2015 - CBHA

Transcrição

2015 - CBHA
ISSN - 2236-0719
Museu Nacional de Belas Artes - Rio de Janeiro
National Museum of Fine Arts
Rio de Janeiro - 2015
Sobre a imagem: Cortesia do Gabinete de Estudos Arqueológicos de
Engenharia Militar em Lisboa.
“Configuração da entrada da barra de Goa; Prospecto que mostra a praça de Dio vista
da parte do mar em distancia de meya legoa; Configuração que mostra a entrada
do Rio de janeiro em distancia de meya legoa ao mar; prospeto que mostra a Ilha de
Mozambique estando no seu porto”.
Image: Courtesy of the Military Engineering Archaelogical Studies Office in
Lisbon.
“Setting the entrance of Goa bar; Prospectus shows that the square of Dio view of the
sea in distance of a league meya; Configuration showing the entrance of Rio de Janeiro
in distance of a league meya the sea; Prospect showing the Mozambique Island being
in its port .“
Museu Nacional de Belas Artes - Rio de Janeiro
National Museum of Fine Arts
Rio de Janeiro - 2015
Diretoria do CBHA - Comitê Brasileiro de História da Arte/ Board of CBHA - Brazilian Committee of Art History
Claudia Valladão de Mattos (UNICAMP), presidente
Roberto Conduru (UERJ), vice-presidente
Maria Berbara (UERJ), secretário
Mirian Nogueira Seraphim, tesoureira
Novos Mundos: Fronteiras, Inclusão, Utopia
International Conference New Worlds: Frontiers, Inclusion, Utopia
Comitê de Organização/Organizing Committee
- Ana Maria Tavares Cavalcanti (UFRJ)
- Arthur Valle (UFRRJ)
- Camila Dazzi (CEFET/RJ)
- Paulo Knauss (UFF)
- Rogéria de Ipanema (UFRJ)
- Vera Beatriz Siqueira (UERJ)
Comitê Científico/Scientific Committee
- Alexandre Ricardo dos Santos (UFRGS)
- Camila Dazzi (CEFET/RJ)
- Emerson Dionisio G. de Oliveira (UFB)
- Letícia Squeff (UNIFESP)
- Luiz Alberto Ribeiro Freire (UFBA)
- Maria Elizia Borges (UFG)
Comitê de Organização e Científico/ Organizing and Scientific Committee
- Roberto Conduru (UERJ/CBHA)
- Maria Berbara (UERJ/CBHA)
- Ana Magalhães (USP/CBHA)
- Thierry Dufrêne (INHA/CIHA)
- Jens Baumgarten (UNIFESP/CBHA
- Claudia Mattos (UNICAMP/CBHA)
- Peter Schneemann (Univ. Bern/CIHA)
- Maria Isabel Baldassare (UNSAM))
- Maria Clara Bernal (Universidad de Los Andes)
Novos Mundos: Fronteiras, Inclusão, Utopia/New Worlds: Frontiers, Inclusion, Utopia
Realizadores/Organizers
- Comitê Brasileiro de História da Arte - CBHA
- Comité International de l’Histoire de l’Art - CIHA
Correalizadores/Partnerships and Sponsors
- Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
- Comité International de l’Histoire de l’Art - CIHA
- Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
- Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
- Universidad de Los Andes, Bogotá, Colômbia
- Universidad Nacional San Martin, Buenos Aires, Argentina
- Centro Federal de Educação Tecnológica/Rio de Janeiro - CEFET/RJ
- Universidade Federal Fluminense - UFF
- Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
- Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ
- Museu de Arte do Rio - MAR
- Museu Histórico Nacional - MHN
- Museu Nacional de Belas Artes - MNBA
- Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES
- Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ
- Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP
- Universidad de Los Andes, Bogotá, Colômbia
- Universidad Nacional San Martin, Buenos Aires, Argentina - UNSAM
- Centro Federal de Educação Tecnológica/Rio de Janeiro - CEFET/RJ
- Southern Methodist University, Dallas, USA - SMU
- The Getty Foundation, Los Angeles, USA
- Terra Foundation, Chicago, USA
- Goeth Institut
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C72 Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte (35: 2015: Rio de Janeiro -RJ)
Anais do XXXV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Novos Mundos:
Fronteiras, Inclusão, Utopias, Rio de Janeiro, RJ, 24 - 29 de agosto de 2015/Organização:
Ana Maria Tavares Cavalcanti/Arthur Valle/Camila Dazzi/Paulo Knauss/Rogéria de
Ipanema/Vera Beatriz Siqueira - Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro de História da Arte CBHA, 2016 [2015].
324 p.: 16 x 23 cm: ilustrado
ISSN: 2236-0719
1. História da Arte. I. Comitê Brasileiro de História da Arte. II. Anais do
XXXV Colóquio do CBHA.
CDD: 709.81
Sumário | Summary
Comunicações | Communications
09
Apresentação/Presentation
História da Arte: conceitos, teorias, fronteiras
13
Felipe Soeiro Chaimovich
Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP
O jardim paisagístico e o falso problema da preservação da natureza
The landscape garden and the false problem of the preservation of nature
21
Nelson Pôrto Ribeiro
Universidade Federal do Epírito Santo - UFES
O cosmos e suas fronteiras: a noção de um universo finito na cultura lusa barroca
The cosmos and its borders: the notion of a closed universe in the baroque culture
29
Sonia Gomes Pereira
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
A historiografia da arte no Brasil no século XIX: um problema de fronteira, inclusão e utopia
The historiography of art in Brazil during the 19th century: a problem about frontiers, inclusion and utopia
39
Stéphane Denis Albert René Philippe Huchet
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Anos 1960: identidades compartilhadas entre vanguardas brasileiras e européias?
Sixties: divided identities between brazilian and european avant-gardes?
Arte e contemporaneidade: meios e poéticas
47
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
Universidade de Brasília - UnB
A utopia fotográfica em museus de arte
The photographic utopia in art museums
57
Maria do Carmo de Freitas Veneroso
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Quanto ao livro ou aproximações entre livros de artista e livros raros
About the book or similarities between artists’ books and rare books
69
Maria Lúcia Bastos Kern
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Encontro íntimo com estranhos e estrangeiros: arte em casa e a coleção Ferreira das Neves
Brazilian and south american vanguards: political strategies and aesthetics
79
Maria Luisa Luz Tavora
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Xilogravura:Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário Popular
Woodcut: From Expressionist Poetry to the Eloquence of the Line and Folklore
Arte e Brasil: identidades e alteridades
91
José Augusto Costa Avancini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
A pintura de paisagem como índice identitário da Nação, Brasil: 1930 - 1970
Landscape painting as an indexof the identity of the Nation, Brazil: 1930 - 1970
99 Rogéria de Ipanema
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Imigrante ou circulante? Fora e dentro das impressões da imagem da política brasileira
Immigrant or circulating? Outside and inside the Brazilian political image prints
Espaços expositivos: da casa à cidade
107
Bianca Knaak
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Utopias do lugar: arte pública, espaço público, intervenção artística urbana
Utopias of the place: public art, public space, urban artistic intervention
119
Marize Malta
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Encontro íntimo com estranhos e estrangeiros: arte em casa e a coleção Ferreira das Neves
Intimate encounter with strangers and foreigners: art at home and the Ferreira das Neves’ collection
129
Sandra Makowiecky
Universidade do Estado de Santa Catarina - UESC
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros
The first public exhibition spaces in Brazil: Xavier of the Shells and Xavier of the Birds
Arte e contemporaneidade: conceitos e estratégias
147
Angela Maria Grando Bezerra
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Transversalidades entre espectador e obra, em instalações de Cildo Meireles
Transversalities between spectators and artworks in the installations of Cildo Meireles
155
Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Apontamentos sobre Beau Geste Press e sua contribuição nos anos 1970
Notes on Beau Geste Press and its contribution in the 1970s
Discursos expositivos e curatoriais
165
Elisa de Souza Martínez
Universidade de Brasília - UnB
Isolados ou integrados: coleções etnográficas e a modernidade brasileira
Isolated or integrated: ethnographic collections and Brazilian modernity
173
Marilia Andrés Ribeiro
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Fotografia e Natureza: uma proposta curatorial
Photography and nature: A curatorial proposal
183
Neiva Maria Fonseca Bohns
Universidade Federal de Pelotas - UFPEL
A produção artística como texto histórico: o caso da 31ª Bienal de São Paulo
The contemporary artistic production as a historical text
193
Rosana Pereira de Freitas
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Onde fica a fronteira entre a China e o Brazil?
Where is the border between China and Brazil?
Tradições em trânsito: permanências e transformações
209
Angela Brandão
Universidade Federal do Estado de São Paulo - UNIFESP
A contenda entre um carpinteiro de móveis e o escrivão de seu ofício na Lisboa do século XVIII
The conflict between a furniture carpenter and the actuary of his craft in Lisbon eighteenth century
219
Cybele Vidal Neto Fernandes
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
A longa duração do grotteschi e suas múltiplas faces
The long duration of grotteschi and its many faces
227
Luiz Alberto Ribeiro Freire
Universidade Federal da Bahia - UFB
A Paixão de Cristo por José Joaquim da Rocha, depois de Adrien Collaert
The Passion of Christ, by José Joaquim da Rocha, after Adrien Collaert
239
Maria Elizia Borges
Universidade Federal de Goiás - UFG
Arte funerária; escultura italiana; Brasil; século XX
Brazil’s enchantment for the Italian funerary art and the circulation of sculpture works
Outros circuitos, novos trânsitos
253
Almerinda da Silva Lopes
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Mail Art na América Latina: rede marginal de comunicação em um mundo sem fronteiras
Mail Art in Latin America: marginal communications network in a world
261
Marco Antonio Pasqualini de Andrade
Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Circuitos de Arte à oeste do rio São Francisco
Art circuit at west of São Francisco river
269
Paula Viciane Ramos
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
1958, I Salão Pan-americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites da utopia
1958, I Pan-American Exposition of Institute of Fine Arts of RS: the limits of utopia
283
Renato Palumbo Dória
Universidade Federal de Uberlândia - UFU
“No es facil”: estudos comparados da História da Arte do Brasil e de Cuba
“No es facil”: comparative studies of the History of Art of Brazil and Cuba
Apresentação de Pôsteres | Posters Presentation
295
Maria Berbara
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Arte e Zoologia: Representações do tatu e a construção do Novo Mundo na primeira época moderna
Art and Zoology: Representations of the armadillo and the construction of the New World in the early modern times
303
Mirian Nogueira Seraphim
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato Grosso
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de ideias
The retrospectives of Visconti: remembrance, construction and idea circulation
317
Silvia Miranda Meira
Universidade de São Paulo - USP
Uma historia da arte mestiça
The melting pot of brazilian art history
Apresentação |
Nas últimas décadas, a história da arte tem se movido em direção a novas configurações
teóricas, impulsionada pelo desejo de se tornar mais global e abraçar outras tradições de arte
para além daquela dita “ocidental.” Hoje em dia, ideias sobre redesenhar o mapa da história da
arte e rever as noções de espaço e lugar ocupam posições centrais na disciplina. A discussão
tem sido particularmente fértil na produção de conhecimento sobre as relações entre os
diferentes locais ao redor do globo. Todo esse debate leva à percepção de que não há vista
totalizante sobre o campo da história da arte: cada posição implica um novo mapa e novas
relações entre objetos e ideias, portanto, novas narrativas.
O XXXV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, simultâneo e vinculado ao Colóquio
Internacional em parceria com o Comitê Internacional de História da Arte (CIHA), cujo tema
é Novos Mundos: Fronteiras, Inclusão, Utopias, propõe a análise de algumas das questões
implícitas nesse processo de expansão do campo da história da arte, a partir da perspectiva
dos pesquisadores no Brasil. Propomos a explicitação de narrativas que tomem o país como
ponto de partida para a discussão dessas relações entre próprio e global, contribuindo para
a revisão dos discursos tradicionais que enfatizam a centralidade da Europa nos processos de
construção e estruturação de arte e da história da arte na América Latina. Foram priorizadas
as propostas que tratem de temas afins a essa questão geral, tais como:
1. os diálogos culturais e artísticos entre as diferentes tradições e matrizes existentes na
região, como as nativas, indígenas, africanas, europeias, orientais, etc.;
2. o papel da imigração e da circulação de objetos, práticas e ideias na criação do
complexo mapa da arte e de sua história;
3. a centralidade do lugar e do espaço para a arte contemporânea e para as diferentes
manifestações artísticas e culturais vinculadas a discursos identitários;
4. a função das instituições e do mercado no âmbito do desenvolvimento da nova
geografia artística;
5. as questões relativas à inclusão e exclusão e aos locais de encontro ou às fronteiras
entre arte e vida, arte e tecnologia, humano e pós-humano.
Presentation |
In recent decades, art history has been moving towards new theoretical settings, driven by the
desire to become more global and embrace other art traditions beyond the Western domain.
Today, ideas about redrawing the map art history and review the notions of space and place
occupy central positions in the discipline. The discussion has been particularly fertile in the
production of knowledge about the relationship between different locations around the
globe. All this debate leads to the perception that there is no totalizing view of the art history
field: each position implies a new map and new relationships between objects and ideas, so
new narratives.
The XXXV Conference of the Brazilian Art History Committee (CBHA), simultaneous and linked
to the International Conference organized in partnership with the International Committee
of Art History (CIHA), whose theme is “New Worlds: Frontiers, Inclusion, Utopia”, proposes the
analysis of some of the issues implicit in this process of expansion of the field of art history,
from the perspective of the researchers in Brazil. We propose the explanation of narratives
that take the country as a starting point for discussion of these relationships between the local
and the global, contributing to the revision of the traditional speeches that enphasize the
centrality of Europe in the processes of structuring art and art history fields in Latin America.
Priority were given to proposals that address issues related to this general question such as:
1. the cultural and artistic dialogue between the different existing traditions and matrix
in the region as the native, indigenous, African, European, Oriental, etc.;
2. the role of migration and the movement of objects, practices and ideas in creating
the complex map of art and its history;
3. the centrality of place and space for contemporary art and the diferente artistic and
cultural events linked to identity discourses;
4. the role of institutions and the market under the new artistic geography
development;
5. issues concerning the inclusion and exclusion and the places of encounters or the
frontiers between art and life, art and technology, human and post-human.
História da Arte: conceitos, teorias, fronteiras
O jardim paisagista e o falso problema da preservação da natureza - Felipe Soeiro Chaimovich
O jardim paisagista e o falso problema da preservação da natureza
Felipe Soeiro Chaimovich
Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP
Resumo: A história do jardim paisagístico pode explicar a confusão entre natureza e
jardim no discurso ecológico preservacionista. A contribuição brasileira a essa confusão
é central, na medida em que Burle Marx se tornou uma referência para o jardinismo atual
e para a politização da ecologia, defendendo uma ação preservacionista da natureza.
O jardim paisagístico é associado à produção de Bridgeman. Ele mudou a história dos
jardins ocidentais ao suprimir as divisões que tradicionalmente separavam a área interna
dos jardins da área externa a esses. Tal partido paisagístico foi utilizado no Hyde Park,
de 1733.
Nos anos seguintes, Kent reformou alguns dos jardins de Bridgeman, aplicando princípios
da pintura, em particular do colorismo pictórico. Kent apagou elementos lineares, deixando
uma vegetação livre do tratamento topiário, criando o efeito das pinceladas grossas de
tinta. Com Kent, o jardim paisagístico adotou definitivamente elementos compositivos da
pintura.
“Capability” Brown adicionou o aproveitamento da topografia do terreno ao projeto dos
jardins paisagísticos. Ele descrevia o próprio trabalho como uma relação sintática entre
elementos topográficos, concebendo o jardim como uma estrutura linguística.
Os parques de Londres, construídos conforme princípios do jardim paisagístico de
Bridgeman, Kent e “Capability” Brown, tornaram-se modelo de parques urbanos ao redor
do mundo, desde o século XIX. No Brasil, os princípios do jardim paisagístico foram
aplicados inicialmente por Glaziou a parques públicos do Rio de Janeiro.
Burle Marx reconheceu Glaziou como seu antecessor, aplicando também princípios da
pintura em seus projetos de jardim. Burle Marx utilizou elementos da pintura cubista e
da abstrata, projetando-se internacionalmente como referência do jardinismo. Mas, ao
transitar para o discurso político no campo da ecologia, Burle Marx passou a confundir
conceitos do jardinismo paisagístico com o conceito de natureza, pois ele estendeu a
estrutura sintática estável do jardim paisagístico para sua concepção de natureza, como
se essa tivesse uma forma a ser preservada. O debate ecológico tem reproduzido essa
confusão ao defender a preservação da natureza, tal como nos discursos de Burle Marx.
Palavras-chave: jardim paisagístico; ecologia; Bridgeman; Burle Marx.
Abstract: The history of the landscape garden can explain the confusion between nature
and garden in the ecological discourse. The Brazilian contribution to this confusion is
13
paramount, since Burle Marx became a landmark for contemporary landscape design and
for the politization of ecology, since he spoke for the preservation of nature.
The landscape garden is associated with Bridgeman’s work. He changed the history of
the Western gardens by taking away the divisions that used to separate the inner area of
gardens from the outside. This was aplied to the Hyde Park, of 1733.
In the following years, Kent modified some of Bridgeman’s gardens by applying come
principles of painting, in particular from the colorist painting. Kent eliminated the linear
elements, leaving a vegetation free of topiary finishings, and creating the effect of thick
brush strokes. With Kent, the landscape garden adopted compositional elements from
painting once and for all.
“Capability” Brown contributed to the landscape gardens by taking advantage of the
topography of the garden grounds. He described his own work as a sintactic relationship
among the topographic elements, conceiving the garden as a linguistic structure.
The London parks, built according to the principles of Bridgeman, Kent, and “Capability”
Brown, became an international standard for urban parks around the world since the XIXth
century. In Brazil, the principles of the landscape garden were first applied by Glaziou in
the public parks from Rio de Janeiro.
Burle Marx aknowledged Glaziou as his predecessor, and he also applied painting
principles to his garden projects. Burle Marx used elements from the Cubist and the
abstract paintings, acquiring international relevance in garden design. But when he
spoke about political ecology, he confused concepts from the landscape garden with the
concept of nature, because he extended the stable structure of the landscape garden to
his conception of nature, as if nature had a form to be preserved. The ecological debate
has been reproducing this confusion by defending the preservation of nature, as in Burle
Marx speeches.
Keywords: landscape garden; ecology; Bridgeman; Burle Marx.
O conceito de jardim paisagista aproxima a obra de arte da natureza. Ele foi explicitamente
formulado em 1728, na obra de Robert Castell intitulada “As vilas dos antigos ilustradas”, na qual
o autor sintetiza dois aspectos que estavam sendo simultaneamente debatidos na Inglaterra: a
irregularidade dos jardins chineses e o elogio da vida bucólica de tradição latina.
Por um lado, o chinesismo em jardins foi introduzido na Inglaterra por William Temple,
que publicou, em 1692, o opúsculo Nos Jardins de Epicuro; ou Sobre Jardinagem no Ano de
1685, empregando o conceito de “sharawadgi”. Essa palavra certamente não era chinesa,
como afirmava erroneamente o autor, sendo talvez uma corruptela do japonês1 ou do persa.2
1
Cf. Richardson, Tim; The arcadian friends. Londres: Bantam Press, 2008, p. 30.
Cf. Liu, Yu; Seeds of a Different Eden: Chinese Gardening Ideas and a New English Aesthetic Ideal. Columbia SC: University of
South Carolina Press, 2008, p. 18.
2
14
O jardim paisagista e o falso problema da preservação da natureza - Felipe Soeiro Chaimovich
Temple teria sido informado sobre os princípios da jardinagem chinesa por meio dos escritos
de jesuítas empregados pela corte imperial da China desde o início do século 17, ou pelos
relatos de participantes das três missões comerciais holandesas na China, com os quais teria
conversado durante sua estadia na Holanda.3 Temple opôs da seguinte maneira o jardim chinês
ao jardim europeu: os chineses “dizem que um menino que consegue contar até cem consegue
plantar aleias de árvores em linha reta (...), no cumprimento e na extensão que quiser. Mas a
imaginação [dos chineses] é empregada ao máximo em inventar figuras em que a beleza seja
grandiosa e encha os olhos, mas sem qualquer ordem ou disposição das partes que possa ser
observada comum ou facilmente. E, embora nós não tenhamos qualquer noção desse tipo de
beleza, eles têm uma palavra particular para expressá-la; e, quando acham que algo encheu
seus olhos à primeira vista, dizem que sharawadgi está bem ou é admirável, ou alguma outra
expressão de apreço. E sempre que se observa o trabalho nas melhores roupas indianas [sic.],
ou as pinturas em seus melhores biombos ou porcelanas, encontrar-se-á que sua beleza é
toda dessa espécie de falta de ordem”.4
Ao tomar como termo de comparação o jardim europeu composto segundo uma geometria
axial que dispõe metades simétricas, Temple atribui ao jardim chinês uma falta de ordem. Tratase de uma livre interpretação dos princípios da jardinagem chinesa, que se pautam pela criação
de um ambiente contemplativo a partir de dois elementos estruturantes: a montanha e a água.
Para tal, o jardinista chinês inicia sua obra pela geomancia em busca da água existente no
terreno a ser ajardinado,5 como indica o primeiro tratado sobre jardins da China, escrito por
Ji Cheng, na década de 1630, época em que os jesuítas estavam enviando seus relatos à
Europa. A fonte de água irá possibilitar a construção de montanhas, que devem sempre ter um
lago ou riacho na base. As peculiaridades de cada terreno, indicadas pela geomancia, levam
à multiplicação de vistas pela exploração das diferenças específicas do lugar. A deambulação
pelo jardim assim composto levaria à sensação de se estar andando numa pintura, que também
é composta por cursos d’água e montanhas, como escreve Ji Cheng: “Seus pensamentos
viajarão para além dos confins deste mundo de poeira [i.é, de vaidade], e você sentirá como se
estivesse passeando dentro de uma pintura”.6
A variedade de vistas foi entendida por Temple com ausência de ordem, pois de fato
inexiste um centro ou um eixo geométrico7 gerador do jardim chinês. O “sharawadgi” deve,
pois, ser tomado como um elemento de chinesismo, ou seja, como interpretação eurocêntrica
da China. Nesse sentido, Temple fez um primeiro experimento de “sharawadgi” em seu jardim
de Moor Park, antes de 1700: numa seção da propriedade, ele dispôs trilhas curvas e vistas
assimétricas, incluindo um curso d´água não retilíneo. Na primeira década do século 18, Temple
3
Cf. Liu, Yu; Seeds of a Different Eden: Chinese Gardening Ideas and a New English Aesthetic Ideal. Columbia SC: University of
South Carolina Press, 2008, p. 23.
4
Temple, William; Upon the Gardens of Epicuro; or Of Gardening in the Year of 1685. Londres: Pallas, 2004, p. 53.
5
Cf. Cheng, Ji; The Craft of Gardens. Xangai: Better Link Press, 2012, p.47.
6
Cheng, Ji; The Craft of Gardens. Xangai: Better Link Press, 2012, p. 118.
O eixo ordenador é evidente nos jardins feitos à maneira de André Le Nôtre, contemporâneo de Temple. Cf. D’Argenville, AntoineJoseph; La théorie et la pratique du jardinage. Arles: Actes Sud/ ENSP, 2003, p. 53.
7
15
também interviu decisivamente no desenvolvimento do jardim do conde de Carlisle, no
Castelo Howard: Temple opunha-se ao jardinista George London e convenceu o proprietário
a impedir a derrubada de árvores existentes no bosque Wray para a construção de uma
avenida retilínea; finalmente, a área teve suas árvores preservadas e ainda ganhou trilhas
curvas.8
Por outro lado, o tema bucólico na literatura latina foi revisitado na Inglaterra com a
ascensão da casa de Hanover ao trono inglês. Desde 1701, a eleitora Sofia, duquesa de
Hanover, tornara-se sucessora da coroa inglesa, sendo visitada por cortesãos ingleses para a
fabricação de alianças. A casa de Hanover, por sua vez, estava construindo, desde a década
de 1690, uma imagem ligada a sua ascendência italiana, motivo que levou à adoção da
arquitetura de Palladio9 como referência para sua vila de Herrenhausen. Familiares e aliados
dos Brunswick-Lüneburg adotaram os mesmos preceitos arquitetônicos em obras como a
vila de Lietzenburg, nos arredores de Berlim. Na Inglaterra, o “paladianismo” em arquitetura
foi acompanhado pelo elogio da literatura latina que descrevia as vilas, tipo de residência
revisitada por Palladio, cujos projetos constam de sua obra “Quatro Livros de Arquitetura”,
traduzido para o alemão em 1698.10
Alexander Pope foi um partidário dos Hanover na Inglaterra e um dos principais
elogiadores de Virgílio. Assim, Pope passa a defender uma prática de jardinagem que
integrasse o parque às áreas agrícolas circunvizinhas, tal como Virgílio descrevia haver
nas vilas latinas. Em termos práticos, iniciava-se uma crítica aos elementos divisórios dos
jardins, como a topiaria de muros verdes. Pope foi um dos convocados para uma conferência
promovida pela esposa do príncipe herdeiro princesa Caroline, em 1719, para escolher o
jardinista de sua futura vila de Richmond Lodge. Caroline era casada com o futuro George II,
nascido em Hanover e vindo para a Inglaterra quando seu pai Geoge I tornou-se o primeiro rei
inglês da família Brunswick-Lüneburg, em 1715. Pope escreveu uma carta para seu patrono
conde de Bathurts, na qual descreve uma das linhas defendidas no debate de setembro de
1719: “alguns estavam apaixonadamente contra a poda de cercas-vivas, que chamam de
paredes verdes”.11
De fato, o jardinista escolhido pela rainha Charles Bridgeman tomou o partido de
integrar o parque às áreas agrícolas circunvizinhas. Pope colaborou com Bridgeman no
planejamento do jardim de Richmond Lodge e no jardim da vila de Marble Hill, propriedade
da amante do marido da princesa Caroline, tendo sido ambos feitos simultaneamente às
margens do Tâmisa, na primeira metade da década de 1720. Nos dois jardins, Bridgeman e
8
Cf. Liu, Yu; Seeds of a Different Eden: Chinese Gardening Ideas and a New English Aesthetic Ideal. Columbia SC: University of
South Carolina Press, 2008, pp. 23-4.
9
Cf. Arciszewska, Barbara; The Hanoverian Court and the Triumph of Palladio: The Palladian Revival in Hanover and England c.
1700. Varsóvia: Wydawnictwo Dig, 2002, p. 40.
Cf. Arciszewska, Barbara; The Hanoverian Court and the Triumph of Palladio: The Palladian Revival in Hanover and England c.
1700. Varsóvia: Wydawnictwo Dig, 2002, p. 117.
10
Apud. Marschner, Joanna; Queen Caroline: Cultural Politics at the Early Eighteenth Century Court. New Haven e Londres: Yale
University Press, 2014, p. 33.
11
16
O jardim paisagista e o falso problema da preservação da natureza - Felipe Soeiro Chaimovich
Pope suprimiram inovadoramente os elementos divisórios que bloqueavam a visão das áreas
circunvizinhas ao parque. Ao invés disso, plantaram-se duplas fileiras paralelas de árvores
espaçadas nas bordas dos parques, através das quais se avistavam as áreas agrícolas.
A síntese inglesa do chinesismo jardinista com o bucolismo latino foi publicada por Robert
Castell no livro “As vilas dos antigos ilustradas”, de 1728. Castell era do círculo do conde de
Burlington, a quem dedicou esse livro. Em 1724, Burlington conheceu o jesuíta Matteo Ripa,
então em sua segunda viagem a Londres, após retornar da corte do imperador chinês Kangxi,
para quem trabalhara como pintor. Além de ter acesso à vida intelectual da corte imperial
chinesa, Ripa produziu um álbum com trinta e seis vistas dos jardins imperiais de Zehe.
Esse álbum foi adquirido por Burlington. Ao inventar ilustrações para duas cartas de Plínio,
o jovem, que descrevem duas vilas latinas, Castell interpretou a expressão sucinta “imitação
do rural” (“imitatio ruris”) do texto latino sob a luz do chinesismo inglês, imputando-lhe uma
imitação da natureza. Segundo Castell, haveria três tipos de jardim: os primeiros jardinistas
“não visavam nada além da disposição de suas plantações (...) Toda sua arte consistindo
em pouco mais do que em fazer nessas partes (...) as árvores escolhidas produzirem por
acidente (...) e a superfície do terreno sofrendo pouca ou nenhuma alteração”;12 o segundo
tipo foi motivado por um gosto pela beleza regular, inventando-se, segundo Castell, um
modo de dispor o terreno conforme réguas e linhas e, finalmente, “pelos relatos que temos
da presente maneira de desenhar na China, parece que, das duas maneiras precedentes,
formou-se uma terceira, cuja beleza consiste numa imitação próxima da natureza, onde,
embora as partes sejam dispostas com a maior arte, a irregularidade é preservada”.13 Donde
conclui Castell: “na disposição do jardim de Plínio, o seu desenhista demonstra não estar
desinformado sobre essas diversas maneiras, e o conjunto o parece ter sido uma mistura
dos três. (...) e, na imitatio ruris, [esse desenhista] parece ter sugerido a terceira maneira,
onde, sob a forma de um belo campo, montes, rochas, cascatas, riachos, bosques, edifícios
etc. eram possivelmente jogados numa desordem tão agradável para aprazer aos olhos com
muitas vistas, como em tantas paisagens [landskips]”.14
Em 1727, Burlington iniciou a segunda fase de reformas dos jardins de sua vila de
Chiswick, nos arredores do rio Tâmisa, após retornar da Itália com seu novo colaborador
William Kent. Kent participou ativamente nessa fase do planejamento dos jardins de Chiswick.
Assim, a síntese original de Castell pode ser a chave interpretativa de uma inovação marcante
nos jardins de Burlington: o traçado curvilíneo do riacho Bollo, um afluente do Tâmisa que
atravessava a propriedade de Chiswick. Entre 1707 e 1719, na primeira fase da reforma do
jardim de Chiswick, o Bollo havia sido retificado para formar um canal retilíneo margeando a
propriedade. Entretanto, na segunda fase o riacho foi novamente modificado para aparentar
ser curvilíneo, assemelhando-se às figuras do jardim chinês de Zehe no álbum de Ripa.
12
Castell, Robert; The villas of the ancients illustrated. Londres: Robert Castell, 1728, p.116.
13
Castell, Robert; The villas of the ancients illustrated. Londres: Robert Castell, 1728, p.116.
14
Castell, Robert; The villas of the ancients illustrated. Londres: Robert Castell, 1728, p. 117.
17
Assim, à luz de Castell, o curvilíneo do Bollo seria uma imitação da natureza conforme à vida
bucólica latina, embora não houvesse nenhuma evidência histórica nesse sentido sobre os
latinos.15
Kent tornara-se próximo de Charles Bridgeman desde seu retorno à Inglaterra, em
1719. Kent também se tornou empregado da família real, em 1726, inicialmente como Mestre
Carpinteiro.16 Assim, assumamos por hipótese que Bridgeman conhecia as mudanças feitas
por Kent no riacho Brook, entre 1729 e 1733. Nesse mesmo período, Bridgeman criou o rio
Serpentino na propriedade real de Hyde Park, represando o rio Westbourne, um afluente do rio
Tâmisa. Bridgeman tornou-se jardineiro real em 1728, acompanhando a ascensão de George
II e Caroline à coroa. Entre 1730 e 1733, ele criou o rio artificial que unia os lagos pantanosos
naturais do rio Westbourne,17 com forma curvilínea característica do novo nome: rio Serpentino.
O Hyde Park ganhou os agrupamentos de árvores que faziam uma transição com o entorno sem
sugerir paredes verdes, como em Richmond Lodge; mas Bridgeman criou grupos assimétricos,
ao invés das alamedas duplas de Marble Hill. As vistas iam se sucedendo conforme as curvas
do percurso sinuoso do rio Serpentino. À luz de Robert Castell, tratar-se-ia de uma “imitatio
ruris” como imitação de uma natureza desordenada e bela.
O princípio da “imitatio ruris” de Kent e Bidgeman tornou-se modelar para os jardins
ingleses das décadas seguintes. O maior multiplicador dos jardins com lagos serpentinos
cercado de vistas foi Lancelot “Capability” Brown, tendo criado mais de cento e cinquenta na
Inglaterra18 e trabalhado para o círculo da família real. “Capability” Brown descreveu a ação
topológica da sua “imitatio ruris” como uma operação sintática sobre o terreno: “ali faço uma
vírgula e ali, onde o adequado é uma curva mais decidida, faço dois pontos, noutra parte, onde
uma interrupção da vista é desejável, faço um parêntese, depois um ponto final e então começo
um novo assunto”.19 A imitação da natureza como disposição sintática de partes de um relevo
sinuoso foi estendida a outros parques londrinos, como o parque Saint James, redesenhado
por John Nash na década de 1820, cujo canal retilíneo foi transformado num lago curvilíneo.
Esses parques londrinos eram abertos ao público durante o século dezenove.20
Napoleão III morou em Londres antes de se tornar governante da França. Durante a
reforma de Paris, nas décadas de 1850 e 1860, ele desenvolveu instituições públicas para
construir, reformar e manter parques modelados conforme os parques londrinos.21 Dentre essas
instituições, o Serviço de Passeios e Plantações forneceu profissionais para diversas cidades
que se reformavam a partir do precedente parisiense de Napoleão III. Na América do Sul,
Cf. Liu, Yu; Seeds of a Different Eden: Chinese Gardening Ideas and a New English Aesthetic Ideal. Columbia SC: University of
South Carolina Press, 2008, pp. 72-3.
15
16
Cf. Willis, Peter; Charles Bridgeman and the English Landscape Garden. Newcastle upon Tyne: Elysium Press, 2002, p. 64.
17
Cf. Willis, Peter; Charles Bridgeman and the English Landscape Garden. Newcastle upon Tyne: Elysium Press, 2002, p. 96.
18
Cf. Brown, Jane; The Omnipotent Magician: Lancelot “Capability” Brown 1716-1783. Londres: Chatto and Windus, 2011, p. 133.
19
Cf. Mayer, Laura; Capability Brown and the English Landscape Garden. Oxford: Shire, 2011, p. 33.
Cf. Ponte, Alessandra; “Public Parks in Great Britain and the United States: From a ´Spirit of the Place´ to a ´Spirit of Civilization’”,
em Mosser, Monique et al. (eds.); The Architecture of Western Gardens. Cambridge MA: MIT Press, 1991, p. 373.
20
Cf. Von Joest, Thomas, “Haussmann’s Paris: A Green Metropolis?”, em Mosser, Monique et al. (eds.); The Architecture of
Western Gardens. Cambridge MA: MIT Press, 1991, p. 397.
21
18
O jardim paisagista e o falso problema da preservação da natureza - Felipe Soeiro Chaimovich
Buenos Aires, Montevidéu e Santiago passaram por esse processo de implantação de parques
públicos com jardinistas ligados ao Serviço de Passeios e Plantações de Paris e que seguiam
os princípios da imitação sinuosa da natureza.22 No Brasil, os jardins assim concebidos foram
implantados por Auguste Glaziou, que trabalhou para d. Pedro II na reforma do Passeio Público
do Rio de Janeiro, em 1861, e na criação do Campo de Santana, em 1873.23
A tradição do “imitatio ruris” britânica fora associada à pintura de paisagem desde a
publicação do opúsculo Sobre a Jardinagem Moderna, de Horace Walpole, em 1770. No
escrito, Kent é decididamente o inventor do jardim inglês e o teria inventado com os mesmos
princípios da pintura de paisagem,24 donde o jardim inglês sinuoso como imitação da natureza,
modelado conforme a prática de Bridgeman, Kent e “Capability” Brown, ter sido chamado
de jardim paisagista. Essa mesma expressão é atribuída ao Passeio Público carioca no ano
seguinte a sua reforma por Glaziou, no almanaque Laemmert de 1862: “representa um jardim
cognominado inglez [sic.] ou paisagista”.25 Diversas cidades brasileiras seguiram o padrão de
parques paisagistas após o Rio de Janeiro.
No século vinte, o principal realizador de parques paisagistas no Brasil foi Roberto Burle
Marx.26 Ao trabalhar no parque urbano da Pampulha, em Belo Horizonte, na década de 1940,
Burle Marx passou a desenvolver a noção de uma estrutura para o jardim não mais apenas na
escala da topografia, como indicara “Capability” Brown, mas também na escala nos subconjuntos
do jardim, os biomas. Entre 1944 e 1945, Burle Marx projetou três conjuntos para a Pampulha,
que não chegaram a ser executados: a praça Santa Rosa, o parque Vereda e o Golfe Clube.
Segundo Guilherme Dourado: “o primeiro ensaiava basicamente jardins para espécies que se
desenvolviam em pedras e terrenos secos; o segundo, um parque que associava plantas de
zonas úmidas e fauna; o terceiro, um parque de cerrado”.27 Dourado indica a gênese de uma
abordagem ecológica do jardinismo por Burle Marx, desde então.
Proponho que essa atenção aos biomas como elementos do jardim paisagístico de Burle
Marx seja entendida a partir da sintaxe de “Capability” Brown, ou seja, como a construção de uma
estrutura tanto no todo como nas partes do jardim. Porém, ao tomar os biomas artificialmente
estruturados no jardim como idênticos aos biomas naturais, Burle Marx cria o falso problema da
preservação dos biomas como foco da política ecológica. Diz ele: “suponho que pelo nosso tipo
de atividade temos, como grupo profissional, papel fundamental na preservação e manutenção
de uma situação ecológica equilibrada e favorável à vida humana”.28 O conceito de preservação
da natureza como foco da ecologia foi retomada por Burle Marx em diversas ocasiões.29
22
Cf. Dourado, Guilherme; Belle Époque dos Jardins. São Paulo: SENAC, 2011, pp. 61-98.
23
Cf. Hetzel, Bia et al. (orgs.); Glaziou e as raízes do paisagismo no Brasil. Rio de Janeiro: Manati, 2011.
24
Cf. Walpole, Horace; On Modern Gardening, Londres: Pallas Athena, 2010, pp. 40-5.
25
Apud. Dourado, Guilherme; Belle Époque dos Jardins. São Paulo: SENAC, 2011, p 119.
Cf. Burle Marx, Roberto, “O jardim como forma de arte”, em Tabacow, José (org.); Roberto Burle Marx: Arte e Paisagem. São
Paulo: Estúdio Nobel, 2004, p. 63.
26
27
Dourado, Guilherme; Modernidade verde: jardins de Burle Marx. São Paulo: SENAC e EDUSP, 2009, p. 293.
Burle Marx, Roberto, “Paisagem e Ecologia”, em Tabacow, José (org.); Roberto Burle Marx: Arte e Paisagem. São Paulo: Estúdio
Nobel, 2004, p. 159.
28
29
Ver Burle Marx, Roberto, “Depoimento pessoal”, “Projetos de paisagem de grandes áreas” e “Problemas de conservação da
19
A noção de Burle Marx de que o equilíbrio natural possa ser preservado não corresponde
à realidade da constante mudança evolutiva das espécies. Assim, como nota o paisagista
Patrick Blanc, Burle Marx era um diletante em botânica, mas não um cientista.30 Ao expandir
para o discurso ecológico a estrutura do jardim paisagista, Burle Marx cria um falso problema
de preservação, como se a natureza pudesse ser tão estável como uma paisagem.
natureza”, em Tabacow, José (org.); Roberto Burle Marx: Arte e Paisagem. São Paulo: Estúdio Nobel, 2004.
Cf. Rambert, Francis, “In Praise of a Plant Amateur: Interview to Patrick Blanc”, em Cavalcanti, Lauro et al (eds.); Roberto Burle
Marx: The Modernity of Landscape. Nova York: Cité de l’architecture et du patrimoine/ Actar, 2011, p. 287.
30
20
O cosmos e suas fronteiras: a noção de um universo finito na cultura lusa barroca - Nelson Pôrto Ribeiro
O cosmos e suas fronteiras: a noção de um universo finito na cultura lusa
barroca
Nelson Pôrto Ribeiro
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Resumo: Se a mutabilidade, a transitoriedade, a fugacidade da vida terrena são alguns
dos temas centrais em torno dos quais gira a cultura do Barroco isso não significa que
não exista também ainda fortemente presente como motte central da mundivisão deste
período uma ideia de imutabilidade e de permanência que é associada às verdades
eternas e divinas. É precipitado portanto fazer uma correlação entre as modificações
espetaculares na concepção de universo - que diga-se de passagem só foram efetuadas
paulatinamente - procurando-se reflexos imediatos dessas mudanças na cultura e na
arte do período, pois como os documentos nos tem demonstrado o elemento central da
cosmologia da cultura barroca lusa é ainda um mundo estático, centrado e finito e a tese
a ser defendida neste texto é de que em termos de mundivisão e estrutura mental, o
barroco luso até o final foi geocêntrico.
Palavras-chave: barroco luso; geocentrismo; mentalidades.
Abstract: It is therefore thoughtless to make a correlation between the spectacular
changes in the conception of the universe - that have happened gradually - by looking
up to the immediate impact of these conceptions in the culture and art of the period,
since the documents show that a static worldview predominated in the cosmology of the
Portuguese baroque culture. The thesis to be defended in this paper is that in terms of
worldview and mental structure, the Portuguese baroque just to the end was geocentric.
Keywords: portuguese baroque; geocentrism; mentalities.
Introdução
A concepção cosmológica dentro da cultura barroca tem uma importância que poucos
teóricos alcançaram compreender. Severo Sarduy foi um destes:
Se o espaço descrito pela cosmologia se achou promovido ao nível de espaço tipo, é simplesmente porque esta
ciência, na medida onde seu objeto próprio é o Universo considerado como um todo, sintetiza, ou pelo menos
inclui, todos os outros saberes (,,,) no espaço simbólico do Barroco - naquele fictício, sobre o qual se abrem
página e tela; e naquele da cidade e da igreja, físico mas retrabalhado pelo símbolo -, o que se referencia é
uma citação textual ou uma metáfora do espaço fundador (cosmológico) postulado pela astronomia da época.1
1
SARDUY. 1975. p.12 (tradução nossa).
21
Contudo, os riscos de uma analogia superficial quando se discorre sobre este assunto
são grandes; pois a tendência geral é a de um paralelismo mecanicista. Como bem observou
Argan “a hipótese que quer que a arte barroca tenda com suas formas em movimento a
representar o universo em seu devir contínuo não se sustenta a um exame mais atento”.2 É
inadequado e mecanicista associar a voluta barroca que se “repete até o infinito, e diminui até o
incomensurável o círculo que ela circunscreve”3 com a ideia de um universo em expansão, ideia
essa inimaginável para a mentalidade do séc. XVIII. Mesmo a tese de Sarduy que vê na elipse
barroca um reflexo das concepções cosmológicas de Kepler enquanto o círculo renascentista
ainda estaria atado a uma concepção de mundo fechada4 me parece problemática. E uma
afirmação como a de Maravall de que “o movimento é o princípio fundamental da cosmovisão
barroca”5 só pode ser aceita com reservas, pois se sem dúvida alguma a mutabilidade, a
transitoriedade, a fugacidade e a falsidade da vida terrena são temas fundamentais em torno
dos quais gira a cultura do Barroco isso não significa que não exista ainda fortemente presente
como motte central da mundivisão deste período uma ideia de imutabilidade e perenidade que
é associada às verdades eternas e divinas.
A ideia da transitoriedade barroca frente à verdade eterna é muito bem expressa
nas pinturas de Tintoretto onde muitas vezes a figura do Cristo ou a da Virgem aparecem
perfeitamente delineadas em primeiro plano enquanto aos fundos uma série de figuras
secundárias movimentam-se apenas esboçadas, como se fossem espectros.6 Durante muito
tempo essas pinturas foram tidas como inacabadas quando de fato parecem exprimir nada
mais do que a concepção neoplatônica de níveis de realidade distintos; ou seja, frente às
verdades eternas perfeitamente consubstancializadas do mundo divino nós não seríamos mais
do que trânsfugas em um mundo incorpóreo e corruptível.7
Mesmo no campo da ciência, um autor à primeira vista herético como Galileu expressava
muito bem o espírito barroco da sua época na sua procura incessante por leis científicas que
exprimissem através da sua eternidade, a perfeição da fatura divina na natureza, afirmando
que “Aquilo que não pode ser eterno não pode ser natural”.8
É precipitado, portanto fazer uma correlação entre as modificações espetaculares que
as experiências da vanguarda científica implementaram paulatinamente na mundivisão,
procurando-se reflexos imediatos dessa mudança na cultura e na arte do período, pois como
os documentos artísticos nos tem demonstrado o elemento central da cosmologia barroca é
2
ARGAN. 1994. p.17.
3
BENJAMIN. 1984. p.106.
4
SARDUY. op.cit.
5
MARAVALL.1996. p.363.
6
Tais como no Batismo de Cristo (Veneza, Scuola di S. Rocco) ou na Ascensão (Veneza, Scuola di S. Rocco).
7
Hauser contesta esta interpretação que tem a sua primeira versão em Dvorák afirmando que isso não é defensável pelo fato
de que na Ascenção ele observa dois grupos distintos de Apóstolos que são "eles mesmos retratados com graus diferentes de
substancialidade e movem-se em planos de realidade diferentes" (HAUSER. 1976. p.249). Isso só é indefensável ao ver do autor
porque ele desconhece a teoria neoplatônica onde justamente os níveis de realidade são diversos e onde quanto mais próximo se
está do Empíreo, mais próximo se está de uma realidade consubstancializada.
8
Apud MARAVALL. op.cit. p.375 (tradução nossa).
22
O cosmos e suas fronteiras: a noção de um universo finito na cultura lusa barroca - Nelson Pôrto Ribeiro
ainda um universo estático, centrado e finito e a minha tese é de que em termos de mundivisão
e estrutura mental, o Barroco até o final foi geocêntrico.
