devota, a “arte
sem tempo”, interessada apenas em levar para a prática artística a austeridade, o rigor,
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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A relação da fé e a estética dos ex-votos: Comunicação e arte-popular kitsch
Genivalda Cândido da Silva • José Claudio Alves de Oliveira
e a simplicidade da vida religiosa, a procura de uma pureza do ser (algo inexistente).
A questão das relações entre Igreja e Estado, foi um ponto de discórdia entre o
Império e o Vaticano, na medida em que o pensamento existente no Papado lentamente
conquistava um número crescente de membros da Igreja. Porém, um fator inesperado
aconteceu na colônia - a proclamação da República do Brasil -, em que novas lideranças
do novo país, muito influenciadas pelas ideias positivistas, não viam utilidade para o
padroado e para tudo o que tal pensamento e orientação religiosa acarretavam.
Em 1890 deu-se a separação formal da Igreja e do Estado. No seio do Papado acontecia paralelamente a “Crise da Fé”. “Dois meses mais tarde, em uma carta pastoral
coletiva, os bispos acolheram bem a nova situação, declarando que a Igreja Católica no
Brasil recebeu garantias de uma série de liberdades que nunca tinha obtido durante a
monarquia” (HILL, 2007, 261),tais liberdades como a de cultos e as de apoio ou não as
manifestações sejam elas populares ou eruditas.
A própria religião, portanto, não é mais imposta de cima com a autoridade de um
soberano e de uma casta sacerdotal, mas vem de baixo, como expressão de um “eu”
popular. Sendo a própria expressão à sociedade, e esta não é uma lei inflexível, ao contrário, é assentida por todos, tendo o seu desenvolvimento e absorção ao longo da história,
onde vai se recriando de acordo a evolução dos tempos e as regiões transitadas. Toma,
portanto, formas diferentes, mas jamais sem perder a sua harmonia e estética singular.
COMUNICAÇÃO E ESTÉTICA PRESENTES NA ARTE POPULAR
Desde a tenra idade, há necessidade de comunicação, seja pelos gestos, pela oralidade, pela escrita, pela arte ou outros meios. A palavra comunicação de acordo com
Rodrigo Vilalba (2006, p.5), deriva do termo latino comunicare e significa “tornar comum”,
“associar”. Assim, pode-se dizer que comunicar é a ação social de tornar comum, é o
processo que possibilita a compreensão mútua e o estabelecimento de relações de interferência entre indivíduos e grupos mediados ou influenciados por diversos fatores. O
processo de comunicação envolve a formação e a apresentação de sentidos e permite,
assim, o desenvolvimento de todas as práticas e manifestações sociais e culturais.
Nesse viés de comunicação abordaremos a arte popular, que é compreendida como
manifestação popular, uma dentre tantas formas existentes de comunicação, e que
também é geradora de fortes sentimentos de identidade. Não sendo apenas um meio
de disseminar a fé, mas um meio de criar e recriar formas de difundir e perpetuar
valores, crenças, memórias, uma renovação de estruturas que conserva a substância
primordial da tradição.
Com tal discurso, entendemos que as relações com o divino quase sempre são, neste
caso, relações simbólicas de troca, algumas vezes do imaterial pelo material, do simbólico
pelo signo, porém, sem perder o seu conteúdo, anulando a impessoalidade da relação.
Assim é a arte popular, de acordo com Paz (1991):
O objeto artesanal tende a desaparecer como forma, e a confundir-se com sua função. Seu
ser é seu significado, e seu significado é ser útil. Está no outro extremo da obra de arte. O
artesanato é uma mediação: Suas formas não se regem pela economia da função, mas pelo
prazer, que sempre é um gasto e não tem regras. O objeto industrial não tolera o supérfluo:
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A relação da fé e a estética dos ex-votos: Comunicação e arte-popular kitsch
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o artesanato se compraz nos enfeites. Sua preferência pela decoração é uma transgressão
da utilidade. (PAZ, 1991, p. 51).
Com isso, vê-se que a arte popular não compreende elementos da arte tradicional
nem da arte erudita ou da arte moderna. Na verdade ela se constitui a partir da intensa
comunicação e troca de valores entre ambas.
Para alguns autores e artistas ela é entendida como uma arte que está situada
marginalmente nos dois contextos culturais. ARGAN (2003) contextualiza que:
[...] para ter um maior entendimento da arte não deve ser levado em conta apenas aquilo
que o ambiente cultural da obra considerava como significativo, mas também aquilo que,
por esse mesmo ambiente, poderia ser visto como relativamente casual ou contingente; as
características da matéria, as dimensões, o estilo a sua própria disposição no ambiente. Este
rearranjo cultural, provocado pela obra, gera por sua vez novos significados nela. (ARGAN,
2003, pg. 10).
Nessa abordagem de arte popular/cultura popular trabalharemos aqui os ex-votos,
que são objetos produzidos pelo povo para o povo, em que, em alguns momentos também
são denominados como objetos de arte popular.
EX-VOTOS ARTE POPULAR E FOLKCOMUNICAÇÃO.
Então, como poderíamos conceituar neste texto os ex-votos, para que se tenha uma
melhor compreensão acerca do objeto e do seu contexto abordado aqui? Bem, o termo
ex-voto advém do substantivo masculino, e se refere a objetos que possuem variadas
definições tipológicas, dentre as quais estão inseridos os formatos os gêneros, e que são
depositados em igrejas, cruzeiros, capelas, grutas, ou, locais aos quais milagres foram
reconhecidos, e, em muitos casos creditados. (Figuras: 01, 02, 03 e 04).
Com o decorrer do tempo tais objetos, também passaram por mudanças, não
perdendo a sua real intenção, mas apenas as maneiras pelas quais foram e são elaborados
ou criados. Os mesmos recebem definições diferentes, de acordo com a cultura do local
em que são ofertados, a exemplo de definições como “graça alcançada”, “milagre”, “graças”,
“promessas”, “pedidos”, dentre outros termos.
Figura 02. Imagem Projeto Ex-votos do
México. Santuário de Santa Terezinha - AL.
Figura 01. Imagem Projeto Ex-votos do
México: Santuário de Monte Santo – BA.
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Figura 04. Imagem do Projeto Ex-votos do México.
Ex-votos do Santuário de Monte Santo, Ba.
Figura 03. Imagem Projeto Ex-votos do
México. Sala de Milagres do Santuário
de Santa Terezinha. Mata Grande, Al.
O termo ex- tem por significado algo que foi concretizado, realizado o pagamento;
já o termo voto, é a representação sígnica do acordo realizado entre o fiel e o santo de
devoção, a materialização do imaterial por assim dizer; concretizado assim o contrato
devoto/santo, a quitação do acordo é realizada através da desobriga de um artefato em
local específico e pré-determinado no momento da súplica.
Estudos sobre os ex-votos não eram tão conhecidos ou divulgados cientificamente
no século passado. Eles passaram a ser mais disseminados, quando o jornalista Luiz
Beltrão, no ano de 1967, defendia sua tese de doutorado, na UNB, fato este que além
de criar uma nova disciplina – Folkcomunicação –, também estava disseminando as
culturas populares, inclusive, para a academia; apresentando as riquezas contidas em tais
culturas, que até então era apenas estudas pelos folcloristas ou antropólogos da época.
Marques de Melo (2008), referenciando ao surgimento da Folkcomunicação, explica
que foi com Luiz Beltrão (1967), que a análise da comunicação popular, proveniente
das atitudes rurais apresentou-se ao mundo urbano, começou a se delinear, com uma
maior interpretação do folclore. A Folkcomunicação passou a ser vista como disciplina
que analisa as produções entre duas culturas, uma elitizada das classes dominantes,
da academia do erudito, a outra massiva, que parte do povo, do espontâneo, seja das
vias urbanas ou rurais.
A folkcomunicação se caracteriza pela utilização de mecanismos artesanais de
difusão simbólica para expressar, em linguagem popular, mensagens previamente
veiculadas pela indústria cultural, ou seja, o que se torna popular passa a ser apropriado,
modificado e usado para novas construções, com significados que se tornam tradição
entre a comunidade e ganham difusão na questão da fé, da comunicação e da arte.
Oliveira (2009, p. 51), nos apresenta o objeto ex-votivo como sendo, um objeto que nos
possibilita variadas vertentes de estudos e áreas de pesquisas [...], seja na área das artes,
seja na das comunicações – folkcomunicação - que direciona os ex-votos à iconografia
e à comunicação popular, onde o objeto ex-votivo é abordado sob sua característica
híbrida revelando-o mais do que símbolo votivo de fé, mas também como patrimônio
cultural e comunicacional.
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A relação da fé e a estética dos ex-votos: Comunicação e arte-popular kitsch
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No entanto, com os processos de evolução, os da revolução industrial, a necessidade
de otimização do tempo e da vida, fez com que muitos dos artefatos de arte popular
passassem também por processos semelhantes, perdendo assim, as características
singulares incisas a cada objeto, como cita Paz (1991, p. 51):
O objeto artesanal tende a desaparecer como forma, e a confundir-se com sua função. Seu
ser é seu significado, e seu significado é ser útil. Está no outro extremo da obra de arte. O
artesanato é uma mediação: Suas formas não se regem pela economia da função, mas pelo
prazer, que sempre é um gasto e não tem regras. O objeto industrial não tolera o supérfluo:
o artesanato se compraz nos enfeites. Sua preferência pela decoração é uma transgressão
da utilidade.
Com isso, vê-se que a arte popular não compreende elementos da arte tradicional
nem da arte moderna urbana apenas. Na verdade ela se constitui a partir da intensa
comunicação e troca de valores entre ambos. Para alguns autores e artistas ela é entendida como uma arte que está situada marginalmente nos dois contextos culturais. Uma
vez que hoje se percebe que tais objetos fazem parte das formas como a cultura e seus
sujeitos são constituídos.
Situando uma das abordagens aqui sugeridas, o termo Kitsch é de origem alemã,
de significado e aplicação controversos, pois, como estudado em disciplina de história
da arte, o acepção é rotineiramente empregado nos estudos de estética para assinalar
uma categoria de objetos comuns, baratos, de produção em grande escala industrial,
sem traços refinados, ou traços únicos, algo que é intrinsecamente ligado a marcas de
grandes obras artísticas.
As peças kitsch são acrescidas de valores sentimentais, e que copiam referências
da cultura erudita. Porém, as mesmas, por serem produzidas em escala industrial, não
conseguem atingir o nível de qualidade de seus modelos, pois para sua criação, são
utilizados moldes, perdendo então a identidade de peça única, título que é acrescido a
um “objeto de arte”.
Os objetos de arte Kitsch são, em sua maioria, destinados ao consumo de massa,
como é o caso das tipologias ex-votivas em parafina, encontrados em vários Santuários
incursionados, aos quais tem predomínio massivo. A citar as próprias imagens sacras
– escultóricas ou pictóricas; Ou as tipologias escultóricas, supridas ao longo do tempo
por peças industrializadas, as quais em sua maioria representam formas inteiras, de
pessoas - bonecas, animais –; esculturas industrializadas em porcelana ou cerâmica,
casas – em madeira, isopor, papelão, desenhos em papel ou em pedras, chaves – originais, em
cerâmica, em gesso, porcelana, isopor ou papel.
Os votos são pessoais, os pedidos muitas vezes particulares, onde fica a fruição e a
imaginação a cabo de desvendar o porquê de tal objeto estar no local. Também percebemos tal fator, com as representações de objetos pessoais, e ou, por graça de animais
de estimação e em alguns casos animais que ajudam na sobrevivência de famílias –
bovinos, caprinos, equinos e até galináceos, pois em sua maioria as imagens não trazem
legendas ou bilhetes informando o porquê de estarem ali, apenas estão. (Figuras: 05,
06, 07, 08, 09, 10, 11, 12)
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A relação da fé e a estética dos ex-votos: Comunicação e arte-popular kitsch
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Figura 05. Imagem Projeto Ex-votos do México.
Ex-votos do Santuário de Milagres - BA. Esculturas
em gesso, representando Santos Irmãos Cosme
e Damião ao fundo cabeça em parafina.
Figura 06. Imagem Projeto Ex-votos do
México. Ex-votos da Sala de Miagres de
Monte Santo – BA. Tipologia – quadro em
gesso, com imagem da última ceia.
Figura 07. Imagem Projeto Ex-votos.
Figura 08. Imagem Projeto Ex-votos. Sala
Figura 09. Imagem Projeto Ex-votos do
México. Sala de milagres do Santuário de
Santa Terezinha. Tipologia escultura de
animais domésticos: gados, galo, gato, boi.
Figura 10. Imagem Projeto Ex-votos do
México. Sala de Milagres do Santuário de S.
Terezinha. Seios em materiais variados: parafina,
madeira, plástico, cerâmica, cimento, papel.
Sala de Milagres de S. Terezinha, Al.
Ex-votos de brinquedos e flores.
de Milagres de S. Terezinha. Escultura de
cachorro em porcelana, com inscrição.
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Figura 11. Imagem Projeto Ex-votos do
México. Idem, animais domésticos.
Figura 12. Imagem Projeto Ex-votos do
México. Idem, tipologia escultura. Casa
confeccionada em materiais diversos
– madeira, papel, tecido, plástico.
Embora o Kitsch apresente a si mesmo como “profundo”, “artístico” ou “emocionante”, raramente estes qualificativos são adquiridos por características intrínsecas ao
mesmo, pois antes derivam de associações externas que são pré-estabelecidas pelo seu
público. O objeto Kitsch tem por expressão estética a essencial alma do figurativo.
Contudo, ocorre que, com o advento da modernidade, muitos dos objetos das manifestações populares se exauriram e perderam certo espaço no que diz respeito à valorização da arte popular. Ao mesmo tempo em que as mudanças vertiginosas em todas
as sociedades desencadearam um sentimento de ansiedade, perante a permanência das
necessidades urbanas e das tradições.
CONCLUSÕES
Com isso, observamos que os ex-votos se encaixam na arte denominada Kitsch,
em uma vertente que, tal arte quando foi criada, teve a descrição de servir como um
sedativo para as dores do mundo, e nesse caso, o imaginário cristão transborda de
representações adocicadas e sugestivas, da promessa à recompensa, tornando-se assim,
então, os ex-votos produtos para consumo e conforto imediato, arte sem a necessidade
de profunda reflexão, porém, com o mesmo significado e necessidade: pagar o voto feito
ao Santo de devoção.
Pode-se considerar, portanto, que o ex-voto, artefato utilizado no pagamento de
promessas, também pode ser reconhecido como um veículo de comunicação, mesmo
passando por mudanças temporais, evolutivas da forma de agradecimento, e recebendo
denominações inerentes a si, como objeto de arte exposto em museu. A singularidade
“comum” das ditas comunicações populares, faz despertar o olhar para a peça que é
acrescida de fé e de valores estéticos artísticos.
Porém, na contemporaneidade, muitas vezes são denominados de arte Kitsch, arte
popular, que tem uma diversidade tipológica, a comunicabilidade e tradicionalidade
como características enraizadas ao objeto de estudo, já que a prática ex-votiva não é
de imposição religiosa ou institucional, mas sim uma prática popular relacionada à
memória, costumes e crenças de um povo.
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A relação da fé e a estética dos ex-votos: Comunicação e arte-popular kitsch
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A partir dessa colocação, os processos de entendimento e compreensão da cultura
popular, passaram a ser vistos como processo de comunicação e expressão popular.
O ex-voto fez e faz parte de toda essa evolução, tanto artístico-pictórico quanto evolutivo,
migrando do passado para o presente, mantendo diálogos com todos os tipos variados
de grupos.
Interpretando as formas em que se expressaram as gerações precedentes, assim, são
os objetos de arte e cultura popular, que são depositados no interior das igrejas e nas suas
salas de milagres. Tais objetos carregam em sua totalidade, além da fé, da comunicação
cultural, uma reserva de riqueza que são preenchimentos para as lacunas do que foi para
nós o pertencimento a algo verdadeiro, completo, enraizado e familiarizado, a cultura
implantada há milênio, a cultura popular.
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Paz, Otavio. (1991). Convergências – ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro. Rocco.
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Vilalba, Rodrigo. (2006). Teoria da Comunicação: conceitos básicos. São Paulo. Ática. 05.
ISBN: 85-08-10610-6
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7463
O sentido dos grupos de penitência no sertão do Ceará.
A discussão desde os relatos de Freire Alemão
e os penitentes da atualidade
Marcos Martinez Munhoz 1
Resumo: A discussão deste artigo terá início por meios da leitura dos diários
de viagem de Freire Alemão, no qual descreve a penitência do Cearense em
Lavras da Mangabeira-CE, ocorrido no ano de 1859. Este artigo abordará as
primeiras formações dos penitentes na região e as mudanças que ocorrem pela
ação do tempo. É um movimento popular, ou seja, feito por homens a partir de
interpretações religiosas, que sofre a perda dos seus líderes e corre o risco de
“extinção”. Atualmente tem ocorrido mudanças, por exemplo em Barbalha, na
mesma região do sul-cearense. A cidade e a população regional incentivam os
penitentes a conservar a tradição e não se perder no tempo. O costume é feito
ainda na mesma data da quaresma ou semana santa, mas agora também juntamente com outra festividade popular em Barbalha – A festa do Pau da Bandeira.
A discussão resume na história dos grupos de penitentes. Utiliza-se a teoria da
Folkcomunicação para se demonstrar o uso dos meios de comunicação como
mídia na preservação e mudanças percebidas nos costumes. Através da revisão
bibliográfica se percebe a necessidade da pesquisa dos relatos do século XIX
para se compreender as expressões atuais. Este texto irá comparar o penitente
dos relatos do Freire Alemão e a preservação do sentido através das tradições
folclóricas. Assim, o objetivo é assimilar a tradição religiosa popular e a festividade no ambiente social como preservação de memória.
Palavras chave: Folkcomunicação; religiosidade; comunicação; sentido; memória
A PENITÊNCIA E O FUNDAMENTO DA AÇÃO
STE ARTIGO irá ampliar a discussão no ato da penitência ao corpo e seus funda-
E
mentos básicos do imaginário religioso no Ceará. Será introduzido o pensamento
através de revisões bibliográficas de autores que discutem e apresentam o assunto.
Após demonstrar o início do costume, formas de comunicação na formação original dos
penitentes do sertão do Cariri. O texto irá abordar as mudanças que ocorreram com a
exposição do grupo pelos meios jornalísticos e sociais, e as mudanças que ocorrem com
os penitentes e o modo que produzem o sentido após a exposição pública, e o antes de
serem apresentados aos meios de comunicações.
Francisco Freire Alemão, médico e naturalista, participou de uma expedição cientifica, com outros pesquisadores, na intenção de conhecer a geografia em detalhes e os
recursos naturais espalhados pelo Brasil, por populações em territórios desconhecidos.
Foi através da sua participação no (IHGB) Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, que
1. PUC/SP (Brasil).
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7464
O sentido dos grupos de penitência no sertão do Ceará. A discussão desde os relatos de Freire Alemão e os penitentes da atualidade
Marcos Martinez Munhoz
em 1859, foi indicado como o percursor da Comissão Cientifica de Exploração2. A partir da
escrita em um diário que ele redigiu, que a memória daquele período se transmite. É a
partir da sua visita na cidade de Lavras da Mangabeira- sul do Ceará, que, acompanha
com sua curiosidade a uma manifestação religiosa próximo aonde dormia. Esta manifestação ocorre após a meia noite. Era uma oração. Freire Alemão relata em seu diário:
[...] ouviu-se depois da meia – noite (era sábado) oração cantada na Igreja. Era o canto forte, entoado, monótono, grave e que me infundia sentimento religioso, mas atentando-se
bem ouvia-se também tinido de disciplina, então acresceu ao sentimento religioso certo
horror[...]. Enfim nos recolhemos fazendo cada um reflexões diversas segundo seu modo
de ver a respeito desses homens. Mal nós tínhamos deitado quando ouvimos na calçada
da nossa casa um dos penitentes pedindo esmola e pedindo padre- nossos, cantando num
tom lamentável e sepulcral que nos fazia ainda mais horror. Levantaram e saíram a vê-lo e
darem-lhe alguma esmola o Lagos, Reis e Manoel. O quadro medonho no escuro da noite.
Viram um homem pardo, de constituição atlética, nu, tendo só a ceroula e está arregaçada
até o alto das coxas, com uma grande pedra na cabeça e na mão um tijolo com que batia
nos peitos, com tanta força, que a mim, que estava na minha rede, parecia que batia no
chão e ao mesmo tempo continuava com lamentações medonhas, ás vezes acompanhadas
de grande pranto. Deram-lhe a esmola e fizeram algumas questões a que respondia; mas
se perguntavam quem era, dizia: “Sou um pobre penitente” (ALEMÃO, 2006, p.217-218)
Segundo esse relato, a tradição da penitência ao corpo ocorre tanto dentro da Igreja,
como prossegue pela rua. O impacto que causa nos cientistas, transcorre o imaginário.
Um acontecimento incrível, pois, este relato se fundamenta no sertão do Cariri, uma
gênese do movimento penitente, documentado na região de Lavras de Mangabeiras – no
Sul do Ceará. É um ponto bem importante. É uma descrição do fato.
Existem outros relatos, como a da pesquisadora Anna Christina Farias de Carvalho,
que segundo suas pesquisas – os “primeiros relatos da presença no Cariri cearense de
ordens religiosas leigas baseadas na penitência, datam de 1850. A sociedade de penitentes do Crato – primeira Ordem de Penitentes, sob liderança do Padre Felix Moura”
(CARVALHO, 2011, p. 7).
Por definição estes movimentos penitentes – são classificados como catolicismos
popular ou religião popular. Formada a partir da sua cultura típica do local no confronto
com o Cristianismo - como dominação do imaginário religioso na cultura dominante
da região. Certeau definiu o popular e sua ação como dominação do pensamento e da
ação. A representação do imaginário religioso, dentro do ambiente em que os penitentes
demonstravam seus valores religiosos-morais, teria de não somente validar suas práticas
e seu ritual. O ambiente social teria de auxiliar o homem e o seu domínio. Certeau
descreve a cultura como formação do imaginário e o homem como formador do ambiente
de dominação.
2. “Quando em 1856 se criou, por iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e com
beneplácito do imperador Pedro ll, uma expedição cientifica composta exclusivamente por naturalistas
e pesquisadores brasileiros, tencionava-se não somente assinalar uma preocupação crescentemente
transformada em necessidade estratégica – a de conhecer em detalhe a geografia, os recursos naturais e
as populações espargidas nas fímbrias do território brasileiro” (ALEMÃO, 2006, p.9).
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O sentido dos grupos de penitência no sertão do Ceará. A discussão desde os relatos de Freire Alemão e os penitentes da atualidade
Marcos Martinez Munhoz
Para que haja verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas sociais; é preciso
que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza” pois a cultura”
não consiste em receber, mas em realizar o ato pelo qual cada um marca aquilo que outros
lhe dão para viver e pensar. (CERTEAU, 2005, p. 9-10)
Fica reservado aos homens a penitência; e as mulheres pelas orações intermitentes.
Essa forma de fazer a religiosidade, são marcas dos movimentos sociais, que contem,
a sua simbologia através dos rituais empregados, nas práticas no seu meio por seus
comportamentos e a adoção das crenças.
Desta forma, o que mais importa a este objeto, desde a sua formação como grupo
de penitentes, seria descrever que eles fazem parte de uma mediação com a instituição
oficial, porém, somente pelo seu meio, não fazem parte de um movimento religioso
com o reconhecimento da Instituição Igreja Católica Apostólica Romana. Ou seja, são
formados a partir da porta da Igreja em direção ao mundo, e não do lado da porta indo
em direção ao altar.
O sentido da penitência pertence à ideologia do Catolicismo, mas, o ato penitencial
fora do seu espaço institucionalizado, não representa o valor oficial.
O imaginário como imagem que fundamenta o movimento penitente – segue desde
o martírio de Cristo ou a Via- Crucis, sob o catolicismo primitivo, atravessa a Europa e
chega ao Brasil. Esta trajetória daria outro texto, que não será discutida neste momento.
Será apenas discutido o acontecimento e desenvolvimento da pesquisa nos penitentes
de Barbalha - CE, sertão do Cariri, do passado e do presente, informando a memória
do costume e as transformações causadas pelo tempo.
O penitente busca sua identidade dentre os princípios cristãos. Forma um movimento
popular que se baseia na instituição oficial. O que apreende com o seu olhar ao entrar
na Igreja, são imagens da Via- Crucis. A sua percepção, traz o imaginário do ídolo e do
memorável. Reproduz através da imitação dos atos, para suportar a mesma dor, que
“Jesus” - “morreu por nós”3.
Gombrich ilustra em seu livro sobre o poder da imagem no emocional humano.
Ele cita o poder sedutor da arte, que no caso aqui, são as imagens da via- Crucis penduradas nas paredes da Igreja, que seduzem o olhar do imaginário. Faz parte da arte
Cristã facilitar o entendimento da pintura ou arte, através das sensações. Para o homem
agrário, agrafo e disposto a entender o momento “real”, reproduzir sua imagem, como
um ato a ser cumprido para ser salvo. “Não foi somente a Igreja Romana que descobriu o
poder da arte para impressionar e dominar pela emoção” (GOMBRICH,1999, p. 447).
Gombrich, neste trecho cita não somente a Igreja Romana, mas seguramente, a
Igreja utiliza deste meio de sedução para ensinar a pratica do pensamento. As imagens
respondem por si só e o imaginário reproduz a ação conforme as ferramentas moldam
seu olhar para aprender somente o que lhe ensina. Somente.
Esta mesma forma de lembrar algo ou coisa, conforme Sartre “uma coisa, porém,
é aprender imediatamente uma imagem como imagem, outra é formar pensamentos
3. Citação de uma ilustração bíblica com explicação da passagem pelos penitentes: “Fui crucificado com
Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a
pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (GALÁTAS, 2:20).
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7466
O sentido dos grupos de penitência no sertão do Ceará. A discussão desde os relatos de Freire Alemão e os penitentes da atualidade
Marcos Martinez Munhoz
sobre a natureza de imagens em geral”. Desta forma, eu complemento sobre a porta
da Igreja em direção ao altar e os penitentes na mesma porta em direção ao mundo. E
Sartre, “A teoria pura e a priori fez da imagem uma coisa. Mas a intuição interna nos
ensina que a imagem não é a coisa” (SARTRE, 2012, p. 9-10).
A igreja católica é referência para os penitentes, mantendo tradições e pensamentos
primitivos em um ambiente moderno. Conserva valores do passado como valores para
serem seguidos no presente, sempre cabendo sua verdade como atual. O catolicismo
oficial é um mediador entre a instituição e o pensamento exclusivo da Igreja Católica.
Qualquer outra forma de manifestação que não seja a oficial; não é reconhecida por
ela, portanto não há o reconhecimento de qualquer ato fora da instituição oficial. Desta
forma, os penitentes serão considerados como praticantes do catolicismo popular, ou
seja: não serão reconhecidos pela Igreja, como pratica oficial.
OS PENITENTES DE BARBALHA- CE
Os penitentes de Barbalha4 são compostos por dois grupos. O grupo do “Sitio das
Cabeceiras” e do Grupo “Lagoa”. Os dois grupos são formados a partir do decurião e
12 homens, como os discípulos de Jesus, são orientados por um cruzeiro, que, sendo
objeto sagrado, pertencente, segundo alguns relatos, ao Padre que trouxe o costume a
região do Cariri: O Padre Ibiapina.
Este cruzeiro tem formato de cruz – com dizeres- “JEZUS CRISTO” e, “PARA
CEMPRE”. É o principal objeto simbólico da penitência.
Padre Ibiapina, foi responsável por missões no sertão, constrói casas de caridades,
faz pregar a prosperidade na região por onde passou. Participou em um período histórico de grandes secas e uma cólera epidêmica que matava silenciosamente os homens
do Crato. Muito foram os benefícios que trouxe com seu trabalho e oração. Foi muito
importante para o povo oprimido do sertão. Era festejado com sua visita nas cidades.
Foi assim que conquistou a confiança destes homens constroem seu imaginário religioso
sobre a prática da penitência.
Foi padre Ibiapina quem fundou. Foi Ibiapina quem fundou. Teve um tempo muito ruim,
pesada no Crato-CE, aí onde padre Ibiapina andou, e aí deixou essas leis de penitentes – o
cólera – pra fazer a penitência pra combater essas doenças. Teve a doença lá no Crato, aliás
em todo o canto. Não dava nem tempo do Peão, abri a cova pra enterrar um, já vinha um
outro monte, e quem cavava também caia na cova. (MARTINEZ, 2013, p. 69)
Os penitentes constituem os rituais do grupo, organização e suas ordens a partir do imaginário religioso transmitido pelo padre Ibiapina. São grupos fechados e
suas ideias são passadas de geração a geração pela oralidade. Suas leis se mantem na
ordem do primeiro decurião de cada grupo. É o primeiro decurião que carrega a cruz
(cruzeiro), e mais doze homens que cantam benditos. Fazem o canto dos benditos e se
penitenciam, levam a tradição da obra do Padre e a cumprem em longas caminhadas
nas comemorações da quaresma ou semana santa.
4. Barbalha, uma região composta pelas cidades de Juazeiro do Norte, Barbalha e Crato. Sendo a última - a
primeira cidade da região. Todas elas ficam situadas no sertão do Cariri, no sertão do Ceará.
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O sentido dos grupos de penitência no sertão do Ceará. A discussão desde os relatos de Freire Alemão e os penitentes da atualidade
Marcos Martinez Munhoz
Na cantoria do Bendito, fazem a penitência ao corpo, através dos objetos de penitência pelo cacho da disciplina5. A campa6, que o primeiro decurião carrega, faz com
que os penitentes caminhem sem desviarem a atenção, prestando somente ao badalar
da campainha. É um som que regula o pensamento e o canto. Orienta o grupo.
O penitente recebe o oficio pelo pai, ou de algum penitente, para poder participar.
Tinha de ser desta forma. Em uma entrevista a um penitente – Olimpio Ludogero, que
explica a tradição do cruzeiro e da passagem das ordens penitentes através da oralidade
para um novo membro.
Meu avô era penitente, e o meu pai também foi. Quando eu quis ser, meu pai não queria;
mas meu avô me ensinava escondido e meu pai depois de me ver fazendo direito, me deixou
continuar, e me entregou o cruzeiro perto da sua morte, que da mesma forma que o meu avô
o fez com ele. Este mesmo cruzeiro é a cruz que representa a de Jesus e nos guia abrindo
nosso caminho na mata e fazendo conforme nosso senhor quer. A gente caminhava à noite,
sem qualquer luz artificial, a cidade era pequena, caminhávamos dentro de sítios, ruas de
terra e cruzávamos riachos cantando nossa oração. (MARTINEZ, 2013, p.50)7
Os penitentes de Barbalha organizam seus grupos e repassavam suas ordens, pela
oralidade. Não são desorganizados, pelo contrário; a organização e a conduta dentro de
um grupo de penitente é levado muito a sério. É uma tradição dos penitentes. Da mesma
forma, que o grupo mantinha o segredo dos seus membros, era necessário o interesse de
membros para participar dos grupos. Não podia ser qualquer pessoa que chegasse neles
para poder participar – tinha de ser recebido pelos membros e aceito. Mas, geralmente é
mais comum, a descendência do filho em dar continuidade no pensamento e na ordem
dos penitentes. Mas, não somente os dois penitentes citados neste artigo, informam que
o grupo está se acabando. Olimpio, um dos penitentes em entrevista, informa sobre o
destino dos penitentes. Informa sobre o que foi o grupo e o que será deles:
[...] Agora, o grupo está se acabando, os filhos aprendem com o pai, como meu pai fez comigo...
E esses jovens, não prestam atenção em nada. Aqui mesmo na cidade, a última secretaria
de Cultura, veio nos pedir, a “Cirlene Querois”, para que a gente ensinasse os jovens. –Ela
queria que a gente ensinasse os jovens. – Ela queria que a gente fizesse outro grupo mirim.
Bota uns meninos porque os velhos vão se acabando. (MARTINEZ, 2013, p.58)
Olimpio (penitente), questionado pela secretária de cultura da cidade de Barbalha
em uma ocasião, sobre a possível ajuda de órgãos de divulgação ou mesmo de auxílio
para se produzir novos penitentes, através do ensino escolar na formação de novos
membros - ele responde sério e em bom tom:
Que penitência é coisa séria, não é brincadeira de escola não. A escola ensina a escrever,
aqui não é escola. A penitência é coisa séria, é coisa que vem de cima. Não é daqui pra baixo
não. Daqui pra cima. É de cima pra baixo. Ela, Cirlene, ficou até desgostosa comigo, disse
5. Instrumento utilizado na penitência. Uma espécie de chicote que contem lâminas presas por arame ou
couro. Forma ovalada de dimensão e afiada nas extremidades.
6. Campa, sino que o primeiro decurião carrega. Ela serve para orientar os penitentes no grupo a se
guiarem nela.
7. Entrevista feita pelo pesquisador na cidade de Barbalha no ano de 2013. Foi entrevistado o primeiro
decurião do grupo do Sitio Lagoa. Trecho concedido pelo penitente Olimpio Ludogero da Paixão
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O sentido dos grupos de penitência no sertão do Ceará. A discussão desde os relatos de Freire Alemão e os penitentes da atualidade
Marcos Martinez Munhoz
a ela que busque outra pessoa, pra montar este grupo, mas comigo não. Eu levo a coisa a
sério, diz Olimpio. (MARTINEZ, 2013, p.59)
Os penitentes estão envelhecendo, morrendo seus líderes. Mas, a insistência no
costume conservado na tradição: materializa o pensamento do penitente em não
modernizar os membros ou os costumes. Deriva de um catolicismo patriarcal, no qual,
é um catolicismo que se impõe contra ao progresso da fé; retorna a tradição fundamental.
É tradicional, mantem suas características originais.
O SEGREDO EM SER PENITENTE
O penitente se flagela em silencio, e em caminhada coloca uma túnica que esconde
seu rosto preservando sua identidade. Um líder penitente de grande influência e conservação da ordem foi Joaquim Mulato. Joaquim Mulato8 determinava as regras e as
punições daqueles que erravam. Foi um dos mais importantes e memoráveis homens da
penitência na região do Crato. Segundo os penitentes, ele manteve a ordem viva. Joaquim
determinava que a ordem era mantida através do segredo. Tinha de casar na igreja,
não beber, jogar e etc. Ele passava as ordens para os penitentes com muita severidade.
Acabou falecendo vítima de um atropelamento frente à sua casa. Em uma entrevista
concedida por Francisco Severo9, atual primeiro decurião do grupo dos penitentes do
sitio cabeceiras, Barbalha- CE; explica a tradição, o grupo e o segredo do penitente.
Mostra o costume da tradição, o penitente e a exposição pelos meios jornalísticos.
Joaquim Mulato trouxe pra nóis aqui, pra ver se combatia mesmo aqui a doença, que vinha
do Crato. Fez casa de caridade, o cemitério ali, das Cabeceiras. Joaquim Mulato que era o
chefe. Os penitentes ninguém conhecia não. Os primeiros penitentes ninguém conhecia
não. Os primeiros penitentes só andava na meia noite, dentro de casa, sozinho. O povo não
conhecia os penitentes. Eu comecei a anda nos penitentes com 8 anos de idade. Depois que
o prefeito pediu que nos andasse de dia na cidade, o povo ficou ficaram nos conhecendo,
aí vieram os repórter, ainda os penitentes descuidavam, aí começaram a descobrir as casas
dos penitentes. Nas cidades, só ficamo andando depois que o prefeito no pediu pra gente
ir né. Quem ninguém conhecia o que é. Aí depois o repórter foi levando pra tudo quanto é
canto. (MARTINEZ, 2013, p.50)10
Nesta entrevista, o primeiro decurião do grupo: Francisco Severo consegue resumir
o percurso do penitente, desde Joaquim Mulato, inserindo a tradição para eles. Esta
citação demonstra as regras da prática; a prática pública dos penitentes e os meios de
comunicação como extensão do movimento penitente. Atualmente são vistos e conhecidos em outros locais. A partir de uma solicitação do prefeito da cidade de BarbalhaCE, os penitentes não mais se flagelavam sozinhos, não caminhavam ou se escondiam
na tradição. Eles representavam um movimento popular religioso que faria parte do
8. Joaquim Mulato. Primeiro Decurião do grupo de penitentes de Barbalha- CE, do sitio das Cabeceiras, e
segundo ele, foi Ibiapina que trouxe o costume da penitencia para a região.
9. Primeiro decurião do grupo de penitentes de Barbalha-CE: Foi entrevistado na cidade de Barbalha. 2013.
10. Trecho retirado da entrevista na cidade de Barbalha- CE. Por ser uma transcrição, é mantido a forma
original da fonte citada. (MARTINEZ, 2013, p. 50).
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O sentido dos grupos de penitência no sertão do Ceará. A discussão desde os relatos de Freire Alemão e os penitentes da atualidade
Marcos Martinez Munhoz
folclore e fariam a memória viva em comemorações publicas pelo município, e seriam
conhecidos através meios de comunicação. Os penitentes recebem um salário por mês,
para serem incentivados e se manterem em grupo. Em outra ocasião, os penitentes,
foram convidados a desfilar no grupo de carnaval carioca “mangueira11”, no Rio de
Janeiro. Mas, não acabaram desfilando. Na penitencia caminham e nelas os penitentes
caminham pela cidade indo ás casas das pessoas, pedindo esmolas, que também seria
para eles: uma penitencia. Os moradores da cidade, atualmente, se organizam para
receber os penitentes. São bem recebidos e vistos como patrimônio da cidade.
A NECESSIDADE DA FOLKCOMUNICAÇÃO PARA INCENTIVO E MEMÓRIA
DA PRATICA DOS PENITENTES DE BARBALHA- CE
Os penitentes citados são residentes da cidade de Barbalha. Estavam na região,
quando era ainda só mato12. Essa região de vales e de riachos, compunham o cenário
para o penitente. As cidades ainda não existiam, vencer o ambiente para o coletivo com
sua comunicação. Uma região isolada da civilização, misturada aos costumes dos pequenos grupos, resultam na ação popular. Os penitentes de Barbalha são na sua maioria
analfabetos. Atualmente necessitam comunicar e criar um elo entre a sua comunicação
e as cidades que se formaram ao redor destes grupos. Comunicar o penitente, não é
somente reportar sua história. Desta forma, segundo Beltrão, o penitente e o seu grupo,
elabora suas mensagens para a difusão do pensamento. Mas esta difusão tem de ter o
entendimento da sua linguagem, portanto:
Em outras palavras, a Folkcomunicação é, por natureza e estrutura, um processo artesanal
e horizontal, semelhante em essência aos tipos de comunicação interpessoal já que suas
mensagens são elaboradas, codificadas e transmitidas em linguagens e canais familiares à
audiência, por sua vez conhecida psicológica e vivencialmente pelo comunicador, que ainda
dispersa. (BELTRÃO, 2004, p. 74) A comunicação popular se manifesta, dentre a sua audiência
comunicando o saber regional. Manter a tradição e conservar os costumes, transmitem ao
social, a sua forma de manifestação distante do pensamento dominante. É uma sabedoria
própria e de uma aparência estética diferenciada das impostas pelos meios de comunicação,
ou pelas instituições formadoras do pensamento e da ação. Os penitentes formam então
um grupo popular, com suas linguagens próprias e suas interpretações. Por esse motivo, e
pelo motivo de sempre voltar ás origens – seus líderes formadores de opinião e da ordem
estão morrendo; os que ficam não estão se comunicando entre e coletivo e a memória dos
grupos. Aliás, estão se acabando. Os gestos, as linguagens e a comunicação popular têm
os meios próprios de se manifestar.
CONCLUSÃO
Se conclui com este estudo, que o penitente, forma o pensamento e sua ordem em
referência uma instituição oficial. Formaram grupos, constituíram o pensamento coletivo na sua representação e ação no meio. Apesar de não reconhecidos como “oficiais”,
11. Escola de Samba do Rio de Janeiro- RJ. Seriam investidos R$500 mil para a promoção e incentivo à
cultura daquela região e dos penitentes de Barbalha.
12. Mato é uma indicação de cidade não povoada. As cidades não existiam, é o percurso pelo penitente;
termo utilizado por eles, no ato de atravessar o mato – rezando os benditos.
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O sentido dos grupos de penitência no sertão do Ceará. A discussão desde os relatos de Freire Alemão e os penitentes da atualidade
Marcos Martinez Munhoz
pela instituição, convertem no seu grupo de integrantes o valor da penitência como
“fé”. A fé, no seu estado imaginário e imaginado, produz sentido e eleva os gestos, produzindo linguagens. O penitente, visto pelo Freire Alemão, representa uma linguagem
quase que selvagem pelo humano. Entretanto, a discussão aprofunda nos penitentes de
Barbalha- CE, que no seu princípio os seus grupos de penitentes, se escondem atrás da
túnica cobrindo seu rosto, mantendo sua identidade, não demonstrando sua prática e a
ordem do ritual do indivíduo. A formação de um penitente é passado de forma oral de
pai para filho, mas, tem de ter o interesse na prática. As cidades crescem em volta das
casas dos penitentes, as cidades mudam e trazem as novidades, que o penitente não
busca, ou traz. Conserva seus ideais desde a memória formadora do penitente - repassada pelos antepassados. Com a curiosidade das pessoas e o progresso das cidades,
começam a se reconhecer os penitentes. Começa a saber quem são estes homens - e atrai
outras pessoas com desejo de saber quem são os “penitentes”. Desta forma, o penitente, levanta sua túnica e revela seu rosto em público. O sentido do segredo se desfaz,
a data da procissão já é aguardada. A esmola, já é separada, e o penitente agora não é
mais uma comunicação popular, se torna um patrimônio público. Os órgãos percebem
neles um meio cultural e uma forma de atrair beneficies para o povoado da cidade.
São demonstrados em público, são recebidos por repórteres, televisão, estudantes e
até mesmo convidados para um desfile em escola de samba. O pensamento penitente
se confunde com a realidade da sua comunicação e o mundo que o vê. Tentam trazer
o costume como parte folclórica de um povo, mas somente a partir de uma pesquisa
da sua comunicação como penitente, poderá entender sua essência. O que fazem é
trazer um espetáculo em uma data já pré-determinada. O uso da Folkcomunicação
neste trabalho, é de resgatar então a comunicação na sua essência, demonstrando o
seu pensamento penitente e sua ação de penitência como ação de comunicação. A
linguagem popular do coletivo, reconhecido nos gestos e rituais pelo grupo, tendo a
interpretação e julgamento das diferenças de comunicação pelos meios de comunicação
dominante, que se utilizam dos penitentes, para transformar uma linguagem própria
em uma comparação com uma linguagem que os meios dominantes tentam criar em
nós humanos em comum.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alemão, Francisco Freire. Diário de viagem de Francisco Freire Alemão: Fortaleza- Crato:
Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006.
Bíblia. Bíblia Sagrada. Rio De Janeiro, 1971.
Carvalho, Anna Christina Farias de. Sob o signo da fé e da mística. Fortaleza: Imeph, 2011
Flusser, Vilém. A Dúvida. São Paulo: Annablume, 2011.
Gombrich, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Ltc, 2012.
Luiz Beltrão, de Andrade. Folkcomunicação. São Bernardo do Campo: Umesp, 2004.
Martinez, Marcos Munhoz. A comunicação do Ritual de Autossacrifício do Corpo: Os penitentes de Barbalha- CE. Dissertação de Mestrado – USCS, São Caetano do Sul- SP, 2013.
Sartre, Jean- Paul. A imaginação. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2012.
Suess, Guenter Paulo. O catolicismo Popular no Brasil. Edições Loyola: São Paulo, 1979.
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Mídia e folkcomunicação:
a apropriação midiática da cultura travesti
Media and folkcommunication:
the media appropriation of transvestite culture
Edua r do R it t er 1
Resumo: O professor Luiz Beltrão produziu nos anos 1960 a sua tese de doutorado
– a primeira em Comunicação Social do Brasil – que iria mudar a história do
campo com a inclusão de uma nova linha de pensamento: a Folkcomunicação.
A partir daí, diversos autores se dedicaram a analisar e interpretar as formas
de comunicação dos grupos marginais e minoritários espalhados pelo Brasil
e pelo mundo. No presente artigo, é feita a caracterização da cultura travesti,
que conta com linguagem e formas de interpretar o mundo próprias. A partir
de então, há a apropriação dessa cultura pelas grandes empresas televisivas
brasileiras, que jornalisticamente criticam o preconceito e ações de violência
homofóbicas, mas que ao mesmo tempo incentivam tais atitudes nos discursos
de seus programas de entretenimento e humor.
Palavras-Chave: Folkcomunicação. Programa de entretenimento. Cultura
travesti. Televisão. Preconceito.
Abstract: The Professor Luiz Beltrão wrote in the 1960s his PhD thesis – the first
in Social Communication in Brazil – that would change the history of the field
with the inclusion of a new train of thought: the Folkcommunication. Thenceforth, several authors have dedicated themselves to analyze and interpret the
forms of communication of marginal and minority groups throughout Brazil and
world. In this paper we characterize the transvestite culture, which includes own
language and ways of interpreting the world. Thenceforth, there is the appropriation of this culture by the Brazilian television companies, which journalistically
criticize the prejudice and homophobic violence but on the other hand encourage this attitudes in the speeches of their entertainment and humor programs.
Keywords: Folkcommunication. Entertainment Programs. Transvestite Culture.
Television. Prejudice.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
OBRA DE Luis Beltrão deixou um rico legado sobre os estudos folkcomunica-
A
cionais no Brasil e no mundo. Assim, diversos autores passaram a estudar os
sistemas específicos de comunicação dos grupos marginalizados da população, denominados por Beltrão de folkcomunicação, sob a perspectiva contemporânea de
1. Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul com
período sanduíche na New York University. E-mail: [email protected].
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Mídia e folkcomunicação: a apropriação midiática da cultura travesti
Eduardo Ritter
sociedade midiatizada. Dentre os grupos marginalizados que contam com cultura,
linguagem e formas de comunicações próprias, estão as travestis. É válido ressaltar
que a cultura travesti, que está presente em grupos fechados dentro de todo o território
brasileiro, apresenta características próprias, mas que são influenciadas pela sociedade
midiatizada, bem como tem a sua linguagem e cultura apropriadas pela mídia televisiva. Assim, considerando a hibridez da cultura travesti com os modos de sociabilidade
contemporâneos, o artigo tem como objetivo analisar como essa linguagem própria
das travestis é representada pelas grandes empresas midiáticas televisivas. Para tanto,
opta-se pela visão sobre folkcomunicação e cultura popular de Luiz Beltrão, Néstor Garcia
Canclini, Jesús Martín-Barbero e José Marques de Melo. Afinal, conforme Melo (2007),
ao falar sobre a disciplina de Folkcomunicação, o objeto de pesquisa está nos limites
entre o folclores e a comunicação de massa.
Após contextualizar folkcomunicação e cultura popular, é feita uma breve análise
do livro Aurélia de Victor Ângelo e Fred Lib, de sites mantidos por travestis, como a
série Glóssario, publicada no youtube.com. Além disso, é enfocada a apropriação dessa
linguagem pela grande mídia, como a entrevista feita por Jô Soares no lançamento do
livro Aurélia e a apropriação dessa linguagem quadros humorísticos (Pânico na Band e
Zorra Total) – geralmente reforçando os preconceitos existentes na sociedade. Para tanto,
metodologicamente, optou-se pela visão sociológica e filosófica da análise do discurso
defendida por Michel Foucault, pois há relações entre as disputas pelo poder simbólico
e o discurso cotidiano, afinal, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar” (FOUCAUTL, 2013, p.10). Assim, torna-se possível identificar os
antagonismos entre uma cultura travesti, que valoriza esse grupo de pessoas, adotando
um discurso voltado para elas; e a representação travesti nos programas humorísticos,
com discursos que reforçam o poder do preconceito e da exclusão do mesmo grupo.
Espera-se, a partir do presente artigo, que outros estudos possam seguir a mesma
linha pensamento, afinal, “uma vez analisado, o objeto permanece para novas e novas
abordagens. Ele não se esgota em uma descrição” (ORLANDI, 2013, p.64).
A RETROALIMENTAÇÃO ENTRE MÍDIA E CULTURA POPULAR
Antes de se abordar a cultura e a linguagem travesti, é importante fazer uma breve
recuperação histórica do que caracteriza a folkcomunicação e a cultura popular, já fazendo
algumas relações que podem ser conectadas com o objeto de análise. Para tanto, vale
a pena partilhar o princípio de que “as culturas populares não são um efeito passivo
ou mecânico da reprodução controlada pelos dominadores” (CANCLINI, 2013, p.273).
Ou seja, culturas, como a travesti – que apesar de ser ignorada não só pela mídia, mas
muitas vezes pelo próprio mundo acadêmico – é composta por milhares de pessoas no
território brasileiro, e elas têm as suas próprias experiências e conflitos com aqueles que
exercem o que Canclini (2013) chama de hegemonia. Uma forma de conflito pode ser
verificada facilmente ao se analisar a forma como a mídia televisiva aborda e se apropria
da linguagem e da cultura travesti, conforme abordado mais adiante.
No entanto, é importante admitir que essas culturas não estão isoladas da cultura
de massa e da sociedade midiatizada contemporânea, mas sim, elas estão inseridas
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Mídia e folkcomunicação: a apropriação midiática da cultura travesti
Eduardo Ritter
nesse processo, dando o caráter híbrido apontado por Canclini (2013). Mas como reagem,
especificamente, o grupo de travestis a essa abordagem da mídia hegemônica? Geralmente
com o silêncio. Porém, é um calar que, ao contrário do que diz o ditado popular, não
consente. Outra questão importante é: como surgiu essa apropriação midiática da cultura
travesti? Ora, ela não é nova, mas sim, faz parte da apropriação e da hibridez que passa
a haver a partir da midiatização da sociedade, onde as relações entre mídia e culturas
de todos os tipos são inevitáveis.
A mestiçagem, que não é só aquele fato racial do qual viemos, mas a trama hoje de modernidade e descontinuidade culturais, deformações sociais e estruturas do sentimento, de
memórias e imaginários que misturam o indígena com o rural, o rural com o urbano, o
folclore com o popular e o popular com o massivo (BARBERO, 2013, p.28).
Ou seja, é a partir da miscigenação, que inclui a apropriação, a adaptação e a
recriação, e da hibridização desse processo, que surgem as relações entre diversas
situações e expressões da cultura, “sejam essas advindas da espontaneidade popular,
das produções industriais, da circulação midiática acelerada ou mesmo oriundas de
outras regiões, países ou continentes (como supõe a lógica da globalização contemporânea) (GADINI, 2007, p.57). E como as culturas populares relacionam-se com a mídia?
Ora, conforme bem aponta José Marques de Melo, há uma retroalimentação de mão
dupla entre as culturas populares e a indústria cultural. “Muitos dos seus produtos
típicos, principalmente no setor do entretenimento, resgataram símbolos populares,
submetendo-os à padronização típica da manufatura seriada” (MELO, 2008, p.47). No
caso da cultura travesti, essa apropriação, no entanto, não é no sentido de resgatar um
símbolo ou ovacionar uma cultura – como ocorre, por exemplo, quando se aborda uma
cultura regional, uma cultura profissional, de amantes de esportes, ou até mesmo, de
questões heterossexuais (como o culto implícito ou explícito ao machismo), mas sim, no
sentido de divertir e propagar visões preconceituosas, conforme apontado mais adiante.
Contemporaneamente esse processo é ainda mais acelerado pois, como ressalta
Melo (2008), o mundo online permite “multiplicar os seus interlocutores, bem como
ensejar o intercâmbio entre grupos e pessoas que possuem identidades comuns, mesmo
distanciados pela geografia” (MELO, 2008, p.97). E, assim, diversos grupos travestis
das mais variadas partes do território brasileiro passaram a ter diversos canais aonde
podem expressar os seus pensamentos e a sua cultura, através de blogs, canais no
youtue e redes sociais, que possibilitaram o surgimento do referido dicionário, que
é apenas a ponta de um icberg chamado cultura travesti. As novas ferramentas da
internet também permitem que grupos sociais se mobilizem e até disputem a narrativa com as instituições hegemônicas ou hierarquicamente superiores, “conversando
e argumentando com os mais variados membros que frequentam sua teia de páginas
web, grupos de discussões, redes sociais, blogs e outras interfaces de comunicação
distribuída” (MALINI; ANTOUN, 2013, p.159). Desse modo, as formas de expressões
próprias, da qual Luiz Beltrão se preocupou nos seus estudos folkcomunicacionais,
passam a migrar para o mundo online, de onde agora elas podem “entender e fazer-se
entender” (BELTRÃO, 2001, p.125).
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Mídia e folkcomunicação: a apropriação midiática da cultura travesti
Eduardo Ritter
FOLKCOMUNICAÇÃO E OS PROCESSOS DE COMUNICAÇÃO GRUPAIS
Sempre que se fala em folkcomunicação é válido lembrar a definição do termo
apresentada pelo seu principal pesquisador: o professor Luiz Beltrão. Em sua tese de
doutorado, até hoje referência sobre os estudos folkcomunicacionais, o autor define que:
Folkcomunicação é o processo de intercâmbio de mensagens através de agentes e meios ligados
direta ou indiretamente ao folclore e, entre as suas manifestações, algumas possuem caráter
e conteúdo jornalístico, constituindo-se em veículos adequados à promoção de mudança
social (BELTRÃO, 2001, p.73).
Além disso, o autor ressalta a existência de sistemas específicos de comunicação
entre os grupos marginalizados nos processos folkcomunicacionais, inclusive, o uso de
linguagem própria. Obviamente o professor Beltrão estava se referindo às condições da
época em que ele escreveu a sua tese (anos 1960) ao mencionar que essa comunicação se
dava de forma geralmente arcaica e através de meios rudimentares, porém, mesmo com
as facilidades comunicacionais do mundo online muitas vezes o uso de uma linguagem
própria é a melhor forma para que determinados grupos se mantenham conectados,
como no caso da cultura travesti. Além disso: “Esse território mostrou-se fértil, principalmente para a germinação e o cultivo de relatos sobre as atividades desenvolvidas
pelos agentes folkcomunicacionais, ampliando consideravelmente seu raio de ação”
(MELO, 2008, p.97). E foi pela ampliação desses canais que, para o bem ou para o mal,
as especificidades da cultura travesti passaram a chegar mais facilmente até os meios
televisivos de comunicação brasileiros e foram apropriadas por eles.
Apresenta-se então, outro questionamento pertinente para ser feito nesse momento
da pesquisa: se a folkcomunicação está ligada ao folclore, a cultura travesti pode ser
pensada sob essa perspectiva? Para responder a essa questão, vale a pena recorrer a
carta apresentada no Congresso Brasileiro de Folclore de 1995, recuperada por Benjamin,
que define folclore como:
[...] o conjunto das criações de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de
identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade,
funcionalidade (BENJAMIN, 2007, p.29).
Ora, pode-se apresentar algumas objeções quanto a tese defendida no presente
artigo, como por exemplo, que não há aceitação coletiva, nem tradicionalidade, ao que
pode ser rapidamente respondido que: 1) a aceitação coletiva da cultura travesti se dá
dentro de seu próprio grupo e; 2) obviamente há uma tradicionalidade que só começa a
aparecer agora, no ciberespaço, pois até então os únicos traços dessa cultura só chegavam ao resto da população através das imagens estereotipadas da mídia hegemônica. E
nada mais espontâneo do que uma manifestação que nasce sem a imposição de nenhum
grupo midiático ou de instituições tradicionais da sociedade. Aliás, não se pode esquecer que: “O ponto central dos estudos nessa área está nos mecanismos e procedimentos
usados pelos grupos populares para a realização da comunicação inter-pessoal, inter-grupo ou extra-grupo transmitindo suas ideias, valores, sentimentos, experiências,
etc.” (SCHIMIDT, 2007, p.37). Feitas essas considerações, pode-se reivindicar, inclusive,
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Mídia e folkcomunicação: a apropriação midiática da cultura travesti
Eduardo Ritter
a cultura travesti para assumir o papel de protagonista da folkcomunicação no Brasil ao
lado de outros grupos marginalizados. Afinal, vale se ressaltar que: “Não é sem razão
de ser que tipos pouco ancorados nas raízes históricas da cultura brasileira – como as
tatuagens, o funk carioca ou o rap paulista assumem a vanguarda folkcomunicacional neste
novo milênio” (MELO, 2008, p.103). Grupos que antes existiam, mas que não eram tão
populares como os de tradições regionais ou os culturais reconhecidos e aceitos por uma
sociedade moralmente baseada em fundamentos religiosos. A internet e a necessidade de
expressão de grupos minoritários, como as travestis, fizeram com que a sociedade percebesse a existência dessas pessoas – por mais que determinados setores ainda insistam
em ignorar ou reconhecer a existência delas apenas sob a perspectiva do preconceito.
No entanto, reconhece-se aqui que a cultura travesti está apenas começando a sua
trajetória no mundo comunicacional e folkcomunicacional, para romper as barreiras
do preconceito e se fazendo notar pela sociedade, como já foi feito por outros grupos:
Dessas conversas de boca de noite, dessa troca de impressões provocadas pelos versos do
poeta distante, do compositor popular, pelos inflamados artigos do jornalista matuto ou pelas
severas admoestações dos missionários; do raciocínio do homem solitário, no seu trabalho
na floresta, na caatinga, na coxilha – é que surgem, vão tomando forma, cristalizando-se
as ideias-motrizes, capazes de um determinado instante e sob certo estímulo, levar aquela
massa aparentemente dissociada e apática a uma ação uniforme e eficaz (BELTRÃO, 2001,
p.220).
Porém, até se chegar a esse ponto, há muito o que se superar, começando pela própria
mídia televisiva que, para prestar um serviço público de comunicação de qualidade,
sob o ponto de vista da cidadania, deveria fazer o oposto do que faz, conforme é viso
no próximo capítulo.
A CULTURA E A LINGUAGEM TRAVESTI
São raros os estudos na área da Comunicação Social sobre a cultura travesti. Geralmente esse grupo é tema de artigos e obras de áreas como Psicologia, Sociologia e Antropologia. Bem como, há inúmeros trabalhos que tratam da questão de gênero (“o” travesti
ou “a” travesti?) ou de saúde do grupo. Portanto, cada vez estão sendo diponibilizados
mais materiais que poderiam embasar um estudo mais profundo sobre a formação de
uma cultura travesti. O que se pode dizer é que, com blogs e outras manifestações dessa
cultura, um dos principais elementos é a linguagem. Nesse sentido, os escritores Victor
Ângelo e Fred Lib lançaram em 2006 o livro Aurélia - a dicionária da língua afiada. Na verdade essa foi a primeira publicação do que depois se tornaria diversos vídeos postados
no youtube revelando ao público a linguagem própria das travestis. Dois exemplos são
Dicionário dos gays e travestis (SILVA, 2011), postado por Thiago Silva em 30 de junho de
2011, e Abrindo o glossário (VIEIRA, 2010), postado por Fabinho Vieira em 5 de outubro de
2010. Em ambos, bem como no mencionado livro, basicamente é revelado o significado
de algumas palavras e frases próprias da cultura travesti. Um exemplo ilustrativo é a
expressão “Jogar o picumã”, que significa virar a cabeça, mudando os cabelos de lado,
com a intenção de menosprezar alguém (ÂNGEÇO; LIB, 2006). Os autores também destacam que a linguagem própria da cultura travesti é chamada de bajubá e começou como
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Mídia e folkcomunicação: a apropriação midiática da cultura travesti
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um código utilizado pelas travestis como uma forma de conversar entre elas de maneira
que os outros não compreendessem sobre o que elas estavam falando. Apesar disso, os
próprios autores adotam, assumidamente, um tom considerado por eles humorístico
e que, em determinados trechos, vai para o lado pejorativo. Ao contrário dos referidos
vídeos, aonde quem apresenta os termos são drag queens e travestis, os dois autores do
livro se definem apenas como homossexuais.
Esse fato fez com que em entrevista concedida ao Programa do Jô, da Rede Globo
de Televisão, o apresentador tentasse manter um tom de respeito aos homossexuais,
controlando-se para não falar nenhuma frase que pudesse ser intrepretada como
preconceituosa, porém, ele deixou escapar a sua opinião quando ele comenta a discrição
do entrevistado: “Sabe porquê, você usando a gíria do livro... você não é uma bicha
pintosa [...] que é aquela bicha que chega e já quer... né?” (MAUMAUTONI, 2010). Assim,
já se pode perceber que, quando a cultura travesti é apropriada ou abordada pelos
grandes canais televisivos, há um tom pejorativo e preconceituoso, conforme fica ainda
mais claro ao serem abordados os casos dos programas Zorra Total, da Rede Globo, e
Pânico na Band, da Rede Bandeirantes de Televisão.
ZORRA TOTAL E A CURA GAY
Enquanto em seu discursos jornalísticos a Rede Globo de Televisão evita adotar
uma abordagem preconceituosa contra homossexuais, durante a história dos programas de entretenimento da emissora incluir personagens gays como pessoas anormais
já virou rotina. Isso apenas demonstra a hipocrisia da postura da emissora diante do
assunto. Enquanto colunistas e jornalistas condenam atos homofóbicos, a própria emissora incentiva o preconceito em seus programas de humor e entretenimento. Gays que
frequentemente apanham, como era o caso do personagem Pit Bicha, interpretado por
Tom Cavalcante, e seguidamente são alvos de chacotas dos outros personagens, como
acontece nos quadros de Alfradinho, interpretado pelo ator Lúcio Mauro Filho, todos do
programa Zorra Total. Mesmo não sendo personagens travestis, todos eles usam linguagem semelhante à cultura mencionada anteriormente e adotam movimentos exagerados,
para justificar as agressões físicas e morais que sofrem nas narrativas dos episódios.
O ápice do incentivo ao preconceito, no entanto, chegou à emissora em fevereiro de
2014, quando estreou o quadro do personagem Hércules, interpretado pelo ator Paulo
Mathias Júnior. O preconceito da emissora fica explicito pelo simples fato de que Hércules
é um personagem gay que está em tratamento médico para se tornar heterossexual. Ou
seja, o discurso não precisa ser explícito para se fazer a leitura de que a emissora, que
produz e publica o programa, está tratando os homossexuais como anormais e doentes
ao colocar um personagem gay em situação de tratamento – que, logo, precisa se curar.
A esposa de Hércules, vivida por Cris Pompeu, é quem controla o personagem a não
ter uma recaída. O comportamento de Hércules oscila, entre momentos em que ele fala
com voz grossa, tentando convencer aos que estão ao redor de que é heterossexual, e
momentos em que a sua fala se torna afeminada. Essa é a tentativa do quadro de fazer
humor a partir da situação constrangedora do personagem gay tentando controlar a sua
personalidade natural, como se a sua sexualidade fosse objeto de repressão, resultado
de um desvio, de um erro de personalidade, de uma doença ou infração a ser corrigida.
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Mídia e folkcomunicação: a apropriação midiática da cultura travesti
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Em um dos programas, o médico que trata de Hércules chama um hipnotizador
para tentar curá-lo da sua homossexualidade. Em determinado momento, ao ouvir do
hipnotizador que o seu paciente era um gay incorrigível, o médico se revolta dizendo:
“Não! Gay não! Ex-Gay! Ele passou pelo meu tratamento e está totalmente curado. A
cura gay existe!” (GOIVIEIA, 2015). Já em outro episódio, a esposa comenta com outro
homem: “Ele é ex-gay... Mas ele está curado, ele fez um tratamento e agora ele é macho!”
(DAVARIZ, 2014). Em seguida, Hércules encontra um amigo homossexual de antes de
seu casamento e de seu tratamento, e então a linguagem travesti, mencionada anteriormente, é apropriada pelos personagens, utilizando expressões como “Para o sistema
solar. Para o universo que eu quero descer”. Já ao final do mesmo episódio, ao ter uma
“recaída” e se apropriar de utensílios femininos de outra mulher, há uma vaia de outros
personagens, demonstrando o tom de reprovação pelo fato de um homem assumir a sua
homossexualidade em público. E, assim, a emissora, através do programa Zorra Total,
ao mesmo tempo em que se apropria da cultura travesti, utilizando a sua linguagem
própria, movimentos, expressões e formas de falar, incentiva o preconceito ao tratar
sempre personagens homossexuais como sujeitos a serem excluídos, ridicularizados,
agredidos e vaiados. Assim, em uma sociedade midiatizada, mesmo que que não haja
um processo sistemático de aceitação do discurso, há certa apropriação da visão desses
personagens, que podem ser facilmente vistos em postagens nas redes sociais – com
o rosto e os bordões dos personagens –, nas postagens dos episódios no youtube, enaltecendo a visão do programa e o enquadramento ridicularizando os homossexuais e,
em outros extremos, reforçando a visão agressiva de parcela da população contra os
homossexuais, principalmente ao modo de vida que alguns adotam como, por exemplo,
aqueles que decidem se vestir e se transformar em uma figura feminina na sociedade.
Assim, até o momento ainda não há um contra discurso na esfera das massas, mesmo
com o mundo online, porém, pode-se salientar que, através de críticas e apontamentos
que mostram como a emissora de maior audiência no país, de um lado, critica a
homofobia e os atos de violência contra os homossexuais e, por outro, aborda um discurso
incentivando o preconceito, a agressão e o isolamento do mesmo grupo. A internet passa
a ser um local para circular a cultura e a visão de mundo, por exemplo, das travestis,
porém ainda não há um grupo sólido capaz de dar a resposta que emissoras, como a
Rede Globo, mereceriam. Esse contradiscurso, entretanto, é questão de tempo, pois: “A
natureza das multimídias é de portar uma linguagem desencarnada da mediação da
mídia irradiada, desorganizando o modo tradicional da notícia, ao mesmo tempo em que
elas organizam uma linguagem cooperativa, dialógica, múltipla e comum” (MALINI;
ANTOUN, 2013, p.184). Assim como em outras questões a linguagem folkcomunicacional
conseguiu apresentar um contraponto ao discurso da mídia hegemônica, acredita-se que
o mesmo irá ocorrer, futuramente, no que diz respeito as questões da sexualidade da
população, que sempre é tratada como algo bizarro, anormal, a ser tratado, a ser curado.
O PRECONCEITO CELEBRADO EM PÂNICO DA BAND
Um dos programas que mais incentiva o preconceito em seus discursos, em todos
os sentidos, é o Pânico na Band. Na página do programa (PÂNICO NA BAND, 2015),
consta que o formato do programa teve início no rádio, nos anos 1990, e depois passou
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Mídia e folkcomunicação: a apropriação midiática da cultura travesti
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para a televisão, com o Pânico na TV, que anteriormente à 2012 estava na programação
da Rede TV. A partir de então, os direitos do programa foram adquiridos pela Rede
Bandeirante de Televisão, e o programa, apresentado por Emilio Surita, um dos criadores
da primeira versão, mudou de emissora.
Frequentemente o programa se vale da cultura travesti e das imagens de travestis
em seus quadros, sempre ridicularizando-as e, dessa forma, não só incentivando o
preconceito, mas também celebrando tal atitude. Da mesma maneira que ocorre com a
Rede Globo, em seus programas jornalísticos o discurso sempre é contrário ao preconceito
e a intolerância, dentre as quais, a sexual. Porém, ao dar carta livre para que um programa
ridicularize e utilize uma abordagem totalmente pejorativa à cultura travesti, a emissora
se posiciona, no campo simbólico, favorável a tal tipo de preconceito. No programa do
dia 15 de dezembro de 2013 (TV PROGRAMAS, 2013), por exemplo, foi produzido um
quadro que se chamou “Trollando Guilherme Santana com um travesti”. O participante
do programa, Guilherme Santana, comorava o seu aniversário e, então, foi armada uma
situação em que ele fica com os olhos vendados enquanto é amarrado com o corpo colado
junto ao de uma travesti. Os xingamentos e o desespero do participante do programa
apresentam um discurso de rejeição total em relação a travesti.
O mesmo tom de preconceito marca a cobertura da Parada Gay de São Paulo de
2014 (MIRCMIRC, 2014). Nesse caso, há uma apropriação da linguagem e da cultura
travesti, porém, mais uma vez ressaltando as piadas e a atitude de rejeição que os participantes heterossexuais apresentam em relação aos homossexuais e travestis. Mesmo
as frases sendo colocados em personagens humorísticos que estão cobrindo a parada,
os discursos do humor são sempre em tom de fazer com que os outros acabem rindo
dos homossexuais, principalmente se as entrevistadas fossem travestis. Um exemplo
disso se dá no seguinte diálogo entre o personagem repórter e uma travesti entrevistada.
Ao que o entrevistador pergunta: “você tem a língua presa”, a entrevistada responde
“um pouquinho só”. Então o integrante do programa, tentando deixar a travesti em
situação constrangedora em rede nacional, pergunta: “e o que mais é preso?”. Estando
com um microfone diante de si e uma câmera ligada, ela responde: “tudo, está bem
escondidinho aqui embaixo”. Além disso, o entrevistador puxa a blusa da travesti para
mostrar que ela não tinha seios de silicone. Mesmo querendo adotar um discurso de
“não ao preconceito”, as piadas feitas no estúdio, entre os apresentadores do programa
que se declaram heterossexuais – sempre tentando deixar bem claro de que não são
homossexuais, como se tal fato fosse uma aberração -, acabam reforçando a visão de
preconceito contra os homossexuais, que é ainda mais acentuada quando são voltadas
para a cultura travesti.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há dois elementos fundamentais que devem ser considerado para se avaliar as
relações entre a cultura travesti e os discursos televisivos no Brasil. Primeiro, deve-se
reconhecer a existência dessa cultura, com formas de comunicação próprias, linguagens
específicas e tradições ainda pouco exploradas. Portanto, a perspectiva da folkcomunicação
aparece como uma das mais apropriadas para se estudar e abordar essa cultura sob a
perspectiva da Comunicação Social. O segundo elemento, é a apropriação das emissoras
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Mídia e folkcomunicação: a apropriação midiática da cultura travesti
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de sinal aberto de televisão brasileiras, que apresentam contradições em seus discursos
midiáticos. Primeiro, há o discurso moral do jornalismo, que busca a isenção e apela
para o discurso politicamente correto do combate à intolerância e a violência contra
determinados grupos que, historicamente, sofrem preconceito e perseguição. Porém, ao
mesmo tempo, essas mesmas emissoras incentivam tais atitudes da sociedade dando
destaque para quadros em seus programas humorísticos que tem em seu cerne a ridicularização e a sátira contra as minorias, homossexuais e, principalmente, travestis. A
maneira como esses veículos tratam a cultura travesti deve ser objeto de estudos mais
aprofundados, pois claramente eles prestam um desserviço à cidadania.
Há claras relações que podem ser feitas entre as abordagens mencionadas e notícias
sobre assassinatos e espancamentos de travestis. Por um lado, o Grupo Globo apresenta
apoio a protestos como o referido na matéria intitulada Grupo protesta em SP contra a
morte de homossexual em Goiás pelo site G1 no dia 13 de setembro de 2014. A última frase
do texto diz: “Entretanto, para a presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da
Ordem dos Advogados do Brasil Seção Goiás (OAB-GO), Chyntia Barcellos, a razão do
assassinato foi preconceito sexual”2. Ora, diante de tanto incentivo às vaias, às agressões
e às piadas contra homossexuais em seus programas humorísticos, pode-se concluir
facilmente que há profundas relações entre os princípios difundidos na sociedade através
da ênfase dada à tais atitudes em discursos que as apoiam, e casos como o citado na
referida matéria.
Para além disso, há ainda o tratamento dado no discurso dos programas televisivos
mencionados no decorrer do artigo. Ao satirizar a cura de um gay, o programa Zorra
Total adota discurso semelhante aos do século XV, quando pessoas com “desvios” sexuais
eram isoladas do resto da sociedade, consideradas loucas. “No domínio da expressão da
literatura e da filosofia, a experiência da loucura, no século XV, assume sobretudo aspecto
de uma sátira moral” (FOUCAULT, 2008, p.25). No entanto, essa postura ainda persegue
as minorias contemporaneamente. Essas eram práticas de exclusão e de marginalização
contra os grupos que eram condenados por um sistema moral, baseado na religiosidade
cristã. “Ora é sob essa forma que se descreve, e ao meu ver ainda hoje, a maneira
como o poder se exerce sobre os loucos, sobre os doentes, sobre os criminosos, sobre os
desviantes, sobre as crianças, sobre os pobres” (FOUCAUTL, 2010, p.37). As abordagens
de Foucault sobre a sexualidade e sobre a história da loucura, aliás, que podem servir
de base para outros estudos, mais aprofundados sobre a temática. Nessa etapa, porém,
as principais considerações que podem ser apontadas são a identificação de: 1) a cultura
travesti e 2) a hipocrisia no discurso midiático televisivo brasileiro no que se refere às
abordagens dessa mesma cultura.
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2. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/09/grupo-protesta-em-sp-contra-morte-dehomossexual-em-goias.html.
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”:
a cobertura da morte pelo jornal O Povo
Seu Lunga, “the angrier man”:
the cover of the death by newspaper O Povo
G i s l e n e C a r va l h o 1
Resumo: No dia 22 de novembro de 2014, Seu Lunga faleceu. O homem, que já
era midiatizado nos folhetos de cordel, em páginas de revistas, em programas
de televisão e na Internet, teve a morte tornada um espetáculo, como é comum
aos olimpianos (MORIN, 2011). Uma das maiores coberturas realizadas sobre o
fato se deu pelo jornal cearense O Povo, com matérias publicadas no site, ainda
no dia 22, e no impresso nos dias 23, 24 e 25 de novembro, incluindo notícias
sobre o sepultamento e reportagens especiais sobre a importância de Seu Lunga
para a cultura cearense. Neste trabalho, analisamos as matérias produzidas pelo
Jornal O Povo, com foco em uma perspectiva folkmidiática (LUYTEN, 2006), que
observa as interseções entre a mídia massiva e os elementos da cultura popular.
Seu Lunga pode ser considerado este elemento por ser um personagem do
imaginário coletivo nordestino e que teve uma imagem - de grosseria - difundida
pelos folhetos de cordel. Para isso, realizamos também uma reflexão teórica
em torno dos conceitos de de critérios de noticiabilidade para Wolf (2012), de
personagem para Bakhtin (2011), Brait (2006) além dos conceitos de olimpianos e
folkmídia, já mencionados. Para isso, analisamos os textos publicados pelo jornal
O Povo no site e no impresso, identificando as características que se aproximam
daquelas destacadas pelo personagem dos folhetos, observando que o produto
desenvolvido por um veículo de massa utiliza também os elementos da cultura
popular, seja no texto, na descrição do personagem e mesmo nas ilustrações
apresentadas nas páginas.
Palavras-Chave: Seu Lunga; Personagem; Jornal O Povo; Folkmídia.
Abstract: On November 22, 2014, Seu Lunga died. The man, who was already
mediatized in string of brochures, magazines pages, in television and Internet
programs, had become death a spectacle, as is common to Olympians (Morin,
2011). One of the largest roofing made about the fact was due to the Ceará
newspaper The People, with materials published on the site, still on 22, and
printed on 23, 24 and 25 November, including news about the burial, special
reports on the importance of Seu Lunga for Ceará culture. In this paper, we
analyze the material produced by the newspaper The People, focusing on a
folkmidiática perspective (LUYTEN, 2006), which observes the intersections
1. Jornalista. Mestre em Estudos da Mídia (UFRN). Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade
Federal de Minas Gerais.
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”: a cobertura da morte pelo jornal O Povo
Gislene Carvalho
between the mass media and elements of popular culture. Seu Lunga can
be considered this element to be a character in the collective imagination
northeastern and had a picture - rudeness - spread by string brochures. For this,
we also conducted a theoretical reflection on the concepts of newsworthiness
criteria for Wolf (2012), from character to Bakhtin (2011), Brait (2006) beyond the
concepts of Olympians and folkmídia, already mentioned. For this, we analyzed
the texts published by the newspaper The People on the website and in printed,
identifying the characteristics approaching those highlighted by the character
of the leaflets, noting that the product developed by a ground vehicle also uses
elements of popular culture, whether in text in the description of the character
and even the illustrations on pages.
Keywords: Seu Lunga; Character; Jornal O Povo; Folkmedia.
JOAQUIM DOS SANTOS: SEU LUNGA
OAQUIM DOS Santos Rodrigues morava em Juazeiro do Norte, no Cariri Cearense,
J
a 516 km de Fortaleza, e faleceu em 23 de novembro de 2014. Chamado de “Seu
Lunga”, ele ficou conhecido por respostas grosseiras a perguntas consideradas tolas
e virou um personagem, cujas histórias circulam através de conversações cotidianas,
folhetos de cordel e veículos de mídia massiva. O personagem, então, alcança um amplo
destaque regional, tendo seu nome associado às situações de grosseria, chegando ser
identificado, também, nacionalmente a partir de produções que o apresentam como “o
homem mais ignorante do mundo”.
Seu Joaquim era dono de uma sucata que funcionava no centro da cidade e que
vendia uma grande variedade de objetos que se confundem aos olhos do visitante que
desconhece a organização daquele espaço. Transparecia simplicidade. Vestia-se como um
sertanejo é capaz de ser reconhecido: usava camisa de botão, calça de pano, sandálias e
um chapéu de massa para proteger do sol. Trabalhava diariamente na sucata, onde não
tinha empregados. Era devoto de Padre Cícero, como sugere a religiosidade da cidade
de Juazeiro do Norte. As feições do rosto demonstravam um ar de cansaço e de pouca
paciência. O discurso sobre suas opiniões nos mostravam certa intolerância com o que
diverge de seus pensamentos. Ideias que pareciam fixas e com poucas possibilidades de
mudança. Interessado em política – já fora candidato a vereador da cidade de Juazeiro
do Norte – e em poesia – recitava seus versos a quem pedisse.
Mas nenhuma destas características foi considerada tão marcante. Seu Joaquim
ficou conhecido com o homem das respostas grosseiras. Aos poucos, as histórias dos
diálogos que aconteciam na sucata começavam a tomar forma de piada e se espalharem.
Um indivíduo que viveu a situação contava a outra pessoa, que repassava a história a
outro grupo e os relatos iam se difundindo potencialmente. Cada história contada pela
subjetividade do interlocutor, que vai adaptando os fatos de acordo com sua memória,
com a estética do discurso, incluindo ou retirando elementos que julgue interessantes
e atuando como testemunhas oculares, contando o que viam, ou auditivas, relatando o
que ouviam falar. A realidade vai sendo construída por cada mediador que difunde o
aspecto de grosseria de Seu Joaquim.
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”: a cobertura da morte pelo jornal O Povo
Gislene Carvalho
A criatividade dos sujeitos não fica restrita aos discursos que foram produzidos por
Seu Joaquim e as suas adaptações. A grosseria das respostas foi se espalhando pelos
boatos e aos poucos, histórias de diálogos com respostas inesperadas eram criadas e
passavam a ser atribuídas a Seu Lunga. “Não existe muita riqueza de argumentação ou
um intricado desafio linguístico: é construir um contexto, formular uma pergunta que
possa provocar seu gênio irascível e antever a resposta” (CARVALHO, 2006, p. 82). Ele
se torna uma sinédoque, ou seja, um sujeito que agrega o imaginário de diversos atos
que não necessariamente tenha realizado, de comportamentos grosseiros, de respostas
impacientes, que para serem tomadas como reais, precisam de um sujeito que as execute.
Assim, Seu Joaquim, aquele homem simples da sucata, de repente, passa a ser
tratado como um personagem cômico, o protagonista das histórias de perguntas ingênuas e respostas intolerantes, o Seu Lunga. Segundo Carvalho (2006), ele tem tido sua
imagem modelada e cristalizada pelo povo. O homem real vira, então, uma caricatura,
uma representação que é transmitida e retransmitida constantemente quando o assunto
é “ignorância”.
Personagem local que passa a ser midiatizado. Inicialmente, pela mídia cordel,
como um registro da história cotidiana que começa a fazer um registro daquilo que as
pessoas contam sobre o homem que se tornou importante, que se tornou um destaque
da cultura local. Um homem que tem sua representatividade social por fazer parte do
coletivo de significados que a cidade de Juazeiro do Norte possui, e que não fica restrito
à cidade, tanto que passa a aparecer em veículos de circulação nacional.
SEU LUNGA PERSONAGEM DE CORDEL
Seu Lunga é, então, um personagem midiático. Cria-se um cenário em torno de
suas representações, que o constituem enquanto elemento principal de uma narrativa
cômica e que se consolida no imaginário coletivo a partir das construções midiáticas,
seja nos folhetos, onde tem mais força, seja na televisão ou nas revistas, que permitem
que Seu Lunga seja transportado do espaço de Juazeiro do Norte para todo o Brasil.
Em uma narrativa, o personagem é quem conduz as ações. É nele que se concentram os fios condutores das histórias contadas. Personagem, segundo Rosenfeld (2011),
constitui ficção. O conceito de Brait (2006) também enquadra o personagem no âmbito
da ficção e a define como “ente composto pelo poeta a partir de uma seleção do que a
realidade lhe oferece, cuja natureza e unidade só podem ser conseguidos a partir dos
recursos utilizados para a criação” (BRAIT, 2006, p. 31). Neste trabalho consideramos as
definições dos autores, mas ampliamos a compreensão da personagem para as demais
formas narrativas que ultrapassam a ficção. Temos personagens em textos jornalísticos, em relatos históricos, em folhetos de cordel. Entendemos aqui que personagem é
a representação discursiva de um condutor antropomorfizado das ações constituintes
de uma narrativa.
Assim, Seu Lunga, que não constitui exatamente um personagem de ficção, mas que
perpassa as atividades criativas e imaginativas dos poetas de cordel e que possui um
referente na realidade cotidiana, ainda que com características distorcidas, é também
considerado personagem e como tal é tratado aqui. Segundo Bakhtin (2011), o autor
vivencia sua personagem, e a atitude essencialmente criadora está em inserir-lhe imagens.
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”: a cobertura da morte pelo jornal O Povo
Gislene Carvalho
Rosenfeld (2011, p. 32) considera que “a nossa visão da realidade em geral, e em
particular dos seres humanos individuais é extremamente fragmentária e limitada”,
enquanto os personagens são acessíveis em toda a sua essência, pelo menos toda aquela
que se pretende apresentar para a realização das ações narrativas, sejam quais forem
suas intencionalidades.
Rosenfeld (2011) fala que a criação de personagens está situada em zonas indeterminadas, que se atém a elementos que não precisam ser dados ou descritos. Estas
zonas representariam aquilo que não foi objetivado em forma de linguagem, mas que
se constitui como imagens mentais, que decorrem justamente da limitação das orações
das narrativas, que é a possibilidade da imaginação.
Assim, temos um acesso à consciência de Seu Lunga - personagem - que se faz
muito mais amplo do que seria possível com relação a Seu Joaquim. Por isso, tem-se uma
ideia em relação ao personagem de conhecimento de toda a sua essência, sensação de
onisciência dentro da narrativa por parte do autor, mas também por parte dos leitores/
ouvintes que se sentem em uma posição de supor o tipo de resposta que seria dada
por Seu Lunga em determinadas situações. Enquanto Seu Joaquim apresenta diversas
características que compõem uma personalidade que não pode ser totalmente descrita
nos folhetos, mas a partir deles abre-se a possibilidade de imaginação.
Os personagens, então, se mostram mais coerentes que as pessoas reais, com menos
contradições. Seu Lunga só é compreendido dentro de um contexto de grosseria, enquanto Seu Joaquim, ao passo que é grosseiro em algumas atitudes, se mostra delicado ao
compor versos de poesia, o que pode se configurar como uma incoerência narrativa.
Assim, o autor decide qual é o rumo de seu personagem, selecionando situações e
aparências físicas e de comportamento que mereçam destaque, tornando os personagens, segundo Rosenfeld (2011), seres humanos puramente transparentes, em termos
epistemológicos, à nossa visão.
Essa construção de uma representação é chamada por Bakhtin (2011) de excedente da
visão estética, considerando-as como criações, por tratarem-se de conhecimentos limitados sobre o outro. Os autores nunca conhecerão por completo a essência de Seu Joaquim,
assim, sua representação é feita como personagem a partir de atividades contemplativas,
que permitem as atividades criativas. As imagens externas são vivenciadas unicamente
pelos indivíduos e temos a sensação de apreender completamente a personagem, pois
suas formas caricaturais nos são apresentadas como se representassem o todo.
A consciência do autor envolve a consciência e o mundo de seu personagem, conhecendo tudo o que o caracteriza, o que ele conhece, o que ele sente, mesmo as sensações
que sejam inacessíveis aos próprios personagens. “O modo como eu vivencio o eu do
outro difere inteiramente do modo como vivencio o meu próprio eu” (BAKHTIN, 2011,
p. 35). As afirmações do personagem sobre si mesmo, na verdade, são afirmações do
autor sobre a consciência da personagem, são representações. O outro que percebemos
não é o outro real. Sua completude está inacessível e apenas podemos ter acesso ao que
sobre ele é construído. Como em um ciclo, isso vai acontecendo em forma de discursos
sobre discursos.
Wood (2012) considera que conhecemos os personagens a partir das formas como
eles nos são apresentados pelos autores, que algumas vezes é como outros personagens
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”: a cobertura da morte pelo jornal O Povo
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o veem. Conhecemos os personagens pelo que Bakhtin (2011) chama de excedente da
visão estética. Nossa interpretação sobre os personagens são construídas a partir do
que os autores constroem sobre elas. No caso de Seu Lunga, são vários autores que o
constroem, coletivamente ainda que de forma independente. Cada um com seus discursos constroem elementos de um personagem em comum. Conhecemos Seu Lunga
a partir do que sobre ele é dito em folhetos de cordel, em programas de televisão, em
jornais e revistas. Mesmo em entrevistas, quando a possibilidade de fala era oferecida
ao homem-personagem, a construção das perguntas o direcionava ao reforço das características de personagem.
Assim, a atividade criativa que gera a imagem de Seu Lunga não pode ser considerada
individualmente, já que cada poeta, assim como cada narrador oral, insere elementos
nesse personagem ao qual temos acesso. Seu Lunga é o resultado de uma série de
diálogos que compõem novos discursos, conforme sugere o dialogismo de Bakhtin (2011).
É a partir do diálogos que o imaginário é constituído, em seu sentido mais amplo, e no
caso da construção do personagem Seu Lunga, estes diálogos podem ser identificados
e analisados a partir dos discursos dos folhetos.
Em cada causo contado sobre Seu Lunga, novos elementos decorrentes das ações se
constituem como construtivos dos personagens. Cada personagem Seu Lunga, de cada
poeta, é um personagem diferente e que contribui com traços para constituir a imagem
do Seu Lunga que se faz marcante nos imaginários nordestinos.
Por tratar-se de um personagem, Seu Lunga não surge de suas próprias forças de
existências, mas há uma inspiração em um homem que também se configura como
autor, quando cria traços de personalidade. Nos referimos aqui à autoria dos poetas,
que decorre da oralidade que se inspira no autor primeiro, que é o próprio Seu Joaquim.
Mas a configuração do personagem enquanto tal está na “compreensão participativa e
o acabamento do acontecimento da vida dela por um espectador em realidade cognoscente e eticamente alheio” (BAKHTIN, 2011, p. 13), ou seja, na imagem que se constrói
na recepção.
Seu Lunga é descrito nos folhetos, atribuem-se adjetivos, faz-se juízo de valor sobre
sua personalidade, mas a força de sua caracterização está nas ações que se repetem:
perguntas ou comentários triviais que recebem respostas grosseiras. Segundo Bakhtin
(2011), o todo semântico do personagem só pode adquirir significação neste conjunto
entre traços descritivos e ações. Através do ato, realiza-se uma significação concreta,
que depende de fins e de meios, não apenas de determinações dos personagens.
Brait (2006) classifica este tipo de personagem como plano, ou seja, “definidos com
poucas palavras, estão imunes à evolução no transcorrer da narrativa, de forma que as
suas ações apenas confirmem a impressão de personagens estáticas, não reservando
qualquer surpresa ao leitor” (BRAIT, 2006, p. 41). Personagens planos podem ser
subdivididos em “tipos”, que são peculiares, mas não deformados, e “caricaturas”,
quando uma única característica é levada ao extremo, causando distorção e, segundo
Brait (2006), normalmente está a serviço da sátira. Seu Lunga é uma caricatura em
que apenas a grosseria recebe destaque em suas ações, sendo distorcida ao ponto de
representar situações inverossímeis ou de agressões a si próprio.
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Nos versos de cordel, são sempre os traços de grosseria que são relatados. Apesar de
alguns poetas destacarem outras características quando iniciam os folhetos, as ações realizadas pelo personagem têm sempre uma mesma forma, seguem estruturas semelhantes
e o conteúdo se refere ao mesmo traço constitutivo, que é o das respostas agressivas.
Classificar Seu Lunga como um personagem plano não significa considerá-lo pouco
vivo, ou que isso o coloque em um campo de significação distanciado da realidade cotidiana. Em vez disso, fixar-se em uma característica e assumir o posicionamento de um
único olhar remete à complexidade do personagem como todo, do qual o autor não dará
conta. Faz-se assim uma caricatura, destacando um elemento apenas para representar
este todo. “Terei de admitir que muitos personagens ditos planos me parecem mais
vivos e mais interessantes como estudo humano, por mais efêmeros que sejam, do que
personagens redondos a que supostamente estão subordinados” (WOOD, 2012, p. 94).
Seu Lunga descrito nos versos é a personificação, a representação de uma ideia.
Uma significação que remete a um homem real e ao mesmo tempo cria outro, cria vários,
com características estereotipadas, que variam nos folhetos apenas em alguns detalhes,
mas mantém os formatos de construção de realidades que se refletem no cotidiano, nas
falas, nos interpretantes, que se formam a partir das leituras dos versos.
Seu Lunga, então, torna-se um símbolo cujo significado é a grosseria. Possui características pré-determinadas, e se faz possível construir diversos “Seu Lunga” a partir destes
traços estruturais. Assim, a relação entre Seu Lunga e respostas grosseiras passa a compor o imaginário coletivo, remetendo-se mutuamente como representações simbólicas.
Na constituição do folheto, o personagem Seu Lunga é fundamental, pois os gracejos
estão centrados em suas ações de protagonista. Ele interage com outros interlocutores,
mas eles não são fixos nos causos. Alguns até aparecem mais de uma vez, como é o
caso da esposa de Seu Lunga, mas ela não é descrita nem recebe características, apenas
sofre as ações.
Seu Joaquim considera que os causos não representam a realidade, mas o nome
do personagem coincide com seu apelido e as histórias de grosserias remetem a
comportamentos rudes que Seu Joaquim assume possuir, com a justificativa de exigir
denotações linguísticas nas perguntas que lhe fazem.
Apesar de considerar que os versos de cordel não representam o que ele chama de
realidade, Seu Joaquim tem comportamentos que levam à identificação dos dois “Lunga”
como sendo o mesmo. “Olhando através dessa tela da alma do outro, reduzida a meio, eu
vivifico e incorporo a minha imagem externa ao mundo plástico-pictural” (BAKHTIN,
2011: p. 29). Personagem e indivíduo se confundem e se misturam o tempo inteiro,
porque o próprio Seu Joaquim, por vezes, incorpora as ações que são reproduzidas nos
folhetos e que ele critica, mas não desconstrói.
REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA: SEU LUNGA ALÉM DOS FOLHETOS
Seu Lunga, como personagem midiático, é um olimpiano, que, segundo Morin
(2011), representa vedete da grande imprensa, as chamadas celebridades. Indivíduos
cujas vidas se confundem entre o público e o privado, cujas ações se confundem entre o
interesse coletivo e a representação midiática, que transitam constantemente entre real
e imaginário. Seu Lunga, então, é um olimpiano, cujo olimpismo surge do imaginário,
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do papel encarnado nos folhetos de cordel, da construção que foi feita do personagem
dos versos. Vira uma celebridade, uma personalidade que a audiência tem interesse em
conhecer. Visitar a sucata, tirar foto, tentar fazer uma pergunta óbvia para receber uma
resposta grosseira de Seu Joaquim, conforme propõe o imaginário construído, passa a
ser pauta turística de quem visita Juazeiro do Norte.