Temos uma forte tendência a retrodatar o heliocentrismo como uma ideia do Renascimento
mas devemos observar que existe uma diferença grande entre uma história das ideias e uma
história das mentalidades e o que pode ser considerado quase correto para a primeira não pode
ser aceito para esta última. A obra clássica de Copérnico já é do final do Renascimento (1543);
a de Galileu que é de 1632 seria do meio do Barroco segundo a periodização proposta por
Maravall; ainda assim a física da natureza aristotélica, base para a concepção de um mundo
fechado predominou durante todo o séc. XVII europeu e início do XVIII até ser substituída
definitivamente pela física newtoniana.9
De qualquer forma a questão central na mundivisão barroca antes de ser a manutenção
do geocentrismo ptolomaico a todo custo, me parece ser a manutenção da ideia de um centro
concepção essa que vai aliada a ideia de um universo finito. Recorde-se que sob esse aspecto
o mundo de Copérnico ainda estaria dentro da concepção barroca pois tal como o mundo
medieval ainda é centrado e finito; a principal diferença para a concepção ptolomaica-aristotélica
é que Copérnico coloca o Sol e não a Terra por centro do universo.10 Também a forma como
Copérnico dispõem os planetas em círculos concêntricos em torno do Sol aproximava-se
bastante de uma estrutura em esferas, semelhante a concepção tradicional.11
Não era muito difícil para uma mentalidade barroca de vanguarda fazer a passagem
do geocentrismo para o heliocentrismo copernicano. Frances Yates observou que os círculos
esclarecidos humanistas aceitaram com bons olhos as teorias de Copérnico que para eles
vinham como uma confirmação das antigas teorias pitagóricas revividas pela cabala hermética
e que afirmavam a primazia solar.12
A grande questão em termos de ruptura de mundivisão não foi a proporcionada portanto
pelo heliocentrismo copernicano mas pelo sistema newtoniano, que dissolveu as estrelas fixas
na infinitude do universo e deu a cada uma delas a possibilidade de se tornar um centro:
pois as inúmeras estrelas fixas com Newton passam a ser “...os centros de outros sistemas
similares” ao nosso.13
O Barroco é assim o período onde os grandes embates filosóficos que permitiram a
passagem de uma concepção de um mundo fechado para um universo aberto se deram.
Durante este período, entretanto as amarras mentais insistiram em todos os tipos de teorias
que possibilitassem a continuidade da Terra como centro do Universo. Uma das que tiveram
maior repercussão é a de Tycho Brahé; nesta teoria a Terra permanece imóvel no centro do
universo tendo na sua órbita dois planetas; a Lua e o Sol, sendo que este último carregaria
em torno de si todos os demais. Essa teoria tinha a vantagem de responder ao que se podia
9
Cf. KRISTELLER. 1995 e também GARIN. 1969.
10
Cf. KOYRÉ. 1973. Ver cap. II.
11
KOYRÉ. 1973. p 80.
12
YATES. 1991. p. 189.
13
NEWTON. 1996. p.256.
23
observar nos céus através dos modernos telescópios e ao mesmo tempo de não tocar na
concepção geocêntrica, ainda muito importante para a concepção religiosa vigente.
Portugal e o geocentrismo
Segundo o Prof. Rómulo de Carvalho toda a primeira metade do séc. XVIII português foi
dominada pela concepção aristotélico-ptolomaica.14 Ao longo da segunda metade do sec. XVIII
grande parte dos estudiosos portugueses aderiu ao já mencionado sistema de Tycho Brahé,
e ainda que ao final do século os mais expressivos não o defendessem mais, visto mesmo a
sua insustentabilidade, era ele que era ensinado nas escolas oratorianas - a espinha dorsal da
estrutura educacional portuguesa - pelo que se pode constatar através dos manuais publicados
para o ensino de cosmographia nestas escolas e que continuaram a ser reeditados pelo menos
até 1807.15
Nada mais estranho ao universo mental da cultura do Barroco do que a concepção de
cosmos do iluminismo que abandonaria qualquer ideia de centro instituindo as ideias de caos
e de acaso, ao mesmo tempo em que insere a ideia de relatividade. Segundo Starobinski não
haveria assim mais hierarquia no espaço, acabava-se assim o mundo lunar e sublunar e todos
os pontos do espaço passavam a se equivaler, nem Roma nem Jerusalém, nem mesmo o Sol,
poderiam pretender ser o centro do mundo: “Cada um, aqui, ou alhures, pode de bom direito
considerar o ponto onde se encontra como central, à condição de reconhecer de imediato o
caráter relativo e provisório deste ponto de vista”16 (grifo nosso).
Essas ideias são absolutamente incompatíveis com a religiosidade de tipo tradicional
barroca onde a ideia de centro é o principal referencial, pois local de origem da obra da Criação
divina. E assim como a cultura do Barroco prolongou-se por todo o século XVIII em Portugal
deve-se esperar também que a ideia de centro tenha continuado a apresentar nesta sociedade
uma dimensão que muitas vezes temos dificuldades em avaliar devido ao fato de sermos
herdeiros do iluminismo, uma cultura descentrada. Uma dimensão particular que com toda a
certeza atingia todos os aspectos da vida cultural e do imaginário.
Desde o séc. XVI nas artes plásticas Francisco de Holanda, um dos primeiros teóricos
a exercer no mundo luso perene influência através de seu tratado Da pintura antiga não
hesitava em atribuir à cosmografia e à astrologia papéis relevantes entre as ciências que a
seu ver convinha ao pintor dominar,17 e o conceito de pintor à época de Holanda era bem mais
amplo que hoje, abrangia todas as classes de artistas plásticos além dos pintores; tais como
escultores e arquitetos. E sem dúvida é mais justo que aproximemos os artistas do século
XVIII português do espírito norteado pela obra de um Holanda do que daquele que segundo
Starobinski grassava no conjunto da Europa iluminista.
14
CARVALHO. 1985. p. 23.
15
Idem. p.3 2.
16
STAROBINSKI. 1994. p. 115.
17
HOLANDA. 1983. p.66.
24
O cosmos e suas fronteiras: a noção de um universo finito na cultura lusa barroca - Nelson Pôrto Ribeiro
O Universo para o homem português do XVIII tinha uma dimensão física e outra mística e
ambas paralelas. Ao mesmo tempo em que parte deste Universo era mensurável e observável
por meio de aparelhos óticos como o faziam os astrônomos da época, estas mesmas partes
eram atingíveis apenas através do espírito, após a morte. Assim a superfície terrestre e o
espaço aéreo próximo aparecem como o único campo possível para o homem e o mundo da
matéria. Os demais, eram campo do espírito e das ideias.
O Inferno, por exemplo, fisicamente, encontrava-se no meio do globo terrestre, e podia
mesmo ser precisado a distância dele para a superfície, que era de 859 milhas germânicas
tal como afirmava o Padre Bluteau no seu conhecido dicionário. Em determinadas situações
especiais o contato entre estes dois mundos era possível. É assim que quando do terremoto
de 1755 chegou-se a acreditar que a crosta terrestre fendida teria possibilitado o escape de
voragens de fogo e gases sulfurosos das regiões infernais.18 A força de fabulação do imaginário
popular que constrói naquele momento o cheiro de enxofre o faz, evidentemente, para acentuar
o caráter escatológico da tragédia, associando-a através do enxofre com as regiões infernais
e os seres diabólicos.
O Purgatório, por sua vez, como na Divina Comédia de Dante, ficava numa região
intermediária imediatamente anterior ao Paraíso que se iniciava na esfera da Lua, local
corruptível ainda, mas começo de um caminho iniciático de purificação da alma até que esta
pudesse contemplar a face luminosa de Deus na incorruptibilidade do Empíreo, situado acima
das estrelas fixas. Ideia de Purgatório essa, verdadeira obsessão da cultura portuguesa barroca,
e que, curiosamente perdura até as primeiras décadas do XIX de acordo com um anedotário
popular fartamente registrado: quando a rainha D. Maria morre na cidade do Rio de Janeiro em
1816 o povo dizia que seu filho, o príncipe regente, havia esperado mais de ano para se coroar
rei (1818) em atenção à que a alma da mãe tivesse saído do Purgatório e entrado no Paraíso.19
Uma das ideias mais caras à arte barroca foi a da alegoria do monarca absoluto como
uma representação do Sol.20 O Sol barroco como sabemos através da concepção ticônica era
um astro único no firmamento e era uma ideia bastante sedutora para a imaginação simbólica
a do monarca como o mais brilhante dos cortesãos arrastando atrás de si a cada vez que se
movia a corte inteira.
De D. João V comparado a Luis XIV, diria um contemporâneo que se assemelhavam
muito, “par les traits, la démarche, l’air noble et majestueux. On a dit de ces deux monarques,
qu’aucun mortel n’avait osé supporter leurs regards”.21 Se é provável que este comentário
estivesse se referindo a existência de um olhar severo comum aos dois soberanos não
é possível, entretanto ignorar-se o caráter solar desta observação; o rei brilhava tanto que
queimava a retina de quem o olhava. De fato, nas Entradas Reais realizadas em Lisboa em
1708 quando da chegada de D. Marianna d’Áustria para consorte do rei, pelo menos dois dos
18
ALMEIDA.1803. p.235.
19
Cf o testemunho de LUCCOCK. 1942. p.377.
20
cf. MARAVALL. 1996.
21
Apud: PIMENTEL. 1992. p. 20.
25
inúmeros Arcos de Triunfo construídos tinham suas alegorias centrais elaboradas em cima
dessa temática, sendo que num deles o autor num dos emblemas estampados fêz questão de
representar um Sol do qual se aproximava uma Águia “..que he ave de tam aguda vifta, que
fita conftantemête os olhos no Sol, fem padecer offenfa de feus rayos; (...) alludindo pois a efta
propriedade, no Sol fe fymbolizava o foberano Monarca Portuguez, & na Aguia a Sereniffima
Efposfa Auftriaca”.22
A associação contínua do Sol e da luz solar com o próprio Deus “provinha de longínquas
tradições, “do Bel semita, do Ra egípcio, do Ahura Mazda persa, (...) até naturalmente, o platônico
sol das idéias”,23 é evidente entretanto que à época do Barroco ninguém mais sustentava a
origem solar da casa real governante como havia sido feito no Antigo Egito, por outro lado
não se podia deixar de manipular esta ideia ainda tão ancorada no imaginário coletivo, e se
o Barroco não sustenta mais a origem divina de seus reis nem por isso deixa de construir um
instrumento jurídico fundamental de sustentação do Estado que é a teoria do direito divino.
Ainda em princípios do século XIX no mundo português costumava-se em relação ao
monarca compará-lo ao Astro-rei: de D.João VI e o seu papel benéfico no governo, diria dele um
historiador coevo: “Por toda a parte (do país) se diffunde a benigna influencia d(este) luminoso
Astro, que o esclarece, e o vivifica com a sua Augusta, e Real Presença”.24
Agradecimentos
Agradeço ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e
à FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo) os apoios reiterados
que venho recebendo.
Referências Bibliográficas:
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PIMENTEL, A.F. Arquitectura e poder: o real edifício de Mafra. Coimbra, Faculdade de Letras, 1992.
22
FERREIRA. 1709. p. 46.
23
ECO. 1989. p. 65.
24
SANTOS. 1825. Tomo I, p. 320.
26
O cosmos e suas fronteiras: a noção de um universo finito na cultura lusa barroca - Nelson Pôrto Ribeiro
RIBEIRO, Nelson Pôrto. As fronteiras do cosmos barroco: geocentrismo e cultura no século XVIII portugues. ARARA. Art
and Architecture of Americas (Colchester), University of Essex, v. second, p. 04, 1999.
SANTOS, Pe. Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir a história do reino do Brasil (...) Lisboa, Impressão Regia, 1825.
SARDUY, Severo. Barroco. Paris, Gallimard, 1975.
STAROBINSKI, Jean. L’invention de la liberté. Genève, Albert Skira, 1994.
YATES, Frances. Ensayos reunidos II. Renacimiento y reforma: la contribución italiana. México, FCE, 1991.
27
28
A Historiografia da Arte no Brasil do Século XIX e a Construção de uma Arte Brasileira - Sonia Gomes Pereira
A Historiografia da Arte no Brasil do Século XIX e a Construção de uma Arte
Brasileira
Sonia Gomes Pereira
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir sobre a historiografia da arte no Brasil na
primeira metade do século XIX e sua relação com as idéias românticas da chamada
Geração de 1830 sobre a construção da arte brasileira. Liderada pela Academia de
Belas Artes do Rio de Janeiro, trata-se de uma estratégia que conjuga a utopia de sua
inclusão no horizonte mais amplo da cultura ocidental, mas demarcando a fronteira da
especificidade nacional.
Palavras-chave: Historiografia da arte; Século XIX; Arte brasileira.
Abstract: This article focus on the historiography of art in Brazil during the first half of 19th
century and its relation to the ideas of the Brazilian romanticism - the so-called Generation
of 1830 - about the construction of national art. Held by the Academy of Fine Arts of Rio
de Janeiro, it deals with the project of putting together contradictory tasks: the utopia of
including Brazilian art into the occidental tradition, as well as the delimitation of national
frontiers.
Keywords: Historiography of art; 19th century; Brazilian art.
O objetivo desta comunicação é refletir sobre a historiografia da arte no Brasil em meados
do século XIX e sua relação com as idéias românticas da chamada Geração de 1830 sobre a
construção da arte brasileira. Liderada pela Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, tratase de uma estratégia que conjuga a utopia de sua inclusão no horizonte mais amplo da cultura
ocidental, mas demarcando a fronteira da especificidade nacional.
A historiografia da arte no Brasil em meados do século XIX
A historiografia da arte no Brasil durante a primeira metade do século XIX foi explicitada
especialmente nos modelos e idéias de dois dos mais importantes artistas e intelectuais do
período: Félix-Émile Taunay e Manuel de Araújo Porto Alegre. Ambos estavam ligados pelo
esforço de consolidação da Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro, lutando na contra-mão
de uma sociedade em geral mais afeita à literatura e à música e marcada pela escravidão e
pelo extremo desprestígio do trabalho manual. Assim, a valorização das artes e dos artistas
visuais foi, em si mesma, um processo civilizatório.
29
Mas é preciso destacar que, ao lado da vontade de integração à cultura ocidental, esteve
sempre presente a preocupação com a construção de uma arte nacional. Se esta idéia já
aparecia nos escritos de Taunay, ela adquiriu ainda mais realce na atuação de Porto Alegre,
uma das figuras mais importantes do nosso Romantismo.
As idéias do Romantismo europeu e a forma específica que este movimento tomou no
Brasil na chamada Geração de 1830 são importantes para entender a maneira possível de se
pensar a inserção de uma cultura marginal, como a brasileira, no mainstream da civilização
ocidental. De um lado, envolve uma concepção específica da trajetória da civilização ocidental,
em que o processo civilizatório parece funcionar como uma grande onda que vai incorporando
culturas sucessivas. Afinal, todo o processo de civilização, desde os Antigos, não se tratava
da incorporação de povos, antes bárbaros, ao modelo grego de cultura? Não se passou assim
como os romanos, depois com os povos germânicos, e assim por diante? Por que não o Brasil
e as demais jovens nações da América naquele estágio do processo? Por outro lado, seria
preciso, mesmo buscando a inserção internacional, definir o seu próprio lugar - o que constituía
- como ainda constitui nos dias de hoje - um problema delicado.
Assim, historiografia da arte no Brasil do século XIX parece revelar as vicissitudes próprias
do processo civilizatório no chamado novo mundo: a tentativa de inclusão na tradição européia;
a vontade de demarcação de fronteiras que identifiquem a especificidade cultural do Brasil; e a
utopia de elevar o Brasil à altura dos países hegemônicos. Um verdadeiro drama entre local e
global, em que parecem vagar, ainda hoje, os nossos sonhos e problemas.
A construção da arte brasileira para a Geração de 1830
É sobre este solo que se plantaram as pretensões da chamada Geração de 1830: garantir
a incorporação da arte brasileira à grande tradição européia e, ao mesmo tempo, incentivar a
construção de uma vertente nacional, que pudesse ser visto como contribuição sui generis.
A demarcação da especificidade brasileira, nesta geração, pode ser evidenciada em
alguns traços de sua produção artística. O mais evidente - bastante estudado - é a escolha
de temas ligados à história nacional e ao indianismo. Outro muito citado - mas talvez ainda
não tão estudado - é a representação da natureza local. Mas, mesmo nesses casos, persiste
uma dificuldade: seria a arte brasileira reconhecível apenas na escolha de temas ou de um
determinado tipo de representação? Seria possível definir traços de uma linguagem plástica
reconhecível como peculiar aos artistas brasileiros? Estas preocupações estão presentes em
Porto Alegre, conforme enunciadas na oitava tese apresentada à Congregação da Academia
em setembro de 1855:
“Para que o Brasil forme uma escola sua, que princípios deverá adotar a Academia
como cânones invariáveis para obter esse caráter peculiar que mereça o nome de escola, sem
contudo precipitar-se no estilo amaneirado?”.1
1
Oitava tese apresentada à Congregação da Academia em 27/9/1855. Ata da 2ª Sessão Pública da Academia Imperial das Belas
Artes em 27 de setembro de 1955 (MDJV Notação 6151 - Atas das Sessões da Presidência 1841/1856). Chamo atenção para o uso
das expressões “cânones invariáveis” e “amaneirado” que são muito elucidativas da maneira como Porto Alegre encarava a tradição.
30
A Historiografia da Arte no Brasil do Século XIX e a Construção de uma Arte Brasileira - Sonia Gomes Pereira
O Monumento a D. Pedro I no Rio de Janeiro
Em meio a todas estas dúvidas sobre o que constituía a escola brasileira para esta
geração, podemos examinar uma obra que certamente corresponde a um programa bem
afinado com as idéias de Porto Alegre: o monumento a D. Pedro I na atual Praça Tiradentes no
Rio de Janeiro (Figura 1).2
Figura 1 - Louis Rochet, Monumento a D. Pedro I, bronze, 1855-1862, Praça Tiradentes, Rio de Janeiro.
Em 1855, justamente durante o mandato de Porto Alegre como diretor da Academia,
realizou-se o concurso para erigir o monumento à nossa independência. Foi vencedor o projeto
de João Maximiano Mafra (1823 - 1908) - aluno da Academia a partir de 1835, professor desde
1851 e secretário da instituição de 1854 até 1890. No entanto, logo depois, a obra é entregue
ao escultor francês Louis Rochet (1813-1878), 3º colocado no concurso.
Esse episódio gerou polêmica, bastante comentada na historiografia da arte brasileira do
período, gerando controvérsias sobre a autoria do monumento e mesmo a lisura do processo.3
2
Este monumento foi estudado por dois colegas: Jorge Coli e Paulo Knauss. COLI, Jorge (org.). Louis Rochet: Nova proposição
apresentada à Comissão da estátua eqüestre de D. Pedro I, em 18 de setembro de 1856; tradução Arthur Valle. 19&20, Rio de
Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/rochet coli.htm>. KNAUSS, Paulo. Negro
Horácio: Louis Rochet e a escultura antropológica no século XIX. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH. São
Paulo, julho 2011.
3
Quanto à escolha do terceiro colocado para assumir a obra, é preciso que se diga que, em concursos artísticos desse tipo, é
comum o Estado dar o prêmio em valores devido ao 1º colocado e, depois, escolher o projeto que mais lhe interessa. Fato similar
aconteceu no concurso para o Teatro Municipal no início do século XX e também no concurso para o prédio do Ministério da
31
O próprio Porto Alegre refere-se a esta polêmica em 1856 no seu Diário - confirmando a sua
participação na ideação do projeto:
O ano passou-se em diferentes trabalhos escolásticos. No meado fui atrozmente caluniado por alguns
professores da casa, que à boca pequena contavam que o prêmio que recebera o sr. Mafra no concurso para
a Estátua eqüestre, tinha sido dividido entre ele e mim; 500$000 a cada um porque o sr. Mafra havia sido um
testa-de-ferro no negócio e eu o autor do risco. …Eu disse-lhes, por esta ocasião, que se eles se ocupassem
mais de arte se ocupariam menos de ignóbeis mexericos; e que se deviam lembrar de que foram eles próprios
os Juízes do concurso. O desenho não era meu, mas, sim, a idéia geral e eu estava no meu direito de dar
uma idéia minha a um dos meus discípulos, assim como tenho dado aos outros, e daria diversas a quem me
pedisse.4
Polêmicas à parte, é interessante acompanhar o concurso de 1855, que deve ter seguido
a rotina usual da Academia, neste tipo de certames. A partir do programa definido para a obra,
os candidatos apresentavam suas propostas na forma de desenho e modelos em gesso.
Ocorreu no prédio da Academia, conforme informado pelo próprio Porto Alegre em ofício de
agosto desse ano:
“Durante as férias e este trimestre, a Comissão encarregada de levantar a Estátua eqüestre do Fundador do
Império fez as suas reuniões n´esta Academia e em uma das salas novas a Exposição dos modelos e desenhos
apresentados em concurso”.5
Sabemos que Rochet, uma vez escolhido para desenvolver o projeto, fez uma maquete
de gesso - correspondendo a um oitavo das dimensões do monumento - que foi exposta no
salão da Academia para a apreciação da comissão responsável em 1856. Na ocasião, Rochet
propõe mudanças, sobretudo em relação aos materiais e, consequentemente, ao orçamento.6
Num projeto de grande magnitude, muitos estudos parciais são necessários, em geral em
dimensões menores. Este deve ser o caso da maquete que se encontra no MNBA. (Figura 2)
Já em bronze, mas em escala reduzida (112 x 113 x 52 cm), ela apresenta a estátua eqüestre
propriamente dita, com a composição definitiva. Se comparada à longa tradição desse tipo de
monumentos, a solução de Rochet é bastante sóbria: não há grande movimentação nem no
cavalo nem na figura do imperador - apenas a torção do corpo de Pedro I e a pata dianteira
esquerda erguida do cavalo. Mas essa contrição formal realça a força do gesto do imperador:
Educação e Saúde nos anos 1930, marco do início da arquitetura moderna no Brasil. Além disso, do ponto de vista artístico, há
uma enorme distância entre Mafra e Rochet. Mafra destacou-se na história da nossa Academia, sobretudo como secretário - cargo
de muita importância na estrutura acadêmica - mas, como artista, não alçou o prestígio de outros alunos da Academia, como os
pintores Vitor Meireles e Pedro Américo ou o escultor Chaves Pinheiro. Já o Louis Rochet era escultor famoso. Aluno de David
d´Angers, cursou a Escola de Belas Artes de Paris, participou de vários salões, e executou inúmeras esculturas, como a estátua
eqüestre de Carlos Magno na frente da igreja de Notre Dame em Paris, em parceria com seu irmão Charles Rochet (1815-1900),
também escultor. Tinha, portanto, um conhecimento específico tanto artístico quanto técnico da estatuária pública.
4
Diário 1856. Citado por GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Porto Alegre; sua influência na Academia Imperial de Belas Artes e
o Meio Artístico do Rio de Janeiro. Revista SPHAN, n. 14, 1950, p. 93-94. Grifos meus.
5
Ofício de 3/8/1855. Livro de Correspondências 1852/1855 (MDJVI Notação 6126). Estes desenhos encontram-se no Museu D.
João VI da EBA/UFRJ. São oito desenhos com o título Projeto para o Monumento Eqüestre a D. Pedro I, todos não identificados
(como convinha a um concurso), datados (1855) (MDJVI reg. 910, 911, 912, 913. 914, 915, 916, 917). Nenhum deles é de Louis
Rochet.
6
Nova proposição de M. Louis Rochet, apresentada à Comissão da estátua equestre de D. Pedro I, em 18 de setembro de 1856,
à Academia das Belas Artes, no salão onde estava exposto o modelo em gesso realizado por esse estatuário. COLI (2010).
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A Historiografia da Arte no Brasil do Século XIX e a Construção de uma Arte Brasileira - Sonia Gomes Pereira
Figura 2 - Louis Rochet, Estátua eqüestre de D. Pedro I, maquete, bronze, 1857, 112 x 113 x 52 cm, MNBA.
o braço direito levantado apresentando o documento da independência - uma mistura muito
eloqüente de sobriedade e vigor.
As mudanças propostas por Rochet em 1856, em sua primeira viagem ao Brasil, dizem
respeito muito mais ao pedestal. Ele mesmo afirma que, ao contrário de quase todos os
monumentos eqüestres realizados até então na Europa - constituídos unicamente por um
33
grupo de bronze, colocado sobre um pedestal de pedra, ou revestido de placas de mármore,
muito simples - propõe um pedestal ambicioso com cerca de 5 metros de altura, e mais de 6
metros de comprimento. Ao lado de várias explicações a respeito de materiais, Rochet destaca
que os painéis decorando os lados do pedestal poderiam ser recobertos de grandes placas
de mármore colorido, sobre os quais se destacariam os grupos de índios, que representam os
principais rios do Brasil, e que ele propõe duplicar para melhor solução técnica.
Olhando o monumento pronto, fica bastante evidente que Rochet foi muito feliz na
proposta de modificações. É justamente na qualidade desse pedestal que reside grande
parte do sucesso desse monumento. A sua grande altura garantiu uma visibilidade a esse
monumento, que sobrevive até os dias de hoje, mesmo com o aumento de gabarito de grande
parte da massa construída no centro da cidade. Por outro lado, o escalonamento suave do
pedestal destaca a grande força plástica dos conjuntos dos índios. Apresentados em poses
próprias da tradição clássica, essas figuras exóticas são alçadas à dignidade própria dos temas
mitológicos. Diante desse monumento, estamos diante de uma obra clássica, por excelência:
contenção e economia formais, aliadas a grande vigor expressivo, em nome de um discurso
nobre e exemplar. A incorporação do elemento exótico - os índios - com a referência alegórica
aos grandes rios (Figura 3) não constitui uma aberração: os índios são idealizados, à altura de
conviver com os mais antigos heróis clássicos.
Figura 3 - Monumento a D. Pedro I: detalhe - Alegoria ao Rio Amazonas.
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A Historiografia da Arte no Brasil do Século XIX e a Construção de uma Arte Brasileira - Sonia Gomes Pereira
É importante observar, ainda, que se cumpre neste monumento uma outra recomendação
de Porto Alegre a respeito de ornamentação e decoração, indicada na 29ª das suas já citadas
teses à Congregação da Academia:
A ornamentação e decoração dos edifícios ... deverá substituir os grotescos e arabescos pelos objetos da nossa
natureza americana ? ... Nesta nova estrada convirá abandonar inteiramente os exemplos da antiguidade na
composição, ou conservar somente a harmonia das linhas ou a simetria, como base geométrica e inalterável? 7
Assim, a construção da arte brasileira é pensada muito em termos de conteúdo - escolha
de temas e inserção de elementos típicos da natureza - mas, também, de forma - na preocupação
com composição e vocabulário decorativo.
Algumas considerações finais
Nunca seria demais enfatizar a importância desse monumento no espaço público da
então capital (Figura 4), a sua incorporação ao imaginário urbano (Figura 5), mesmo depois
que os valores do Império e do indianismo já estavam sendo questionados (Figura 6).
Mas, ao lado disso, acho importante destacar que o problema enfrentado por Porto
Alegre foi retomado inúmeras vezes desde então. Em outros momentos da nossa história da
arte, artistas se envolveram com indagações próximas,8 assim como vários intelectuais de
gerações diferentes9 refletiram sobre o assunto - fato que não é específico do Brasil, mas pode
ser encontrado em outros países, pelo menos na América.10
Tanto tempo depois, esta questão ainda continua relevante, na minha opinião. Hoje, esta
discussão parece um tanto desqualificada, engolida pela rubrica mais genérica de nacionalismo,
embora eu acredite que seja possível demarcar as diferenças entre uma auto-reflexão de
qualquer cultura sobre o seu lugar no mundo e simplesmente projetos nacionalistas visando
qualquer tipo de hegemonia: econômica, política, cultural. Atualmente, chega a fazer parte
de um senso comum, em muitos trabalhos acadêmicos e com mais ênfase na mídia, a vitória
inexorável do internacionalismo e da globalização. Deveríamos, agora, ser do mundo, sem
fronteiras nem particularismos enquanto culturas, mas profundamente conscientes de nossas
individualidades.
7
29 ª tese apresentada à Congregação da Academia em 27/9/1855. Ata da 2ª Sessão Pública da Academia Imperial das Belas
Artes em 27 de setembro de 1955 (MDJV Notação 6151 - Atas das Sessões da Presidência 1841/1856).
8
Nos primeiro e segundo Modernismos, mais tarde no Neo-Concretismo, em seguida no Tropicalismo, por exemplo.
Cito aqui vários dos mais destacados: Joaquim Nabuco, Manoel Bonfim, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Raimundo Faoro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro.
9
Esta questão não é específica da cultura brasileira. Pode ser encontrada em vários outros países, inclusive os Estados Unidos.
Arthur Danto relata que Robert Motherwell, em carta de 1978, considerava que o automatismo, tal como pregado pelos surrealistas,
poderia ser o princípio criativo original que faltava no Modernismo americano. Seria alguma coisa que, uma vez descoberto,
permitiria aos artistas americanos produzir obras modernistas originais, em contraste com a prática da época, que era uma
tentativa de ser moderno, tentando igualar obras européias: “em vez de copiar o Cahiers d´Art”, “com tal princípio criativo, artistas
americanos modernistas poderiam cessar de ser maneiristas”. DANTO, Arthur. What art is. New Haven & London: Yale University
Press, 2013, p. 15-16. É bastante interessante encontrar nesta fala, quase um século posterior, alguns componentes comuns ao
discurso de Porto Alegre: a convicção de que cada cultura tem uma essência e a identificação do maneirismo, no sentido pejorativo
de cópia, em relação à cultura européia.
10
35
Figura 4 - Praça Tiradentes, fotografia, Gustavo Stahl, c. 1865.
Em contraste com o mainstream ideológico que consagra a vitória, sem retorno, do
internacionalismo e da globalização, muitos estudos - com matizes ideológicos bastante
diversos e mesmo antagônicos - vêem mostrando o contrário. Cito aqui alguns exemplos.
Há o trabalho polêmico do cientista político Samuel Huntington, que, em seu livro Choque
de Civilizações e a Nova Ordem Mundial, escrito em 1996, afirma que, ao contrário das questões
políticas ou econômicas, é nas identidades culturais e religiosas dos povos que se localizaria a
fonte principal dos conflitos no mundo pós-Guerra Fria.11
No seu esforço de mapeamento, Huntington chega a identificar nove civilizações: chinesa, japonesa, hindu, budista, islâmica,
ocidental (que consiste apenas nos países da América e da Europa ocidental, unidos pelo Cristianismo, com a inclusão de alguns
países ligados à colonização inglesa, como África do Sul, Austrália e Nova Zelândia), latino-americana (como uma subdivisão da
civilização ocidental), ortodoxa (ligadas pela doutrina ortodoxa do Cristianismo) e subsaariana (principalmente países africanos,
predominantemente cristãos).
11
36
A Historiografia da Arte no Brasil do Século XIX e a Construção de uma Arte Brasileira - Sonia Gomes Pereira
Figura 5 - Cartão postal, 1902.
Figura 6 - Revista Ilustrada, n. 262, 1881, p. 1.
Desde os anos 1970, as Ciências Sociais têm sido revolvidas por um movimento
genérico de desconstrução, evidenciando que postulados tidos como certos e definitivos são,
na verdade, visões particulares - ou de certos tempos históricos, ou da ótica particular ao
Ocidente, ou ainda de grupos hegemônicos, como brancos, homens etc. Assim, sobretudo
nas universidades norte-americanas, surgiram vários tipos de estudos de gênero e étnicos -com repercussão significativa inclusive no campo da História da Arte -, embora muitos destes
trabalhos corram o risco de cair no sectarismo - sobretudo quando ligados a agendas ativistas.
Danto, em seu último livro de 2013, resume bem: “A descontrução tem sido o método para
demonstrar o meio como a sociedade avançou e reforçou interesses de grupos especiais - por
exemplo branco, masculino, ocidental ou norte-americano”.12
Alguns trabalhos nesta linha desconstrutivista têm um alcance maior, incidindo sobre o
pensamento hegemônico ocidental e a sua maneira de enxergar as demais culturas: é o caso
do livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, escrito por Edward Said, escrito
em 1978.13 Engrossam uma longa tradição de estudos que refletem sobre a forma como o
pensamento hegemônico do Ocidente moldou padrões de entendimento de outras culturas,
que foram, muitas vezes, por elas introjetados.14
12
DANTO, Arthur. What art is. New Haven & London: Yale University Press, 2013, p. 138.
13
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
14
É neste sentido que os sociólogos Michael Löwy e Robert Sayre, em livro escrito em 1992, concebem uma longa duração do
37
É nesta direção - muito mais do que a revelação da sua essência, como era colocada
no passado - que eu considero que uma reflexão sobre a arte brasileira continuaria sendo
pertinente. E, assim, reencontramos artistas e intelectuais brasileiros, como Porto Alegre, que
se entregaram a este tipo de discussão, tateando neste difícil emaranhado entre pertencer a
um locus e ao mesmo tempo estar conectado a uma cultura hegemônica originalmente externa.
Referências Bibliográficas:
Livro de Correspondências da Academia Imperial de Belas Artes 1852/1855 (MDJVI Notação 6126).
Livro de Atas das Sessões da Congregação da Academia Imperial de Belas Artes 1841/1856. (MDJV Notação 6151).
COLI, Jorge (org.). Louis Rochet: Nova proposição apresentada à Comissão da estátua eqüestre de D. Pedro I, em 18
de setembro de 1856; tradução Arthur Valle. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em: <http://www.
dezenovevinte.net/txt_artistas/rochet coli.htm>.
DANTO, Arthur. What art is. New Haven & London: Yale University Press, 2013.
GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Porto Alegre; sua influência na Academia Imperial de Belas Artes e o Meio Artístico do
Rio de Janeiro. Revista SPHAN, n. 14, 1950.
GALVÃO, Alfredo. A estátua eqüeste de D. Pedro I. Arquivos da Escola Nacional de Belas Artes, nº 8. Universidade do
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KNAUSS, Paulo. Negro Horácio: Louis Rochet e a escultura antropológica no século XIX. Anais do XXVI Simpósio Nacional
de História - ANPUH. São Paulo, julho 2011.
LÖWY, Michael & SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia: o Romantismo na Contracorrente da Modernidade. São Paulo:
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PEREIRA, Sonia Gomes. Romantismo Brasileiro: as relações com Portugal, o projeto de construção da nação e a pintura
na Academia. In: Valle, Arthur; Dazzi, Camila; Portella, Isabel (Org). Oitocentos: Intercâmbios Culturais entre Brasil e
Portugal. Seropédica - Rio de Janeiro: Editora da UFRRJ, 2013, v. III, p. 484-495. ISBN 978-85-8067-045-5.
PEREIRA, Sonia Gomes. A Exposição Geral de 1879 e a escrita da História da Arte brasileira no século XIX. In: Anais do
23º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas: ecossistemas artísticos. (realizado
em Belo Horizonte em 2014). Belo Horizonte: ANPAP / UFMG, 2014. p. 1865-1880 (on line).
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
pensamento romântico, como sendo o lugar dos que se posicionam fora do pensamento triunfante da modernidade, sobretudo
entendida como industrialização e mecanização, assim como dos que ficaram de fora do quadro hegemônico ocidental, identificada
como a civilização branca, predominantemente anglo-saxã e germânica. LÖWY, Michael & SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia:
o Romantismo na Contracorrente da Modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.
38
Anos 1960: identidades compartilhadas entre vanguardas internacionais? - Stéphane Huchet
Anos 1960: identidades compartilhadas entre vanguardas internacionais?
Stéphane Huchet
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Resumo: Uma análise da reflexão critica, tanto dos artistas quanto dos críticos de arte,
mostra como os anos de 1960 viram convergir concepções artísticas que não permitem
que uma história da arte atenta aos méritos da própria “autonomia” artística separe o que
os álea da geopolítica não deixaram dialogar na época. Hoje, é possível considerar que as
posições de Décio Pignatari ou Pedro Escosteguy, por exemplo, ligadas a manifestações
vanguardistas paulistas ou cariocas, quando lidas e resgatadas a posteriori numa teoria
da arte moderna como aquela que o historiador Thierry de Duve desenvolveu mais de
vinte anos depois, constituem um material crítico adequado à tese defendida pelo teórico
belga. Esse exemplo pode ser ainda mais impactante se considerarmos que as posições
da “guerrilha artística” reatam, de maneira paradoxal, com certas noções clássicas da arte,
desenvolvidas em contextos e épocas totalmente alheias. Esses exemplos, sucintamente
analisados no contexto da comunicação, podem sustentar a tese de que a escrita da
História da arte exige que as fronteiras estanques que foram definidas em épocas nas
quais a geopolítica artística exercia seu papel discriminatório, precisam ser deslocadas em
nome do que podemos chamar simplesmente de História da autonomia artística, isto é, a
história que vê nas obras um poder de revelação de tendências estéticas compartilhadas
apesar dos impecilhos e das restrições na circulação dos “modelos”. Hoje, um historiador
atento às identidades veria que essas últimas podem ser “desnacionalizadas” e que
sua internacionalização existia mesmo quando se a negava. Não se pode negar que o
papel geopolítico do mercado e mercadológico da geopolítica sempre foi determinante
no cenário artístico, mas o que nos interessa é que hoje, num contexto mais flexível, a
historiografia pode avaliar um trabalho neoconcretista e minimalista sem necessariamente
se submeter ao fato histórico do domínio cultural de um e da marginalização de outro na
época em que ambos coexistiam no tempo. A imagem e plasticidade readquirem seus
direitos.
Palavras-chave: Vanguardas; Critica; Anos1960.
Abstract: An analysis of the critical reflection of both artists and art critics, shows how the
years of 1960 saw converge artistic conceptions that do not allow a history of art attentive
to the merits of his own artistic «autonomy» separate what the álea of geopolitics have
left no dialogue at the time. Today, it is possible to consider that the positions of Décio
Pignatari or Pedro Escosteguy, for example, linked to avant-garde manifestations in São
Paulo or Rio de Janeiro, when read and rescued a posteriori on a theory of modern art
39
as the historian Thierry de Duve has developed more than twenty years later, constitute
a critical material suitable for the thesis defended by Belgian theorist. This example might
be even more impressive if we consider that the positions of «guerrilla art» go back, so
paradoxical, with certain classic notions developed in art contexts and times totally alien.
These examples, briefly analysed in the context of communication, can sustain the thesis
that the writing of art history requires that the watertight boundaries that were set in times
in which the artistic role was discriminatory geopolitics, need to be displaced in the name
of what we can call simply the history of artistic autonomy, that is, the story that sees in
the works a power of revelation of shared aesthetic trends despite the impediments and
restrictions on the movement of «models». Today, a historian, aware of the « national »
identities would see that its internationalization existed even when denied. It cannot be
denied that the geopolitical role of the market and marketing of geopolitics has always been
determinant in the art scene, but what interests us is that today, in a more flexible context,
historiography can evaluate neoconcretist and minimalist works without necessarily
undergo the historical fact of the cultural domain of one and the marginalization of other at
a time when both coexisted in time. The image and plasticity regain their rights.
Keywords: Avant-gardes; Criticism; Sixties.
Uma análise da reflexão critica, tanto dos artistas quanto dos críticos de arte, mostra
como os anos 1960 viram convergir concepções artísticas que não permitem que a história
da arte, se for atenta aos méritos da própria linguagem artística, separe o que a geopolítica
não deixou dialogar na época. Cientes do obstáculo constituído pelas circunstâncias políticas
complexas da época, o que não poderíamos perdoar hoje seria uma historiografia que, décadas
depois dos fatos, não examinaria o valor histórico de obras antes marginalizadas, mas hoje
plenamente disponíveis no plano da informação e na sua autonomia formal e linguística. A
atual liberdade de reexame permite que se faça um quadro sinóptico renovado da produção
dos anos 1960. Esse quadro sinóptico poderia mostrar a existência de um conjunto de ideias
artísticas compartilhadas em várias partes do mundo, comprovando sua circulação. Assim, a
história das linguagens plásticas e das problemáticas artísticas exige que criemos um tipo de
atenção especial para aquilo que, numa certa época, ficou geopolítica e mercadologicamente
marginalizado. O que está em jogo, nas camadas da história, é o conflito entre a geopolítica e
a autonomia artística das linguagens.
Questão de método: lições da geopolítica e da autonomia
Sonhamos, por exemplo, numa historiografia que saiba reconhecer como, do ponto de
vista das linguagens artísticas, o Neo-concretismo brasileiro é tão interessante e significativo
quanto o Minimalismo nos Estados Unidos. Deveríamos, por exemplo, dispor agora de livros que
soubessem envolver num mesmo diálogo Hélio Oiticica e Robert Morris. É difícil. Sabemos como,
40
Anos 1960: identidades compartilhadas entre vanguardas internacionais? - Stéphane Huchet
nos anos 1960, a arte que teve êxito, a arte que foi promovida, valorizada e internacionalizada
por meio desta última se chama Expressionismo abstrato, Pop, Minimalismo ou, para falar de
outra fonte, Nova Figuração e não, infelizmente, Neo-concretismo. O fluxo era unidirecional.
Por exemplo, mesmo as várias viagens de Pierre Restany no Brasil não geraram na época uma
penetração das artes plásticas brasileiras no cenário francês das exposições. O reequilíbrio
do quadro artístico com referências outras, por exemplo brasileiras, se revela difícil porque
quando se escreve a história da arte, raramente se escreve apenas uma história das formas
autônomas de linguagem ou, melhor dito, só se pode escrever a história das experimentações
plásticas depois de elas terem-se tornado referências incontestadas, depois de conhecidas e
reconhecidas. Assim, na primeira metade dos anos 1960, sem muitos concorrentes no mercado
político-institucional, a arte moderna norte-americana se beneficiou da política cultural que a
promoveu e fez circular. Isso gerou uma “grande narrativa” hegemônica que confirmou o triunfo
geopolítico de um mega-modelo artístico que vigorou e determinou a “narração” e as principais
grades de leitura da arte contemporânea. Criou referências predominantes, quase inamovíveis,
que encontram até hoje dificuldades para serem reconfiguradas. O sistema mnésico da
historiografia da arte do século XX é percorrido por dobras dificilmente diluíveis. Entretanto, as
coisas começam a mudar porque muitas exposições, desde os anos 1990, contribuem a essa
mudança.
O que devemos reivindicar hoje é a possibilidade de uma história que seja uma narrativa
alternativa baseada no balanço das linguagens; uma “história da autonomia artística”, no
sentido de atentar para a própria economia estética das obras; uma história que tenha a
capacidade de resgatar a posteriori o valor desconhecido daquilo que sofreu um processo
de “exclusão da história” e que aguardou o momento favorável para entrar no “concerto das
nações”. É assim que foi preciso anos e anos para que as iniciativas pioneiras de Catherine
David “ressuscitassem” a arte de Hélio Oiticica num âmbito internacional. Decerto, a “história
da autonomia » não pode disfarçar as relações de força geopolíticas; lhe cabe contudo
salientar obras e artistas que ela considera como integrantes plenos de uma história mais
abrangente das linguagens, mais justa, mais atenta à diversidade geopolítica. Toda história
deve ser reescrita tomando em consideração as duas polaridades. Além disso, a história da
arte deve sempre ser reescrita porque ela é também uma história das ideias. As ideias artísticas
foram muitas vezes compartilhadas num nível supra-nacional. Com efeito, o historiador da arte
pode por momentaneamente entre parênteses os sucessos ou insucessos, as circunstâncias
geopolíticas e as hierarquias estanques que elas criaram, para demonstrar a existência, em
diversos territórios artísticos, de um ideário, senão comum, pelo menos, compartilhado e afim.
Tomemos um exemplo. Tem a ver com a interpretação do “modernismo”.
Exemplo
A lógica “moderna” da arte, tal como foi interpretada pelo teórico belga Thierry de Duve,
encontra em referências brasileiras contribuições fundamentais graças às associações e
41
articulações que podemos criar com ela. Para de Duve,1 a arte é “moderna” quando um artista,
ao herdar um certo estado do fazer, um certo estado de sua arte, trabalha a modificá-los de
tal maneira que a análise que fazemos a seu respeito avalia e argumenta a capacidade que a
obra tem de renovar a linguagem. Quando de Duve pensou essa questão nos ano 1980, ele
ignorava tudo de Pedro Escosteguy. Não podia incluir nas suas reflexões o que este último
escreveu no catálogo Propostas 65. Mas hoje, na hora de montar o dossiê historiográfico e
crítico da perda das “especificidades” artísticas (que constitui um componente central dos anos
1960), o pesquisador que cruza a fala crítica de Escosteguy e a teoria de duviana descobre
uma convergência nítida. Escosteguy escrevia em 1965:
Para se discernir sobre a valididade ou a permanência dos valores intrínsecos dessa nova
estética, é importante que se analise detidamente não só o que se apresenta inteiramente novo,
como também as transfigurações de tratamento assentadas sobre técnicas já experimentadas,
quando, inequivocadamente, se liberam de compromissões condicionadas pela tradição ou
pela crítica convencional.2
Escosteguy apresenta aqui uma concepção do juizo artístico particularmente bem
fundamentada. Ela coaduna perfeitamente com o que de Duve afirmará duas décadas mais
tarde. Diz respeito ao valor de inovação, de renovação da linguagem, ao estado em que se
encontra uma prática artística num dado momento, à evolução dos processos criativos, à relação
com a história da arte, aos parâmetros da crítica. O diálogo virtual entre um crítico brasileiro
dos anos 1960, em plena ação, e um teórico estrangeiro vinte anos mais tarde demonstra a
produtividade e o mérito de uma historiografia que se baseia no cruzamento das linguagens
artísticas e na criação de condições favoráveis ao desvelamento das convergências críticas
no ideário artístico. É histórica e criticamente muito instrutivo completar e remanejar a história
das ideias artísticas modernas e contemporâneas com o material brasileiro porque se trata de
linguagens concomitantes. No plano epistémico, certos enunciados dialogam intensamente. É
por essa razão que a história das linguagens artísticas é também uma história das problemáticas
em voga em tal ou tal momento, a história das escolhas e das linhas críticas dos artistas.
A “história das linguagens e das problemáticas” artísticas é trans-nacional. Ela é capaz de
conquistar novos territórios de afirmação, de atestação e de análise para obras e artistas que os
alea da história não deixaram aparecer na sua hora. A história da arte é, portanto, uma história
das visibilidades diferidas, atrasadas, resgatadas, confirmando que o conhecimento também
é intempestivo. Agora, não se trata de vingar uma susceptibilidade cultural negligenciada. Não
se trata, por exemplo, de minimizar a sofisticação da reflexão artística nos Estados Unidos
porque o teor da reflexão brasileira não tinha-se beneficiado ainda do reconhecimento que
ela mereceu desde então. Allan Kaprow, por exemplo, se mostra mais denso e sistematizado
do que qualquer outro artista na sua reflexão sobre a arte experimental. Em contrapartida, o
1
DE DUVE, Thierry. Résonances du readymade. Nîmes: Jacqueline Chambon, 1988.