Como celebridade, Seu Lunga era constantemente pauta de veículos de mídia
tradicionais, além dos folhetos de cordel. Seu Lunga escapa dos espaços do cordel. Ele
é representado como homem real em outros espaços midiáticos. Matérias apoiadas
no grotesco, no exótico de seu comportamento. Mostram “o homem mais ignorante
do mundo”, o entrevistam e reforçam as características descritas nos folhetos de
cordel. Algumas outras matérias se dedicam a mostrar outras faces do personagem,
apresentando-o como poeta, como político, como homem comum.
Temos, então, um personagem da cultura popular que, além de aparecer nos folhetos,
alcança também os outros veículos de mídia. Quando isso acontece, quando há uma
mediação entre elementos da cultura popular e os meios de comunicação de massa,
temos, então o conceito de folkmídia, definido por Luyten (2006) como a “iniciação entre
os meios de comunicação de massa e a folkcomunicação, ou seja, o uso tanto de elementos
oriundos do folclore pela mídia como a utilização de elementos da comunicação massiva
pelos comunicadores populares” (p 41).
Essa mediação é percebida, principalmente, pelas significações que Seu Lunga
permanece dotado quando chega aos espaços da comunicação de massa, que repercutem
as características desenvolvidas pelos folhetos de cordel e pelo imaginário coletivo. O
ponto de partida da construção dos textos é sempre o mesmo, ainda que o desenvolvimento
das matérias caminhe por direções distintas. Busca-se revelar quem é Seu Lunga, a
existência real do “homem mais zangado do mundo”. Mesmo as matérias que trataram
de sua morte tiveram como ponto de partida as piadas sobre a grosseria de Seu Lunga,
fosse com a utilização de imagens de arquivos em que este comportamento pudesse ser
reforçado, fosse em sonoras com entes de Seu Joaquim, cujas perguntas faziam referência
ao comportamento pouco paciente.
Revistas, programas de televisão e vídeos na Internet costumam se inspirar nos
causos e no estereótipo construído sobre ele para fazerem matérias em busca deste
homem tão mencionado e procurado nos folhetos de cordel. Um personagem exótico,
que desperta a curiosidade, que é imaginário, mas que morre e, assim, declara sua
humanidade - distante dos deuses imortais do olimpo.
A morte, por si só, já representa um critério de noticiabilidade, que “é constituída
pelo complexo de requisitos que exigem para os eventos - do ponto de vista da estrutura
do trabalho nos aparatos informativos e do ponto de vista do profissionalismo dos
jornalistas -, para adquirir existência pública de notícia” (WOLF, 2012, p. 195). A morte de
um olimpiano, um indivíduo do cotidiano transformado em imagem midiática, recebe
um maior valor-notícia. É o que Wolf (2012) caracteriza como o critério substantivo que
se refere ao interesse da notícia. Interesse despertado pelo caráter de celebridade que
Seu Lunga adquiriu ao ser tratado como objeto do imaginário coletivo, mas que tinha
também uma representação na realidade cotidiana.
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”: a cobertura da morte pelo jornal O Povo
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O impacto da morte é um valor-notícia. E sobre este acontecimento, seguem-se
várias formas de abordagem: matérias sobre a vida de Lunga, sobre como ele se tornou
personagem, sobre sua representação em folhetos de cordel, além da cobertura da morte
e sua factualidade, que acompanha o velório e as homenagens no enterro, entrevista
parentes e estudiosos e constrói um luto coletivo pela perda de um olimpiano que se
mostra homem por sua mortalidade.
Temos então formas diferentes de construções midiáticas que estão pautadas no
espetáculo em torno do personagem, que exploram seu cotidiano e que criam novas
formas de cristalizar uma imagem e transformá-lo em personagem. Seja nos folhetos, seja
nas revistas, Seu Lunga é ainda um ator que desperta curiosidade para reforçar ou para
desmentir estereótipos. E todas as características que dão forma a esta caricatura estão
postas em campos finitos de significação em verso e em prosa. Observamos, assim, que
não apenas folhetos, mas também a mídia em geral atua na construção de um espetáculo
em torno deste homem que é transformado em personagem midiático.
A COBERTURA DA MORTE E O CASO DO JORNAL O POVO
O Jornal O Povo, através de seu portal, noticiou a morte de Seu Lunga ainda no
sábado, dia 22, às 11h10 da manhã2. De imediato, no título, deixa a marca que seguirá
por todos os textos seguintes publicados tanto no site O Povo Online, como no jornal
impresso: a morte de um personagem. “Morre poeta e personagem cearense Seu Lunga”
cumpre a função informativa do título de uma noticia na Internet, que deve ser curto
e completo, inclusive para que quem não tenha interesse no clique não precise realizálo. Para além da questão jornalística, que não é o objetivo de análise deste trabalho,
observamos que o Seu Lunga noticiado tem um elemento de realidade, o fato de ser
poeta, mas é também um personagem e, portanto, sujeito imaginário.
Ser considerado personagem, como proposto em uma revisão bibliográfica já
realizada neste artigo, produz um sentido que não necessariamente implica tratar-se de
personagem de ficção. O personagem pode ser um sujeito que, dotado de ações, conduz
inclusive narrativas do real. Um personagem histórico, personagem de uma matéria
jornalística, personagem cultural... Ou mesmo o ficcional. Que pode ser associado a
um sujeito real e temos, então, um olimpiano, conforme proposto por Morin (2011).
Apenas pelo título não conseguimos ainda identificar que tipo de personagem Seu Lunga
representa neste momento, tampouco suas características. Para isso entramos no texto.
Subtítulo e lide da notícia mencionam o acontecimento que está sendo noticiado, e
os três parágrafos seguintes seguem um padrão de pirâmide invertida, tradicional ao
jornalismo, com as informações apresentadas em ordem decrescente de importância a
partir do critério de atualidade. Seu Lunga, que é chamado aqui de “sucateiro”, assim
como no subtítulo, fazendo referência ao comércio de sua propriedade e, portanto, à
realidade cotidiana de Seu Joaquim, cujo nome real também é mencionado no lide. Até
aí temos uma representação do homem real, que tinha uma identidade, uma profissão e
que morreu. A morte, aqui, atesta sua humanidade, sua existência na realidade cotidiana
e um distanciamento do personagem de ficção.
2. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2014/11/22/noticiafortaleza,3351903/morrepoeta-e-personagem-cearense-seu-lunga.shtml Acesso: 20 de março de 2015.
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Mas a partir do quinto parágrafo começam a aparecer elementos que marcam a
transitoriedade que existe entre Seu Lunga real e Seu Lunga personagem construído.
Aqui, ao destacar a característica que fez Seu Lunga tornar-se conhecido, o situa imediatamente como personagem folclórico. Esta classificação faz referência aos aspectos
mitológicos que dão aos personagens o caráter de lenda, ou seja, situações que se tornam
conhecidas, mas sobre as quais não se tem confirmação. Ao ser mencionado como este
tipo de personagem logo depois de destacar aspectos de sua realidade cotidiana, e ainda
traçar um paralelo entre o elemento desta realidade e o que o torna personagem, mostra
que há um fluxo entre factualidade e ficção. Este mesmo parágrafo se repete em outra
publicação, do dia do sepultamento.
Ainda nesta notícia temos uma espécie de arquivo que retoma uma dita “biografia”
de Seu Lunga. O subtópico faz referência ao nascimento de Seu Lunga e seu casamento,
mas oferece mais destaque a uma entrevista realizada em 2009 pelo Jornal o Povo, em
que Seu Lunga nega as características dita folclóricas sobre sua personalidade, ou seja,
ele mesmo buscava se afirmar enquanto homem real e negar-se enquanto personagem.
Mas quando a abordagem é feita pelos veículos midiáticos, o que percebemos é uma
retomada dessa transição, que oferece o caráter olimpiano de Seu Lunga: uma hora ele
é o homem que afirma ser diferente do sujeito grosseiro descrito nos folhetos. Outra
hora ele é rude ao responder aos repórteres que fazem o que ele chama de “pergunta
besta”. Isso faz parte da biografia que é descrita na notícia.
A matéria e encerrada com uma lista de causos atribuídos a Seu Lunga. Como uma
forma de referência, de contextualização. Porque quem não soubesse quem é o Seu
Lunga real, certamente saberia quem era o personagem das anedotas. E contextualiza
ainda as características do personagem. Além disso, reforça novamente a transitoriedade
entre Seu Joaquim e Seu Lunga - personagem. Mesmo a notícia da morte demanda o
resgate do personagem. Morre o homem e morre o personagem, já que ambos estavam
encarnados na mesma figura. Mesmo assim, as piadas reforçam o estereótipo criado
em torno de Seu Joaquim, ainda mais por estarem legitimados em um espaço que
pressupõe credibilidade, que é a mídia com a marca de um grande jornal cearense. O
relato do real ainda precisa, neste caso, do ficcional para se constituir como notícia.
Porque é esta ficção que dá a Seu Lunga o caráter olimpiano e, portanto, atribui valor-notícia a sua morte.
No dia seguinte, dia 233, a única notícia veiculada nos canais do O Povo fazia
referência a uma atualização do fato, que noticiava, então, o horário e o local do
sepultamento de Seu Lunga. Utiliza um hiperlink para a matéria sobre a morte publicada
no dia anterior e no último parágrafo é que se refere ao personagem, classificando-o como
“um dos principais da cultura nordestina”. Fala ainda em um “temperamento agreste”,
como sinônimo de agressivo e destaca a comicidade que o personagem adquiriu ao falar
em “tiradas bem-humoradas”. Esta comicidade é outro elemento que faz sobressair o
personagem ao homem real, que se dizia incomodado ao ser objeto de riso e, por isso,
teria processado o poeta Abraão Batista.
3. Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/ceara/juazeirodonorte/2014/11/23/notjuazeirodonorte,
3352195/sepultamento-de-seu-lunga-ocorrera-na-tarde-deste-domingo-em-juazeiro.shtml Acesso: 20 de
março de 2015
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”: a cobertura da morte pelo jornal O Povo
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Dia 244 de novembro foram publicadas notícias sobre o velório. No Jornal O Povo,
novamente, a publicação foi online. Continha uma foto da funerária e Seu Lunga no
caixão. A primeira referência ao personagem é feita no subtítulo, colocando “personagem
do folclore cearense” como aposto a Seu Lunga. Voltamos às referências ao real quando
temos a fala de um parente, que opina sobre as homenagens feitas no velório ao Seu
Joaquim que, normalmente, era responsável pelas homenagens fúnebres na família. Esta
menção não passa pelo personagem, mas retorna a ele no parágrafo seguinte, quando
o apresenta como personagem de folhetos de cordel. Aqui, é mencionada a principal
característica do Seu Lunga personagem, o comportamento “arredio”, mas ao mesmo
tempo retorna à realidade cotidiana dando a um especialista a fala de que os causos
não seriam verdadeiros. Mesmo situado no espaço da realidade cotidiana, o próprio
pesquisador não nega as características do homem real, próximas às do personagem:
Lembro de uma vez que fui ao endereço de Seu Lunga com meu pai e encontramos um
garoto no balcão. Chegando lá o garoto teria dito: ‘Seu Lunga, lá fora tem dois homens’.
Ao que ele teria respondido: ‘Pois vá lá fora e diga que aqui tem três’. Em seguida, lá vinha
o Lunga, ele mesmo rindo da brincadeira e nos contando a história”, relembra Casimiro.
(Redação O Povo Online)
Utilizando situações da realidade cotidiana de Seu Joaquim em que seu comportamento é considerado grosseiro, encontramos as brechas que encaminham a transição
entre homem real e personagem construído. Há situações em que são tão semelhantes,
que não conseguimos identificar a linha que separa os dois. Tampouco identificamos
se esta linha existe realmente. Mesmo descrevendo situações da realidade cotidiana de
Seu Joaquim, temos características do personagem. E o personagem, como já declarado
pelos próprios poetas, é inspirado no comportamento de Seu Joaquim.
Em todas as matérias, percebemos uma tentativa de explicar o comportamento de
Seu Lunga, de justificar a fama, para além da criação do personagem. As explicações de
situações que faziam Seu Joaquim oferecer respostas grosseiras aos seus interlocutores
realizam as aproximações entre seu comportamento e a forma como isso se transforma em
anedota. Isso é feito com as explicações do próprio Seu Lunga em entrevistas, justificando
não tolerar o que chama de “pergunta besta”, e também com as falas de pesquisadores e
de pessoas que conviveram com ele e que relatam as mesmas justificativas discursivas.
No jornal impresso, a morte de Seu Lunga aparece no dia 25 de novembro5. Trata-se de um especial abordando a importância de Seu Lunga para a cultura cearense.
O título da matéria fala em uma herança de Seu Lunga, que é explicada no subtítulo
como uma “marca forte no imaginário popular”. O homem morre, mas o personagem
permanece vivo.
Esta reportagem tem um caráter diferenciado dos demais textos publicados sobre
a morte de Seu Lunga. Aqui, além de dar espaço para mais fontes (um pesquisador,
4. Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2014/11/24/noticiafortaleza,3352545/amigose-familiares-se-despedem-de-seu-lunga.shtml Acesso: 20 de março de 2015.
5. Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2014/11/25/noticiasjornalvidaearte,
3352789/a-heranca-de-seu-lunga.shtml e http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2014/11/25/
noticiasjornalvidaearte,3352827/o-lunga-dos-cordeis.shtml Acesso: 20 de março de 2015.
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”: a cobertura da morte pelo jornal O Povo
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uma cordelista, uma vizinha e um colecionador de folhetos), o reporter dá ênfase a uma
busca pela identificação do homem real e pelos motivos que o transforma em personagem. Considera a característica do personagem como fama atribuída ao homem real
em alguns momentos, em outras refere-se às respostas espontâneas deste homem real
que se transforma em personagem. O transito aqui é mais marcado: percebemos muito
mais elementos de realidade cotidiana, porque o repórter mostra que percebe que o personagem é construído. Mesmo que mencione traços que considera grosseiros por parte
de Seu Joaquim, estes são acompanhados de situações cotidianas que parecem explicar
o posicionamento do homem real diante das ditas “perguntas idiotas”. Os elementos
disponíveis nesta matéria encontram na realidade cotidiana possíveis elementos que
levam á criação do personagem.
A matéria fala ainda em sucessores de Seu Lunga, que mostra novamente um trânsito entre realidade cotidiana e ficção, pois estes tanto podem ser indivíduos de famas
semelhantes, como novos personagens com as mesmas características de grosseria.
A matéria tem uma coordenada sobre o Lunga dos cordéis, que marca um a saída de
foco do homem e vai ao personagem. Contextualiza os processos criativos e associa
aos folhetos, a partir da fala de um colecionador, a fama de Seu Lunga e a consequente
transformação de sua personalidade em mito, ou folclore.
O texto é concluído com uma explicação do colecionador que situa Seu Lunga no
imaginário coletivo, o que nos leva a compreendê-lo definitivamente como personagem,
como nunca teria se reconhecido. Isso, na realidade, seria uma atribuição popular, de
todo mundo que escreveu ou que leu cordéis e, a partir disso, produz novas significações
atribuídas a ele e ressiginifica o personagem para além do homem real. Neste contexto,
quem teria morrido? Esta morte poderia representar mais a humanidade ou o olimpismo
de Seu Lunga?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existe uma tranitoriedade entre real e ficção nos relatos sobre Seu Lunga, quando
isso se fazia em vida. Ao morrer, e esta morte virar notícia, o trânsito permanece, talvez
até com um fluxo mais intenso. Os relatos incluem causos que popularizam a fama de
Seu Lunga, ao passo em que buscam justificativas e explicações para o comportamento,
seja resgatando entrevistas com Seu Joquim, conversando com pesquisadores e conhecidos, ou mesmo em um artigo de um psicanalista que avalia as práticas de Seu Lunga
como cotidianas e possíveis para qualquer indivíduo.
Obeservamos aqui que a cultura popular entra nos espaços da mídia hegemônica
ainda resgatando o exótico, o curioso, o extraordinário. Os textos permanecem mitificando
o personagem, até para validar a midiatização da sua morte enquanto celebridade
humanizada. A própria caracterização de Lunga nas matérias se faz de uma forma
muito próxima ao que se descreve nos cordéis.
Em vida, Seu Lunga, em alguns momentos, teve direito a uma representação de
“outro lado”, “outra face”, “outro olhar”, como acontece com toda celebridade, identificada
e reconhecida pelo imaginário e que tem sua vida cotidiana explorada em um sentido
de mostrar que “eles são como nós” e, portanto, não seguem padrões de comportamentos, têm aspectos que ficam á sombra quando os holofotes são lançados a apenas
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Seu Lunga, “o homem mais zangado do mundo”: a cobertura da morte pelo jornal O Povo
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uma característica. Assim, Seu Lunga já apareceu como poeta, como comerciante, como
homem comum. Mas, na ocasião de sua morte ele retorna ao mito e assim representado – ainda que a morte seja a maior representação de humanidade para um indivíduo.
Assim, Seu Lunga permanece sem ser reconhecido se homem ou personagem na
cobertura do Jornal O Povo, que muitas vezes confunde os dois, até quando tenta justificar a criação do imaginário. Como folkmídia, a cobertura aqui apresentada não reconhece
de forma clara o fluxo entre realidade e ficção, tampouco esclarece isso ao leitor. Isso se
deve ao fato de que, neste caso, home real e personagem compõem o mesmo indivíduo
e a partir disso lhe atribui fama e status de olimpiano.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011XIV. Rio
de Janeiro: Zahar, 2011.
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
CARVALHO, Gilmar. Lyra Popular: o cordel do Juazeiro. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006.
LUYTEN, Joseph. Folkmídia: uma nova visão de folclore e de folkcomunicação. In: SCHMIDT,
Cristina. Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e metodológicos. São Paulo:
Ductor, 2006
MORIN, Edgar. O espírito do tempo 1: Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio. A personagem de
ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011.
WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação de Massa. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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Folkcomunicação em Portugal: um estudo
sobre a prosa, saber popular e conhecimento
científico dos almanaques portugueses
Folk Communication In Portugal: a study about prose, popular
lore and scientific knowledge of Portuguese almanacs
Sonia R egina Soa r es
da
Cunha 1
Resumo: A contribuição deste estudo é trazer o almanaque de cordel para o espaço
dialógico interdisciplinar dos estudos culturais e comunicacionais. Este artigo
revisa a história do almanaque, cuja narrativa mescla saber científico e saber
popular, artefato da cultura com os pés na tradicionalidade do homem do campo
e a cabeça na contemporaneidade do homem da cidade. O estudo historiográfico
aliado à teoria da Folkcomunicação (Beltrão) revela as formas pelas quais as
pessoas experienciam e dão sentido às práticas comunicacionais, distinguem o
passado e identificam a cultura. Os almanaques portugueses, “O Seringador”
e “O Borda D’Água”, formam o corpus empírico – “objetos folkcomunicacional,
do gênero visual, formato impresso, tipo almanaque de cordel” (Marques de
Melo, 2005). Podemos considerar que o almanaque na época de sua criação, em
Portugal, foi moldado pela imposição do gosto de quem detinha o poder do
capital econômico – os donos das impressoras – financiados pelos agentes sociais
que assinavam e se comprometiam em adquirir aquela produção simbólica
(Bourdieu), que através do senso comum evocava a identidade lusófona, esteio
de uma tradição cultural que seduz e perpassa gerações de portugueses.
Palavras-Chave: Folkcomunicação. Almanaque de Cordel. Cultura Popular.
Abstract: The contribution of this study is to bring the almanac to the
interdisciplinary dialogic space of cultural and communicational studies. This
paper reviews the history of the almanac, whose narrative merges scientific
knowledge and popular lore, cultural artifact with one side in the traditionalism
and other side in the contemporary. The historiographical study combined with
the theory of Folk Communication (Luiz Beltrão) reveals the ways in which
people experience and give meaning to the communication practices, distinguish
the past and identify the culture. The Portuguese almanacs, “O Seringador”
(Annoying) and “O Borda d’Água” (The water’s edge), constitute the empirical
corpus – “object folk comunicacional: visual, printed, almanac” (Marques de
Melo, 2005). We can consider that the almanac at the time of its creation in
Portugal, was shaped by the taste of who held the power of economic capital
1. Doutoranda em Comunicação: Tecnologia, Cultura e Sociedade pela Fundação Ciência e Tecnologia de
Portugal (doutoramento realizado por um grupo de universidades portuguesas sendo o CECS/UMinho a
instituição principal e os parceiros: Labcom (UBI), CIES (ISCTE-IUL), Cicant (ULHT-Cofac), CECL (UNL)
e CIMJ. E-mail: [email protected]
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- the owners of printers - funded by social agents who signed and committed
themselves to acquire that symbolic production (Bourdieu), which evokes the
Lusophone identity through the common sense, mainstay of a cultural tradition
that seduces and crosses generations of Portugueses.
Keywords: Folk Communication. Almanac. Culture.
INTRODUÇÃO
Depois de tudo o que pode ser obtido a partir do desenvolvimento científico
vê-se que há uma grande lacuna no coração das coisas,
uma lacuna esperando para ser preenchida pelas ideias,
crenças, concepções e aspirações do povo
que foram traduzidos para ele, mas não por ele.
Gomme, Folclore como a história da ciência, 1908.2
E
STAMOS EM Portugal. Na estação de comboios de Campanhã, no Porto, onde se
cruzam os que vêm da capital com os que vão, ou não, para o sul, ou norte, montanhas ou praia. Urbanos trabalhadores, cosmopolitas globais, rurais empreendedores, enfim, gente de todas as idades e classes sociais. Depois de atravessar o saguão da
bilheteria, ao sair para a rua, a saudação em algaravia emana dos prédios antigos cuja
arquitetura delicada foi desenhada há tempos, à mão, luz de candeiro, grafite; e hoje,
apesar da imponência, disputa espaço com as modernas falsas fachadas e os estendais
de roupas coloridas que esvoaçam como bandeirolas ao vento espalhando a portugalidade da eclética mistura dos diferentes tão iguais, permitindo-nos vislumbrar um pouco
da imensa diversidade cultural lusófona. O visitante pode, então, caminhar com Pinto
Bessa, andar com Padre Vieira e marchar pela Heroísmo3. Aqui e ali, sentir o aroma
adocicado dos pastéis de Belém, saborear bolinhos de bacalhau, demorar contemplativamente em frente às vitrines das lojas de ourivesaria que mais parecem museus, com
pequenas relíquias feitas em filigrana dourado reluzente, e avançar pela porta estreita do
estabelecimento que abriga um misto de livraria, jornaleiro, lojinha; onde parece haver
de tudo um pouco, até um opúsculo, em preto e branco, a atrair a clientela pela frase na
capa: “150º ano da sua publicação”, e em tinta vermelha: “1865*2015”, conhecido como o
almanaque “O Seringador”. Sem resvalar no dilema contemporâneo sobre o lugar do
impresso na cultura digital propomos a seguinte questão epistemológica para o estudo:
como é possível seduzir essa massa de leitores portugueses por 150 anos, sobreviver às
guerras, ditadura salazarista e agora a troika4?
2. Gomme, G.L. (1908) Folklore as an Historical Science. London: Methuen.
3. Ao sair no Largo da Estação de Campanhã, logo em frente começa a Rua Pinto Bessa que sobe para a
Igreja do Bonfim, mas antes pode-se entrar à esquerda na Rua Padre Antonio Vieira (fundador do espírito
lusófono no século 17), para logo em seguida dobrar à direita na Rua Heroísmo e espreitar o quotidiano
através das montras. (Na Rua Heroísmo ficava o Pide, o Dops/Doi-Codi de Portugal).
4. Em Portugal, a palavra ‘troika’ (do russo “troika”, que significa um comité formado por três membros)
caracteriza a equipe composta pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário
Internacional (FMI). Foi a ‘troika’ que avaliou as contas de Portugal para definir as necessidades de
financiamento, bem como foi responsável pelas negociações do resgate financeiro na Grécia, no Chipre,
e na Irlanda.
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PÓ MÁGICO REVELADOR DOS SINAIS DA NATUREZA
Ó menina vai ver nesse almanaque como é que isso tudo começou.
Diz quem é que marcava o tique-taque e a ampulheta do tempo disparou.
Se é chover o ano inteiro chuva fina ou se é como cair o elevador.
Chico Buarque, letra da música Almanaque, 1981.
Em Portugal, tanto “O Seringador” (150 anos de publicação ininterrupta), quanto
“O Borda D’Água” (86 anos ininterruptos), não possuem versão online, embora em
uma pesquisa rápida pela internet seja possível encontrar versões digitalizadas (sem
autorização das editoras), bem como apareçam em blogues, redes sociais e em reportagens
feitas para jornais diários. José Manuel Lello dirige a equipe de cinco pessoas que há
três décadas produz a edição anual do almanaque “O Seringador” publicado pela Lello
Editores, em Baguim do Monte5. Os dados das previsões metereológicas são fornecidos
pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Lello (2014) define o almanaque como
“um livreto com informações úteis sobre as feiras, calendários, santos, dias, feriados e
que tem também conselhos úteis para a agricultura e outras informações [...] e uma parte
dedicada aos versos críticos e anedotas”. (Lello apud Vivacidade, 2014, online). Por outro
lado, Célia Cadete, diretora do “Borda d’Água” brinca que o sucesso da publicação está
no “pó mágico revelador dos sinais da natureza” adicionado na porção correta quando
da escrita interpretativa da previsão anual, baseada nos relatórios científicos emitidos
pelo Observatório Astronômico da Ajuda.6 Para a jornalista Kátia Catulo7 o “Borda
d’Água” é um fenômeno comunicacional.
O almanaque está congelado no tempo – é impresso numa tipografia tradicional e mantém
a mesma linha editorial há oito décadas. Tem tudo para estar condenado, mas demonstrou
que a lei da probabilidade é um falhanço. Há cada vez mais leitores. Nasceu no início da
Grande Depressão em 1929, atravessou de uma ponta à outra o regime salazarista, chegou
à democracia e promete ultrapassar a pior crise económica das últimas décadas. [...] Ensina
ciência, mezinhas e outras sabedorias populares. Pode vir a Internet, a televisão por cabo,
as enciclopédias digitais ou qualquer outra tecnologia de ponta que o “Velho da Cartola”
continua igual.
Os dois almanaques são comercializados por vendedores de ruas nas pequenas
aldeias, em lojinhas de comércio popular dos bairros periféricos, e até em livrarias dos
grandes shoppings. De acordo com as informações das editoras calcula-se que cada
um, alcance cerca de 300 mil exemplares vendidos anualmente ao preço de 2€uros
(R$6, a unidade). Os sujeitos ‘seringador’ e ‘borda d’água’ estão presentes nas ações e
manifestações culturais das classes populares portuguesas, pois representam uma antiga
personagem que imprimia calendários (“Lunários”) com informações sobre o tempo/
pesca/agricultura/astrologia e pendurava as folhinhas impressas nas margens dos rios
5. Baguim do Monte (Rio Tinto) foi criada em 1985. É uma freguesia do concelho de Gondomar município
da área metropolitana do Porto, na região Norte de Portugal.
6. Observatório Astronômico de Lisboa do Museu da Universidade de Lisboa. http://oal.ul.pt/
7. Reportagem do Diário de Notícias, publicada no dia 5 de janeiro de 2009. Recuperado em 2 mar 2015
http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=1138502&page=-1
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navegáveis, com o objetivo de ajudar o trabalho dos pescadores e agricultores. No Brasil,
os almanaques mais conhecidos são os de farmácia, de curiosidades, cujo conteúdo
entretia e divertia o leitor. O “Seringador” e o “Borda d’Água” serão considerados neste
estudo, como ‘almanaques de cordel’, no sentido de “objeto folkcomunicacional”, como
descrito em textos de Beltrão8 e Marques de Melo (2005): como também “diluidores de
saberes, diluidores de conhecimento”, conforme descrito em Ferreira (2001) e Benjamin
(1999). O nome almanaque de cordel segundo Melo (2011, p.115) veio da proximidade com
a literatura de cordel. “Assim como a literatura de cordel, os almanaques são impressos
no formato de 8, 16, ou 32 páginas, em papel jornal, no tamanho de 11x13 cm, com
ilustrações na primeira capa (algumas em xilogravura).” O almanaque de cordel no
dizer de Beltrão (2001, p.195) foi criado para
transmitir coisas simples e úteis, visando ao bem-estar do homem, preveni-lo contra adversidades, anunciar-lhe bons tempos para o plantio, para a colheita, para os empreendimentos,
contar-lhe os segredos dos astros, os mistérios contidos nos velhos alfarrábios, as lendas e
os fatos do passado, as ocorrências do presente, alguma coisa segura sobre o futuro à base
da marcha da ciência.
Em uma de suas crônicas Rubem Braga (1964) também explora o lado das coisas
simples da cultura de almanaque, fato que para alguns, segundo o autor, pode não valer
nada, mas isto seria porque, estas pessoas “não são capazes de sentir a pequena e pura
emoção intelectual que dá em saber que os cocóis são cabeças de madeira pregados nos
alcatrates”. E observa sutilmente, que no final do dia, com “a consciência tranquila de
quem fez algo útil” é possível que o conteúdo da leitura do almanaque se transforme em
sonhos. Braga encerra a crônica a ponderar cautelosamente, que os sonhos são secretos.
“Não, não devo contar meus sonhos. Fazei como eu, isto é, fazei cultura.” (Braga, 1997).
Em 1890, Machado de Assis já antecipava descrever o almanaque de uma forma especial:
o tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão
somente os dias, as semanas, os meses, os anos. Um dia, ao amanhecer, toda a terra viu cair do
céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois, vendo
que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos folhetos,
outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia a língua das cidades
e dos campos em que caía. Assim toda a terra possuiu, no mesmo instante, os primeiros
almanaques. [...] O tempo criou o almanaque para que as pessoas pudessem compreendê-lo;
e que a montagem das páginas é feita pela esperança com figuras, versos, contos, anedotas.
Em 10 de julho de 2000, o escritor brasileiro Ariano Suassuna começou a escrever um
almanaque no espaço online da Folha de São Paulo9, talvez o único em toda a história
luso-brasileira desse tipo de escrita, o “Almanaque Armorial Brasileiro”. Semanalmente,
Suassuna desenvolvia uma ideia, tirada das cartas dos leitores, ou das histórias que
havia escrito. O objetivo segundo o escritor, era “dar um sentido a minha vida [dele]”.
8. BELTRÃO, L (1967). Folkcomunicação: Um Estudo dos Agentes e dos Meios Populares de Informação de
Fatos e Expressão de Ideias. Tese de Doutorado. BSB, UnB.
9. Almanaque Armorial. FSP. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1007200026.htm
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O almanaque como gênero, recusa-se àquelas friezas intelectuais, celebralistas e isoladoras, e é, no mundo contemporâneo, um dos últimos herdeiros do humanismo; da posição
daqueles que procuravam ser fiéis, ao mesmo tempo, ao conhecimento e à beleza; à filosofia
e à poesia; à ciência e à arte; ao claro real e ao enigma sombrio; ao cotidiano e ao sonho; a
tudo o que se entrega à reflexão consciente, mas também ao que nos inquieta nas escuras
profundezas do inconsciente. (Suassuna, 2008, posfácio).
Em tempos de cultura digital o almanaque também pode ser um aliado para
desvendar os segredos da agricultura no ciberespaço como observa Blanchard, com
relação ao jogo pela internet, “Farmville” da Zynga, disponibilizado pela rede social
Facebook.
Ah pois, agora sim percebi porque razão não consegui vingar no Farmville. Nem boas colheitas, nem água em abundância, sementeiras descuidadas e os subsídios que não chegaram,
enfim tudo isso porque nem eu nem ninguém utiliza um bem primário para a agricultura:
o almanaque Borda d’água. (Blanchard)10
Atão, como se trata de cultura popular, deixemos pois, o povo dizer de sua justiça:
Quando era pequeno, o meu pai comprava, invariavelmente, no final de cada ano, um almanaque, com dicas para agricultores à moda antiga, “O Seringador”. Já na altura a distribuição
editorial tinha o seu quê de idiota, já que as dicas de sementeira eram claramente adequadas
às condições climáticas do Norte de Portugal e não do Centro-Sul, onde morava. Mas era
bonito descobrir que, quando as previsões meteorológicas do Instituto de Meteorologia e
Geofísica falhavam, o mesmo não acontecia com as do Seringador, tendo em conta que as
previsões eram apenas feitas pelo empírico conhecimento dos efeitos dos quartos da Lua
e outras influências astrológicas. (Manuel)11
No espaço social da minha infância, nos primeiros dias de cada ano, “O Seringador” entrava
nos lares, e traz as novidades para todo ano e, na sua picaresca ousadia, subvertia a ordem
estabelecida no picante das suas anedotas. Em círculo, afagando o crepitar da lareira, por
entre os uivos de vento e de chuva zurzindo, lá fora, o negrume da noite, os homens - patrão
e a clientela de servos, que à casa se acoitavam, sem pão e sem trabalho, nas longas invernias
– batiam o jogo da sueca ou do chincalhão, por entre jarros de vinho quente nas gargantas,
gargalhavam com as picardias de “O Seringador”; ou então, solenes, meditavam nas sábias
considerações com que o “Juízo do Ano” fazia o balanço dos últimos 12 meses passados e
perspectivava o devir os meses futuros, conforme a conjugação dos astros. Pois não é que
o sabichão e matreiro “O Seringador” acertava sempre?!... (Herético)12
O Borda d’Água, almanaque lusitano que se publica desde 1929, continua a sua tradicional
missão, seguindo uma linha editorial que lhe garante a condição de best-seller nacional.
10. http://blogarmado.blogspot.com.br
11. http://literaturas.blogs.sapo.pt/39123.html
12. http://relogiodependulo.blogspot.com.br/2010/01/o-seringador.html
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Quem queira aí colher prognósticos para o ano, conselhos práticos assentes na sabedoria
nacional, previsões meteorológicas imensamente avançadas em relação às oficiais (e às vezes
tão acertadas como estas!) provérbios agrícolas, calendários de feiras e romarias, fases da
Lua e horários de marés, efemérides e outras indicações da máxima importância social e
cívica, dirija-se com urgência às suas páginas. (L.Correios)13
Tabela 2. Quadro descritivo/comparativo dos almanaques Seringador e Borda D’Água (CUNHA, 2015)
Título
Borda D’Água
O Seringador
Nome Completo
O Verdadeiro Almanaque Borda d’Água
O Seringador T (marca)
Editora
Editorial Minerva
Lello Editores, Lda.
Endereço
R. Luz Soriano, 31-33 Lisboa
R. D. João Castro, 539 Baguim do Monte
Telefone
21 346 8288
22 332 6084
Preço de Capa
2 Euros (~6 Reais)
2 Euros (~6 Reais)
Periodicidade
Anual
Anual
Ano de Fundação
1929
1865
Descrição
Reportório útil a toda a gente. Contendo
todos os dados astronómicos e religiosos e
muitas indicações úteis de interesse geral
Reportório crítico-jocoso e prognóstico
diário para 2015
Fundador
João Manuel Fernandes de Magalhães
Tamanho
A3 dobrado em quatro partes (vendido
dobrado sem cortes)
A3 dobrado em quatro partes (vendido
cortado, montado e grampeado)
Diretor
Célia Cadete
José Manuel Pereira de Lello
ISBN
972-951-310-8
978-972-48-1897-9
Figura de Capa
homem de fraque, cartola, óculos e guardachuva
homem chapéu de mosqueteiro, espada
e seringa
Significado Dicionário
calendário; astrólogo popular
almanaque popular (Norte Mondego);
maçador, importuno
Editorial
pg. 2
pg. 2
Total de páginas
24
32
Fases da Lua (quadro)
pg. 15
pg. 4
Feriados e Festividades
pg. 2
pg. 4
Visibilidade dos Planetas
pg. 18
pg. 5
Eclipses
pg. 17
pg. 3
Influência da Lua na pesca
pg. 3
Feiras, Festas e Mercados
pg. 20-23
pg. 6-12
Previsão Mensal
santos do dia; astrologia e agricultura (mês)
santos do dia; astrologia e poema (mês)
Crônica
Juízo do Ano (p.24)
Conversa da Tia Brízida com o
Seringador (p.31-32)
Tabela das Enchentes
pg. 15
Anúncio
pg. 15 (produto da própria editora)
Sugestões/Dicas
pg. 18-19 Higienização dos dentes. Limão.
Dos excessos agrícolas.
13. https://largodoscorreios.wordpress.com/2015/01/01/2015-juizo-do-ano-e-um-ano-com-juizo/
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O INTERCÂMBIO DE INFORMAÇÕES POR MEIO DE AGENTES
LIGADOS ATRAVÉS DO FOLCLORE
Gitelman (2006, p.1) esclarece que a historiografia oportuniza a observação do processo de desenvolvimento das práticas sociais comunicacionais, como objetos históricos,
dando a conhecer o processo da história dos media; mas que também permite estudar
das formas pelas quais as pessoas experienciam e dão sentido aos produtos comunicacionais, bem como analisar de que maneira eles percebem o mundo e se comunicam
uns com os outros, e como distinguem o passado e identificam a cultura. Segundo Berg
e Lune (2012, p. 305) a historiografia qualitativa permite ao pesquisador recapturar complexas nuances, de pessoas, significados, eventos, e até ideias do passado que possam ter
influenciado ou moldado o presente. A tradicionalidade está na essência da manifestação
de um objeto folkcomunicacional como esclarece a pesquisadora e presidente da Rede
Folkcom, Maria Érica de Oliveira Lima (et al, 2013, p.99): “a tradicionalidade é entendida
como uma continuidade, na qual os fatos novos são desenvolvidos sobre o passado, sem
causar uma ruptura nesse, como por meio de uma nova interpretação ou da agregação
de novos elementos aos fatos folclóricos.” Assim, buscamos compreender a história do
almanaque impresso para mostrar como esta publicação foi moldada pela imposição
do gosto de quem detinha o poder do capital econômico – os donos das impressoras –
financiados pelos agentes sociais que assinavam e se comprometiam em adquirir aquela
produção simbólica14 (Bourdieu), um misto de saber científico e saber popular, artefato
cultural que contava com o aval da Igreja e da coroa, em especial durante a era dos descobrimentos. A investigação tem como corpus empírico os almanaques portugueses, “O
Seringador” e “O Borda D’Água”, considerados “objetos folkcomunicacional, do gênero
visual, formato impresso, tipo almanaque de cordel” (Marques de Melo, 2005). Em seu
estudo, Beltrão (2004, p.47) evidencia que a Folkcomunicação fornece ao investigador
uma linha de pesquisa capaz de iluminar “o processo de intercâmbio de informações e
manifestação de opiniões, ideias e atitudes da massa, por intermédio de agentes e meios
ligados direta ou indiretamente ao folclore.” Interessa-nos portanto, revisar os históricos
caminhos da permanência, de uma publicação impressa do século XIX em Portugal,
elaborada para atender às necessidades da população rural, e que em pleno século XXI,
mantém a mesma apresentação de formato, bem como praticamente as mesmas diretrizes
do conteúdo textual há 150 anos, e apesar de seguir na contramão do avanço tecnológico,
continua a fazer sucesso, ou seja, totaliza vendas de mais de 300 mil exemplares por ano.
Para efeito de validação da investigação o objeto folkcomunicacional – “almanaque de
cordel” (Benjamin, 1999) –– será considerado como “patrimônio documental”15 (Lage,
2002) pela dimensão cultural e informacional. “Utilizando-se das tabelas do Lunário,
14. Schüking (1966) observa que foi no século 18 que os donos das editoras começaram a depender das
assinaturas dos leitores para poder ter recursos para pagar os autores, escolhidos por eles, cuja escolha
variava conforme as relações sociais entre eles. Para ilustrar Schüking (1966) cita Dodsley na Inglaterra, e
reflete que esse fato teria ajudado a determinar a tendência do gosto (ver Bourdieu, P. A Distinção, 2007).
15. Segundo Lage (2002, p. 16) “o Património Documental, reclama como todas as modalidades categorizadas
de Património a que sempre subjaz, medidas de defesa genéricas que vão desde a promoção do seu
conhecimento, o incremento da sua pesquisa e levantamento, inventariação e classificação, a formação do
e para o uso, educação e promoção para a tomada de consciência e utilização como renovação de acções
educativas.” [...] Como exemplo cita-se “Populações agrárias do Portugal rural – [os almanaques] O Borda
d’Água ou O Seringador “Seringa o pobre, o rico e o lavrador...”.
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os poetas populares elaboram seus almanaques e ganham a reputação de conhecedores
dos segredos dos astros, sem nunca haverem realizado observações sobre a órbita celeste
ou deterem conhecimentos astronômicos”. (Benjamin, 1999, p.3).
Embora a pesquisa acadêmica lusófona, dos dois lados do Atlântico, registre importantes trabalhos sobre os almanaques, ressaltamos o colóquio internacional realizado no
Sudeste do Brasil, na Universidade de Campinas, em 1999, como o primeiro a adotar o
tema “Os almanaques Populares: Da Europa à América - Gênero, Circulação e Relações
Interculturais”, cuja inspiração veio da França, “Les Almanachs Populaires en Europe
et dans lês Amériques (XVII-XIX)”, realizado um ano antes (1998) na Universidade de
Versailles, em Saint-Quentin-en-Yvelines, que contou com a participação do pesquisador
folkcomunicacional Roberto Benjamin, que apresentou a comunicação “Almanaques
de Cordel: informação e educação do povo”; bem como teve a participação da também
pesquisadora brasileira, e uma das organizadoras do evento no Brasil, Jerusa Pires
Ferreira (2001, p.21):
Tendo participado do colóquio francês e entendendo juntamente com o Paulo Micelli a
importância de tudo isto para uma avaliação da cultura brasileira, resolvemos fazer a réplica
daquele colóquio no Brasil, apresentando a riqueza de nossa experiência, levando em conta
a riqueza dos materiais que possuímos, e podendo contar com a participação de vários
pesquisadores de nosso país.
Além dos pesquisadores brasileiros o evento contou com a presença de um grupo
seleto de pesquisadores internacionais, com destaque para um dos maiores especialistas
franceses da história do livro, Jean-Yves Mollier. O colóquio também contou com uma
exposição histórica sobre almanaques do Brasil e do mundo, no Memorial da América
Latina, na capital paulista, organizada por Marlyse Meyer; bem como, as comunicações
dos pesquisadores brasileiros buscaram tratar dos almanaques em quase toda a sua
totalidade, primando pela diversidade do objeto-tema, desde “os de Farmácia àqueles
mais gerais [...] passando pelos que concentraram experiências étnicas e regionais, dos
artesanais sertanejos aos mais sofisticados, aos que herdamos de Portugal.” (Ferreira,
2001, p.22).
ALMANAQUE DE CORDEL: O SEGREDO ESTÁ NA ESCRITA TORTA
POR ENTRELINHAS INCERTAS
O primeiro registro de almanaque feito em Portugal data de 1390, durante o reinado de D. João I de Aragão. Bensaúde (1912, p.45) ressalta a importância histórica desse
almanaque, em especial para a ciência náutica: “84 anos antes da publicação das “Efemérides” o rei de Portugal distribuiu um almanaque que calculava dia a dia, por três anos,
a posição dos astros no céu.” O almanaque astronômico/astrológico era o instrumento
que permitiria conhecer a configuração do céu e das estrelas, uma ferramenta capaz
de habilitar os capitães das caravelas para compor o traçado cartográfico das viagens
marítimas com destino ao novo mundo. Fato comprovado a partir de 1497, através do
“Almanach Perpetuum” – elaborado por Abraham bar Samuel Abraham Zacut16 – cujas
16. Abraão Zacuto era um judeu refugiado em Portugal quando do decreto de Castela e Aragão, feito pelos
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Folkcomunicação em Portugal: um estudo sobre a prosa, saber popular e conhecimento científico dos almanaques portugueses
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tábuas permitiam ao navegador determinar com relativa precisão a posição do Sol na
órbita da Terra e, conforme o valor da declinação do Sol, possibilitava ainda o cálculo da latitude. Naquela época não havia diferenciação entre astrônomo e astrólogo,
pois ambos tratavam da ciência celestial; entretanto, na atualidade, estas designações
ganharam contornos distintos, a saber, um se tornou cientista e o outro adivinhador,
respectivamente, conforme explica Losev (2012, p. 42): “nos estudos sobre a história da
ciência Pierre Duhem (1908) promoveu a diferenciação entre os praticantes da ciência
celestial rotulando-os de ‘astronômos’ ou ‘físicos’. O ‘astrólogo’, por sua vez, ficou restrito a astrologia (superstição)17.” O fascínio pelo desconhecido, tanto no céu, quanto
no mar, levou e leva a humanidade a buscar conhecimento para desvendar o que vai
acontecer no futuro. Assim, o almanaque ‘astrológico’ com seu texto curto, muitas vezes
em forma de verso e prosa, profético, como se fossem ‘mensagens dos deuses’, e com o
‘aval’ da Igreja, pois glorifica o Santo do dia, parece ter sido elaborado na medida certa
para facilitar a leitura e seduzir o leitor.
Graças aos mapas dos céus e das estrelas os colonizadores portugueses, espanhóis
e britânicos atravessaram o Atlântico e conquistaram outros continentes. Na bagagem,
além das armas e munições, também levaram os almanaques. O pesquisador norte americano Patrick Spero publicou em 2010 o estudo “A revolução das publicações populares:
o almanaque, 1750-1800”, onde revela que durante o colonialismo, apenas os sermões
religiosos e ensaios políticos, publicações feitas no Reino Unido e que rendiam algum
dinheiro, conseguiam chegar até América do Norte. Entretanto, foi nesse momento que
a natureza utilitarista do conteúdo do almanaque tornou-o um produto competitivo e
com intensa demanda pelo mercado consumidor da época formado por agricultores
que precisavam saber os horários da aurora e do ocaso do Sol; pescadores e navegadores
que se utilizavam da tábua das marés; organizadores de eventos e comerciantes que
se guiavam pelo calendário de feiras comerciais, dias santificados, datas importantes;
e, proprietários e administradores dos povoados que precisavam saber com exatidão
o dia e o local onde os tribunais se reuniriam para elaboração de decretos, tomadas
de decisões legais e julgamentos. Embora houvesse uma grande profusão de dados,
as informações em geral, obtidas a partir de dados da ciência celestial ou através das
autoridades nomeadas pela corte, não acarretavam custos aos editores. Spero (2010)
acrescenta que as previsões do tempo, e principalmente, as previsões astrológicas podem
ter desempenhado um papel relevante na disseminação do almanaque. Sob a bandeira
do colonialismo o almanaque se transformou no produto mais rentável das editoras
britânicas, o que acelerou o envio de máquinas impressoras para a América do Norte.