ESCOSTEGUY, Pedro Geraldo, “No limiar de uma nova estética”. In: Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas,
FERREIRA, Glória,(org.). Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006, p.138
2
42
Anos 1960: identidades compartilhadas entre vanguardas internacionais? - Stéphane Huchet
texto de Oiticica sobre a “Nova Objetividade” brasileira, em 1967, não tem correspondente
fora. Outro exemplo, no mesmo ano: a “Teoria da Guerrilha Artística” do poeta concreto
Décio Pignatari aparece como uma peça muito significativa do puzzle artístico internacional
da época. Décio Pignatari fala da arte desses anos como de uma “metavanguarda […] que
toma consciência de si mesma” como “processo experimental”.3 Não deixarei passar essa
oportunidade de lembrar que a definição da arte moderna pelo filósofo Arthur Danto, baseada
na análise da obra de Andy Warhol, é muito próxima: trata-se também de uma arte “consciente
de si”, o que lhe dá um caráter meta-artístico, e, inclusive, filosófico. Sempre citamos Danto ;
raramente Pignatari. Mas ambos dizem a mesma coisa: nova peça no dossiê… Ora, para o
poeta concreto, as múltiplas inovações artísticas da década de 1960 testemunham a nova
consciência de si da arte, a consciência de suas tarefas possíveis, a possibilidade utópica de
“criar uma nova totalidade”.4 E, acrescenta ele, as condições de invenção são estreitamente
ligadas a um trabalho no interior de “conhecimentos já codificados” graças aos quais o artista
procede a “atos decisivos”.5 Aqui, Pignatari confirma bem antes de De Duve que a tomada
de decisão do artista corresponde a um posicionamento dentro de linguagens pré-existentes,
isto é, de disciplinas artísticas que o trabalho do artista reestrutura. Numa palavra, tanto para
Pignatari quanto para De Duve, “moderno » é o artista que interroga as convenções de sua
arte e que transforma a obra numa tomada de posição artística sobre o estado em que ela a
encontrou. Tem mais: Pignatari fala de uma “capacidade de decisão e invenção” interessando a
“seleção e operação” ou “a capacidade de linguagem”6 que a obra manifesta. Aqui, confesso um
estranhamanto muito instrutivo. Com efeito, não estamos falando de vanguardas modernas ?
Entretanto, a fórmula “capacidade de decisão e invenção” tem um ar de déjà-vu. Quem
conhece a teoria e a história da arte pode arriscar uma hipótese: ao definir a potência de
renovação da arte, Pignatari reataria – inconscientemente – com a definição do disegno como
invenzione em Vasari! Releiamos Pignatari: “a ampliação do repertório, pois, não depende
apenas do número de dados armazenados, mas da capacidade de decisão […] ou seja, da
sua capacidade de linguagem”. Assim, selecionar, decidir, saber utilizar os recursos práticos e
simbólicos disponíveis para inventar: tais são os componentes da “guerrilha” artística, sonho
crítico de uma reestruturação total da arte e de seu sentido. O que interessa o historiador,
capaz de lidar com o longo prazo, é que a argumentação de Pignatari, sob as embalagens
retóricas da era da comunicação, repete os fundamentos teóricos da História da arte, o disegno
sendo a articulação dos dados armazenados no espírito e na sensibilidade do artista com a
elaboração linguística do novo produto visual... A “guerrilha” é pensada nos termos da Tradição !
Quando 1968 responde a 1568… Vasari inicia a edição de suas Vidas… por um portal teórico
no qual apresenta a criação artística como projeto. Desenhar é projetar uma ideia. Fazer arte
é manifestar no visível uma ideia que estrutura a narração formal e visual. Hoje, não podemos
3
PIGNATARI, Décio, “Teoria da guerrilha artística” (1967). In: FERREIRA, Glória, op.cit. p.158-59
4
Ibdem, p.160
5
Ibidem
6
Ibidem
43
nos contentar em reduzir o leque da produção artística ao desenho, entretanto, o que a leitura
de Vasari traz são os elementos de compreensão do processo artístico em geral. Projetar
uma ideia previamente estruturante, é o que todo artista faz. Hoje, o que mudou, obviamente,
são os recursos e as modalidades expressivas, plásticas, visuais, técnicas. Se, em 1967, um
certo mecanismo artístico teorizado por Vasari se encontra reciclado numa dinâmica cultural
outra – a agenda da reestruturação da arte –, o que fascina é que seu autor, Pignatari, ao tentar
entender a “nova estética”, não só remete involuntariamente às raizes inteletuais da arte, como
também cruza a sincronia e a diacronia. Incluir na “guerrilha” artística um mecanismo cognitivo
conceituado nas origens da História da arte é um dos paradoxos do “novo”.
44
Arte e contemporneidade: meios e poéticas
A utopia fotográfica em museus de arte: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
A utopia fotográfica em museus de arte: Museu de Arte Moderna Aloísio
Magalhães
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
Universidade de Brasília - UnB
Resumo: A emancipação da fotografia enquanto suporte, linguagem e mídia em arte,
em parte, deve a sua utilização na prática conceitual de artistas desde os anos de 1960.
Prática que merece ser investigada para compreendermos as tensões históricas existentes
entre a produção, a circulação e o arquivamento da arte contemporânea desde então.
O presente trabalho busca compreender o papel da fotografia como mediador poético
de outras práticas artísticas, tomando como exemplo específico o acervo do Museu de
Arte Moderna Aloisio Magalhães, em Recife. Nesse tocante é sintomático compreender
as opções, as estratégias e os enquadramentos de sentido ofertados pelo museu frente
a fotografia como objeto e medidora poética. Trata-se de um debate especifico que
pode ampliar a compreensão da percepção da arte colecionada e sua repercussão na
constituição da historia da arte contemporânea.
Palavras-chave: Fotografia; Acervos; Reapresentação; Arte contemporânea.
Abstratc: The emancipation of photography as support, language and media arte, in part,
due to its use in conceptual practice of artists since the 1960s. Practice that should be
investigated to understand the existing historical tensions between production, circulation
and archiving of contemporary art ever since. This study aims to understand the role
of photography as a poetic mediator from other artistic practices, taking as a specific
example the Modern Arte Museum Aloísio Magalhães collection, in Recife. Therefore, it is
symptomatic understand the options, strategies and frameworks offered by the museum
about photography as an object and measuring poetic. It is a specific debate that can
broaden the understanding of the perception of art collections and its impact on the
constitution on the history of contemporary art.
Keywords: Photography; Collection; Reexhibiting; Contemporary Art.
A little bit of history repeated no Kunst-Werke Institut of Contemporary Art em Berlim,
em 2001, foi uma exposição dedicada à re-performance. Com curadoria de Jens Hoffmann,
durante três dias no mês de novembro, várias performances das décadas de 1960 e 1970 foram
reinterpretadas por artistas europeus junto a outros performers de diferentes procedências, como
47
a estadunidense Thisha Donnelly, a sul-africana Tracey Rose, o japonês Takehito Koganezawa
e a brasileira Laura Lima, entre outros. A base do processo suscitado por Hoffmann consistia
em analisar toda a documentação a disposição para reapresentar os trabalhos. A ideia central
era “re”: reinterpretar, reapresentar, re-examinar, re-experimentar e re-encenar.
Neste processo a fotografia ocupou um papel fundamental. Inúmeros pesquisadores,
curadores, artistas têm nos arquivos fotográficos aliados importantes na produção de
novas narrativas de obras do passado. São investigadores preocupados com a questão da
reapresentação de performances, de happenings, de instalações, de intervenções públicas,
de novas tecnologias (em especial da arte computacional e arte on line) em instituições
museológicas. Nosso propósito neste trabalho é apresentar a fotografia como “problema”
para tais instituições brasileiras.1 Ou seja, buscamos compreender o papel da fotografia como
mediador poético de outras práticas artísticas, tomando como exemplo específico o acervo do
Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, em Recife.
Fundado em 1997, o MAMAM destacou-se na sua primeira década por uma política
aquisitiva devotada à arte contemporânea, que suscitou a discussão de como a instituição
relaciona-se com o arquivamento e a reapresentação das obras assimiladas desde então. Seu
acervo conta com obras díspares confeccionadas por artistas, que ao usar a fotografia, não
estavam diretamente envolvidos com as questões próprias da tradução fotográfica (Adriana
Varejão, Nelson Leirner, Carlos Fajardo e José Patrício) e, no verso, obras de criadores
especialmente preocupados com a manipulação da fotografia como mediadora poética (Brígida
Baltar, Carlos Mélo, Sandra Cinto e Marcelo Silveira).
A discussão possui sua própria literatura, tanto no universo das artes visuais, quanto nas
ciências da informação e na museologia. Todavia, o impacto da fotografia como índice de “recuperação” ou tradução2 de outras modalidades poéticas sobre a produção de narrativas da
história da arte, ainda, não fora de todo mensurado. Não se trata do debate atual sobre os limites
entre fundos documentais e acervos museológicos, um debate, aliás, que orientou a concepção
de A little bit of history repeated. Em nosso caso, trata-se de uma fotografia que ocupou o
lugar de outra obra. Traduzindo-a evidentemente. Fotografia presa numa promessa utópica
de substituição. Nem sempre entendida como parte de processos amplos de projetos poéticos
maiores, mas como centro e produto de tais processos. Certamente dada a precariedade
das ações museológicas - e os motivos são diversos e fogem ao escopo deste trabalho -, tal
substituição tem sido naturalizada, sem que o debate sobre as reais consequências possam
surgir.
1
O presente texto é parte da pesquisa “Registro e reapresentação dos acervos de arte brasileiros: análise comparativa”, financiada
pelo CNPq.
2
O conceito de tradução merece cuidado. Tomo-o emprestado numa perspectiva específica: “Em suma, por um ato de tradução
que poderia hoje representar esse ‘esforço ético elementar’ imputado, erroneamente, ao reconhecimento do outro enquanto tal:
toda tradução implica adaptar o sentido de uma proposição, fazê-la passar de um código para outro, o que requer que se dominem
as duas línguas, mas também que nenhuma delas seja dada. O gesto de traduzir não impede absolutamente a crítica, ou mesmo
a oposição: em todo caso, implica uma apresentação. Ao cumprir-se esse gesto, não se estará negando uma possível opacidade
do sentido, tampouco o indizível, uma vez que toda tradução, fatalmente incompleta, deixa atrás de si um irredutível resto.”
BOURRIAUD, Nicolas. Radicante - por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.28.
48
A utopia fotográfica em museus de arte: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
A questão do registro poético de obras efêmeras ou endereçadas tem ocupado no Brasil,
há pelo menos duas décadas, diferentes pesquisadores no campo das artes visuais. Nesse
tocante é sintomático compreender as opções, as estratégias e os enquadramentos de sentido
ofertados pelo MAMAM frente à fotografia como objeto e medidora poética. Trata-se de um
debate especifico que pode ampliar a compreensão da percepção da arte colecionada e sua
repercussão na constituição da historia da arte contemporânea. De saída, é preciso apontar
para a premissa de que, ao tratarmos de fotografia, estamos diante de um continente diverso,
cujas especificidades mal são enunciadas aqui. Dediquemos-nos a compreender quando uma
fotografia torna-se protagonista de processos mais amplos. Não apenas no que concerne às
políticas de visibilidade, mas também como acionadora poética privilegiada.
Uma utopia legitimadora da poética do efêmero
A emancipação da fotografia enquanto suporte, linguagem e mídia em arte deve em parte
a sua utilização na prática conceitual de artistas desde os anos de 1960. Prática que merece
ser investigada para compreendermos as tensões históricas existentes entre a produção, a
circulação e o arquivamento da arte contemporânea desde então. Ao mesmo tempo, a fotografia
desdobra-se como registro indicativo e extensivo de outras práticas artísticas, construindo
relações consensuais, ambíguas, marginais ou polêmicas; nem sempre explicitados dentro
das coleções autorizadas.3
Como bem lembra Thierry de Duve, desde os anos de 1960 não temos mais apenas
pintores, escultores, gravadores, performers ou videomakers (1996) e sim artistas visuais,
ou seja, técnicas, suportes e linguagens fundem-se em jogos que marcam simultaneamente
especificidades e diluem as fronteiras entre sintaxes. A condição pós-mídia, na acepção
ofertada por Peter Weibel (2006), conferiu à linguagem fotografia um papel importante no
desenvolvimento da arte contemporânea desde então. É evidente que tal relevância não
subtrai as dificuldades da fotografia ser assimilada pelo circuito museológico convencional,
nem como operador poético, nem como registro estetizado refletindo sobre outras linguagens,
como bem nos confirma o conhecido ensaio de Douglas Crimp (1979). Do mesmo modo, a
fotografia não foi a única linguagem a ser transportada para a intersecção entre o documento
e a ação poética.4 O vídeo, a literatura e o cinema stricto sensu também produziram seus
próprios problemas.
Para Camiel van Winkel, a fotografia para e na arte contemporânea fundou um lugar
mais amplo - ele arrisca-se a dizer neutro - para o registro e a produção de visualidades.
3
Compreendemos como “coleções autorizadas” aquelas construídas a partir das narrativas aprovadas por um conjunto de sujeitos
mais ou menos ligados ao circuito das artes (artistas, curadores, historiados da arte, educadores, gestores, patrocinadores,
galeristas, editores, produtores culturais, jornalistas e críticos especializados etc.). São obras de arte eleitas para compor as
narrativas dominantes de um determinado artista, de uma determinada época ou instituição. Desta forma, nem todo o acervo de
uma instituição museológica pode ser considerado uma “coleção autorizada”. Para tal é preciso considerá-la nos três discursos
dominantes na atualidade: curatorial, historiográfico e o mercadológico.
4
Raphael Samuel, em seu artigo Teatros de memória (1994), sinaliza um paralelo entre a incorporação da fotografia como arte pelo
sistema museal e a descoberta da fotografia como documento da história, o que ocorreu entre meados dos anos de 1960 e o início
dos anos de 1970. SAMUEL, Raphael. “Teatros de memória”. Projeto História, 14, São Paulo, PUC/SP, fev. 1997.
49
Compreendida por muitos artistas conceituais desde os anos de 1960 como suporte que
oferecia pouca resistência à comunicação de uma ideia e de conceitos poéticos, a fotografia
é, simultaneamente, uma linguagem mais aberta às ideologias dos anos de 1970: servia como
uma linguagem sem rosto, anônima e acessível, uma forma “polida” de apresentar uma obra,
sendo interior e exterior a mesma (2012, p. 234).
Alguns importantes artistas utilizaram a fotografia como dispositivo acionador de suas
questões poéticas, fundindo os predicados documentais e as qualidades estéticas. O elenco
de artistas é grande e as abordagens distintas. Se para Judith Rodenbeck (2011) foi a obra
de Allan Kaprow que introduziu a fotografia como elemento ímpar na produção artística, o
eleito de Rosalind Krauss (2000) fora Hans Namuth, que realizou as famosas fotografias de
Jackson Pollock pintando. Já Suzanne Paquet (2010) e Cristina Freire (1999) lembram-nos do
impacto da fotografia nos trabalhos de Robert Smithson. Renato Rodrigues da Silva (2009),
por sua vez, terá nos “livros de fotografia” de Edward Ruscha uma questão essencial para a
institucionalização da fotografia,5 enquanto Bertrand Clavez (2009) elegeu as fotografias do
Fluxus como ponto de inflexão entre documento e obra. Para Claire Bishop (2012), nos anos de
1960, artistas menos citados como Milan Knízák, Oscar Masotta, Marta Minujín e Oscar Bony
merecem destaque no uso da fotografia enquanto documento de uma prática artística.
Já Van Winkel (2012) selecionou John Baldessari, Jan Dibbets e Gilbert & George como
artistas que apelaram para fotografia sem ater-se a problemas clássicos como linha, contraste
e relação figura-fundo, mas cujo uso permitiu abordar questões conceituais. É peculiar notar
que tais artistas optaram, num primeiro momento, por uma fotografia que negava aspectos
artísticos convencionais. Mesmo que aos nossos olhos não passe despercebido um senso
cinematográfico na ação expográfica, uma certa perspectiva antiestética é evidente, por
exemplo, em Photo-piece de 1971 da dupla de artistas (Figura 1). As fotografias não apresentam
um processo de composição que coordenam linha, claros e escuros, e o fundo parece-nos
distraidamente captado.
Uma parte notável dos artistas conceituais estava muito pouco preocupada naqueles
anos em sublinhar as potencialidades da fotografia. Usavam-na como artifício para expressar
uma distância entre as propostas e as possíveis competências atribuídas aos artistas e/ou
fotógrafos. Como na irônica série de fotografias “Arremessar três bolas no ar para obter uma
linha reta (o melhor de trinta e seis tentativas)” de Baldessari, produzidas entre 1973-1975
(Figura 2). De algum modo, para estes artistas, há nesse momento uma fotografia capaz de
negar valores artísticos consagrados. O trabalho de Michael Ascher evidencia essa condição,
ao propor uma fotografia quase dependente das legendas que as acompanham. Em especial
àquelas apropriadas do mercado publicitário e cujo valor artístico é negado.
5
“Outro incidente ocorreu em 1963, quando Ruscha enviou uma cópia de Twentysis gasoline stations à Biblioteca do Congresso
Americano, localizada em Washington. De acordo com o artista, o livro foi recusado pela falta de conteúdo literário. Ele, contudo,
explorou essa recusa como propaganda, publicando uma matéria paga na revista Artforum. Dramatizando o incidente, o anúncio
intitulado “REJECTED” [Recusado] trazia a fotografia do livro, a data e o nome da instituição, alem, obviamente, do endereço de
venda” SILVA, Renato Rodrigues da. “Livros de fotografia de Edward Ruscha” (COSTA, 2009, p.157).
50
A utopia fotográfica em museus de arte: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
Figura1 - Gilbert & George, Photo-piece, 1971, série Nature Pieces; fonte: Site official Gilbert & George: http://www.
gilbertandgeorge.co.uk/
Figura 2 - John Baldessari, Arremessar Três bolas no ar para obter uma linha reta (o melhor de trinta e seis tentativas),
de 1973; fonte: Site Museum of Contemporary Photography: http://www.mocp.org/index
51
Nossos olhos certamente estão habituados a confirmar nessas fotografias valores que
não eram evidentes para a primeira audiência dos artistas conceituais. Muitas das fotografias
foram arbitrariamente produzidas para se aproximar de instantâneos de um fotografo amador,
no sentido conferido ao termo no século XIX. Muito embora saibamos, hoje, que a própria
casualidade e despretensão já expressavam um artifício e uma estratégia. No passado recente,
era importante negar traços poéticos e artesanais da fotografia. O ato criativo subversivo para
um artista habilidoso era imitar uma pessoa com pouca familiaridade com a arte, segundo Jeff
Wall, que completa:
.... o gesto de passar à anti-arte, ou não-arte, [era] o ato de internalizar a indiferença da sociedade para a
felicidade e seriedade da arte ... Esta mimesis expressa o desaparecimento das grandes tradições da arte
ocidental nas novas estruturas culturais estabelecidas pelos meios de comunicação, o mercado financeiro,
suburbanização, e a burocracia reflexiva. O ato de renúncia necessária para um artista hábil para aprovar esta
mimesis, e construir obras a partir de seus resultados, é um escândalo típico do desejo de vanguarda, o desejo
de ocupar o limiar da estética, do seu ponto-de fuga.6 (Wall, 1995, p. 265)
A deficiência técnica como qualidade na fotografia para os artistas conceituais nos leva
as Esferas de Marcelo Silveira, intervenção urbana da mostra “Entre a surpresa e o que se
espera”, na cidade de Recife, em 2001. O trabalho de Silveira é modulado e reapresentado por
uma série fotográfica (Figura 3) que guarda parte das estratégias dos artistas conceituais dos
anos de 1970. O trabalho deste artista visava a transformação do espaço da rua em espaço
de estranhamento diante de suas estruturas de madeira, couros e metal pesados, de difícil
mobilidade, mas que aparentavam fragilidade e leveza. A surpresa foi um elemento suscitado e
apresentado nas fotografias que apresentam a relação dos passantes das ruas de Recife diante
dos trabalhos. A estratégia antiestética resurge nas fotografias, que nos parecem retiradas por
passantes, sem cuidados com enquadramentos ou outras estratégias.
Além das fotografias, o que o museu possui é um único objeto circular utilizado na
intervenção urbana por Silveira. Mas sua presença isolada no espaço expositivo é incapaz de
rememorar a intervenção, embora consiga restaurar parte da questão poética: leveza visual
versus peso estrutural (Figura 4). Nesse sentido, a fotografia qualifica o lugar do objeto numa
exterioridade outra; suplementa sua existência, sem perder sua autonomia. As fotografias
indicam “Esferas”, a intervenção de 2001, enquanto o objeto circular está catalogado como
uma peça Sem título, de 100 cm de diâmetro, produzido em 2003. Assim sendo, temos aqui
uma conhecida estratégia das instituições - crítica especializada, história da arte, museus etc..
Elas dissipam as fronteiras entre o poético e o documental. Assume-se a obra como aquilo que
dar-a-ver-outro, bem indicado por Arthur Danto, uma vez que “... uma fotografia de uma obra
6
“…the gesture of passing over into anti-art, or non-art, [was] the act of internalizing society’s indifference to the happiness and
seriousness of art...This mimesis expressed the vanishing of the great traditions of Western art into the new cultural structures
established by the mass media, credit financing, suburbanization, and reflexive bureaucracy. The act of renunciation required
for a skilled artist to enact this mimesis, and construct works as models of its consequences, is a scandal typical of avant-garde
desire, the desire to occupy the threshold of the aesthetic, its vanishing-point.” Wall retoma o argument em outro texto: “Marks of
indifference: aspects of photography in, or , as Conceptual Art” publicado The Last Picture Show, disponível: http://www.art.ucla.
edu/photography/downloads/Wall001.pdf; acesso em junho de 2015.
52
A utopia fotográfica em museus de arte: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
Figura 3 - Marcelo Silveira, Esferas, intervenção urbana. Fonte: MAMAM, 2004, p.62.
Figura 4 - Marcelo Silveira, Sem título, 2001, jaqueira, 100cm diâmetro, acervo
MAMAM; obra no hall de entrada do museu. Fonte: Blog MAMAM.
de Arte pode muito bem ser obra de arte por si só se apresenta o conteúdo de modo a propor
uma idéia acerca do conteúdo apresentado.” (2005, p.219).
Numa perspectiva oposta, e não menos conceitual, está a fotografia “A coleta da maresia”,
de Brígida Baltar, de 2001 (Figura 5). Sabemos que a fotografia é uma partícula do longo
53
Figura 5 - Brígida Baltar, A Coleta da maresia (da série A Coleta da Maresia), 2001, impressão em cores sobre papel fosco, 100x
154 cm, acervo MAMAM; fonte: MAMAM, 2004, p.24.
processo poético de Baltar. Uma performance nas praias do Rio de Janeiro que se transformara
em pequenos vídeos e uma série fotográfica. A série é a última do projeto Umidades (19942001), onde a artista coleta névoa e orvalho, em momentos distintos, nas Serras dos Órgãos
e na Serra das Araras, interior do estado do Rio de Janeiro. Sobre elas, o então diretor do
MAMAM, Moacir dos Anjos escreve:
As coletas de umidade se inscrevem, ademais, em temporalidades poéticas distintas. A coleta da neblina feita em meio à névoa cerrada - parece ocorrer num tempo suspenso e imóvel. A coleta do orvalho, por sua
vez, sugere - pelas roupas que veste a artista e pelos estranhos objetos coletores que usa - ter sido realizada
num instante por vir ainda. A coleta da maresia, por fim, evoca sutilmente o passado: não somente as roupas
das coletoras lembram trajes de banho que estiveram em voga faz várias décadas, mas também a tênue luz
azulada de fotografias e filme - reflexos do oceano e do céu aberto que o encobre - funciona quase como um
filtro nostálgico. (2003).
As fotografias da série expressam nítida preocupação com os valores e a técnica
fotográfica. Foco, enquadramento e luz foram calculados para transmitir as propriedades
da coleta e sua utopia: recolher o efêmero. Sua fugacidade é transmitida pelo jogo entre o
movimento da performance e fixação da fotografia.
As fotografias de Baltar compõem o interior do processo poético. Estão contidas nele.
Amplificam o momento performático e lhe conferem potência justamente pela aparente
54
A utopia fotográfica em museus de arte: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
oposição entre os meios. Sua obra é assimilada pelo museu em sua integridade material vídeo e fotografia. Não há jogos de substituição. O processo é metonímico.
Da perspectiva da história da arte temos fotografias produzidas por artistas, cuja finalidade
poética é distinta. A partir da sentença ofertada por Certeau, se “o modo de rememoração é
conforme o modo da inscrição” (p.164), a comparação entre os trabalhos de Silveira e Baltar
seria arbitrário, quase fútil, se as fotografias não habitassem o campo de visibilidade do mesmo
museu. Estão unidas pelo nexo instável do colecionamento. Ambas são traços, sinais, índices
selecionados e estabilizados pelos próprios artistas.
Nesse tocante, um aparente problema museológico exige um escrutínio do historiador
da arte. Cabe-nos estabelecer um elo narrativo entre o traço do evento passado selecionado
pelos criadores e o acontecimento poético oferecido pela própria fotografia. Do mesmo modo,
à historia da arte preocupada com os fenômenos de arquivamento cabe a reflexão sobre a
monumentalização da fotografia enquanto documento estético. Nos casos observados,
estamos simultaneamente próximos e distantes da fotografia antiestética e pretensamente
informacional dos primeiros artistas conceituais; próximos porque, independentemente das
intenções criadoras, muitas instituições aprenderam a manejar a simulada “indiferença” da
fotografia de outrora; distantes porque tal fotografia ocupa-se da enunciação interna à obra,
não lhe precede, nem lhe é secundária. Dentro do museu, ambas passam a compor uma utopia
legitimadora da poética do efêmero. Nesse sentido, as potencialidades - documental e poética
- tendem a convergir. Uma convergência que não anula tais potenciais, mas as redistribuem.
Redistribuição que garante a porosidade dos limites. E a promessa utópica de substituição
permanece à espreita.
Referências Bibliográficas:
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BISHOP, C.. Artificial Hells: Participatory Art and Politics of Spectatorship. London; New York: Verso Books, 2012.
CERTEAU, Michael. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.
COSTA, Luiz Cláudio da (org.) Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ,
2009, p.157.
CRIMP, Douglas. “Pictures”. October, vol. 8, 1979, p. 75-88; disponível em: http://www.jstor.org/stable/778227; acesso em
junho de 2015.
DANTO, A.C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. Trad. de Vera Perreira. São Paulo: CosacNaify, 2005.
DE DUVE, Thierry. Kant after Duchamp. Cambridge; London: MIT Press, 1996.
FREIRE, Cristina. Pòética do Processo. Arte Conceitual no Museu. São Paulo : Iluminuras, MAC-USP, 1999.
KRAUSS, R. La photografie comme texte: Le cas Namuth/Pollock. In. ______ . Le photographique, pour une théorie des
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MUSEU DE ARTE MODERNA ALOISIO MAGALHÃES. Coleção de Arte. Doações 2001-2004. Catálogo de exposição.
Recife: MAMAM, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. Aesthetics and Its Discontents. Cambridge: Polity Press, 2009.
RODENBECK, Judith. Radical Prototypes: Allan Kaprow and invention of happenings. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2011.
SILVA, Renato Rodrigues da. “Livros de fotografia de Edward Ruscha” In: COSTA, Luiz Cláudio da (org.) Dispositivos de
registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2009, p.151-163.
WALL, Jeff. “Marks of Indifference”. Reconsidering the Object of Art. 1965-1975. Catalogo de exposição, Los Angeles:
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WEIBEL, Peter. The Post-Media Condition. AVVV. Condição Pós-Mídia, catálogo de exposição, Madrid, 2006.
WINKEL, Camiel van. During the exhibition the gallery wil be closed. Amisterdam: Valiz, 2012.
55
56
Quanto ao livro ou aproximações entre livros de artista e obras raras - Maria do Carmo de Freitas Veneroso
Quanto ao livro ou aproximações entre livros de artista e obras raras
Maria do Carmo de Freitas Veneroso
Universidade Federal de Minas Gerais. - UFMG
Resumo: Dentro do tema mapas/geografia (o espaço no/do livro), nessa comunicação
cruzarei o livro de artista MAPA-MÚNDI/BR (2009), de Rivane Neuenschwander,
pertencente à Coleção Especial de Livros de Artista da Biblioteca Universitária da UFMG,
e o mapa mundi de Gerardus Mercator, de 1569, intitulado Nova et Orbis Terrae Aucta
Descriptio Usum Navigantium emendate accommodata (“representação nova e mais
completa do globo terrestre devidamente adaptado para uso em navegação”). Não se
trata de uma comparação, mas sim de uma análise dos possíveis cruzamentos entre
eles, através de uma abordagem que lança mão de “olhares” ou “histórias cruzadas”.
Pretende-se iluminar esses objetos, mostrando conexões, cruzamentos e circulações
entre eles e entre aquilo que os circunda. Para isso, estabelecerei diálogos com os
Michael Werner, Bénédicte Zimmermann e Kapil Raj, Jorge Luis Borges e Luiz Alberto
Brandão.
Palavras-chave: livro de artista; obra rara; palavra/imagem; olhares cruzados.
Abstract: Within the theme maps / geography (the space in / of the book), this communication
will cross the artist’s book MAPA-MÚNDI/BR (2009), by Rivane Neuenschwander,
belonging to the Special Collection of Artist’s Books of the UFMG University Library, and
the world map by Gerardus Mercator, 1569, entitled Nova et Orbis Terrae Aucta Descriptio
Usum Navigantium emendate accommodata (“new, more complete representation of the
terrestrial globe properly adapted for use in navigation”). This is not a comparison, but
an analysis of the possible crosses between them, through an approach that makes use
of “crossed looks” or “crossed-stories”. It is intended to illuminate these objects, showing
connections, junctions and circulations between them and between what surrounds them.
For this, dialogues will be established with Michael Werner, Bénédicte Zimmermann and
Kapil Raj, Jorge Luis Borges and Luiz Alberto Brandão.
Keywords: artist’s book; rare work; word/image; crossed looks.
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Apresentação
Une proposition qui émane de moi - si, diversement, citée a mon éloge ou
par blàme – je la revendique avec celles qui se presseront ici – sommaire
veut, que tout, au monde, existe pour aboutir à un livre.
Stéphane Mallarmé (1897)1
A
pesquisa
que
desenvolvo
atualmente
aborda
as
relações
interartes
na
contemporaneidade, abrangendo principalmente a arte impressa e as imagens múltiplas, como
a gravura, o livro de artista, o vídeo, a fotografia e as mídias digitais, envolvendo obras nas quais
se dá a exploração das relações entre palavras e imagens, podendo envolver ainda diálogos
intermidiáticos com áreas como a música, o cinema e a arquitetura. Também as relações com
outras culturas e tradições tem se colocado em trabalhos nos quais enfoco obras de artistas
contemporâneos em diálogo com a arte islâmica e com as escritas ideográficas, abrangendo
dessa forma alguns traços da arte e da cultura orientais, nas quais a palavra se faz imagem.
Dentro dessa perspectiva, a comunicação aqui apresentada faz parte do projeto que estou
realizando atualmente como Professora Residente no IEAT – Instituto de Estudos Avançados
Transdisciplinares da UFMG, que tem como tema a exploração de cruzamentos entre livros de
artistas contemporâneos, pertencentes à Coleção Especial de Livros de Artista da Biblioteca
Universitária da UFMG, e obras antigas, consideradas “raras” ou “especiais”, da Coleção de
Obras Raras e Especiais da mesma Biblioteca e de outras. O cruzamento proposto adota
uma abordagem transdisciplinar, através de leituras que atravessam diferentes disciplinas e
tradições, tendo como ponto comum a exploração das relações entre palavras e imagens.
Dentro do tema mapas/geografia (o espaço no/do livro), nesse artigo analisarei o livro
de artista MAPA-MÚNDI/BR (2009), de Rivane Neuenschwander (Figura 1), em diálogo com o
mapa mundi de Gerardus Mercator, de 1569 (Figura 2), intitulado Nova et Orbis Terrae Aucta
Descriptio Usum Navigantium emendate accommodata (“representação nova e mais completa
do globo terrestre devidamente adaptado para uso em navegação”). Não se trata de uma
comparação, mas sim de uma análise dos possíveis cruzamentos entre eles, através de uma
abordagem que lança mão de “olhares cruzados” ou “histórias cruzadas”, pois, “mobilizadas
geralmente no plural, as histórias ou olhares cruzados remetem a objetos de estudo variados,
cujo encadeamento ou natureza é vista sob o ângulo do cruzamento”.2
Para isso, estabelecerei diálogos com os autores Michael Werner, Bénédicte Zimmermann
e Kapil Raj, que fornecerão elementos para uma abordagem através dos “olhares” ou “histórias
cruzadas”, além de Jorge Luis Borges e Luiz Alberto Brandão.
1
Uma proposição que emana de mim – tão, diversamente, citada em meu elogio ou por censura –, reivindico-a com aquelas que
se comprimirão aqui – sumária quer, que tudo, no mundo, existe para culminar num livro. Stéphane Mallarmé (1897) (Tradução
de F. Scheibe).
2
WERNER, Michael; ZIMMERMANN, Bénédicte (org.) De la comparaison à l’histoire croisée. Paris: Seuil, 2004. p. 7.
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Quanto ao livro ou aproximações entre livros de artista e obras raras - Maria do Carmo de Freitas Veneroso
Figura 1 - Rivane Neuenschwander. MAPA-MÚNDI/BR. Livro de artista. 2009.
Figura 2 - Gerardus Mercator. Mapa Mundi (Projeção de Mercator). Gravura em metal s/ papel. 1569.
O livro de artista a ser analisado faz parte do acervo da Coleção Especial de Livros de
Artista3 da Escola de Belas Artes da UFMG, criada em novembro de 2009, pelo prof. Amir Cadôr
e por mim, por ocasião do primeiro evento pan-americano sobre livros de artista, “Perspectivas
do livro de artista”, que organizamos na UFMG.
3
Catálogo da Coleção disponivel em: https://catalogobiblioteca.ufmg.br/pergamum/biblioteca/index.php
59
Os livros da Coleção pertencem a épocas diferentes, indo desde os anos de 1960 até a
década atual, vinculando-se, em sua maioria, a uma linhagem de livros de artista considerados
no seu sentido estrito, ligados à vertente conceitual, e que tem tido, no presente, inúmeros
desdobramentos. São características presentes nas obras: a ênfase na ideia (em detrimento
da forma), a transitoriedade dos meios e a precariedade dos materiais utilizados, a atitude
crítica frente às instituições artísticas, assim como as particularidades nas suas formas de
circulação e recepção.4
Já o termo livro de artista, no seu sentido lato, remete à “obra em forma de livro,
inteiramente concebida pelo artista e que não se limita a um trabalho de ilustração”.5
É necessário esclarecer que no presente texto, o livro de artista está sendo conceituado
a partir do seu sentido estrito, ou seja, como uma categoria das artes visuais, frequentemente
em diálogo com a literatura, surgida e legitimada a partir da década de 1960.
Já definir o que torna uma obra “rara” ou “especial” não é uma tarefa simples. A raridade
está diretamente ligada à escassez da obra. Uma metodologia para a definição da raridade
de uma obra sugere a observação de pelo menos uma das características: limite histórico,
aspectos bibliológicos, valor cultural da obra, pesquisa bibliográfica, características do
exemplar.6
Feitas essas considerações preliminares, passarei agora a abordar a obra MAPAMÚNDI/BR, de Rivane Neuenschwander e o mapa mundi de Mercator.
Conexões, cruzamentos, circulações: o MAPA-MÚNDI de Rivane e a Projeção de
Mercator.
Comprara amplo mapa mostrando o mar
Sem o mínimo sinal de terra:
A tripulação gritou vivas ao ar:
“Com um mapa assim ninguém erra!”
“Pra que serve o equador do Sr. Mercator,
Seus trópicos, polos, monções?”
Perguntava o do sino. A resposta, com tino:
“São meras pueris convenções!”
“Feios feito quiabos, com ilhas e cabos,
Esses mapas nos dão calafrio.
Campainha é o maior, nos comprou o melhor:
Um completamente vazio”.
Lewis Carroll7
4
FREIRE, Cristina. Poéticas do processo. São Paulo: Iluminuras,1999. p. 16.
SILVEIRA, Paulo. A página violada. Da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS,
2001. p. 25.
5
PINHEIRO, apud RODRIGUES, Márcia Carvalho. O que é livro raro? ComCiência/Labjor
Disponível em: http://www.dicyt.com/noticia/o-que-e-livro-raro (Acesso em 24/07/2015)
6
CARROLL, Lewis. A Caça ao Turpente, trad. de Álvaro Antunes, p. 37-39.
Disponível em: <http://www.literature.org/authors/carroll-lewis/the-hunting-of-the-snark/>
7
60
Quanto ao livro ou aproximações entre livros de artista e obras raras - Maria do Carmo de Freitas Veneroso
Rivane Neuenschwander é uma artista mineira, reconhecida internacionalmente,
que já expôs sua obra em importantes museus, bienais e galerias em vários países,
tendo seus trabalhos presentes também em várias coleções. Em suas instalações, vídeos
e fotografias, Neuenschwander emprega materiais frágeis, despretensiosos, para criar
diferentes experiências estéticas, utilizando um processo que ela descreve, poeticamente,
como “materialismo etéreo.” As relações entre palavras e imagens são abordadas de formas
variadas em sua obra: através de vídeos, fitas devocionais, instalações e livros de artista,
como MAPA-MÚNDI/BR, de 2009, enfocado nesse artigo, em diálogo com o mapa mundi do
holandês Gerardus Mercator, de 1569.
Em suas instalações, fotografias, objetos, colagens, vídeos e desenhos, Neuenschwander
apresenta aos espectadores aquilo que os circunda, mas, que passa quase sempre
despercebido. A questão da linguagem é central em sua obra. A artista utiliza alfabetos,
mapas, calendários e outros códigos de representação verbal e não-verbal. Frequentemente
ela envolve o público no processo de elaboração da obra.
MAPA-MÚNDI/BR faz parte de uma ampla produção de livros de artista, considerados
no seu senso estrito, ligados à vertente conceitual. Esse trabalho relaciona-se, ainda, com
o movimento Arte Postal, ou Arte Correio, termo proposto por Paulo Bruscky, para designar
obras em formatos postais, e que utilizam o correio como meio de distribuição e divulgação.
A obra analisada remete a uma instalação de 2007, da artista, também denominada
MAPA-MÚNDI/BR (Postal), composta por 65 cartões postais, dispostos em prateleiras de
madeira. As fotografias impressas nos cartões são de diferentes estabelecimentos comercias
populares espalhados pelo Brasil, que têm nomes de cidades e países estrangeiros, como
um hotel chamado Novo México no interior do país e o edifício Tokyo no centro de São Paulo.
Quando o trabalho está exposto, os visitantes são convidados a interagir com o mesmo,
levando cartões postais e postando-os. Assim, o público também participa na efetivação da
obra que pode eventualmente se movimentar, propagar e viajar pelo mundo, assim como os
cartões postais tradicionais.
Essa instalação desdobrou-se, pois, na publicação também denominada MAPA-MÚNDI/
BR, impressa a cores, em off-set, com edição de mil exemplares, de cerca de 2009. Trata8
se de um livro sanfonado, com 24 páginas, como um conjunto de cartões postais trazendo
fotografias de placas de estabelecimentos comerciais brasileiros populares. O livro, quando
fechado, tem a forma de um envelope, branco, contendo uma aba triangular amarela, de um
lado, onde se lê o título MAPA-MÚNDI/BR e o nome da artista. Do outro lado, onde geralmente
está escrito o nome e endereço do destinatário, há uma foto impressa. Quando aberto, o livro
ultrapassa um metro de comprimento, apresentando, de um lado, doze fotografias em formato
de meio cartão postal, unidas, e do outro lado, atrás de cada fotografia, o nome do país
referido na foto.
Esta publicação faz parte de uma série de livros de artista publicados durante a “2da Trienal Poli/Gráfica de San Juan: América
Latina y el Caribe”, de 2009, organizada pelo Instituto de Cultura Puertorriqueña.
8
61
As fotografias reproduzidas nos cartões postais em MAPA-MÚNDI/BR mostram locais em
todo o Brasil - incluindo motéis, bares, igrejas e lojas - que são nomeados a partir de continentes,
países, regiões e cidades estrangeiras incluindo o Alaska, Bagdá, China, Jerusalém, Las Vegas
e Tóquio. Enquanto cartões postais normalmente representam o desejo turístico para capturar
uma experiência local “autêntica”, as imagens de Rivane documentam suas viagens pelo Brasil,
captando imagens que refletem o imaginário local.
Várias leituras são possíveis, a partir desse trabalho. Em primeiro lugar, a referência
ao mapa mundi, no título da obra, nos remete à definição desse conceito: “Um mapa mundi,
também conhecido como planisfério, é um mapa que representa todo o globo terrestre, tendo
os dois hemisférios projetados lado a lado. Em latim, mappa designava, primeiramente, lenço e,
posteriormente, a representação gráfica de um terreno. Mappa mundi era, então, a representação
gráfica do mundo”.1 Através de seu mapa mundi, Rivane cria sua própria representação do
mundo, ao registrar suas concepções de mundo, através das fotografias.
A “Projeção de Mercator“ foi feita pelo cartógrafo em 1569. O título do mapa de Mercator
“Representação nova e mais completa do globo terrestre devidamente adaptado para uso em
navegação” mostra que ele teve como objetivo apresentar o conhecimento contemporâneo da
geografia do mundo e ao mesmo tempo “corrigir” o mapa para que fosse mais útil para os
marinheiros. Enquanto a geografia do mapa foi sendo substituída pelo conhecimento moderno,
sua projeção provou ser um dos avanços mais significativos na história da cartografia. A projeção
anunciou uma nova era na evolução dos mapas de navegação e gráficos e ainda é considerada
a sua base.
Esse mapa contém uma grande quantidade de textos em latim. As legendas emolduradas no
mapa cobrem uma ampla variedade de temas, misturando ficção e dados históricos, observação
científica e mitologia. Dentre os temas enfocados encontram-se: a dedicação ao seu patrono
e uma declaração de direitos autorais; discussões sobre linhas de rumo, grandes círculos e
distâncias; comentários sobre alguns dos principais rios; relatos de geografia fictícia do pólo
norte e do sul do continente. Outros textos menores são espalhados sobre o mapa, cobrindo
tópicos como os pólos magnéticos, o meridiano de referência, recursos de navegação, além de
pequenos detalhes geográficos, as viagens de descoberta e mitos de gigantes e canibais.
Uma comparação com mapas do mundo anteriores a 1569 mostra que Mercator desenhou
seu mapa baseado no trabalho de outros cartógrafos e em suas próprias obras, prévias.
Cartógrafos anteriores de mapas mundi tinham ignorado na maior parte das vezes os mapas
práticos e mais precisos dos marinheiros, e vice-versa, mas a idade da descoberta, a partir da
última década do século XV, estimulou a integração dessas duas tradições de mapeamento: o
mapa de Mercator é um dos os primeiros frutos desta fusão.
Dentre os povos que tentaram registrar suas concepções de mundo, mesmo que de forma
incompleta, encontram-se os chineses, que esboçaram mapas datados de 10 mil a.C. Já no
mapa mundi medieval não havia uma preocupação com a representação do espaço, mas da
história cristã.
62
Quanto ao livro ou aproximações entre livros de artista e obras raras - Maria do Carmo de Freitas Veneroso
O Mapa de Psalter de 1250 - uma das páginas de ilustrações de um livro de salmos
do século XIII, por exemplo, representa a perspectiva medieval TO, Orbis Terrarum. Essa
nomenclatura TO sugere o Cristo crucificado (T) e o oceano (O) que circunscreve todo o
mundo. Jerusalém se situa ao centro do mapa, ou do mundo; no topo do mapa, abaixo do
Cristo Pantocrático, claramente inspirado nas figuras bizantinas, cujos braços abertos guardam
o mundo, o Paraíso Terrestre. Nota-se a presença de ícones bíblicos, tais como a Arca de
Noé e a Torre de Babel. No entanto, as recentes descobertas geográficas, fruto das cruzadas
do século XII, não são aplicadas à representação cartográfica, sendo o mapa marcado pelo
ensejo de ensinar os fiéis, e não de representar corretamente o espaço físico.9
Os mapas renascentistas já não representam apenas uma parte do mundo, mas o
mundo inteiro, mesmo que de 1492 até meados de 1750 ainda mostrem imprecisões na
demarcação das fronteiras das terras novas - as Américas, Austrália, Antártica e Groenlândia.
Mas é evidente que o mundo definitivamente se expandira para os homens do século XVI. O
mundo já não é visto como uma figura discóide, mas já se admite que a Terra é esférica, e que
ela não se localiza no centro do universo.10
As escritas e mapas de Cláudio Ptolomeu, que desapareceram na visão do mundo
da Idade Média, sobreviveram na cultura árabe e chegaram até as bibliotecas do Império
Bizantino, de onde seguiram o seu caminho para o ocidente no século XIV. Humanistas
italianos e geógrafos e cartógrafos europeus começaram a revalorizar o potencial dos mapas
ptolemaicos como sistema de referência espacial, sendo que a redescoberta da cartografia
ptolemaica marcou o começo da Modernidade Européia.
Essa apropriação do mapa de Ptolomeu mostra que
mais que por caminhos lineares de difusão ou de transferência, é pelo processo de circulação dos homens
e das práticas, das informações e dos saberes, de instrumentos e objetos, que as ciências e as técnicas
se desenvolvem. Esses mesmos processos permitem sua apropriação e naturalização em diferentes
localidades, resultando que práticas enraizadas nesses diferentes lugares sejam conectadas pelos seus
trajetos.11
Isso pode ser notado também nas representações cartográficas da Índia, pelos britânicos,
entre os séculos XVIII e XIX, que se apropriaram do saber e dos mapas locais para, a partir
deles, construírem suas representações do país. Existia um grande número de mapas na Índia
précolonial e “a variedade de estilos desses mapas atesta de fato que a Ásia do Sul, região tão
vasta e diversificada quanto a Europa, praticava, já havia muito tempo trocas intensas com as
maiores culturas do Velho Mundo”.12
9
PELLETIER, apud NORONHA, Isabel. A corografia medieval e a cartografia renascentista: testemunhos iconográficos de duas
visões de mundo. Hist. cienc. saude-Manguinhos. vol.6 no.3 Rio de Janeiro Nov. 1999/Feb. 2000. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.1590/S0104-59702000000400009
10
Ibid.
RAJ, Kapil. In WERNER, Michael; ZIMMERMANN, Bénédicte (org.) De la comparaison à l’histoire croisée. Paris: Seuil, 2004. p.
92. (tradução nossa).
11
12
Ibid., p. 91.