Uma dessas impressoras foi utilizada por Benjamin Franklin, que revelou em sua autobiografia18 ter publicado e ganhado um bom dinheiro, sob o pseudônimo de Richard
reis católicos, Isabel e Fernando. O almanaque redigido por Zacuto, originalmente estava em hebraico
“Hajibur Hagadol” e continha diversas tabelas astronómicas, que muito contribuíram para a evolução da
ciência náutica. O almanaque teve tradução para o latim e depois para espanhol pelo aluno de Zacuto, o
médico José Vizinho, que atuou na corte de D. João II, tendo sido publicado em Leiria em 1496.
17. “In his monumental studies on the history of science, Pierre Duhem (1908) chose to promote two different
kinds of practitioners of celestial science, labelling them either ‘astronomes’ or ‘physiciens’. The traditional
‘astrologer’, meanwhile, was restricted to superstitious astrology” (Losev, 2012, p.42).
18. Franklin, B. (1986). The Autobiography and Other Writings. New York: Ed. Ormond Seavey.
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Folkcomunicação em Portugal: um estudo sobre a prosa, saber popular e conhecimento científico dos almanaques portugueses
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Saunders, com o almanaque “Poor Richard’s Almanack”, uma cópia do “Poor Robin’
Almanack”, bastante popular no Reino Unido.
Sobre a contribuição dos alemães, David Kronick (2004) destaca o nome de Christian
Gottfried Gruner, autor do “Almanach für Aerzte und Nicvhtaerzte”, dedicado a Medicina
Popular19, publicado em Jena, em quinze volumes, entre 1782 e 1796. Mas, o que chama a
atenção no estudo de Kronick (2004, p. 64) é o fato dele associar o almanaque ao jornal,
em especial, o científico.
Almanaques são um gênero de publicação em si mesmos, com uma história e uma tradição
próprias. Eles apareceram em grande número começando quase junto com a invenção da
impressão. Com a introdução do periódico científico-técnico, alguns almanaques assumiram
características dessas novas publicações. [...] Nos séculos XVII e XVIII, os almanaques também incluiam contribuições originais, dados meteorológicos e notícias. Muitos deles eram
de caráter popular, dirigidos aos artesãos e outros grupos especiais. Embora o conteúdo não
apresentasse informação nova e significativa, os almanaques forneciam pistas importantes
sobre o impacto social e intelectual da ciência e da tecnologia naquele período, e não deve
ser ignorado em qualquer estudo sobre jornalismo científico e técnico.20
E talvez tenha sido mesmo para preservar a ciência, ou melhor, para transmitir todo o
saber da humanidade que o primeiro almanaque teria sido escrito, por sábios, às vésperas
do grande dilúvio, e numa pedra de granito para toda eternidade. Essa descrição da
origem do almanaque é de 1896, escrita por Eça de Queirós (apud Anastácio, 2012, p. 54).
É que o Almanaque contém essas verdades iniciais que a Humanidade necessita saber, e
constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma Natureza que lhe não é
benévola, se mantenha, se prossiga toleravelmente. A essas verdades, a essas regras, chamam os Franceses, finos classificadores, verdades de Almanaque. [...] O homem tudo poderia
ignorar, sem risco de perecer, excepto que o trigo se semeia em Março. E se os livros todos
desaparecessem, bruscamente, e com eles todas as noções, e só restasse, da vasta aniquilação,
um Almanaque isolado, a Civilização guiada pelas indicações genéricas, sobre a Religião, o
Estado, a Lavoura, poderia continuar, sem esplendor, sem requinte, mas com fartura e com
ordem. Por isso os homens se apressaram a arquivar essas verdades de Almanaque, - antes
mesmo de fixar em livros duráveis as suas Leis, os seus Ritos, os seus Anais. [...] As datas,
e só elas, dão verdadeira consistência à vida e à sua evolução.
19. Johann Samuel Ersch (1766-1828) publicou o Handbuch der deutschen Literatur seit der Mitte der 18
Jahrhunderts, em oito volumes, de 1812 a 1814, que continha uma lista bibliográfica classificatória, por área
de estudo científico. O almanaque de Gruner constava da secção de “Medicina Popular”.
20. Almanacs are a genre of publication unto themselves, with a history and a tradition all their own. They
appeared in vast numbers beginning almost with the very origins of printing. With the introduction of the
scientific-technical periodical, some of the almanacs began to assume some of the characteristics of these
new publications. A number of these titles that can be defined as almanacs either in name or in nature
and that are of interest to the historian of science and technology can be found in this period. […] In the
seventeenth and eighteenth centuries, these publications were also likely to include original contributions,
meteorological and other data, and news. Many of them were of a popular character, addressed to artisans
and other special groups. Although they may not contain much significant new information, they do provide
important indications of the social and intellectual impact of science and technology in this period, and
should not be ignored in any study of scientific and technical journalism (Kronick, 2004, p.64).
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Folkcomunicação em Portugal: um estudo sobre a prosa, saber popular e conhecimento científico dos almanaques portugueses
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O calendário com as datas, os feriados e as luas, também é considerado muito útil
pelos chineses. Palmer (1986) estudioso do “Tung Shu” (antigo almanaque chinês ainda
hoje bastante consumido na China, inclusive online) nos explica que, seria um erro considerar que o conteúdo de um almanaque pode ser completamente entendido por todos
os chineses, em especial pelas pessoas simples da sociedade. Palmer (1986) revela que,
para a maioria dos chineses, o almanaque é um livro fechado, aberto apenas para ser
lido e interpretado por especialistas, quando a necessidade aparece, tal como casamento,
funeral, viagem, abertura de um novo empreendimento, compra de uma casa, enfim.
“O almanaque é uma força, um amuleto, um talismã de grande poder.” (Palmer, 1986,
p.13) Além disso, o almanaque na China representa uma parte do passado ancestral,
da vida doméstica e da própria essência de ser de cada chinês, “para quem estar sem o
almanaque do ano seria o mesmo que não estar vestido.”
À GUISA DE CONSIDERAÇÃO FINAL
Só o almanaque verdadeiramente nos penetra na realidade da nossa existência,
porque a circunscreve, a limita, a divide em talhões regulares, curtos, compreensíveis,
fáceis de desejar e depois fáceis de recordar porque têm nome, e quase têm forma,
e onde se vão depondo e vão ficando os factos da nossa feliz ou desgraçada História.
Eça de Queirós
Almanaque, mercadoria cultural, bem simbólico, artefato impresso cujo conteúdo
mescla cultura popular, economia e política. Nas pequenas bibliotecas das casas dos
colonizados que viviam na América do Norte, na época da colonização, o almanaque em
geral estava presente, junto com a Bíblia, conta Spero (2010), porque pelo senso comum
era um bem simbólico que evocava a identidade britânica. Pensar em um processo de
compartilhar o conhecimento como quem fortalece a identidade cultural, na perspectiva
de uma lusofonia21 que compartilha os escritos, como uma forma de fortalecimento
identitário, poder-se-ia indagar se a publicação é exportada de Portugal para o Brasil
e outros países que têm a Língua Portuguesa, como oficial. Contudo, os editores não
confirmam e os poucos exemplares lidos fora de Portugal, sugerem alguns entrevistados, podem ter sido levados apenas como suvenir pelos turistas. E é assim, como um
produto artesanal da cultura popular, que o almanaque é identificado pelos respondentes com nível superior. Enquanto, 83% dos aposentados e donas de casa entrevistados
afirmaram já ter adquirido o almanaque em algum momento; a esquivança por parte
dos professores e alunos de universidades, em alguns casos, veio acompanhada de
pequenos assentimentos de cabeça no sentido de confirmar que sim, tinham visto um
almanaque, mas não leram, nem nunca compraram. Tal e qual, os achados deste estudo
21. O conceito de Lusofonia tem uma genealogia e uma história; remete para um conjunto de representações,
umas que privilegiam idealizações, outras que o estigmatizam; tem servido aproveitamentos políticos e
ambições económicas, do mesmo modo que alimenta proveitosas aproximações entre artistas, empresários
e académicos. Espartilhada entre uma nostalgia lusocêntrica, que teima em sonhar impérios, e uma crítica
pós-colonial, que procura plataformas de entendimento no presente e para o futuro, a Lusofonia parece
prestar-se, por um lado, a equívocos e a simplificações, bem como, por outro lado, a formulações promotoras
do diálogo intercultural (Martins, Cabecinhas, Macedo, 21014, p.6).
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Folkcomunicação em Portugal: um estudo sobre a prosa, saber popular e conhecimento científico dos almanaques portugueses
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conduzem para a leitura crítica feita por Luiz Beltrão (2001, p.192): “apesar de tudo o
que aprendemos nos almanaques, essa ciência é menosprezada pelos esnobes e bem
pensantes que não ousam confessar intimidades com este tipo de saber”. E apoiado na
crônica de Gil publicada no Diário de Pernambuco, de 19 de fevereiro de 1964, Beltrão
emenda: “o almanaque é o recurso do homem médio, que se esfalfa o dia inteiro na luta
pela vida”. Sobre este ponto, embora no momento da investigação não tenha sido possível
traçar uma análise comparativa entre o leitor de almanaque de Portugal e o leitor de
almanaque do Brasil, em virtude do tempo e da estrutura sociopolítica cultural distinta,
consideramos oportuno recuperar a reflexão desenvolvida por Yuji Gushiken (2011), que
revisa a formulação da teoria da Folkcomunicação (Beltrão) em meio ao processo de
modernização socioeconômico e de desenvolvimento do capitalismo histórico do Brasil.
O texto de Gushiken (2011) recupera a análise de Beltrão sobre o leitor do almanaque22,
considerado um “meio de expressão de caráter interpessoal e comunitário do folclore”.
Se por um lado a leitura de almanaques sugeria um país que saía, ainda que lentamente,
das margens do analfabetismo, convém anotar que historicamente a produção desse leitor
e espectador médio é que se tornou, ao longo da história da pesquisa em comunicação,
pelo menos no Brasil, alvo de vários estudos sobre comunicação e ideologia que visaram,
acima de tudo, demonstrar como essa versão liberal da democracia é que produziu, em
outros momentos, o que os críticos chamam de “analfabetos funcionais” e “analfabetos
políticos”, cujas condições socioeconômicas e culturais tornaram o jogo das desigualdades
sociais mais perverso para a imensa massa populacional enquadrada nessas categorias.
(Gushiken, 2011, online).
O almanaque de cordel, objeto de análise deste estudo, não carece da velocidade de
transmissão característica da rede cibernética, mas nem por isso a falta de imediatez,
própria da informação consumida atualmente, o torna obsoleto, não porque ele seja
atemporal, mas é um tempo que permite a representação fenomenológica de uma produção simbólica que se amolda ao gosto do leitor. O almanaque parece revelar ao leitor
desprevenido o fluxo constante de uma tradição cultural que permanece como uma
amálgama invisível por onde circulam prosa, saber popular e conhecimento científico.
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22. Para Beltrão, o homem médio brasileiro, que praticava a leitura do almanaque buscava alcançar os
benefícios propalados pela modernização. Em 1952, o almanaque Brasil alcançou uma tiragem de três
milhões de exemplares (BELTRÃO, 2001, p.196).
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia.
Estudo de caso da presença de elementos
folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Comics and popular culture under the folkmídia view.
Case Study of the presence of regional folk
elements in the Xaxado’s Gang
Júnior Pinheiro 1
Resumo: Os quadrinhos são forma eficaz e criativa de transmissão de mensagens, pois se valem do discurso imagético, textual e simbólico. Em busca
da aproximação com o público, seus autores, por vezes, recorrem ao uso de
elementos das culturas pop, erudita, alternativa e popular, disseminando-as ou
ressignificando-as. Criada em 1998, pelo cartunista Antônio Cedraz, a Turma do
Xaxado, em suas narrativas, retrata o cotidiano do sertão nordestino e se apropria de elementos regionais do semiárido, como a seca, o latifúndio, o cangaço,
além das tradições populares, como folguedos, literatura de cordel e a religiosidade sertaneja. Este artigo intenta compreender as relações entre quadrinhos
e cultura popular, valendo-se da Turma do Xaxado enquanto objeto de estudo.
Para melhor entendimento de tal fenômeno, recorreu-se à folkmídia, enquanto
área da Folkcomunicação que investiga as formas de inter-relacionamento da
comunicação midiática com o folclore. Os estudos folkmidiáticos demonstram
que nem sempre a presença da cultura popular na mídia se dá de maneira afirmativa. Por meio do estudo de caso, pretende-se evidenciar a maneira como a
Turma do Xaxado representa e difunde tal cultura, de forma não predatória,
valendo-se do respeito e da reafirmação identitária.
Palavras-Chave: Quadrinhos. Cultura Popular. Folkmídia. Turma do Xaxado.
Abstract: Comics are effective and creative way to transmit messages as make
use of imagery, textual and symbolic speech. In search of closeness to the public,
authors sometimes resort to using elements of pop, classical, alternative and
popular culture, disseminating them or giving new meaning to them. Created in
1998 by cartoonist Antonio Cedraz, the Xaxado’s Gang, in their narratives, portrays the everyday northeastern hinterland and appropriates regional semi-arid
elements, such as drought, the landowners, the bandits, in addition to popular
traditions, as merriments, pamphlet literature and the hinterland religiosity. This
article attempts to understand the relationship between comics and popular
culture, drawing upon the Xaxado’s Gang as object of study. To better understand this phenomenon, it used to folkmidia, as a field of folkcommunication
1. Jornalista (UESB), discente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Culturas Midiáticas (UFPB)
e Coordenador da TV UFPB. E-mail: [email protected]
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Júnior Pinheiro
investigating forms of inter-relationship of media communication with the
folklore. The folkmidiatics studies show that not always the presence of popular culture in the media occurs in the affirmative. Through the case study is
intended to demonstrate how the Xaxado’s Gang is and disseminates such a
culture, not a predatory manner, drawing on respect and identity reassurance.
Keywords: Comics. Popular Culture. Folkmidia. Xaxado’s Gang.
INTRODUÇÃO
PESAR DOS protestos e acusações sofridos, em suas primeiras décadas, os quadri-
A
nhos se consolidaram não só enquanto gênero jornalístico, mas também enquanto
meio de comunicação, indo além das tiras, cuja função era oferecer pontos de
vista acerca de assuntos do cotidiano. A liberdade criativa inicial, aliada ao sucesso de
vendas, possibilitou às HQs o desenvolvimento de linguagens e estéticas interessantes
e inovadoras, responsáveis por ampliar seu potencial e elevá-las ao posto de nona arte.
Durante seu processo de desenvolvimento, as HQs dialogaram com outras formas
de arte, como o cinema, a pintura e a literatura, além de incorporar elementos culturais
de origens diversas, num amálgama criativo que ampliou seus significados.
Difundido por várias partes do mundo, os quadrinhos também aportaram no Brasil,
inicialmente sob influência das produções norte-americanas e, num segundo momento,
buscando, nos tipos humanos nacionais e na cultura popular, referenciais próprios.
Uma destas experiências é a Turma do Xaxado, criada pelo cartunista baiano Antônio
Cedraz, em 1998. Apesar de ter estreado em jornais e por trazer em suas narrativas fortes
críticas aos problemas sociais do cotidiano sertanejo, as tiras de Cedraz fizeram grande
sucesso entre o público infanto-juvenil, sendo posteriormente publicadas em formatos
que vão dos livros aos gibis.
O cartunista, filho do semiárido baiano, se preocupou em observar cuidadosamente
os tipos humanos de seu cotidiano, evitando os estereótipos pejorativos, comuns em
muitas produções que se apropriam da cultura popular. Ainda, foi do folclore que o
autor, morto em 2014, trouxe parte de seu enredo e personagens, não só difundindo as
tradições sertanejas, como também atraindo os olhares para as lutas e desafios regionais.
Ao fazê-lo de maneira afirmativa, contribuiu com a o debate crítico e formação cidadã,
não só do Nordeste, mas de todo um país.
QUADRINHOS, DA FAMA DE MALDITO AO STATUS DE ARTE.
Os quadrinhos, em princípio, foram festejados como uma das grandes inovações
do jornalismo impresso, estando no bojo de um processo de renovação da imprensa,
experimentado em fins do século XIX, que promoveu mudanças, tanto na linguagem,
quanto nos recursos técnicos advindos com a modernização dos parques gráficos dos
grandes diários. As tiras ilustradas que, por meio de personagens e diálogos, eram
capazes de emitir opiniões e pontos de vista sobre o cotidiano da sociedade, não só
agradaram os fieis leitores dos jornais, como logo atraíram um público maior.
As tiras, cujo conteúdo em muito se aproxima de outros textos do jornalismo
opinativo, como a crônica e o editorial, mostrou-se eficiente amálgama de teores críticos
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Júnior Pinheiro
e humorísticos, capaz de transmitir mensagens, de forma eficaz e criativa, ao valer-se
do discurso imagético, textual e simbólico.
Conteúdo atraente, as comics stripes foram sucesso imediato, transformando seus
desenhistas em profissionais cobiçados pelos conglomerados comunicacionais e seus
personagens em chamarizes capazes de ampliar as tiragens. Como afirma Sônia Luyten
(1989), os comics foram fator capital para alavancar as vendas dos jornais. Por sua vez,
foram os diários os grandes responsáveis pela autonomia posteriormente alcançada
pelos quadrinhos, pois, atendendo à demanda cada vez maior, organizaram os suplementos dominicais.
Entretanto, apesar de seu valor informativo, literário e artístico, os quadrinhos, de
maneira muito semelhante a outros produtos da cultura de massa, sofreram os mais
diversos ataques e preconceitos advindos tanto da sociedade em geral, como também da
comunidade acadêmica, principalmente quando o assunto são os quadrinhos infantis.
Tais posturas, embora infundadas e baseadas quase sempre em opiniões pessoais, tem
atrapalhado o desenvolvimento sistemático de estudos sérios e aprofundados sobre
a temática.
Moacy Cirne (1977) aponta que, durante um longo tempo, as HQs foram vistas
como uma subliteratura capaz de prejudicar o desenvolvimento psicológico, cognitivo
e intelectual de quem as consumisse. Em meio a tantos argumentos contrários, sociólogos chegaram a aponta-la como uma das principais causas da delinquência juvenil e
da lerdeza mental.
No Brasil, os primeiros protestos organizados contra os quadrinhos datam do final
da década de 1920, tendo como protagonistas educadores e representantes do clero que
acreditavam que tais histórias incutiam hábitos estrangeiros imorais em quem os lesse.
Assim, seguindo o exemplo norte-americano, que impôs sérias restrições e controles à
produção do gênero, o Senado Brasileiro, entre 1955 e 1963, regulamentou os quadrinhos
por meio de leis e de um código de ética nacional, o qual proibiu publicações e imagens
que pudessem ser consideradas obscenas e imorais.
Durante o governo militar, a partir de 1964, o que já era considerado um difusor de
conteúdo depravado e de valores invertidos, passou a ser taxado enquanto subversão.
Mesmo em universidades como a USP, pioneira na criação e manutenção de um acervo
de quadrinhos para fins de estudo, tais materiais não estavam a salvo da sanha vigilante
de colaboradores do regime, nem de seus constantes assédios e ameaças incendiárias
(MARQUES DE MELO, 2004).
Apesar de todo protesto e perseguição, os quadrinhos ultrapassaram as páginas
dos jornais. Publicações próprias voltadas ao segmento, como álbuns, livros e revistas,
caíram no gosto dos públicos infanto-juvenil e adulto atraídos pela fácil assimilação e
compreensão de suas narrativas, ampliando a penetração de tais produções. Ademais,
em plena era das imagens, transformações ocorridas nos paradigmas educacionais,
aliadas às novas posições estéticas referentes ao conceito da arte, elevaram, nas últimas
décadas, as histórias em quadrinhos à condição de nona arte.
Em defesa da arte sequencial, Sônia Luyten (1989) afirma que os mesmos devem
ser alçados a seu devido lugar e não mais ser considerados como uma arte inferior ou
uma subliteratura. Para ela, as HQ marcaram a história do século XX e ao evoluírem à
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Júnior Pinheiro
condição atual, forneceram subsídios para outros meios de comunicação e para as artes,
como a pintura e o cinema.
A segmentação das publicações e o aperfeiçoamento da linguagem içaram as HQs
à posição de um novo meio de comunicação, capaz de extrapolar a literatura. Este novo
meio possui uma forma de narrativa própria, hibrida de palavras e imagens. Tal combinação dá a esta nova mídia a capacidade de facilitar a assimilação, o aprendizado e
a apreensão, mesmo de conceitos mais complexos. Não é à toa que hoje, de maneira
inversa ao que foi propagado na primeira metade do século XX, a educação – tanto a
infanto-juvenil, quanto a profissional – tem se utilizado dos quadrinhos como ferramenta
instrucional criativa e eficiente.
A relação entre palavra e imagens nos quadrinhos se assemelha, para Álvaro de
Moya (1994) a uma espécie de projeção cinematográfica lenta, ou mesmo a uma peça de
teatro, onde o discurso direto assume o caráter de um diálogo e as imagens o de relato
visual, gerando identificação e entrosamento com o leitor. Numa era fluida, intensa e transitória, como a atual, os quadrinhos mostram-se como uma forma de arte adequada, cuja
linguagem dinâmica é capaz de exercitar a criatividade e a imaginação (LUYTEN, 1989).
QUADRINHOS E FOLKMÍDIA.
Enquanto meio de comunicação de massa, com grande penetração popular, as
histórias em quadrinhos transmitem, ao seu público, informações, conceitos, opiniões,
ideias, e modos de vida. Ainda, traz em seu conteúdo, mesmo quando se baseia em
universos alternativos ou fantasiosos, elementos, dilemas ou tipos humanos do cotidiano.
A fim de promover uma maior aproximação com seu público, seus autores e editores
por vezes recorrem ao uso de elementos das culturas pop, erudita, alternativa e popular,
disseminando-as ou ressignificando-as. No caso específico da cultura popular, como se
verá mais adiante, esta relação com os quadrinhos se deu de várias formas, em diversos
momentos e em níveis variados.
A Folkcomunicação se ocupa da compreensão das formas de resistência e sobrevivência cultural dos grupos marginalizados, bem como das relações entre a cultura popular
e os meios de comunicação. Tal disciplina denomina folkmídia os vários graus de inter-relacionamento da mídia com os elementos do folclore, sendo este último compreendido,
de forma mais extensa e abrangente, englobando todas as manifestações originárias das
camadas populares, como danças, músicas, vestes, crenças, tradições, artes, entre outras.
Assim, pode-se afirmar que a folkmídia é o campo da Folkcomunicação que se
preocupa em investigar e identificar a presença de costumes, tradições e produtos da
comunicação popular nos conteúdos produzidos pelos meios de comunicação de massa, analisando como estes interpretam e utilizam tais substratos. Como pontua Joseph
Luyten (2002), o termo folkmídia denota a utilização de elementos folkcomunicacionais
pelos sistemas midiáticos. Entender este processo é vital para a melhor compreensão
de um fenômeno, segundo ele, cada vez mais evidente: a inter-relação de várias formas
distintas de comunicação.
Apesar de serem produções típicas de grandes mídias, tais como jornais diários,
revistas ou cadernos especiais, os quadrinhos trazem em seu conteúdo, assuntos, tipos
ou elementos do cotidiano, dando-lhes um tratamento que, por seu viés cômico, trágico
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Júnior Pinheiro
ou crítico, fogem do simples registro noticioso. Por seu grande apelo junto ao público,
as HQs encontram-se numa espécie de limiar entre o produto midiático e a literatura
popular. Por isso, muitos dos seus protagonistas e bordões figuram no imaginário social.
Em tempo, muitas HQs presentes hoje no mercado, foram produzidas anteriormente
na marginalidade, de forma alternativa, até conseguirem espaços nos grandes jornais.
Criada em 1998, pelo cartunista Antônio Cedraz, a Turma do Xaxado foi publicada
em jornais, livros, sites e revistas. Suas narrativas retratam o cotidiano do sertão nordestino e traz elementos regionais do semiárido. A seca, o latifúndio, o cangaço e a crítica
social figuram lado a lado com a esperança da chuva, os folguedos, festejos, cordel,
religiosidade popular e questões como solidariedade, preguiça e trabalho. Veiculadas
em grandes meios, as tiras da Turma do Xaxado representam típico caso de relação
folkmidiática com a cultura popular, incorporando, valorizando e difundindo a mesma.
UMA HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS.
No final do século XIX, a imprensa norte-americana experimentou importantes
transformações que modificaram a prática jornalística. A crescente concorrência entre os
jornais e a consequente formação de grandes conglomerados noticiosos levou os diários
à busca frenética por novidades tecnológicas e estéticas capazes de conquistar o maior
número possível de leitores e, por conseguinte, de maior fatia do mercado publicitário.
Entre os recursos implantados neste período, os quadrinhos foram dos mais
emblemáticos. Apesar dos jornais já se valerem de imagens fotográficas, desde meados
do século XIX, e ainda anteriormente de recursos artísticos, como gráficos, ilustrações,
charges e caricaturas, os quadrinhos trouxeram consigo uma linguagem própria, que
se valia de elementos e tipos do cotidiano, unindo o discurso imagético ao texto escrito,
em pequenas narrativas contadas de forma sequencial.
Para o sociólogo francês Jacques Marny (1970), apesar de certas publicações anteriores
possuírem uma estética próxima à das futuras HQs – tais como Figuras de Épinal, em
1820 e Histoires em estampes, em 1827 – o marco histórico inicial dos quadrinhos foi a
publicação de The Yellow Kid, em 1895. Criação de Richard Felton Outcault, as histórias e
desventuras do chinesinho desdentado e de camisola de dormir amarela, introduziram,
entre outros elementos, o texto escrito num formato que futuramente viria a ser o balão.
Infelizmente, a disputa por leitores não trouxe apenas consequências positivas
à imprensa. A fim de atrair novos públicos, os jornais rebaixaram os níveis de seus
conteúdos, por vezes beirando o sensacionalismo. Disputado entre os dois maiores
jornais da época – New York World, de Joseph Pulitzer e New York Journal, de William
Randolph Hearst – The Yellow Kid tornou-se símbolo do sensacionalismo, feito a qualquer
custo e de forma irresponsável, o chamado jornalismo amarelo – equivalente no Brasil
à imprensa marrom.
Por outro lado, o sucesso do menino de camisola amarela abriu portas a outros
artistas que, a serviço de Hearst ou de Pulitzer, tornaram populares outros personagens.
Ao utilizarem o humor, a crítica e a opinião, estes povoaram as páginas dos jornais,
nas décadas seguintes, com as comics stripes, ou tiras, difundidas posteriormente pela
imprensa do mundo inteiro.
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
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O jornalismo ilustrado não agradou somente aqueles que já tinham o hábito de
ler jornais como também atraiu novos públicos, aumentando a vendagem dos diários.
Segundo Henrique Magalhães (2006), os quadrinhos colaboraram, de forma significativa,
com as estratégias voltadas ao alcance de um maior número de leitores. Ao se valer de
uma linguagem simples, de fácil compreensão e baseada na imagem e no texto sintético,
seduziu um público que estava fora do círculo restrito de letrados, bem como grupos
de imigrantes, os quais possuíam dificuldades com o inglês.
Assim, a tirinha se consolidou, nos jornais, como uma categoria estética de expressão
e opinião sobre o cotidiano, representada por personagens que imitam a vida real e que
tratam de seus temas, sejam trivialidades ou questões sérias, do país e do mundo, por
meio do humor, ironia ou sátira, provocando reflexões e autocrítica (NICOLAU, 2007).
O grande sucesso das tiras nas páginas diárias levou os jornais a editarem as mesmas
em suplementos e cadernos à parte, trazendo histórias maiores e mais elaboradas.
A grande procura por tais edições culminou com a criação de revistas voltadas ao
segmento, acelerando o desenvolvimento da indústria dos quadrinhos e revelando um
promissor nicho de mercado: periódicos voltados ao público infanto-juvenil, até então
à margem dos diários e revistas semanais, predominantemente informativos, e quase
nada diversionais (MARQUES DE MELO, 1975).
Em seus primeiros anos, as histórias em quadrinho eram essencialmente humorísticas
– as tiras com aventuras só começariam a ser produzidas em 1929. Frequentemente, os
protagonistas das histórias eram crianças travessas. Por isso, tais quadrinhos eram
chamados de kid-strips (SANTOS, 2006).
Se no começo, as HQs careciam de maior reconhecimento enquanto produção
artística, a liberdade de criação – oferecida nos primeiros anos pelos jornais, que
buscavam inovar para atrair leitores – e o diálogo com temáticas diversas e com escolas
artísticas foram, para Maria de Fátima Hanaque Campos e Ruth Lomboglia (1989), fatores
que abriram caminhos para a renovação e enriquecimento do gênero.
O desenhista Winsor Mc­Cay, por exemplo, introduziu o estilo art nouveau nas HQs
norte-americanas, principalmente por meio da série de aventuras do Pequeno Nemo
no país dos sonhos. O que começou enquanto expressões de pontos de vista sobre o
cotidiano tornou-se espaço para a fantasia, ficção científica e mitologia, trazendo roteiros
bem elaborados e personagens com estruturas psicológicas complexas. Tais produções,
nas décadas seguintes, influenciaram outras formas de arte, como a literatura, o teatro,
a música e o cinema.
OS QUADRINHOS NO BRASIL.
Seduzidas pelo sucesso dos suplementos e revistas em quadrinhos, nos EUA e na
Europa, editoras brasileiras decidiram lançar publicações do gênero para crianças. Assim,
em 1905, a editora O Malho lança O Tico-Tico, com histórias basicamente decalcadas e
traduzidas por artistas nacionais, sem alterações nos enredos. Mesmo nos anos seguintes,
com a introdução de personagens criados por desenhistas nacionais como Zé Macaco e
Faustina, de Alfredo Storni; Réco-Réco, Bolão e Azeitona, de Luiz Sá; o carro-chefe de
O Tico-Tico ainda eram as histórias de Chiquinho, nome dado às aventuras americanas
Buster Brown, também criação de Richard Outcault (LACHTERMACHER; MIGUEL, 1989).
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Júnior Pinheiro
Seguiram-se, nos próximos anos, o lançamento de inúmeras publicações nacionais
cujos conteúdos eram personagens estrangeiros. A Gazeta Infantil, ou Gazetinha, criada
em 1929, continha histórias do Gato Félix, de Pat Sullivan; do Fantasma, de Lee Falk, além
de O Sonho de Carlinhos, título abrasileirado de Little Nemo in Slumberland, de Winsor
McCay. Ainda, na década de 1930, o Suplemento Juvenil, editado por Adol­fo Aizen, foi
o responsável por trazer ao Brasil heróis como Flash Gordon, Tarzan e Mandrake.
As décadas seguintes testemunharam uma presença, cada vez maior, de desenhos
de artistas nacionais em suas páginas. A Editora EBAL, por exemplo, lançou a coleção
Edições Maravilho­sas, que quadrinizava obras literárias brasileiras. Em tempo, nos anos
1950, personagens do rádio, da televisão ou do cinema, como Grande Otelo, Oscarito e
Mazzaropi, foram transformados em HQs, com boa aceitação.
OS QUADRINHOS NACIONAIS E A CULTURA POPULAR.
A partir dos anos 1960, os meios de comunicação e a produção cultural voltada ao
grande público, no Brasil, direcionam seus olhares para a cultura popular, inserindo
elementos folclóricos nas telenovelas, no cinema e na música, por exemplo. Tal contexto
muito se deve à tentativa do governo militar, e de seu populismo ufanista, em criar e
difundir uma identidade nacional, baseando-se nos estereótipos regionais (ORTIZ, 1991).
Graças a este cenário nacionalista, as editoras passaram a abrir mais espaços para
desenhistas cujos personagens fossem baseados em tipos humanos brasileiros ou em
figuras folclóricas, entre eles Maurício de Sousa e Ziraldo Alves Pinto, que haviam
lançado, respectivamente, Bidu e Pererê, no ano de 1959.
As histórias do Pererê, que mais tarde passariam a se chamar Turma do Pererê,
apresentam o saci, ícone folclórico brasileiro, enquanto figura principal e são ambientadas
numa floresta, a Mata do Fundão, em meio a animais silvestres, como onça, jabuti, tatu,
entre outros. Além disso, o melhor amigo do saci é um índio, o Tininim, companheiro
de aventuras do negrinho de uma perna só.
Henrique Magalhães (1983) aponta o Pererê como o mais autêntico personagem
brasileiro e o melhor representante das tentativas de se fazer um quadrinho nacional que
fosse capaz de concorrer com a enxurrada de HQs americanas. De fato, à época de seu
lançamento, o Pererê era uma espécie de ilha em meio a outras produções nacionais com
forte influência estrangeira, como Mylar, Fantastic, Fikon, Golden Guitar e as histórias
de terror, detentoras de grande repercussão (LACHTERMACHER; MIGUEL, 1989).
O repórter policial Maurício de Sousa ganhou espaço, enquanto desenhista de tiras
em jornais e revistas, graças às aventuras do esperto cachorrinho Bidu e seu dono, o garoto Franjinha. Posteriormente, outros personagens vieram povoar suas histórias criando
um universo que mais tarde se transformou na Turma da Mônica. Além das crianças,
que moram e interagem num bairro de classe média, o Bairro do Limoeiro, Maurício
criou, em 1961, o personagem Chico Bento, cuja primeira tira só seria publicada em 1963.
Baseado num suposto tio-avô do autor, Chico é um típico caipira do sudeste
brasileiro. Suas histórias se ambientam quase todas num meio campestre, entre sítios,
riachos, matas, plantações e na escola rural que Chico e sua turma frequentam.
Quando não está em seu habitat, Chico visita um primo na cidade grande, entrando
em conflito com o mundo urbano, poluído e repleto de concreto e tecnologia (SANTOS,
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Júnior Pinheiro
2006). Além de seus pais e amigos, o menino caipira possui uma avó paterna, a Vó Dita.
Tal personagem se destaca dos demais, pois assume importante papel em suas histórias,
uma espécie de mestra do saber oral e popular, sempre a transmitir histórias, lendas e
valores tradicionais por meio da contação de histórias.
Maurício produziu, ainda nos anos 1960, outros personagens vinculados à cultura
tradicional e popular, como o índio Papa-Capim, que mora na Floresta Amazônica e a Turma da Mata, em que bichos falam, interagem e vivem aventuras para proteger a floresta.
Outro que também se valeu de elementos da cultura popular em suas tiras foi o
cartunista Henrique de Souza Filho, o Henfil. Marcadas por uma forte crítica social, as
tiras de Henfil foram publicadas em vários periódicos e, entre 1971 e 1980, também na
revista Fradim. Os destaques dessa publicação são as histórias de Os Fradinhos, repleta
de críticas aos costumes morais e sociais da época, e a Turma da Caatinga, em que o
cangaceiro Capitão Zeferino, juntamente com o Bode Orelana e a ave Graúna, dão voz
aos problemas vivenciados pelo Nordeste brasileiro, como a seca, a mortalidade infantil,
a exploração do trabalhador e o coronelismo, entre outros.
Vale ressaltar que, além dos exemplos mencionados, mais personagem foram inspirados na temática regionalista, como Jerônimo, o Herói do Sertão. Criado em 1953, por
Moysés Weltman, para uma radionovela da Rádio Nacional, o herói ganhou sua versão
em HQ, a partir de 1957, desenhada por Edmundo Rodrigues e publicada pela RGE.
A valorização da cultura popular serviu também para incentivar e evidenciar produções tipicamente regionais. Henrique Magalhães (1983) aponta que, ainda em meados
dos anos 1960, uma extensa produção, de caráter local, povoou as páginas dos diários
e dos periódicos em grandes cidades do Norte, do Sul e do Nordeste do país, demonstrando que era possível realizar HQs de qualidade, fora do eixo Rio – São Paulo, mesmo
que na marginalidade.
Na Paraíba, por exemplo, já em 1963, o jornalista e quadrinista Deodato Borges transformou O Flama, herói criado por ele para um seriado radiofônico diário, na revista em
quadrinhos As Aventuras do Flama, com grande aceitação local. É certo que algumas
destas histórias se baseavam nos modelos já consagrados dos quadrinhos americanos,
outras, contudo, valiam-se da crítica social e política, ou satirizavam as produções estrangeiras, como é o caso da Bat-Madame, criada nos anos 1970 pelos também paraibanos
Luzardo e Anco Márcio (MAGALHÃES, 1983).
Na outra ponta do país, Leonel Brizola, quando governador do Rio Grande do Sul,
buscou incentivar a nacionalização dos quadrinhos por meio da criação da cooperativa
CEPTA. Entre as produções da cooperativa, destaca-se o personagem O Aba Larga,
criado por Getúlio Delphim, em 1962. O herói, um policial montado, baseava-se nos
estereótipos culturais do gaúcho dos pampas. Suas aventuras, porém, tiveram vida curta.
DO SERTÃO DA BAHIA: XAXADO.
O cartunista Antônio Luiz Ramos Cedraz nasceu em uma fazenda no município
de Miguel Calmon, na Bahia, tendo posteriormente morado em Jacobina, no sertão do
mesmo estado, e morreu em 2014, aos 69 anos, vítima de um câncer. Professor primário
e bancário, mudou-se para Salvador com o intuito de se tornar desenhista profissional.
Apesar de ter conseguido emplacar algumas tiras com seus personagens Joinha e Pipoca,
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
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foi com a Turma do Xaxado, publicada a partir de 1998, no jornal baiano A Tarde, que
alcançou notoriedade nacional.
Sensível ao cotidiano e à cultura do sertão, onde viveu toda a infância e parte da
juventude, Cedraz criou A Turma do Xaxado a partir da observação e da intensa pesquisa
dos tipos humanos do interior do Nordeste, suas práticas, crenças e seus modos de agir e
falar. Tais características, apresentadas sob a preocupação de não parecer caricatural, nem
pitoresco, atraiu a atenção do público e da crítica, o que garantiu ao autor seis troféus HQ
Mix, além do Prêmio Ângelo Agostini de Mestre do Quadrinho Nacional. Nestas quase
duas décadas, as histórias da turma já foram publicadas em jornais de vários estados
do Brasil, como também em livros, revistas, álbuns, livros didáticos e em campanhas
socioeducativas promovidas pela UNESCO e por governos estaduais (CEDRAZ, 2006).
A Turma do Xaxado retrata o modo de vida simples e a infância do interior, livre,
alegre, permeada pelo folclore, pelas tradições e crenças típicas do cotidiano sertanejo.
Suas tiras mostram personagens heterogêneos, mas tipicamente brasileiros. Apesar das
diferenças de classe, etnia, grau de instrução e modos de pensar, todos convivem em
paz, cultivando o respeito pelas alteridades.
O protagonista Xaxado, por exemplo, é neto de um cangaceiro do bando de Lampião
e embora tenha uma relação conflituosa com as posturas gananciosas de Arturzinho,
filho do grande fazendeiro e coronel da região, mantém laços de amizade com o mesmo (CEDRAZ, 2012). Outro ponto forte das tiras é a relação de respeito e cuidado que
os personagens demonstram para com os animais da fazenda, com a natureza, com o
sagrado e com seres míticos do folclore, como a Cuca e o Saci, que aparecem constantemente nas aventuras.
Enquanto forma de resistência e sobrevivência cultural popular, muitas tiras satirizam
os heróis estrangeiros, como o Zorro ou o Batman ou buscam fortalecer a identidade local
ao valorizar elementos do folclore regional em detrimento de personagens universais,
como Papai Noel, ou festejos como o Halloween. Por meio dos personagens Marieta e
Capiba, o autor promove a difusão da literatura brasileira e nordestina, bem como da
música popular, dos folguedos e festejos típicos.
Também cabe à turma o desafio de encarar e se posicionar frente a dilemas diários
do sertanejo, como a seca, a falta de trabalho, a fome, a corrupção, o coronelismo, a
exploração do trabalho escravo e diversos níveis de preconceito. Para enfrentar tais
questões, amparam-se em valores como a esperança, o amor, a amizade e a coragem.
No que diz respeito à fé, os valores expostos em tais quadrinhos condizem bem
com determinadas mestiçagens frequentes na religiosidade popular, capaz de cruzar
o catolicismo com as tradições de matrizes africanas e crenças tradicionais. Quando o
problema assim o exige, é comum padre, saci e rezadeira se unirem para buscar a solução.
Para Gonçalo Júnior (2003), o humor de Cedraz passeia pela cultura brasileira, pelas
tradições e coisas da terra, mas de forma suave, nunca agressiva, indo do popular ao
poético, passando pela metalinguagem. Talvez pela experiência enquanto professor
primário, o autor busca fazer um quadrinho educativo, que fala a linguagem da criança.
Comparações com a obra de Maurício de Sousa são inevitáveis, principalmente
com a turma do personagem Chico Bento. Cedraz nunca negou que Maurício e Ziraldo
tenham sido suas grandes inspirações nos anos 1970. Entretanto, há uma característica
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Júnior Pinheiro
muito forte nas histórias do criador da Turma da Mônica que é a universalidade de
temas e personagens (SANTOS, 2006).
É inegável a competência das tiras de Maurício em fazer rir a partir da ingenuidade
do caipira, dos hábitos e costumes de quem vive no interior, não exatamente numa localidade, mas um interior que coexiste em muitos pontos do Brasil. Entretanto, as histórias
de Chico Bento não aprofundam a cultura do interior, nem o imaginário popular, as
lendas e o rico folclore brasileiro. O esforço para ser universal limitou o desenvolvimento
de sua turma. (JÚNIOR, 2003).
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
As HQs atuais conseguem abordar temática diversa. Tal flexibilidade, aliada aos
vários estilos artísticos e narrativos, fazem tal mídia poderosa e atraente, tendo, quase
sempre, boa aceitação pelo público. Não à toa, tem sido utilizada em materiais educativos,
informativos e de treinamento, tanto para crianças, quanto para jovens e adultos.
Quando tratam de temas ligados às culturas populares, estas publicações podem
enriquecer seu conteúdo, difundir tradições e reforçar identidades, criando uma maior
empatia com seu público. Estas relações folkmidiáticas tem sido preocupação constante
dos estudos realizados no âmbito da Folkcomunicação.
No campo das apropriações de elementos da cultura popular, os quadrinhos A
Turma do Xaxado, criados em 1998, pelo cartunista baiano Antônio Cedraz, se insere
de maneira positiva, pois intenta fugir dos estereótipos e dos lugares-comuns, tratando
as tradições com respeito e cuidado, apesar de se tratar de uma série humorística. Tais
posturas não só difundem o folclore, como também reforçam as identidades culturais,
valorizando o cotidiano do sertanejo. Por isso, A Turma do Xaxado tem sido utilizada
com frequência em materiais didáticos e em campanhas sociais, feitas inclusive por
instituições internacionais.
.Este artigo não intentou esgotar o tema – pois este se apresenta rico e repleto de
possibilidades. Pretendeu, antes, trazer à pauta dos estudos folkcomunicacionais as
questões vinculadas aos quadrinhos que se aproveitam do folclore enquanto mote para
suas aventuras. Uma vez que muitos setores da academia brasileira ainda nutrem certo
preconceito com tal mídia, a Folkcomunicação, enquanto campo de estudo que se ocupa tanto de elementos produzidos pelo povo, quanto pela grande mídia – certamente
ofertará grande contribuição na continuidade de tal pesquisa.
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Quadrinhos e cultura popular sob o olhar da folkmídia. Estudo de caso da presença de elementos folclóricos regionais na Turma do Xaxado
Júnior Pinheiro
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Pessoa: Marca de Fantasia.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7518
A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
The Canja de Viola under a perspective folkcomunicacional
Guilherme
de
Pa u l a P i r e s 1
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar a Canja de Viola, um
projeto de cultura popular que ocorre em Curitiba, sob a ótica da teoria da
Folkcomunicação. A escolha deste tema se deu por meio da experiência vivida
do pesquisador em algumas apresentações do evento e a pertinência em se
pensar o objeto por um viés diferente do apresentado em outros dois projetos
que abordam o tema. É possível concluir que o encontro, que ocorre desde 1986,
carrega traços como a criação de identidades comuns seja pela música, pelas
vestes, ou o compartilhamento dos instrumentos musicais e o hibridismo entre
rural e urbano se faz presente em todos esses anos.
Palavras-Chave: Canja de Viola. Folkcomunicação. Identidade. Hibridismo.
Abstract: The present article aims to present the broth of Viola, a project of
popular culture that occurs in Curitiba, from the perspective of the theory of
Folk Communication. The choice of this theme was taken through the lived
experience of the researcher in some presentations of the event and the relevance
of thinking the object by a bias different from that presented in two other projects
that deal with the theme. It is possible to conclude that the meeting, which occurs
since 1986, carries traces as the creation of common identities is by music, by
the clothes, or the sharing of musical instruments and the hybridism between
rural and urban is present in all these years.
Keywords: Canja de Viola. Folk communication. Identity. Hybridism.
INTRODUÇÃO
PRESENTE ARTIGO busca primeiramente apresentar o projeto Canja de Viola,
O
um evento de cultura popular, no sentido expressado por Gadini (2007), sendo
cultura popular uma “abordagem tradicional de que as culturas se legitimam e
dialogam com opostos, a ‘cultura popular’ seria um contraponto da ‘cultura de elite’ ou
erudita” (p. 53) uma vez que os frequentadores da Canja de Viola observam uma crescente apropriação e/ou adaptação dos seus costumes e gênero musical pela indústria da
cultura, criando assim o que ficou conhecido como sertanejo universitário. No primeiro
capítulo do artigo pode-se observar o percurso metodológico da pesquisa em que se
deteve antes de tudo em apresentar o projeto Canja de Viola com o objetivo de trazer
este objeto com uma perspectiva diferente do que já foi estudado em outros projetos.