63
Tudo isso mostra que houve uma série de cruzamentos e contaminações entre o saber
local e o saber europeu no desenho dos mapas e que, bem ao contrário do que se poderia
supor, “a história das práticas científicas ditas ocidentais transbordam as fronteiras da Europa
e se misturam inextrincavelmente com a história das práticas de outros povos, de outras
regiões”.13
Ao especular sobre a presença de um grande número de mapas impressos na Índia,
como por exemplo o de Rennel, no século XVIII, Kapil Raj conclui que, surpreendentemente,
eles só passaram a visar um público ou um uso preciso na Grã-Bretanha bem mais tarde, no
século XIX. Assim, o que se percebe é que mapas como o de Rennel eram vistos e consumidos
como obras de arte, sendo expostos nas paredes de gabinetes na Inglaterra, por um público
interessado nas suas qualidades visuais.14
Mapas: arte impressa, imagens múltiplas
Nota-se que o desenvolvimento das técnicas de reprodução da imagem tiveram grande
impacto sobre a produção de mapas. Se, inicialmente, eles eram desenhados a mão, contendo
várias cores e detalhes, quando passaram a ser impressos a partir de placas de metal, no
século XVI, seu desenho sofreu alterações, adaptando-se ao novo meio. Mais tarde, técnicas
de reprodução da imagem em larga escala, como a litografia, também influíram decisivamente
no desenho dos mapas, contribuindo para simplificá-los
dissociando-os de sua tendência clássica ao estetismo e às demandas do mercado de arte. Em resumo,
uma cultura cartográfica, tal qual a que conhecemos hoje, foi imposta primeiro pelo controle da circulação
dos mapas, depois pela formação de um público apto a considerá-los como ‘ferramentas de terreno’, e
finalmente pela estandartização das convenções topográficas.15
O Mapa de Mercator de 1569 é um exemplo da utilização da gravura em metal como
técnica na criação de mapas. Trata-se de um grande planisfério, ou seja, uma projeção
da Terra esférica sobre o plano impressa em dezoito folhas separadas de placas de cobre
gravadas pelo próprio Mercator. Cada folha mede 33 × 40 cm, e, com uma margem de 2 cm,
o mapa completo mede 202 × 124 centímetros. O mapa contém, além de textos, elementos
decorativos e vinhetas. Estima-se que foram impressas centenas de cópias, apesar de
existirem atualmente apenas quatro cópias completas, sendo que muitas reproduções em
papel dos quatro Mapas foram feitas.
Mapas: entre o real e o imaginário
Os mapas, como representações gráficas, podem, num certo sentido, ser considerados
ficcionais, ao misturar o real e o imaginário. Luiz Alberto Brandão propõe, até mesmo, que
13
Ibid., p. 91.
14
Ibid., p. 91.
15
Ibid., p. 90.
64
Quanto ao livro ou aproximações entre livros de artista e obras raras - Maria do Carmo de Freitas Veneroso
“toda cartografia pode ser entendida como ficcional” e que a ficcionalidade do mapa está
presente na combinação de realidade e imaginário.16
Vários artistas contemporâneos têm se interessado por mapas “primeiramente por causa
de suas conexões analíticas (em oposição às miméticas) com a realidade, e secundariamente
por causa dessa discrepância entre representação e realidade. É sem dúvida também porque
os mapas são construções tão reais quanto a própria realidade”. Ou seja, “se indicarmos uma
localização em um mapa, ‘vemos’ onde é essa localização. O fato de que está no papel não a
torna menos real, mas apenas diferente. Neste sentido, é certamente uma ficção, cuja verdade
varia de acordo com o quão rigorosamente as regras são observadas na representação
cartográfica”.17
No seu conhecido texto, “Sobre o Rigor na Ciência”, Jorge Luis Borges ilustra essa
afirmação, poetizando, ao propor:
…Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava
uma cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo, estes Mapas Desmedidos não
bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e
coincidia com ele ponto por ponto.18
Brandão lembra que no texto de Borges há ecos de um livro de Lewis Carroll, publicado
no final do século XIX, que descreve um mapa que coincide com a escala real: “’Construímos
o mapa do país na escala de uma milha para milha!” Quando perguntado se ele havia sido
muito utilizado, respondeu: “Ele nunca foi aberto, até hoje”, pois “Os fazendeiros se opuseram,
dizendo que o mapa cobriria todo o nosso território e impediria a recepção da luz do sol! Por
isso, atualmente, usamos o nosso próprio território como mapa do país, e eu lhe asseguro que
ele funciona muito bem’”.19
Os mapas mundi antigos apresentados têm como característica uma preocupação
com seu aspecto gráfico e visual, contendo desenhos refinados, ornamentos e textos, que
enriquecem o conjunto, e que também os caracterizam como “mapas de artista”. Pode-se
cruzar os dois mapas mundi, o de Rivane e o de Mercator, também através do sentido que
ambos dão às suas representações cartográficas. Pois, também o mapa mundi de Mercator
possui um desenho elaborado, com soluções artísticas, através das quais ele representa o
mundo. Enquanto isso, no Mapa Mundi de Rivane, o espaço do mapa coincide com o próprio
espaço do livro. Sua cartografia é, assim, a cartografia do livro.
Rivane, no seu “mapa”, constrói novas fronteiras, imaginárias, conectando países tão
distantes quanto Itália e Haiti, ou Colômbia e China. Dessa forma, ela questiona a representação
vigente dos mapas, criando novas relações entre os países, que não são, necessariamente
16
BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do Espaço Literário. SP: Perspectiva; BH: Fapemig, 2013. p. 275.
TIBERGHIEN, Gilles, 1995 apud BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do Espaço Literário. SP: Perspectiva; BH: Fapemig, 2013. p.
275.
17
18
BORGES, Jorge Luís. “Sobre o Rigor na Ciência”, in História Universal da Infâmia. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982. p. 117.
19
CARROLL, Lewis 1997 apud BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do Espaço Literário. SP: Perspectiva; BH: Fapemig, 2013. p. 274.
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geográficas, nem de poder. O livro, nesse caso, é um “mapa”, que guia o espectador através
do olhar da artista. Assim, o espaço do livro torna-se um espaço cartográfico, e através do seu
mapa mundi a artista apresenta sua visão pessoal de uma geografia inventada, fantasiosa,
construída a partir do seu próprio imaginário.
Ao construir seu MAPA-MÚNDI/BR, a artista aproxima-se dos viajantes, que até o século
XIX, não usavam mapas estrito senso, para se deslocar pelo interior, mas em vez disso,
coletavam informações pelo caminho. É assim que a artista também age, ao coletar imagens
com as quais descreve o caminho percorrido.
Outro trabalho de Rivane, Contingent (2008) (Figura 3), um filme em high-speed motion,
mostra um exército de formigas devorando um mapa mundi feito de mel. Trata-se de um mapa
em constante mutação, sendo que os contornos dos territórios vão se modificando, à medida
que as formigas realizam seu trabalho de devoração. O mapa passa por vários estágios: a
formação dos continentes é desconstruída pelo filme, seguindo o curso da natureza, até o total
desaparecimento do mapa. Esse trabalho pode ser aproximado do texto de Lewis Carroll,20
que abre esse artigo, no qual é descrito um mapa mostrando o mar, ”sem o mínimo sinal de
terra”. Também o mapa de Rivane, no final, não mostra o mínimo sinal de terra, podendo ser
aproximado de um mapa do oceano, ou seja, um mapa representando o vazio.
Fig. 3 - Rivane Neuenschwander. Contingent. Filme em high-speed motion. 2008.
CARROLL, Lewis. A Caça ao Turpente, trad. de Álvaro Antunes, p. 37-39 Disponível em: <http://www.literature.org/authors/
carroll-lewis/the-hunting-of-the-snark/>
20
66
Quanto ao livro ou aproximações entre livros de artista e obras raras - Maria do Carmo de Freitas Veneroso
Referências Bibliográficas:
BORGES, Jorge Luís. Sobre o Rigor na Ciência, in História Universal da Infâmia. Lisboa: Assírio e Alvim,1982, 117.
BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do Espaço Literário. SP: Perspectiva; BH: Fapemig, 2013.
CARROLL, Lewis. A Caça ao Turpente, trad. de Álvaro Antunes, p. 37-39. Disponível em: <http://www.literature.org/
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SILVEIRA, Paulo. A página violada. Da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/
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WERNER, Michael; ZIMMERMANN, Bénédicte (org.) De la comparaison à l’histoire croisée. Paris: Seuil, 2004.
67
68
As vanguardas americanas: estratégias políticas e estéticas - Maria Lúcia Bastos Kern
As vanguardas americanas: estratégias políticas e estéticas
Maria Lúcia Bastos Kern
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul | CBHA
A arte é concebida por Joaquín Torres-Garcia (1874 - 1949) como conhecimento e os
seus textos como testemunhos das etapas de pesquisa e de suas reflexões. Os textos são
em geral explicativos e evidenciam os questionamentos e as experiências vivenciadas pelo
artista, bem como os seus propósitos éticos relativos aos novos projetos. Como artista de
vanguarda, ele planeja o futuro e acredita que a arte tem a potencialidade de transformar o
mundo moderno, conturbado por permanentes crises, e repor a ordem, sobretudo, após a I
guerra mundial. Neste momento, o combate ao individualismo é dominante em prol de nova
sociedade universal direcionada aos valores coletivos.
O Construtivismo de Torres-García integra-se na projeção utópica de criação de um mundo
melhor, motivado por uma personalidade inquieta e idealista, inconformada com o materialismo
e a ausência de espiritualidade. A nova prática artística começa no momento em que vive em
Paris (1926-32), após longos períodos de pesquisas e de indagações. As suas obras e textos
reflexivos revelam o percurso exploratório efetuado para construção de uma arte, programada
para se tornar acontecimento e mecanismo de intervenção social.
As experimentações são efetuadas em desenhos, pinturas, objetos tridimensionais e
pequenos livros, nos quais ele expressa, por meio de pictografias, suas reflexões a respeito do
próprio processo de criação e de suas crenças espirituais. Essas atividades são concomitantes
e iniciadas durante a sua estadia em Barcelona, (1892-1920), onde é realizada a prática e
a formulação dos primeiros conceitos que constituem, mais tarde, os fundamentos de seu
Construtivismo. (Torres-García 1917, p.12)
Os brinquedos1 e os objetos tridimensionais são construídos por formas geométricas, em
madeira policromada, e apresentam grande plasticidade. Os desenhos já revelam a prática de
conceitos de estrutura e plasticidade,2 sendo que a estrutura consiste na manifestação da ideia
e tem por base a regra de ouro, com vistas a atingir a ordem para controlar a expressão dos
sentimentos. (Notes d’Art 1913). A pintura começa a se transformar a partir de 1916, quando
o desenho geométrico é mais rigoroso e configura o espaço, reduzindo-o às figuras e aos
planos em movimentos, sugeridos pelo dinamismo da vida moderna na cidade. A publicidade, a
arquitetura, a multidão, os luminosos, os meios de transporte e o relógio compõem as pinturas.
As formas são fragmentadas, sobrepostas e dispostas num movimento simultâneo. Elas são,
muitas vezes, articuladas por retículas que compõem a estrutura geométrica, pela introdução
1
Nesse momento, ele começa a industrialização dos brinquedos que está relacionada à convicção de que a arte não deve
continuar divorciada da vida e que a mesma deve estetizá-la.
2
Os conceitos de plasticismo e de estrutura já aparecem em Notes sobre art (1913). Em 1917, ele introduz palavras em suas
pinturas.
69
de palavras e números, em caixa alta, que se integram ao cenário urbano, e identificam as
cidades e os bairros, como se pode observar em New York City (1920).3 As formas geométricas
e planas estão mais presentes, como Escena de calle de Barcelona (1917); ou as amplas
perspectivas que destacam as grandes avenidas e os arranha-céus norte-americanos. É uma
“pintura de ritmos livres, porém já com domínio de vertical e horizontal”, signos que auxiliam na
ordenação e na elaboração da linguagem plástica.4 Essas pinturas, ao celebrarem o moderno,
revelam o afastamento temporário do arcaico e a preocupação do artista com a síntese formal
e a prática de conceitos, que são divulgados em publicações (1907-1922),5 e importantes para
o andamento do processo criativo.
É interessante verificar que a estrutura que compunham os grandes murais para o Palácio
da Catalunha eram os elementos do desenho que ordenavam a cena e o espaço tridimensional,
porém não visíveis. Aos poucos vão se tornando visíveis e constituindo o espaço plano.
Entretanto, a trajetória de amadurecimento do artista não é imediata, nem excessivamente
racionalista, tendo em vista ter como mola propulsora os seus propósitos idealistas e espirituais.
Ele faz inúmeras experiências, nas quais se evidenciam as tentativas de síntese da forma,
a estrutura ortogonal e a construção bidimensional do espaço, assim como certos recuos
às práticas mais clássicas e arcaizantes de seu Mediterranismo (1907-1916). O contato em
Paris com Theo Van Doesburg (1928) e Piet Mondrian (1929) estimulam as mudanças de sua
linguagem, pois suas obras confirmam questões com as quais ele vinha fazendo experiências.
Esses artistas são importantes para o amadurecimento de suas pesquisas, mas não é possível
ignorar o processo anterior e a sua busca de uma ordem universal. O contato com Mondrian e
com as suas convicções espirituais geram grande admiração no artista uruguaio, levando-o a
lhe dedicar o livro Estrutura (1935).
Nas produções do final dos anos de 1920, o artista concilia a geometria com formas
arcaicas, como meio de chegar à essência e encontrar o lugar do homem no cosmos. Nesse
período em que predomina o espírito de construção, a forma geométrica representa a ordem e
estabilidade. As suas reflexões teóricas, registradas em livros6 (Torres-García 1913, s/p.; 1917,
s/p.) evidenciam o objetivo de criar a arte pura através de formas sintéticas e da estrutura.
Torres-García declara em História de mi vida (1939) que a sua pintura a partir de 1928
se encontra em fase de transição entre a natureza e a abstração. Ele acredita que a pintura
abstrata apenas conduz à perda do concreto da natureza e da construção plástica; e que
a abstração corresponde à ideia de alguma coisa. Diante desse impasse, ele pensa que a
solução se encontra “no figurado graficamente” ou no “nome escrito da coisa, ou uma imagem
esquemática, o menos aparentemente real possível: tal como um signo”. Realizada a primeira
3
Em Nova Iorque, Torres-García se deslumbra: "Que vida! Que movimento! tudo é mecânico, ordenado, limpo (...)! Esta é a
civilização (...). Oh, que velha e triste é a Europa!" Historia de mi vida. (1939) Barcelona: Paidós, 1990. p. 151.
4
TORRES-GARCIA, J. Historia de mi vida. Opus Cit., p.151.
La nostra ordinación el nostre camí (1907); Notes sobre art (1913); Dialegs (1914); Un ensayo de clasicismo (1916) e vários
artigos em periódicos.
5
6
Notes sobre art (1913), s/p.; El descubrimiento de sí mismo. (1917), s/p.
70
As vanguardas americanas: estratégias políticas e estéticas - Maria Lúcia Bastos Kern
pintura, ele percebe que teria que “ordenar (aquelas ideias gráficas”), “ordenar esse mundo,
que a ele agora parecia um caos. Em suma, deveria compreender o que havia feito, deveria
estudar sua própria obra realizada. A posteriori, pois pensou e ordenou sua teoria”. (TorresGarcía 1990, pp.210-211) A criação da nova linguagem materializa-se, inicialmente, nos objetos
tridimensionais e, posteriormente, na pintura. Em paralelo, elabora pequenos livros (1928), cujo
texto não cursivo é complementado por pictografias, construídas por formas sintéticas como
nas pinturas.
Progressivamente, a pintura (1928-33) passa de motivos urbanos modernos para
símbolos de distintas origens, desde pré-colombianos e arcaicos a esotéricos. Ele mescla
signos de distintas procedências místicas com certos procedimentos clássicos. Torres-García
descobre a importância das artes primitivas da América em exposições e visitas que faz ao
Museu do Homem, em Paris, fato que lhe permite descortinar uma nova poética. Ele considera
o símbolo como uma ideia gráfica que constitui a linguagem, na qual ler e ver se conectam
numa mesma obra.
O Construtivismo de Torres-García7 emerge no contexto do pós 1ª. Guerra, fase de
crise em que os artistas repensam o papel social da arte e que Theo Van Doesburg declara:
“A época da destruição acabou. Começa uma nova época: a grande época da construção”.
Não é suficiente pintar quadros; o meio ambiente do homem deve mudar para lhe revelar a
harmonia universal da obra de arte puramente plástica que conduzirá à transformação de sua
consciência. Para tal, a arte deve suplantar o individualismo da representação e seguir as
regras básicas das horizontais e verticais, do espaço plano e das cores primárias. (p.85 Anna)
Ela deve se integrar à vida como é praticada por Van Doesburg, construtivistas russos e artistas
da Bauhaus.
No clima de crise europeia do após 1ª. Guerra Mundial, das vanguardas e do próprio
homem, em que predomina o espírito de regeneração e de construção, a forma geométrica
representa o sentido de ordem/estabilidade e, ao mesmo tempo, é, segundo a visão de TorresGarcía, expressão metafísica. Ele, ao negar a representação ilusionista, especula outra
realidade, tendo como objetivo descobrir o caminho para um mundo superior, de ordem espiritual.
No entanto, não abandona completamente a figuração como propuseram os artistas abstratos
e construtivistas. Consciente do papel a ser exercido, Torres-García pratica discursos em que
mistura experiências estéticas com questões espirituais e éticas. Ao se afastar do naturalismo,
identificado como positivista, ele elabora verdadeira gramática de signos e princípios de
utilização das linhas, das cores e da luz, que permitem a produção de uma semântica visual,
num momento em que a linguística exerce também grande colaboração.
As reflexões dos artistas permitem compreender a instabilidade vivenciada e as missões
assumidas para promover a paz. Daí o projeto de impor a ordem e de dissolução da arte na
vida ser recorrente nos textos da revista e de Torres-García, assim como a defesa da acepção
7
O seu Construtivismo não tem relação com o movimento russo, no que se refere à sua acepção política e utilitarista, mas se
aproximada concepção metafísica de A. Pevsner e N. Gabo.
71
de arte total. Para ele, construir “é criar uma ordem”, isto é, passar do individual ao universal.
(Torres-García Cercle et Carré1930, pp. 3-4)
Ele defende a concepção de arte abstrata que não exclui a figuração, porque o essencial
é a estrutura ortogonal que termina com a hierarquia figura/fundo, em prol da construção formal
geométrica e sintética. As suas imagens figurativas constituem-se como signos, recorrentes no
conjunto de sua obra, e são permeados por convicções místicas, presentes nos textos e nos
conceitos, pautados na ética e na espiritualidade.8 Consciente do papel a ser exercido, TorresGarcía cria nova linguagem de signos em que a estrutura é concebida como um conjunto de
elementos que formam um sistema, como um todo ordenado para obter a unidade, (TorresGarcía 1930, pp. 3-4) em formato ortogonal para configurar nichos geométricos e inserir
símbolos de origem arcaica, dispostos de forma frontal, com tonalidades mais neutras.
É interessante pensar a estrutura como a grade e o seu papel na arte moderna, estudada
por Rosalind Krauss, que a identificou pelo seu desejo de silêncio e de autonomia, em
contraposição à narrativa, ao discurso, à figuração e ao real. (p. 94) No caso do construtivismo
do artista uruguaio, a grade não resiste ao silêncio e à narrativa, pois ela conduz o observador
a refletir sobre a significação dos pictogramas e a elaborar novas narrativas. No entanto, ela
resiste à unidade espacial, à separação figura/fundo e ao ilusionismo da tradição pictórica
ocidental.
A estrutura ortogonal pode estar relacionada com a espiritualidade do artista e seu
desejo de ordem. Não se pode ignorar a proximidade dos artistas modernos com a Teosofia
e o pensamento de Maria Helena P. Blavatsky em Isis Unveiled (1877), no qual se refere
à “perpendicular celeste” e à “linha de base terrestre horizontal” e a sua correspondência à
vertical, relacionada ao “princípio masculino” e a horizontal ao “princípio feminino”. A intersecção
entre essas linhas constitui a cruz que se inscreve no quadrado perfeito. (Anna p. 50) TorresGarcía formula a sua concepção de construtivismo a partir também o dualismo, próprio do
pensamento moderno, entre os opostos que se complementam (mundos feminino e masculino)
e que constituem a unidade.
Em 1932, ele elabora um estudo, em que classifica e ordena os símbolos em três planos,
intelectual, moral e físico, representados respectivamente pelo triângulo, coração e peixe.
Esses símbolos formam o cosmos e se relacionam entre si, sendo recorrentes e dispostos nas
pinturas de baixo para cima, em ascensão do mundo natural (peixe) aos mundos intelectual
(triângulo) e espiritual (sol). A escada e a flecha estabelecem a ligação entre os três planos,
natural, intelectual e espiritual, e têm como meta atingir o âmbito divino.9 (Torres-García 1977,
s.p.) A ideia de dar ao mundo uma nova arte, no caso americana, defendida por Ricardo Rojas,
aparece de forma similar no livro do uruguaio La regla abstracta (1946, p. 10): “América toda vai
8
A espiritualidade é comum entre artistas modernos que projetam utopias, nas quais prevêem o surgimento de novo homem, face à
excessiva valorização da ciência, do progresso e da matéria na modernidade e à afirmação de Nietzsche relativa à “morte de Deus”.
Esses artistas pensam que é necessário programar um devir espiritual, distinto das convenções das religiões institucionalizadas.
9
Para ele, a parte superior tem o poder de dominação, impondo a ordem e o controle às demais.
72
As vanguardas americanas: estratégias políticas e estéticas - Maria Lúcia Bastos Kern
se levantar novamente para dar aos tempos modernos uma arte virgem e poderosa”.10 (TorresGarcía, p. 10) Entretanto na revista Circulo y Cuadrado (1937), ele representa pela primeira
vez a inversão do mapa da América do Sul e afirma a sua concepção de arte como totalidade
cósmica, oriunda dos povos pré-colombianos, como solução para a arte moderna, devido à sua
integração com a vida cotidiana.
O artista ao criar a linguagem de signos introduz ainda números e palavras e estabelece
as relações internas entre as distintas partes que compõem a pintura, na busca de efeito de
conjunto. Ele considera o símbolo como uma ideia gráfica, que permeia regularmente a sua
pintura e os seus livros. A forma construída compõe a linguagem simbólica,11 (Torres-García
1984, p. 97) na qual ler e ver se conectam numa mesma obra e são procedimentos necessários
para identificar as suas significações e apreciá-la. Na Europa, ele denomina a nova arte de
construtivista e, quando retorna a Montevidéu, acrescenta o Universalismo, justificando que
a construção, a ordem e os símbolos são universais. O termo universal conecta-se com o a
noção de consenso e ao mesmo tempo como fenômeno superior de ordem metafísica.
Nesse momento, ele intensifica a pesquisa da arte pré-colombiana e seus discursos
tornam-se mais dogmáticos, fenômeno que se acentua ao enfrentar dificuldades de legitimação,
levando-o à repetição dos conceitos, para obter o reconhecimento e formar discípulos.12 A
resistência à sua concepção de arte exige do artista recorrentes práticas discursivas nas quais
explana as suas aspirações de arte total e de estetização social da América. Ele reverencia
a arte como memória, monumento e ritual espiritual, assim como programa para que ela seja
portadora de nova ordem social, em que todo homem no futuro seja um artista. Torres-García
propõe a arte monumental, construtivista e universal para América, porque representa a unidade
do espírito e tem um fundo moral, para estimular todo o homem a possuir uma religião. Para
ele, a arte religiosa e social é de todas as épocas e se constitui como afirmação do Homem
Universal. “Por isto, pertencemos à grande tradição, ao grupo dos construtores”. (Torres-García
1984, p. 501) Ele considera a arte autóctone e o seu caráter transcendente como fundamental
para impor a lógica do pensamento geométrico e da ordem.
Torres-García assume a missão de concretizar a transformação estética e social da
América, tendo como base deste projeto valores coletivistas, de anonimato e de integração
da arte na vida. O seu projeto evidencia o ideal da reconquista de uma potência perdida,
degradada pela queda, daí a busca das raízes culturais. (Durand 1997, p. 145) A reconquista
se manifesta através de símbolos que representam a ascensão rumo ao espaço metafísico, no
qual a verticalidade da escada é uma das figuras mais usuais. No futuro, quando a reconquista
Em 1931, Torres-García faz uma conferência em Paris, intitulada L’Esoterisme dans l’art. Rojas e o artista têm um amigo
comum, Roberto Payró, com quem o último mantém correspondência e contato pessoal.
Os símbolos, seus significados e sua ordenação coincidem com aqueles que constam do livro do intelectual argentino Ricardo
Rojas Silabário de la decoración americana, divulgado em Madri em 1930. O autor salienta que se deve tomar os símbolos
americanos como fonte de inspiração para “dar ao mundo uma nova arte”. (Rojas 1930 p.16 apud Battegazzore 1999, p. 98)
10
11
Ele não faz distinção entre símbolo e signo.
As dificuldades enfrentadas por Torres-García também se devem ao fato de um grupo de novos artistas não aceitar o resgate
das tradições, em detrimento da estética de vanguarda. Ele enfrenta assim distintas vertentes de concepções artísticas e se mostra
instransigente em relação as mesmas. (Peluffo Linari 2000, pp. 51-58)
12
73
fosse efetuada, o homem teria a segurança de teor metafísico e se purificaria. A metáfora da
purificação, no contexto do Universalismo Constructivo, assinala a salvação cultural e social da
América, afastada dos problemas inerentes à colonização. Ela tem como meta a libertação e
apresenta o caráter regenerador.
Para mudar este cenário, Torres-García difunde suas ideias e as novas concepções
artísticas através de inumeráveis conferências, cursos, publicações e da criação da Asociación
de Arte Constructivo (1935-1939), do Taller Torres-García (1944) e das revistas Removedor
(1945-1951) e Circulo y Cuadrado (1936). Esta última revista, de caráter internacional,
constitui-se como 2ª. Edição de Cercle et Carré e veículo de propagação de suas teorias e
dos movimentos modernos europeus com os quais se identifica. Os seus livros e a revista têm
circulação na América Latina, Europa e EUA.13 Ele mantém uma coluna no jornal La Nación,
na Argentina, ministra palestras e faz exposições.14 (Duncan 1974, p.40) Essas iniciativas
são importantes porque permitem aos artistas sul-americanos conhecerem a arte moderna
europeia, no momento de eclosão da 2ª. Guerra Mundial.
O uruguaio Carmelo Arden Quin, que participa do movimento concreto argentino e é
discípulo de Torres-García no Taller, declara que os artistas se encontram isolados e que a
guerra não permite a sonhada estadia em Paris. O Taller Torres-García tem o objetivo de formar
artistas, promover exposições e a realização de obras conjuntas, atividades que repercutem
de tal maneira que artistas e críticos de arte argentinos, espanhóis e norte-americanos visitam
o mesmo para conhecer o seu trabalho. Nesse momento, as suas obras e reflexões tornam-se
mais conhecidas fora do Uruguai e estimulam vários estudos monográficos, sendo os mesmos
publicados, na Argentina, no Chile e no seu país.15
Torres-García estreita amizade com os argentinos Emílio Pettoruti e Jorge Romero Brest
e estabelece intercâmbio com os membros do grupo Arturo (1944), dos quais alguns são
seus alunos. Ele colabora para a revista Arturo com textos e reproduções de suas obras.16
Kosice conhece os seus brinquedos articulados e executa a primeira escultura em madeira
articulada, construída por cubos.17 Arden Quin e Kosice consideram importante a formação
com o uruguaio, sendo que o último no livro The world of abstract art (1957), destaca que
a maioria das concepções artísticas em que Arturo se deve a Torres-García. «Seu ateliê
construtivista exerceu grande influência entre os jovens da época», apesar de sua pintura
As principais instituições em que circula a revista: Biblioteca do Congresso e Galeria Nacional de Arte em Washington, MoholyNagy Instituto de Desenho em Chicago, Artistas Americanos Abstratos, Galeria de Arte Viva e associada do Museu Guggenheim,
em Nova Iorque. No Brasil, a revista tem intercâmbio com a Gazeta de Arte e constata-se o provável conhecimento das suas ideias
antes da I Bienal de São Paulo, quando Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Zenes vivem no Rio de Janeiro (1940-1947). Ela
já o conhece desde 1929, quando ele expôs em Paris e ela adquiriu os brinquedos e as suas primeiras pinturas construtivistas.
13
Ele expõe em Buenos Aires (1942, 1944, 1949 e 1951). Em 1949 é realizada em Buenos Aires uma exposição com obras de
artistas de vanguarda, Del arte figurativo al arte abstracto, sob curadoria do crítico Léon Degand. (Giunta 2004, pp. 70-73)
14
Em 1941, Alfredo Cáceres publica uma monografia sobre Torres-García em Montevidéu; Claude Schaefer em Buenos Aires; e
no Chile, o poeta Vicente Huidobro “Homenaje a Torres-García”. O livro Universalismo Constructivo (2 volumes) exerce grande
interesse entre artistas latino-americanos e espanhóis.
15
Em 1943, os futuros membros do grupo Arturo - Arden Quin, Gyula Kosice e Rhod Rothfus - visitam o Taller e mantém contatos
com regularidade até 1946.
16
17
Em 1945, Kosice expõe uma escultura em metal articulada e outra móvel, que permite a manipulação pelo público.
74
As vanguardas americanas: estratégias políticas e estéticas - Maria Lúcia Bastos Kern
revelar ainda resquícios da figuração.18 Diante de seu reconhecimento, o uruguaio publica na
capital portenha o livro Universalismo Constructivo (1944), tendo como subtítulo: Contribuición
a la unificación del arte y de la cultura de América.
O contato com a obra e as reflexões teóricas de Torres-García no Brasil se efetua através
da artista luso-francesa Maria Helena Vieira da Silva, no momento de sua estadia no Rio de
Janeiro. As obras do uruguaio a estimulam a encaminhar sua pintura às formas geométricas
puras. Vieira da Silva exerce no Rio de Janeiro papel catalisador junto à nova geração de
artistas, desejosos de conhecer a arte moderna europeia.19 Provavelmente, ela divulga, entre
os jovens que frequentam o seu ateliê, as noções norteadoras do Universalismo Constructivo.
Em 1951, as obras de Torres-García e de seu discípulo, Julio Alpuy, representam o Taller
na 1° Bienal de São Paulo, momento em que as suas práticas artísticas se propagam no país.20
O uruguaio expõe diversas vezes em Nova Iorque (1933, 1943 e 1949) e a sua obra
suscita o interesse de artistas, tais como: Barnett Newman, Mark Rothko e Adolph Gottlieb. Os
três artistas vivenciam um momento após a II guerra mundial em que os críticos, marchands
e instituições governamentais estimulam a criação da arte americana em contraposição à
arte parisiense. A política cultural norte-americana apoia as iniciativas de jovens artistas
de vanguarda com a meta de que eles suplantem a arte modernista europeia e sobretudo
parisiense.
Nova Iorque se constitui na cidade em que muitos artistas argentinos e uruguaios,
discípulos de Torres-Garcia, se encontram e estabelecem intercâmbios dos legados de seu
mestre.21 Segundo Mari Carmen Ramires, Gottlieb e Newman teriam lido os textos de TorresGarcia,22 e os mesmos teriam exercido papel importante para a criação de suas poéticas. As
exposições efetuadas dão destaque às obras do Universalismo Constructivo, como a nova
expressão artística da América, que contempla as formas arcaicas das culturas do continente,
independente dos modelos coloniais europeus.
Newman, Rothko e Gottlieb se opõem à arte abstrata geométrica e ao “purismo fanático”
de Mondrian, bem como à ausência de sujeito que leva ao formalismo e à arte decorativa. Para
eles, o Surrealismo colabora justamente naquilo que a arte abstrata não contempla, que é o
sujeito. Barnet Newman acredita que o pintor abstrato necessita de uma linguagem própria
conectada com o sujeito e seu pensamento. (ROQUE nota 126. P. 268 e 455.) Para ele, a arte
abstrata utiliza a linguagem artística para exprimir o pensamento abstrato e veicular símbolos
abstratos. Ele acredita que do mesmo modo que as chamadas artes primitivas, a nova arte
Salienta-se a importância também do Neoplasticismo, dos contatos com Vantongerloo e Max Bill e a atuação do italiano Lucio
Fontana, em Buenos Aires, a partir de 1946.
18
Une-se a Maria Helena e ao seu marido, Arpad Szenes, um grupo de intelectuais e artistas: Murilo Mendes, Manuel Bandeira,
Carlos Scliar e Athos Bulcão. O uruguaio remete os seus livros para ela, por meio de Arden Quin e Edgar Bayley que em 1942
buscam apoio de Murilo Mendes e da artista lusitana para a futura revista Arturo.
19
Nessa bienal, a Holanda e a Argentina não são representadas e as participações dos uruguaios e suíços, Max Bill, Sophie
Taeuber-Arp, Richard Lose e Leo Leffi exercem grande fascínio. Na II Bienal (1953), os construtivistas uruguaios novamente
participam.
20
21
Nessa cidade também se encontram os colombianos Edgard Negret e Eduardo Ramirez Villamizar.
22
RAMIREZ, M.C.; TORRES P.253-289 In: Garcia, p. 320 (2012).
75
é a produção de mitos, que pode transmitir conteúdos simbólicos abstratos. ROQUE, p. 271
“As novas pinturas são por consequência filosóficas. (...) Os conceitos filosóficos é que são
de natureza abstrata, é inevitável que a forma seja abstrata”. Como os pintores querem dizer
alguma coisa, as suas pinturas têm a forma abstrata e os acentos surrealistas. (NEWMAN
NOTA 133 P. 271/ 456.)
Eles criam obras que se relacionam com as construções puras e o misticismo. Gottlieb,
nos anos de 1940, defende também o conceito de estrutura e trabalha com retículas nas
quais insere desenhos com formas biomórficas e enigmáticas, assim como se interessa pela
arte indígena e sua simbologia. As figuras biomórficas têm relação com as pinturas de Miró
que despertaram o interesse do artista ao possibilitarem maior liberdade do que as formas
geométricas. (Ann p.145) Mais tarde, ele cria as Pictographics e explica que são imagens
do subconsciente e a expressão da neurose que constitui a realidade naquele momento e o
pessimismo diante dos conflitos internacionais e nacionais, apesar da expansão econômica
norte-americana e de sua posição hegemônica frente às nações europeias, fragilizadas pela
recente guerra mundial. Os três artistas vivenciam o temor da bomba atômica, da guerra fria,
da guerra da Coreia e do maccarthismo no seu país.
Para Rothko e Gottlieb, o tema na pintura e sua significação é “crucial” nesta época. Em
1943, Rothko declara que ele e Gottlieb procuram dar títulos em suas obras e que os mesmos
“lembram os mitos da Antiguidade, nós os utilizamos porque são os símbolos eternos sobre
os quais nós devemos retomar para exprimir as ideias psicológicas fundamentais”. O mito
possibilita a expressão de “alguma coisa de real e de existente em nós mesmos”. Gottlieb
acrescenta que eles professavam um parentesco com a arte do homem primitivo em razão
da guerra. Para ele, “Toda a expressão primitiva revela a consciência constante de forças
poderosas da presença imediata do terror e do medo”. (Ann p. 163) Em tom de manifesto
ele declara no New York Times (13 /6/1943) que o tema é crucial e que os temas válidos são
trágicos e eternos. É por esta razão que nós defendemos a afinidade espiritual com a arte
arcaica e primitiva. (Harrison p. 622-3)
No plano estético, eles queriam favorecer a “expressão simples do pensamento
complexo”, promover a “forma ampla” e os motivos unidos e a reafirmação do plano no quadro.
Esses critérios dão à arte uma perspectiva distinta daquela que oferecia o espaço profundo e
ilusório da arte figurativa American Scene Paiting dominante no EUA. (Ann P.163)
Os pictogrphics de Gottlieb (1947-51) compõem a obra do artista dentro de estruturas
geométricas desenhadas no plano, de forma independente uns dos outros para que o público
estabeleça as relações entre eles e deduza suas possíveis significações. Nos anos de 1940,
Rothko estabelece de forma tensa a conexão entre objetos cotidianos, figuras biomórficas e
elementos oriundos das fantasias do inconsciente, sem abandonar a figuração. Ele acredita na
“existência igual do mundo engendrado pelo espírito e do mundo engendrado por Deus fora
dele”. (Roque 2003, p. 271) A fase surreal e biomórfica e, em 1947, ele começa a dividir a tela
em bandas de cor flutuantes.
76
As vanguardas americanas: estratégias políticas e estéticas - Maria Lúcia Bastos Kern
A busca de espiritualidade é perseguida pelos três artistas,23 sendo que em Newman a
mística judaico-cristã o conduz a desvendar a realidade da experiência transcendental, lendo
o Talmud e Torah, e se exprimindo por meio da não figuração. Newman conhece a obra de
Torres-García, quando é realizada na galeria de Sidney Janis a sua primeira grande exposição
individual em Nova Iorque (1949). Nesta ocasião, ele visita, diariamente, a galeria para observar
as suas obras, provavelmente motivado por questões comuns. (Gradowczyk 2007, p. 361) Um
ano antes, ele publica The sublime is now, (1948) texto programático em tom de manifesto, no
qual declara: “Nós estamos reafirmando o desejo natural do homem por tudo aquilo que se
refere às nossas relações com as emoções absolutas; nós estamos realizando imagens que
serão a sua própria realidade (...)”, distintas das tradicionais imagens da estética do sublime,
não são representações, mas formas puras. (Roth 1993, p. 164)
Observa-se que os três artistas norte-americanos fundamentam as suas poéticas nas
noções de arte universal e metafísica em busca do espiritual. Eles são de famílias judias,
imigrantes ou descendentes que vivenciam as atrocidades da guerra. Não queriam produzir
obras belas e idealistas como as europeias, num momento de intranquilidade, mas exprimir em
suas pinturas a tragédia e a ausência de comunicação humana, mas sem deixar de, segundo
Roth, exprimir a musicalidade e se constituir como revelação para o público. Este deveria
transcender o meio ambiente imediato e conhecer um sentimento de infinito.
Newman afirma que o artista americano está livre do peso da cultura europeia e clássica
e que poderia “negar que a arte tenha alguma relação com o problema da beleza” e tal como um
homem “bárbaro” reafirmar o desejo natural do homem de exaltação das emoções absolutas.
A sua noção de sublime difere daquela de Edmund Burke (1757) ao se opor ao belo. Em Zip,
a unidade dos opostos, ele revela a luz divina que pode representar a ordem ou a metáfora do
ser humano face ao absoluto.
Margit Rowell acredita que o uruguaio colabora para a liberação de certas convenções
europeias e a abertura de uma via em direção a outras perspectivas, uma forma de arte
inédita e propriamente americana, ao estabelecer a síntese entre o arcaico (pré-colombiano),
o clássico e o moderno.24 (Rowel 1992, p. 314) A sua obra é a alternativa à arte europeia, ao
portar elementos originais, a partir de valores estáveis.
Após a morte de Torres-García em 1949, grandes exposições são realizadas em sua
homenagem no Uruguai, EUA, Chile, França, Espanha e Brasil. Nesses eventos são também
apresentadas as obras de seus discípulos. São eles que dão continuidade ao Taller e aos seus
ensinamentos, os quais repercutem pela América e Europa. Dentre os discípulos no Uruguai
destacam-se os seus filhos, Augusto e Horacio, Francisco Matto, José Gurvich, Julio Alpuy,
Roth no texto “ O Romantismo...” no catálogo Possibilities I (Centre Culturel G. Pompidou, 1976) ele propõe a revisão moderna
do romantismo, concebida como uma forma de experiência transcendental face à banalização e à hostilidade da vida cotidiana.
(Harrison p. 624.)
23
Em 1943, uma obra de Torres-García é adquirida pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, onde ele expõe, sendo a
apresentação do catálogo efetuada por Alfred Barr; e, em 1949, ele prepara outras exposições para a galeria Sidney Janis e a
União Panamericana de Washington. Sete anos antes ele recebe a visita em seu ateliê do curador Lincoln Kristein, que adquire
suas obras e de seus filhos, Augusto e Horacio.
24
77
Gonzalo Fonseca, Hector Ragni, Amalia Nieto e o espanhol Manuel Pailós. A maioria desses
artistas tem atuação internacional. As atividades integradas no Taller entre artistas e arquitetos
se expandem nas décadas de 1950 e 1960, evidenciando a prática da criação coletiva e o
desenvolvimento das artes aplicadas. No conjunto de obras está presente a grande síntese
entre a tradição construtiva, o moderno e o arcaico.
Ao converter o Construtivismo em Universalismo Constructivo, ele não só o torna
universal, mas também atemporal. Com isto, ele o insere na esfera mítica, dotando-a de sentido
cosmogônico. Assim, a sua obra vai além dos ismos, do espaço e do tempo. (Kalemberg 1997,
p. 347) As suas atividades de ensino e de difusão do Universalismo Constructivo, fazem do
mesmo uma entidade sem fronteiras, cujas concepções são ainda veiculadas entre artistas
contemporâneos na década de 1960 e se constituem como fundamentos das novas abstrações
no continente americano.
78
Xilogravura: Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário Popular - Maria Luisa Luz Tavora
Xilogravura: Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário
Popular
Maria Luisa Luz Tavora
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Resumo: A circulação artística da xilogravura, no Rio de Janeiro, processo acentuado
nos anos 1950/60, constitui uma etapa do processo histórico da gravura plana, o de
sua assimilação como meio de expressão e sua integração ao ensino. O campo da
xilogravura se amplia. Nossa comunicação vai tratar de dois artistas, a paraibana Isa
Aderne (1923) e o pernambucano Newton Cavalcanti (1930-2006), voltada para o diálogo
que ambos estabelecem entre o universo popular e culto, a eles se aplicando o conceito
de “bicultural“ (Burke). Ambos foram alunos regulares da Escola Nacional de Belas Artes
(ENBA), ambos retomam suas raízes nordestinas, suas experiências pessoais. Manejam
um repertório da visualidade popular colocando o observador diante de problemas
contemporâneos.
Palavras-chave: xilogravura; estética expressionista; tradição popular; Isa Aderne;
Newton Cavalcanti.
Abstract: The artistic circulation in Rio de Janeiro of woodcut, a popular process in
the 1950s/1960s, was a step in the historical development of wood engraving, of its
assimilation as a means of expression and its inclusion in the courses. The field of
xylography expands. Our paper will discuss two artists, Paraiba-born Isa Aderne (1923)
and Newton Cavalcanti (1930-2006) from Pernambuco, focusing on the dialogue that
both establish between the folk and erudite universes, applying to them the concept of
“bicultural” (Burke). Both were regular students of the National School of Fine Arts (ENBA)
and both resumed their Northeastern roots, their personal experiences. They rearticulate
empirical experience, manage a collection of folk visuality, placing the observer to look at
contemporary problems.
Keywords: woodcut; expressionist aesthetics; folk tradition; Isa Aderne; Newton
Cavalcanti.
A circulação artística da xilogravura, no Rio de Janeiro, questão acentuada nos anos
1950/60, constitui uma etapa do processo histórico da gravura plana, o de sua assimilação
como meio de expressão e sua integração ao ensino de arte.
79
É imperativo destacar as contribuições dos pioneiros Oswaldo Goeldi, de Lasar Segall,
de Lívio Abramo e de Axl Leskoschek,1 pioneiros na ativação da xilogravura nos anos citados.
O campo da xilogravura se amplia ainda através das pesquisas plásticas de artistas da nova
geração, entre outros, Lygia Pape (pesquisa neoconcretista), Fayga Ostrower(pesquisa
na abstração),Gilvan Samico (no refinamento do traço popular)e Roberto Magalhães (na
xilogravura alegórica e satírica).
Nesse cenário de retomada da xilogravura no Rio de Janeiro, destacamos dois artistas
da nova geração: a paraibana Isa Aderne (1923) e o pernambucano Newton Cavalcanti
(1930-2006). Ambos foram alunos regulares da ENBA, Isa em pintura e Newton em escultura.
Isa concluiu o curso e Newton abandonou-o. Ambos tiveram contato com Goeldi, no âmbito
da Escola, sem terem sido seus alunos, porém, sob sua influência, apaixonaram-se pela
xilogravura identificando-se com o legado do expressionismo europeu. Retomaram suas raízes
nordestinas, firmando suas poéticas emolduradas pelo diálogo entre a tradição europeia e o
universo da gravura popular.
Esta realidade justifica a centralidade que terão em nossa abordagem, interessada no
elo bem sucedido que esses artistas estabeleceram entre o aprendido e o espontâneo, entre
os parâmetros da formação institucional e a liberdade das manifestações populares. Realizam
a fusão de referências, eliminando as fronteiras na geografia artística, promovendo um fluxo de
ideias “na criação do complexo mapa da arte e de sua história”, entre nós.
Newton Cavalcanti nasceu em Bom Conselho de Papa Caça, Pernambuco, em 1930,
onde passou parte de sua infância. Ainda criança foi para a Bahia onde viveu sua adolescência
na região de Tranquinho da Feira, lugar muito primitivo. Veio em 1952 para o Rio de Janeiro,
estudando no Liceu de Artes e Ofícios, no curso de escultura, onde fez modelagem e relevos
em gesso, iniciando-se também em modelo vivo. Passou por um escritório de arquitetura e
depois por uma empresa de publicidade, alimentado o desejo de se especializar neste tipo de
desenho.
Em 1954, Newton entrou para a Escola Nacional de Belas Artes. Embora se destacasse
no desenho artístico, outras matérias o entediavam como o desenho anatômico, pois precisava
decorar nome de ossos. Ele praticava desenho de paisagem, modelo vivo, sem acompanhar
regularmente o curso. “Eu passei do primeiro para o segundo ano e depois fui repetindo,
repetindo e saí da Escola. Porque, na verdade, eu me dedicava à gravura”.2
Seu contato com a gravura veio através de Adir Botelho, àquela altura assistente no curso
de especialização em gravura de Raimundo Cela professor adoentado e por isto ausente.
Newton ensaiou algumas gravuras em metal. Goeldi posteriormente incentivou-o a trabalhar
com madeira embora ele já fizesse experiências com linóleo. Com a contratação de Goeldi
1
Artista e ilustrador austríaco, refugiou-se no Brasil da perseguição nazista, de 1940 a 1948. Professor do Curso de Desenho
de Propaganda e de Artes Gráficas, oferecido em 1946 pela Fundação Getúlio Vargas/Rio . À frente do curso de xilogravura
despertou o interesse por esta técnica qualificando seus alunos para o campo da ilustração, atividade cuja demanda se
acentuou nos anos 1940/50.
2
CAVALCANTI, Newton. In TAVORA, 1999, p. 226.