E por fim apresentamos o evento e o aproximamos com alguns conceitos expressos na
teoria da Folkcomunicação.
1. Mestrando em Jornalismo, Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), guilhermedepaulapires@
gmail.com.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7519
A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
Guilherme de Paula Pires
PERCURSO METODOLÓGICO
Em linhas gerais, com relação aos pressupostos metodológicos da pesquisa, pode-se
observar que o percurso metodológico desse artigo parte primeiramente da pesquisa
bibliográfica, elaborada a partir de material já publicado, como reportagens, dissertação
e documentário, e é também um levantamento do evento, uma vez que houve a interação
do pesquisador com o ambiente da Canja de Viola.
Será possível observar mais adiante o registro de fotos dos participantes, com o
objetivo de caracterizar ainda mais o evento. Vale lembrar que esses registros foram
feitos pela musicista Grace Filipak Torres, disponíveis na sua dissertação de mestrado
onde o endereço para acesso encontra-se nas referencias.
É importante ressaltar que o artigo tem o aporte teórico da folkcomunicação, iniciada
por Luiz Beltrão, nos anos 1960. Para Beltrão, folkcomunicação pode ser entendida como
o “conjunto de procedimentos de intercâmbio de informações, ideias, opiniões e atitudes
dos públicos marginalizados urbanos e rurais, através de agentes e meios direta ou
indiretamente ligados ao folclore” (BELTRÃO, 1980, p. 24).
Na literatura que foi utilizada para ilustrar a Canja de Viola, Torres, na sua dissertação
parte da teoria social de aprendizagem das Comunidades de Prática (Wenger), onde
são abordados os conceitos de identidade e comunidade. Por sua vez, no documentário
“Curitiba ao Som da Viola”, Allan Oliveira utilizada a metodologia etnográfica para
contar o cenário musical sertanejo da cidade de Curitiba.
Esse resgate se faz importante uma vez que esses conceitos abordados acima, em
outros trabalhos, também são notados na folkcomunicação. O que torna essa teoria,
que “trabalha com um objeto próprio e específico – as manifestações da cultura
popular, o que permite o pesquisador múltiplas escolhas, gerando diferentes linhas
de pesquisa” (CASTELO BRANCO, 2011, p. 110), mais estimulante para se pensar “não
sobre a manifestação em si, mas nos aprofundar no conteúdo da mensagem atual,
isto é, a mensagem que o grupo transmite hoje.” (OLIVEIRA, 2007, P. 92). Em mundo
onde múltiplas identidades culturais convivem em um mesmo território, estudar
folkcomunicação é importante, segundo Cláudio Cardoso de Paiva por vários motivos:
Contemplar a folkcomunicação no século XXI é pertinente por vários motivos: primeiramente
porque consiste numa linha de pesquisa pioneira no campo das ciências da comunicação no
Brasil e na América Latina, que orienta ainda boa parte das investigações contemporâneas,
demarcando um espaço dialógico e compreensivo face às manifestações socioculturais e
suas interfaces midiáticas. Depois porque se apoia num conjunto de dispositivos teórico-conceituais e metodológicos que busca ao mesmo tempo – resgatar as tradições populares
e se atualizar permanentemente, contemplando os objetos, as linguagens os rituais e as
mitologias da sociedade de consumo (Paiva, 2007, p. 191).
Sendo assim, faz se importante o estudo da Canja de Viola por meio da teoria da
Folkcomunicação, dentre outros motivos, como expressão de uma cultura popular, o
hibridismo presente entre o rural e o urbano, as identidades culturais que se formam
em torno do evento, e o sentido de resistência cultural em um gênero musical que
atualmente é apropriado pela indústria de consumo.
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A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
Guilherme de Paula Pires
A TRANSFORMAÇÃO DO CAIPIRA EM SERTANEJO
Com o fluxo migratório de interioranos para a capital, no início do século passado, e a
fase de ouro do rádio brasileiro que vai dos anos 1930 a 1950, impulsionou os compositores
da chamada música caipira a gravar os seus primeiros discos. Nesse período, diversas
músicas foram gravadas por artistas de diversos estilos e as gravadoras passaram a se
interessar por esse “novo” gênero musical. Para Caldas (1999) é esse o momento que
marca a transição entre música caipira e música sertaneja. A partir daí a música caipira
feita na cidade seria para um público urbano.
Esse gênero musical fazia muito sucesso, principalmente em regiões onde a migração de
pessoas do interior fora mais intensa. Esse sucesso pode ser explicado pela temática tratada, que expressa a tradição romântica do motivo do exílio, adequada à nostalgia dos que
haviam deixado o campo em busca da cidade, como ocorria com intensidade no Brasil da
época. Nessas canções surgia um campo edenizado, distante e puro, para o qual sonhava
voltar um dia (Alencar, 2011, p. 6).
Ainda sobre a transição do estilo musical caipira para música sertaneja, Ulhôa
(1999), vê na transição entre os dois gêneros a apropriação da indústria musical com o
objetivo de alterar o conteúdo da musica para se adequar a temática do meio urbano:
A música sertaneja surgiu em 1929, quando Cornélio Pires começou a gravar “causos” e
fragmentos de cantos tradicionais rurais da região cultural caipira. Na época conhecido como
música caipira, hoje denominado música sertaneja, o gênero se caracteriza pelas letras com
ênfase no cotidiano e maneira de cantar. Tradicionalmente a música sertaneja é interpretada
por um duo, geralmente de tenores, com voz nasal e uso acentuado de um falsete típico,
com alta impedância e tensão vocal mesmo nos agudos que alcança às vezes a extensão de
soprano. O estilo vocal se manteve relativamente estável, desde suas primeiras gravações,
enquanto a instrumentação, ritmos e contorno melódico gradualmente incorporaram elementos estilísticos de gênero disseminados pela indústria musical. Estas modificações de
roupagem e adaptações no conteúdo temático anteriormente rural e agora urbano consolidam o estilo moderno da música sertaneja, que nos anos 80 se torna o primeiro gênero de
massa produzido e consumido no Brasil. (ULHÔA, 1999, p. 48).
Embora não seja o foco principal do artigo discutir as singularidades da música caipira
e da música sertaneja, faz se importante esse resgate uma vez que os frequentadores da
Canja de Viola, na sua maioria dizem cantar música sertaneja romântica. Como vimos
acima, um processo musical que se iniciou com o gênero música caipira. Nesse campo
entre gêneros é preferível ficar com a proposta de Oliveira (2004) ao citar o artigo de
Ulhôa propõem que se desvincule o debate entre rural e urbano. “Tudo é musica sertaneja
de caráter urbano: a fase caipira seria um momento onde prevaleceriam temas rurais”
(OLIVEIRA, 2004, p. 22-23).
ENCONTRO SEMANAL DE VIOLEIROS: A CANJA DE VIOLA
Aos domingos, a partir das 15h, no Teatro Universitário de Curitiba (TUC),
assiduamente, desde 1986, por iniciativa de Paquito Modesto, ocorre a Canja de Viola.
Inicialmente os encontros ocorriam em um antigo pavilhão comunitário na Avenida
Visconde de Guarapuava.
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A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
Guilherme de Paula Pires
Iniciado modestamente no antigo pavilhão comunitário da Avenida Visconde de Guarapuava,
passado depois para o Centro Comunitário de São Braz e, finalmente, com o apoio do próprio então prefeito Roberto Requião, implantado no Teatro Universitário, a Canja de Viola
tem sido o mais democrático e aberto espaço para violeiros da cidade – solo, duplas, trios
e mesmo grupos maiores. Todos os domingos, a partir das 15 horas, gente do povo que faz
sua música (espontânea) encontra-se no asfixiante espaço do TUC, na galeria Júlio Moreira,
para ali mostrar canções simples, (espontâneas) – que independente de apreciações estéticas
são significativas como comunicação popular. (MILLARCH, 1992).
Hoje em dia a Canja de Viola quase sempre conta com casa cheia. Somente no período
em que o TUC ficou fechado para reformas e os encontros passaram a ser realizados na
Sociedade 13 de Maio que a adesão do público diminuiu. Mas com o retorno do evento
ao TUC, no Centro de Curitiba, a Canja de Viola quase sempre lota o espaço destinado
pela Fundação Cultural de Curitiba (FCC). Tradicional encontro semanal de violeiros,
que para Cascudo é a “figura típica do folclore brasileiro, tocador e cantador de viola (...),
que vai criando suas rimas enquanto canta e acompanha a viola” (CASCUDO, 2002, p.
730-731) a Canja de Viola abriga violeiros, cantores em duplas ou solistas, sanfoneiros e
outros fazedores de músicas que se interessam pelo gênero. Como lembra Millarch (1992),
alguns artistas que se apresentaram na Canja de Viola chegaram até a se profissionalizar:
Identificado aos artistas anônimos, amadores que fazem música com todo entusiasmo, encontrou na Canja de Viola uma forma de valorizar cantores, compositores e instrumentistas
que, uma vez por semana, nas tarde de domingo, tem seus momentos de glória. Entre as
duplas que saíram da Canja de Viola para trilhar caminhos profissionais está Teleu e Sanvita,
hoje radicados em São Paulo – e preparando um primeiro LP – lembrados por Paquito para
serem convidados especiais de amanhã à tarde (MILLARCH, 1992).
A participação de grande parte desses músicos que ficam se aquecendo nas escadas
da galeria Júlio Moreira, a partir das 14h30, é assídua. Alguns participam do evento há
mais de 15 anos. Além da musica, é importante realçar a amizade que se constrói por
meio desses encontros. Apesar do elo entre eles ser a música sertaneja, pode-se notar que
a vestimenta e o modo de falar, são trejeitos que os fazem pertencer a um grupo, criando
assim uma identidade comum entre eles, uma vez que a construção de identidades é
tanto simbólica, quanto social:
No que diz respeito aos atores sociais, entendo por identidade o processo de construção de
significação com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais
inter-relacionados, o(s) qual(s) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. (Castells.
2003, p. 22)
A concepção de identidade é importante, uma vez que os frequentadores da Canja
de Viola praticam musica sertaneja no centro de uma metrópole, em um lugar, o Largo
da Ordem, conhecido pelos espaços temáticos voltados para o Rock, e pelo menos no
contexto do evento, à “família sertaneja”, como sempre lembra o apresentador do evento o
“gaúcho”, e outros frequentadores da Canja de Viola, que na sua maioria advém de outros
estados ou municípios do Paraná, criam elementos de identificação entre os membros.
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A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
Guilherme de Paula Pires
Identificação essa que pode surgir inclusive no ato de não saber cantar, harmonicamente falando. Nesse espaço todos se respeitam e não há o deboche da vaia. Talvez
a construção de identidade entre eles surja nesse não saber cantar compartilhado por
muitos do que estão ali presentes, e o entendimento de que
O que torna a música sertaneja de boa qualidade para seus aficionados não são melodia,
harmonia, ritmo, instrumentação ou forma, categorias musicológicas usuais para a análise
da música popular, mas, principalmente, o estilo vocal dos cantores no que chamam de
“voz”, além da relação letra-música. A unidade estilística da música sertaneja é conseguida
pelo uso consistente do estilo vocal tenso e nasal e pela referência temática ao cotidiano,
seja rural e épico na música sertaneja raiz, seja urbano e individualista na música sertaneja romântica. Deste modo podem ter qualidade tanto Tonico e Tinoco ou Pena Branca
e Xavantinho quanto Chitãozinho e Xororó ou Leandro e Leonardo, pela habilidade que
demonstram em lidar com suas vozes dentro de um estilo específico, e pela coerência interna
das letras que remetem a um cotidiano histórico. (ULHÔA, 1999, p. 53-54)
Os participantes do evento são na maioria pessoas em torno dos quarenta a setenta
anos de idade. Os poucos jovens ali presentes são, na maioria, familiares dos violeiros.
São pessoas de pouca posse que na maioria das vezes tem acesso ao Canja por meio
do transporte coletivo. Como lembrou Torres (2008), “a comunidade constrói identidades, as identidades unem a comunidade” (TORRES, 2008, p. 60), ao usar a expressão
“família sertaneja”, “gaúcho”, o apresentador da Canja, acaba sendo uma espécie de
Folkcomunicador, “escolhido naturalmente por seus pares sociais para representa-los
na compreensão comunicacional” (RENÓ, 2007, p. 44).
Abaixo apresento alguns participantes da Canja de Viola:
Figura 01 - Rivamar (da dupla Leonil e Rivamar).
Registro fotográfico de Grace Filipak Torres.
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A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
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Natural de Minas Gerais. “A frequência de Rivamar na Canja é ocasional, pois
muitas vezes nos finais de semana tem compromissos onde é chamado para tocar e
cantar” (TORRES, 2008, p. 47).
Figura 02 - Góes da Viola.
Registro fotográfico de Grace Filipak Torres.
“Frequenta a Canja de Viola assiduamente desde 2007, após alguns anos de
afastamento. Em relação à maioria dos participantes, que geralmente toca violão, ele é
um dos poucos que toca, e muito bem, a viola caipira” (TORRES, 2008, p. 48)
Figura 03 - Sorriso (da dupla Sorriso e Sorridente).
Registro fotográfico de Grace Filipak Torres.
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A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
Guilherme de Paula Pires
“Natural de Marilândia, região de Apucarana, norte do Paraná. (...) Sorriso toca
viola e frequenta a Canja de Viola há quase 20 anos” (TORRES, 2008, p. 49).
Figura 4 - Itararé.
Registro fotográfico de Grace Filipak Torres.
Um dos frequentadores mais antigos da Canja de Viola. Comparece nos encontros
desde o início (há mais de 20 anos), com alguns intervalos de ausência” (TORRES, 2008,
p. 51).
Figura 5 - Pedrinho e Terezinha.
Registro fotográfico de Grace Filipak Torres.
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A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
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“São casados há 35 anos. São amadores, fazem música só por gosto. (...) Frequentam a
Canja de Viola assiduamente” (TORRES, 2008, p. 52). Pedrinho é um dos frequentadores
que mais entende de música. Se surge alguma dúvida referente a algum estilo ou cantor,
é para Pedrinho que os demais vão perguntar.
Figura 6 - Ilson Estefani “Gaúcho Trovador”
Fonte: Fundação Cultural de Curitiba.
CONCLUSÃO
Como pode ser visto nessa breve descrição sobre a Canja de Viola, é possível
observar traços de uma cultura marginalizada, “que embora compartilhe a vida e as
tradições culturais de dois povos distintos, ‘jamais se decide romper, mesmo que lhe
fosse permitido, com o seu passado e suas tradições’” (BELTRÂO, 2004, p. 83), onde se
pode observar o desejo do sucesso musical, porém sem se esquecer das suas raízes. E
mesmo sem apoio municipal, com exceção do espaço cedido, são construídas identidades
comuns seja pela música, pelas vestes, os instrumentos musicais, ou pelo aprendizado
na pratica, em um estilo musical (sertanejo) que possui tantos adeptos na cidade, a Canja
de Viola, em cartaz na cidade nada menos que 27 anos, ainda permanece fora do eixo
de políticas de incentivos a cultura do município.
REFERÊNCIAS
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______ . Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do Campo: Umesp, 2004.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2002.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
CASTELO BRANCO ROCHA CARVALHO, Samantha Viana. Metodologia folkcomunicacional teoria e prática. In DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (org). Métodos e Técnicas
de Pesquisa em Comunicação. São Paulo: Atlas, 2011.
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A Canja de Viola sob uma perspectiva folkcomunicacional
Guilherme de Paula Pires
DE PAIVA, Cláudio Cardoso. Memória e atualidade no campo da folkcomunicação: culturas
populares, culturas midiáticas e cibercultura. In. MEIRA TRIGUEIRO, Osvaldo; MELO,
José Marques (org). Luiz Beltrão pioneiro das ciências da comunicação no Brasil. João Pessoa:
Universitária, 2007.
FILIPAK TORRES, Grace. Canja de Viola: uma comunidade de prática musical em Curitiba.
Dissertação (mestrado em artes visuais e música) – Setor de Ciências Humanas,
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2008
GADINI, Sérgio Luiz. Cultura popular. In GADINI, Sérgio Luiz; JANZ WOITOWICZ Karina
(org). Noções básicas de Folkcomunicação: uma introdução aos principais termos, conceitos
e expressões. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2007.
GARCIA DE ALENCAR, Maria Amélia. Cultura e identidade nos sertões do Brasil: representações
na musica popular. Disponível em: http://www.iaspmal.net/wp-content/uploads/2011/10/
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MILLARCH, Aramis. Canja de Viola: o bom exemplo de Paquito Modesto na cultura popular.
Disponível em: www.millarch.org/artigo/canja-de-viola-o-bom-exemplo-de-paquitona-cultura-popular . Acesso em 03/08/2013.
OLIVEIRA, Allan de Paula. O tronco da roseira: para uma antropologia da viola caipira.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2004.
ULHÔA, Marta (1999). Música sertaneja e globalização. In: Rodrigo Torres (Ed.). Músic popular
en América Latina. Santiago, Chile: Fondart; Rama Latinoamericana IASPM, p. 48.
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O cavalo-marinho como mídia: o folguedo e a representação
do cotidiano encenado pelo trabalhador do canavial
Cavalo-marinho as media: the merriment and the everyday
life representation stagedby sugarcane worker
Júnia M artins 1
Resumo: O cavalo-marinho, folguedo característico do interior pernambucano,
reúne dança, música, poesia, improviso, teatro. Uma característica ímpar é a
atuação do brincante na experiência estética que aponta para a subversão de
hierarquias por meio de personagens historicamente entranhados no cotidiano
da lavoura canavieira. O presente artigo tem como base o método etnográfico e
as pesquisas bibliográfica e documental para a tessitura de uma análise interpretativa do folguedo enquanto mídia de uma comunidade rural. A imersão
etnográfica é feita no Sítio Chã de Camará, em Aliança-PE, lugar onde há mais de
meio século, crianças, jovens e mestres da tradição oral se reúnem para brincar
o cavalo-marinho. Partiu-se da premissa de que a encenação de inversões da
realidade demonstra a necessidade histórica de mudança hierárquica e supressão
das mazelas que assolam a lavoura canavieira – subescravidão, concentração
de terras, lei a serviço dos donos de engenho. A manifestação, porém, revelou
uma fuga da rotina laboral desgastante e a reinvenção da organização social
por meio do saber do povo, do humor, da arte e da comunhão intergeracional.
Revelou corpos em movimento, dançando e celebrando o sagrado e o profano,
comunicando-se por meio da manifestação da cultura popular.
Palavras-chave: Cavalo-marinho. Folkcomunicação. Cultura popular.
Representação cultural. Cotidiano.
Abstract: The cavalo-marinho, characteristic merriment of Pernambuco interior,
brings together dance, music, poetry, improvisation, theater. A peculiar characteristic is the performance of trifling in a esthetic experience that points to the
subversion of hierarchies through characters historically ingrained in everyday
life sugarcane plantations. This article is based on the ethnographic method,
the bibliographic and documentary research to the fabric of an interpretative
analysis of merriment while media in a rural community. The ethnographic
immersion Chã de Camará, site in Alliance-PE, where more than half a century,
children, youth and masters of oral tradition come together to play the cavalomarinho. Started from the premise that investments staging of reality shows
the historical necessity of hierarchical change and removal of ills that plague
the sugarcane crop – sub slavery, land concentration, law in the service of the
1. Mestra em Comunicação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), diretora-secretária da Rede
Brasileira de Pesquisa e Estudos em Folkcomunicação (Rede Folkcom), pesquisadora do Grupo de Pesquisa
sobre o Cotidiano e o Jornalismo (Grupecj-UFPB). E-mail: [email protected].
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7528
O cavalo-marinho como mídia: o folguedo e a representação do cotidiano encenado pelo trabalhador do canavial
Júnia Martins
plantation owners. The demonstration, however, revealed an escape from stressful work routine and the reinvention of social organization through knowledge
of the people, humor, art and intergenerational communion. Showed bodies in
motion, dancing and celebrating the sacred and the profane, communicating
through the manifestation of popular culture.
Keywords: Cavalo-marinho. Folkcommunication. Popular culture. Cultural
representation. Everiday life.
INTRODUÇÃO
CONSTRUÇÃO E a compreensão do delineamento das identidades como bases
A
científicas para o conhecimento do eu e do outro, somadas às teias fiadas pelos
indivíduos nas relações com o espaço e o tempo, são sementes que frutificam
termos como alteridade, cultura e representação. Por outro lado, muitas pesquisas das
Ciências Humanas apontam que, com o enfraquecimento dos poderes institucionalizados – Igreja, Estado, partidos políticos etc. – conjugado com o cenário de cultura de
massa, o desenho objetivo de identidades individuais e coletivas fica com traços cada
vez mais enfraquecidos.
Hibridismo (CANCLINI, 2008), mestiçagem (FREYRE, 2005), homogeneização cultural (HALL, 2005), cultura internacional-popular (ORTIZ, 2003) e transculturação (ORTIZ,
1983) perfazem alguns dos conceitos que embalam, no panorama de globalização ou
mundialização (ORTIZ, 2003), os estudos sobre as culturas e identidades. As manifestações de cultura popular são o foco de muitos desses estudos, como objetos de pesquisa que facilmente refutam a divisão encerrada entre o erudito e o popular, o local e o
global, o nacional e o estrangeiro. Enquanto ilustração de uma dessas manifestações, o
cavalo-marinho é um espaço onde a mistura se afirma, já que resultado da miscelânea
portuguesa afro-brasileira, tendo como palco típico no País, a Zona da Mata pernambucana. Mais que um momento de celebração e diversão popular, a brincadeira se institui
como mídia no/do cotidiano2 dos trabalhadores rurais.
Os personagens incorporados pelos trabalhadores rurais no cavalo-marinho demonstram não apenas a identidade híbrida da manifestação, contudo. Revelam a incorporação
de valores e circunstâncias sociais predominantemente brasileiras na reunião de vivências históricas entre o escravo negro e os representantes do poder legitimado – o dono do
engenho, o soldado, o capitão e figuras da aristocracia; porém esteticamente representadas
por alegoria, poesia, música, humor, dança, arte. É a fuga do campo para o terreno do
imaginário, no qual o cênico dá conta da inversão dos papéis entre escravo e dono do
engenho, entre soldado e civil; e o cotidiano se reveste de criatividade ao omitir – mostrando – a crueza das relações intrínsecas à vida dos trabalhadores da cana-de-açúcar.
2. Neste texto, o cotidiano faz referência às relações levantadas por Michel de Certeau, que o compreende
como maneiras de fazer, artes do fazer e, ao mesmo tempo, assinalando o meio social no qual esse cotidiano
está imerso como “espaço de jogos e astúcias”. O cavalo-marinho, vislumbrando o universo de Certeau,
pode ser observado como astúcia tática da prática cotidiana, como resistência dos “fracos”. Tal pesquisa
considera ainda que “as práticas cotidianas estão na dependência de um grande conjunto, difícil de
delimitar” (CERTEAU, 1998, p. 109), já que “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não-autorizada.”
(CERTEAU, 1998, p.38) – com grifos no original.
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O cavalo-marinho como mídia: o folguedo e a representação do cotidiano encenado pelo trabalhador do canavial
Júnia Martins
A apresentação do cavalo-marinho, portanto, como um recorte do universo dos
saberes populares, constitui-se como representação cultural que aponta para as interações social e intergeracional, ao passo que incorpora a arte como fator de existência
(e resistência) na vida cotidiana. Uma representação que se afirma como modalidade
de conhecimento particular, elaborando comportamentos e a comunicação entre os
indivíduos (MOSCOVICI, 1978). O presente artigo é baseado em pesquisa etnográfica
aliada à antropologia interpretativa (GEERTZ, 1989) que, entre outros instrumentos,
utilizou as pesquisas documental e bibliográfica, além de observação assistemática do
Cavalo-marinho Mestre Batista, na comunidade Chã de Camará, zona rural do município
de Aliança-PE, entre os anos de 2011 e 20143. A intenção é contextualizar o lugar sócio e
culturalmente, descrever a trajetória da manifestação na Chã de Camará, e demonstrar o
desabafo no cotidiano fantástico do cortador de cana que, ao participar do auto, constrói,
mantém e reconfigura o conhecimento, fortalecendo a memória, identidade, valores e
práticas inerentes à organização e ao movimento da comunidade.
1. CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL
1.1 O lugar e o Mestre Batista
Situado no Planalto do Borborema, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, Aliança
se tornou reconhecido como município em 1928. Tem uma população estimada em 37.415
habitantes, dos quais 17.168 residem na zona rural (IBGE, 2010); o que corresponde a um
percentual aproximado de 45,9%. Ao leste, faz divisa com Condado e Itaquitininga; ao
norte com Timbaúba, Itambé e Ferreiro; ao oeste com Timbaúba e Vicência; ao sul com
Nazaré da Mata, Buenos Aires e Tracunhaém. O município é banhado pelos Rios Sirigi
e Capibaribe Mirim, e a cidade também é cortada por estrada de ferro – construída no
século XIX a fim de escoamento da produção do açúcar. Os engenhos fazem, ainda nos
dias atuais, parte do cenário e da economia da região.
Seis anos após a municipalização de Aliança, nasceu em Santa Luzia, povoado
do distrito de Tupaóca (município de Aliança), uma figura ilustre do cenário cultural
daquela região, personagem principal da história do cavalo-marinho do Sítio Chã de
Camará – Severino Lourenço da Silva. Filho único de Joana Batista Dias e Antonio
Lourenço da Silva, cresceu sob os cuidados de Joana Batista, do avô e do tio maternos.
Esses dois últimos organizavam nos fins de semana, ali no povoado, as apresentações
do cavalo-marinho e do Maracatu Nação Cambinda Nova4, uma atividade da família
passada de pai para filho durante gerações, desde o ano de 18825. O menino Severino
cresceu participando dos folguedos, mas com a morte do seu tio, em 1951, o Cambinda
Nova encerrou suas atividades.
3. Pesquisa realizada a fim da concepção da dissertação defendida pela autora no Programa de Pós Graduação
em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), intitulada Manifestações folkcomunicacionais
como propulsoras de empoderamento social no Ponto de Cultura Estrela de Ouro, em Aliança-PE. O cavalo-marinho
foi uma das seis manifestações analisadas. Este artigo é a expansão de um subcapítulo da dissertação.
4. Normalmente, os brincantes do cavalo-marinho também integram o maracatu.
5. Informação obtida em entrevista concedida por LOURENÇO, José. Entrevista com José Lourenço. [set. 2012].
Entrevistadora: Júnia Martins. Aliança-PE, 2012. 1 arquivo .wmv (47’48’’). A entrevista transcrita na íntegra
encontra-se no Anexo 3 da dissertação.
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O cavalo-marinho como mídia: o folguedo e a representação do cotidiano encenado pelo trabalhador do canavial
Júnia Martins
Nos tempos de juventude, já conhecido como Severino Batista, Severino Lourenço
se casou com a filha do dono do Sítio Chã de Camará, Sebastiana Maria da Silva. Com
ela, teve quatro filhos. Inicialmente, eles não moraram ali no Sítio, e sim num outro,
arrendado; de onde colhiam produtos agrícolas para comercializar nas feiras regionais.
Em 1965, porém, com o falecimento do sogro, passou a residir no Chã de Camará, de
onde começou a prestar serviço para a Usina Aliança, onde trabalhou como fiscal e
controlador da entrada e saída da cana. “Também foi escolhido para ser ‘comissário’ de
polícia. Embora não tenha sido parte do quadro oficial da milícia, agia como representante do Estado, mantendo a ordem na região. Seu nome era pronunciado com respeito”
(SILVA, 2008, p.65).
Joana Batista, mãe de Severino, havia pedido a ele para não brincar no maracatu;
por isso até então, ele participava somente do cavalo-marinho. Naquele tempo, o
maracatu era espaço de conflitos entre grupos, discriminado socialmente e reprimido
pelas autoridades, circunstância que justificava o pedido da sua mãe. Três anos após o
falecimento dela, porém, Batista fundou oficialmente, no dia 01 de janeiro de 1966, no
Sítio Chã de Camará, o Maracatu Rural Estrela de Ouro, dando continuidade à tradição
iniciada por seus tio e avô. Severino Lourenço começou a vestir a indumentária de
caboclo de lança6. Aos poucos, passou a ser conhecido como Mestre Batista. O maracatu
e o cavalo-marinho7 passam a configurar as atividades que simbolizam a incansável
dedicação do Mestre Batista às celebrações de cultura popular.
Das arrumações do caboclo, do feitio das máscaras às golas e chapéus, tudo era
confeccionado no Sítio. Ali, os finais de semana se transformaram em grandes momentos
de comunhão e festa, por onde passavam pessoas de toda a região para brincar ao som
do maracatu e das rodas de ciranda, dançar o forró de rabeca e ver o cavalo-marinho
que, muitas vezes, se estendia até o dia amanhecer. Em 1977, com o falecimento da esposa
do Mestre Batista, ele se dedicou ainda com mais afinco às brincadeiras.
Sete anos após a morte da sua primeira esposa, Batista se casou com Maria Gonçalves,
a Maria Camará, com a qual teve outros quatro filhos. Maria o auxiliava nas brincadeiras
e organização das festas locais. Dali, o cavalo-marinho saía para animar outros engenhos;
ampliando a manifestação cultural rural de forma a chamar a atenção, por exemplo,
do saxofonista e professor da Universidade do Norte do Texas, John Murphy, que em
1991 foi ao local a fim de colher conteúdo para sua pesquisa, que unia etnomusicologia
e antropologia8. Naquele mesmo ano, contudo, vítima de um câncer, chegou a vez de
Batista se despedir. Seu falecimento parecia ter levado também parte da alma daquele
povoado. Os brincantes que ficaram não encontraram ninguém disposto a assumir a
liderança dos folguedos. Após muita insistência, José Lourenço da Silva, um dos filhos
6. O caboclo de lança é personagem folclórico do maracatu rural. Também é conhecido como caboclo de
guiada, guerreiro de Ogum ou lanceiro africano.
7. Desde 2014, o cavalo-marinho e o maracatu são reconhecidos como patrimônios culturais imateriais
do Brasil.
8. Um registro especial feito pelo pesquisador, em maio de1991, pode ser visto no vídeo disponibilizado
no endereço http://youtu.be/RSbh7bGNMec. O Mestre Batista é o brincante que traz uma toalha branca
nos ombros. Gravações raras do ensaio do cavalo-marinho, feitas em vídeo por John Murphy, podem ser
encontradas em http://migre.me/kouOu. Acesso em 15/03/2015. Três meses após as gravações, Batista
faleceu.
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do Mestre Batista com Maria Camará, decidiu então retomar a organização dos grupos.
Nascido em 1954, José Lourenço morava em Recife desde os seus 17 anos. Após ir para a
capital, visitava a Chã de Camará nos fins de semana, quando presenciava as atividades
culturais desenvolvidas por seu pai.
Era o ano de 1995 quando Zé Batista (como passou a ser chamado José Lourenço)
assumiu a diretoria do grupo. Na dedicação ao maracatu e ao cavalo-marinho, acabou
perdendo seu emprego de vendedor. Comprou uma Kombi e começou a transportar
passageiros em Recife. No carnaval de 1997, investiu grande parte das suas economias
no Estrela de Ouro. Naquele ano, o maracatu rural da Chã de Camará se consagrou
como campeão do carnaval recifense. Já em 1998, o grupo integrou um evento promovido
pela África Produções, dirigido pelo produtor Afonso Oliveira. O projeto, que contou
com o apoio do MinC e da Prefeitura de Recife, permitiu a participação de integrantes
da comunidade na gravação de uma das faixas do CD Maracatu Atômico, com Jorge
Mautner. Em 2004, o Sítio Chã de Camará foi contemplado como Ponto de Cultura9. As
conquistas e mudanças começaram a soprar a favor da Chã; vislumbradas na diminuição
do êxodo rural, na profissionalização dos brincantes, na capacitação de mestres da
tradição oral que abandonaram o corte da cana para serem remunerados por atividades
culturais que realizavam.
Potencializada pela organização da sociedade civil local e ações desenvolvidas a
partir da chegada do Ponto de Cultura, a comunidade passou a centralizar uma economia
autogestiva, na qual os projetos culturais de formação, capacitação, produção e reconhecimento dos fazeres e saberes da cultura popular constituíam os meios de produção. A
cultura popular aliada à comunicação se firmou como matérias-primas e combustível
da economia que movimenta o lugar. As ações desenvolvidas localmente contribuíram
e contribuem para o desenvolvimento de um município onde há grande número de
trabalhadores informais ou desempregados. Segundo dados do IBGE (2010), apenas
3.468 pessoas têm uma ocupação formal. Dos 37.41510 habitantes, somente 25.206 são
alfabetizados, o que equivale a um percentual de 32,6% de analfabetos.
A cana-de-açúcar, por sua vez, continua sendo o elemento basilar da agricultura
de Aliança. Em 2011, foi contabilizada a produção de 550 mil toneladas (IBGE, 2014). A
lavoura canavieira, contudo, é sazonal, muitos canavieiros ficam desempregados em
períodos do ano. Cabe dizer ainda que, em 2008, a Anistia Internacional identificou
trabalho forçado e exploração no setor canavieiro brasileiro, com situações análogas à
9. Pontos de Cultura são instituições reconhecidas jurídica e socialmente, que recebem apoio financeiro e
técnico do Estado para desenvolver atividades de impacto sociocultural em suas comunidades, fortalecendo
e/ou ampliando ações preexistentes. A instituição submete seu projeto a edital público e, se contemplada, é
conveniada ao Ministério da Cultura (MinC), recebendo o valor de R$ 180 mil para ser investido, conforme
projeto apresentado, num período de 3 anos. Do valor total recebido pela instituição, R$ 50 mil é para
aquisição de equipamentos audiovisuais. A gestão é compartilhada entre o Governo/MinC, a instituição
e a comunidade. Atualmente, o Ponto de Cultura Estrela de Ouro é representado legalmente por José
Lourenço e tecnicamente pelo Mestre Luiz Caboclo. Entre outras atividades, mantém o Maracatu Estrela
de Ouro, o Cavalo-marinho Mestre Batista, o Coco Popular de Aliança e a Ciranda das Rosas de Ouro, estes
dois últimos criados por Lourenço. Na velha casa onde morou o Mestre Batista, está instalado o Ponto de
Cultura. Ali funcionam também a Biblioteca Mestre Batista, o Estúdio Mestre Zé Duda e o Ponto de Leitura.
10. População estimada em 38.248 no ano de 2014.
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escravidão11. A economia da cana-de-açúcar, que marca secularmente toda a Zona da
Mata Norte e Estado – desde o trabalho semiescravo (que infortunadamente resiste às
leis e ao tempo) à miscigenação das etnias e culturas –, reside, décadas depois, junto às
manifestações de cultura popular, produtos da aliança entre as culturas portuguesa,
brasileira e africana, especialmente. Saberes populares que diminuem a tensão entre
um Brasil arcaico, colonial e outro rico em arte, cores e crenças.
1.2. A cultura do açúcar na formação de um pensamento sociocultural
Para compreender a história de determinada sociedade, comunidade, grupo social
ou cultural, é importante voltar o olhar às questões imbricadas nos processos da sua
formação e maturação. Entre outros fatores, tais processos estão associados ao espaço
geográfico, às lutas sociais, às experiências econômicas, religiosas e políticas.
Em Pernambuco, a formação do seu povo está diretamente vinculada às ocupações efetivadas pelos europeus entre os séculos XVI e XVII. Embora a destruição da
mata tenha se configurado como a primeira atividade econômica dos portugueses,
especialistas em escambo, foi o cultivo da cana e a produção de açúcar que permitiu
a fundação de Pernambuco (SILVA, 2008). A história da economia açucareira no país
rememora, contudo, o período do Brasil-Colônia. É preciso retornar a ele para perceber os laços da tradição que unem a imagem do brincante do cavalo-marinho ao
trabalhador do canavial.
Incorporada à economia ainda nos tempos do Brasil colonial, a produção da cana-de-açúcar se estendeu por terras das quais os índios haviam sido expulsos. Os escravos
negros, como trabalhadores nas plantações, conviviam, assim, com caboclos e uns poucos indígenas também escravizados. A fim de amenizar a possibilidade de rebelião nas
senzalas, alguns senhores de engenho permitiam, esporadicamente, que seus escravos
dançassem e cantassem. Gilberto Freyre (2005) diz que a alegria vinda do canto, da
música e da dança dos escravos quebrava a melancolia e a monotonia da Casa Grande;
e traz uma lembrança do Engenho Monjope, em Pernambuco:
No engenho Monjope, em Pernambuco (...) houve não só banda de música de negros, mas
circo de cavalinhos em que os escravos faziam de palhaços e de acrobatas. Muitos acrobatas
de circo, sangradores, dentistas, barbeiros e até mestre de meninos – tudo isso foram os
escravos no Brasil; e não apenas negros de enxada ou de cozinha. Muito menino brasileiro
deve ter tido por seu primeiro herói, não nenhum médico, oficial de marinha ou bacharel
branco, mas um escravo acrobata que viu executando piruetas difíceis nos circos e bumbas-meu-boi de engenho. (FREYRE, 2005, p. 505)
Com a abolição da escravatura, em 1888, foi concedida a emancipação jurídica, mas
isso não implicou necessariamente numa ascensão social dos homens então livres. Índios,
negros e caboclos continuaram expropriados, e muitos deles se tornaram “moradores
de condição”:
11. O relatório completo da Anistia Internacional pode ser encontrado no endereço: http://www.
observatoriodeseguranca.org/files/Relatorio2008_Anistia_Internacional.pdf. Acesso em 10 de março de
2015.
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Ao lado de algumas dezenas de escravos, costumavam (os senhores de engenho) contratar
trabalhadores assalariados – índios semicivilizados, mulatos, negros livres. (...) era frequente,
nessa região, os senhores de engenho, por não poderem adquirir escravos devido ao seu
alto custo, para suprir a necessidade de braços, facilitarem o estabelecimento de moradores
em suas terras, com a obrigação de trabalharem para a fazenda. Esses trabalhadores tinham
permissão para derrubar trechos da mata, levantar choupanas de barro ou de palha, fazer
pequeno roçado e dar dois ou três dias de trabalho semanal por baixo preço ou gratuito ao
senhor de engenho. (ANDRADE, 1973, p. 104)
Os ex-escravos permaneciam, todavia, em condições subalternas, muitos deles
atrelados à produção dos engenhos. Porém, “nessa nova situação, homens e mulheres
passaram a criar novas formas de se divertir, agora sem a necessidade de anuência do
grande proprietário.” (SILVA, 2008, p.41). Presume-se que daí houve o fortalecimento
e disseminação de muitas das diversões que hoje são peculiares à Zona da Mata
pernambucana, como o cavalo-marinho.
O olhar sobre o cavalo-marinho, por sua vez, ainda é arraigado de preconceito, legado
ao pitoresco ou à tradição para turista ver. Na academia, normalmente encontra espaço na
Antropologia e na Sociologia enquanto objeto científico. A Folkcomunicação, instigando
o elo entre a comunicação e a cultura popular, abre um leque de perspectivas, todavia;
estudiosos como Roberto Benjamin e Osvaldo Trigueiro endossam essa perspectiva.
Enquanto mosaico integrativo de várias outras manifestações da cultura popular, o
folguedo, em seus ritmos e nuances, mostra, com bom-humor, a beleza e a riqueza dos
momentos de ócio criativo nas terras do canavial.
2. A ROÇA: PALCO DE CELEBRAÇÃO CULTURAL
2.1. É festa na Chã!
Em dias de festa na Chã de Camará, não só os aliancenses da zona rural se animam,
mas também os da cidade, que comparecem ao terreiro, entram nas rodas de ciranda,
dançam ao som dos toques do maracatu e brincam o cavalo-marinho. Em muitos dos
festejos, que seguem até o raiar do sol, vê-se uma reunião de distintas classes sociais; com
a presença de crianças, jovens e adultos de todas as idades. Também nestes dias de celebração, muitos visitantes entram pela primeira vez na sala de troféus, que fica no casarão
do Sítio. Ali assistem ao filme que traz o Maracatu Estrela de Ouro como protagonista
e acompanham as fotos em quadros na parede que contam a história do lugar. Entre as
fotografias que refletem o cotidiano da comunidade – registros da reforma do casarão,
de moradores e folguedos –, vê-se a do Mestre Batista trajado de caboclo do maracatu.
Aquele homem de rasa instrução formal, mas de cadência peculiar no trato às
atividades culturais, deu os primeiros passos para transformar o Sítio num lugar de
reconhecimento regional e nacional. Muitos dos canavieiros que passavam a hereditariedade da profissão aos seus filhos, agora se concentram na Chã, não mais para a labuta
em meio ao canavial ou com rostos suados pelo vapor dos caldeirões da usina, mas para
participar de atividades coletivas lúdicas e artísticas, instrucionais e pedagógicas, aliadas
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O cavalo-marinho como mídia: o folguedo e a representação do cotidiano encenado pelo trabalhador do canavial
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à educação formal como instrumentos de possibilidades para um novo futuro12. Um
futuro que não menospreza o seu lugar, mas sim o fortalece; que não coloca sua cultura
como inferior, mas sim a enobrece; tendo como subsídio o saber emanado pelo povo.
A roça, enquanto palco de celebração, reúne pessoas veteranas e recém-chegadas.
Muitas já sabem os passos ligeiros da sambada, dos pés dançantes no acompanhamento
do ritmo frenético do banco de músicos13 que, entre o improviso e a experiência, entoa
loas e canções por horas a fio. Os batuques, poesias, danças, prosas e encenações –
aliados às histórias da vida cotidiana do trabalhador – se mostram como habilidades
que enaltecem a zona rural como espaço cultural, comunicativo, folkcomunicacional.
2.2. O cavalo-marinho como mídia e a representação 14 do cotidiano
O cavalo-marinho é um dos folguedos folclóricos mais complexos. Reúne dança,
música, poesia, improvisos, teatro, texto, coreografias. Dele podem participar até cerca
de 75 integrantes, em autos com duração de até 8 horas. São mais comuns nos períodos
juninos e natalinos. Folcloristas como Silvio Romero acreditam que o folguedo seja uma
variação do bumba-meu-boi (CASCUDO, 2012); Câmara Cascudo, porém, assinala que
o auto é a fusão das duas expressões – reisado do cavalo-marinho e bumba-meu-boi
(o qual também era constituído por diversas manifestações culturais populares). Em
visão semelhante, Roberto Benjamin afirma que se trata de um teatro que aglutina
o bumba-meu-boi, reisados, maracatu rural, agaloados, guerreiros, entre outros. Há
ainda quem defenda que seja uma variação da commedia dell’arte italiana. (GRILLO,
2011)15. Por isso, não existe uniformidade – há referências do cavalo-marinho como
teatro, dança, reisado ou brincadeira. Embora tradicional de um pequeno território –
Zona da Mata de Pernambuco, a manifestação também é encontrada atualmente no
agreste paraibano16.
12. Referência às atividades executadas pelo Ponto de Cultura. Muitos trabalhadores que participam do
projeto ainda trabalham esporadicamente no corte da cana. Outros deixaram completamente esse trabalho
e subsistem das atividades culturais, a exemplo dos Mestres Luiz Caboclo e Zé Duda.
13. O banco de músicos (também chamado de terno) do Cavalo-marinho Mestre Batista, assim como as
encenações da brincadeira, atualmente está sob o comando do Mestre Mariano Teles.
14. Conceito complexo, a representação é delineada desde as Ciências Exatas às Ciências Sociais. Aqui, ela
é compreendida como re-apresentação do cotidiano por meio da arte e da cultura popular.
15. GRILLO, Maria Ângela de Faria. Cavalo-marinho: as representações do povo através do folguedo
pernambucano. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História (ANPUH). São Paulo, julho de 2011. Disponível
em http://migre.me/krQgm. Acesso em 14/03/2015.
16. Outros grupos que podem ser encontrados hoje, além do aqui pesquisado: Cavalo-marinho do Mestre
Zé de Bibi, Mestre Zé de Bibi (Glória do Goitá-PE), mesmo lugar onde há o primeiro e único museu do
cavalo-marinho do País; Cavalo-marinho Estrela Brilhante, Mestre Antonio Teles (Condado-PE); Cavalomarinho Boi Pintado, Mestre Grimário (Aliança-PE); Cavalo-marinho Estrela de Ouro, Mestre Biu Alexandre
(Condado-PE) Cavalo-marinho Estrela do Oriente, Mestre Inácio Lucindo (Camutanga - PE); Cavalo-marinho
Boi Maneiro, Mestre Pedro Luiz (Itambé - PE); Cavalo-marinho Boi Brasileiro, Mestre Biu Roque (ItaquitingaPE); Cavalo-marinho Boi de Ouro, Mestre João Araujo (Pedras de Fogo-PB); Cavalo-marinho Boi Matuto,
Família Salustiano (Olinda-PE), Cavalo-marinho do Bairro dos Novais, Mestre João e Pirralhinho (João
Pessoa-PB) e Cavalo-marinho de Bayeux, Mestre Zequinha (Bayeux-PB).
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O cavalo-marinho como mídia: o folguedo e a representação do cotidiano encenado pelo trabalhador do canavial
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Figura 1. Apresentação do Cavalo-Marinho Mestre Batista, em
frente ao casarão-sede do Sítio Chã de Camará, 2011.
Foto: A autora.
Os participantes que encenam o teatro do cavalo-marinho utilizam roupas coloridas e máscaras (Fig.1); são divididos em três categorias: animal, fantástica e humana.