80
Xilogravura: Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário Popular - Maria Luisa Luz Tavora
para o ateliê do curso de especialização na ENBA, em 1955, Newton viveu com o mestre uma
grande amizade e como disse: “Desenvolvi uma espécie de paixão pela gravura”.3
Ficava conversando horas seguidas, em separado, com Goeldi, ia à sua casa no Leblon,
mostrava suas gravuras para a apreciação do artista. Recebendo informalmente uma orientação
do mestre que partilhava sua adensada cultura artística. O expressionismo teve sua adesão
imediata, conforme afirmou: “[...] parece que foi feito para mim.[...] O expressionismo é uma
coisa de caráter. Tanto que não era bem uma escola, no fundo. O expressionismo foi um estilo
de vida. Uma reação[...].4
Comprometido com as questões do seu dia-a-dia, o impacto da cidade grande refletiuse em seus trabalhos. A temática urbana mobilizou-o até que, em 1956, um retorno à Bahia
por seis meses, avivou-lhe a atmosfera nordestina, povoada de lendas e histórias contadas
pelas mulheres do povo, herança comum medieval que atuava no sertão. Newton buscava
penetrar no mistério da expressividade entusiasmando-se com as gravuras de cordel, lugar
desta revelação primitiva: “Naquele tempo eu vivia à procura de uma realidade mais primitiva,
necessitava desta rudeza. Era como se eu estivesse fugindo de uma pressão civilizatória que
me sufocava”.5 Podemos considerar para a compreensão de seu caso o que diz Hal Foster:
“[...] captar o primitivo como primordial”.6
Voltado para significar a realidade com uma imaginação desesperada, um espírito
barroco a se inquietar com o desastre da história humana, Newton transita pela visão de
uma monstruosa humanidade, atormentado com seu destino.7 Trabalha com uma imaginação
exaltada e sobressaltada por um sentimento nacionalista. Não foi sem sentido que Iberê
Camargo, muitas vezes, o definiu como “o Goya brasileiro”.
Deixaram marcas em sua memória os arabescos dos altares barrocos de Salvador, a
contemplação de formas em profusão, a luz e as trevas numa luta infindável no espaço talhado.
A paixão pela leitura do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), contos cheios de
mistério e terror, constitui mais um dado neste interesse em revelar o mundo através de um
clima de tensões.
Em 1964, Newton conquistou o prêmio de Viagem ao país no Salão Nacional de Arte
Moderna com a gravura “A tentação de Santo Antão” (Figura 1). Neste trabalho, o artista
concentra-se na imagem do homem torturado por seus pensamentos. Santo Antão Abade
(251-356) era um eremita e taumaturgo com muita importância para o universo cristão por
ter instituído a vida monástica.8 Como símbolo da vitória sobre as forças do mal, seu poder o
3
CAVALCANTI, Newton. GRAVURA BRASILEIRA HOJE: depoimentos. 1996, vol. II SESC/Rio de Janeiro, 1996 p. 44.
4
Idem.
CAVALCANTI, Newton. Em Depoimento a Walmir Ayala, 1969. Newton foi um dos ativos divulgadores, nos anos 50, da gravura
nordestina. Trouxe de sua viagem a Salvador, uma coleção de Gravuras de Cordel que foi apresentada na galeria Macunaíma, do
Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Belas Artes, em exposição organizada por Hugo Mundi.
5
6
Foster, Hal. 1996. p. 241.
Cruzam-se em sua formação influências significativas que o levaram a amalgamar um caminho muito próprio. Em gravura em
metal, inicialmente copiava Toulouse Lautrec (1864-1901), obras de Gustave Doré (1832-1883), de Francisco Goya (1746-1828),e
do mexicano José Guadalupe Posada(1851-1913)
7
8
Fundou os dois primeiros mosteiros de que se teve notícia, em Pispir e Arsinoé.
81
Figura 1 - A Tentação de Santo Antão, 1964. Xilogravura em preto e branco sobre papel de arroz, 33x 34 cm. Coleção do artista.
Foto: Fernando Sérgio, In Newton Cavalcanti: lendas rústicas. Michel Masson (org.) Rio de Janeiro: Data Coop, 2012.
transformou no santo protetor de um mal muito disseminado na época, conhecido como o Fogo
de Santo Antão (sífilis, ergotismo e outros males).
A fé nos santos e líderes carismáticos estava muito próxima da cultura e da religiosidade
populares, o que se manteve na geografia nordestina, onde pontificam histórias e lendas
medievais.9 Newton retoma a temática atualizada pela cultura religiosa sertaneja. Meus
demônios estão no dia-a-dia afirma Newton.10 O simbólico e o fantástico encontram-se numa
composição de extraordinária força alegórica. Santo Antão e figuras demoníacas ocupam quase
completamente a superfície gravada, o céu. Suspensos no ar são envolvidos pelo movimento
dominante de um redemoinho, turbulência que dá a medida do pesadelo. A hegemonia do
9
O Museu de Arte de São Paulo (MASP) possui uma versão de As tentações de Santo Antão de Hieronymus Bosch (1450-1516),
artista flamengo que, entre1485-1505, dedicou-se a grandes trípticos, pintados a óleo sobre painéis, um deles sobre Santo Antão.
10
CAVALCANTI, Newton. 1973.
82
Xilogravura: Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário Popular - Maria Luisa Luz Tavora
espaço celeste evidencia o caráter místico da narrativa. O tratamento áspero que o céu recebe,
com incisões irregulares acompanhando a circularidade do movimento das figuras, empresta
profundidade cósmica à superfície. O desassossego reverbera na turbulenta movimentação, à
maneira de Posada.
Santo Antão de braços erguidos, numa iconografia teatral do desespero, situa-se no
cruzamento de diagonais que têm nos seus extremos animais híbridos, monstros que brotam
da livre imaginação do artista. No imaginário medieval, há uma desumanização do universo
que se dirige para um mundo de animais monstruosos, que acabam integrando o vocabulário
de Deus. Os monstros confirmando a ordem divina da criação.11
Na parte inferior da composição, longe e diminuta, gravada em delicadas incisões de luz,
a cidade, num perfil moderno, é envolvida pela sinuosidade das formas das montanhas. Sutil
na sua articulação plástica, a imagem comunica a permanência dos conflitos que continuam
a torturar o homem moderno. A narrativa transcende o seu significado puramente religioso. A
gravura de Newton anuncia o trágico como face inevitável da vida.
Em Ceia dos Monstros (195-) requinte da incisão, nesgas de luz, (herança goeldiana) é
responsável, estranhamente, pela rudeza que emana da imagem. Como Goeldi, Newton usa
ferramentas feitas de ferros de guarda-chuva e rodas de bicicleta, indo ao extremo do embate
com a matéria na utilização da unha para a estampagem. O fantástico emerge como solução anticonvencional, em confronto com as convenções
normativas de nossa cultura, possibilidade da experiência primordial. Com muita propriedade
afirma o crítico Wilson Coutinho, que Newton foi: “[...] obrigado a definir um campo alternativo
situado entre as raízes de sua cultura e sua inevitável dissolvência urbana”.12 O trágico manifestase mesmo na abordagem de festas como o Carnaval. Sua fantasia não faz concessão ao
agradável. É dura, povoada de demônios que o torturam. Nele a imaginação é desesperada.
Ainda é o crítico Wilson Coutinho que afirma que com Newton “ é preciso que a ideia de horror
seja um sistema”.13
Com suas xilogravuras Newton Cavalcanti frequentou mostras, salões, bienais, recebeu
inúmeros prêmios nacionais e internacionais, criando oportunidades de levar e atualizar para a
intelectualidade artística que envolvia tais certames,14 um território próprio do sertão nordestino
na interface com o legado expressionista europeu.
Quanto à Isa Aderne, paraibana de Cajazeiras onde nasceu em 1923, a artista peregrinou
em sua infância por muitas cidades nordestinas nas quais seu pai, “engenheiro das secas”,
trabalhou. Assim, a fome, a miséria e as doenças como o tifo situam sua experiência de mundo
no sertão nordestino. Esse destino de migrações sucessivas obrigou muitas vezes a separação
11
HITNER, Sandra. 199, p. 15.
12
COUTINHO, Wilson. 1980.
13
Idem.
O artista obteve também a Premiação de Viagem ao Estrangeiro do Salão Nacional de Belas Artes, em 1972. Participou de
importantes bienais como a de São Paulo, a de Santiago do Chile, de Porto Rico, Bienal de Paris, de Cali, entre outros eventos
de relevância no período.
14
83
da família para fugir das epidemias ou para permitir o seu estudo e dos irmãos em centros mais
avançados. “Antes de vir para esses colégios bacanas que o meu pai me colocou, eu estudei
naqueles “coleginhos” de freira do interior”,15 nos quais aprendeu a pintar. No colégio AngloAmericano do Rio de Janeiro para onde veio em 1938, conheceu a obra de Bernardelli através
de cópias de gesso das esculturas do mestre que Isa insistia em copiar durante as aulas que
não lhe agradavam.
Em 1947, optou pela pintura, buscando sua formação na Escola Nacional de Belas,
concluída em 1960. Ainda aluna de pintura, interessava-se pelas atividades do ateliê de
gravura, onde Goeldi orientava sua irmã Laís Aderne. Alimentava o desejo de tornar-se também
aluna do mestre: “Resolvi trabalhar com Goeldi, um homem que dava liberdade, dizia como
fazer, que a gente realizasse aquilo que vinha de dentro [...]”.16
Seu desejo não chegou a ser concretizado pois em 1961 Goeldi faleceu, sendo substituído
por Adir Botelho, seu assistente. Mas o mestre continuou seu “orientador espiritual”. Dele a
artista apreciava os pretos e a luminosidade sutil. Em sua criação, Isa valorizou a experiência
pessoal tanto na escolha da temática quanto nas questões técnicas.
A atividade artística, o ensino e a pesquisa teórica integraram-se perfeitamente na
trajetória desta artista, que ao encerrar o curso de gravura, em 1964, assumiu a orientação do
ateliê de gravura na Escolinha de Arte do Brasil, no Rio.17 Lá, “[...] eu comecei a ter influência da
gravura popular do nordeste, no convívio com os meus alunos de Pernambuco, me lembrando
do que eu tinha visto lá [...]”.18 O contato com os irmãos José e Antônio Barbosa, entalhadores,
despertam-na para uma experiência que, na verdade, adormecida, começara muito antes. Nos
colégios de freiras no interior, Isa fazia carimbos com casca de cajá para usar nas capas dos
seus cadernos, material também empregado pelos artistas da região que faziam capas de
cordel.
Este voltar-se para as raízes, processo pessoal da artista, dava-se nos anos 1960,
momento em que o debate cultural sobre a questão do nacionalismo vinculava-se a uma
preocupação com nossas tradições. A Escolinha constituía
o lugar de valorização desta
postura, iniciada por seu fundador Augusto Rodrigues que, muito antes da euforia nacionalista
daqueles anos, organizara em 1947, uma mostra do Mestre Vitalino, um dos grandes ceramistas
brasileiros. Suas figuras de barro ascenderam à categoria do estético, passando a desfrutar
de prestígio junto a intelectuais modernistas, para quem a arte popular constituía um corpo de
referência para uma aproximação com a realidade brasileira. Em meados dos anos 40 dera-se
a descoberta da produção gráfica de origem popular, pelas camadas eruditas da sociedade.19
15
ADERNE, Isa. In TAVORA, 1999, p. 216.
16
ADERNE, Isa. GRAVURA BRASILEIRA HOJE: depoimentos, 1996, vol. II SESC/RJ, p. 38.
Isa Aderne, tornou-se chefe de pesquisa no setor de restauração do Museu da República/Rio. Atuou na área de arte-educação
em vários pontos do país, destacando-se o trabalho realizado na Secretaria de Educação da Bahia e na PUC do Rio de Janeiro.
17
18
ADERNE, Isa. In TAVORA, 1999, p.2 17.
19
ALMEIDA Mauro de. 1980. p. 35.
84
Xilogravura: Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário Popular - Maria Luisa Luz Tavora
No caso de Isa Aderne, as raízes encontraram a oportunidade para aflorar: “[...] fui
esquecendo o Goeldi, comecei a jogar tudo aquilo da minha infância, da seca, de tudo que eu
vi, também a parte estética do cordel. Tudo isso passou a influenciar o meu pensamento”.20 Isa
também tivera contato com a obra de Paul Gauguin (1848-1903), experiência proporcionada
por Goeldi que mantinha no ateliê de gravura da ENBA o livro artesanal NOA-NOA do artista
francês.
O interesse pela obra de Gauguin significava uma abertura para uma arte criada fora da
influência da civilização, na qual, segundo Argan, “a imaginação não está contra a consciência
da realidade nem fora dela e sim é uma extensão da consciência que desta forma compreende
também a vida vivida, o passado”.21
Destacamos de Isa duas xilogravuras de 1968, situadas na apropriação da iconografia
dos sonhos e pesadelos do homem sertanejo que a artista operava para tratar dos pesadelos
de todos os brasileiros. Sua gravura de resistência à restrição da liberdade de expressão
imposta pela ditadura militar, em 1964, articula a memória nacional da tragédia climática e
social nordestina.
Em Queremos chuva II, (Figura 2) os homens e mulheres podem ser de qualquer lugar.
Com as expressões tensas, destacadas pelas incisões irregulares em seus rostos, estão
mudos, reivindicam com o olhar, cuja gravidade encontra solidariedade no amplo céu que
encima as figuras. O espaço da natureza, como na obra O Grito, do artista norueguês Eduard
Munch (1863-1944), reverbera o drama revelado pelos olhares. O momento era de censuras
e proibições. Mais que impressionar a vista, a imagem criada por Isa penetra e causa impacto
ao traduzir um fragmento vivo de sua própria existência. O quê se queria no Brasil, em 1968?
Responde a gravadora: “[...] eu escrevia “queremos chuva” porque eu era nordestina,[...] eram
Figura 2 - Queremos Chuva II ! 1968. Xilogravura em preto e branco sobre papel de arroz, 55,5x 21,1 cm. Coleção particular.
Foto José Augusto Fialho Rodrigues.
20
ADERNE, Isa. In TAVORA, 1999, p. 218.
21
ARGAN, 1975, p. 156.
85
caras em posições diferentes, com uma expressão de que elas estavam angustiadas, querendo
alguma coisa”.22 Isa confessa que não podia ser direta e a condição de nordestina desviava o
tom do verdadeiro “queremos liberdade !”
Em “E agora José?” (Figura 3) tem-se vacas magras, vegetação seca, presença de
urubus, a miséria em contraste com o período das “vacas gordas”. Tudo organizado num
espaço tensionado por incisões irregulares que cobrem o céu, também em desespero. O ritmo
é angustiante. O observador é encarado pelos animais famintos que, em fila cerrada, dão a
sensação de avançar em sua direção. O observador está encurralado, não escapará. A obra,
como as demais, presta-se a uma dupla leitura. Considerar o tema no contexto da problemática
nordestina ou perceber mais profundamente a referência permanente de suas propostas à
situação política vivida pelo país, naqueles anos? ”Vacas magras”, seria o título original da
gravura. Impactada pela decretação do Ato Institucional n. 5, em dezembro de 1968, Isa preferiu
lançar uma pergunta que angustiava muitos brasileiros. Contemporânea de seu tempo, sem
ser panfletária, Isa apela para a consciência e ação políticas, domando o imaginário popular
sem sacrificar a questão estética e a linguagem.
Figura 3 - E agora José ? 1968. Xilogravura em preto e branco sobre papel de arroz, 49x19,5cm. Coleção da artista. Foto
Catálogo Isa Aderne Gravuras SESC / São João de Meriti, jul.1998.
Newton Cavalcanti e Isa Aderne, movidos pelo processo pessoal de retomada de suas
raízes, integram-se às questões mais amplas propostas pelo campo artístico-cultural dos
anos 1960, preocupado em situar a arte como uma modalidade de intervenção na realidade.
Equacionam de modo peculiar tradição e contemporaneidade.
Nos anos 60, o reconhecimento da cultura popular buscava transformá-la em um dos
símbolos da cultura nacional. Instituições universitárias participaram da criação de políticas de
fomento, espelhando o interesse por um consumo oficial da cultura popular. Envolvidos num
processo pessoal, Newton e Isa acabam por participar de um sentimento nacional.
22
ADERNE, Isa. In TAVORA, 1999, p. 222.
86
Xilogravura: Da Poética Expressionista à Eloquência do Traço e do Imaginário Popular - Maria Luisa Luz Tavora
Nas instâncias oficiais de legitimação das artes plásticas, como o Salão Nacional de Arte
Moderna, realizado no Rio de Janeiro, a gravura artística, herdeira do traço popular, ganhou
espaço através da aceitação e da premiação de seus artistas.23 Foi significativa a presença da
xilogravura também nas bienais de São Paulo.
Parte substancial da vanguarda politizada dos anos 60 proclamava o caráter nacionalista
da cultura popular que funcionava como escudo de luta contra a invasão da cultura americana.
Tal entendimento pode ser remetido ao pensamento de Shusterman, para quem “a arte popular
pode ser não só intelectualmente estimulante, como crítica em relação às “tendências sociais
existentes”.24
A definição do destino social da arte caminhava na esteira das propostas modernistas
dos anos 1920. A via da figuração expressionista favorecera um olhar para nossas questões,
nossa realidade. O debate cultural / intelectual sobre a questão do nacionalismo vinculavase a uma preocupação com nossas tradições, elegendo a cultura popular como elemento
identitário.
O encontro promovido por esta dupla de artistas-gravadores, envolvendo uma atitude
expressionista com o universo da cultura popular agudiza os termos arte /existência. Isa e
Newton, herdeiros do legado expressionista, estabelecem um trânsito entre o universo popular
e culto, promovendo circularidade entre as respectivas criações, diluindo fronteiras.
Consideramos singular a produção de Isa Aderne e Newton Cavalcanti, artistas com
formação na Escola Nacional de Belas Artes e que, por opção estética e razões pessoais,
buscaram a espontaneidade do corte na gravura popular. Podemos estender para os dois o
termo “bicultural” de Peter Burke, proposto para descrever a situação de membros da cultura
“alta” que recebem formação em escolas secundárias e universidades e que, na infância,
aprenderam e se envolveram com as manifestações culturais populares, canções, lendas,
brinquedos e contos.25
O processo imaginativo de suas gravuras, - colagens de tempos, exercícios de
memórias, aproxima-se de aspectos bem marcados da realidade brasileira dos anos 1960.
Ambos rearticulam a experiência vivenciada, manejam um repertório da visualidade popular do
universo nordestino, colocando o observador diante de problemas éticos, morais e políticos
que lhe são contemporâneos. O desdobramento do legado expressionista europeu promovido
em suas poéticas concorre na elaboração de uma arte de afirmação do dinamismo da cultura
nacional.
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA Mauro de. Leituras de Cordel In Arte em Revista n° 3 São Paulo: Kairós, março / 1980.
ARGAN, Giulio Carlo. El Arte Moderno:1770-1970.Valencia: Fernando Torres , 1975.
AYALA, Walmir , Jornal do Brasil Artes Plásticas, Rio de Janeiro, 8 / 8 / 69.
Isa Aderne foi aceita em todos os Salões de Arte Moderna a partir de 1961; Samico teve Isenção de Júri em 1961 e Newton
Cavalcanti em 1963; o prêmio de Viagem ao País foi em 1962 para Samico e em 1964 para Newton; o prêmio de Viagem ao
Exterior foi de Samico em 1968 e de Newton em 1972.
23
24
SHUSTERMAN, Richard, 1998, p.109.
25
BURKE, Peter. 1989, p.17.
87
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Média São Paulo: Companhia da Letras, 1989.
CAVALCANTI, Newton. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 21 / 6 / 73.
COUTINHO, Wilson. O horror como sistema. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 9/10/80.
FOSTER, Hal. O inconsciente primitivo In Recodificação, Arte, Espetáculo, Politica Cultural. São Paulo: Casa Editorial
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GRAVURA BRASILEIRA HOJE: depoimentos. FERREIRA, Heloisa & TAVORA, Maria Luisa Luz (org.) vol. II, SESC/RJ,
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SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a Arte . O pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Ed. 34, 1998.
TAVORA, Maria Luisa Luz. A gravura Artística Brasileira Contemporânea posta em questão: anos 50 e 60.PPG em
História Social /IFCS / UFRJ (tese de doutoramento) 1999.
88
Arte e Brasil: Identidades e alteridades
Imigrante ou circulante? Fora e dentro das impressões da imagem da política brasileira - Rogéria de Ipanema
Imigrante ou circulante? Fora e dentro das impressões da imagem da
política brasileira
Rogéria de Ipanema
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Resumo: Introduzida então pela voz do Estado, a imigração tecnológica de impressão
oitocentista e as tipologias dos papéis impressos de circulação passaram a ser uma
atividade de empreendedorismo privado, estrangeiro e de origem europeia - francesa,
inglesa, alemã, prussiana, belga, holandesa, suíça, italiana, portuguesa. Na polifonia
da imprensa, a arte que já havia estetizado um produto na Europa, pode localizar-se
na geografia do novo território cultural, não apenas como sistema reprodutível, mas
naturalizada e inventiva, a partir das narrativas visuais das representações do poder e
das práticas da vida pública brasileira.
Palavras-chave: Imagens impressas; impressores estrangeiros; impressão e imprensa
do século 19.
Abstract: Introduced by the State voice, 19th-century immigration of printing technology
and types of the circulating printed papers became an activity of private, foreign
entrepreneurship of European origin: French, English, German, Prussian, Belgian,
Dutch, Swiss, Italian, and Portuguese. In the polyphony of press, art that had already
aestheticized a product in Europe can be located in the new cultural territory geography,
not only as reproducible system, but naturalized and inventive from the visual narratives
of power representations and practices of Brazilian public life.
Keywords: Image prints; Foreign printers; 19th-century press and printing.
Para se pensar a imagem impressa, imigrante /circulante, é preciso pensar na relação
política articulada em um passado histórico e geograficamente mais distante, colocados na
questão de fundo colonizante, dimensionada no plano quinhentista português de conquista
das fronteiras do Oriente e o Mundus Novus, junto ao poder do cristianismo e a capacidade
missionária das ordens religiosas de evangelização. Capacidade ambivalente, de intervenção,
dissolução, domínio e impressão, de tinta e conceito, do outro lado da Utopia de Thomas
More.
91
Transe e trânsitos no Oriente e no Novo Mundo. Impressões goanas e as histórias dos
outros na atmosfera indo-lusitana
Na década de 1560,1 a fé católica da Índia portuguesa já estava estabelecida e podia
ser comungada na arquidiocese de Goa, na catedral de Santa Catarina, tendo o arcebispo
ainda a jurisdição do Damão e Diu, momento em que Cochim e Malaca, cada um, passaram
a ter dioceses próprias. Na verdade, segundo Patricia Faria, a partir de 1557, o arcebispo
de Goa respondia pelas missões fundadas no Concão e Canará, ao sul e leste, e, pelas
paróquias de Baçaim, Bombaim e Salsete, ao norte, formando o grande Padroado do
Oriente. Goa representava então o centro urbano civil e eclesiástico, abarcando a costaafricana oriental até o Extremo Oriente.
As impressões inacianas, nesta região, circundam em torno do texto S. Boa Ventura,
tida como a mais antiga impressão saída, “dos prelos da Companhia, da velha Goa, no
Colégio de São Paulo, em 1559”,2 e o estudo do médico português Garcia de Orta Colóquio
dos simples e coisas medicinais da Índia, impresso de 1563.3 Garcia de Orta4 era filho de
cristãos-novos espanhóis e viajara como médico do governador de Goa, Martim Afonso
de Souza. O tratado sobre o patrimônio cultural do outro ganhou difusão com a edição
publicada na Antuérpia em 15675 por Christophe Plantin, sob a tradução em latim de Charles
l’Ecluse. Para Teresa Nobre de Carvalho, Orta mudou a compreensão científica portuguesa
da época e os usos da natureza e cultura asiáticas.6
Este novo contexto intercontinental de relações de forças de domínio político e de fé
provocou um fluxo de estrangeiros europeus circulantes de várias origens para as terras
orientais portuguesas, e muitas das histórias de viagens e permanências reunidas em
peças tipográficas determinaram a condição do capital econômico de expansão do poder
mercantilista ultramarino ocidental dos séculos 16 e 17. Exemplo é a obra Itinerário, do
holandês Jan Huygen van Linschoten, que esteve em Sevilha, depois em Lisboa, quando
foi nomeado, em 1583, guarda-livros e secretário do dominicano Vicente da Fonseca, futuro
arcebispo de Goa. Retornando à Europa, o editor de Amsterdan, Cornelis Claesz, publicou
em 1596, a sua experiência estratégica. Contendo riquíssimas informações náuticas,
geográficas, uma análise moral dos modos portugueses, a relação interétnica com os
habitantes nativos e os descendentes mestiços, além de uma avaliação do sistema colonial,
a obra subsidiou sobremaneira as futuras Companhias das Índias Orientais britânica,
francesa, dinamarquesa, e claro, a holandesa. Segundo a leitura que fazemos da análise
1
Em 1560 é criado o Tribunal do Santo Ofício de Goa. FARIA, Patricia Souza de. Reforma e profecia: a ação do arcebispo de Goa
e místico d. Gaspar de Leão. História, São Paulo, UNESP, v. 28, n.1, p. 145-167, 2009.
2
MATOS, Manoel Cadafaz. A tipografia missionária portuguesa no sul da China nos séculos XVI e XVII. http://www.library.gov.mo/
macreturn/DATA/PP157/index.htm
3
Equipamento levado em 1556 por Juan de Bustamante. MATOS, Manoel Cadafaz. A tipografia quinhentista de expressão cultural
portuguesa no Oriente: veículo de propagação dos ideais humanísticos.
4
Garcia de Orta (1500-1568) tinha formação médica castelhana.
5
Garia de Orta.
6
Mais em: CARVALHO, Teresa Nobre de. Os desafios de Garcia de Orta. Lisboa: Esfera do Caos, 2015.
92
Imigrante ou circulante? Fora e dentro das impressões da imagem da política brasileira - Rogéria de Ipanema
de Thomaz Haddad,7 o texto expunha um posicionamento sociocultural excludente, que se
misturava, mas não incluía, degenerava. O convívio por dez anos de Huygen na atmosfera
indo-lusitana, tornou o seu Itinerário “um dos livros que mais propagaram o conhecimento
sobre o Estado português da Índia pela Europa”.8
Indios do outro lado e a Guanabara na xilogravura quinhentista europeia
40 anos antes do neerlandês Huygens, o alemão Hans Staden já havia exportado
nas memórias e imaginação do Novo Mundo, as imagens capturadas entre os Carijós e
Tupinambás, na capitania de São Vicente, nas Duas viagens ao Brasil, ilustradas em
1557.9 Mesmo ano da primeira edição de As singularidades da França Antártica, com 41
xilogravuras, observadas na Baía de Guanabara, outrora no “Rio que se chama Janeiro”10
pelo futuro cosmógrafo do rei, o católico franciscano francês André Thevet.11 E é ainda o ano
em que aporta no Forte Coligny, o protestante calvinista francês Jean de Léry, que depois
de recuperar os originais perdidos de sua obra alimentada no seio escondido naquela baía
sultropical carioca, publicou em 1568 a sua Viagem à terra do Brasil.12 O Velho Continente
passava a enxergar xilograficamente a história e a aventura, a crônica e a ciência as novas
formas da maravilha se complementavam nos gabinetes e nas bibliotecas, dissolvendo as
fronteiras físicas eram constantemente revistadas nas ultrapassadas das páginas de livros e
estampas.
Impressões missionárias chinesas
Lisboa embarcou religiosos regulares, nacionais e de várias origens, para as fronteiras
transculturais sino-lusitanas. O historiador Cadafaz de Matos dá exemplos de deslocamentos
de jesuítas como Belchior Nunes Barreto, que esteve por duas vezes no Extremo Oriente:
uma primeira vez se deslocando de Malaca para Shangzhou, após a morte em 1552 de
Francisco Xavier,13 o santo português padroeiro dos missionários; da Ilha de Shangzhou, foi
para a cidade de Cantão e em 1560, se dirigiu para o Japão.14 Depois vieram os agostinianos
para Fuzhou, na província de Fuquiém, e na terceira missão evangélica, quatro franciscanos
aportaram em Macau em 1575.15
O padre italiano Miguel Ruggiere chegou em Macau em 1579, fundando o catecumenato
de São Martinho, instalando-se posteriormente em Cantão. Cantão mantinha um forte
HADDAD, Thomaz. Um olhar estrangeiro sobre a “etnografia implícita” dos portugueses na Goa quinhentista. Revista Brasileira
de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 155-166, jul./dez. 2011.
7
8
HADDAD, Thomás A. S..Op. cit. p. 1.
9
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
10
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O Rio de Janeiro no século XVI. Rio de Janeiro: Jakobsson Estúdio, 2008. p. 337.
11
THEVET, André. As singularidades da França Antártica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978.
12
LERY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
13
São Francisco Xavier faleceu em 1552
MATOS, Manoel Cadafaz. A tipografia missionária portuguesa no sul da China nos séculos XVI e XVII. http://www.library.gov.mo/
macreturn/DATA/PP157/index.htm
14
15
Os jesuítas erigiram o Colégio de São Paulo, ou Madre Deus, em Cantão, elevado a universidade em 1594.
93
comércio portuário com a Índia e a Arábia e chegou a ser transferido aos portugueses, pelos
mandarins. O padre Valignano, enviado pela Cúria romana, como “Visitador de todas as
cristandades localizadas para além da costa leste africana”16 investiu em 1581 na propaganda
impressa do Catecismo de Ruggiere em Macau, um primeiro trabalho da tipografia cristã
portuguesa na China, segundo Cadafaz de Matos. Em 1588, também aportaram em Macau,
vindos de Lisboa, os jovens embaixadores nipônicos da visita à corte de Felipe II e trouxeram
o prelo que publicou no mesmo ano, a edição de Christiani pueri Institutio, de Juan Bonifácio,
e as futuras impressões missionárias nas cidades de Amacuça, Catisuça e Nagasaqui.
Missões e comissões prosseguiram no século 17, da dimensão ideológica de fé e
moral aos interesses de estreitamento político-comerciais Ocidente-Oriente. Um exemplo
impresso é a visita realizada em 1687 pelos embaixadores do Sião a Luís XIV. A cerimônia
está registrada na estampa da Biblioteca Nacional de França e no corte a buril de Nicolas de
Larmessin, dos retratos da delegação siamesa, encontrada no acervo do Museu D. João VI
da UFRJ.
Impressão, interdição e o poema de metal na América portuguesa
O exercício da imprimação na América portuguesa ultrapassa os Quinhentos e Seiscentos
e começa a aparecer nas primeiras décadas setecentistas pela Companhia de Jesus no Rio
de Janeiro,17 em Pernambuco,18 nas missões no Sul. Mas a questão da reprodução impressa
do pensamento foi uma questão política para Portugal e perdurou por um longo período na
colônia Brasil, interditada e sem nenhuma autonomia. O caso da tipografia particular em
Recife comprova. Pela edição de orações e registros de santos, foi fechada pela carta régia
de 8 de junho de 1706 que mandava sequestrar as letras impressas e “notificar os donos
delas e os oficiais da tipografia que não imprimissem nem consentissem que se imprimissem
livros ou papéis avulsos”.19 As escritas atuais da imprensa/impressão no Brasil tanto quanto
a historiografia anterior reafirmam os pioneiros impressos bibliográficos na Colônia, com a
publicação da Relação da entrada que fez o excelentíssimo e reverendíssimo senhor d.
fr. Antônio do Desterro Malheiro, bispo do Rio de Janeiro .... ano de 1747” do tipógrafo
português Antonio Isidoro da Fonseca. 20 A edição obtivera a licença do bispo, no entanto, d.
João V proíbe o ofício, determinando não ser “conveniente que se imprimam papéis no tempo
presente”.21 Em Lisboa, Isidoro da Fonseca recorreu e foi “escusado” em 25 de maio de 1750.
16
MATOS, Manoel Cadafaz. A tipografia missionária portuguesa no sul da China nos séculos XVI e XVII. Op. cit.
Leite, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil. Lisboa/Rio de Janeiro: Brotera/Livros de Portugal, 1953; LEITE, Serafim.
História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa/Rio de Janeiro/: Portugal/Civilização Brasileira/INL, 1938-1950.10 v.
17
18
Idem.
19
CARVALHO, Alfredo de. Anais da imprensa periódica pernambucana de 1821-1908. Recife: Jornal do Recife, 1908. p. 28.
20
Composto de 24 páginas.
“nem pode ser de utilidade aos impressores trabalharem no seu ofício, aonde as despesas são maiores que no Reino, do qual
podem ir impressos os livros e papéis no mesmo tempo em que dele devem ir as licenças da Inquisição e do Conselho Ultramarino
sem as quais se não podem imprimir nem correrem as obras.” RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografai no Brasil - 1500-1822.
Rio de Janeiro: Kosmos, 1945. p. 310.
21
94
Imigrante ou circulante? Fora e dentro das impressões da imagem da política brasileira - Rogéria de Ipanema
Bem, se a metrópole condenava à colônia, a sua própria circulação de ideias pelo ofício
tipográfico local, no início do século 19, em 1806 a calcografia ofereceria o Canto mineiro da
Vila Rica de Ouro Preto, como uma raridade literária, recolhida nos acervos brasileiros em
número de quatro exemplares.22 Trata-se de um poema laudatório de Diogo Pereira Ribeiro
de Vasconcelos ao governador da capitania de Minas Gerais, Pedro Maria Xavier de Ataíde
e Melo. As páginas pré-textuais e os versos foram abertos pelo corte do buril do padre José
Joaquim Viegas de Menezes, assim com o retrato-frontispício do casal Ataíde e Melo, dentro
do medalhão e os brasões d’armas abaixo, numa típica composição praticada em retratos
desde o século 15. O marianense Viegas de Menezes tinha se introduzido na gravação
de chapas de cobre em Lisboa quando trabalhou com outro brasileiro, o frei José Mariano
da Conceição Veloso, diretor da Tipografia Calcográfica, Tipoplástica e Literária do Arco do
Cego.
Palavra e a imagem a circular: o pensamento agora pode, já é?
As forças de guerra napoleônicas fizeram lançar nas águas do Atlântico uma frota de
navios portugueses e ingleses para salvaguardar a dinastia da Casa de Bragança, e em
mais um uso de exploração da principal colônia portuguesa, por 13 anos, a cidade do Rio
de Janeiro foi sede da corte do reino de Portugal. D. João e seus conselheiros promoveram
uma geopolítica de governança central sem precedentes históricos, reinventando o espaço
real de governo, ao transmigrar a corte para uma cidade colonial nas fronteiras do ultramar
do Novo Mundo. Com o conselheiro e ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra,
Antonio de Araújo e Azevedo, veio parte do equipamento da Impressão Régia destinados à
sua secretaria,23 e com o qual o príncipe regente pode institucionalizar o ofício tipográfico no
Brasil. Não como parte de um processo de desobstrução cultural, mas de atualização interna,
pois necessitava continuar imprimindo os papéis oficiais do Estado, mas disponibilizando-se
para si, o decreto de 13 de maio abriu politicamente a reprodutibilidade impressa no país. Em
10 de setembro do mesmo ano de 1808, numa interface publico/privado a Impressão Régia
passou a imprimir a Gazeta do Rio de Janeiro, inaugurando a imprensa brasileira, impressa
nestas terras, sob o regime de censura até 1821.24 Neste campo, logo nos primeiros anos,
parte dos tempos coloniais ficava para trás, ao menos na corte, e o projeto editorial da matriz
portuguesa continuou preocupado na literatura da ilustração inglesa traduzindo em 1810 o
Ensaio sobre a crítica de Alexandre Pope, acompanhada do retrato de perfil do autor, pelo
corte do gravador da ex-Tipografia do Arco do Cego, Romão Eloi de Almeida.25
22
Dois exemplares na Biblioteca Nacional, um no Arquivo Público Mineiro e um no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
A Impressão Régia era da competência dos oficiais da secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Mais em IPANEMA,
Rogéria de. Conde da Barca, um estadista no governo de d. João. In: __. D. João e a cidade do Rio de Janeiro 1808-2008. Rio de
Janeiro: IHGRJ, 2008.
23
24
A lei de liberdade de imprensa foi votada pelas Cortes Gerais em Lisboa, em 12 de julho de 1821.
Segundo gravura de Holloway. CABRAL, Alfredo do Vale. Anais da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro: 1808-1822. Rio de
Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.
25
95
A imagem estrangeira do país é contaminada pela imagem estrangeira no país
Imagens de visões filtradas pela edificação da civilita europeia, mas nem tanto,
reafirmadas em um verdadeiro regime do olhar dos circulantes - olhar de fora para dentro
-, e dos imigrantes - olhar de dentro pelos de fora - sob um modelo reproduzido nos longos
Oitocentos ocidentais. Um modelo de estratificação cultural política que vigeu dimensionado
ainda nos rastros e parâmetros da colonização institucionalizada do Novo Mundo,
avançadas nas novas ordens de progresso na “Era do capital”, juntos à brutal escravidão
negra. Funcionava tanto para as ciências naturais, cada vez mais disciplinadas, como às
outras ciências em construção, porque paisagens e lembranças não estavam propriamente
desprovidas de um enquadramento científico dos sujeitos que a produziam, muito menos
político. Cultura tematizada em álbuns histórico-sociais que partiam da única monarquia
americana e única nação de língua portuguesa do continente. As imagens trasladadas em
desenhos e aquarelas retornavam como obra editorial em pb ou coloridas, multiplicadas
pela pedra e o metal. Por tanto, se havia uma economia circular da imagem impressa, o que
era muito importante na importação e exportação de bens simbólicos e econômicos, tratavase de uma economia que para se reproduzir imagem, se reproduzia modelos que por sua
vez já era o espaço de reprodução de conceitos e práticas.
Produção visual dos estrangeiros e a relação com a coroa e o Estado brasileiro
Afastada da esfera oficial, exposto anteriormente, a realidade do parque gráfico da
corte foi empreendida por imigrantes estabelecidos, reinóis e de outras nações. No entanto,
a coroa, ao dispor de um instrumento de distinção entre os setores secundários e terciários
de produção, continuava a participar do contexto produtivo em geral, e em específico das
imagens e impressos, exercendo uma força de controle e disputa, ao qualificar os produtos
dos quais se servia, ou, ao subinstitucionalizar os estabelecimentos que o Estado autorizava
e o monarca concedia, a tomarem parte do projeto do Império. Nesta lógica distintiva
estavam os artistas e ofícios que anunciavam: Leopoldo Heck, Gravador da Casa Imperial;
o português Insley Pacheco era Fotógrafo da Casa Imperial,26 e José Tomás da Costa
Guimarães era miniaturista da Casa Imperial. Outros atendiam à família imperial, como
Mariano José de Almeida, como professor de desenho de suas altezas,27 enquanto Joaquim
da Rocha Fragoso era retratista do conde d’Eu e o italiano Nicolao Antonio Facchinetti era o
pintor de paisagem do duque de Saxe no Brasil. As instituições estatais também distinguiam
as relações artístico-comerciais, assim o fotógrafo alemão Henrique Revert Klumb se
identificava como Fotógrafo da Academia Imperial das Belas Artes, o belga João Batista
Lombaerts era seu encadernador, e o brasileiro Marc Ferrez foi o Fotógrafo da Marinha
Imperial.
26
Recebeu o seu título em 1855.
27
Além de ser professor adjunto da Escola de Marinha.
96
Imigrante ou circulante? Fora e dentro das impressões da imagem da política brasileira - Rogéria de Ipanema
Dez anos depois da marca holandesa Rensburg28 se anunciar como Litografia da Casa
Imperial, a sociedade germano-prussiana dos irmãos Fleiuss, Henrique e Carl, e o litógrafo e
pintor Linde, fará o requerimento para utilizar o nome de Imperial em seu Instituto Artístico, no
Largo de São Francisco, na freguesia do Santíssimo Sacramento. Seus argumentos baseiamse, tanto na produção de imagens autônomas ou de encomenda estatal, mas no complexo
parque gráfico com 12 divisões e 33 oficiais e aprendizes: alemães, portugueses e brasileiros.
Tornou-se, em 25 de setembro de 1863, o Imperial Instituto Artístico, por despacho favorável
da secretaria dos Negócios do Império à súplica da mercê a d. Pedro II. Administrativamente,
um estatuto era ser prestador de serviços ou fornecedor de insumos da Casa Imperial e
família; outro era obter a nominação de Imperial ao estabelecimento, a qual trazia uma
forte carga política, ao público comercial e industrial, e em espaços e aos setores onde o
Estado não atuava e/ou queria, promovendo-se na iniciativa privada, expandir um braço de
legitimação ao corpo do Império. Quanto ao setor da imagem e da arte, notadamente, para a
construção da imagem da política brasileira, um caro setor ao imperador.
Fora e dentro das impressões da imagem da política brasileira
De forma criadora, protagonista de objetos visuais, ou como prestadora de serviços
de impressão, as litografias da corte estabeleceram um desenho da imagem cultural ampla
brasileira, e muito da produção artística impressa do e no Brasil dos Oitocentos se revela
nesta dimensão. Para além dos álbuns de paisagens natural, urbana e social, a mobilidade
visual do Império foi intensificada no campo da imprensa artística de humor, e o seu modelo é
o convencionado no gênero litografado francês.29 Imagens que demarcaram um território de
apresentação e mediação crítica do pensamento sociopolítico no ou do país; apoio recorrente
dos historiadores para dar visualidade à história do Segundo Reinado. Observamos, no entanto,
que as imagens caricatas são internalizadas com nacionalidade brasileira, que emergem
sem relativizar o estrangeirismo da sua constituição, problemas necessários para análise.
A questão se complexifica quando evidentemente existe uma zona internacional de cultura
na construção das narrativas, e quando se tornam acessórios ilustrativos e não como textos
de interpretação. Necessariamente haveria um conforto conceitual na internacionalização
da estética satírica, de fora, capaz de ofertar conforto à avaliação conjuntural do país na
crônica visual, de dentro? Este conforto conceitual libertário não imparcializava a crítica, e
nem deveria, daqueles que passaram a viver em outra estrutura econômica, social, material.
Existe um transverso e transgressor humor político impresso por imigrantes na imprensa
artística carioca, mas como melhor abordar o olhar da construção da imagem da política
brasileira em circulantes visões de mundo?
A marca holandesa se inicia com Heaton & Rensburg. Nela trabalhou outro holandês, o desenhista Pieter Bertichem, e o francês
Alfredo Martinet, autor das imagens do álbum Brasil pitoresco, histórico e monumental.
28
IPANEMA, Rogéria de. Impressões e arte no século XIX - Relações da litografia e a caricatura no Rio de Janeiro: do modelo
do gênero jornalístico francês à imprensa política brasileira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, ano 17, n. 17, p. 52-70, 2010.
29
97
Referências Bibliográficas:
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Nacional, 1881.
CARVALHO, Alfredo de. Anais da imprensa periódica pernambucana de 1821-1908. Recife: Jornal do Recife, 1908.
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98
A pintura de paisagem como índice identitário da Nação, Brasil: 1930 – 1970: considerações preliminares - José Augusto Avancini
A pintura de paisagem como índice identitário da Nação, Brasil: 1930 - 1970:
considerações preliminares
José Augusto Avancini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Resumo: Essa comunicação mostra a importância de se fazer um mapeamento da produção
paisagística, tendo como eixo a identidade nacional. Tal constatação leva-nos a averiguar
as especificidades nessa produção pictórica através de amostragem de obras significativas
destacando-se a produção da época e do próprio artista. Toma-se como recorte temporal
o período de 1930-1970, para melhor apreender as permanências e as mudanças ao
longo do século XX até a contemporaneidade. O período escolhido é o da consolidação
do meio artístico nacional que assumiu um ritmo mais lento de desenvolvimento o que
fez com que a historiografia da arte revelasse um processo diferente em relação a outros
setores da cultura brasileira. Busca-se aprofundar o estudo em suas implicações sociais,
econômicas e artísticas, tendo como horizonte o grau de integração entre a produção
pictórica e a produção mais ampla de outras temáticas. Examina-se o debate internacional
sobre a pintura de paisagem e suas questões teóricas, formais e estéticas. Para tanto,
foca-se no debate sobre a identidade nacional e sua expressão pictórica, em correlação
com o conhecimento geográfico nesse período histórico. Analisa-se a produção pictórica
do Rio de Janeiro como primeiro centro de produção e divulgação, seguido de São Paulo
como pólo concorrente, ao longo do período examinado, e com incursões nas produções
regionais e os seus possíveis intercâmbios com o eixo Rio-São Paulo. Busca-se entender,
numa perspectiva comparatista, os processos de consolidação do Estado-Nação através
da pintura de paisagem como elemento para a criação de uma cultura nacional. Os diversos
processos de atualização político-culturais, trazidos pelos novos tempos e se examinados
comparativamente, permitirão entender o processo global nacional, apontando os diversos
graus de incorporação e resistência ao paradigma da Modernidade. Pode-se perceber
como as subjetividades em cena agiram, o que escolheram dentro do repertório geral,
o que recusaram e por que razões. A temática examina tais conceitos e sua pertinência
histórica, destacando a problemática do cosmopolitismo versus nacionalismo, que remete
a das identidades culturais e nacionais, questão que percorre todo o período e alcança
repercussões diferenciadas na cultura do país, até os inícios dos anos de 1980.
Palavras-chave: Pintura de paisagem; Modernidade; Cultura brasileira.
Abstract: This communication aims to demonstrate the importance of mapping out the
production of landscape art, with focus on the issue of national identity. Such statement
99
leads us to examine the specificities of pictorial production through a sampling of meaningful
works, emphasizing the production of the period and body of work of the artist analyzed. We
chose the period of 1930-1970 in order to better apprehend the continuities and changes
of the 20th century that still reflect today. This period corresponds to the consolidation
of the national art scene, which took on a slower rhythm of development, causing art
historiography to reveal different processes in relation to other sectors of Brazilian culture.
We thus seek to expand the investigation in its social, economic and artistic implications,
aiming to establish the levels of interaction between pictorial production and a broader
production including other themes. We also examine the international debate on landscape
painting and its theoretical, formal and aesthetic issues and focus on the debate on national
identity and its pictorial expression in correlation with the geographical knowledge of that
period in time. We begin analyzing pictorial production in Rio de Janeiro, the first center of
production and dissemination, followed by São Paulo as a competing center throughout the
period examined, with incursions to regional productions and their possible interchanges
with the Rio-São Paulo area. We seek to understand, using this comparative perspective,
the processes of consolidation of the Nation-State, with landscape painting as an element
for the creation of a national culture. The many processes of cultural-political actualization
brought on by the new times, if examined comparatively, may allow us to understand the
global national process, pointing toward the several degrees of incorporation and resistance
of the paradigms of Modernity. We can observethe way the subjectivities in play have
behaved, what was chosen among the general repertoire, what was refused and for what
reason. The field examines such concepts and their historical pertinence, emphasizing the
problematic of cosmopolitanism versus nationalism, which refers to cultural and national
identities, and is animportant issue throughout the entire period and reaches differentiated
repercussions in the country’s culture until the beginnings of the 1980s. Keywords:
Landscape painting; Modernity; Brazilian culture. Essa comunicação visa trazer à público
pesquisa que iniciamos esse ano sobre a pintura de paisagem no Brasil entre os anos de
1930 e 1970. Estamos nos primeiros estágios do trabalho, levantando bibliografia, imagens
e fortuna crítica sobre esse período, mas já temos conclusões parciais e provisórias que
nos orientam sobre com devemos conduzir essa pesquisa nesse estágio de trabalho.