Na primeira, tem-se o Boi, o Cavalo, a Burra e a Onça. Na segunda, os personagens
se trajam de Morte, Diabo, Caboclo de Urubá, Jaraguá e Babau. Na última categoria, a
humana, tem-se o Valentão, o Soldado da Guarita, Bastião, Mateus, Catirina, o Empata
Samba, o Capitão, Mané do Baile, Barre Rua, Pisa Pilão, o Matuto da Goma, a Véia do
Bambu, Seu Ambrósio.17
Uma das propriedades que mais chamam a atenção é a experiência do homem da
roça na tentativa estética de melhorar sua perspectiva sobre o mundo, encenando no
auto a subversão de hierarquias por meio de personagens historicamente entranhados
no cotidiano da lavoura canavieira nordestina. Nele, o negro trabalhador é mais esperto
que o dono do engenho; e o soldado, ao tentar bater, apanha. Outra vez, os músicos
trazem à tona em suas loas, situações comuns vividas pelo sertanejo, como a seca, a fome
e a morte dos animais: “Assim contou um alferes/ No sertão de Petrolina/ Do Crato
pra o Juazeiro/ Comeram uma menina/ Bibas [pequenas lagartixas] e ratos/ Lagartixas
e cavalos do cão/ Por terrível seca/ Foge o povo do sertão” (OLIVEIRA, 2006, p. 136) e
também “Lá morreu meu boi/ Que será de mim?/ Lá morreu meu boi/ Que será de
mim?/ No sertão, não tem, ó vizinha/ Outro boi assim.” 18
Mesmo mencionando agruras, são encenações coroadas com criatividade e humor
peculiares. O Mateus e o Bastião19 são os mais satíricos e interagem com o público
constantemente; eles representam os negros, escravos, trabalhadores do canavial, por
isso, têm normalmente o rosto pintado com tinta preta. Mateus e Bastião são contratados
pelo Capitão para tomar conta do terreiro durante o Baile dos Santos Reis. O Capitão é
o dono de engenho, o latifundiário; dono do apito, ele chega montado em um cavalo. O
17. Podem haver variações nos nomes dos personagens, assim como no número de participantes.
18. Morreu meu boi, Cavalo-marinho de Mestre João. Disponível no acervo sonoro da Escola de Música da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
19. Bastião e Mateus carregam uma bexiga cheia, feita de testículo ressecado de boi ou de bode.
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Soldado, por sua vez, subserviente ao Capitão, é o mensageiro da lei, a figura opressora
cumpridora da ordem. Enquanto Mané do Baile faz a abertura da festa; Seu Ambrósio,
que é mascate, tem o dever de negociar, vender figuras20. Os outros humanos ocupam
o lugar de convidados do baile. Entre eles, a moça Catirina, cozinheira que alimenta os
escravos quando tentam fugir da senzala. No auto, ela é disputada por Bastião e Mateus.
Normalmente, não há a participação de mulheres no folguedo e sim de homens trajados
de mulheres, que geralmente se apresentam como figuras libidinosas.
Diversos elementos e linguagens entrelaçam-se no momento da realização da brincadeira: as
figuras mascaradas (as responsáveis pela interlocução com o Capitão), os palhaços (Mateus
e Bastião), os bonecos (o cavalo, o boi, a ema, entre outros), as danças (mergulhão, trupés,
dança dos arcos, coco de despedida) realizadas pelos figureiros e galantes, as músicas (toadas
tocadas pelo banco) e os versos (loas). Os instrumentos do banco – designação dada pelos
brincadores para o objeto e os tocadores que aí se sentam – são: uma rabeca, um pandeiro,
um mineiro (ganzá) e uma ou duas bajes de taboca (espécie de reco-reco de madeira colhida
na região). Outro instrumento que compõe a música, mas não faz parte do banco é a bexiga,
geralmente de boi, ressecada, tratada e inflada um pouco antes de ser tocada por Mateus e
Bastião (cada um possui uma). (GRILLO, 2011, p. 3)21
Durante o auto, seguem-se canções, sambadas, diálogos, conflitos entre os personagens, momentos de saudação a entes sagrados e outros carregados de cacoetes e zombarias. A brincadeira é composta por várias etapas entrecortadas, sendo que uma das mais
esperadas é a hora da dança dos arcos, “quando os galantes e o Mestre fazem evoluções
espaciais com arcos de fita colorida erguidos por seus braços. As fitas riscam o ar enquanto
seus pés estão fazendo passos largos e ligeiros” (GRILLO, 2011, p. 3-4). Normalmente o
folguedo é finalizado com a entrada do boi e, em seguida, do público, que interage dançando na roda de coco. Ao final, os agradecimentos aos partícipes, aos santos protetores,
aos donos da casa. Sagrado e profano alimentam a fertilidade cultural do terreiro.
Acredita-se, assim, que as encenações do auto do cavalo-marinho, além de se estabelecerem no status de medium, se firmam como práticas cotidianas que fluem sem
dominar o tempo, sem capitalizar as maneiras de fazer, como diria Certeau (1998). Ao
mesmo compasso, se consubstanciam como “performances operacionais [que] dependem
de saberes muito antigos” (CERTEAU, 1998, p. 47), saberes transmitidos por séculos, ressignificados e reapropriados, porém, oferecendo-se quase sempre como procedimentos
de resistência, de afirmação da identidade cultural dos “fracos” ao desenharem seu
espaço de poder em meio à complexa teia sociocultural e econômica que estão inseridos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao chamar o cavalo-marinho de brincadeira, tal nominação não deve diminuir o seu
valor enquanto forma de representação do cotidiano; ao contrário, além da diversão, as
brincadeiras se configuram como peças de construção social, como linguagens funcionais
em favor de signos ideológicos (BAKHTIN, 2004). O corpo se estabelece, então, como
20. As figuras são os personagens que são vendidos ao capitão.
21. Op. Cit.
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espaço de habitação, contemplação e exposição do lúdico, mas também como lugar dos
exercícios e negociações do poder.
No cavalo-marinho, as relações costuradas pela fala e dança, corpo e mente, seriedade e comicidade, passado e presente, sagrado e profano, se configuram como pontos
norteadores do lúdico e da realidade; como dialogismos possíveis para vivenciar e
modificar o cotidiano. Na fronteira entre a vida e a arte, os brincantes alimentam a
tradição do brincar, ao passo que vivificam a tradição com temas e personagens da
atualidade, redesenhando práticas sociais e hierárquicas, trazendo à tona hábitos e
costumes do campesino agora imerso no mosaico da cidade e do digital; contando
histórias que possibilitam vislumbrar o trânsito entre a pobreza social e a riqueza
criativa do trabalhador.
A expressão das visões de mundo por meio de um folguedo, por sua vez, realça
os laços da folkcomunicação e da sociologia do cotidiano, que têm nas frivolidades,
nas festas populares, nas insignificâncias aparentes do dia-a-dia o seu espaço de pesquisa. São exatamente essas banalidades, sitiadas em múltiplos cantos do mundo, que
tecem o cotidiano e expõem formas de pensamento e ações diante do real; fomentando
importantes espaços de construção de significados. Sem dúvidas, o auto do cavalo-marinho se estabelece como um desses espaços de reconfiguração da realidade,
inusitadamente usufruindo dessa realidade para dela fugir. A sabedoria popular se
faz chave da fuga.
REFERÊNCIAS
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Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Centro de Letras e Artes, Universidade do
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Editora Associação Reviva.
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A noite da beleza negra do Ilê Aiyê e a
difusão de um ideal de negritude
The Ilê Aiyê’s night of the black beauty and
dissemination of a blackness ideal
R i ta
de
Cassia Maia
da
S i lva 1
Resumo: Criada em 1979, a Noite da Beleza Negra é uma das festas pré-carnavalescas da cidade de Salvador, destinada a escolher a rainha do bloco afro
Ilê Aiyê – a Deusa do Ébano. Como um fenômeno de Folkcomunicação, esta
festa tornou-se um espaço eficiente para difusão e experimentação dos signos
valorativos da cultura, estética e ancestralidade negras, cujo sucesso se explica
pela parceria e controle dos membros do bloco nas suas relações com os profissionais da mídia.
Palavras-Chave: bloco afro. festa. negritude. beleza negra. espetáculo.
Abstract: Created in 1979, the Night of Black Beauty is one of the pre-carnival
celebrations in Salvador, designed to choose the queen of African krewe Ilê
Aiyê - the Goddess of Ebony. As a phenomenon of folk communication, this
celebration has become an efficient space for experimentation and dissemination of valued signs of culture, aesthetics and black ancestry, whose success
is explained by the partnership and control of the krewe’s members in their
relations with media professionals.
Keywords: carnival krewe. party. blackness. black beauty. spetacle.
O PODER NEGRO DO ILE AIYÊ: UM FENÔMENO DE FOLKCOMUNICAÇÃO
PRAZER DE organizar festas e reuniões de amigos da comunidade do Curuzú,
O
situada no bairro da Liberdade (o mais populoso e “negro” bairro de Salvador)
e o convívio estreito de um grupo de vizinhança foram determinantes para a
criação do Ilê Aiyê. O grupo de jovens amigos fundadores mantinha uma “empresa”
informal de lazer, promoviam passeios, organizavam festas juninas, campeonatos de
futebol e pequenos grupos de samba e mortalha para brincar o Carnaval. Assim, foi
criado o primeiro bloco afro de Salvador, registrado oficialmente três meses antes do
Carnaval de 1975, sob os bons presságios da Ialorixá Mãe Hilda, mãe do atual presidente,
Antônio Carlos dos Santos, mais conhecido como Vovô.
A tradição de brincar o carnaval em grupos de amigos vestidos de mortalha e de
mascarados ainda era muito comum na década de 70, por sua organização simplificada
e quase anárquica, estes grupos constituíam-se como um espaço natural de autogestão
1. Museóloga, Dra. em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA), Profa. Adjunto do Departamento
de Museologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.
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A noite da beleza negra do Ilê Aiyê e a difusão de um ideal de negritude
Rita de Cassia Maia da Silva
carnavalesca, frente aos grandes cordões e blocos da época. Além de manter os vínculos
de sociabilidade de pequenos grupos e comunidades, esta opção era a mais economicamente viável para muitos foliões.
O nascimento dos blocos afro, bem diferentes dos antigos afoxés, foi um sinal das
mudanças na mentalidade local de jovens negros. Eles tinham acesso às informações
advindas dos meios de comunicação de massa e recebiam da informações em nível
mundial de imagens sobre os movimentos de negros pelos Direitos Civis nos EUA,
da moda black soul, das lutas de libertação das nações africanas e de outros grupos
radicais de ativismo político, como os Panteras Negras. Todas estas imagens povoaram
o imaginário dos jovens negros baianos que, através da sua re-apropriação criativa, se
inscrevem em um movimento cultural global, redefinindo positivamente, em nível local,
a palavra e os atributos “negros”.
É interessante ressaltar que:
Beltrão compreende as expressões folkcomunicacionais como meios informais de comunicação, utilizados por grupos considerados marginalizados, uma vez que se contrapõem
aos valores hegemônicos, seja em termos sociais ou culturais. Além disso, a folkcomunicação também se ocupa dos intercâmbios entre a cultura de massa e a cultura popular, em
um processo dialético de aceitação, negação reinterpretação das mensagens pelos grupos
sociais. (Woitowicz, 2014).
O processo de re-apropriação de elementos advindos dos meios de comunicação
de massa, associado à troca de informações e interesses comuns entre os jovens negros
que criaram o Ilê Aiyê e instituíram novas e eficientes formas expressivas para a
difusão de ideais de valorização da cultura afrodescendente, chegando a alcançar um
reconhecimento público local e global.
A Noite da Beleza Negra é uma festa-espetáculo promovida pelo bloco Ilê Aiyê
que condensa todos os aspectos deste fenômeno. Criada em 1979, com o objetivo de
escolher a rainha do bloco Ilê Aiyê, foi planejada com base no modelo de rainha das
outras agremiações carnavalescas e a escolha da Rainha do carnaval. Primeiramente
intitulada a “Festa da Mais Bela Crioula”, no ano é denominada “Noite da Beleza Negra
do Ilê Aiyê”. A sua rainha é denominada Deusa do Ébano, um título criado e adotado
a partir de uma das canções de sucesso do bloco.
As observações e entrevistas realizadas ao longo de 10 anos mostraram que, mesmo
inspirada nos concursos tradicionais, a festa está voltada para a afirmação de uma
estética peculiar, original e carregada de sinais legitimadores da negritude. Possui o
status de território simbólico para a afirmação de um ideal de beleza contra-hegemônico,
em reação à discriminação racial que ocorre em outros concursos de beleza oficiais ou
não, como uma afronta direta à ideia hegemônica de “boa aparência” europeizante que
é valorizada e, muitas vezes, exigida no mercado de trabalho.
A cosmética proposta pelo Ilê Aiyê é “estetizante” e “etnicizante”, pois quer valorizar
a “realidade da mulher negra”, os seus traços fisionômicos, do seu jeito de parecer
mundano, ao jeito de ser cotidiano, ou seja, a sua inscrição étnica na aparência.
Apesar de ser uma festa profana, a Noite da Beleza Negra sempre foi carregada de
uma certa solenidade, considerada um acontecimento especial nos meios da negritude
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baiana. Nela, o cuidado com a aparência adotado pelo público é um sinal de pertencimento
ou de desejo de inserção social nos territórios políticos e culturais negros. A audiência
da Noite da Beleza Negra sabe que ali o jeito de parecer está profundamente vinculado
ao jeito de Ser fora dela.
É nos estudos da Folkcomunicação (Beltrão, 1980; 2001) que está o fundamento
para análise desta festa-espetáculo como um sistema de comunicação, reconhecendo
na partilha e na reprodução comunitária de seus signos um canal para a superação da
marginalização de grupos negros. Nestes estudos também se observa “a incidência de
temas populares na mídia massiva, refletindo a sensibilidade dos seus editores para
corresponder às expectativas dos segmentos que se incorporam ao seu mercado consumidor” (Marques de Melo, 2004, p. 5), fato observados nos fenômenos descritos como
de Folkcomunicação.
Para Clifford Geertz (1989), as expressões culturais e performances, e, podemos
dizer, as artes em geral, não atuam no plano da reflexão (reflection) da realidade, mas
seriam uma espécie de metacomentário dela. Beltrão (2001, p. 62) acrescenta que “[a]
literatura, a arte, a crença e os ritos, a medicina, os costumes destas camadas sociais, os
seus meios de informação e de expressão – continuam ignorados em toda a sua força de
verdade”. Assim, vê-se que é uma redução considerar a arte, o espetáculo e a festa como
fazeres de expressão puramente individual. Eles devem ser tomados como formas de
expressão de uma sensibilidade coletiva e como vias de modificação das sensibilidades.
Isso pode explicar as proporções de sucesso que a festa adquiriu. Em torno dela
circulam interesses que vão muito além da eleição de uma rainha de bloco carnavalesco.
Pessoas e personalidades disputam um espaço de visibilidade, à exemplo da composição
do júri do concurso. Personalidades estranhas à vivência do bloco que buscam
autopromoção são uma constante na festa, especialmente em ano de disputas eleitorais, o
que pode ser interpretado como um sintoma das várias trocas e usos mútuos e possíveis
em torno dos discursos da negritude baiana.
A DEUSA DO ÉBANO: MODELO MÍTICO/INSTRUMENTO FOLKMIDIÁTICO
A Deusa do Ébano, a rainha do bloco escolhida na Noite da Beleza Negra, deve
representar todas as mulheres negras. O corpo da Deusa do Ébano é o “corpo-território”
(Sodré, 1988, p. 123) da negritude do Ilê Aiyê, partindo do princípio de que o corpo é o
“marco zero da percepção” do mundo e serve de orientação e de referência na relação
com os outros. As referências para a criação desta personagem (seus atributos, roupas,
turbante, manto etc) foram retiradas de imagens de princesas africanas encontradas em
fotos e ilustrações de livros e revistas internacionais, trajadas ao modo tradicionais dos
seus grupos étnico-culturais, e os usos das roupas e adereços do Candomblé.
Os critérios ou padrão de beleza apropriados para uma Deusa do Ébano estão
estritamente relacionados à vivência específica da cultura do bloco. Ela deve ser uma
negra “cancão de fogo”, “reluzente”, da “bocona”, do “perfil azeviche”, do “narigão”,
“pretona”, que tem o “pé lavado”. Tudo isso é enfatizado por uma maquiagem que
ressalta os traços negros no rosto através do uso do batom vermelho vivo e o corpo é
valorizado com recurso ao uso de roupas “transadas”, de cores vivas, com amarrações
de tecidos ricos e bordados artesanais. Visto isso, não se pode propor aqui a definição
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do que seria um padrão de beleza negra em um sentido generalizante, que seja aplicável
a todos os blocos afro (ou não) ou mesmo relacioná-lo a padrões anatômicos precisos.
A dança é outro importante elemento para a escolha da rainha. Compreendida pelos
membros do bloco como a expressão corporal da assimilação e vivência da tradição
e da cultura negras, a dança é um critério definitivo, pois denunciaria a presença ou
ausência dos hábitos corporais advindos da vivência e partilha da cultura negra, além
de funcionar como o maior recurso para a sedução do público e dos jurados.
A dança, a roupa e a postura da candidata devem transmitir a altivez de uma rainha,
pois é esse o seu papel ritual no bloco. A Deusa do Ébano é portadora de um significado
moral, político e religioso, e deve, acima de tudo, inspirar respeito e deferência. Sua
aparência nunca deve ser negligente, nem submissa ou impudente. Ela deve encarnar
a energia e o Axé do bloco. Diferente de outras rainhas de bloco ou vencedoras de
concursos de beleza, ela deverá inspirar dignidade, ter forte personalidade e traduzir
uma ancestralidade negra orgulhosa.
Pelo fato deste padrão de beleza ser indefinido, espetacular e imprevisível, tornase extensível a qualquer mulher negra. É deste aspecto que advêm o encantamento e a
eficácia simbólica dos mitos: a possibilidade de provocar identificação.
Na Noite da Beleza Negra e nos subsequentes rituais-espetáculos do Ilê Aiyê, a
Deusa do Ébano torna-se um símbolo vivo, encarnado. Enquanto rainha do Bloco, ela
é um modelo exemplar de todas as suas aspirações éticas e estéticas. A Deusa do Ébano
condensa os valores espirituais que servem como referencial e exemplo para todos os
negros. É a manifestação de um ideal de beleza que é celebrado e renovado a cada Noite
da Beleza Negra.
A Deusa do Ébano é o símbolo do prestígio construído para a imagem do negro
pelo bloco. Onde quer que ela vá, sempre lhe serão rendidas homenagens. Dentro do
próprio bloco, ela é ritualisticamente celebrada. Este alto grau de visibilidade implica
no fato de que a sua figura deverá atuar como uma difusora do discurso político de
valorização da cultura e da tradição negras. Por este motivo, nenhum elemento da sua
aparência surtiria efeito se ela não for capaz de expressar um discurso voltado para
ações afirmativas.
Os aspectos estéticos da identidade construída pelo Ilê Aiyê oferecem resposta ao
racismo e ao preconceito de marca que ainda vigoram nas trocas cotidianas no Brasil.
Em alguns aspectos, estes aspectos são mais eficazes que os discursos integradores
da militância política negra. Assim, a força do título e o papel da Deusa do Ébano são
instrumentos importantes para conferir status aos atributos que ela ostenta e compartilha.
UMA FESTA-ESPETÁCULO
Desde o seu lançamento, a Noite da Beleza Negra segue uma mesma estrutura que
agrega elementos de espetáculo e de festa. O centro das atrações é um palco de onde se
projeta uma passarela. Neste espaço, ocorrem, sucessivamente, o show de abertura com
a banda do bloco, os desfiles das candidatas em conjunto, as performances coreográficas
com a apresentação do tema do carnaval (denominadas cortejo), os desfiles individuais
das candidatas, as homenagens (celebrações variadas às ocasiões e às personalidades)
e o show da atração convidada. A festa culmina com a apresentação da despedida da
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Deusa do Ébano do ano anterior e o anúncio do resultado do concurso, com a passagem
do manto entre as duas Deusas. Antes, esta era a última parte da festa, mas, nos últimos
anos, passou a ser realizado antes da apresentação da atração convidada.
Seu local de realização já ocupou diversos pontos da cidade, desde palcos armados
em lugares públicos, aos clubes sociais em diversos bairros (nobres ou periferia), mas
sempre foi seguido de uma audiência fiel. Desde 2003, a festa se realiza na Senzala do
Barro Preto, no Curuzu, quando a sede do bloco foi inaugurada.
Pode-se considerar que a música do bloco é o elemento mais eficaz para veicular os
discursos durante a festa. A beleza negra – cantada nas letras que valorizam a mulher
negra, sua luta cotidiana, associadas ao ritmo que é o condutor de Axé (força que possibilita a existência) impulsiona a audiência para a dança e partilha da experiência do
espetáculo. A música também funciona como o elemento que estimula a performance
das candidatas. Neste ambiente, é criado um amálgama entre o palco e a plateia, onde
a aparência individual toma uma dimensão social, estimulada pela sintonia empática
da multidão. A música, as roupas e o improviso da dança são descritos como elementos carregados de magia. O caráter festivo e a proximidade entre o palco e o público
é o que confere um caráter integrador do espetáculo – uma experiência carregada de
barroquismo, bem típica dos rituais tradicionais. Tudo isso oferece possibilidades de
interação entre os mais diversos tipos de público, contribuindo para novas adesões aos
ideais do bloco.
Nesta festa-espetáculo, dissolvem-se todos os diversos tipos culturais: o turista, o
militante, o intelectual engajado, os políticos, o intelectual encantado (o que consome “o
Outro”), os familiares dos músicos, parentes e amigos das candidatas, a gente do glamour
e os proeminentes da negritude fashion, os negros chamados ‘classe A’, além daqueles
que não sabem por que vieram. Somam-se a estes aqueles que constroem a beleza negra:
os membros e familiares da Diretoria, dos dançarinos, coreógrafos, artistas plásticos,
estilistas e cenógrafos vinculados ao bloco, além de outros mais ou menos famosos
que contribuem para o espetáculo. O nível socioeconômico das candidatas reflete a
diversidade do povo do Ilê Aiyê: pessoas de todas as faixas econômicas e sociais, de
vários subgrupos culturais e tipos urbanos estão presentes e marcam presença na festa.
Dos vários tipos de público, assim como dos vários tipos de negritude, existem até
aqueles que sentem prazer apenas em vivenciar a periferia da festa e atravessam toda
noite sem sequer olhar para o palco. É a presença do público e suas variadas formas
de encenação aquilo que mais colabora para compor a ambiência da festa. Para estes,
a Noite da Beleza Negra não é um espetáculo para se assistir, mas para se estar. Dentro de cada espaço, há também a diversidade do nível de vínculo psicológico, em que
aparecem desde observadores apaixonados até os agressivos, e por que não incluir os
possíveis indiferentes?
Os figurinos das candidatas buscam traduzir a cultura negra através de recursos
e elementos plásticos. Do artesanato à indumentária do candomblé, vários elementos
são reinventados por estilistas que investem com criatividade nos trançados de palha
(às vezes até crochê), contas, cabaças, peneiras, cortiça e até materiais reciclados,
estabelecendo um vínculo com o tema do bloco ou, às vezes, com uma homenagem
ao seu orixá. Em geral, o que não pode deixar de constar nas fantasias é o uso das
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cores do bloco (vermelho, branco e amarelo). É fato que a música, a dança, a cenografia,
junto ao figurino, são os difusores de conteúdos simbólicos, dos emblemas do Ilê Aiyê,
colocando o imaterial no material, substancializando o espírito de partilha identitária
pela experiência estética vivida entre os presentes na festa.
Os criadores destas fantasias são profissionais e estilistas das áreas do espetáculo e
da moda afro, e, muitas vezes, são candidatos em concursos de beleza masculina e ‘reis’
de outros blocos, uma categoria profissional bastante eclética. Todos anseiam projetar
a própria imagem através das suas criações; muito embora, durante o desfile, não haja
nenhuma referência aos seus nomes, pode-se dizer que uma candidata vitoriosa é, muitas
vezes, “feita” pelo trabalho minucioso destes artistas, que, em geral, eles permanecem nos
bastidores. “Fazer a candidata” é algo mais complexo do que a elaboração das amarrações
e adereços, é um trabalho conjunto que se inicia com antecedência e envolve aspectos
que vão desde o preparo físico para a dança até as reverências que devem ocorrer entre
as Deusas e o público, no momento da passagem do manto.
É bom frisar que, a cada ano, a festa incorpora novos elementos, e seus produtores
se tornam mais especializados. Hoje, profissionais são contratados para dar suporte aos
organizadores que, apesar de gerir um espetáculo cada vez mais complexo, buscam fixar
os elementos que mantêm o significado simbólico da festa. Este jogo criativo característico
do espetáculo, tanto no mundo contemporâneo quanto no mundo tradicional, é o que
atesta sua eficácia maior que a dos métodos mais modernos de conscientização política.
Este aspecto foi criativamente explorado pelos agentes do Ilê Aiyê.
Nas primeiras festas que eram realizadas no Forte de Santo Antônio havia quatro
espaços distintos: a passarela e o palco, a mesa dos jurados, o camarim das candidatas
e artistas e o local onde fica o público, este ainda subdividido em espaços para mesas e
público em pé, e, mais recentemente, foi incluído o camarote para convidados, artistas
e patrocinadores.
A separação de mesas para convidados e pessoas de um melhor poder aquisitivo
foi uma das modificações mais evidentes na festa. O grande público, no entanto, é o
que tem a maior proximidade com as candidatas e o palco, apesar de nos camarotes
oferecerem um maior conforto. Segundo Guy Debord (1992), característica principal do
espetáculo é a separação entre atores e espectadores. Com base nesta afirmação, poderia
ser dito que parte do público vive a festa, outra parte, o espetáculo.
Na festa todos os espaços tornam-se centros de criação e expressão. O lúdico e o
inventivo estão em perfeita harmonia com a eficiência profissional modernizante que
organiza e separa. Nos camarotes estão os que viabilizaram e construíram a festa.
As mesas tornam-se um espaço de distinção e ostentação, destinado para aqueles
que consideram a festa um momento fundamental nas suas vidas e que, por suas
personalidades, merecem destaque. Permeando todo o espaço está o grande público,
aquele que admira e que reproduz os mais variados estilos da Beleza Negra. Estes
territórios distintos cumprem uma função específica para reconhecimento e classificação
dos tipos e personagens que estão implicados nos ideais da beleza negra do Ilê Aiyê.
Mais do que um espetáculo, a Noite da Beleza Negra é a construção de um território
simbólico, onde os atores da negritude representam os seus papéis. Deste modo, seria
redutor definir o espetáculo apenas por aquilo que se passa no palco.
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O trânsito entre os espaços é desenvolvido a partir das determinações dos papéis
exercidos, por cada indivíduo. É na capacidade de trânsito entre os vários espaços da
festa, que sinaliza o seu poder interno e externo de um indivíduo no Bloco. Quanto
maior a variedade de espaços ele pode ocupar, maior será o seu grau de integração com
o núcleo central de poder. Os membros da diretoria e aqueles que fazem a festa – os
cantores, dançarinos, candidatas e seus acompanhantes – são aqueles que possuem o
maior poder de trânsito. A imprensa, sempre presente, deve submeter- se às determinações de regulação destes espaços, o que é um dos fatores de preocupação e de controle
da gestão e da organização da festa.
Os figurinos no palco, reverberando nas roupas do público, a música e as luzes que
transformam o ordinário em espetacular visibilizam uma estética subterrânea e invisível,
restrita e, muitas vezes, estigmatizada e marginalizada em um ideal de mundo negro,
um mundo negro, real e possível. Isto explica a persistência do sucesso do Ilê Aiyê. O
Bloco tornou-se um campo de produção estética autônomo, direcionado a um público
específico, no formato de festa em que laços e vínculos estreitos de solidariedades são
celebrados, mas que, ao mesmo tempo, acolhem todo tipo de público: para uns pode
oferecer um modelo de vida, para outros, um objeto para ser contemplado e admirado.
Por tudo isso, a Diretoria do bloco estabeleceu a criação de um júri sempre eclético,
composto de cientistas, artistas, políticos, foliões, empresários, membros da diretoria do
bloco etc, somados a isso, outros procedimentos são utilizados para selecionar a Deusa
do Ébano, nos moldes e padrões que o bloco impõe. Para os mais periféricos, participar da festa como jurado é assumir uma opção de destaque, uma quase-homenagem
e reconhecimento público de status e papel social de relevo no contexto local. Por isso,
a seleção dos jurados e a orientação para o seu julgamento são um trabalho delicado
para os membros da Diretoria.
A construção destas estratégias pode ser justificada como uma reação ao conflito de
padrões de beleza que ocorre durante a avaliação das candidatas. Do conteúdo cultural
que se herda e se aperfeiçoa socialmente, constituem-se tipificações as quais, segundo
Alfred Schutz (1979, p.118), “[...] ao nível do senso comum [...] emergem, na experiência
cotidiana do mundo, como pressupostos, sem qualquer formulação de julgamentos
ou proposições claras, com sujeitos e predicados lógicos”. É através do conjunto de
categorias, que interiorizamos durante a vida, que direcionamos nosso comportamento,
apreendemos e construímos uma realidade social, assimilamos esquemas tipificadores,
que estabelecem e regulam nossas trocas cotidianas e nosso lugar no mundo.
É certo que uma sensibilidade que privilegie o padrão do Ilê Aiyê ainda não está
consolidada e não é compreendida pela maioria dos segmentos e camadas da sociedade
de onde advêm todos os jurados. Assim, a avaliação eficiente demandou a construção
de artifícios para que o resultado final correspondesse aos padrões requeridos pelo
bloco. É a proximidade do jurado com a cultura e a comunidade política negra o que
determina o peso das suas notas no cômputo final. É o nível de aproximação política
com os interesses do bloco e a compreensão aos seus ideais de beleza que determinam
o poder de decisão do jurado.
A multiplicidade de interlocutores e de níveis de vínculo que transparecem durante
os eventos do Bloco é um sinal do seu reconhecimento público. O aparecimento e o
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destaque constantes nestas festas de personalidades do meio artístico e intelectual e,
mais recentemente, político e empresarial, conferem ao Bloco o prestígio necessário para
a sedimentação e difusão do seu discurso de Beleza Negra.
É aí que vislumbramos a estratégia de sedução que o Bloco desenvolve. A produção
cultural do espetáculo estabelece modelos midiatizados que conferem poder ao seu
portador, fazem apelo à emoção coletiva e orientam vontades individuais em direção
a interesses políticos. A ideia de Beleza Negra, para além da aparência, se revela como
um fenômeno ético, uma valoração absolutamente positiva de um modo de vida e de
uma tradição compartilhadas.
A NOITE DA BELEZA NEGRA COMO ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO
A cor da pele – e outros traços da aparência – são marcas sociais. A cor negra da
pele, em especial, tornou-se historicamente um atributo evidente de inferioridade em
todos os sentidos para aqueles que a possuem, violência reforçada por ideais racistas e
pela manutenção de uma pirâmide social fundada em grande desigualdade econômica e
de acesso a bens e serviços. Nos meios de comunicação em geral, e mais visivelmente no
discurso contemporâneo televisivo, esta marginalização da pele e dos atributos negros
ainda são reproduzidos de modo predominante.
A possibilidade do corpo manifestar objetivamente as idealidades pode ser percebida
nesta afirmação de Merleau-Ponty (1971, p. 173): “O papel do corpo é assegurar esta
metamorfose. Ele transforma as idéias em coisas [...]. Se o corpo pode simbolizar a
existência, é porque ele a realiza e é sua atualidade”. A forma é o conteúdo. O corpo é
a consciência visível, uma espécie de indistinção entre o universo material-sensível e o
universo sociocultural, subjetividade e objetividade, consciente e inconsciente.
Já foi observado que a mais profunda difusão do repertório sígnico sempre esteve a
cargo das manifestações ou instâncias de caráter ideológico, a exemplo da legislação, da
religião, da ciência, das artes, do folclore e dos costumes populares. Fazendo recurso aos
meios espetaculares, seu poder de representação assume um papel crucial na modelagem
do mundo e dos sujeitos.
O improviso e a imprevisibilidade, como características do fato folclórico (ALMEIDA,
1974), apontam para a existência de uma dinâmica de contínua atualização para as
tradições culturais. Sob este olhar, é necessário frisar que o caráter tradicional das
manifestações populares não é, necessariamente, anacrônico, e que não se deve confundir
aquilo que pode ser considerado fake (e por que não o neologismo ‘fakelização’?) ou
simulacro, com todas as manifestações culturais que sejam passíveis de comercialização
e espetacularização.
Diante deste quadro, Roberto Benjamin (2000, p.15-16) apresenta-nos diversos tópicos
característicos dos estudos fenômeno da folkcomunicação, onde podem ser identificadas
as estratégias de disseminação de ideais contra-hegemônicos na Noite da Beleza Negra
do Ilê Aiyê. A saber: a comunicação (interpessoal e grupal) entre os diversos membros da
comunidade afrodescendente da cidade, que possuem a inscrição identitária negra e
que encontram na festa o espaço para interlocução direta; a produção e emissão de mensagens
explicitas e assimiláveis através de diversos canais midiáticos; a valorização de conteúdos
através da apropriação de recursos massivos e espetaculares como música, dança, cenários,
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telões, iluminação cenográfica, associados a fantasias e a roupas tradicionais. E a mediação
da festa através dos meios de comunicação de massa (a última festa foi transmitida ao vivo
pela TVE – Bahia) etc.
A colaboração entre os membros Diretoria da associação e os profissionais da comunicação e do espetáculo é um fator positivo para o alcance de um público mais amplo e
para a fidelização da sua audiência. No entanto, o poder e o controle pelos membros da
Diretoria do conteúdo das mensagens e a preocupação com a manutenção da estrutura
do espetáculo são o que mantêm a sua eficácia. Este fato é um exemplo do domínio e do
controle dos canais massivos pelos portadores da cultura folk, ao cooptarem especialistas
para a otimização e modernização de sua produção cultural.
Assim, a recepção na cultura folk de elementos reprocessados pela cultura de massa
valoriza estes elementos e, ao contrário de diluir sua força simbólica, dissemina as suas
imagens e discursos, acrescentando-lhes novas possibilidades criativas.
CONCLUSÕES
Os resultados apontam que a multiplicidade de interlocutores, presentes no território
simbólico criado pela festa, revela um cruzamento de diversas redes de solidariedades
e interesses, validando os símbolos e consagrando a Noite da Beleza Negra como um
campo de visibilidade, projeção social para uma grande diversidade de agentes e grupos, negros e não-negros. O reconhecimento e validação social desta festa por artistas e
autoridades locais nacionais e internacionais conferem-lhe o caráter de uma manifestação
de alta complexidade e erudição.
Mesmo comercializados, ensaiados e padronizados, alguns espetáculos, como a Noite
da Beleza Negra, podem resultar de um processo criativo também autêntico, desenvolvido
na reinterpretação de um saber viver tradicional, construídos prioritariamente de si e para
si por um grupo cultural, sem, no entanto, eliminar a importância do olhar do Outro.
Para os desconstrucionistas, não existiria dicotomia entre autenticidade cultural e
cultura do simulacro no mundo contemporâneo. Para os essencialistas, a cultura é algo
quase natural, que confere uma substância única a um povo. Pode-se considerar que
a situação observada é de liminaridade, pois se existe uma base real tradicional para a
produção cultural do Ilê Aiyê, por outro lado, sua reinterpretação é contínua.
Na Noite da Beleza Negra, o processo de recepção ocorre como um reforço de
conteúdo, reverberando as mensagens da festa através dos indivíduos nela implicados e
na diversidade dos papéis exercidos por cada um na vida cotidiana. Assim, a apropriação
de tecnologias da comunicação de massa, que foram paulatinamente sendo incluídas
na festa, ao contrário de diluir o seu aspecto gregário funcionam como um elemento
de reforço de mensagem.
A Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, junto a toda a história do bloco, mostra que
a festa, a aparência e a beleza, longe de serem aspectos superficiais das manifestações
culturais, atuam como elementos geradores de modificações sociais e individuais, sejam
elas políticas, econômicas ou espirituais. A partir desta festa, ficou mais fácil para homens
e mulheres negros “se assumirem” e usarem no cotidiano os atributos de uma beleza só
sua, advinda daquilo que eles realmente são. É nisto que reconhecemos a sua eficácia
comunicativa.
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Contemporaneidade. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, 5, (8-9), p.
281-287.
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marginalizados invade a aldeia global. 5ª. Bienal Iberoamericana de Comunicación. México,
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Sofrência: um (ritmo) folkcomunicacional
Sofrência: a rhythm folkcomunicacional
Va n e s s a M a r i a S a n t i a g o
da
S i lva 1
Resumo: Analisaremos, sob um ponto de vista folkcomunicacional, um estilo
musical, conhecido como arrocha, especificamente as músicas do cantor Agenor
Apolinário dos Santos Filho, o Pablo, baiano e natural de Candeias, que normalmente fazem alusão à (gaia), a sofrência, as desilusões amorosas e a paixão
recolhida. Essa temática abarca os estudos acerca da marginalização de grupos
sociais desprotegidos, pelo alcance da grande mídia com destaque à sociedade
nordestina e as suas manifestações culturais. Assim o objetivo do artigo é utilizar
o estilo musical do arrocha, para retratar uma cultura abastada e específica, como
a nordestina, constituída, contudo por indivíduos estigmatizados e que ainda,
assim, nos proporcionam uma obra cultural espelhada em sua vida cotidiana.
O artigo é fruto de uma pesquisa bibliográfica, no qual abordamos o conceito de
folkcomunicação através de uma investida baseada nas ideias de Beltrão, Hohfeldt
e Maciel. Utilizamos também, uma investigação qualitativa, onde no desenrolar do
estudo ocorreu uma observação indireta através da técnica da análise documental,
a técnica da clipagem, como também, as consultas às letras das músicas de arrocha.
Palavras-Chave: Folkcomunicação. Cultura. Arrocha. Brega.
Abstract: Analyze, under a folkcomunicacional point of view, a musical style
known as arrocha, specifically the singer’s songs Agenor Apolinario dos Santos
Filho, Pablo, Bahia and natural Candeias, which usually allude to (Gaia), the
sofrência, the heartbreak and collected passion. This theme includes studies
about the marginalization of disadvantaged social groups by the scope of the
mainstream media especially the Northeastern society and its cultural manifestations. Thus the aim of the paper is to use the musical style arrocha, to portray
a rich and specific culture, such as the Northeast, made, however by stigmatized
individuals and yet, so give us a cultural work mirrored in their daily lives.
The article is based on a literature search, in which we approach the concept
of folk communication through a charge based on Beltran ideas, Hohfeldt and
Maciel. We also used a qualitative research, where the conduct of the study was
an indirect observation through technical document analysis, the technique of
clipping, but also consultations with letters arrocha music.
Keywords: Folkcomunicação. Cultura. Arrocha. Brega.
1. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local (POSMEX) pela
Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE, cientista social e membro do Grupo de Pesquisa
em Comunicação, Direitos, Cidadania e Mudanças Sociais (COMUDI). E-mail: vanessamariasantiago@
hotmail.com.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Sofrência: um (ritmo) folkcomunicacional
Vanessa Maria Santiago da Silva
INTRODUÇÃO
ADA SOCIEDADE tem suas crenças, tradições, gastronomia, habitus e valores,
C
uma vez, que cultura depende das relações internas de cada grupo e das práticas
de uma sociedade, incluindo os costumes, a fala, a religião e o momento onde as
mudanças dos fatos acontecem. Uma vez que cultura é entendida do ponto de vista da
pessoa que está vivenciando aquele determinado fato.
Uma vez que cultura é também a realização do indivíduo no seu espaço, não só
como agente cultural, capaz de aprender e utilizar conceitos, mas também no plano da
ação, então, tudo que é produzido e transformado pelo ser humano é cultura. Desse
modo compreendemos que todo o processo de transformação, em uma metodologia
dinâmica associada a uma forma de expressão e comunicação que é produzido pelo
ser humano é cultura, como explica Melucci (1996) a tarefa não é somente da ordem da
dominação da natureza e da transformação de matéria-prima em mercadoria, mas sim
do desenvolvimento da capacidade reflexiva do eu de produzir informação, comunicação e sociabilidade.
A comunicação é um processo de interação entre os indivíduos é um modo pelo qual
as pessoas se relacionam umas com as outras, compartilhando, trocando experiências,
ideias, informações e, portanto, modificando mutuamente a sociedade onde habitam.
Podemos comunicarmo-nos de diversas formas seja quando utilizamos a voz, o corpo,
ou quando escrevemos uma carta, um e-mail.
É através das manifestações culturais que entendemos a cultura local e a influência
que essa última é capaz de exercer na sociedade expressando, assim, seus sentimentos,
gostos e valores, e é nessa conjuntura que aflora a folkcomunicação, pois segundo Beltrão
(2004) “o processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, ideias e
atitudes de massa, por intermédio de agentes e meios ligados direta ou indiretamente
ao folclore” (BELTRÃO, 2004, p. 55). Promovendo dessa forma um intercâmbio cultural.
Concordamos com Maciel (2007) quando afirma-se que a folkcomunicação atua
como um instrumento de mediação popular em que comunicação de massa funda-se no
pressuposto de que é possível transmitir uma mesma mensagem para uma quantidade
tão ampla quanto possível de receptores heterogêneos e dispersos geograficamente.
A Folkcomunicação é um campo de estudo da Comunicação, inserido no país através de Luiz Beltrão, desbravador nas pesquisas científicas em Comunicação no Brasil.
Estudioso, pernambucano que nasceu em 1918 e exerceu importante atuação no cenário
jornalístico. Luiz Beltrão foi o primeiro brasileiro a alcançar o doutorado em Comunicação Social no Brasil, no momento em que defendeu sua tese na área da Folkcomunicação;
uma análise de acontecimentos e manifestações da comunicabilidade social popular.
Discorreremos sobre música popular brasileira como obra cultural do meio; como
música que se expressa de forma simples, porém que observaremos que possui um
conteúdo, decisivamente, de um povo marginalizado, que arquiteta a cultura popular
do país. Nesse sentido, o objeto desse trabalho é o arrocha, estilo musical que com suas
letras relata uma cultura multifacetada e desilusões amorosas. A folkcomunicação,
como estudo analítico das manifestações culturais se faz presente nessa observação do
arrocha principalmente por se tratar de uma exibição folclórica, já que a comunicação
folk se preocupa com estudo desse agente popular.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Sofrência: um (ritmo) folkcomunicacional
Vanessa Maria Santiago da Silva
NOS CAMINHOS DA FOLKCOMUNICAÇÃO
Embasamo-nos como aporte teórico nos pensamentos criado na década de 1960
pelo professor Dr. Luiz Beltrão. A teoria beltraniana é entendida como a primeira
teoria da comunicação do jornalismo nacional, e com o auxílio de Beltrão tentaremos
compreender um pouco, sobre a apropriação das manifestações culturais através das
músicas de arrocha. Uma vez, que as culturas de massa atuam na intencionalidade
de criar uma empatia entre o público e o produto produzido pelo cantor Agenor
Apolinário dos Santos Filho, o Pablo. A folkcomunicação entende as várias formas
de cultura como uma manifestação popular. E o ato de criar música, subentende-se
como uma dessas formas, uma vez, que ocorre o ato de comunicação entre as diversas
classes da sociedade.
E o nome das letras? São bem diferentes. Então o que será o arrocha? Será um
musical contemporâneo, uma contemporânea sensação ou a trilha sonora para trocar passos ao som de: “Tá chorando é, tá chorando é. Todo castigo é pouco, falei que
ia ter troco. Tá doendo é, tá chorando é, Bem feito...” Um ritmo pseudo nordestino,
subgênero-musical, brega-popularesco. Talvez uma música de mau gosto, um estilo
de arrocha-brega. E como seria o ritmo? Um ritmo estourado, sensual e para dançar
com os corpos colados. E como seriam suas músicas e as letras? Elas são cantadas com
palavras bem populares, seja pelas letras que exploram a sofrência e as mágoas causadas
por desilusões amorosas. Em meio aos participantes da festa romântica, quais desses
se sairiam/sentiriam bem, diante dessas músicas? Conformidade, desilusão, gosto e
choro provocado pelas músicas.
A cultura popular a partir de suas composições artísticas e que é também uma
forma de comunicação. E com o auxílio da folkcomunicação, que por sua vez, atua com
o intuito investigativo, para assim, identificar como as classes populares utilizam-se da
comunicação em suas manifestações e expressões.
Neste sentido ainda citamos Antônio Hohlfeldt (2002): “A folkcomunicação pode
ser entendida como estudos comunicacionais pelos quais as manifestações da cultura popular ou do folclore se expandem, se socializam, convivem com outras cadeias
comunicacionais, sofrem modificações por influência da comunicação massificada
e industrializada, ou se modificam quando apropriadas por tais complexos”. Desse
modo compreendemos que todo o processo de transformação que é produzido pelo
ser humano é cultura
Assim considerados os aspectos pelos quais a música segue seu percurso ganhando
forma em nosso dia-a-dia, e por ser intuitivamente conhecida por qualquer pessoa, ela
também pode ser definida como uma forma de expressão cultural.
AS ENTRELINHAS DE UMA CULTURA.
Podemos entender que o ser humano é um ser cultural capaz de produzir e modificar
tecnologias, economias, crenças e organizações políticas. A cultura vive em constante
movimento, seja através de alguns pontos marcados pelos conflitos sociais, seja pela
apropriação e modificação do espaço natural. E muitas vezes assinalada por todos esses
fatores aglutinados. É importante lembrar que para discutirmos cultura, temos que ter
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Sofrência: um (ritmo) folkcomunicacional
Vanessa Maria Santiago da Silva
em mente a humanidade com toda a sua riqueza e variáveis formas de viver além da
capacidade de modificar o meio que habita. Desse modo compreendemos que todo o
processo de transformação que é produzido pelo ser humano é cultura, como explica
Melucci (1996):
A tarefa não é somente da ordem da dominação da natureza e da transformação de matéria-prima em mercadoria, mas sim do desenvolvimento da capacidade reflexiva do eu de produzir informação, comunicação, sociabilidade, com um aumento progressivo na intervenção
do sistema na sua própria ação e na maneira de percebê-la e representá-la. Podemos mesmo
falar de produção da reprodução. (MELUCCI, 1996, p. 5).
É importante lembrar continuamente que é preciso atentar para as várias condições
de vida de cada indivíduo, uma vez que cada povo ou grupo social possui as suas
diferentes formas de pensar e agir, cada qual utilizando de suas criatividades e
dinamismos. Conforme Santos (1987):
Cada realidade cultural tem sua lógica interna, que devemos procurar conhecer para que
façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações pelas quais estas
passam. É preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com os contextos em
que são produzidos. As variações nas formas de família, por exemplo, ou nas maneiras de
habitar, de se vestir ou de distribuir os produtos do trabalho não são gratuitas. Fazem sentido
para os agrupamentos humanos que as vivem, são resultados de sua história, relacionam-se
com as condições materiais de sua existência. (SANTOS, 1987, p. 8)
Assim podemos entender que cultura depende das relações internas de cada grupo
e das práticas de uma sociedade, incluindo costumes, a fala, os hábitos, as crenças e o
momento onde as mudanças dos fatos acontecem. Uma vez que cultura depende do ponto
de vista da pessoa que está vivenciando aquele determinado fato. Uma cultura de massa,
na qual a sociedade e a comunicação também se mostram como produzidos e dirigidos
às massas, ou seja, a noção de massa remete tanto ao conjunto da população, como ao
seu componente popular. Conforme podemos observar nas palavras de Oliveira (2007):
[...] a partir da consolidação da Indústria Cultural, o que ocorreu não foi a produção de uma
cultura popular, mas o fortalecimento da produção de uma cultura industrializada voltada
para um mercado de consumo com a apropriação de elementos das culturas populares.
(OLIVEIRA, 2007, p. 29).
Uma vez que a indústria cultural se apropriou do brega, uma manifestação da cultura
popular, a partir do gênero a transformou num produto mercantilizado, massificado.
Ou seja, desenraizado de lugares, tradições e costumes.
“CLIPAGEM” DO ARROCHA
Reportagem 1 - Quem é Pablo do Arrocha e por que tanta “sofrência”?
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Sofrência: um (ritmo) folkcomunicacional
Vanessa Maria Santiago da Silva
Figura 1. Pablo do Arrocha é o “rei da Sofrência” (Imagem: Reprodução/Som Livre)
No início do corrente ano, você deve ter escutado aquela música que diz assim:
“Hoje eu acordei, me veio a falta de você
Saudade de você, saudade de você
Lembrei que me acordava de manhã só pra dizer: Bom dia, meu bebê!
Te amo, meu bebê!’”
(Música: Fui Fiel)
Essa música virou um chiclete e até hit do carnaval 2014, antes interpreta pelo
cantor Gusttavo Lima, no qual foi o responsável pelo sucesso, e depois ganhou uma
versão no axé com Ivete Sangalo que embalou a galera nos blocos de Salvador. Considerado o compositor dos últimos tempos, é claro, no gênero brega, a música de Pablo
ganhou outras regravações, entre os artistas estão a dupla Thaeme e Thiago e o cantor
Léo Magalhães. O baiano Pablo atualmente é responsável por emplacar suas canções
em primeiro lugar nas rádios das regiões Norte e Nordeste do país.
Vai me dizer que você nunca ouviu ou não se lembra do verso dessa música:
“Pegue todos os cds, pegue os nossos livros
As fotografias, joga fora no lixo
Leve suas roupas, o quadro da sala
Sua liberdade, leve na sua mala.”
(Música: Cds e Livros)
Para entender um pouco mais sobre o que é “sofrência”. É entre essas e outras
músicas bregas e especificamente de corno, ou melhor, sofrível, que Pablo se tornou nos
últimos tempos o responsável pela palavra “Sofrência”, devido suas músicas melancólicas
e de tom dramática que quase nos faz chorar ao ouvir suas canções. Não há bebida
alcoólica que cure a danada da sofrência. Como bom apreciador da música brega (SÓ
QUE NÃO), sugiro que você ouça “Bilú Bilú”, mas tome cuidado para não cair nas
mágoas. Ouuu… Pra você que ainda não conhece o Pablo, eu te convido a se arrepiar
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Sofrência: um (ritmo) folkcomunicacional
Vanessa Maria Santiago da Silva
e chorar junto com a gente ouvindo a música “Porque Homem Não Chora” e cair na
sofrência como vários internautas têm feito ultimamente.
Reportagem vinculada no site: http://geloelimao.com/2014/12/16/quem-e-pablo-do-arrocha-e-por-que-tanta-sofrencia/. [Acesso em 10/01/15]
Reportagem 2 - Vertente dentro do arrocha e do sertanejo, sofrência ganha adeptos no DF. O estilo musical, que se tornou conhecido graças ao cantor Pablo, também
tem vez em Brasília
No início deste ano, quando o cantor Pablo ficou famoso em todo o Brasil por
conta do hit Fui fiel, uma música de bastante sucesso no Nordeste, talvez ele mesmo
não imaginasse que fosse criar outro gênero que vem dando o que falar: a sofrência. O
estilo, que pode ser considerado uma vertente do arrocha, do sertanejo e até do brega,
ganhou adeptos em todo o país e agora embala até as noites brasilienses. Mas... O que é
a sofrência? A origem do termo é incerta. No entanto, a palavra nada mais é do que uma
nova nomenclatura para chamar o que antes era conhecido como dor de cotovelo. No
mundo da música, ela denomina as canções que tratam de um amor não correspondido.
Reportagem vinculada site: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/
diversao-earte/2014/12/18/interna_diversao_arte,462495/vertente-dentro-do-arrochae-do-sertanejo-sofrencia-ganha-adeptos-no-df.shtm. [Acesso em 10/01/15].
Reportagem 3 - Pablo leva arrocha para viajar pelo Brasil com shows de até R$ 210 mil
O que faltava para ele era chegar a lugares no Brasil pouco alcançados pelo ritmo
arrocha. No entanto, neste final de semana, ele conseguiu. O cantor Pablo, já reconhecido
em estados do nordeste como a Bahia, levou o ritmo pela primeira vez para o Espírito
Santo, sudeste do país, e lotou casas de espetáculos nas cidades de Serra e São Mateus.
Com shows cujo valor de contratação variam de R$ 160 mil a R$ 210 mil, o cantor diz
que seu som é a mais nova onda, ouvida por todas as classes sociais brasileira. Um
ingresso para vê-lo no próximo dia 20, na casa Villa Mix de Brasília, pode custar até
R$3 mil --preço do camarote, ingresso mais barato custa R$ 40.
Fazendo cerca de 40 shows ao mês, Pablo considera essa etapa de sua carreira como
“uma conquista vinda de uma grande batalha”. “Tenho 13 anos de carreira e, hoje, as
pessoas abraçaram o ritmo naturalmente. Esse movimento está conquistando o Brasil,
muitos artistas começaram a cantar o arrocha e fizeram com que meu nome se expandisse
muito”, explica ele, que tem público cativo no nordeste do país desde que era integrante
do grupo Asas Livres.
Você sabe o que é o arrocha?
Pablo acredita que o arrocha é uma inovação de uma música antiga, nomeada como
brega, em determinados estados nordestinos do Brasil.
“O arrocha é uma antiga seresta de grandes nomes como Reginaldo Rossi, Valdick
Soriano. Só que é mais renovado, mais sensual e mais moderno. Por isso vem como
novidade e atrai muito”, explicou ele.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Sofrência: um (ritmo) folkcomunicacional
Vanessa Maria Santiago da Silva
A música “Fui Fiel”, por exemplo, se espalhou nacionalmente na voz de Gusttavo
Lima. Embora a canção seja de Pablo, lançada em 2013. De acordo com ele, a sensualidade
do ritmo mais o “falar de amor” é o que faz com que tenha um “alcance tão grande”.
“Começamos fazendo aquele barzinho e a classe A tinha um certo preconceito. Diziam
que era uma música brega e, hoje, é inexplicável, porque a classe A briga para que eu
toque para eles”, conta. Em São Paulo, por exemplo, Pablo toca desde em locais como o
Centro de Tradições Nordestinas --um espaço simples, com preços acessíveis-- até casas
noturnas frequentadas pela classe média alta paulistana, como a Villa Mix.
No início do mês de fevereiro, Pablo se apresentou pela primeira vez no palco
principal do Festival de Verão 2014 em Salvador. Cerca de 50 mil pessoas esperavam
por seu show, que encerrou o evento. Um coral de vozes, mãos balançando para o alto
e olhos dos fãs lacrimejavam ao ouvir o cantor entoar seus principais hits no ritmo
de arrocha. Dos camarotes até a pista, o que se ouvia era que o cantor é a sensação
do momento. Antes desse show, ele contou à reportagem do UOL que não se acha “a
sensação”. “Não gosto de criar patentes. Não sei se sou o rei do arrocha. Dizem isso
por aí, mas eu me contento sendo somente o criador”, explicou Pablo com um tom de
voz baixo e humilde.
Reportagem vinculada site http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2014/02/17/
pablo-leva-arrocha-para-viajar-pelo-brasil-com-shows-de-ate-r210-mil.htm. [Acesso em
10/01/15].
PERCURSO METODOLÓGICO
O presente trabalho é fruto de uma investigação qualitativa, que segundo Chizzotti
(1998) a abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica
entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um
vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito. E justamente
por esse motivo escolhemos uma proposta de metodologia onde foi tecido a habilidade
e capacidade de observação e investigação.
No desenrolar da pesquisa utilizamos uma combinação aberta e plural de procedimentos e técnicas de coleta de dados, análise e interpretação, como também, a revisão
bibliográfica sobre os temas abordados na pesquisa, comunicação, folkcomunicação,
cultura e arrocha/brega.
Para uma relação dinâmica entre o mundo real, objetivo, concreto e o sujeito, dispomos dessa metodologia qualitativa de modo, que entendemos ser uma observação
das trocas de valores culturais entre as festas populares e a sociedade atual, com isso
utilizamos mais uma vez da contribuição de Chizzotti (1998) onde o mesmo nos mostra
que na pesquisa qualitativa todos os fenômenos são igualmente importantes e preciosos: a constância das manifestações e sua ocasionalidade, a frequência e a interrupção,
a fala e o silêncio
Por fim, utilizamos a clipagem, pois, ela não se limita a coletar tudo que é falado
sobre um respectivo assunto. Tão importante quanto, é permitir o monitoramento de
reportagens e ações, pois conhecer outras fontes de informação nesse processo é essencial
para o sucesso de toda e qualquer pesquisa. Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7555
Sofrência: um (ritmo) folkcomunicacional
Vanessa Maria Santiago da Silva
Observamos o estudo através de um processo onde foi observado pensamentos e
ideias sobre o ritmo musical. E com isso alcançamos resultados mais consistentes, pois
se fez uma análise crítica, como também, serviu para sugerir ideias e apontar tendências
sobre o assunto em questão.
REFERÊNCIAS
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de ideias. Coleção Comunicação, v.12. Porto Alegre: Edipucrs,
2001, p. 74.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do Campo: UMESP,
2004.
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 2ª ed – São Paulo, Cortez, 1998,
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HOHLFEDT, Antonio. Novas tendências nas pesquisas da folkcomunicação: pesquisas acadêmicas se aproximados estudos culturais. PCLA- Volume 4 - número 2: janeiro /fevereiro
/ março 2003 Comunicação apresentada no Núcleo de Pesquisas sobre Folkcomunicação,
no âmbito da XXV Intercom, Salvador, 1 a 5 de setembro de 2002. Disponível em: www2.
metodista.br/unesco/ PCLA/revista14/artigos%2014-1.htm. [Acessado em 16.01.15]
MACIEL, Betania. O papel da folkcomunicação na construção do desenvolvimento regional.
In: Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Santos, 29 ago.-2 set.2007.
São Paulo: INTERCOM, 2007.
MELUCCI, Alberto. Juventude, tempo e movimentos sociais - Revista Young. Estocolmo: v.
4, nº 2, 1996, Tradução de Angelina Teixeira Peralva.
OLIVEIRA, Catarina Tereza Farias de. Escuta sonora: recepção e cultura popular nas ondas
das rádios comunitárias. Rio de Janeiro: E-papers, 2007.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura - Coleção Primeiros Passos. Brasiliense, 1987.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7556
Museu: meio e estratégia de folkcomunicar.
O caso do Museu do Alto Sertão da Bahia.
Museum: half and strategy of folkcomunication.
The case of the Museum of the High Interior of Bahia.
Zamana Brisa Souza Lima1
J o s é C l a u d i o A lv e s
de
Oliveira2
Resumo: O artigo se baseia na Folkcomunicação enquanto processo de
comunicação e cultura popular. Observa-se que, ainda que o folclore tenha sido
preservado, o contexto social de suas manifestações mudou desde o surgimento
da folkcomunicação até hoje. Então, pensando nas novas demandas sociais, o
artigo problematiza o museu como um estratégico lugar para folkcomunicar
elementos da cultura popular e do folclore. Assim, apresenta-se o Museu do
Alto Sertão da Bahia (MASB), instituição sediada na cidade de Caetité - Bahia, e
congrega núcleos na cidade, nos perímetros urbano e rural, além de núcleos nas
cidades de Guanambi e Igaporã. Portanto, o artigo pretende mostrar o museu
enquanto meio do processo folkcomunicacional no âmbito das ações, ideias, e
opiniões ligadas ao folclore. O seu desenvolvimento e quadro teórico se abriga
em autores como Luiz Beltrão, Hugues de Varine, e outros. A metodologia está
baseada em pesquisas qualitativas com utilização de observação direta.
Palavras-Chave: Folkcomunicação. Museu. Estratégia.
Abstract:. The article bases on Folkcommunication while communication
process and popular culture. It is observed that, although the folklore has been
preserved, the social context of its manifestations moved from the appearance
of the Folkcommunication to today. Then, thinking of the new social demands,
the article instigates the museum as a strategic place for Folkcommunication
elements of the popular culture and of the folklore. Thus, comes the Museum
of the High Interior of Bahia (MASB), institution that possesses a thirst in
the city of Caetité - Bahia, and it congregates nuclei in the city, in the urban
and rural perimeters, besides nuclei in the cities of Guanambi and Igaporã.
Therefore, the article intends to show the museum while middle of the process
Folkcommunication in the ambit of the actions, ideas, and opinions linked to the
folklore. Its development and theoretical picture is sheltered in authors as Luiz
Beltrão, Hugues de Varine, and others. The methodology is based on qualitative
researches with use of direct observation.
Keywords: Folkcommunication. Museum. Strategy.
1. Mestranda em Museologia, Universidade Federal da Bahia, e-mail: [email protected].
2. PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas; Professor Associado da UFBA e Chefe de
Departamento do curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia, e-mail: [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7557
Museu: meio e estratégia de folkcomunicar. O caso do Museu do Alto Sertão da Bahia.
Zamana Brisa Souza Lima • José Claudio Alves de Oliveira
FOLKCOMUNICAÇÃO: SENSIBILIDADE PESSOAL,
CONTRIBUIÇÃO INTERNACIONAL
O ANO de 1967 ocorreu um importante marco histórico para o campo comunica-
N
cional brasileiro, pois foi neste ano que o jornalista Luiz Beltrão de Andrade Lima
defendeu sua tese de doutorado na Universidade de Brasília (UNB). Nascido na
cidade de Recife no ano de 1918 e falecido em Brasília no ano de 1986, Beltrão destacou-se
academicamente ao escrever a primeira tese de doutorado em Ciências da Comunicação.
Tal protagonismo acabou por estabelecer as novas bases de uma nova disciplina científica, a Folkcomunicação.
O marco histórico aconteceu devido a fuga proposital do foco das teorias da Comunicação que estavam mais voltadas para as “formações semióticas e semiológicas” que
teciam “construções nos campos do estruturalismo” e “sustentavam ainda mais a idéia
do Jornalismo” (OLIVEIRA, 2010, p.1).
Em sua tese, Beltrão tratou de pesquisas que refutassem “a idéia dominante da
onipotência midiática” em que “a mídia consegue mobilizar a atenção coletiva dos
usuários, mas seus efeitos são mediados por líderes de opinião” (MELO, 2003, p.34). Essa
era uma perspectiva resultante de pesquisas empíricas realizadas nos Estados Unidos.
Já no Brasil, Beltrão, citado por Marques de Melo (2003), verificou que:
O papel das lideranças grupais é exercido, no campo, cidades do interior ou nas periferias
metropolitanas, por agentes folkcomunicacionais. Estes recodificam as mensagens midiáticas, reinterpretando-as de acordo com os valores comunitários. (MARQUES DE MELO,
2003, p.34)
Desde então, Luiz Beltrão, jornalista e professor de comunicação, era considerado
o pioneiro das Ciências da Comunicação no Brasil. A presença da Folkcomunicação
como disciplina integrante do segmento das ciências da informação individual ou a
Folkcomunicação enquanto disciplina componente das ciências da informação, dentre
outros autores e obras, está justificada no livro Comunicação Social: Teoria e Pesquisa
(1970), de José Marques de Melo. Esse mesmo autor trata da Folkcomunicação como
integrante das ciências da informação no livro Teoria da Comunicação: paradigmas
latino-americanos (1998).
Além da Folkcomunicação e de criar, em 1965, a primeira revista científica dedicada
a temas comunicacionais no Brasil, é possível destacar outros vanguardismos:
Seu pioneirismo é multifacetado. Ele fundou o primeiro centro nacional de pesquisas
acadêmicas sobre comunicação - o ICINFORM (Instituto de Ciências da Informação) - na
Universidade Católica de Pernambuco, em Recife, 1963. Criou ainda a primeira revista
científica brasileira dedicada a temas comunicacionais - Comunicações & Problemas, também na cidade do Recife, 1965. Tornou-se, finalmente, o primeiro Doutor em Comunicação
diplomado por universidade brasileira, ao defender na Universidade de Brasília, em 1967,
a tese Folkcomunicação - Um estudo dos Agentes e dos Meios Populares da Informação de
Fatos e Expressão de Idéias. (MARQUES DE MELO, 2014, p.29)
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7558
Museu: meio e estratégia de folkcomunicar. O caso do Museu do Alto Sertão da Bahia.
Zamana Brisa Souza Lima • José Claudio Alves de Oliveira
Os feitos, as pesquisas e a vasta bibliografia de Luiz Beltrão corroboram para o título
de pioneiro, e o seu legado intelectual é inquestionável. A competência desse professor
o fez perceber que o sistema comunicacional convencional não dava conta de transmitir
as mensagens de características folclóricas de suas pesquisas. Assim, conclui Beltrão
(2001) citado por Marques de Melo:
A “tradução” das mensagens para os códigos locais não era processada individualmente,
por típicos “líderes de opinião”. Sua pesquisa reuniu evidencias distintas. Os conteúdos
midiáticos, em zonas distanciadas dos centros urbanos ou nas periferias metropolitanas,
passavam por leituras grupais ou traduções comunitárias, efetuadas por “agentes coletivos”.
(MARQUES DE MELO, 2014, p.18)
E, inclinando-se para a comunicação popular e manifestações espontâneas de
grupos sociais, Beltrão articulou “o termo Folk – popular, espontâneo, irreverente diante
de instituições e datas” com o “termo comunicação, refletindo na transmissão, nas trocas,
na difusão” (OLIVEIRA, 2010, p.2).
Beltrão era declaradamente apaixonado pelo folclore e cultura popular. Mantinha profundo interesse pelas classes trabalhadoras e uma sensibilidade aguçada para compreender
sobre as articulações diárias das camadas sociais menos favorecidas, definindo, ele mesmo,
a folkcomunicação:
Eu estudei alguns grupos que utilizam a folkcomunicação, isto é, meios não-formais de
comunicação ligados direta ou indiretamente ao folclore. Então eu vi que alguns desses
grupos têm capacidade de integração na sociedade, apenas não concordam com essa sociedade. Os grupos a que me refiro são os culturalmente marginalizados, contestam a cultura
dominante. (BELTRÃO, 1987, p.5)
Estes são conceitos altamente articulados com as ideias de Beltrão quando, na
primeira revista científica sobre temas voltados para a comunicação, em 1965, publicou
um ensaio monográfico intitulado “O ex-voto como veículo jornalístico”. No ensaio,
Beltrão afirmava que os meios ortodoxos não são os únicos veículos de manifestação
e comunicação massiva. O ensaio monográfico é citado por Marques de Melo (2003):
Não é somente pelos meios ortodoxos - a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema, a arte
erudita e a ciência acadêmica - que, em países como o nosso, de elevado índice de analfabetos e incultos, ou em determinadas circunstâncias sociais e políticas, mesmo nas nações
de maior desenvolvimento cultural, não é somente por tais meios e veículos que a massa
se comunica e a opinião se manifesta. Um dos grandes canais de comunicação coletiva é,
sem dúvida, o folclore. As conversas de bôca de noite, nas cidades interioranas, na farmácia ou na barbearia; da troca de impressões provocada pelas notícias trazidas pelo chofer
de caminhão, pelo representante comercial ou pelo ‘bicheiro’; ou, ainda, pelos versos do
poeta distante, impressos no folheto que se compra na feira, e pelos ‘martelos’ do cantador
ambulante; pelos inflamados artigos do jornalista matuto ou pelas severas admoestações dos
missionários; do raciocínio do homem solitário no seu trabalho na floresta, na caatinga ou
na coxilha - é que surgem, vão tomando forma, cristalizando-se as idéias-motrizes, capazes
de em dado instante e sob certo estímulo, levar aquela massa aparentemente dissociada e
apática a uma ação uniforme e eficaz. (MELO, 2003, p.32 e 33)
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Beltrão foi também responsável por classificar os “fenômenos da comunicação
popular”, que, segundo OLIVEIRA (2010) são:
Conceituados como gêneros folkcomunicacionais, que compreende as formas interpessoais
ou grupais de manifestação cultural difundida pelo povo, por comunidades, urbanas ou
rurais. Tais gêneros são os caracterizadores dos mecanismos artesanais de difusão simbólica
que expressam, em linguagem popular, mensagens.(OLIVEIRA, 2010, p.2)
A priori, é de causar certo espanto que as manifestações populares sejam partes
integrantes do universo das Ciências da Comunicação. De outro modo, é legítimo que o
folclore possa ser um grande canal da comunicação coletiva e valorize os saberes e fazeres de determinados grupos sociais. Ainda mais genuíno, é prestar atenção na maneira
com que as informações podem ser (re)interpretadas, (re)significadas e preservadas.
PROCESSOS FOLKCOMUNICACIONAIS NO ALTO SERTÃO DA BAHIA
Pensar na cultura popular, em manifestações espontâneas, em festas e comidas típicas e tradicionais, literatura de cordel, ex-votos, simpatias e rezas, na toada do vaqueiro,
nos cantos dos boiadeiros e das lavadeiras, festivais de ternos de reis, cordéis, dentre
outros, é pensar que estes meios de comunicação são capazes de manifestar opiniões
diversas.
Para tratar de algumas dessas manifestações, destaca-se a cidade de Caetité, município situado baiano a cerca de 800 km da capital, Salvador, numa região que parece ter
incorporado o nome autodenominativo de Alto Sertão, que mais parece estar relacionado
aos antigos limites “imaginários” entre Bahia e Minas Gerais.
A região do alto sertão sofreu forte influência de bandeirantes que estavam à procura
de riquezas nos “sertoins de sima” ou “sertões de sima” que foi constituído “historicamente com a criação de gado vacum”, os denominados “currais da Bahia”, na extensão
do São Francisco ao Rio das Velhas “e, posteriormente, com a mineração, na Chapada
Diamantina” (PIRES, 2009, p. 104).
Além de riquezas minerais, os bandeirantes estavam à procura de sertanejos,
dentre os quais, destacam-se os vaqueiros e tropeiros, de além de índios e escravos que
habitavam a região. É possível que muitos desses sertanejos indígenas tenham se aliado
aos escravos fugidos e tenham sido fundamentais na criação de quilombos da região,
como por exemplo, o quilombo do Bonito, atual cidade de Igaporã:
Retornou à Caetité e aquilombou-se em Bonito (atual Igaporã). Assim como muito escravos,
“Cezário” revelou-se obstinado na luta pela permanência no lugar “d’onde era natural”,
queria estar ao lado de sua família e amigos. Resistia pela segunda vez às tentativas de sua
venda, “[há] trez anos [...] tinha fugido”(PIRES, 2009, p. 63)
Muitas associações de comunidades de quilombos ainda resistem na cidade de
Caetité. Muitas foram povoadas de tal modo a lograr o título de cidade, como Igaporã.
O quilombo do Bonito pertenceu à cidade de Caetité, que contava com outros distritos
de acordo com a Lei provincial número 995, de 12 de outubro de 1867. As duas cidades
mantiveram-se em períodos de longa disputa judicial até que houvesse a efetiva
emancipação deste município do de Caetité.
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Estes dois municípios ainda mantêm a tradição de cantar o para o Menino Deus
no mês de dezembro, reunindo-se em grupos de ternos de reis. Também em nome da
tradição e da cultura folclórica, as cidades promovem separadamente, festivais de ternos
de reis. (Figura 1) (Figura. 2)
Figura 1. Festival de Terno de Reis em Igaporã. Ano 2015. Disponível em: http://
diocesedecaetite.org.br/2014/blog/tag/reizado/ Acesso em 16 de janeiro de 2015.
Figura 2. Festival de Terno de Reis em Caetité. Ano 2015.
Disponível em: http://www.caetfest.com.br/noticias/2537-xviii-festival-de-ternos-de-reise-realizado-com-muita-emocao-em-caetite. Acesso em 14 de janeiro de 2015.
Torna-se, então, possível concordar com Avancini (1994, p. 12) na afirmação de que
define cultura como “tudo aquilo que é produzido pelo homem, ou tudo aquilo que
não é natureza”. A cultura popular se expressa nas manifestações populares realizadas
em grupo.
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Partindo de tais pressupostos é possível afirmar que os grupos sociais possuem
determinadas culturas adquiridas através de práticas, de maneira temporal, aos poucos
tornam-se tradicionais através das gerações e, pelo fato de repetir-se, determinados
conhecimentos, anônimos ou não, acabam por se configurar como tradicionais. De
maneira complementar, Marilena Chauí (2005, p. 138), é categórica ao afirmar que “a
memória é uma evocação do passado, uma capacidade humana para reter e guardar o
tempo que se foi salvando-o da perda total”.
Assim, não é aleatório pensar nas muitas heranças e no importante legado deixado
por índios, negros e outros sertanejos da região: várias ciências populares herdadas e
acumuladas de geração em geração, preces, novenas e rituais cristãos e suas devoções
a padroeiros locais, tocadores de reis que saúdam os presépios do “Menino Deus”
no mês de dezembro, tapeceiros, ceramistas, rezadeiras, curandeiros, dançantes do
“bumba-meu-boi”, donas de casas que guardam as receitas de comidas típicas e de ervas
curadoras, gameleiros, dentre outros.
Sobre os negros escravos há, na cidade de Caetité, material de pesquisa para consulta
desse assunto tão vasto e visitado que é a escravidão. Muitas são as correspondências
entre os coronéis, livros de vereanças, cadernos de anotações de compra e venda de
alimentos e pessoas, certidões judiciais, livros de batistérios e casamentos, cartas de
alforrias, jornais,, artigos e livros acadêmicos e histórias narradas por memorialistas
locais do alto sertão que remontam a cidade de Caetité desde o povoamento do arraial,
até os foros de cidade.
Entretanto, quanto aos índios nativos da região, até o momento, não há documentação
necessária para a compreensão do processo pelo qual esses índios foram extintos e,
portanto, não se pode afirmar sobre um suposto genocídio ou dominação cultural ou
social, ou, até mesmo, um extermínio não citado na história do local. O silêncio proposital
dos memorialistas locais não revela fatos sobre os índios, pois seus discursos citam a
tradição (ou a inventam) e narra sobre a construção de um passado ideal.
Mas, algumas mudanças têm surgido do testemunho de histórias que estavam
silenciadas. Cerca de “180 sítios arqueológicos” comprovam a existência dos primeiros
moradores de Caetité, com achados que chegam a datar 6 mil anos e colocam em cheque
o silêncio de um passado não tão narrado e conhecido. (PLANO MUSEOLÓGICO DO
MASB, 2009, p.109).
Pontas de lanças, fragmentos de arcos e flechas, potes de barro, resíduos de
alimentos nativos específicos, indícios de fogo, objetos cortantes, pinturas rupestres,
dentre outros, são hoje o testemunho histórico dos índios que um dia existiram na
região. Esses testemunhos são um dos resultados da instalação de complexos eólicos
na região, cujas obras demandaram licenciamentos arqueológicos, escavações e geração
de grandes acervos.
Sem uma instituição que pudesse abrigar as mais de vinte mil peças encontradas na
região, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) direcionaria
todo acervo para a Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus/BA, município
que fica a cerca 500 km de distância do local onde foram encontrados os achados
arqueológicos.
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Museu: meio e estratégia de folkcomunicar. O caso do Museu do Alto Sertão da Bahia.
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Em virtude disso, surge, em 2011, o projeto Museu do Alto Sertão da Bahia (MASB)
como uma demanda de moradores, das secretarias municipais, professores e alunos da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), entre outros segmentos e líderes comunitários,
com o objetivo principal de criar um espaço para a salvaguarda e pesquisa dos acervos
arqueológicos encontrados após os licenciamentos ambientais realizados pelas empresas
de energia eólica instaladas nessa região, que abrangeu, a priori, os municípios de Caetité,
Guanambi e Igaporã.
Trata-se de um museu criado pela Lei Municipal de nº 761/2013, que possui uma
sede física na cidade de Caetité e dez núcleos que abrangem os municípios vizinhos de
Guanambi e Igaporã, a saber: Escola Emiliana Nogueira Pita, Movimento de Mulheres
Camponesas, Instituto de Educação Anísio Teixeira e Sítio Arqueológico Moita dos Porcos,
em Caetité; Colégio Municipal do Tamboril, Associação de Curral de Varas, Associação
de Pajeú do Josefino, em Guanambi, além das comunidades quilombolas já citadas.
MASB: MEIO E ESTRATÉGIA DE FOLKCOMUNICAR
O MASB, cujo nome é como um resgate às primeiras menções territoriais imagéticas
dos primeiros moradores da região, o “alto sertão”, é um Museu de Território, vocação
que foi se delineando na medida em que foi constatada a ausência de instituições congêneres neste território específico. Dialogando diretamente com a política de organização
dos Territórios de Identidade da Bahia, este museu deve atuar nos denominados “Sertão Produtivo” e em parte do “Velho Chico”, representado pelo município de Igaporã
e Guanambi (Plano Museológico MASB, p. 10, 2012), partindo do pressuposto de que:
Um museu-território é a expressão do território, qualquer que seja a entidade que toma
iniciativa e a autoridade que o controla (…). Seu objetivo é a valorização desse território
e, sob esse ponto de vista, é realmente um instrumento do desenvolvimento em primeiro
grau (…). O patrimônio do território torna-se um pretexto para refletir seriamente sobre
o presente e o futuro. E para se perguntar o que é possível fazer para avançarmos todos
juntos, graças a esse laço que o patrimônio constitui para cada um. (Varine, 2012, p.185)
Alinhando-se aos conceitos de Varine-Bohan (2012), tanto a sede do museu conhecida como Casa da Chácara -, quanto os núcleos de povoação muito comuns na
época da colonização da região, esse museu e seus núcleos dialogam com uma forma
de ‘museu-processo’ que não possui características usualmente atribuídas a museus
que tendem relacionados com instituições tipologicamente tradicionais.
Pessoas, construções, árvores centenárias, ruas, saberes, fazeres, histórias, crendices,
tudo parece estar embutido no dia a dia de comunidades, está incluso na tipologia e
no modelo participativo desse museu; configurando-se como um “museu dinâmico,
alicerçado nos saberes, fazeres e culturas populares” (PLANO DE COMUNICAÇÃO
MASB, 2009, p.103) aproximando-se das premissas propostas por Beltrão ao criar a
Folkcomunicação. Além disso:
De instituições elitistas, colonizadoras, sectárias e excludentes, os museus têm procurado
os caminhos da diversidade cultural [...] De instituições paternalistas e autoritárias, os
museus têm percorrido os árduos caminhos do diálogo cultural e da convivência com o
outro. De instituições isoladas e esquecidas, os museus têm valorizado a atuação em redes
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Museu: meio e estratégia de folkcomunicar. O caso do Museu do Alto Sertão da Bahia.
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e sistemas, procurando mostrar a sua importância para o desenvolvimento socioeconômico.
(BRUNO, 2007, p. 6)
É deste maneira que, num território específico, exposições, oficinas, ciclos de debates
e demais atividades do MASB, museu em fase de implantação, poderão funcionar como
meios e estratégias de folkcomunicar ao expor: obrigações de benzedeiras, causos de
parteiras, preces de curandeiros, práticas e ofícios da região, assim como a linguagem
do povo sertanejo, mitos locais, diversidade religiosa e suas influências socioculturais,
assim como os saber, fazer e o saber fazer de determinado grupo social.
Por ser um museu de vocação territorial, torna-se necessário enfatizar que o conceito
de território para o qual se inclina o MASB em seu plano museológico, está baseado nas
ideias do geógrafo Milton Santos (1996):
Tomamos então, por base, o conceito de território presente na tese de Maria do Carmo M.
M. dos Santos, por sua vez baseado nas ideias do geógrafo Milton Santos: O território não é
apenas forma, mas produto do trabalho humano, que resulta na construção de um domínio
ou de uma delimitação do vivido territorial, assumindo múltiplas formas e determinações;
é tanto resultado do processo histórico quanto a base material e social das novas ações
humanas. (PLANO MUSEOLÓGICO MASB, 2009, p.111)
Em seu plano museológico, o MASB é configurado como um museu que preza
pelos processos museológicos comunitários e, neste sentido, encontra-se os museus
de tipologias territoriais que envolvem os perímetros urbanos e rural. Dessa forma,
entende-se que:
A configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturais existentes
em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que os homens superimpuseram
a esses sistemas naturais. A configuração territorial não é o espaço, já que sua realidade
vem de sua materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima.
(SANTOS, 1996, p. 51).
Além disso, faz-se necessário ressaltar que, independente de sua tipologia e
do território abrangido, o museu é uma instituição a serviço da sociedade e do seu
desenvolvimento, prezando por memórias, histórias e patrimônios. Varine-Bohan (1995)
é categórico ao afirmar que o museu pode desempenhar um papel libertador das forças
criativas da sociedade, para a qual o “patrimônio não é apenas um objeto de deleite,
mas antes de tudo uma fonte maior de desenvolvimento” (VARINE-BOHAN, 1995, p.19).
Percorrendo caminhos interdisciplinares voltados para uma legítima preocupação
imersa no abrangente campo museal, é possível afirmar que:
O mundo dos museus está ligado à noção de patrimônio, mas vai, ainda, muito além disto.
Como evocar este contexto mais amplo? Pelo conceito de museal (ou de campo museal), que
é o campo teórico responsável por tratar deste questionamento, do mesmo modo em que a
política é o campo da reflexão política. O questionamento crítico e teórico do campo museal
é a museologia, enquanto que o seu aspecto prático é designado como museografia. Para
cada um desses termos não existe apenas uma, mas várias definições que se transformaram
com o passar do tempo. (DESVALLÉES, A.; MAIRESSE, F. 2014, p. 23)
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Museu: meio e estratégia de folkcomunicar. O caso do Museu do Alto Sertão da Bahia.
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De acordo com Lima e Oliveira (2014), “a Museologia passou, ao longo dos anos,
por muitas transformações até que pudesse alcançar públicos variados” e colocou-se ao
dispor de nítidas mudanças que a coloque ao serviço da sociedade, empenhando-se em
“quebrar paradigmas”. Também engajou-se em “idéias mais ampliadas de museu e de
patrimônio em nome de uma maior acessibilidade”. O resultado de tais transformações
“possibilitaram a existência dos tipos museológicos conhecidos na contemporaneidade”
(LIMA e OLIVEIRA, 2014, p.3 e 4).
Por isso mesmo é que tornar-se possível concordar com Desvallées, A.; Mairesse,
F. (2014), que, sobre o termo museu, ponderam :
O termo “museu” tanto pode designar a instituição quanto o estabelecimento, ou o lugar
geralmente concebido para realizar a seleção, o estudo e a apresentação de testemunhos
materiais e imateriais do Homem e do seu meio. A forma e as funções do museu variaram
sensivelmente ao longo dos séculos. Seu conteúdo diversificou-se, tanto quanto a sua missão, seu modo de funciona-mento ou sua administração. (DESVALLÉES, A.; MAIRESSE,
F. 2014, p. 65)
No Brasil, especificamente, o conceito de museus e seus processos, são amparados
pela legislação, destacando-se a Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, o Estatuto de
Museus:
Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que
conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico,
artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a
serviço da sociedade e de seu desenvolvimento. (ESTATUTO DE MUSEUS, 2009, Art. 1º)
Pelos conceitos previstos em leis e teorizados por pesquisadores e profissionais de
museus, por estar ao serviço da sociedade, apresentar testemunhos materiais e imateriais
do homem, voltar-se para uma noção de patrimônio mais ampla e interdisciplinar, o
museu pode ser um meio estratégico que auxilie o processo folkcomunicional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo sendo ainda um processo, o MASB, já em seu plano museológico, preocupa-se
com caminhos voltados para a diversidade cultural, além de preocupar-se em “mapear e
monitorar patrimônios, paisagens, memórias, saberes e outras referências patrimoniais”,
dentre as quais destacam-se as manifestações folclóricas e populares.
Quando em pleno funcionamento, os aparatos utilizados em manifestações folclóricas poderão compor as exposições do MASB, sendo elas itinerantes ou não, permitindo
com que o objeto folkcomunicional expresse funções e significados para além do objeto
físico.
Nesse sentido, o MASB é um possível e estratégico lugar para folkcomunicar
elementos diversos da cultura popular e do folclore, configurando-se, então, como um
meio do processo folkcomunicacional no âmbito das ações, ideias, opiniões ligadas direta
ou indiretamente às culturas populares desse território específico.
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Nessa medida, o MASB não estará voltado para ações que atraiam visitantes, e sim,
ações que preservem as referências patrimoniais e folclóricas associadas às identidades
socioculturais do Alto Sertão da Bahia.
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Cultura popular e a comunicação no maracatu.org.br
Popular culture and communication in maracatu.org.br
Dair a M a rtins Bot el ho 1
Resumo: A cultura popular tem se transformado ao longo dos séculos. Apesar
de manter suas tradições e perpetuar seus costumes, tais práticas sociais têm
encontrado novas formas de disseminação para o além-fronteiras, como a internet.
Assim, a cultura popular encontra outro caminho para dar continuidade as suas
tradições, passando da oralidade pra o uso das tecnologias, se apropriando da
internet para mostrar e cultivar suas manifestações, além de chegar a um maior
número de pessoas. Um exemplo dessa transformação é o maracatu.org, um site
que abriga nações e grupos de Maracatu de Baque Virado. Criado em 2009, o
site tem sido referência para os brincantes de maracatu, que conseguiram maior
contato entre os próprios grupos e também com os espectadores. A internet
se mostrou uma ferramenta eficaz no sentido de agregar os grupos e criar um
espaço de divulgação e diálogo.
Palavras-Chave: Comunicação. Cultura popular. Folkcomunicação. Maracatu.
Abstract: Popular culture has been transformed over the centuries. While
retaining its traditions and perpetuate their customs, such social practices
have found new ways to spread even beyond the borders, such as the Internet.
Thus, popular culture is another way to continue their traditions, from orality
to the use of technologies, appropriating the internet to show and cultivate
its manifestations, and reach a larger number of people. An example of this
transformation is the maracatu.org, a site that is home nations and groups of
Maracatu do Baque Virado. Created in 2009, the site has been reference to the
players of maracatu, who managed to increased contact between the groups
themselves and with the audience. The internet has proved an effective tool to
aggregate groups and create a space for dissemination and dialogue.
Keywords: Communication. Popular culture. Folkcomnicação. Maracatu.
INTRODUÇÃO
GLOBALIZAÇÃO, SEGUNDO Hall (2002), teve seu surgimento entre 1970 e 1980; no
A
entanto há divergência entre pesquisadores acerca da precisão da data, até porque,
por tratar-se de um fenômeno, é de difícil definição e pontuação –, potencializou
a massificação mundial, trazendo questões relacionadas à identidade e pertencimento,
exploradas nos estudos de Néstor Garcia Canclini (1996, p. 61): “Vivemos um tempo de
fraturas e heterogeneidade, de segmentações dentro de cada nação e de comunidades
1. Doutoranda em Comunicação na Universidade Estadual Paulista – UNESP. E-mail: dairarmb@yahoo.
com.br.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Cultura popular e a comunicação no maracatu.org.br
Daira Martins Botelho
fluídas com as ordens transnacionais da informação, da moda e do saber”.
Os impactos citados por Canclini encontram uma resposta na formulação de Hall,
que afirma que um dos pontos principais da globalização é a “compressão do espaço-tempo”: “(...) a aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é
menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um
impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância” (HALL,
2002, p. 69).
Nesse contexto, a globalização, com o auxílio das tecnologias de informação, trouxe
novas características para o mundo: a potencialização das redes e da comunicação explode e os indivíduos estão cada vez mais conectados devido ao advento da tecnologia, que
cresce exponencialmente; a possibilidade de maior interação entre os indivíduos dá à
população a sensação de inclusão e participação nessa nova sociedade mundial; a oferta
da cultura do outro, tornando o mundo multicultural (MARQUES DE MELO, 2008).
Diante do panorama que a globalização apresenta, é possível ser enfático ao dizer que
não se trata, senão, de mais um conceito que remete à exclusão, já que está diretamente
ligado ao capital. Questão exposta claramente nos estudos de Milton Santos (2001), nos
quais o autor trata do fenômeno descrito acima como “Globaritarismo”, afirmando o
caráter totalitário com o qual o novo sistema se instaurou na sociedade.
Já Hall traça indicativos acerca da globalização em relação ao aspecto geográfico,
pois “a globalização é muito desigualmente distribuída ao redor do globo, entre regiões
e entre diferentes estratos da população dentro das regiões.” (HALL, 2002, p. 78); além
de afirmar que o fenômeno privilegia somente uma parte do mundo, chamando-o de
“ocidentalista”, pois tudo o que é “compartilhado” vem do Ocidente.
Com a avalanche de informação que a globalização possibilitou circular entre os
povos, sob diversas formas e através dos vários meios de comunicação, vê-se o fenômeno
da inserção dos indivíduos no universo dos fatos que correm o mundo. De acordo com
Milton Santos, a informação passa a ser um instrumento no processo de Globalitarismo,
de forma que a comunicação passa, antes de tudo, pelos processos capitalistas da nova
forma de vida que se instala:
A chamada mídia, ela tem um papel de intermediação que a gente talvez não possa dizer
que é inocente, mas não, não parte dela, realmente, ou não é dela o poder, o poder é de um
pequeno número de agências internacionais da informação estreitamente ligadas ao mundo
da produção material, ao mundo das finanças que controla, de maneira extremamente eficaz, a interpretação do que se está passando no mundo. E de uma forma que se torna clara
quando a gente pega os jornais e vê a repetição quase que servil das mesmas fotografias,
das mesmas manchetes, das mesmas ideias, dos mesmos debates que indicam que alguma
coisa está por trás de tudo isso (SANTOS, 2006, 37’).
A informação não é tratada apenas como tal – o que já lhe incumbe responsabilidade
e peso social – mas como mercadoria, o que acaba por deturpar sua verdadeira função
na sociedade. A formação de grandes empresas de comunicação e mídia que detém
grande parte da veiculação do que é considerado notícia pelo mundo é inevitável e
colabora para o aspecto citado acima: a hegemonia dos meios de comunicação – tanto
financeira e economicamente, quanto ideologicamente.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Cultura popular e a comunicação no maracatu.org.br
Daira Martins Botelho
FOLKCOMUNICAÇÃO – A COMUNICAÇÃO DOS MARGINALIZADOS
Ao voltar o olhar para os ex-votos durante seu ofício como jornalista, Luiz Beltrão
cria a teoria da Folkcomunicação, que trata da comunicação existente nas manifestações
da cultura popular que está, na maioria das vezes, marginalizada em relação aos meios
massivos de comunicação.
Tais grupos podem ser encontrados hoje e são motivos de variadas pesquisas de
embasamento teórico metodológico sob a luz dos estudos de Beltrão. E, apesar de sua
íntima ligação com o folclore, a Folkcomunicação mostra-se abrangente, pois considera
as manifestações populares em geral: não somente a tradição como as festas e folguedos,
a literatura de cordel, mas também o atual, como, por exemplo, os movimentos de
resistência.
Por meio da sensibilidade que teve para reconhecer as manifestações, Beltrão
conseguiu postular as diretrizes para a Folkcomunicação, e formar uma geração de
discípulos e seguidores com o mesmo objetivo: voltar o olhar para o que está no cotidiano
da sociedade contemporânea, além de alertar para o reconhecimento dessa forma de
comunicação, pois,
Não se deve esquecer que, enquanto os discursos da comunicação social são dirigidos ao
mundo, os da Folkcomunicação se destinam a um mundo em que palavras, signos, gráficos,
gestos, atitudes, linhas e formas mantêm relações muito tênues com o idioma, a escrita, a
dança, os rituais, as artes plásticas, o trabalho e o lazer, com a conduta, enfim, das classes
integradas da sociedade (BELTRÃO, 2004, p. 85).
A partir das palavras do autor percebe-se que a preocupação com a comunicação
existente nas manifestações populares diz respeito aos canais específicos de comunicação.
Diferentemente da comunicação massificada, a Folkcomunicação preocupa-se em
reconhecer os indivíduos definidos como a audiência folk, bem como registrar seus canais
de interação, o surgimento dos líderes de opinião e afirmar que, apesar da existência
dessa comunicação dita para a massa, a comunicação pode se dar de outras formas.
José Marques de Melo (2008, p. 90 – 95), a partir dos estudos de Beltrão, estabelece a
“Tipologia da Folkcomunicação” como indicativo de metodologia de pesquisa, necessária,
aqui, para exemplificar a abrangência dos estudos da Folkcomunicação, bem como sua
atualidade na área da pesquisa:
1. Folkcomunicação oral: canto, colóquio, música, rumor, tagarelice, prosa, zombaria,
verso, passatempo, reza;
2. Folkcomunicação visual: escrito, impresso, mural, pictográfico;
3. Folkcomunicação icônica: devocional, nutritivo, bélico, diversional, funerário,
decorativo, utilitário;
4. Folkcomunicação cinética: agremiação, manifestações, celebração, folguedo, distração,
festejo, dança, rito de passagem2.