As considerações abaixo visam apresentar algumas questões que nos ocupam nesse
momento.
Podemos observar a ligação entre a pintura de paisagem, o ensino acadêmico e o
figurativismo. É como se cada uma dessas instâncias necessitasse e completasse a outra e
a pintura de paisagem necessitava, num primeiro momento, desse apoio institucional que a
promoveu e a divulgou. Contudo na medida em que avançava nestas plagas meridionais do
planeta, os achados e aquisições dos diversos movimentos artísticos do Ocidente desde o
100
A pintura de paisagem como índice identitário da Nação, Brasil: 1930 – 1970: considerações preliminares - José Augusto Avancini
Romantismo, o Realismo, o Impressionismo e o Pós-Impressionismo, os artistas sentiram-se
mais libertos das peias da escola e puderam improvisar mais livremente a sós ou em pequenos
grupos. São as gerações da Belle Époque e do Modernismo no seu primeiro decênio, digerindo
as novidades das vanguardas européias e aclimatando-as ao ambiente artístico, continuando as
buscas de uma expressão própria da paisagem local.
No caminho do amadurecimento, a pintura de paisagem foi evoluindo do simples registro,
do apoio ao conhecimento visual das regiões do país, para uma arte cada vez mais impregnada
de expressão e de uma dramaticidade que procurava captar o que tínhamos de próprio e
particular.
Até as Bienais, nossos paisagistas não passarão de uma fatura moderada. Houve uma
atualização da linguagem plástica, mas com a conservação do ideário básico do paisagismo
nacional, tudo muito de acordo com o que sucedia na Europa, nos movimentos de pinturas de
paisagem nacionais por todo o velho continente. Dentro do gênero pintura de paisagem, houve
derivações, como a da paisagem rural, no início a mais executada, a nova paisagem urbana, do
centro e da periferia das novas cidades, e finalmente a conjunção paisagem e figura de tanta
importância na tradição ocidental.
Além das questões essenciais já apontadas no início do texto, há uma específica da
pintura: a do domínio técnico que foi o grande cavalo de batalha de nossa formação inicial e que
se prolonga até o fim do período a ser examinado, tanto na orientação acadêmica quanto na
moderna, lembrando que os modernistas argumentavam que suas inovações estéticas não eram
a derrogação do saber técnico da tradição. Bem pelo contrário, exigiam um redobrado cuidado e
atenção pelo fazer, uma vez que esta prática transparecia com mais força na tradição clássicoacadêmica, mas continuava a fazer parte da nova maneira expressiva. Concomitantemente
à questão central do saber técnico estava envolvida a inserção no circuito internacional,
principalmente após o decênio de 1870 e renovado pela geração modernista nos anos de 1920
e com o período que se abriu após a realização das Bienais, com a apresentação de trabalhos
de pintores brasileiros e estágio de estudos na Europa, em salões e exposições centradas
em Paris e Roma e após pela Europa Ocidental em suas principais capitais. A intensidade
dessa participação aumentará ao longo dos anos decorridos entre 1870 e 1930, assim como
continuará de forma irregular entre 1930 e 1950, aumentando muito após a criação das Bienais
de São Paulo em 1951. A participação dos pintores em diversos salões e mostras européias os
habilitava junto ao público culto do Brasil de então, garantia a credibilidade necessária quando
do retorno ao país. Essas atividades expositivas eram complementares aos Salões Gerais de
Belas Artes, organizados com periodicidade pela Academia Imperial de Belas Artes, e depois na
república pela Escola Nacional de Belas Artes e após pelo Museu Nacional de Belas Artes e por
fim pelo Ministério da Cultura até os anos 1970.
Na pintura histórica do século XIX, vamos encontrar a paisagem idealizada ou fielmente
retratada em obras como as de Victor Meirelles ou Pedro Américo (1843-1905), para ficar com
os dois mais famosos do II Reinado. Sempre a imponência da paisagem correspondia a um
101
tom grandiloqüente e ufanista, como cenário para os grandes atos e cometimentos dos homens
e ligados a eventos fundantes da identidade nacional em formação. Esse tom será mantido
e adaptado às novas tendências pela obra de Antonio Parreiras (1860-1937) e após com um
sentido mais crítico com a obra de Portinari (1903-62). Podemos percorrer boa parte da produção
pictórica do período e constatar as constantes formais e de motivos utilizados pelos pintores, no
intuito de consagrarem a representação do espaço da nação em construção. Essa tendência não
se extinguirá após 1930, mas sim se deslocará para a paisagem urbana dos bairros e periferias
mais humildes e das paisagens interioranas típicas de cada região do país. Ressaltamos que
mesmo alguns pintores que se aventuraram na abstração lírica, como Wega Nery (1912-2007)
e Antônio Bandeira (1922-67), mantiveram clara referencia formal à paisagens campestres ou
urbanas e marinhas imaginadas. Esses dois pintores constituiriam no nosso entender os limites
possíveis no período nas relações entre figuração e abstração na pintura de paisagem.
Queremos analisar em pormenor essa produção pictórica e medir, se possível a
profundidade e a extensão da relação entre espaço geográfico e dados etnográficos com a
representação construída do espaço. Como se fosse possível avaliar o quanto das paisagens
representadas estava baseada na realidade do momento em que foram compostas. Ficamos
ancorados entre a pintura documento e a pintura arte, tentando perceber como esses dois pólos
se articulam nas obras em exame. Podemos dizer, grosso modo, que a pintura oscilou entre o
grupo Santa Helena e um Portinari num pólo e no outro entre um Guignard e um Pancetti e os
dois artistas abstratos mencionados e em ambos os grupos encontramos índices indicadores
do espaço representado.
A produção pictórica do período em exame apresenta traços que são comuns a vários
pintores e obras, qual seja a repetição de certos motivos da paisagem como as montanhas, a
floresta, o mar, a costa e os céus, as planícies e as novas cidades e seus arredores em diferentes
composições e arranjos. A figura humana é complementar, quando não ausente. Ela parece
estar nesse espaço para deixar claro o contraste com o meio ambiente e provar a relação entre
o homem e o novo espaço trabalhado tanto no cenário urbano como no meio rural.
A contraposição e a ambivalência das imagens são características dessa pintura.
Contraposição entre natureza e trabalho presente pelas atividades agrícolas e urbanas
representadas e pela posição das figuras humanas na pintura. Natureza já conhecida dos
arredores das novas cidades ou do meio urbano em crescimento que muitas vezes evocam a
paisagem edênica já descrita por cronistas, escritores e memorialistas desde o descobrimento
até o século XX ou o novo espaço urbano perturbador e desconcertante. Misto de admiração
e temor por uma natureza exuberante e grandiosa no tamanho e na variedade de flora e fauna
e dos espaços urbanos que vieram transformar as formas de viver consagradas. Os limites da
representação figurativa da paisagem são rompidos pelas tendências abstratas que buscaram
uma inspiração na paisagem urbana com Bandeira ou em espaços marinhos e céus infinitos
com a obra de Wega. Ação e admiração são as atitudes presentes nos olhares de artistas e
apreciadores. Ação pela ocupação afetiva do território pelo olhar, e admiração e contemplação
102
A pintura de paisagem como índice identitário da Nação, Brasil: 1930 – 1970: considerações preliminares - José Augusto Avancini
de uma imagem reveladora de uma identidade nova e de alguma maneira perturbadora. Essa
imagem nova é condensada em algumas paisagens que se tornariam representativas da
terra, como os novos cenários urbanos e de arrabaldes das grandes cidades, das zonas rurais
próximas com suas chácaras e sítios, locais de lazer e descanso e as paisagens imaginadas
de Pancetti, Guignard, Wega e Bandeira nos transportando por um espaço de sonho e poesia.
Estas duas orientações estão presentes em todo período que pretendemos examinar, passagem
da figuração de raiz clássica e a nova pintura abstrata dita lírica ou informal que encerram o
grande ciclo da pintura ocidental iniciado no século XV e concluído com o esgotamento das
questões plásticas postas em discussão desde o impressionismo até a abstração. A Pop Arte
e os movimentos que a sucederam instauram uma outra arte com outro universo de debates e
práticas que seriam intituladas de arte contemporânea, concluindo o grande ciclo aberto pelo
Renascimento.
As categorias estéticas do acabado e do inacabado também auxiliarão no exame das
obras, e servirão para uma análise pormenorizada da produção local, comparando os resultados
da pintura feita aqui com as realizadas fora do país. Outra questão a ser examinada é como se
deu a representação do espaço e o conceito de lugar, lugares consagrados e apropriados visual
e simbolicamente. Essas paisagens exemplares se constituíram em lugares de memória da nova
coletividade que incorporou as obras e os olhares dos pintores sobre o país. Olhar ambivalente
entre a contemplação e a compreensão intuitiva do espaço nacional e a apropriação reveladora
de um olhar catalogador e classificador que buscava o conhecimento das diversas paisagens
do país. A ambivalência já mencionada entre paisagem documento e paisagem arte, será útil na
visualização da produção pictórica do período, aferindo o grau de aderência a um pólo a outro,
ou mesmo embaralhando essas categorias de classificação. Isto nos apontará, entre outras
questões, para o papel da geografia e disciplinas afins na visão paisagística dos pintores e o
quanto e como contribuíram para a construção de imagens identitárias da nação.
Diante da vastidão do material pretendemos constituir um corpus de obras e pintores que
sejam representativos dentro do período, utilizando do recurso de amostragens. Como é ainda
impossível abarcar todos os artistas e sua produção, a seleção e o uso de exemplaridades nos
darão conta das características, especificidades e acomodações a padrões pré-existentes num
conjunto significativo de obras para exame.
Acreditamos que uma das relevâncias da pesquisa é a de se inserir no conjunto maior de
pesquisas realizadas nos últimos anos sobre o século XX, esclarecendo a vida artística de um
período ainda a ser muito estudado por nossos pesquisadores. O estudo do gênero paisagem se
justifica, entre outras razões, pela quantidade e qualidade da produção pictórica feita no Brasil
por nacionais e estrangeiros, e se mostra útil para avaliarmos o peso simbólico dessa produção
no imaginário da nação, uma vez que boa parte da visão que os brasileiros tem de si é calcada
na geografia. O sentimento de pertença passa pela identificação com o lugar de cada um e com
uma concepção de espaço nacional coletivo. A pintura de paisagem cumpre ao mesmo tempo
o papel de formadora de uma visualidade específica e de confirmadora dos projetos e visões
103
atribuídas à nação. Por todas as razões arroladas, cremos na relevância dessa pesquisa que
contribuirá para a expansão dos estudos já realizados na área de história da arte e também no
campo dos estudos sobre a identidade nacional e regional.
Para esse período que abrange a pesquisa, adotamos uma periodização mais restrita
que as usadas por outros historiadores. Dividimos o período em dois momentos para captar
as mudanças e permanências da produção pictórica sobre o tema da paisagem; um primeiro
momento entre 1930 e 1951, quando já temos consolidadas as atividades artísticas e a
produção regular de obras e a circulação dos artistas entre o Brasil e a Europa, constituindo
um fluxo contínuo de troca de experiências e idéias que alimentavam nossos pintores; um
segundo momento entre 1951 e 1969/70, abrangendo a consolidação do modernismo e os
inícios da internacionalização da arte brasileira com a criação das Bienais de São Paulo. Essa
periodização é sujeita a reformulações e serve como apoio para uma melhor sistematização dos
conteúdos e para visualizarmos os aspectos mais característicos de cada momento, facilitando
a compreensão do tema.
Os estreitos vínculos do Rio de Janeiro e de São Paulo, por razões políticas e culturais
com a Europa no período de 1930-1970, justificam este estudo monográfico sobre uma parcela
das atividades pictóricas locais comparativamente à européia, vendo suas inter-relações,
repercussões, ausências e tentativas de autonomia, num período de consolidação do sistema
artístico nacional.
Como a tradição foi transmitida, como a inovação foi incorporada, como se deu a fixação
da imagem paisagística do país; qual o grau de autonomia e ou de adesão ao padrão vigente
internacional; quais os vínculos desta produção local com a própria sociedade regional. Estas
e outras questões orientarão a pesquisa, tendo como eixos temáticos a questão da construção
da identidade nacional na pintura e a da relação centro-periferia nessa grande ação coletiva e,
por fim, pretendemos analisar como se deu a compreensão da prática pictórica e o discurso da
competência técnica na pintura. Tais questões
O tema será abordado em dois momentos: no primeiro faremos a análise e a reconstituição
da história artística envolvida na pesquisa, buscando estabelecer relações de afinidade e
diferenças entre os autores, e desses com as fontes internacionais onde se abeberaram; no
segundo momento, faremos a análise destas relações teórico-ideológicas com as respectivas
produções plásticas que formam a história da pintura no Brasil.
Essas análises estarão norteadas pelos conceitos de prática pictórica, territorialidade,
identidade cultural e subjetividade, que presidem nossas pesquisas e orientam nossos estudos,
uma vez que trabalharemos com a produção de vários pintores, abordando subjetividades
específicas e territórios diferenciados dentro do mesmo país. A dialética do cosmopolitismo
versus regionalismo, centro versus periferia, portanto, balizará nossa investigação no exame de
como se estabeleceram os repertórios teóricos e formais dos centros em exame, e quais foram
as estratégias de atuação dos atores em cena.
104
Espaços expositivos: da casa à cidade
Utopias do lugar: arte pública, espaço público, intervenção artística urbana - Bianca Knaak
Utopias do lugar: arte pública, espaço público, intervenção artística
urbana
Bianca Knaak
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Resumo: Um passeio crítico pelas obras públicas de Porto Alegre introduzidas a partir
das cinco edições do projeto Espaço Urbano, Espaço Arte, das nove edições da Bienal
do Mercosul e de outros editais de fomento à intervenção artística urbana explora, as
nuanças e mudanças nos conceitos de arte pública, espaço público e arte contemporânea
que ao longo dos anos se difundiram através dos meios de comunicação locais e até
embasaram projetos de lei. Por fim, por analogias e paradoxos, observamos respostas
a essa institucionalização na produção recente de jovens artistas, críticos e curadores
que atuam nos circuitos artísticos locais a partir diferentes plataformas e dispositivos de
rede.
Palavras-chave: Arte pública; Intervenção urbana; Espaço Urbano Espaço Arte; Bienal
do Mercosul; Políticas de fomento.
Abstract: A critical tour of the public works of Porto Alegre introduced from the five
editions of Urban Space Project, Space Craft, the nine editions of the Mercosul Biennial
and other funding announcements urban artistic intervention explores the nuances
and changes in art concepts public, public space and contemporary art over the years
have spread through local media and even embasaram bills. Finally, by analogies and
paradoxes, we observe responses to this institutionalization in the recent production of
young artists, critics and curators working in local art circuits from different platforms and
network devices.
Keywords: Public art; Urban intervention; Space urban space art; Mercosul Biennial;
development policies.
Na cidade contemporânea o que é um espaço público? O que é uma obra de arte
pública? Quando uma intervenção artística em espaço urbano pode configurar-se como obra
pública? Como é possível, considerando as variações sociais, políticas, regionais e históricas
que a obra de arte em espaço público possa sincronizar sua aparição com a identificação do
status de arte contemporânea? É comum para mim, ouvir em sala de aula o comentário de
artistas ressentindo-se pela pouca interação do publico com suas obras performáticas em
107
espaço urbano. E comum também é a lamentação pública através dos meios de comunicação
de massa, sobretudo jornais e televisão, pelos atos de vandalismo e descaso das pessoas
com obras e monumentos instalados em espaços públicos urbanos, ou mesmo pelo abandono
publico dessas obras, ressaltado pela falta de conservação e manutenção pelas autoridades
competentes. Mas é também instigante que, simultaneamente a essas constatações, o
jornal nos apresente um dado que muitos artistas e críticos há muito tempo já observavam:
o fato de que muito antes de aventar a ideia de patrimônio e bem comum, o publico sequer
reconhece certos monumentos e obras de intervenção urbana como obras de arte. Lidar com
essa afirmação não é tarefa simples nem exclusiva ao campo artístico. A multilateralidade
dos efeitos e sintomas, constatados a partir dessa premissa implica, por isso mesmo, em
investimentos também multilaterais e transdisciplinares.
Considerado o liberalismo que demarca as atividades civis, por assim dizer, no território
publico do espaço urbano teremos, nesse caso, a produção do artista num extremo e o poder
publico noutro. Ou seja, a ideia de arte e a motivação e poder de performá-la do artista e a
demanda artística e a responsabilidade de subsidiá-la e protegê-la confiada aos poder público
e suas instituições modeladoras (leis, polícia, escolas, museus, fundações). E, ademais, tanto
empírica quanto esteticamente, a questão da comunicação e recepção artística torna-se ainda
um pouco mais complexa se nos detivermos na afirmação de Valéry sobre a incontornável
irredutibilidade da arte para sua definição. É assim que, tatear no terreno das disposições
sociais sobre arte e sociedade, arte e grande público e arte e função, me parece sempre uma
disposição política para por em movimento uma demanda sensível por experiências coletivas e
coletivizáveis que, em algum momento e ainda que de forma transitória e efêmera, congregue
indivíduos intelectual, afetiva, cognitiva e simbolicamente na coprodução de sentidos e valores
vívidos.
No entanto, ao dispor sobre tais definições e expectativas para a arte pública, ou para
a intervenção artística em espaços públicos urbanos, mais recentemente institucionalizada,
muitas vezes nos sentimos encerrados num círculo de convicções e conveniências e a
legitimação de artistas e obras inclui a percepção e aprovação pelo olhar do outro, alvo,
cúmplice e coautor dessa experiência poética no espaço comum da cidades. Por outro ângulo,
essa mesma dissociação e a indiferença que protegem psicologicamente os indivíduos que
habitam metrópoles, acentuadas e agudizadas com o esvaziamento da esfera publica,
desembocam na segmentação de interesses sociais. Donde se crê que, quando da fruição e
recepção artística, a subjetivação midiática dos indivíduos também exacerba o individualismo
surdo que outorga poderes de julgamento e providência a qualquer pessoa e de acordo com
suas próprias considerações rizomáticas.
Essa comunicação deriva de minha pesquisa acadêmica, ainda em curso e compartilhada
com meus alunos em grupos de pesquisa e em disciplinas semestrais. Aqui, partiremos de um
passeio crítico pelas obras publicas de Porto Alegre introduzidas a partir das cinco edições
do projeto Espaço Urbano, Espaço Arte, das nove edições da Bienal do Mercosul e de outros
108
Utopias do lugar: arte pública, espaço público, intervenção artística urbana - Bianca Knaak
editais de fomento à intervenção artística urbana. Esse roteiro para o olhar reflexivo nos
permitirá explora, a partir das obras em questão, as nuanças e mudanças nos conceitos de
arte pública, espaço público e arte contemporânea que ao longo dos anos se difundiram
através dos meios de comunicação locais e até embasaram projetos de lei municipal (Figura 1).
Figura 1 - Contracapa do jornal Zero Hora em 24 de outubro de 2007 diz “Arte Agredida: Quase todas as obras doadas pela cidade
pela Bienal do Mercosul desde 1997 estão depredadas ou foram furtadas.”
Arte instalada em espaço urbano
Se a arte instalada em espaço urbano se torna predicado de cidadania,
cúmplice e transformadora de realidades sócio-culturais citadinas, no campo da arte
contemporânea, tratá-la como questão, passa a incluir definições hipercomplexas e,
esteticamente, impossível que sejam universais. Não para as obras de arte no espaço urbano
de um mundo que se comunica, instantânea e eletronicamente, e se expressa em redes
sociais. Mesmo assim, tanto quanto aceitarmos a irredutibilidade que caracteriza um feito
humano como sendo arte tornou-se incontornável a conceituação de arte pública enquanto
proposição não submissa a sua funcionalidade demarcatória, religiosa, moral e cívica de seus
primórdios. E, ainda que em permanente revisão e disputa, desde os anos 1960 as definições
em curso convergem para a valorização estética, política e relacional daquilo que a presença
109
de obras de arte contemporânea na malha urbana pode trazer à esfera pública, no sentido de
identificação, subjetividade e construção social de sentidos.
Em porto Alegre observamos que desde os anos 1990, com a criação de um
programa municipal de fomento, essas são questões basilares, em busca de respostas e
encaminhamentos para a promoção da cidade como lugar de experiência estética comum e,
portanto, para discussões e revisões interdisciplinares permanentes. O primeiro passo foi dado
com o projeto Espaço Urbano, Espaço Arte (1991) que estabeleceu, em edital, parâmetros
para premiar intervenções artísticas, escultóricas, de caráter permanente, nas ruas da capital.
O objetivo do projeto, que teve a consultoria de Radha Abramo, era “ampliar, para todo cidadão
de Porto Alegre, o acesso à cultura” e o edital Espaço Urbano/ Espaço Arte, segundo seu
primeiro edital, publicado em dezembro de 1991, significaria integrar as artes plásticas “às
comemorações dos 220 anos da Cidade de Porto Alegre (1992), através de concurso para
seleção e aquisição de cinco (05) obras, nas formas bidimensionais e/ou tridimensionais”.
Participavam dos parâmetros de seleção a adequação da localização prevista para as obras,
a durabilidade de seus materiais e integração destas obras com a paisagem urbana.
No total, ao longo de 18 anos foram sete edições do projeto que introduziram em Porto
Alegre 13 obras públicas de perfil contemporâneo. Junto às quais, já na sua primeira edição,
a Bienal de Artes Visuais do Mercosul aliou seus objetivos e promoveu, em 1997, a criação
do Jardim das Esculturas no Parque Marinha do Brasil, com dez obras de artistas latinoamericanos convidados.
Mas não apenas patrimônio artístico foi somado à cultura local. Todo um legado de
reflexão e construção política e ideológica foi alavancado a partir da presença desses objetos
nas vias públicas da capital. Com essa iniciativa municipal e com as discussões que se
seguiram, abriu-se a possibilidade de, já no inicio dos anos 2000, conceber intervenções
artísticas no espaço urbano como demanda institucional oficial. Incluindo, nessa perspectiva,
tanto obras escultóricas permanentes quanto instalações ou intervenções temporárias, quase
sempre propostas voluntariamente pelos artistas (tais como happenings, performances, land
art, graffitti, etc). Podemos considerar que desde esse projeto inaugural para instalação de
arte na rua, a prefeitura de Porto Alegre vem financiando iniciativas tais, a partir de seu fundo
para cultura, o FunProArte, mas, num espectro alargado de definições e fomentos, também
as leis de incentivo federal e estadual tem aportado recursos para eventos de ocupação e
exploração da cidade como suporte para a experiência artística (Figura 2).
Aliás a cidade tem sido para muitos enfoques teóricos um laboratório (LADDAGA), o
espaço de encenação do poder e seus marcos de afirmação publica atravessam modulações
na dinâmica das cidades ao longo dos tempos com arquiteturas e monumentos, mobiliários
urbanos, esculturas, performances, happenings, em desdobramentos político-institucionais
que nos permitem incluir as residências artísticas, as intervenções efêmeras e as deambulações
recentes.
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Utopias do lugar: arte pública, espaço público, intervenção artística urbana - Bianca Knaak
Figura 2 - Escultura em ferro pintado de amarelo, 1992. Ana Natividade. Edital Espaço Urbano Espaço Arte. Foto: José Francisco
Alves.
Legados
Variações dessa e de outras iniciativas para a consolidação de políticas públicas de
fomento à chamada arte pública em espaço urbano, podem ser apreciadas, quando revisitamos
seu legado material e reflexivo. Desde 2003 tramita na prefeitura, por exemplo, a demanda por
uma legislação específica para o patrimônio artístico alocado em espaços públicos da cidade
e, junto com essa, a criação de uma “Comissão Técnica Permanente de Gerenciamento e
Avaliação das Obras de Arte, Monumentos e Marcos Comemorativos em espaços públicos”.
A Comissão Técnica Permanente foi finalmente criada em 2015 (Decreto 19033, de 13
de maio de 2015) e seus membros solenemente empossados em 08 de julho. Já a legislação
específica, apresentada pelo vereador Bernardino Vendruscolo sob o projeto de lei 237/09,
iniciou em 2009 um verdadeiro happenig da opinião pública e contou para tanto com a ampla
cobertura da imprensa local. Sobretudo porque a possibilidade de legislação especifica para
a recepção publica de obras de arte em espaços urbano ou não, é, há muito, uma querela
na capital. O vereador Vendruscolo é critico persistente da obra Supercuia, de autoria de
Saint_Clair Cemin, que foi o artista homenageado da 4ª Bienal do Mercosul e teve sua obra
doada a municipalidade ao término da mostra. E a emblemática Supercuia, que foi qualificada
por Nelson Aguilar, curador da 4ªBienal, como uma obra que revela “o modo cósmico de ser
gaúcho” foi, talvez por isso mesmo, a figura inicial de uma sequência de avaliações e opiniões
empíricas que, publicamente desembocaram nesse projeto de lei.
A ideia principal desse projeto de lei em tramitação era que fossem mais transparentes
os critérios para a escolha das obras que ocupam lugares e logradouros públicos e que
pudessem ser removidas pelas autoridades aquelas que não se enquadram nos parâmetros
legais a dispor, e aquelas que nada dizem a respeito da cultura e da identidade local.
111
Note-se a temeridade da intenção de Vendruscolo frente às interpretações burocráticas e
burocratizadas daqueles que executariam a lei que, no caso inicialmente proposto seriam os
próprios vereadores.
Como toda querela sempre extrapola os chamados campos especializados, e no campo
artístico vem apoiada por repercussão midiática previsível. O próprio vereador Vendruscolo
aponta a esse poder da mídia, por assim dizer. Segundo ele, a ideia do projeto de lei lhe veio
a partir do artigo intitulado “A Capital das Monstruosidades” (25/10/2009), onde o historiador
gaúcho Voltaire Schilling criticava a conservação da cidade, sua visualidade e questionava o
valor estético de algumas obras de arte na cidade, especialmente as advindas das edições da
Bienal do Mercosul e a obra de Gustavo Nakle, vencedora do IV edital Espaço Urbano/Espaço
Arte. Impulsionando ampla discussão nos meios especializados o artigo ficou conhecido por
protagonizar a Celeuma do Ano especificamente no tocante a legislação e legitimidade para
ocupação artística das ruas da cidade (Figura 3).
Figura 3 - Gráfico 1 - Matérias sobre arte pública e ou no espaço urbano encontradas no Jornal Zero Hora no período compreendido
entre os anos 1990 e 2011. A maaioria versa sobre as Bienais do MERCOSUL, iniciadas em 1997 e mais ainda sobre os problemas
de manutenção e depredação de obras e monumentos públicos a céu aberto.
112
Utopias do lugar: arte pública, espaço público, intervenção artística urbana - Bianca Knaak
Por fim, considerar como esses fatos encadeados no tempo e espaço repercutem na
produção recente de jovens artistas, críticos e curadores, por analogias e paradoxos, que
atuam nos circuitos artísticos locais a partir diferentes plataformas e dispositivos de rede é
também estabelecer estratégias para as artes e a crítica no presente.
Sobretudo quando se percebe que, ao ativar estética, social, política e economicamente
certos territórios de resistência social, degradação patrimonial ou lugares improváveis para
novas investiduras simbólicas, espaços em devir, as práticas artísticas subvencionadas
ou não, continuam reproduzindo em suas estratégias a ideia de arte como instituição
homologadora de valor.
Um contexto, portanto, onde o reflexo prevalece sobre a reflexão, o signo prevalece
sobre o símbolo e a virtualidade prevalece sobre a representação. Há uma dissolução das
referências locais e temporais que cria uma situação de autorreferencialidade, configurada
num sistema fechado e autorregulado com uma lógica autocentrada. O exemplo mais
expressivo disso é o papel crucial que adquiriram a publicidade e as técnicas publicitárias
como modelo para o próprio fazer e a criação artística (SEVCENKO, 2002, p. 43).
Apresento a seguir dois projetos individuais em que é possível experimentar distintos
modos de representação sócio-simbólica da e na cidade, presencial e virtualmente. São
exercícios de representação, compartilhados através de plataformas multimídias. Um evoca a
obsolescência dos modos de vida social burguês e, o outro, a invisibilidade do trabalho, usando
a cidade e seus prédios; a cidade e seus refluxos imaginários. Trata-se dos Convescotes de
Fernanda Gassen e do programa de Intervenções na cidade chamado #Reabito.
Num projeto de itinerâncias fluídas, Fernanda Gassen (1982) organiza piqueniques nos
parques da cidade. Ela os chama de Convescotes.1 Seu objetivo principal é reunir comensais
num momento de lazer coletivo ao ar livre para obter uma foto. Aqui também os meios
eletrônicos e as redes sociais participam na divulgação das datas e locais do evento, bem
como para a posterior divulgação das fotos obtidas. Melhor dizendo, foto-evento, termo com
o qual ela define toda extensão de seu trabalho, concebido, da pré-produção a produção e
direção da cena até a realização analógica das fotografias durante os eventos.
A encenação dos presentes para as fotos-eventos é dirigida pela artista e remete
a perspectiva pictórica das paisagens dos séculos XVIII e XIX. Destas pinturas, imagens
referenciais, não apenas a cena a ser fotografada segue o modelo compositivo, mas
também a comida servida no evento tem ali sua inspiração. E não se trata de um evento
performático de citação imagética erudita. O esforço da artista é para constituir um sentido
comum compartilhado para além da representação fotográfica. Seu empenho é para “conferir
a mesma relevância ao fato ocorrido no espaço público compartilhado e ao seu registro ou
imagem resultante” (GASSEN, 2013).
1
Série fotográfica, constituída por dez piqueniques realizados em distintas praças e parques de cidades como Porto Alegre,
Puntadel Leste, Buenos Aires e Barcelona.
113
Com este seu trabalho, Fernanda Gassen também participa de um processo coletivo
de dar-se conta dos entornos urbanísticos, verdes, abertos, vazios, e da obsolescência atual
destes em suas potencialidades primordiais.
Nesse sentido, todo o processo que envolve o piquenique é compreendido pela artista
como ativador de “certa experiência de deslocamento no contexto urbano. Uma experiência
de espaço-tempo possível de ser provocada por estes lugares delimitados na esfera da
cidade” (GASSEN, 2013). Sobretudo porque, e cada vez mais, assim como nas cidades
de projeto moderno, “as estradas, e as vias expressas, as pontes e as ruas, as praças e os
lugares abertos transformam nossos usos, liberam ou entravam a caminhada, provocam
alguns de nossos gestos que se tornaram habituais e condenam outros” (CAUQUELIN, 2007,
p.78) (Figura 4).
Figura 4 - Convescote de Aniversário. Fernanda Gassen. Foto-encenação. Porto Alegre, 2011.
114
Utopias do lugar: arte pública, espaço público, intervenção artística urbana - Bianca Knaak
Em 2012, premiada com uma Bolsa Residência Artística oferecida pela Fundação Iberê
Camargo, Fernanda desdobrou a série de foto-eventos Convescotes no projeto CidadeJardim: direção de passeios e parques para refeições ao ar livre,2 para o qual, em Buenos
Aires, ao longo de três meses, a artista pôde pesquisar os espaços verdes da capital argentina,
desenhados ou remodelados por Carlos Thays (responsável pela remodelação de Buenos
Aires na virada do século XX.) e considerados, por ela, lugares próprios para a realização de
piqueniques.3
Projeto #Reabito
A revista eletrônica Arte ConTexto criada e dirigida por Paola Fabres e Talitha Motter
comemorou seu primeiro ano de atividades ininterruptas em 2014, com um projeto multimeios
e itinerante que redimensionou o trabalho de reflexão e crítica de arte da revista, ,ampliando o
seu espaço de ação da reflexão escrita e distribuição virtual, para a criação para a proposição,
gestão e curadoria de vivências artísticas em diferentes espaços da cidade. Surgiu o projeto
curatorial #Reabito e a revista se transformou, com o trabalho pioneiro dessas duas críticas
de arte, uma plataforma multimídia efetivamente.
No projeto #Reabito(Porto Alegre, outubro/novembro de 2014), idealizado por Marcius
Andrade, Paola Fabres, Rodrigo Pires e Talitha Motter, uma série de intervenções na cidade
se propuseram a questionar, desvelar e desafiar os modos de habitar o espaço urbano
da capital gaúcha. Ao longo de um mês aproximadamente as ações foram realizadas em
diferentes lugares da cidade e, sempre, anonimamente. Ou seja: sem aviso prévio ou
informações publicas silmultâneas sobre a chancela de tais práticas-acontecimentos, sequer
sobre tratar-se de proposições artísticas. Eram proposições in situ de dez artistas convidados
para integrar e dar corpo ao projeto: Alexandre de Nadal, Bruno Gularte Barreto, Douglas
Jung, Eduardo Montelli, Klaus Volkmann, Marcius Andrade, Priscila Costa Oliveira, Raisa
Torterola, Rogerio Nunes Marques e Wesley Stutz. A partir das poéticas individuais dos
artistas alguns desdobramentos e colaborações outras fizeram o projeto crescer em número
de artistas e performers, incluindo o Grupo Experimental de Dança e o Coletivo Moebius,
por exemplo, e Porto Alegre se viu “reabitada” pelos olhares mobilizados por inesperadas
ações e interrupções do fluxo rotineiro dos espaços abertos da cidade. Novas coreografias
foram trazidas ao teatro das ruas e múltiplos olhares tornaram esse encontro num segundo
de infinitas possibilidades para o restabelecimento do sentido publico desses espaços de
socialização. Algo sempre em devir nas relações sociais que conseguem ultrapassar o
“Cortejo de Espelhos” das sociedades midiáticas (Figura 5).
Bolsa Iberê Camargo, edição 2011. Fundação Iberê Camargo. A residência artística foi realizada junto ao Programa de Artistas
da Universidad Torquato diTella, Buenos Aires, AR em 2012.
2
3
O título, cidade-jardim, remonta ao plano utópico de cidade, que harmoniza natureza e urbe, traçado por Ebenezer Howard (18501928) no final do século XIX. Howard, pré-urbanista inglês autor do livro Garden Cities of Tomorrow em 1898, onde confiava que
atividades urbanas e o contato com a natureza em harmonia num mesmo lugar, podia ser gestado por seus próprios habitantes.
Detalhadamente, Howard estabeleceu a proporção adequada entre hectares de área rural e cidade, consoante sua população e
elaborou o desenho topográfico estruturante da cidade jardim: um parque circular que expandia seus traços concêntricos para a
formalização do plano geral.
115
Figura 5 - #Reabito. Cortejo de Espelhos. Performance idealizada pelo coreógrafo Douglas Jung e musicadas pelo concertista e
flautista, Klaus Volkmann. Participação do GED. Foto: Marcius Andrade.
Figura 6 - # Reabito. Busca - Fotografia de Marcius Andrade.
Quando penso nas utopias do lugar de aparição artística me interesso pela expressão
individual dos artistas que, ao se exibirem no espaço urbano através de sua produção,
prospectam a esse topos, muitas vezes, o ideal de transformação das ruas da cidade e de
seus espaços de convívio e copresença entre citadidos, a partir da hipótese de intervenção
cultural para a construção partilhada de sentidos.
Reforçam esse ensejo instituições públicas de interesse cultural e, principalmente
a mediação social oferecida pelos meios de comunicação em rede. Nestas, também se
encaminham discussões pulsantes e algumas reflexões sobre as implicações estéticas
e políticas que constituem os multifacetados e polifônicos espaços contemporâneos de
expressão e sociabilidade. Espaços que, quando destinados à arte são, também, publicamente
transpassados pelo livre exercício da crítica individual e coletivizada, incorrendo no fomento
116
Utopias do lugar: arte pública, espaço público, intervenção artística urbana - Bianca Knaak
à avaliação judicativa das funções da arte e suas instâncias, socializada entre grupos de
pertencimento e que, heterotópica ou distopicamente tem, obviamente, consequências
estéticas e simbólicas distribuídas em redes sociais eletrônicas e presenciais.
Penso por isso, nos diferentes modos de interelações pessoais em curso no espaço e
no tempo, para os quais ainda não se tem parâmetros suficientemente estáveis para análises
socialmente producentes à compreensão da arte contemporânea, senão com base nas
referências da tradição ocidental que, sabemos são insuficientes diante do funcionamento
conjuntural do mundo presente. A utopia parece ser o lugar em que nos autobuscamos. Um
lugar para ser e estar com outros. Nem só artística e politicamente, mas, principalmente social
e sensivelmente.
Referências Bibliográficas:
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Murcia: CENDEAC, 2006.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1983.
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Terra. 2001. 2 v.
CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FABRES, Paola e MOTTER, Talitha. Projeto #reabito: proposições artísticas para repensar a cidade. In: Revista
ArteConTexto reflexão em arte. ISSN 2318-5538 v.2, nº5, nov., ano 2014. Disponível em: < http://artcontexto.com.br/
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FIDELIS, Gaudêncio. Uma História Concisa das Bienais do Mercosul. Porto Alegre: FBAVM, 2005.
FOSTER, Hal. Recodificação: Arte, Espetáculo, Política Cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.
GASSEN, Fernanda Bulegon. Parques e Praças: recortes de paisagem para refeições ao ar livre, 2013 (no prelo).
KNAAK, Bianca. As Bienais de Artes Visuais do Mercosul: utopias & protagonismos em Porto Alegre, 1997 -2003. 2008.
289 f. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, 2008.
LADDAGA, Reinaldo. Estética de Laboratório: estratégias das artes do presente. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Das vanguardas à tradição: Arquitetura, Teatro e espaço urbano. Rio de Janeiro: 7
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OLIVEIRA, Letícia de Cássia Costa. Arte Publica e Poder Publico: espaço Urbano, Espaço Arte. Trabalho de Conclusão
de Curso de Bacharelado em Artes Visuais. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010.
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SCHILLING, Voltaire. A capital das monstruosidades. Porto Alegre: Jornal Zero Hora, 25 de outubro de 2009. Cultura, p. 2.
SEVCENKO, Nicolau. O desafio das tecnologias à cultura democrática. In: Cidade e cultura: esfera pública e transformação
urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. pp. 37-47.
VERAS, Eduardo. A celeuma do ano. Porto Alegre: Jornal Zero Hora, 5 de dezembro de 2009. Cultura, p. 02.
ZERO HORA, jornal. Porto Alegre. 24 de outubro de 2007. Contracapa.
117
118
Encontro íntimo com estranhos e estrangeiros: arte em casa e a coleção Ferreira das Neves - Marize Malta
Encontro íntimo com estranhos e estrangeiros: arte em casa e a coleção
Ferreira das Neves
Marize Malta
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Resumo: A coleção de Jerônimo Ferreira das Neves, amealhada em fins do século
XIX, grande parte adquirida em Portugal e trazida para o Brasil, é uma típica reunião
de objetos díspares que encontram uma coerência e equilíbrio diante da pessoa do
colecionador e da coleção em sua casa. Confrontando observações a partir do contato
com as peças da coleção Ferreira das Neves com modos de morar, de dispor e conviver
com objetos nos interiores das casas em fins do século XIX no Rio de Janeiro, iremos
imaginar as possibilidades da experiência com os objetos da sua coleção em casa e
ensaiar um modo de encarar a diversidade de objetos representantes de geografias e
tempos múltiplos, como um encontro íntimo com estranhos e estrangeiros.
Palavras-chave: arte em casa; coleção Ferreira das Neves; modos de olhar na
intimidade; casas oitocentistas; coleções de arte.
Abstract: The collection of Jerônimo Ferreira das Neves, amassed at the end of the 19th
century, most of it acquired in Portugal and brought to Brazil, is a typical assortment of
disparate objects which find coherence and balance in the personality of the collector and
in the collection in the home. Contrasting observations stemming from contact with the
objects in Ferreira das Neves’ collection with ways of having and living with objects inside
houses at the end of the 19th century in Rio de Janeiro, we will imagine the possibilities
of experiencing the objects in his domestic collection and examine a way of viewing
the diversity of the objects representing multiple eras and geographies, like an intimate
encounter with the strangers and the foreigners.
Keywords: art at home; Ferreira das Neves’ collection; ways of looking in intimacy;
19thcenturyhouses; artcollections.
Arte no lugar
O presente colóquio propôs o tema “Novos mundos: fronteiras, inclusão, utopias”, como
provocação para pensarmos outras narrativas para a história da arte no Brasil a partir das
relações estabelecidas entre objetos e formas de abordá-los, especialmente afetados pelos
lugares em que estão situados, buscando uma história inspirada na territorialização do ponto
119
de vista, das ideias, das posturas, enfim, uma história da arte comprometida em ver a arte
no lugar, não desgarrada de um mundo particular, mas com localização certeira, endereço
sabido, modo de olhar esclarecido.
Para dar suporte material às nossas reflexões, nos valemos da coleção Jerônimo Ferreira
das Neves (1854-1918), salvaguardada pelo museu D. João VI da Escola de Belas Artes
da UFRJ, cuja doação foi realizada em 1947 pelo testamento da viúva Eugênia Barbosa de
Carvalho Neves (1860-1946). Brasileiros, filhos de portugueses, residiram em casa na cidade
de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, e adquiriram grande parte da coleção na Europa, em
especial em Portugal, no período de entresséculos.
Retomemos a questão. Inúmeras histórias da arte estiveram sob o jugo europeu, afinal
a disciplina por lá se constituiu,1 como os museus (também instituição modelar europeia),
lugares privilegiados onde as obras seriam acessadas para sua escrita, ora informando e
renovando a compreensão do acervo, ora sendo por ele direcionadas,2 A relação nada casual
de ajuda mútua auxiliou a constituir uma interdependência que favoreceu considerar, em
muitos casos, a obra de arte como uma figura com um fundo neutro, fundo que se desejava
universal e atemporal, seja enquanto parede do museu, seja como página branca dos livros
de história da arte. A obra (de arte) ganhava autonomia, assim como a disciplina e a instituição
museal, que asseguravam a ela um lugar ideal.
Os livros de história da arte e os museus (de arte) foram considerados locais seguros,
passivos e neutros onde se depositar obras que pudessem dar conta da história do mundo,
delineando um mapa-múndi da arte. Representando tudo e todos, incorporando de modo
particular as práticas artísticas não-ocidentais ou colocando-as de modo marginal nesses
sistemas. O americano Rick Gekoski, comerciante de livros raros, residente na Inglaterra,
lembra do Museu Britânico como um repositório da arte e da arquitetura do resto do mundo e
que, a partir de inúmeras transferências culturais, permitiu que os visitantes fossem “capazes,
em um país após o outro, de apreciar e entender outras culturas e formar, desde a infância,
impressões duradouras sobre a riqueza e a variedade de outras civilizações”.3 Assim como
o Museu Britânico, que reescreveu a história do mundo a partir dos objetos que recolheu ou
recebeu por doações, como realizou seu diretor, Neil MacGregor,4 outras instituições nacionais
europeias pretenderam criar suas versões de história do mundo, bem ao gosto enciclopédico,
o que foi seguido por demais museus não europeus.
Cada versão, contudo, procurava isolar os objetos estrangeiros, especialmente os
exóticos, das paisagens em que foram gerados, onde, no contexto, faziam determinados
sentidos, quando foram higienizados e dotados de uma vida separada, colocando-os em
situações de contemplação e favorecimento estético. O exótico podia ser estranho, mas
estranhamente belo.
1
Cf. BAZIN, 1989. ARGAN; FAGIOLO, 1994.
2
Cf. CARBONELL, 2004.
3
GEKOSKI, 2015, p.206-207.
4
MACGREGOR, 2013.
120
Encontro íntimo com estranhos e estrangeiros: arte em casa e a coleção Ferreira das Neves - Marize Malta
Conforme o tipo de objeto e procedência cultural, ele poderia ser direcionado a um
museu particular: de arte, de artes decorativas, de história, de história natural, de etnografia;
ou ser encaminhado a seções específicas. Muitas coleções particulares foram desmembradas
para poderem dar conta de um sistema classificatório que entendia os objetos culturais em
seu isolamento, apesar de o seu destino (para qual tipo de museu ou seção ir) ser dirigido pela
procedência. Normalmente, aquilo que era estranho e exótico não foi incorporado nos museus
de arte, mas em outras tipologias museológicas.
Que lugar, para além dos museus (de arte), poderia oferecer um espaço de reflexão
sobre a possibilidade de confluência, justaposição ou mesmo embaralhamento de objetos que
hoje são entendidos como de natureza diversa, de procedência diferente, de forças culturais
distantes e pouco colocados em confronto pelas práticas historiográficas?
Quando Micaela di Leonardo publicou em 1998 Exotics at home: antrophologies, others
and american modernity, seu interesse estava em apontar as disputas de poder revestidas
em diferenças culturais, abordando as relações íntimas e cambiáveis entre representações
populares e exóticas de outros e da prática da antropologia, especialmente focada nas
questões de gênero (o feminino), na cultura e na sociedade. Ela iniciava o texto, apresentando
o verbete “exotic” do The American Heritage Dictionary of the English Language, de 1969,
como um adjetivo que demarcava aquilo de outra parte do mundo; não nativo; estrangeiro;
tendo o caráter do não familiar, surpreendentemente ou intrigantemente incomum ou belo.
Aqui, tomamos o título “Exóticos em casa” como um desafio para se pensar o território
da casa, transpondo a ideia da incorporação do outro e do exótico para dentro de casa,
fenômeno que ocorreu de forma alargada no século XIX, especialmente diante das práticas
colecionistas burguesas e com reflexos especiais e particulares em países ex-coloniais na
América, como Estados Unidos, México, Argentina e Brasil.
Dentro dessa abordagem, agregamos a proposta que considera a proveniência das obras
para a construção de uma história da arte alternativa.5 Afinada com a vida social das coisas6
e a história do colecionismo,7 a história do objeto, guiada por sua proveniência, demanda
um aporte interdisciplinar e desnaturaliza seu pertencimento a um único local, considerando
outros na vida do objeto, e procura observar como a passagem do tempo e a mudança de
posse reconfigura a recepção da obra, forçando a uma recalibragem dos significados.
Ao assumir a casa como um lugar possível para a arte e a arte do outro, é importante
se ter em conta de que o exótico e o outro não são somente aquilo que vêm de fora do país,
mas o que também está fora da casa, no mundo exterior.8 Desse modo, o exótico em uma
casa oitocentista assumiu nuances mais complexas e com sentidos diferentes dos que os
assumidos nos museus e nas histórias e antropologias tradicionais. Além disso, é no território
do lar onde ocorre, em especial, o processo de domesticação, também frente ao outro e ao
5
FINGEBAUM; REIST, 2012.
6
APPADURAI, 1986.
7
POMIAN, 1984.
8
Cfme. SENNETT, 1999.
121
exótico, em variados graus e em diversas instâncias, e onde podemos perceber o processo
de apropriação do outro para um território que é típico do familiar.
Como mercadorias, os objetos são errantes e estão à procura de um lugar à altura de
suas aspirações. Ao conquistarem um lugar em casa, amoldam-se ao lugar e também incidem
sobre ele. A coleção ou uma peça estrangeira em casa pode ser um tipo de arte doméstica,9
de arte domesticada ou ser inserida nos interiores domésticos que desejam incorporar uma
poética no cotidiano,10 atribuindo, certas vezes, aos objetos de arte essa responsabilidade.
Contudo, dentro da lógica decorativa do século XIX, cujos artefatos tinham a potência de
alcançarem, pela força do conjunto, determinada impressão/atmosfera a um espaço, era bem
pouco provável que um único objeto de arte pudesse dar conta dessa tarefa. Eram necessários
muitos objetos.
Artes em casa
Durante o século XIX, em quase todos os centros urbanos da Europa, assistimos
ao fenômeno da grande produção e circulação de mercadorias, cujas repercussões foram
sentidas no Brasil. Cada vez mais se ampliava a quantidade e variedade de consumidores e
de objetos, inclusive de arte, para satisfazerem os desejos de personalização. O processo de
objetificação do mundo encontrou especial contingência no espaço doméstico burguês que,
de modo ampliado, transformou-se em mais um lugar para a arte.
Nos ambientes domésticos brasileiros, em especial no Rio de Janeiro, a relação com
o outro e com o exótico tomou contornos particulares. Quando uma elite incorporou o modo
burguês de morar de franceses, ingleses e portugueses contemporâneos, adaptando-o às
contingências locais, em uma cidade capital, estabeleceram-se inúmeras ambiguidades e
incômodos para uma antropologia do exótico. O país que era o outro e o exótico para o europeu
desejava-se como um outro não muito distante, tentando construir uma relação especular mas
que não se fazia com imagens nítidas. Nesse processo, com aquilo que deveria ser refletido
em distância, as imagens constituídas tenderam a particularidades, face à sua construção em
um ambiente cultural miscigenado, tropical, com história particular e, ainda, com demanda
de representações pessoais de identidades. Dependendo do personagem, da sua casa, do
seu perfil social, de seu status cultural, do ambiente familiar e de sua rede de relações, entre
outras contingências, o resultado alcançado se constituía como único. Cada casa respondia
de modo peculiar à construção de uma Europa possível,11 de um mundo possível, um exótico
possível, uma arte possível.
A coleção Ferreira das Neves, amealhada em fins do século XIX, grande parte adquirida
em Portugal e trazida para o Brasil, é uma conjunção de objetos diversificados que se
personificam na figura do colecionador e assume integração no modo em que estão dispostos
9
Sobre o debate acerca de arte doméstica na contemporaneidade, veja CONTE, 2006.
10
Cf. MUTHESIUS, 2009.
11
SANTOS, 2007.
122
Encontro íntimo com estranhos e estrangeiros: arte em casa e a coleção Ferreira das Neves - Marize Malta
em sua casa, certamente organização negociada com a esposa (aliás, costumamos esquecer
que os colecionadores tinham esposas, que suas coleções moravam em casa com ele e ela,
pelo menos). Fazem parte: Descida da Cruz de Quentin Metsys, vitrais suíços de batalhas,
baús brasonados em couro lavrado, crucifico de marfim e ébano, pistolas em miniatura, presa
de animal, espingarda de marfim, abano com um beija-flor empalhado, jarra em porcelana
chinesa, cômoda em estilo Império...
Essa variedade de qualidade pode estar relacionada com a ideia disseminada pelos
estudos históricos de meados do século XIX que preconizavam procurar encontrar a beleza
nos mais variados objetos, enfatizando “a tolerância com toda a forma de arte”.12 Madona e
o menino em relevo de mármore, tecidos de seda lavrados em decoração floral, uma rede de
dormir cearense, candelabros em madeira e bronze do Império francês, caixa de rapé, face
de Cristo no santo sudário, pote de porcelana Meissen, lava olho em vidro azul; coisas triviais,
peças únicas, objetos delicadamente trabalhados, utensílios curiosos, peças excepcionais,
todos em convivência. Certos estrangeiros eram tolerados em casa. Ao mesmo tempo, a
porcelana de Meissen poderia ser admirada no embalo de uma rede cearense, desfazendo
qualquer expectativa de uma situação exclusivamente eurocêntrica.
Ao tomarmos, por exemplo, peças de um único material, como o marfim, encontramos
um bom pastor indo-português, dois pratinhos com relevos em decoração zoomorfa, esferas
chinesas rendilhadas conhecidas como devil’s work, Cristo crucificado, dois porta-pincéis
entalhados com inscrição de poesias chinesas, dus presas de animais. Entre o Ocidente e o
Oriente, os marfins manufaturados negociavam formas artísticas de culturas diferenciadas,
confrontando práticas culturais de outras sociedades, como formas diferenciadas de se
identificar arte. Provavelmente, esses objetos foram mediados mais por trânsitos comerciais
portugueses do que por padrões de colecionamento franceses e ingleses, insinuando uma
vertente típica do colecionismo português.13
No século XIX, os objetos ganharam poderes evocativos, relacionando-os a humores e
sociabilidades, sentimentos e pensamentos. Afinal, passava-se a pensar com os objetos que
eram apreciados e se apreciava os objetos que eram pensados, como lembra Sherry Turkle.14
A autora ressalta a inseparabilidade entre pensamento e sentimento em nossa relação com as
coisas e isso acontece especialmente em casa.
Os objetos antigos passaram a evocar um sentimento de plenitude, conforto e até de
“camaradagem”.15 No Brasil, ter objetos antigos europeus em casa ou que evocassem sua
origem geográfica e temporalidade distante permitiam que seu dono deixasse de ser menos
exótico para o europeu e sua casa se tornasse mais exótica para a geografia cultural em que
estava inserido e criasse uma outra geografia particular em que estranhos e estrangeiros
passavam a ser familiares. Vários graus de exotismo se instituíam.
12
GEORGEL, 2015, p.282.
13
SERRÃO, 2014, p.23-47.
14
TURKLE, 2007, p. 5.
15
MUTHESIUS, 2009, p.312.
123
A Europa, o continente estrangeiro, podia ser possuída por meio do consumo e do
convívio com objetos fortemente impregnados de suas origens, fenômeno passível de ser
vivenciado em casa, onde também seria domesticada. No espaço cotidiano de convivência,
objetos e pessoas estavam em intensa proximidade, objetos de diferentes naturezas se
confrontavam e outra experiência visual se tornava possível, com os objetos perto do corpo,
sugerindo outros modos de ver e de dizer das coisas do mundo.
Quando o casal Ferreira das Neves trouxe para o Brasil uma série de quadros europeus
antigos, o passado, tomado em representação de personagens, cenas religiosas e linguagem
plástica, era incorporado ao seu dia a dia. Na mesma casa convivia um políptico dos mestres
de Ferreirim com três telas florais de Josefa Garcia Greno. Ambos eram provenientes de
Portugal, mas de situações e temporalidades muito deferentes. Para Jerônimo e Eugênia,
eles provavelmente podiam pensar que conseguiam fazer uma evolução-sintese da arte
portuguesa, possuindo os extremos – um mestre primitivo e uma pintora contemporânea;
uma cena bíblica e uma imagem decorativa; uma iconologia cristã e um arranjo floral. Um
anacronismo se instituía diante de uma prática cronológica, mas estabelecia contiguidades
possíveis, sugerindo reverberações de tradições pictóricas, posturas particulares entre obra
proveniente de trabalho coletivo de ateliê e obra autoral feminina.
A questão não é pensar o espaço doméstico enquanto o lugar para a arte, mas considerálo para pensar a arte e outros objetos nele inseridos em uma situação em que o juízo estético
não está esclarecido, mas em constante reorganização. A ideia é procurar saber se seria
possível fazer uma história da arte em casa. O caos ou a realidade catastrófica16das casas
e das coleções oitocentistas em casa permitem incorporar outros olhares e acionar o estado
de alerta que ativa os outros sentidos, podendo se construir uma história da arte multifocal.
Coleções em casa
O século XIX, na Europa, configurou-se como o auge do colecionismo,17 incentivado
pelo aumento das casas de leilão, pela ampliação do mercado de arte e antiguidades,
edição de catálogos e publicações especializadas, consolidação de redes de intercâmbio
em toda Europa e, sobretudo, graças à expansão da moda do colecionismo a uma
burguesia enriquecida (comerciantes, banqueiros, profissionais liberais), que, pelo espírito
da emulação, empenhava-se em acumular objetos de época e procedências muito variadas.
Como ressalta Gloria Mora, as coleções europeias oitocentistas eram bem heterogêneas
e reuniam peças de todas as épocas, tanto autênticas como cópias, reproduções e falsas:
quadros e pequenas esculturas, objetos decorativos, moedas e medalhas, móveis, joias,
livros, manuscritos e códices.18 A coleção Ferreira das Neves é um exemplo emblemático
dessa prática.
16
Aqui tomamos o argumento usado para os museus oitocentistas, segundo ótica de Paul Valéry, para os espaços domésticos.
17
MORA, 2015. GEORGEL, 2015.
18
MORA, 2015, p.8.
124
Encontro íntimo com estranhos e estrangeiros: arte em casa e a coleção Ferreira das Neves - Marize Malta
Walter Benjamin, impressionado com os interiores burgueses de finais do século
XIX, seus colecionadores e coleções, registrou uma série de observações sensíveis que
nos ajudam a compreender a convivência com esses objetos tão díspares, longínquos, de
tempos múltiplos e formas variadas. Eles nos ajudam a refletir sobre a matriz que procurou
ser emulada no Brasil por inúmeros interiores aburguesados e por colecionadores, como
Jerônimo Ferreira das Neves, mais conhecido como bibliófilo do que como colecionador
de arte, o que o aproxima de Benjamin ao falar sobre a paixão pela coleção de livros e o
que cada um pode despertar de memória de histórias passadas. Como os livros, as peças
de uma coleção em casa permitem essas mesmas ativações de memórias. E não só isso.
Podem concentrar narrativas sobre muitas histórias.
Como vários colecionadores brasileiros contemporâneos a ele, Jerônimo adquiriu boa
parte dos objetos na Europa, aproveitando as oportunidades de constantes viagens, o que
permitia estar em contato com o meio colecionista nos principais centros europeus. Contudo,
“o destino mais importante de todo exemplar é o encontro com ele, o colecionador, com sua
própria coleção”.19 É nesse encontro pessoal e íntimo que retratos de personagens italianos
da Renascença, por exemplo, tão estrangeiros e exóticos para uma casa em Niterói, podem
vir a ser considerados como parentes por afinidade e constituir um ambiente em que o
distante dialoga com o presente, em que um europeu renascentista passa fazer parte do
universo doméstico de um brasileiro, pondo-o em uma relação de intimidade com o outro. As
peças deixam de ser visitantes esporádicos e ganham o lugar do familiar.
O pandemônio burguês,20 como Benjamin se referia aos interiores das casas de finais
dos anos 1860 a 1890, podia ser bem representado “com seus gigantescos aparadores
transbordando de objetos entalhados”. Essa é uma imagem recorrente nos lares burgueses,
inclusive no Brasil. A experiência de colocar numerosos objetos reunidos estabelece uma
percepção confusa, levando a apreender mais a composição do arranjo do que as peças em
si, mais as semelhanças entre as peças, valorizando os conjuntos, dificultando alcançar a
autonomia do objeto.
A coleção Ferreira das Neves possui 15 xícaras e elas poderiam estar todas reunidas
sobre algum aparador ou vitrine na casa de Eugênia e Jerônimo, em Niterói. Há peças
excepcionais chinesas, de exportação, do século XVIII, mas também outras bem triviais,
provavelmente compradas em alguma loja de utensílios domésticos ou armazéns de louça
na rua do Hospício ou rua do Ouvidor, como as anunciadas no Almanak Laemmert. Ecos
desse modo de reunir peças de mesma tipologia, mas diferentes nos formatos, pode ser
encontrado em alguns museus históricos e museus-casa espalhados pelo país,21 que
incorporaram modos de exibir da domesticidade.
19
BENJAMIN, 1987, Desempacotando minha biblioteca, p. 229.
20
BENJAMIN, 1987, Casa Mobiliada. Principesca. Dez cômodos. p.15.
José Adolpho de Aguiar, membro da boa sociedade mineira de Araxá, doou a vitrine com a coleção de porcelana, composta por
xícaras e pratos para o Museu Histórico de Araxá, MG. O mesmo fez Hermantina e Salomão Drummond, doando sua coleção de
60 xícaras diferentes. A respeito da paixão por colecionar xícaras, veja MALTA, 2014, Mania por xícaras: a arte de colecionar no
século XIX.
21
125
Se por um lado, os museus cristalizaram a forma de exibir as xícaras, na casa dos
colecionadores elas eram repensadas a cada nova xícara a ser incorporada na coleção,
durante os afazeres de limpeza da casa ou mesmo para modificar a decoração. Sim, a
decoração, algo inevitável nas casas a partir do século XIX e que estabelecia perfeita
convivência com as coleções, organizando-as talvez mais por preceitos estéticos e afetivos
do que de conhecimento (classificações, ordem cronológica, procedências). De certo modo,
cada arrumação finalizada alcançava o “suave tédio da ordem” como diria Benjamin,22 o que
era de tempos em tempos reorganizada, quando um certo caos se instalava, reorganizando
o tédio: “Assim, a existência do colecionador é uma tensão dialética entre os polos da ordem
e da desordem”.23
Segundo um manual de colecionador,24 não existiria nada mais revelador que o arranjo
da coleção. Sua organização seria a mais rica e completa das confidências, pois o modo como
são apresentadas fala do espírito e da alma do colecionador. O colecionador oitocentista
lidava com uma ordenação experimental, refazendo alguns sentidos sugeridos pela posição
e contiguidade dos objetos, experimentando versões possíveis da história do mesmo objeto.
A coleção poderia ser encarada como uma tentativa de criar um outro sistema histórico.
Os colecionadores podem assumir a postura do historiador que viaja, compara, estuda, emite
hipóteses, escreve. Como lembra Chantal Georgel, “Tal qual a serpente que morde a própria
cauda, os colecionadores contribuíam a fixar no museu uma visão histórica, universalista,
enciclopédica, a mesma visão que fundamentara a formação de suas coleções, por vezes
em detrimento do Belo”.25 O exótico, o estranho, o estrangeiro, contudo, não costumavam
congraçar da beleza de padrão europeu, levando com que coleções que acolhessem o
incomum ativassem exercícios de alteridade e de transformação. O ordinário poderia se
transformar em extraordinário.
Diante das muitas viagens à Europa, podiam ser incorporados à coleção objetos
curiosos, registros de passagens por certas cidades, como os souvenirs. Podemos encontrar
um peso de papel de vidro com a imagem da basílica de Sacre Coeur em Paris (fachada,
interior e vista), um típico souvenir do século XIX, produzido de modo serial, convivendo
com duas placas de mosaico de pedra, formados por micro tesselos, representando a praça
de São Marcos com a basílica de São Pedro ao fundo, possivelmente do mestre Cesare
Roccheggiani,26 que trabalhou nas oficinas do Vaticano entre 1856 e 1864. Em comum,
demandavam uma aproximação para focalização das imagens representadas, exigindo uma
mirada minuciosa sobre suas superfícies que evidenciavam templos católicos, demarcando
o vínculo religioso do casal, os dois irmãos da Ordem Terceira do Carmo.
22
BENJAMIN, 1987, Desempacotando minha biblioteca, p.2 37.
23
Ibid., p. 238.
24
D’ALLEMAGNE, 1948.
25
GEORGEL, 2015, p. 282-283.
26
GABRIEL, 2000.
126
Encontro íntimo com estranhos e estrangeiros: arte em casa e a coleção Ferreira das Neves - Marize Malta
Essas peças de lembranças de viagem e de cunho religioso se misturavam a outros
objetos espalhados pelo cômodo, provavelmente na biblioteca, onde estavam os vitrais suíços
(que não eram religiosos), talvez os porta-pincéis chineses em marfim, a caixinha com penas
de metal para escrita, os relógios, e onde pendia o “quadro anitgo de São Sebastião”, como
mencionado no testamento. Desse modo, não ficava claro quando se entrava no cômodo
o que era digno de uma coleção de arte, o que era de uso corrente, o que possuía ligação
afetiva, o que era de devoção, o que era de admiração.
A coleção é sempre um microcosmo, uma porção de um universo em que a pessoalidade
do colecionador fica em evidência, o que não difere muito da postura de se fazer história.
Por outro lado, é na relação de intensa proximidade do colecionador com suas peças em
que se pode vislumbrar outras posturas menos universalistas e mais pessoais. Existe uma
convivência de longa duração, de um modo geral, resultando na familiaridade com os objetos
da coleção. A posse talvez seja “a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não
que elas estejam vivas dentro dele [o colecionador]; é ele que vive dentro delas”.27
Jerônimo e Eugênia viviam dentro de sua coleção. Um lugar com muitos objetos
estrangeiros, orientais (chineses, japoneses, indianos) e europeus (franceses, ingleses,
italianos, portugueses). Cada vez que se aproximavam de cada peça, nela pegavam
e olhavam com minúcia, ampliavam seu grau de intimidade com o que representavam e
ativavam a memória do percurso, da oportunidade, da compra, do translado, da escolha do
seu lugar em casa. Assim, a peça não só expressava suas formas, motivos, materiais, mas
ativava recordações de seus percursos.
Diferente do olhar passageiro de uma visita a um museu, o olhar do colecionador é
primeiramente interesseiro (olhar de comprador), que investiga, pondera, decide. Depois, em
casa, assume olhar de posse, que permite ver o objeto em sua mão, próximo do olho, capaz
de enxergar sutilezas. É possível também sentir cheiro, tocar, alisar, perceber texturas. A
imagem de um personagem carrancudo pode ser amenizada ao passar a mão no mármore e
sentir a suavidade da superfície, habilmente polida pelo artista. Uma pequenina flor só pode
ser descoberta ao se tomar o objeto em uso – uma xícara de chá. Um peso de papel só se
revela por completo ao ouvir o som de sua caixa de música, embalando os ritmos de olhar
para as minúcias de seus volteios em metal esmaltado, para as incrustações das pequeninas
pedras preciosas, as paisagens habilmente pintadas em miniatura. A experiência estética se
complexifica e é amplificada por meio dos outros sentidos.
Quando Benjamin sugere que os objetos fazem muito mais sentido nas coleções
privadas em vez de coleções públicas,28 ele remete à importância da figura do colecionador
e de sua relação íntima com seus objetos, absorto e imerso nas suas conquistas. Um quadro
ingênuo e trivial de Carl Spitzweg,29 como “O Bibliófilo”, mencionado por Benjamin, encobre
27
BENJAMIN, 1987, Desempacotando minha biblioteca, p.235.
28
Ibid., p.234.
Carl Spitzweg (1808 – 1885), nascido na Bavária, foi um artista alemão, autodidata, consagrando-se na pintura de gênero de
cenas cotidianas que evidenciavam realismo, fantasia e humor.
29
127
os vícios e as paixões, a decadência e a glória, o embrião e o verme que lidam com a
permanência e a morte, decorrentes da uma relação privada de um homem com sua coleção,
totalmente envolvido por ela. E é nessa experiência nada neutra e impessoal que podemos
pensar em outras histórias da arte.
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128
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros - Sandra Makowiecky
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas
e Xavier dos Pássaros
Sandra Makowiecky
Universidade do Estado de Santa Catarina - UESC
Resumo: A pesquisa apresenta Francisco Xavier Cardoso Caldeira - Xavier dos
Pássaros e Francisco dos Santos Xavier - Xavier das Conchas, que trabalharam
com Mestre Valentim na execução do Passeio Público no Rio de Janeiro e foram
responsáveis pelos primeiros espaços públicos de exposição no país: os dois pavilhões
quadrangulares, inaugurados em 1783, que abrigaram e expuseram o primeiro acervo
museológico do Brasil: os painéis ovais de Leandro Joaquim e espécimes naturais ou
culturais de uma nação. Discorrer sobre este tema pode contribuir com esta pouco
conhecida passagem entre os pesquisadores de história da arte no Brasil, o que justifica
também o conhecimento de sua inclusão e de suas utopias.1
Palavras-chave: Xavier dos Pássaros; Xavier das Conchas; Xavier das Conchas;
Xavier dos Pássaros; Museologia; espaços públicos; exposição.
Abstract: The research presents Francisco Xavier Cardoso Caldeira - Xavier of the
Birds and Francisco dos Santos Xavier - Xavier of the Shells, who worked with Master
Valentim in implementing the Public Promenade in Rio de Janeiro and were responsible
for the first exhibition public spaces in the country: both quadrangular pavilions of the
public promenade, inaugurated in 1783, which sheltered and showed to the public the
first museum collection of Brazil: Leandro Joaquim’s oval panels and natural and cultural
specimens of a nation. Talking about this subject can contribute with that unknown
passage among art history researchers in Brazil, which also justifies the knowledge of
their inclusion and their utopias.
Keywords: Xavier of the Shells; Xavier of the Birds; Museology; public spaces;
exhibition.
Problemática e pontos para discussão
Com o tema Novos Mundos: Fronteiras, Inclusão, Utopias, o CBHA propõe a análise
de algumas das questões no processo de expansão do campo da história da arte, com
1
Sobre os dois “Xavier” ver também: Makowiecky, S.; Didoné, Fabiana. M. Passeio Público do Rio de Janeiro e uma história que
pode ser revista: os catarinenses Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros.
In: Cavalcanti, Ana; Malta, Marize; Pereira, Sonia Gomes( orgs.) Coleções de arte: Formação, exibição e ensino. Rio de Janeiro:
Rio Books, 2015, p. 69-80. Na realidade, na continuação da pesquisa constatou-se que apenas Xavier dos Pássaros é catarinense.
Todavia, Xavier das Conchas morou por 32 anos em Santa Catarina, onde aprendeu oficio do trabalho com conchas, pelo qual se
tornou conhecido.
129
explicitação de narrativas que tomem o país como ponto de partida para a discussão dessas
relações entre próprio e global, contribuindo para a revisão dos discursos tradicionais que
enfatizam a centralidade da Europa nos processos de construção e estruturação de arte e
da história da arte na América Latina. Nesta perspectiva, a pesquisa apresenta Francisco
Xavier Cardoso Caldeira - conhecido por Xavier dos Pássaros, catarinense e Francisco dos
Santos Xavier - conhecido por Xavier das Conchas, que viveu 32 anos em Santa Catarina,
onde aprendeu o ofício manual com conchas, artistas que trabalharam com Mestre Valentim
na execução do Passeio Público no Rio de Janeiro e foram responsáveis pela ornamentação
de dois pavilhões quadrangulares que o progresso demoliu, cada qual ao seu estilo. Em
1998, o Ministério da Cultura, através da Secretaria do patrimônio Histórico - Iphan e da
Fundação Nacional, Pró - Memória, promoveu o Prêmio Xavier dos Pássaros, abordando o
tema Exposição: Linguagem Museológica, com o objetivo de divulgar a pesquisa, a reflexão
e a produção de textos técnicos no setor museológico. O patrono do concurso, Xavier
dos Pássaros e seu parceiro, Xavier das Conchas, podem ser considerados os primeiros
museólogos brasileiros, pois foram responsáveis pelos primeiros espaços públicos de
exposição no país: os dois pavilhões quadrangulares do passeio público, inaugurado em 1783
que abrigaram e expuseram ao público o primeiro acervo museológico do Brasil: os painéis
ovais de Leandro Joaquim. Xavier dos pássaros desenvolveu um trabalho que remete a uma
das funções primordiais dos museus: a preservação dos espécimes naturais ou culturais
de uma nação. Por outro lado, ao utilizar criativamente penas e plumas na ambientação
do pavilhão, indicou o caminho para a museologia brasileira na busca de uma linguagem
própria, não submissa a padrões importados.2 Discorrer sobre este tema pode contribuir
para pensarmos sobre a circulação de objetos, práticas e ideias na criação do complexo
mapa da arte e de sua história. A história dos Xavier, por sinal, é pouco conhecida entre os
pesquisadores de história da arte no Brasil, o que justifica também o conhecimento de sua
inclusão e de suas utopias.
Sobre o Passeio Público e Mestre Valentim
A obra de Valentim da Fonseca e Silva, Mestre Valentim (1745-1813), é reconhecidamente
considerada pelos estudiosos da cultura brasileira uma das mais significativas produções
artísticas do Rio de Janeiro do século XVIII, quando a cidade, elevada à condição de nova
capital do vice-reino português, se torna o polo de concentração de poder da colônia e seu
grande foco receptador e difusor de padrões estéticos.
A produção de Valentim - de caráter escultórico, arquitetônico e urbanístico - participou do processo de
“civilidade” e de “esclarecimento” da sociedade carioca setecentista e destinou-se, quase exclusivamente,
às instituições governamentais e laicas, dominantes no período.3
2
Fonte: Boletim do SPHAN nº44 MÊS NOV./DEZ. ANO 1988, pag. 21. Disponível em < http://docvirt.no-ip.com/docreader.net/
DocReader.aspx?bib=bol_sphan&pagfis=1205&pesq=>. Acesso em 24 mar.2015.
3
Carvalho, Anna Maria Fausto Monteiro de. Mestre Valentim. São Paulo, Cosac& Naif Edições, 2003, p. 7.
130
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros - Sandra Makowiecky
O Passeio Público foi construído entre os anos de 1779 e 1783, autorizado pelo vicerei Luiz de Vasconcellos e Souza, sendo o primeiro jardim público (ou parque ajardinado)
da cidade e do país.4 Logo nos primeiros anos após a sua construção, valorizou a região
de entorno e se tornou um dos principais pontos de encontro da sociedade carioca que ali
se reunia para ler poemas, ouvir música e praticar o footing. Foi Projetado seguindo o estilo
francês, pautado na linearidade, racionalismo, regularidade e geometrização, características
assimiladas do modelo iluminista que despontava na Europa (Figura 1),5 e propunha um
nova relação do homem com a natureza, sendo que esta se apresentava como fonte de
conhecimento e deleite.
Figura 1 - Maquete eletrônica elaborada por Naylor Barbosa Villas-Boas. Reconstrução digital do traçado de Mestre Valentim para
o Passeio Público. Disponível em:< http://www.passeiopublico.com/htm/sec21-02.asp.> Acesso em 20 jul. 2015.
Em seu interior podia-se contemplar, além de variadas espécies da flora nacional e
estrangeira, obras de arte confeccionadas por Mestre Valentim, como chafarizes, esculturas e
pirâmides. Das obras originais, existe atualmente no Passeio, o Portão principal, a Fonte dos
Amores ( com estátuas de jacarés em bronze, conhecido também por Chafariz dos Jacarés)
o Chafariz do Menino ( a escultura atual do menino não é a original - já desaparecida) e os
dois Obeliscos. No fundo do jardim, quatro escadas de pedra levavam a um terraço sobre
4
Site Passeio Público do Rio de Janeiro. Disponível em <http: //www.passeiopublico.com/index2.htm>. Acesso em 22 jun. 2014
SILVA, Denise Maria Deodato. Em busca de uma cidade ideal: Representações de poder no Rio de Janeiro do Vice-Reinado.
História, imagem e narrativas. No.2, ano 1, abril/2006. Pag. 32 - ISSN 1808-9895. Disponível em <http://www.historiaimagem.com.
br/edicao2abril2006/cidadeideal.pdf> Acesso em 15 jun.2014
5
131
a Baía de Guanabara. O terraço possuía cerca de 10 metros de largura. Para ornamentar
o terraço do passeio, Mestre Valentim construiu dois pavilhões quadrangulares que foram
constantemente atingidos pelas ressacas e demolidos completamente no ano de 1817, para
a ampliação do espaço do terraço.No ano de 1841, o Passeio sofre uma pequena reforma
de manutenção e os antigos pavilhões quadrangulares, já destruídos em 1817, foram
substituídos por torreões octogonais,6 que foram definitivamente destruídos em 1922. Como
mostra a gravura das figuras 2.1 e 2.2, os dois pavilhões erguiam-se nos dois extremos do
terraço, descritos como “dois mirantes de figura quadrada com duas portas de cada lado,
e todas com vidraça”, que tinham nos quatro ângulos dos beirais “pés de ananases com
seus frutos (considerados reais, todos de metal sobrepintados) que pareciam verdadeiros”,
conforme descrição de Luís Gonçalves dos Santos,7 sendo que no pavilhão do lado direito,
via-se, no alto, “a figura de Apolo tocando lira, e no esquerdo, a de Mercúrio com o caduceu”.
No seu aspecto exterior, os pavilhões lembravam singelas capelas coloniais, mas na
parte interna,8 tinham planta barroca movimentada em octógono e eram ricamente decorados.
Os mirantes eram considerados então a maior atração da cidade.9
A ligação de mestre Valentim com Xavier dos Pássaros e Xavier das Conchas
Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), natural do Serro, no Vale do Jequitinhonha,
foi escultor, entalhador, arquiteto e urbanista. Foi levado pelo pai a Portugal, em 1748, com
apenas três anos, onde ficou até os 25 anos e aprendeu o ofício de escultor e entalhador.
Em 1770, retorna ao Brasil e se estabelece no Rio de Janeiro, com loja, oficina e residência,
tendo trabalhado em obras públicas e religiosas.
Em “Mestre Valentim e a arte catarinense”, escrito em 1918 por Henrique Boiteux,10
os três estabeleceram uma fértil associação. Francisco Xavier Cardoso Caldeira, conhecido
como Xavier dos Pássaros era catarinense, nascido ilhéu (Florianópolis), artista primoroso em
trabalhos com penas e escamas, ensinados pela família Silva Mafra e Francisco dos Santos
Xavier, conhecido como Xavier das Conchas, não menos afamado pela sua habilidade em
trabalhos de conchas formaram uma trindade artística encarregada da execução da obra
esculpida no Passeio Público que acalentava um ideal patriótico. Xavier das Conchas, natural
do Rio de Janeiro,11 nascido em 1739, sentou praça em 1752 (aos 13 anos) e foi destacado
para a ilha de Santa Catarina. Indo ao Rio de licença em 1787, foi nomeado pelo vice-rei para
executar trabalhos na obra do Passeio Público. Assim, foi encarregado de ornar o pavilhão
6
Villas- Boas, Naylor Barbosa. A Reconstrução Virtual do Antigo Passeio Público de Mestre Valentim: Metodologia de Pesquisa.
Disponivel em < http://cumincades.scix.net/data/works/att/e142.content.pdf>.Acesso em 22 jun.2014.
7
Santos, Luís Goncalves dos. Memória para servir à história do vice- reino do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Valverde, V.I, 1943,
p.30.
8
Carvalho, op. Cit., p. 29.
Disponivel em <http://historiasemonumentos.blogspot.com.br/2014/04/passeio-publico-do-rio-de-janeiro1779.html>. Acesso em
20 jul. 2014.
9
10
Boiteux, H.( 1918), op. cit. , p. 98-104
Disponível em < http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=anais_bn_wi&pagfis=13115&pesq=&esrc=s>. Anais da
biblioteca nacional .Almanaque para a cidade do Rio de Janeiro de 1792.Anais 1937 volume 59, p. 201.
11
132
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros - Sandra Makowiecky
Figura 2.1 - Terraço do passeio público - Rio de Janeiro.
Figura 2.2 - Terraço do passeio público - Rio de Janeiro.
133
de Apolo. Faleceu no Rio em 1814, aos 75 anos, no posto de tenente coronel e ainda no de
Governador da Fortaleza da Conceição. Sabe-se que aprendeu a arte em Santa Catarina e
que nesta terra serviu como soldado onde se conservou em serviço ativo por mais 32 anos.
Casou e ficou viúvo em Santa Catarina e levou para o Rio de Janeiro, os dois filhos dessa
união. Os dois artistas saíram de Santa Catarina e foram ao Rio de Janeiro trabalhar com
Mestre Valentim, como indica o seguinte trecho: “Eis como a arte, outrora tão cultivada pelos
catarinenses e que embora hoje, um tanto desprezada, contribuiu para realce e encanto da
obra de Valentim da Fonseca e Silva”.12 No livro “Santa Catarina nas Belas Artes”, também
escrito por Henrique Boiteux, no capítulo onde trata sobre a “Propensão artística catarinense”,
o autor apresenta, entre outras, citações de Ladislau Neto, antigo diretor do Museu Nacional.
A propensão artística do catarinense de muito que se manifesta. A sua natureza foi e é sua mestra e bem
poucas a igualam em predicados. Assim, pode-se dizer que nele é inata. [...] Comecemos por Francisco
Xavier Cardoso Caldeira, exímio taxidermista, de quem disse o ilustrado dr. Ladislau Neto: ‘deixou na
metrópole também, a fama que deixa na terra, uma inteligência produtiva e uma honestidade imaculada.
[...] Nessa obra colaborou também um outro, Francisco dos Santos Xavier, que havia se tornado exímio em
Santa Catarina, em trabalhos artísticos com conchas’.13
Essas duas fontes forneceram relevantes informações sobre os dois artistas, apesar
de ter causado leve confusão sobre suas origens. Em primeira leitura, nos fez pensar serem
ambos catarinenses. Cabe dizer que o jornal mais antigo de Santa Catarina é O Catharinense
de 1831, sendo que Xavier dos Pássaros faleceu em 1810 e Xavier das Conchas faleceu em
1814. Os textos mencionam a ligação com as famílias Silva Mafra e Silveira de Souza, com
tradição na arte e cultura catarinense.14 “Para realizar o benfazejo pensamento do vice - rei,
foram chamados os dois nomes mais engenhosos da época: o Mestre Valentim e o célebre
Xavier das Conchas, assim alcunhado pelos famosos trabalhos que fazia [...]”.15
Sobre os pavilhões quadrangulares e seus interiores
Os pavilhões funcionavam como mirantes e tinham em seu interior dezesseis painéis
elípticos pintados pelo então destacado artista Leandro Joaquim (1738-1798) retratando
cenas marítimas, cotidianas e produtos regionais. Do total das obras, apenas seis chegaram
aos dias atuais e fazem parte do acervo do Museu Histórico Nacional ( RJ) as seguintes:
“Igreja da Glória”, “Vista da Lagoa do Boqueirão e do Aqueduto de Santa Teresa” e “Pesca à
Baleia na Baia de Guanabara” e do Museu de Belas Artes ( RJ) : “Cena Marítima”, “Procissao
ou Romaria marítima ao hospital dos Lázaros” e “Desfile Militar no Largo do Paço do Rio de
Janeiro, sendo duas delas mostrado nas figuras 3.1 e 3.2., todas de cerca de 1790. Estas
faziam parte do pavilhão decorado por Xavier das Conchas e duas delas desaparecidas,
12
Boiteux, H. (1918). Op. Cit. p. 104
13
Boiteux, H. Santa Catarina nas Belas Artes. Rio de Janeiro: Editora Zelio Valverde, 1940
14
Boiteux, H. (1940). Pp. cit. P. 13.
Revista do Instituto Histórico e geográfico do Brasil. Edição 19. Disponível em < https://books.google.com.br/books?id=2UgDAA
AAMAAJ&pg=PA373&lpg=PA373&dq>.Acesso em 22 jul. 2015.
15
134
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros - Sandra Makowiecky
Figura 3.1.
tem nomes conhecidos: “Entrada da Barra” e “Incêndio de uma grande nau holandesa”. As
obras de Leandro Joaquim que estavam no pavilhão decorado por Xavier dos Pássaros e
que representavam produtos da terra, foram todas perdidas. Xavier dos Pássaros e Xavier das
Figura 3.2.
135
Conchas, foram responsáveis pela ornamentação dos pavilhões, cada qual ao seu estilo. Os dois
pavilhões quadrangulares eram semelhantes no exterior, porém diferiam nos ornamentos do
interior. Nas partes externas, eram decorados com vasos de mármore de onde saíam abacaxis
de metal, fundidos por Mestre Valentim nas fornalhas da Casa do Trem. Os pavilhões possuíam
quatro janelas envidraçadas e duas portas de dobrar.
O pavilhão da direita, chamado de Apollo, era coroado com uma estátua do deus
Apolo tocando lira, em mármore português, foi ornamentado por Xavier dos Pássaros. Nesta
construção, desenhos de arvores adornavam o interior, cujas telas ( maiores que as do outro
espaço) traziam imagens de produtos da terra como cana-de-açúcar, mandioca e café.16 O teto
dividia-se em cinco grandes quadros enfeitados de arabescos, palmas e flores formados por
penas de diversas cores, sobre fundo branco, “tudo tão perfeitamente acabado que produzia
uma suave ilusão”.17
As sobre-portas eram decoradas também com penas e possuíam quadros elípticos nas
paredes feitos a pincel, representando diferentes fábricas e ofícios do país. O teto era decorado
com trabalhos de conchas e ornamentado nas cornijas por desenhos de pássaros e penas
de aves de diferentes cores, “fingindo flores” ou mostrando aspectos da cidade. As paredes
desse pavilhão exibiam oito painéis elípticos pintados por Leandro Joaquim, que representavam
produtos da terra, todos perdidos: minas de ouro e diamantes; plantações de cana-de-açúcar
e seu respectivo engenho; cultura e preparação do anil; plantação do cactos opuntia com a
maneira de extrair a conchonilha; mandioca e seus derivados; pés de cânhamo; manufatura de
cordoalha.
Já o pavilhão da esquerda, conhecido como Mercúrio, também coroado por uma estátua
do deus Mercúrio, em mármore português, ficou a cargo de Xavier das Conchas. Nesse, itens
marítimos foram lembrados e os quadros retratavam o cotidiano carioca e cenas do mar,
como a caça às baleias.18 Os cinco quadros do teto eram ornados com conchas, no lugar das
penas, sobre fundo azul. As sobre-portas eram ornamentadas com espécies de peixes dos
mares brasileiros, feitos com peles e escamas. As paredes desse pavilhão exibiam oito painéis
elípticos pintados por Leandro Joaquim, que representavam cenas marítimas e cotidianas do
Rio de Janeiro, dos quais sobram ainda seis, já mencionados. O fundo, em vez de ser branco,
tomava a cor azul. Ainda, “todos estes encantos da arte gozavam-se também de noite, ao clarão
de oito lampiões, trabalhados com esmero e colocados na extensão do terraço”.19 Para Joaquim
Manoel de Macedo,20 o trabalho executado pelos dois Xavier, “encantavam pela sua delicadeza
e perfeição, chegando os baixos-relevos a parecer antes obras da natureza do que de arte”.21
Passeio Publico. Disponível em < http://postoseis.com.br/default.aspx?pagegrid=pages&pagecode=172>.Acesso em 07 ago.
2014.
16
17
Ladislau Neto apud Boiteux, H. Santa Catarina nas Belas Artes. Rio de Janeiro: Editora Zelio Valverde, 1940. p.12
Passeio Publico. Disponível em <http://postoseis.com.br/default.aspx?pagegrid=pages&pagecode=172>.Acesso em 07 ago.
2014.
18
19
Ladislau Neto apud Boiteux, H. (1940), op. cit., p.13
20
MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garnier, 1991.
21
J. Manoel de Macedo apud Boiteux, H. ( 1940), op. cit., p.13
136
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros - Sandra Makowiecky
John Barrow em 1792 ( apud Ferrez), relatando a sua viagem à Conchinchina, nos dá uma
detalhada e extensa descrição dos mesmos:
Em cada extremidade do terraço existe um pavilhão quadrangular cujas paredes internas estão cobertas
por pinturas. Como especimen de arte, não merecem notícias, porém os assuntos pintados longe estão de
serem desprezados. As vistas, num destes pavilhões são todas dedicadas a cenas do porto; o teto é coberto
com trabalho de conchas; e ao redor da cornija estão representados peixes peculiares à região executados
com pequenas conchas. O teto do outro edifício tem a mesma decoração, porém trabalhado com penas, e
desenhos de pássaros nativos ornamentam a cornija, cada um com suas respectivas plumagens. Neste, oito
pinturas descreviam o que eram, então, consideradas as oito produções mais importantes do Brasil.22
Encontramos também outras descrições:
Outro viajante inglês, George Staunton, aportado no Rio também em 1792, acrescentou outros dados à
descrição dos pavilhões do Passeio feita por Barrow. Segundo Staunton, as telas do pavilhão das penas eram
mal-executadas e maiores que a do pavilhão dos peixes.23
A figura 2.2. retrata o terraço à beira-mar e um dos torreões octogonais, os segundos
pavilhões. Conforme consta no site do passeio público,24 durante o período colonial, diversos
viajantes estrangeiros aportaram no Rio de Janeiro e descreveram os pavilhões como uma
grande atração da cidade, chegando a chamá-los de summer houses.
Sobre Leandro Joaquim (1738 - 1798)
Destaca-se, entre os artistas da segunda metade do século XVIII que trabalham de
maneira inovadora a tradição artística portuguesa. Trabalhou com Mestre Valentim em desenhos
e projetos urbanos. Suas pinturas em painéis impressionam pelo colorido e estão entre as
primeiras paisagens, marinhas e vistas de cidade realizadas no país por brasileiros. Para
Luciano Migliaccio, os painéis correspondem ao programa de urbanização da cidade do Rio de
Janeiro, promovido pelo vice-rei para dotar a nova capital de estruturas adequadas. Colocados
em lugar de divertimento público, têm a finalidade didática de exaltar os produtos e a paisagem
nacionais25. Para o autor os temas das pinturas dos painéis são afinados com a exaltação dos
recursos naturais e das riquezas da colônia brasileira que se encontram nos documentos da
Academia de Ciências do Rio de Janeiro, fundada pelo marquês do Lavradio. Nas imagens,
como nos escritos dos literatos e dos cientistas, fica evidente a percepção de novas relações
com Portugal e do novo papel do Brasil e de sua população.
FERREZ, Gilberto apud Migliaccio, Luciano. Perspectivas no estudo da cultura visual brasileira do século XIX. IN: Valle, A. e
Dazzi, Camila ( org). Oitocentos - Arte Brasileira do Império à República - Tomo 2. - Rio de Janeiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte,
2010.
1 v., p.318.
22
Papavero, Nelson e Teixeira, Dante Martins. Remessa de animais de Santa Catarina ( 1791) para a “casa dos Pássaros” no Rio
de Janeiro e para o real Museu da Ajuda ( Portugal). Arquivos de Zoologia. Museu de Zoologia da USP. volume 44(4) :185‐209,
2013 . ISSSN online 2176 - 7793, p. 197-198.
23
Site do Passeio Público do Rio de Janeiro. Disponível em < http://www.passeiopublico.com/htm/pavilhoes.asp> Acesso em
22.jun. 2014
24
Migliaccio, Luciano. Perspectivas no estudo da cultura visual brasileira do século XIX. IN: Valle, A. e Dazzi, Camila ( org).
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à República - Tomo 2. - Rio de Janeiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte, 2010.
1 v., p.315336.
25
137
Sobre Francisco Xavier Cardoso Caldeira (Xavier dos pássaros)
Francisco Xavier Cardoso Caldeira (Florianópolis, ?-1810), o Xavier dos Pássaros, era
um artista primoroso em trabalhos de penas e escamas de peixes, ensinamentos recebidos
da família Silva Mafra.
Claudia Beatriz Heynemann, no livro “Ac culturas do Brasil”,26 analisa à luz das ideias
predominantes na Europa o processo racional que se instalou na Corte Portuguesa pontuado
pelas viagens científicas que tinham a intenção de explorar os recursos naturais de forma
extensiva e objetiva, quando a colônia brasileira tornou-se um laboratório a céu aberto.
Diz a autora que nas colônias organizavam-se as remessas que deveriam abastecer os
gabinetes, museus e jardins botânicos das metrópoles. No Rio de Janeiro, o desenvolvimento
dessas técnicas e a divulgação do conhecimento mereceram a criação, pelo Vice-Rei Luís
de Vasconcelos, de um gabinete de história natural que ficaria conhecido como Casa dos
Pássaros, com o intuito de preparar animais exóticos brasileiros, através da taxidermia, para
que fossem enviados aos museus europeus, onde seriam pesquisados.27
Após a finalização dos trabalhos no Passeio Público, Xavier dos Pássaros foi indicado
por D. Luís de Vasconcelos, vice-rei do Brasil, para criar e dirigir o Museu de História
Natural no Rio de Janeiro. Junto à obra da edificação do Museu, Caldeira improvisou um
depósito de produtos zoológicos do Brasil, destinado a enriquecer as coleções brasileiras
do futuro museu. O dito depósito passou a se chamar oficialmente de Casa de História
Natural e ficou conhecido da população como Casa dos Pássaros. Ele recebeu o título
de Inspetor e foi responsável pela direção do incipiente museu.28 Como cientista, realizou
diversos estudos taxidérmicos e ornitológicos. O local tornou-se o mais completo relicário
ornitológico brasileiro. Segundo Ladislau Neto, antigo diretor do Museu Nacional, Xavier
dos Pássaros “pode ser apontado como o primeiro representante de Santa Catarina na
confecção de objetos artísticos, de conchas, de penas e de escamas, que adornaram as
composições industriais do Rio de Janeiro”.29 Ele dirigiu a Casa de História Natural por
20 anos, acumulando milhares de exemplares de pássaros e de muitos outros animais.
Após seu falecimento, em 1810, a Casa de Pássaros foi extinta e as coleções organizadas
e classificadas por Xavier foram encaixotadas e conduzidas ao Arsenal do Exército, lá
conservadas por algum tempo e depois destruídas. Prossegue Heynemann ( 2010, p. 8889), dizendo que a trajetória dos Xavier dos Pássaros, dos matos da ilha de Santa Catarina
ao Largo da Lampadosa (atual Praça Tiradentes),30 participa do movimento de naturalistas
e dos demais envolvidos com a história natural, incumbidos de ver cientificamente, por
26
Heynemann, Claudia B. As culturas do Brasil. Sao Paulo: Hucitec, 2010.
LOPES, Maria Margareth. A Formação de museus nacionais na América Latina Independente. In: Anais do Museu Histórico
Nacional, Vol. 30. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1998. Pág. 121 a 133.
27
28
Heynemann, Claudia B. Op. cit. p. 88.
29
Ladislau Neto apud Boiteux, H. Santa Catarina nas Belas Artes. Rio de Janeiro: Editora Zelio Valverde, 1940. p.11
Em Heynemann, Claudia B. As culturas do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 89, consta que em 1783, um ano antes da criação
da casa dos pássaros ordenava-se a instalação de viveiros no quintal da casa de Francisco Xavier, “por se achar incumbido da
diligência e cuidado dos mesmos pássaros”, que a mesma portaria classificava de “preciosíssimos”, Cf. Arquivo Nacional. Vice reinado, portarias. Códice 73, vol.15, fl.180, 1783.