A atualização do pensamento beltraniano se deu, também, por meio das pesquisas
realizadas por Roberto Benjamin, discípulo direto de Beltrão, assim como José Marques
2. Para o detalhamento de cada item ver: MARQUES DE MELO, José. Mídia e cultura popular:
história, taxionomia e metodologia da folkcomunicação. São Paulo: Paulus, 2008.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Cultura popular e a comunicação no maracatu.org.br
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de Melo. Para Benjamin (2004, p. 12), os novos estudos realizados com embasamento
pela teoria da Folkcomunicação devem passar pelos seguintes quesitos:
a) A comunicação (interpessoal e grupal) ocorrente na cultura folk;
b) A mediação dos canais folk para a recepção da comunicação de massa;
c) A apropriação de tecnologias de comunicação de massas e uso dos canais massivos
por portadores de cultura folk;
d) A presença de traços da cultura de massas absorvidas pela cultura folk;
e) A apropriação de elementos da cultura folk pela cultura de massas e pela cultura
erudita (projeção do folclore);
f) A recepção da cultura folk de elementos de sua própria cultura reprocessados
pela cultura de massa.
Mais tarde Joseph Luyten trouxe o termo Folkmídia e, em suas pesquisas, buscou
entender a relação que os meios de comunicação de massa estabeleceram com a cultura
popular:
Uma vez que a palavra mídia (ou “media) significa “meios”, isto é, meios, sistemas de
comunicação de massa e folk (com “k”, como queria Luiz Beltrão” é abreviação passível de
“folkcomunicação”, julgamos conveniente destacar o termo folkmídia como significativo
de utilização de elementos folkcomunicacionais pelos sistemas de comunicação de massa
(LUYTEN, 2006, p. 47).
Os estudos levam às duas vias: reconhecer a forma como os meios de comunicação
de massa se apropriam dos elementos da cultura popular e verificar a influência desses
veículos de comunicação na mesma.
A abrangência de possibilidades de pesquisa leva a uma enorme gama de exemplos,
fazendo com que a teoria seja aplicável a diversos objetos, sendo possível trabalhá-los
sob diversas perspectivas – como se pode verificar na sistematização de Benjamin, a
fim de refletir sobre a comunicação popular que se dá em variadas formas, inclusive na
comunicação de massa, disseminada por variados veículos, que tem como modelo mais
recente a internet. Ao estudar a comunicação da cultura popular, a Folkcomunicação é
o caminho escolhido para entender a forma pela qual a cultura popular se apropria da
internet para se comunicar.
MARACATU.ORG.BR
O Maracatu do Baque Virado, também chamado de Maracatu Nação, tem sua
origem entre os séculos XVII e XVIII, remetendo ao período de escravidão no Brasil.
Há divergências sobre a origem, no entanto, a versão mais aceita é a de que o Maracatu
tenha surgido a partir das coroações e autos do Rei do Congo, prática trazida pelos
colonizadores portugueses e que, posteriormente, foi permitida a realização da mesma
pelos senhores de escravos.
Os chamados Reis e Rainhas do Congo constituíam lideranças políticas entre os
cativos e tinham certo poder perante o restante da população. Eles acabavam por fundar
organizações que deram origem a diversas manifestações, dentre elas, o Maracatu do
Baque Virado. Além de cunho político, o Maracatu também tem seu aspecto religioso,
fortemente ligado ao candomblé ou xangô pernambucano.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Cultura popular e a comunicação no maracatu.org.br
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Figura 1. Site maracatu.org.br. Acesso em 03/02/2015.
Criado em 2005, o site www.maracatu.org.br coloca em prática um projeto para unir
e fortalecer o Maracatu, como afirmam os idealizadores em sua Carta de Intenção, que
está na 7ª versão (publicada em 06/07/2013):
“Acreditamos que o fortalecimento desta manifestação se dá no cotidiano dos
trabalhos realizados nas Nações e nos Grupos e na articulação entre todos eles, por meio
de ações de troca, compartilhamento do conhecimento e colaboração mútua.
Consideramos que a articulação dessa rede é muito importante para o fortalecimento
e a perenidade da cultura do Maracatu de Baque Virado no século 21 contribuindo para
que estes diversos valores e tradições sejam amplamente compartilhados entre seus
praticantes. (...)
O www.maracatu.org.br é uma ideia bem simples: construir de forma coletiva uma
plataforma que reúna páginas das Nações e dos Grupos de Maracatu em um grande
acervo com informações em texto, vídeos, fotos, áudios e etc. (...)
Nosso intuito é que as Nações e os Grupos tenham total autonomia na organização
e publicação de seus conteúdos e que seus sites/páginas formem um grande conjunto
de informações e referências sobre o Maracatu de Baque Virado, organizados pelas
próprias pessoas que ‘brincam’ o Maracatu.
É importante lembrar que este projeto não visa qualquer tipo de lucro, não tem e
não terá o objetivo de cobrar por nenhum tipo de trabalho. É uma iniciativa de pessoas
que vivem o Maracatu de Baque Virado, contribuindo para esta Cultura.”
De acordo com o site, os grupos que se definem por fazerem parte do Maracatu do
Baque Virado são aqueles que: “se utilizam da linguagem artística do Maracatu de Baque
Virado para compor outras musicalidades, promovendo misturas com diversos ritmos,
danças e instrumentações, sem muitas vezes limitar-se a instrumentos percussivos.”.
Também existe a diferenciação entre o que é chamado de Grupo de Maracatu – grupos
que não possuem vínculo religioso institucional, que trabalham com o Maracatu do
Baque Virado, mas que não promovem apresentações ou misturas, limitam-se a usar
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7572
Cultura popular e a comunicação no maracatu.org.br
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os instrumentos percursivos tradicionais, como a Alfáia/Alfaya, Bombo e Gongue, por
exemplo. Já as Nações de Maracatu dizem respeito ao tradicionalismo da manifestação,
com grupos seculares e que estão intimamente ligados à questão religiosa que vem de
matriz africana e/ou ameríndia, em apresentações que contam com personagens que
formam a chamada corte: Rainha, Rei, Dama do Passo, entre outros.
A página, como se propõe a uma tentativa de agrupar os grupos e nações de
maracatu, fez um mapeamento para saber onde estão esses grupos e, ao mesmo tempo,
faz uma ligação entre todos eles, além de também disponibilizar no site os endereços
digitais de todos os grupos que possuem blog´s ou páginas na internet.
Existe uma grande quantidade de grupos que estão no Estado de Pernambuco,
como o Maracatu Nação Porto Rico, Nação Estrela Brilhante de Igarassú, Nação Estrela
Brilhante de Recife, Nação Leão Coroado, Maracatu Nação Encanto da Alegria, Nação
de Maracatu Cambinda Estrela, Nação do Maracatu Encanto do Pina, Maracatu Nação
Almirante do Forte, todos eles com os respectivos links que levam à produção individual
desses grupos. Ainda existem indicações de outros grupos que não estão na internet
como Cambinda Africana, Nação Elefante, Gato Preto, Axé da Lua, Sol Nascente, Aurora
Africana, Nação de Luanda, Leão da Campina, Estrela Dalva, Oxum Mirim, Linda Flor,
Encanto do Dendê, Raizes de Pai Adão, Leão de Judá, Estrela de Olinda3.
Essa rede de grupos de maracatu congrega, atualmente, 27 sites e 370 usuários
cadastrados, que possuem login e senha para acessar o painel de administrador e ter a
oportunidade de criar conteúdos como postar o calendário de eventos ou as notícias
do que cada grupo vem trabalhando de maneira individual, mas que é de interesse a
todos os outros grupos e também aos visitantes do site.
Para ampliar o conhecimento da rede e agregar um maior número de grupos e
nações, o maracatu.org.br realizou um mapeamento dos brincantes no Brasil e também
pelo mundo, como pode ser observado na figura que segue:
Figura 2. Mapeamento dos Grupos e Nações de Maracatu no Brasil e também em outros países.
Acesso em 03/02/2015.
3. Dados retirados do site maracatu.org.br.
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Entre as atitudes propostas pelo site estão:
• Criação de sites: para ajudar os grupos a divulgarem suas ações e notícias, além
de apresentações;
• Mapeamento das ações: com o objetivo de se tornar realmente um coletivo, o
maracatu.org.br se dispõe a observar os todos os grupos envolvidos e a ajudar
na integração entre os próprios grupos e suas atividades;
• Formação de rede: também tem a intenção de proporcionar maior interação entre
os brincantes de maracatu por meio de contato de e-mails e do conhecimento
do que os outros estão fazendo;
• Fomento à projetos: busca ajudar os grupos a encontrar maneiras de propor
projetos, escrever e realizá-los e, como exemplo, são citados o Encontro dos
Grupos de Maracatu de Baque Virado de SP em 2010 e o projeto EncontroS,
foi iniciado em 2012 e que se estendeu nos outros anos, sendo que o evento de
2014 foi realizado na cidade de Campinas – SP.
O site também funciona como um acervo para a manifestação e dedica uma
parte para tratar da memória, com espaço que recebe vídeos além de outro local que
disponibiliza materiais acadêmicos sobre o maracatu para que os visitantes possam
consultá-los.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Folkcomunicação é a teoria que fala da comunicação dos marginalizados, aqueles
que não se enxergam retratados da forma como deveria pela mídia hegemônica, por
esse motivo buscam outras maneiras de se comunicarem entre si e com o mundo. Com
a internet, houve uma grande abertura para a disseminação de conhecimento e de culturas, que encontram nesse canal um jeito de se mostrarem ao mundo e de chegarem
a lugares que antes não poderiam ser alcançados, por conta das distâncias geográficas.
Uma manifestação que conseguiu encontrar na internet um canal de disseminação
e agregação de indivíduos é o maracatu, por meio dos integrantes que fazem parte do
maracatu.org.br. O site consegue agregar brincantes e manter uma boa interação com
os grupos e nações de maracatu espalhadas pelo Brasil, além de conseguir elaborar
projetos e promover encontros que culminam na colaboração para a perpetuação da
manifestação.
O site cumpre sua proposta de atuar como uma rede de grupos e nações de maracatu, ajudando a manifestação a crescer e, também, a se conhecer melhor, por meio
dos mapeamentos e do descobrimento de cada vez mais brincantes. Essa comunicação
praticada pelo maracatu.org.br é a nova forma pela qual a cultura popular passa a se
mostrar para o mundo, é uma nova abordagem da Folkcomunicação e que, mais uma
vez, se mostra eficiente e muito forte.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7574
Cultura popular e a comunicação no maracatu.org.br
Daira Martins Botelho
REFERÊNCIAS
BELTRÃO, L. (2004) Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do Campo: UMESP.
BENJAMIN, R. (2004) Folkcomunicação na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Comissão
Gaúcha de Folclore.
CANCLINI, N. G. (1996) Consumidores e Cidadãos – conflitos multiculturais da globalização.
Rio de Janeiro: UFRJ.
Encontro com Milton Santos ou o mundo visto do lado de cá. (2006) Rio de Janeiro: Caliban
Produções Cinematográficas. Documentário. Direção: Silvio Tendler. 90 minutos. DVD.
HALL, S. (1996) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
LUYTEN, J. M. (2006) Folkmídia: uma nova visão de folclore e de folkcomunicação. In:
SCHMIDT, Cristina (org.). Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e metodológicos. São Paulo: Ductor.
MARACATU.ORG.BR. Site. Acesso em 03/02/2015.
MARQUES DE MELO, José. (2008) Mídia e cultura popular: história, taxionomia e metodologia
da folkcomunicação. São Paulo: Paulus.
SANTOS, M. (2001) Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
6. ed. Rio de Janeiro: Record.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
7575
Tesouros enterrados nas redes sociais:
O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
Buried treasures in the social media:
The Plata Yvyguy imaginary on Twitter
A n d r i o ll i
de
Brites
da
Co sta 1
Resumo: Este trabalho trata da apropriação e ressignificação de elementos da
cultura popular a partir dos meios midiáticos. Parte da retomada de uma grande
escavação realizada em Capiatá – PY, com apoio governamental, para localizar
supostas 10 mil toneladas de ouro que estariam enterradas no local. Um tesouro
perdido que remete aos tempos da Guerra contra o Paraguai, conhecido no país
como plata yvyguy. Utilizando o termo como palavra-chave, foram identificados
88 tweets mencionando o assunto durante a primeira quinzena de agosto de
2013. A partir deles, o artigo explora as relações indissociáveis do imaginário
dos tesouros enterrados com os modos de sentir, pensar e agir daquele povo,
construindo um common ground ao qual se recorre para evocar imagens que
remetem ao inatingível, ao misterioso, ao desejado e ao duvidoso.
Palavras-Chave: Imaginário. Lenda. Folclore. Twitter. Paraguai
Abstract: This paper deals with the appropriation and redefinition of popular
culture elements by the Media. The reflections begin with the resumption of a
large excavation in Capiatá – PY, supported by the government, to locate alleged
10,000 tons of gold that are supposedly buried on the site. A lost treasure that
refers to the Paraguayan War, known locally as plata yvyguy. Using the term
as a keyword, we identified 88 tweets mentioning the subject during the first
half of August 2013. From them, the article explores the inseparable imaginary
relations of the treasures buried with the people’s ways of feeling, thinking
and acting, building a common ground used to evoke images that refer to the
unattainable, the mysterious, the desired and the doubtful.
Keywords: Imaginary. Legend. Folklore. Twitter. Paraguay.
O
PRESENTE TRABALHO trata da apropriação e ressignificação de elementos da
cultura popular a partir dos meios midiáticos. Parte das reflexões da dissertação
de mestrado defendida na Universidade Federal de Santa Catarina intitulada A
Lenda nas Páginas do Jornal – A presença do imaginário no jornalismo a partir da cobertura
dos tesouros enterrados no Paraguai (COSTA, 2013). Esta refletia sobre os modos como um
1. Doutorando em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
[email protected].
Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
Andriolli de Brites da Costa
veículo inserido no modelo ocidental de jornalismo (SOUSA, 2002) e, portanto, tributário de características como objetividade, factualidade e empirismo – o que implica em
um iconoclastismo inevitável - era incapaz de recusar-se a capturar uma manifestação
do imaginário popular que se deixavam evidenciar de maneira tão intensa naquela
sociedade, direcionando modos de sentir, pensar e agir (CARNEIRO, 1965) do povo
paraguaio. Este artigo, por sua vez, busca tangenciar a mediação jornalística. Buscamos
na emissão direta dos usuários das redes sociais o locus para compreender a força e a
manifestação do imaginário dos tesouros enterrados (plata yvyguy) no país, e os modos
como este se evidencia em tempos de conectividade.
Pela sua capacidade de engajamento a partir de uma comunidade de hubs espontâneos, além da facilidade em retroceder à postagens anteriores em determinados
intervalos de tempo, escolhemos o Twitter como plataforma para a seleção do objeto
empírico. Desta forma, utilizando a ferramenta Topsy, tomamos como corpus de análise todos os tweets publicados contendo o termo plata yvyguy durante os 15 primeiros
dias de agosto de 2013. O período contempla a retomada e a conclusão de uma grande
escavação em busca de supostas 10 toneladas de ouro enterrado no distrito de Capiatá,
localizado há cerca de 20 km da capital do país vizinho, Assunção. A escavação, que
contou com apoio da municipalidade, foi iniciada em maio de 2013, mas foi embargada
pelo Ministério do Meio Ambiente após a vala aberta de 20 metros de profundidade
chegar ao lençol freático. Retomada a partir de agosto, a escavação chegou ao fim sem
atingir seu objetivo. Os motivos para a não identificação do tesouro foram os mais
diversos, e evidenciam o elemento fantástico e, portanto, inverificável da lenda2. Esta foi
a maior escavação com permissão governamental no País desde o incidente no Parque
Caballero, em 2006, que chamou atenção até mesmo da mídia internacional – como
veremos mais a frente.
De posse deste levantamento inicial, foram catalogados um total de 88 tweets ao
longo da quinzena, compartilhados e disseminados pela rede a partir de quase 4 mil
interações (3579 retweets e 420 curtidas). Apenas a título de comparação, durante todo o
mês janeiro de 2014, foram publicados apenas 28 tweets contendo o termo, que receberam
66 retweets e 18 curtidas3. Os dados mostram, primeiramente, que a busca por tesouros
enterrados é tema constante nas redes sociais e está presente quase que diariamente na
timeline do Twitter. Evidenciam ainda que a emergência de um grande acontecimento
midiático, como o caso da escavação, engaja ainda mais os usuários em torno do tema.
Interessante apontar ainda, de antemão, que os usuários que mais publicaram sobre o
assunto durante o período analisado foram justamente os perfis de jornais. No entanto,
não foram eles os hubs de conteúdo mais relevantes. Nenhum veículo oficial de imprensa
figura entre os dez tweets sobre plata yvyguy mais compartilhados no microblog. Em uma
sociedade midiatizada, é impossível dissociar de qualquer maneira o comportamento
do usuário nas redes sociais de certo agendamento proposto pela mídia tradicional.
2. O responsável pela escavação relata que entre o meio dia e às 13h não se pode trabalhar, porque os
espíritos “protegem o tesouro”. Ver “Solo falta levantar la caja”, ABC Color, Asunción – PY, 05 Ago. 2013.
Disponível em: http://bit.ly/abc050813 . Acesso em: 23 ago. 2014.
3. Para fins de estatística, considerando também apenas os 15 primeiros dias de janeiro de 2014, cada tweet
teve uma média de 3,2 rts, com 0,7 curtidas. Já os que correspondiam aos 15 primeiros dias de agosto de
2014 contavam com média de 40,67 rts e 4,77 curtidas.
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Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
Andriolli de Brites da Costa
No entanto, o engajamento atingido pelos 58 diferentes usuários que postaram sobre o
tema certamente dá vistas a uma pluralidade muito maior de vozes cujos ecos remetem
ao imaginário dos tesouros enterrados no Paraguai, presente no país desde o período
colonial.
TESOUROS ENTERRADOS NO IMAGINÁRIO COLETIVO
Ao se falar em imaginário, o senso comum logo evoca a ideia de que se trata de
ficção, fantasia ou irrealidade - especialmente ao abordarmos narrativas culturais, como
mitos e lendas. Por vezes, o termo chega a ser utilizado para representar um pensamento
primitivo ou “pré-lógico”, dando vistas a uma concepção racionalista e cientificista do
real. Visão esta que, tornada hegemônica após o século das luzes, torna a razão científica e empirista o único meio de ascender ou de legitimar o acesso à verdade. Desta
forma, “mais que nunca, a partir do século XVII, o imaginário é excluído dos processos
intelectuais” (DURAND, 1994, p. 3). Da mesma maneira, a lógica binária que se institui
na sociedade ocidental desde o período socrático, é um dos elementos que leva a uma
razão iconoclasta. A Imagem – não a pictórica, mas as imagens mentais, construídas
com base no equipamento cultural - não pode ser caracterizada como sendo falsa ou
verdadeira. Esta dificuldade faz com que ela ganhe ares de incerteza e ambiguidade,
passando a ser caracterizada como “mestra do erro e da falsidade” (ibidem. p. 2).
Ao abordar imaginário nesta pesquisa, no entanto, filiamo-nos à perspectiva de
Gilbert Durand, segundo o qual este compreende o conjunto e as relações de imagens
constituídas tanto pelo nosso capital pensado quanto pelo não pensado (DURAND,
2002, p. 18). Este diz tanto sobre a realidade concreta e objetiva, quanto do real simbólico – dando a ver, como propõe Maffesoli, dimensões do racional, do onírico, do lúdico,
da fantasia, do imaginativo, do afetivo, do não-racional e mesmo do irracional (SILVA,
J. M. 2001, p. 76-77) Museu de todas as imagens produzidas e a produzir, o imaginário
está ligado a “uma rede etérea e movediça de valores e sensações partilhadas concreta ou virtualmente” (SILVA. J. M., 2006, p. 9). Para Wunenburger, “é possível falar do
imaginário de um indivíduo, mas também do de um povo, expresso no conjunto de
suas obras e crenças” (2007, p. 7) – ou por imagens simbólicas organizadas de maneira
dinâmica.
Tendo em vista que buscamos compreender uma manifestação do imaginário específica, centrada em uma localidade e em um povo, devemos levar em conta não somente
as questões atemporais e arquetípicas, mas também o contexto, as particularidades, o
componente cultural. A partir destas relações será possível evidenciar o potencial do
imaginário de estimular e inspirar pensamentos, sensações e mesmo ações concretas,
rompendo com o senso comum de que este se limita apenas ao plano das ideias. Responderemos, desta forma, a uma provocação feita por Wunenburger, ao refletir que,
enquanto o irreal parece opor-se ao real, “é difícil saber se um conteúdo imaginário
não tem realidade alguma no espaço ou no tempo (2007, p. 10). Partimos do pressuposto
afirmativo, e as ações dos paraguaios descritas neste trabalho nos servem de suporte.
O imaginário a tudo perpassa, não podendo ser reduzido ao âmbito da ciência, da
razão, da ideologia, da crença ou mesmo da cultura (SILVA, J. M, 2006, p. 51). Assim, a
cultura – e a cultura popular folclórica – seriam dimensões de sua manifestação. Dentro
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Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
Andriolli de Brites da Costa
do componente cultural, o mito ocupa papel fundamental, de modo que, mesmo com
nossa sociedade ainda estando imersa em uma lógica racionalista, as rupturas paradigmáticas das últimas décadas permitiram que, a partir da primeira metade do século
XX, alguns pesquisadores começassem a abandonar a visão do mito como “fábula”,
“invenção” ou “ficção”, e passassem a aceitar o mito tal qual este era compreendido pelas
sociedades arcaicas: uma “‘história verdadeira’ e, ademais, extremamente preciosa por
seu caráter sagrado, exemplar e significativo” (ELIADE, 2011, p. 7). Durand nos lembra
que “tentar fixar o mito é um pouco quando, na física quântica, se tenta fixar a partícula
microfísica - perde-se o seu conteúdo dramático” (2002, p. 97). No entanto, ao evitarmos
arbitrariedades, reconhecendo sua dinâmica, podemos capturar importantes insights
sobre a sociedade a qual nos debruçamos.
Histórias sobre a existência de fortunas escondidas permeiam o imaginário de povos
e grupos em todo o mundo. São os despojos de corsários e piratas – cuja localização
se descobre com mapas secretos; tesouros perdidos dos Incas, Maias e demais povos
ameríndios. O sonho de que há grandes recompensas aguardando para mudar a vida
daqueles sortudos ou inteligentes o suficiente para encontrá-las cativa e seduz, tornando
as lendas sobre o assunto extremamente difundidas e populares. Analisando narrativas
orais de diversos povos que compartilham histórias sobre tesouros enterrados, Durand
encontrou entre elas vários pontos de intersecção. Nestas o ouro seria uma substância
ambivalente que, ao mesmo tempo em que motiva riquezas e promove mudanças, também é a causa de desgraças. Sua ligação com o enterro e o enterramento remeteria ao
desejo de se assegurar conforto e riquezas no além. O ouro escondido seria por vezes
encerrado em um cofre ou caldeirão, fato que se comprova no Brasil e no Paraguai,
onde são comuns relatos do uso de panelas, potes ou botijas para guardar os tesouros
enterrados. “Esses assessórios habituais do tesouro lendário reforçam a polarização do
ouro no seio dos símbolos da intimidade” (2002, p.265).
Cascudo identifica as lendas de tesouros enterrados e do “ciclo do ouro” (ligado à
mineração) com os mitos ígneos e do fogo, e explica a ligação como uma reminiscência
do axioma clássico “tudo que reluz é ouro” (CASCUDO, 2002, p. 29). A uma conclusão
semelhante chegou Mário Cezar da Silva Leite em seu estudo dos mitos aquáticos matogrossenses. Nele, o autor apresenta várias versões que mostram como, mesmo sendo o
tesouro encontrado pelo buscador, este será incapaz de receber a recompensa caso não
tenha sido escolhido pela alma do guardião. “Neste caso, a pessoa vai encontrar, em
lugar de ouro, só carvão” (SILVA LEITE, 2003, p.111).
Em um livro totalmente dedicado ao assunto, escrito em 1911, Richard T. Paine
afirma que caçar tesouros não é um trabalho, mas um jogo que fascina e envolve o
homem, independentemente de sua reputação conservadora ou de sua postura ilibada
no dia a dia. O desejo do enriquecimento fácil é mais forte que as convenções sociais
e remete à infância e aos contos de fadas; ao pote de ouro no final do arco-íris. Paine
resgata algumas lendas sobre o assunto. De acordo com o autor, em algumas partes da
Boêmia (atual República Checa), os camponeses acreditam que uma luz azul flutua sobre
a localização dos tesouros enterrados, invisível aos olhos dos mortais exceto para aqueles destinados a encontrá-los (PAINE, 1911, p. 10). No Brasil as chamas fantasmagóricas
são frequentemente ligadas ao mito do Mboitatá. A serpente flamejante, protetora das
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Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
Andriolli de Brites da Costa
matas e algoz dos indígenas foi um dos primeiros mitos brasileiros registrados no País.
Outra manifestação bastante conhecida das luzes é a Mãe-de-Ouro, entidade que pode
apresentar-se ora como passarinho, ora como lagarto e às vezes como mulher formosa
de longos cabelos. Nas noites claras ela aparece como “bolota de fogo” com uma cauda
longa e brilhante; forma que assume quando transporta o tesouro escondido de um
lugar para o outro (CASCUDO, 2002).
A interferência de entidades protetoras é uma constante bastante frequente. Por
vezes estas são almas amaldiçoadas, que buscam os escolhidos para encontrar as riquezas
ocultas e libertá-las de suas sinas. Gilberto Freyre, na consagrada obra Casagrande e
Senzala, descreve esta situação. A ganância e a mesquinharia dos grandes proprietários
ao enterrar tesouros dentro de casa como aos mortos queridos explicaria o motivo
do porque as casas-grandes serem sempre assombradas, com “almas de senhores de
engenho aparecendo aos parentes ou mesmo estranhos, pedindo padres-nossos, avemarias, gemendo lamentações, indicando lugares com botijas de dinheiro” (FREYRE.
1963 p.15-16). Por outro lado, o espírito também pode ser o algoz do caçador de tesouros,
que fará de tudo para impedir seu avanço.
TESOUROS ENTERRADOS NO PARAGUAI
Em agosto de 2006, a população dos arredores do Parque Caballero, em Asunción,
capital do Paraguai, estranhou a intensa movimentação de máquinas pesadas que
revolviam a terra da região por horas a fio. A inquietação os fez chamar a imprensa – e
com ela a polícia, quando a vala já atingia 6 metros de profundidade. No dia seguinte, o
jornal trouxe a resposta, que ganharia ecos mesmo na mídia internacional: as máquinas
haviam sido contratadas para escavar o local em busca de tesouros que teriam sido
enterrados durante a Guerra contra Paraguai (1865 – 1870). Um tesouro que, na cultura
popular do país, recebe o nome de plata yvyguy. O termo é uma expressão em Guarani que
significa, literalmente, “tesouro embaixo da terra”. O imaginário de tesouros ocultos no
Paraguai existe desde o período da colonização – com a crença em El Dorado; atualiza-se
com a expulsão dos jesuítas do país em 1750 – que teriam “escondido” toda sua fortuna
acumulada pela gestão do monopólio do comércio; mas ganha realmente sua atual força
no país a partir da Guerra, quando a população precisava abandonar suas riquezas
acumuladas na expectativa de retomá-las após a partida dos invasores (GONZALES
TORRES, 1995).
O imaginário popular encarrega-se de multiplicar esses enterramentos, revestindo
a história de fantasia e gerando as mais diversas lendas. Uma das mais conhecidas é a
de que o próprio marechal Francisco Solano López, comandante das tropas paraguaias,
ciente de sua derrota, teria mandado encerrar toneladas e toneladas de ouro, que
corresponderiam ao Tesoro Nacional, em grandes carroças, que foram espalhadas por
todo o país e, posteriormente, enterradas. Algumas versões dão conta ainda de que os
espíritos daqueles que morreram para proteger o segredo do enterramento permanecem
presos à terra enquanto ele não for encontrado. Para livrar-se da missão, ora aparecem
em sonhos premonitórios, ora como línguas de fogo luminosas que mostram o caminho
da fortuna para aqueles predestinados a encontra-los. No entanto, caso aquele que escave
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Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
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em busca do tesouro não seja o “escolhido” ou não tenha “bom coração”, os espíritos
podem simplesmente mudar o tesouro de lugar.
A crença nas fortunas ocultas é tão forte nesta sociedade que o escritor Carlos
Villagra Marsal, por ocasião dos 200 anos de independência do País, afirma ser impossível ignorar em meio a todas as idiossincrasias do povo paraguaio “a grande diversão
nacional de todos esses anos: a busca por plata yvyguy”4. O próprio Villagra Marsal
apresentou e aprovou um projeto na Convenção Nacional Constituinte no qual se institucionaliza a propriedade de toda a riqueza do subsolo. “Se um proprietário acha
em sua terra é dele; se acha em terra fiscal deve dar metade ao estado, e se o encontra
em propriedade alheia deve compartilhar com o proprietário. Está legislado no código
civil”5. Assim foi no Parque Caballero, onde, caso encontrado, 50% do tesouro seria
destinado à municipalidade.
Plata yvyguy está presente no imaginário paraguaio de modo indissociável. Está nas
artes, na literatura, no cinema e no teatro. A peça há mais tempo em cartaz no país é
uma comédia que trata do tema, a Plata yvyguy rekavo. Recentemente foi eleita até mesmo
uma miss plata yvyguy6, Imerso nos modos de sentir, pensar e agir, a crença na lenda é
uma esperança mágica de ascenção social, uma oportunidade quase deus ex maquina
para deixar a situação de miséria, um sonho distante que move homens e mulheres
a tomar ações concretas e, por vezes trágicas. Como aponta o jornalista Javier Yubi,
repórter especial do principal diário de referência do país, o ABC Color7, centenas de
pessoas buscam tesouros enterrados todos os dias no Paraguai (COSTA, 2013, p. 82-83).
Esta operação, invariavelmente, leva a graves casos de invasão de propriedade pública
e privada, destruição de patrimônio histórico (como a escavação de antigas estações de
trem) ou mesmo acarretando em mortes e acidentes.
O hobby de caçador de tesouro enterrado – ou plata yvyguy rekaha – está presente em
todo o país e em todas as classes sociais (ibidem, p. 105). No caso do grupo que escavou o
Parque Cabbalero, este era encabeçado pelo então ministro da Suprema Corte paraguaia,
Victor Nuñes e pelo presidente do Superior Tribunal Militar, general Porfirio Ramírez.
Juntavam-se a eles seus dois advogados, um geofísico, um dentista e um arquiteto. O
que motivou a articulação destas pessoas foi a “descoberta” de fontes documentais
indicando que no local estavam enterradas 500 toneladas de ouro escondido. Ainda
hoje, sete anos após o acontecido, o assunto é retomado vez ou outra pela imprensa, e o
ministro mesmo destacando nunca ter encontrado “nem uma moedinha”, afirmou que
vez ou outra ainda é procurado para assessorar buscadores de tesouro que desejam
escavar legalmente nas terras do Estado8.
4. Ver Mitos y verdades sobre el paraguayo. ABC Color, Asunción – PY, 14 Fev. 2011. Disponível em: http://
bit.ly/abc140211 . Acesso em: 23 ago. 2014
5. Ver Plata Yvyguy, la gran distracción nacional. ABC Color, Asunción – PY, 14 Fev. 2011c. Disponível em:
http://bit.ly/abc140211a. Acesso em: 23 Ago. 2014.
6. Ver ¡Atajate! Apareció la Miss Plata Yvygúy. Hoy, Asunción-PY, 08 Ago. 2013. Disponível em http://bit.ly/
hoymisspy. Acesso em 10 Out. 2013.
7. Acesso em http://www.abc.com.py/
8. Ver Nuñez: “Nunca encontré ni una monedita”. ABC Color, Asunción – PY, 18 Fev. 2013. Disponível em:
http://bit.ly/abc180213. Acesso em 23 Ago. 2014.
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A história se repetiu recentemente, no dia 10 de maio de 2013, quando moradores
das vizinhanças denunciaram que funcionários públicos da cidade de Capiatá estariam
escavando uma das ruas da cidade em busca de plata yvyguy. O próprio prefeito, Antonio
Galeano, acompanhava as obras e informou que amigos seus receberam permissão para
realizar a escavação, mas que nenhuma máquina utilizada era da prefeitura e que o
visto era válido apenas para dois dias9. A escavação, no entanto, estendeu-se durante
toda a primeira quinzena de maio, sendo embargada e retomada mais tarde, durante a
primeira quinzena de agosto. A ação foi acompanhada de perto pela mídia tradicional
e gerou grande repercussão nas mídias nativas digitais.
TESOUROS ENTERRADOS NAS REDES SOCIAIS
Ao longo dos quinze dias de análise do período selecionado 59 usuários diferentes
postaram 88 tweets envolvendo – de uma forma ou de outra – o termo plata yvyguy10.
Dentre estes usuários, os perfis de veículos jornalísticos figuraram no primeiro e segundo
lugar entre os maiores postadores. As postagens começam no dia 03 de agosto, com um
dos 12 tweets que o Ultima Hora11 (segundo maior periódico de referência do país)
compartilhou sobre o assunto, angariando 284 interações no soma de todos os posts. Já
o ABC Color, o principal diário paraguaio, esteve logo atrás com 6 posts e 153 interações.
Figuraram ainda outros veículos, como o Periódico E’a ou o SNT Canal 9. Mais do que
isso, os comentários que buscaram evidenciar o caráter factual da busca pelos tesouros
enterrados frequentemente traziam trechos ou a chamada de matérias publicadas na
imprensa, juntamente ao link indicando a fonte do material.
Chama atenção, porém, o fato de que nenhum veículo midiático tenha figurado
entre os dez mais retweetados da análise. Como vimos anteriormente, os tesouros
enterrados fazem parte do repertório daquela sociedade. Repertório este que se faz
presente, independentemente de que a pessoa seja ou não partidário da crença na lenda.
É a esse common ground compartilhado que os paraguaios recorrem para evocar imagens
que remetem ao inatingível, ao misterioso e, por que não, ao duvidoso. “Não sei se
acredito em plata yvyguy ou em você”, comenta uma usuária. “Você é esta plata yvyguy
que tanto busquei, meu amor <3”, declara outro, que teve 156 rts – um dos posts com
mais interação do período.
Esta manifestação da cultura popular historicamente arraigada na sociedade
paraguaia é apropriada e ressignificada também a partir do contato com elementos da
tecnocultura ou da cultura de massas. “Acabo de utilizar #Shazam para buscar Plata
Yvyyguy” postou uma usuária fazendo referência ao aplicativo para dispositivos móveis
de identificação de músicas. Outro usuário, que assina como Mita’i Goku™12, brinca
de inventar um possível título de livro: “Harry Potter e o mistério de plata yvyguy em
Capiatá”, levando os tesouros enterrados paraguaios ao nível de uma pedra filosofal.
9. Excavan calle en “busca de tesoro”, en Capiatá. ABC Color, Asunción – PY, 10 Mar. 2013. Disponível em http://
www.abc.com.py/edicion-impresa/interior/excavan-calle-en-busca-de-tesoro-en-capiata-570608.html.
10. A tabela completa com todos os tweets catalogados está disponível em http://bit.ly/pytwitter1.
11. Acesse pelo link http://www.ultimahora.com/
12. Mita’i é “menino” em Guarani, e Goku faz referência a Son Goku, personagem do anime Dragon Ball
inspirado no folclore japonês.
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Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
Andriolli de Brites da Costa
Metáforas envolvendo futebol, o esporte mais difundido entre os paraguaios, também
recebe bastante atenção. Um usuário alega que, como jogador de futebol, Arnaldo
Castorino (atacante do Olimpia) era “um ótimo buscador de plata yvyguy”. Um segundo
brinca “Plata yvyguy em Capiatá = Copa Libertadores para o Cerro Poteño”. Sobre o
mesmo time, outro usuário sugere que o Cerro finalmente venceria se encontrasse
tesouros enterrados para comprar o passe de Messi e Neymar. Um quarto tweet, com
mais de 120 interações, faz ainda um alerta: “Se não te dedicas ao futebol com disciplina,
vai acabar buscando plata yvyguy, entendeu??? Hehehe”. Ainda que com pilhéria, mesmo
nesse caso a busca de tesouros é indicada como única alternativa de mudança de vida
para quem nada mais tem a perder.
O humor é presença constante nos tweets analisados, variando de uma ironia cínica
ao deboche despretensioso. Muitas vezes, no entanto, o gracejo vem acompanhado de
crítica política ou social. Característica que remete aos tempos do chamado periodismo
combatiente paraguaio do século XIX, quando durante guerras e conflitos era comum a
proliferação de periódicos de escárnio que “refletiam o típico humor paraguaio através
de ágeis artigos, comentários e versos escritos em guarani e castelhano” (TICIO, 2007).
Esta relação entre jornalismo e humor fica ainda mais evidente ao observar o tweet mais
compartilhado do período, contendo mais de 1000 interações (ver Tabela 1).
Tabela 1. Cinco postagens com o maior número de interações
Usuário:
@abccolor_me
Nome:
Data:
Interações:
ABC Color
06-08-2013
897 rts 125 like
Texto:
#Urgente El Diputado Oscar Tuma se habría caído en el pozo buscando plata yvyguy. Bomberos
trabajan para rescatarlo. pic.twitter.com/oTRe04Onkp
Link
https://twitter.com/abcolor_me/status/364714783653629952
Usuário:
@ttevicentejara
Nome:
Data:
Interações:
Fernando Caceres
03-08-2013
185 rts 22 like
Texto:
Petróleo en el Chaco. Uranio en Yuty. Plata Yvyguy en Capiatá. No te necesitamos Mercosur,
somos ricos.
Link
https://twitter.com/ttevicentejara/status/363811279611641856
Usuário:
@CarambaDiigo
Nome:
Data:
Interações:
Carambasowski
05-08-2013
156 rts 11 like
Texto:
Sos esa plata yvyguy que tanto busqué che amor <3
Link
https://twitter.com/CarambaDiigo/status/364559606124523521
Usuário:
Nome:
Data:
Interações:
@Ortizangel06
Angelito Ortiz
09-08-2013
132 rts 11 like
Texto:
Mbae plata yvyguy pio, si quieren plata trabajen !!! El trabajo es el camino al oro ..
Link
https://twitter.com/Ortizangel06/status/365893582588092416
Usuário:
Nome:
Data:
Interações:
@WalterEvers
Walter Evers
06-08-2013
111 rts 15 like
Texto:
Decir te quiero es fácil, lo difícil es encontrar colectivo y pronunciar bien “plata yvyguy”
Link
https://twitter.com/WalterEvers/status/364737678673059840
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Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
Andriolli de Brites da Costa
O perfil @abccolor_me é um exemplo bastante característico do universo das redes
sociais. Criado como um site de paródia, em que era possível redigir uma matéria com
a mesma identidade visual do periódico ABC Color, o endereço foi logo bloqueado
judicialmente pelo jornal. Assim, a brincadeira passou para o Twitter, onde o perfil
continua ainda hoje postando notícias falsas como se fosse o veículo de referência. A
postagem em questão, ao estilo breaking news, informa que o deputado colorado Oscar
Tuma13 havia sofrido um acidente ao buscar tesouros enterrados. A imagem que
acompanha o post, no entanto, é a de um burrico dentro de um poço.
Durante o período em que ocorriam as escavações em Capiatá, desenrolava-se
também uma greve nacional de funcionários dos transportes coletivos. O fato não passou
despercebido aos usuários, que especularam: “estavam buscando plata yvyguy para
pagar o subsídio às empresas de transporte”. Ou ainda, “não há ônibus porque todos os
motoristas estavam cavando em busca de plata yvyguy”, registra outro. Os dois assuntos,
que em nada se relacionam a não ser pela concomitância temporal, são unidos em uma
das frases que mais teve repercussão: “Dizer ‘te quero’ é fácil. O difícil é encontrar
ônibus e pronunciar bem ‘plata yvyguy’”.
A questão política está presente também naquele tweet que ficou em segundo
lugar entre os mais retweetados. “Petróleo no chaco. Urânio em Yuty. Plata yvyguy
em Capiatá. Não precisamos de você, Mercosul, somos ricos”. Interessante apontar
que em 2010 foi realmente localizada uma jazida contando 9 milhões de libras de
urânio em Yuty14, e petróleo foi localizado no Chaco em 201215. Como é difícil identificar a ironia intertextual, evidentemente o comentário pode ser uma brincadeira.
No entanto, ao trazer elementos factuais junto à plata yvyguy percebe-se que, mais do
que debochar dos tesouros, debocha-se do próprio Mercosul – que havia suspendido o país vizinho em 2012 após o impeachment relâmpago do presidente Fernando
Lugo, reforçando um nacionalismo próprio da cultura popular. Interessante que o
tweet objetifica a lenda, abordando o ouro escondido como uma riqueza tão concreta
quanto qualquer minério.
Por fim, cabe registrar ainda os comentários que são diretamente críticos à crença
nos tesouros enterrados, não convidando ao humor, mas ao enfrentamento. Exemplo
disso é manifesto no tweet (com 132 rts) que sugere: “se querem plata, que trabalhem!!!
O trabalho é o caminho para o ouro”. O comentário dá a ver uma lógica protestante
weberiana, que liga o laboro ao sucesso financeiro. Uma resposta possível, que evidencia
também as idiossincrasias do povo, foi postado por um usuário que provoca: “debochase dos buscadores de plata yvyguy, mas logo se vai rezar aos 5.900 santos católicos para
conseguir emprego e dinheiro”.
13. Envolvido constantemente em polêmicas, especialmente as que dizem respeito a nomeação de familiares
para seus gabinetes, o deputado é conhecido pelas declarações truculentas, como em “Voy a traficar influencia
hoy, mañana y siempre”. La Nación, Assunción-PY, 06 Nov. 2012, disponível em http://bit.ly/ln061112, acesso
em 23 Ago. 2014.
14. Ver Destacan el hallazgo de uranio en Yuty. ABC Color, Assunción-PY, 12 Nov. 2010, disponível em http://
bit.ly/abc121110, acesso em 23 Ago 2014.
15. Ver Paraguai anuncia petróleo abundante no Chaco. Info Exame, Sâo Paulo. 27 Nov. 2012, disponível em
http://bit.ly/info271112, acesso em 23 Ago. 2014.
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Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Narrativas de tesouros enterrados fazem parte da historiografia paraguaia. A escavação em busca do El Dorado oculto no subsolo paraguaio ganhou força especialmente
com a Guerra contra o Paraguai, um acontecimento que marcou fortemente o imaginário
coletivo daquele povo. Tendo em vista o panorama do pós-guerra, em 1870, com a morte
de seu chefe-de-estado, a dizimação de 80% da população masculina e boa parte da
feminina, a destruição da infraestrutura e o grande endividamento, é fácil compreender
a potencialidade do desejo de mudar de vida. De encontrar por meio do acaso, do sonho,
do sobrenatural - ou simplesmente da predestinação - um pote de tesouro no fim do
arco-íris que lhe livraria de todos os problemas.
No âmbito do imaginário, sabemos que este é “sempre desvio, divergência, apropriação, reinterpretação, releitura, desconstrução, reconstrução e nova afirmação” (SILVA,
2006, p. 51). Em diálogo com o pensamento de Edison Carneiro, sabe-se que o folclore,
ao mesmo tempo em que uma acomodação, é um comentário e uma reivindicação. Os
paraguaios não entregam suas vidas e suas esperanças à busca dos tesouros enterrados
apenas por ambição ou por inocente credulidade. Ao executarem estas ações, dizem
muito sobre uma sociedade que é ineficiente em fornecer possibilidades de ascensão
social e de melhores perspectivas de vida, levando a população a se apagar ao lendário
e ao fantástico. Plata yvyguy planta suas raízes no passado do povo paraguaio, mas
também se projeta como a voz do presente no futuro (CARNEIRO, 1965, p. 2).
A lenda leva homens e mulheres de várias idades a escavarem fossas de 20 metros
de profundidade mesmo com o risco do desmoronamento, a invadirem casas abandonadas independente dos perigos envolvidos, a escavarem as paredes de antigas estações
ferroviárias sem se importar com a vigilância local ou mesmo com a polícia. O tema é
tão presente que está inserido no Código Civil, impulsiona acordos entre empreiteiros e
prefeitos; leva políticos a arriscarem seus mandatos em tráficos de influência e desvios
de verbas públicas na certeza de que serão capazes de desenterrar toneladas e mais
toneladas de ouro. A lenda tornou-se parte do dia a dia, do modo de habitar o mundo
como propõe Susca:
As palpitações, as criaturas e as recriações do imaginário coletivo são, portanto, testemunhas
vívidas – intangíveis, contudo, estruturantes, presentes na nossa vida emocional e onírica, mais do que na elaboração racional – das novas modalidades através das quais se vai
transformando a experiência percebida, o modo de habitar o mundo (SUSCA, 2007, p. 79).
Assim, marcado nos modos de sentir, pensar e agir daquele povo, plata yvyguy
ganha espaço nas redes sociais não apenas como um comentário factual – ainda que,
em uma sociedade midiatizada, a presença do jornalismo nos assuntos não deva ser
ignorada. Os tesouros enterrados aparecem ligados a qualquer assunto, ou qualquer
temática. São, afinal, a grande idiossincrasia daquele povo. Sinônimo de esperança e
de desespero, de desejo e deboche, os tesouros hesitam no universo fantástico entre a
realidade histórica e objetiva e a realidade do sonho e do maravilhoso. Da crítica ácida
ao gracejo despretensioso, o imaginário das fortunas ocultas da vazão até mesmo a
sutileza de uma piada bastante retweetada que pergunta: “Acá no esta el plata yvyguy?
– 這裡有一個朋友”16.
16. “Aqui não há plata yvyguy? – Não. Aqui há um amigo”, em tradução livre.
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Tesouros enterrados nas redes sociais: O imaginário de Plata Yvyguy no Twitter
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Dissertação (Mestrado em Jornalismo) – Programa de Pós-graduação em Jornalismo.
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