30
138
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros - Sandra Makowiecky
meio da taxinomia, da organização e do estabelecimento de relações, fazendo existir o que
estava disperso e oculto na paisagem.
Para o Instituto Brasileiro de Museus,31 o primeiro museu implantado no Brasil data do
século XVII, quando durante a ocupação holandesa em Pernambuco foi criada uma instituição
que englobava jardim botânico, jardim zoológico e observatório astronômico. Em 1784 foi aberta
a Casa de História Natural ( Casa dos Pássaros) no Rio de Janeiro, que tinha por finalidade
servir como sucursal do museu de História Natural de Lisboa, para onde enviava exemplares
recolhidos dos reinos da natureza, bem como artefatos produzidos pelas gentes do Brasil,
integrando o quadro de modernização das instituições lusas, iniciada com a administração
do Marquês de Pombal em Portugal.32 Com a mudança administrativa e a chegada do Conde
de Resende como Vice- Rei (1790 - 1801), o projeto foi abandonado, resultando na extinção
da Casa dos Pássaros, sendo seu acervo encaixotado e enviado para guarda no Arsenal de
Guerra, onde permaneceu até a criação do Museu Real, em 1818. Com a chegada da Família
Real portuguesa, em 1808, a Casa dos Pássaros foi demolida para a construção do prédio do
Erário. Seu acervo serviu de base para a criação do Museu Real, no ano de 1818, por meio de
decreto do então príncipe regente de Portugal, D. João. O Museu Real, hoje Museu Nacional
da Quinta da Boa Vista, é a instituição museológica mais antiga do Brasil ainda aberta ao
público e também a que concentra o maior número de bens culturais no acervo.
Sobre Francisco dos Santos Xavier (Xavier das Conchas)
Francisco dos Santos Xavier, o Xavier das Conchas (1739-1814), possuía grande
habilidade em trabalhos com conchas. O Museu do Oratório, em Ouro Preto (MG), possui
em seu acervo quatro peças de provável autoria de Xavier da Conchas. São pequenos
oratórios adornados com guirlandas, buques e volutas, usando principalmente conchas na sua
composição, conforme a seguinte descrição das obras, “a estrutura das peças é elaborada
em uma série de aramados bem finos e cobertos por tecido e linha. Depois, são recobertos
por ornamentos em folhagens, madeira, tecido e conchas”,33 com colagens, douramento e
policromia, sendo que duas delas podem ser observadas nas figuras 4.1.e 4.2. Segundo a
análise estilística do Museu, os oratórios são em estilo rococó inspirado na decoração de fontes
e grutas por conchas que compõem grandes guirlandas de flores que ornamentam o camarim.
De fatura erudita, eles apresentam traços delicados e bem elaborados.
Planejados em movimentos suaves, com torções leves e policromia vistosa. O período de
produção fica entre o final do século XVIII e inicio do século XIX. Outra obra do autor encontrase na Igreja de Nossa Senhora do Outeiro da Glória do Rio de Janeiro. Trata-se de um oratório
com imagem de São Joao Batista.34
31
Museus em números. Instituto Brasileiro de Museus- IBRAM, Brasília, 2012, p. 61.
Sily, Paulo Rogério Marques. Casa de ciência, casa de educação : ações educativas do Museu Nacional (1818-1935) / Tese
(Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação. 2012. 399 f.
32
33
Site do Museu do Oratório (MG). Disponível em < http://www.museudooratorio.com.br/port/colecao>. Acesso em 15 jun.2014.
34
PIRES, Fernando Tasso Fragoso. Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Imperial Irmandade. Rio de Janeiro, Gráfica Sol, 2013.
139
Figura 4.1 e 4.2.
Em Teresinha Sueli Franz, no livro “Victor Meirelles: Biografia e legado artístico”35,
encontramos dados que são interessantes para reforçar a tradição açoriana do trabalho com
conchas, na ilha de Santa Catarina. A autora menciona os relatos dos viajantes estrangeiros
que pela ilha passaram.
As mulheres do Desterro são celebradas pela sua habilidade na manufatura de flores de penas, as
de caravelhos, escamas de peixe e conchas do mar; e a chegada de estrangeiros no lugar é a causa
de aglomerações de negros e negras, nas portas, vestíbulos e salas de hotel, querendo mostrar
suas bandejas e caixas desses artigos para a venda. Vários deles são de muito bom gosto e muito
ornamentais; especialmente aqueles formados de asas polidas e escaravelhos. Colares, braceletes,
corôas e buquês de flores são muito graciosos; e não fosse o material conhecido pareceriam autênticas
preciosidades.36
Em outra passagem, a autora comenta a despedida de D. Mariano Moreno 37, que
de volta à Argentina conversa com o tio sobre sua vivência na ilha naqueles dias de
despedida de seu longo exílio. Escreve que, uma vez que a bagagem já se encontrava a
ISBN 978-85-66022-02-5
35
Franz, Teresinha Sueli. Victor Meirelles: Biografia e legado artístico. Florianópolis: Caminho de Dentro, 2014.
36
Franz, T.S. ( 2014), op. cit., p.59.
D. Mariano Moreno (filho) chegou à ilha de Santa Catarina em 1843, como exilado político no Governo de Juan Manuel de Rosa,
ditador que dominou a política argentina de 1829 a 1852. Fundou uma escola de desenho em Desterro por volta de 1845, onde
teve entre seus alunos o pintor Victor Meirelles. Foi professor no “Collégio das Bellas Letras” em Desterro, criado em 1849, nos
primórdios da história do ensino secundário da Província de Santa Catarina. Retornou ao seu país em maio de 1852, depois da
queda de Rosas.
37
140
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros - Sandra Makowiecky
bordo do navio que os levaria de volta pra seu país, o único objetivo que ainda estava na
sala era um presente de sua filha (e feito por ela): “É uma paisagem em baixo relevo, feito
com conchas e escamas. Os que viram o classificam de ‘primoroso’!38”:
Havia uma tradição em Desterro de se fazerem objetos com conchas, escamas, penas, flores, tecelagem,
rendas e, principalmente, olaria. Tradições que vinham da Vila Nossa Senhora do Desterro colonial. Ao
que vemos, D. Mariano e sua família estavam atentos a estas tradições locais. Enquanto o pai ensinava
o que ele entendia como arte, a filha aprendeu a fazer o que aqui se entendia como tal.39
Assim, parece que mesmo em contexto tão singular e distante, se partilhavam
conhecimentos e educação estética e que os dois artistas que da ilha saíram, levaram
consigo estes ensinamentos para atuação no Rio de Janeiro.
Os primeiros museólogos brasileiros, o passeio público, Mestre Valentim e Leandro
Joaquim
A partir da indicação do Prêmio Xavier dos Pássaros, em 1998, pelo Ministério da
Cultura, vamos tecer algumas considerações sobre o projeto do Passeio Público.
Lenice da Silva Lira em “A Paisagem carioca: tempo e espaço dos painéis de Leandro
Joaquim”40 aponta algumas sínteses em que reconhece elementos que definem o passeio
publico, os quais iremos expandir:
1. O projeto de Valentim reporta-se às ideias iluministas de bem-estar, civilidade e
simboliza também uma natureza dominada pela razão e ação do homem.
2. As raízes árabe e medieval de Portugal ainda presentes na composição formal do
Passeio Público cujos traços são percebidos na oposição da ideia de fusão do espaço
da natureza ao urbano (espaço barroco) à ideia da natureza ‘revelada’ por detrás de um
muro e de um portão; 3. A composição formal barroca de tendência classicizante evidencia também o
sentimento nativista de Valentim que se estrutura na poética da obra, caracterizado
pela preocupação em mostrar a flora local; essa preocupação também é o resultado do
espírito da investigação científica da natureza, próprio do iluminismo.
4. No contexto do Passeio Público e do projeto iluminista, inserem-se as obras de Leandro
Joaquim. A obra do pintor se afirma como uma das protagonistas de um capítulo da
história do Brasil e da invenção da paisagem brasileira, e, especificamente da paisagem
carioca representando o desejo de formação de uma identidade territorial e cultural.41
Os painéis de Leandro Joaquim, segundo Joaquim Amandio dos Santos, apresentam
38
Franz, T.S. ( 2014), op. cit., p. 120.
39
Franz, T.S. ( 2014), op. cit., p. 121.
Lira, Lenice da Silva. “A Paisagem carioca: tempo e espaço dos painéis de Leandro Joaquim”, disponível em <http://
observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal12/Teoriaymetodo/Pensamientogeografico/24.pdf >. Acesso em 27 jul.2015.
40
41
Lira, Lenice da Silva.Op.cit.
141
uma atitude distinta na qual se acentua a tendência na superação da bidimensionalidade
acompanhado por um movimento de dimensão psicológica em que o artista buscou uma
expressão de acordo com sua própria realidade.42
5. A ciência, que é evidenciada no preparo e proteção da área e pelo desenvolvimento
tecnológico. Ali nasceu, nas lições de Frei Leandro do Sacramento, o ensino público
da história natural continuado por Xavier dos Pássaros.43 O crescente interesse pelas
Ciências Naturais promovido pelo Iluminismo levaria Dom Luís de Vasconcellos e Sousa
a tomar várias medidas destinadas tanto à urbanização do Rio de Janeiro quanto a um
melhor conhecimento dos produtos naturais da Colônia. Foi criador do “Passeio Público”
e da “Casa dos Pássaros”, respectivamente a primeira exposição pública zoológica e o
primeiro museu de história natural do Novo Mundo. Para enviar regularmente espécimes
da fauna brasileira para as “Quintas Reais” e para o Museu da Ajuda, em Lisboa, no caso
particular de Santa Catarina, foi elaborada, em 1791, uma “instrução”, provavelmente
por iniciativa de Francisco Xavier Cardoso Caldeira - o “Xavier dos Pássaros” - para
sistematizar e orientar o processo de coleta dos espécimes. Apesar de bastante conciso,
esse documento é um valioso testemunho sobre a História Natural no Brasil no século
XVIII.44
6.Leandro Joaquim e Mestre Valentim eram mulatos e brasileiros e foram escolhidos
pelo Vice - Rei para imprimir em suas obras singularidades e traços pessoais. Não deixa
de despertar ao menos curiosidade o fato de que, para executar tais obras, o vice-rei
não tenha chamado algum artista experiente da Europa, mas as encomende a dois
artistas nativos de origem africana. É bem possível que a preferência pelos artistas locais
traduzisse uma determinação política dirigida a destacar os progressos realizados pelos
súditos da colônia.45
7. O patrono do concurso já mencionado, Xavier dos Pássaros e seu parceiro, Xavier
das Conchas, podem ser considerados os primeiros museólogos brasileiros, pois foram
responsáveis pelos primeiros espaços públicos de exposição no país: os dois pavilhões
quadrangulares do passeio público, inaugurado em 1783 que abrigaram e expuseram ao
público o primeiro acervo museológico do Brasil: os painéis ovais de Leandro Joaquim.
8. Xavier dos Pássaros desenvolveu um trabalho que remete a uma das funções primordiais
dos museus: a preservação dos espécimes naturais ou culturais de uma nação. Por outro
lado, ao utilizar criativamente penas e plumas na ambientação do pavilhão, indicou o
caminho para a museologia brasileira na busca de uma linguagem própria, não submissa
SANTOS, Amandio Miguel dos. Os painéis elípticos de Leandro Joaquim na pintura do Rio de Janeiro setecentista. Gávea. 11
(11), abril 1994, p. 133.
42
Disponível em < http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2044711/pg-50-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-20-07-1929>. Acesso
em 21 jul. 2015
43
Papavero, Nelson e Teixeira, Dante Martins. Remessa de animais de Santa Catarina (1791) para a “casa dos Pássaros” no Rio
de Janeiro e para o real Museu da Ajuda ( Portugal). Arquivos de Zoologia. Museu de Zoologia da USP. volume 44(4): 185 - 209,
2013 . ISSSN online 2176 - 7793, p. 197-198.
44
45
Migliaccio, Luciano. ( 2010), op. cit.,
p. 319.
142
Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros - Sandra Makowiecky
a padrões importados. De igual forma, Xavier das Conchas, ao utilizar conchas em seus
trabalhos, reelabora uma tradição açoriana tão cara à Santa Catarina e ao Brasil. Vemos
novamente nos dois artistas, o espírito iluminista de catalogação e ordenação da natureza
no paisagismo e nas representações naturalistas de animais e uso de materiais oriundos
diretamente da natureza.
Concluindo
Acreditamos que este tema e todos os personagens envolvidos, contribuem para a
revisão dos discursos tradicionais que enfatizam a centralidade da Europa nos processos de
construção e estruturação de arte e da história da arte na América Latina. O Passeio Público
do Rio de Janeiro configurou-se em belo e completo projeto em que ideias ainda hoje ousadas
e atuais puderam ser executadas e vivenciadas de forma que percebemos algumas saídas
na arte latino-americana do século XVIII entre as quais, uma nova invenção de iconografias
que correspondeu a preocupações ideológicas regionais, já afeitas ao crescente poder da
sociedade civil sobre o religioso e do processo de laicização urbana, ainda que em sua maioria,
pelas mãos do Estado.
Referências Bibliográficas:
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n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artistas/vm_mmoreno.htmAcesso em 22 jul.2015.
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HEYNEMANN, Claudia B. As culturas do Brasil. Sao Paulo: Hucitec, 2010.
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catarinenses Xavier das Conchas e Xavier dos Pássaros. In: Cavalcanti, Ana; Malta, Marize; Pereira, Sonia Gomes( orgs.)
Coleções de arte: Formação, exibição e ensino. Rio de Janeiro: Rio Books, 2015, p. 69-80.
MIGLIACCIO, Luciano. Perspectivas no estudo da cultura visual brasileira do século XIX. IN: Valle, A. e Dazzi, Camila (
org). Oitocentos - Arte Brasileira do Império à República - Tomo 2. - Rio de Janeiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte, 2010.
1
v., p.315-336.
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144
Arte e contemporaneidade: conceitos e estratégias
Território vivencial - Sal sem carne - Angela Maria Grando Bezerra
Território vivencial - Sal sem carne
Angela Maria Grando Bezerra
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Resumo: Este artigo enfoca em Sal sem Carne [Cildo Meireles,1975] seu espaço denso
de sentidos, que redimensiona a história de expropriação de comunidades indígenas
através de uma rede de sonoridades, ruídos e vozes interligadas a uma potência visual
plural. Discute sobre os traços da memória individual e coletiva que se fundem ao social
e analisa os modos de uma escuta em seu campo sonoro.
Palavras-chave: Cildo Meireles; Contextura Sonora; Arte e vida.
Abstract: This article focuses on Sal sem Carne [Cildo Meireles,1975] its dense space
of sense, which resizes the history of expropriation of indigenous communities invoked
through a network of sounds, noises and voices connected to a plural visual power.
Discusses the features of the individual and collective memory merging the social and
analyzes the hearing modes in its soundscape.
Keywords: Cildo Meireles; Contexture Sound; Art and life.
Eu tinha feito um trabalho que era o Sal sem carne, que era um disco...
Cildo Meireles1
Sal sem carne, 1975, é um projeto concebido por Cildo Meireles nos Estados Unidos e
concretizado no Brasil. Trata de uma “cosmogomia”, diz o artista, cujo equilíbrio é rompido.
Sua dinâmica parte de uma fraternidade que existiu além do tempo presente, quando “existia
o índio e um estado harmônico”. Ao perder esse equilíbrio, criou-se uma zona movediça, o
gueto, onde as tensas relações entre as comunidades indígenas e os colonizadores operam
e evocam questões ideológicas, restrições étnicas. Por isso emerge a construção de uma
cultura híbrida que não se concilia nunca, mas sintomaticamente engendra um “terceiro
espaço” ou “gueto”.2 O que é indicado na afirmação de Cildo: “eu tinha feito um trabalho
que era o Sal sem carne, que era um disco, uma radionovela, e por Goiás eu tinha chegado
Fala de Cildo Meireles, extraída de entrevista, em que diz: “Eu tinha feito um trabalho que era o Sal sem Carne, que era um disco,
uma radionovela, e por Goiás eu tinha chegado a um hospício, esse hospital mental. [...]. Eu fui diferentes dias, diferentes horários,
e sempre um personagem, no mesmo canto. [...]. Aí eu voltei para fotografar ele, que são as fotos que eu usei no Zero Cruzeiro e
no Sal sem Carne na capa do disco [...]”. In: www.revistacaborno.com/número.4/lupa
1
2
Segundo a fala do artista que discute sobre a dinâmica do gueto in: ROSA DE MOURA, 2009. Vídeo, Cildo
147
a um hospício, esse hospital mental [...]”. Sua fala expõe a concepção matriz da poética do
trabalho, de redimensionar a ideia do espaço que instaurar-se-ia na precondição relacional
de polos extremados na vida, em que se estabelece uma situação de gueto e passa a existir
uma minoria a oprimir uma maioria. Ainda, em sua fala:
“Sal sem carne baseia-se no conto ‘A terceira margem do rio’ de Guimarães Rosa. A partir do som estéreo,
procurei obter um terceiro som, que não é o do alto-falante direito nem o do alto-falante esquerdo, mas um
som que se situa entre os dois [...]” (Cildo Meireles, apud OBRISCH, 2000, p.166).
Na criação de Guimarães Rosa a “terceira margem do rio” abarca um espaço mutante
articulado pela ideia do “entre”. O fio condutor do conto mostra o pai de uma família que passa
a permanecer numa canoa, no meio do rio (nem de um lado e nem do outro das margens).
Contudo, sem jamais retornar para casa vai criando uma terceira margem, um espaço
(espécie de ancoradouro) no qual habita em sua condição instável na vida.3 Outrossim, há
uma aparente desagregação, o extravio de um determinado elemento referencial. Então,
nessa quebra de um determinado sistema referencial, se estabelece um estado de ‘gueto’
que necessariamente traz desequilíbrio.
O disco Sal sem carne envolve uma série de interseções sonoras intercambiantes, um
ambiente sonoro que concentra gravações num LP de 33 rotações, disco de vinil, mixado em
oito canais, onde quatro se destinam à cultura branca-portuguesa e quatro direcionados à
cultura indígena. Em um dos oito canais do “homem branco” está uma contagem em rádiorelógio na duração de 50 minutos, eixo do trabalho segundo o artista. Também está gravada
a festa do Divino Padre Eterno, em Trindade, centro-oeste brasileiro, e outra gravação que
consiste no registro de uma das três maiores romarias do Brasil num acampamento em
São Cotolengo. No conjunto dos canais ligados à cultura “indígena” há uma entrevista onde
o índio xerente chamado Zé Nem. Além desta, uma outra entrevista com um sertanista, e
ainda outra com índios kaiapós. A mixagem do disco permite que num dos canais confluam
os discursos dos brancos e dos indígenas. A captação sonora foi feita em maior parte em
Goiás, com exceção da rádio relógio elaborada no Rio de Janeiro. O disco teve tiragem de
1000 cópias. Para além disso, tanto na capa do disco, quanto posteriormente no ambiente
criado em instalações desse trabalho,4 a presença de fotografias de índios Krahôs, entre as
quais um dos fotografados é sobrevivente do massacre de sua tribo em 1940. A dinâmica do
gueto ainda é explorada com fotografias de habitantes da cidade de Trindade, local próximo
de onde teria sido dada por fazendeiros da região a ordem para massacrar aqueles índios.
Sabemos que, no início da década de 1970, o trabalho de Cildo Meireles lança mão
do som, do objeto disco, como vetor de criar uma topologia sensorial. Data daí sua estada
de dois anos nos Estados Unidos, portanto seu contato próximo com uma cultura em que a
3
Desenvolvemos este assunto em: GRANDO, Angela; Pinheiro, Janayna. “A narrativa (des)locada em Cildo Meireles”. In: 22º
Encontro Nacional ANPAP, 2013.
4
Nas quais, amarrados em fios presos ao alto, a presença de 144 monóculos onde se vasculha fotografias de índios Krahôs.
148
Território vivencial - Sal sem carne - Angela Maria Grando Bezerra
sonoridade à época ganhara força através da indústria. Ao retornar ao Brasil, dirigiu-se ao
engenheiro de som Ari Perdigão, profissional da antiga gravadora Musidisc. E, a proposta de
execução do trabalho partiu do que Meireles classificou como “radionovela sobre a situação
do gueto em geral”, ele diz:
“Na verdade o Sal sem carne... é um pouco sobre isso... a coisa do gueto, que no começo uma parcela
da população confina outra por alguma razão, ideológica, religiosa, política, sei lá... econômica... e com o
tempo... porque o que define tudo é a quantidade de informação circulando, é claro que começa a circular
muito mais informação nessa área confinada do que na área que está confinando, e a tendência é se
inverter, né? Quando eu morei em Nova Yorque por exemplo (...) O negro, ele ia a qualquer lugar, já a
classe média branca americana tinha cinco fechaduras na porta, grade na janela, tinha quarteirão que não
podia entrar. (...) Os caras começam a criar uma prisão pros outros e acabam eles entrando numa prisão.”
(ROSA DE MOURA, 2009. Vídeo, Cildo).
Nesse eixo do “gueto”, afirma Meireles, “[...] as pessoas são submetidas a pressão [...]
ideias surgem e circulam [...]” e a medida que as coisas se potencializam no conhecimento,
o oprimido naturalmente modificará o sistema. É nesse teor de reflexão que ao citar sua
estada nos EUA, sua fala se estende sobre a sociedade americana do Harlem e bairros
americanos em que a fissura social está presente no cotidiano, e divide transeuntes,
moradores e habitantes de uma localidade ao criar guetos, alijamentos sociais impostos por
um sistema de moradia, valores, economia, etc. O gueto traria a característica de ser uma
criação social para a alienação do diferente, e do outro, no sentido de um outro totalmente
diverso, ou à priori conhecido em suas demandas ameaçadoras5. É importante essa leitura,
e essa experiência por parte do artista numa época em que a sociedade americana abria a
década já com alguns questionamentos sobre seu império, também cindido geopoliticamente
na desgastante e lenta anunciação de que os propósitos do presidente Lyndon Johnson
6
levariam à derrota no Vietnã, como levaram. Além da criação de um macro-gueto que se
anunciava herança da guerra com um agregado violentamente crítico, havia também a cínica
edição do sonho americano, problematizado pelo termo Indústria cultural por Theodor W.
Adorno e Max Horkheimer ou pela Pop art por um Andy Warhol impiedoso e capitalista, e
brilhante, entre outros.
O eixo conceitual de Cildo Meireles para o que chamará gueto ao elaborar de Sal sem
carne é a cosmovisão de que esse gueto crescerá, de tal modo que contaminará o poder
que o alienou. Nesse ponto o sistema social torna movediça a extensão dos limites: o poder
que outrora os estabeleceu agora é submerso em suas próprias margens, as quais não cabe
ultrapassar. Nisso vai abarcar enfrentamentos que resultam na reinscrição de diferenças que
não se conciliam. Vivenciar Sal sem carne, provoca interagir com sua inteligência topológica,
e em termos de sonoridade é sempre possível questionar: o que escutar em Sal sem carne?
5
Discutimos sobre o conceito de “gueto” em Cildo Meireles In: GRANDO, Angela “Novas Iconografias: entre valor de uso e valor
de troca”. GUZMÁN, Fernando; MARTÍNEZ, Juan Manuel. Arte Americano e Independencia. Nuevas iconografias. Archivos y
Museos. Ministério de Educación, Chile, 2010, p. 149-158.
6
Presidente norte-americano pelo partido Democrata, que assumiu após o assassinato de J. F. Kenedy e intensificou a
participação dos EUA na Guerra do Vietnã.
149
É bom lembrar que embora o artefato vinil seja utilizado em geral na década de 1970
em uma ordenação sonora para a harmonia convencional, em Sal sem carne o que temos
é o emaranhamento. No seu processo de mixagem construído, não se tratou de separar de
forma harmônica a diversidade de acontecimentos que ao trabalho atravessa. Mas salientar
em sua construção no estúdio a ambiguidade de sons da faixa em oito canais, que jamais
estabelecem um amálgama. Ou seja, os eventos sonoros estão embaralhados, sem uma
ordenação em faixas, sem uma sequência estabelecida onde um sucede ao outro e esse
outro ao um antecederá ao final do toque da agulha no acetato. Tanto a entrevista com o índio
xerente Zé Nem, sobrevivente do segundo massacre, homem que, cego, vendia bilhetes de
loteria em Goiânia, quanto a Romaria do Divino Padre Eterno, atuam na superfície desse real.
Topologia sonora que descortina, em seu habitual velamento, uma apreensão complexa de
um propósito, numa dinâmica sensorial e reflexiva que provoca aos que escutam (espectador
ativo) o trabalho de corroborar para seu acontecimento.
Conquanto, uma gravação em 8 canais tem limitações. Essas limitações apontam
uma relação tecnologicamente importante com o disco, e com o toca discos também.
Nesses equipamentos, há uma possibilidade de equalização praticamente única pelo botão
que, sendo circular, parecido com os que existem nos rádios, são nomeados de balance,
e permitem jogar para qualquer dos lados do aparelho, respectivamente em suas caixas
de som, os canais que ali foram mixados. Na década de 1970, a sofisticação dos meios
tecnológicos de gravação e mixagem trouxeram para a indústria fonográfica o surgimento de
uma série de álbuns que avançariam para a gravação em 8 canais. Os estúdios analógicos
se especializam na captação sonora e produzem discos, gravados através de uma mixagem
(hoje defasada) classificada como low-tech, campos radicalmente distintos na faixa gravada.
É dessa distinção de campos que se abstrai Sal sem carne - a intencionalidade da obra
requer a quebra de limites do campo de escuta, que em si mesmos estão emaranhados numa
rede sonora.
Essa interpenetração de vozes despreza ou subverte o próprio artefato disco. Nesse
sentido, a ordem a qual um disco geralmente obedece é em uma subdivisão estabelecida
para que a partir de um intervalo mínimo se escute nova gravação. Por isso, o caso de Sal
sem carne é outro: uma massa inteira, sonora e ruidosa se desalinha pelo objeto disco. E,
em sua realização, o trabalho dá voz à causa indígena, a complexidade das relações, e o faz
lançando mão de uma ferramenta da sociedade industrializada, o disco. Nessa apropriação,
faz falar a voz do gueto.
No Sal sem carne, a ideia era fazer um material com esses índios, que ainda se encontravam no interior
de Goiás, sul do Maranhão e leste do Pará. Em algum lugarejo, sempre havia um remanescente desse
massacre, bêbado pelas ruas. Eu entrevistei um índio xerente que era uma criança na época em que
houve esse massacre. Ele era cego e na época estava em Goiânia, vendendo bilhetes de loteria. Zé Nem
era o nome dele. Ele está em Sal sem carne. (Cildo Meireles, apud SCOVINO, 2009, p. 253)
150
Território vivencial - Sal sem carne - Angela Maria Grando Bezerra
Sal sem carne parte dessas premissas e, na escolha dos brancos, dos índios, da
pesquisa sobre os massacres (foram dois),7 das entrevistas específicas e diversas nos
arredores de Goiás, o artista cria uma cartografia particular da gradual perda de entendimento
e comunicação que funciona sob a égide do que genericamente é considerado civilização.
O tratamento dado à situação sonora reflete, em espelhamento de significados paralelos,
o choque entre os que estão fora do gueto e oprimem e os que de dentro dele fazem o
conhecimento circular, agregam informações - as suas próprias e aquelas que convêm à
vontade do opressor. Na reflexão de Meireles parece concentrar-se o problema lógico dessas
relações:
[...] o Brasil dos índios corresponderia a um estado de harmonia, que foi rompido com a chegada do
colonizador, estabelecendo-se uma situação de gueto. Pois o opressor só conhece a sua vontade,
enquanto o oprimido conhece, evidentemente, a sua própria vontade, mas é obrigado a conhecer também
a vontade do opressor. (Cildo Meireles, 2010, p.158)8
O artefato disco atua como questionador do contraponto entre culturas, uma vez que o
trabalho mostra uma perda de fronteiras entre elas quando mixa narrativas diversas advindas
de culturas distintas. Assim, mostra o gueto pelo mesmo processo que antes o alijava, ao
passo que faz os discursos diversos se assemelharem a ele em potência sonora. O disco é
corolário do trabalho, e numa época em que a indústria fonográfica estava em ascensão e se
destinava em muito à manutenção de formas de escuta lançadas e endossadas pela grande
mídia, que estabelecia leis de mercado para tais experiências. À escuta de Sal sem carne
não se trata de abordar o disco com a mesma escuta estabelecida pela nascente indústria
da década de 1970, que se impunha na mão invisível9 de uma economia (a alegoria da “mão
invisível” funcionaria como elemento de equilíbrio dos mercados). A própria noção da escuta
Sal sem carne, deve ser sentida como algo performático e mutante, como elaboração mental
e forma panorâmica utilizando um objeto já ícone do consumo sonoro, o disco, através do
qual insere e alimenta a voz do gueto.
Outrossim, a intencionalidade da obra evoca a uma escuta atenta, uma experiência
armazenada do pensar, e subleva naquele que com ela interage a guardar consigo o pulso
forte de Sal sem carne. Sem dúvida, não podemos fazer abstração do fato que Meireles
interroga um território ao qual seu pai dedicou sua vida, “indignado pelas atrocidades dos
7
Uma ação movida pelo pai de Cildo Meireles resultou no primeiro caso de condenação por assassinato de indígenas no Brasil.
Quando, anos mais tarde, Cildo Meireles fez a tentativa de entrevistar índios remanescente daquele massacre e que habitavam
nesse Parque Nacional, criado por seu pai, ele foi impedido. “Com esta restrição, realiza, então, seu trabalho com uma comunidade
próxima, uma espécie de ‘aldeia-rural-periférica-temporária’. Seus entrevistados são, em suas próprias palavras, ‘nem brancos,
nem índios, mas todos miseráveis’. Para eles, explica Cildo, ‘eu fazia duas perguntas: Você é um índio? Você sabe o que é um
índio? E eles respondiam que o índio comia carne sem sal e essa resposta aparecia como um grande diferenciador”.
No Catálogo da Exposição, no Ivam Centre del Carme a citação está em espanhol: [...] el Brasil de los indios correspondería al
estado de armonía primera, que fui quebrado con la llegada del colonizador, estabeleciéndose una situación de gueto. Pero el
opressor solamente conoce su própria voluntad, mientras que el oprimido, además de conocer evidentemente la suya, está forzado
a conocer también la voluntad del opressor. (MEIRELES, 2010, p.158).
8
Mão invisível, conceito criado pelo filósofo e economista escocês Adam Smith [1723-1790], em defesa do liberalismo, considerado
mentor da economia moderna, e editada no livro A riqueza das nações, título original: Inquiry into the nature and caufes of the
wealth of nations [1776].
9
151
vários massacres impostos aos índios indefesos diante do poder de destruição dos fazendeiros
locais”. Em suas próprias palavras:
[...] eu tinha relido um dossiê que o meu pai deixou, sobre o massacre dos Krahôs, no Bico do Papagaio,
uma região situada entre os Estados de Goiás, Pará e Maranhão. Aquele pedaço de terra era muito
cobiçado. Nesse dossiê consta o primeiro telegrama, reportando esse massacre, escrito por um pastor
maranhense para o Serviço de proteção dos Índios. Por conta disso, meu pai foi mandado para investigar e
acabou descobrindo que não era um massacre, mas dois. Ele se envolveu nessa causa e de certa maneira,
isso custou sua carreira, porque teve muitos problemas. (Cildo Meireles, apud SCOVINO, 2009, p. 253).
Em objetiva crítica ao massacre da civilização sobre ela mesma, mas em vetor oposto
falha à compreensão da escuta, Sal sem carne é em si mesma essa metalinguagem.
Talvez, um trabalho em que a carne e o sal estão postos para rasgar o velamento etéreo e
insípido do mundo, a desagregação da cultura indígena. Na elaboração desse trabalho, ao
entrevistar “nem brancos, nem índios, mas todos miseráveis”, explica Cildo: “[...] eu fazia
duas perguntas: Você é um índio? Você sabe o que é um índio? Eles respondiam que o
índio comia carne sem sal e essa resposta aparecia como um grande diferenciador’”.10 Esse
perder-se de seu referencial simbólico remete necessariamente ao confronto com o opressor,
com a impossível escuta do mundo contemporâneo; ao mesmo tempo aponta o desencontro
da civilidade branca com a possibilidade real de escutar.
Certamente, no emaranhamento de vozes e sons do disco, pensamos no campo sonoro
anunciado antes por John Cage, ao dizer que a distinção entre sons e barulhos empobrece
a escuta. Mais que um pensamento é uma pesquisa que cruza com sua também atuação
nas artes plásticas, na medida em que seu trabalho com a sonoridade não se limita ao
campo musical. Vai além e passa do campo musical ao plástico e à performance, ao mesmo
tempo afeita à experimentação do ambiente e do que tange à percepção das sonoridades.
A profecia cageana é uma escuta livre e que não é determinada previamente, mas acontece
no encontro. John Cage é um dos elos que ligam as artes visuais à sonoridade, mesmo à
composição concreta e ao experimentalismo da arte conceitual. A indeterminação proposta
por ele é um efeito de cara importância para artistas como Cildo Meireles, cujos trabalhos
pensados e projetados criam sua topologia sonora. Sobre as experimentações de John Cage,
Francis Bayer investiga seu processo libertário aonde ‘o acaso’ compõe determinado espaço
sonoro, e é esse caminho um teor para se chegar à sonoridade plástica de Sal sem carne. A
rigor, diz Bayer:
“Em relação ao problema do espaço sonoro, não encontramos em John Cage nem vontade de construção
rigorosa, nem tentativa de desconstrução de qualquer ordem espacial, mas sim o consentimento ao livre
exercício de um princípio de não-construção ou de não-composição que permite a coexistência de todas
as ocorrências possíveis e de todos os diferentes modos de espacialidades imagináveis”. [tradução nossa].
(BAYER, 1981, p.187)11
10
Cildo Meireles, apud FREIRE, C. “Contexturas: Sobre artistas e/ou antropólogos”, in catálogo da Bienal de SP.
«Par rapport au problème de l’espace sonore, nous ne trouverons chez John Cage ni volonté de construction rigoureuse, ni
tentative de désconstruction d’un ordre spatial quelconque, mais bien plutôt le consentement au libre jeu d’un principe de non-
11
152
Território vivencial - Sal sem carne - Angela Maria Grando Bezerra
Dos ecos dessa possibilidade de diferentes modos de espacialidade é possível
escutar Sal sem carne - escuta difusa de massa sonora que não aceita a fronteira que
separa tangências. O emaranhamento que o trabalho provoca cria uma densidade sonora
as vezes caótica, e nesta gradual perda de fluidez da audição reverbera a fragmentação
cultural exposta. Pelo repertório sonoro concreto utilizado, no qual a interferência do ruído
é aguardada, o processo de criação de Sal sem carne difere, certamente, de práticas mais
aleatórias da composição cageana.
Ocorre que, dos trabalhos de Cildo Meireles que utilizam som, Sal sem carne é dos
que são editados. O artista fez uma edição, escolheu canais a serem utilizados, estabeleceu
uma rota de procedimentos e, ao contrário de John Cage, nada há de aleatório, embora sua
gravação explore ruídos e barulhos afeitos à realidade. Na massa sonora de Sal sem carne,
uma vez que ruídos, barulhos, vozes, confabulam em mixagem, é o corpo de uma escuta
(com a constituição de sua ordem ética) que concebe a instável relação entre humanos e
intuitivamente revela ações predadoras aos povos ameríndios ao longo dos séculos. Em sua
aparente união de pedaços de campos díspares essa edição sonora requer uma escuta que
deve entrar em sintonia com uma construção estrutural proposta, uma vez que a obra conflui
elementos sonoros promovendo um anti-amálgama e insiste nisso em uma mesma faixa, que
como um relato impossível de ser escutado cria ou recria seu próprio caminho a partir da
escuta que na medida do possível separa, e mais adiante o perde no ouvido.
Segundo John Cage, a forma de escutar estaria por fim a modificar a “interação
social, a intimidade apolítica das pessoas” (John Cage, apud FERREIRA, COTRIM, 2006, p.
337). Também nesse ponto, Sal sem carne faz um breve diálogo com o conceito de escuta
de John Cage, no que abre possibilidades tanto para que algum convívio ocorra, quanto
para aspectos de equilíbrio formal e plástico, questões que vão promover desdobramentos
sociais, filosóficos, e não a simples apologia do ruído. Mesmo utilizando o artefato vinil, e
este tenha em si mesmo uma resolução estética de inegável e evidente atração visual, o
que redimensiona a experimentação com a obra é a densidade de escuta envolvendo o
espectador com a realização poética. Nesta, frui o imaginário político e estético que retorna
à questão da constituição do gueto, e a fala do artista: “Nascer é perder-se”.12
É pela escuta que se compreende e redimensiona em Sal sem carne, em seu antiamálgama sonoro, o que ecoa de histórias, fantasmas de gerações, esquecimentos, misérias,
narrativas que nos falam e nos convidam a parar e pensar. E nos conduzem a outras falas
como aquela do xamã yanomami Davi Kopenawa que nos conta em seu livro, La chute du
ciel, sobre a cosmogonia que rege as crenças de seu povo - fundada em intricada e instável
relação entre humanos, floresta e espíritos - e narra as ameaças a esses fundamentos de vida
devido a apropriação patrimonial das terras, entre outras. Assim também é o pouco acalanto
construction ou de non-composition que permet la coexistence de toutes les occurences possibles et de tous les différents modes
de spatialité enviasageables.» (BAYER, 1981, p. 187).
12
FERNANDES, J. (ed.). Cildo Meireles, Porto: Fundação SERRAVES; São Paulo: CosacNaify, 2013, p.131.
153
dos homens, das gentes que erram pelo mundo, privados do território físico e simbólico ao
qual pertencem, para quem os artistas interagem e deixam algo de si. Essa voz que em Sal
sem carne falará desde que haja para quem: é de certo modo entrar no gueto, e na medida
em que o saber sobre Sal sem carne de algum modo se firma nessa escuta, é também sair
dele, desde que se lhe tenha escutado. Ainda mais que a sonoridade emitida, ou mesmo
o espaço que ela cria em sua ambiência, é da escuta que se produz eco de signos que à
surdez não pode constranger, mas que aos que tem ouvidos, ecoa, por vezes como saído
de um rosto lívido inesperado, ou do escuro dos rincões do Brasil que o artista não nega em
sua condição de herdeiro dele, e que também para ele parece aprender a deixar algo - que
tempera e salga a superfície do mundo.
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154
Apontamentos sobre Beau Geste Press e sua contribuição nos anos 1970 - Paulo Silveira
Apontamentos sobre Beau Geste Press e sua contribuição nos anos 1970
PauloSilveira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Resumo: Esta comunicação faz apontamentos sobre a história de Beau Geste Press,
editora independente e alternativa sediada em Cullompton, Devon, na Inglaterra, na
primeira metade dos anos 1970, voltada principalmente para publicações de artistas, de
efêmeros gráficos a livros, e gerida pelos artistas mexicanos Felipe Ehrenberg e Martha
Hellion, pelo artista e historiador da arte inglês David Mayor e por seu círculo de amigos
e colaboradores.
Palavras-chave: Beau Geste Press; Felipe Ehrenberg; Martha Hellion; David Mayor;
Publicações de artistas.
Abstract: This paper presets notes on the history of Beau Geste Press, an independent
and alternative publishing house based in Cullompton, Devon, England, in the first half
of the 1970s, mainly producing artists’ publications, from ephemera to books, managed
by Mexican artists Felipe Ehrenberg and Martha Hellion, British artist and art historian
David Mayor, and their circle of friends and collaborators.
Keywords: Beau Geste Press; Felipe Ehrenberg; Martha Hellion; David Mayor; artists’
publications.
Beau Geste Press foi uma editora alternativa e independente com sede na Inglaterra,
atuante de 1971 a 1974 (com algumas atividades prévias e posteriores), voltada principalmente
para publicações de artistas. Possuiu caráter associativo ou colaborativo, constituído pelo
círculo de afinidades entre os seus administradores e os autores ou organizadores dos
projetos em andamento, testando a ideia de coletivo, porém mantendo as identidades dos
participantes.
O grupo teve sua existência motivada em 1971 a partir dos mexicanos Felipe Ehrenberg
(1943) e Martha Hellion (1937), os ingleses David Mayor (1948) e Chris Welch e outros de
países diversos. Ehrenberg tinha formação em pintura e escultura e atuação experimental,
realizara algumas exposições individuais e participara de cerca de vinte coletivas, além de
colaborar com publicações, como o periódico El Corno Emplumado/The Plummed Horn.
Hellion, que quando mais jovem estudara piano e dança, era egressa da Escuela Nacional de
Arquitetura da UNAM, Universidad Nacional Autónoma de México (e em Londres faria estudos
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de design e artes visuais no Goldsmith College, 1969, e de artes gráficas no Sir John Cass
College of Art, 1971-72). Pode-se dizer que a circunstância histórica mais “extra-pessoal”
de sua fundação pode estar nos conflitos sociais do México, aumentados antes dos Jogos
Olímpicos de 1968, levando muitos mexicanos a abandonarem o país, temendo a repressão
policial direta ou circunstâncias socioeconômicas de exceção. Em busca de renovação de
perspectivas familiares e artísticas, Ehrenberg e Hellion, então casados, saíram de seu país
em autoexílio após o chamado Massacre de Tlatelolco (2 de outubro de 1968), reação militar
grotesca para conter manifestações estudantis, resultando em mortos e feridos.
Este período foi de êxodo: Liliana Porter e Luis Camnitzer, Leandro Katz, Luis Felipe Noé da Argentina,
o artista colombiano Leonel Góngora, Felipe Ehrenberg, Elena Jordana, todos foram para Nova York; e
mais tarde os artistas brasileiros Rubens Gerschman, Ana Maria Maiolino e Helio Oiticica, só para citar
alguns. Na década de 1970, a Inglaterra tornou-se o lugar para estar. O British Arts Council apoiava todos
os tipos de atividades culturais, nas artes visuais, música, performance, filme, vídeo e teatro; a literatura da
América Latina começou a ser incluída nos programas da universidade. Esses eventos trouxeram um fluxo
de artistas, levando a novas colaborações e a projetos editoriais. (HELLION, s. d.).
Ainda em 1968 Ehrenberg e Hellion viajaram para Londres com seus filhos pequenos
Yaël e Matthías. Os primeiros momentos seriam difíceis, com o casal tendo que manter a polícia
inglesa informada semanalmente de sua condição durante dois anos, já que a permanência
indeterminada não constituiria um caso específico de legalidade por turismo, bolsa de estudos
ou mesmo asilo político, e sim por “circunstâncias atenuantes” (INTERVIEW, 2010). As
atividades prosseguiriam adaptadas ao novo país ou às concepções de si mesmos; Ehrenberg
abandonaria a pintura, assumindo “sua própria presença como obra de arte” (MEDINA, 2014,
p. 151), aproximando-se ainda mais das práticas e simpatizantes do movimento Fluxus. Em
Islington, por exemplo, Ehrenberg executou o projeto A stroll in July, “um passeio em julho”,
apresentado como uma “escultura criada no espaço e tempo do artista explorando a cidade”
(idem, p. 171). Igualmente sobre a cidade é It’s a sort of disease part II/La Poubelle ou La
Poubelle: It’s a kind of disease, 1970, filme de 16 minutos registrando a presença invasora
de sacos de lixo em bairros distintos, durante greve dos lixeiros.1 Foi em Londres, em uma
exibição do projeto de Ehrenberg e Richard Kriesche, The 7th-day chicken, sobre o lixo e a
cidade (que inclui La Poubelle), na Sigi Krauss Gallery, que o casal conheceu Mayor, jovem
historiador da arte que seguia um mestrado na universidade de Exeter e trabalhava em um
centro de documentação (CONWELL, 2010, p. 190).
Devido a dificuldades em Islington, como inconformidade com o preconceito étnico, a
família decidiu se mudar. Em 1971 se estabeleceriam em Cullompton, Devon, alegadamente
porque “era a parte mais quente da ilha” (Ehrenberg, em INTERVIEW, 2010), em uma antiga
casa de campo de Langford Court South, constituindo a partir daí uma comunidade de artistas.
Com os amigos Chris Welch, artista gráfico e cartunista, e sua companheira Madeleine
1
O filme pode ser visto no sítio da Tate, em http://www.tate.org.uk/context-comment/video/felipe-ehrenberg-la-poubelle, com o
título La Poubelle, 1970, 16min48seg.
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Apontamentos sobre Beau Geste Press e sua contribuição nos anos 1970 - Paulo Silveira
Gallard, primeiros a compartilhar a moradia com os Ehrenberg, e logo após, embora com
contatos anteriores, Mayor, formaram Beau Geste Press, uma “comunidade de duplicadores,
impressores e artesãos”, como prefere Ehrenberg (em CONWELL, 2010, p. 183, e em outras
declarações, como em INTERVIEW, 2010, com a ressalva: “Não, nós não éramos hippies.
Nós éramos artesãos. [...] Nós éramos artistas, o que é uma coisa diferente de hippies. [...]
Os artistas são parte de uma antiga tradição de servir à comunidade”). Todos viviam juntos na
mesma casa, todos ali trabalhavam em comum.
A comunidade BGP cresceria. Em 1973 juntaram-se Terry Wright (impressor), sua
esposa Pat Wright e a artista fluxus japonesa Takako Saito. Usaram meios de impressão
diversos, inclusive mimeógrafo, assim como papel e material barato. São reconhecidos pela
importância que tiveram para o grupo: a pulsão produtiva e colaborativa de Ehrenberg; a
hospitalidade e a capacidade organizacional de Hellion; o gosto missivista de Mayor,
fundamental para o reconhecimento internacional; a eficiência e o conhecimento técnico de
Wright; e a criatividade e integração de Saito. Welch e Gallard teriam participação muito curta,
saindo do grupo no final de 1971. Eventualmente outros participariam dessa comunidade
de criativos que trabalhavam e moravam sob o mesmo teto, mantendo a ressalva: “Nós não
éramos uma comuna. Nós éramos uma comunidade, o que é bastante diferente” (INTERVIEW,
2010). Vínculos foram formados entre artistas, poetas, músicos, como Alison Knowles, Allen
Fisher, Carolee Schneemann, Cecilia Vicuña, Claudio Bertoni, Fernando del Paso, Kristian
Gudmundsson, Jaroslav Kozlowsky, Michael Nyman, Mick Gibbs, Opal L. Nations, Paul Joris,
Serjio Pitol e outros. Como relata Hellion, “assim se sucederam uma quantidade de atividades,
entre elas performances, concertos de música ao ar livre e, claro, grandes almoços, jantas e
cafés da manhã em que a convivência era cativante” (declaração pessoal).
Zanna Gilbert, em artigo que discute o conceito de translocal (que acha mais adequado
que transnacional) na atividade em Devon, relativisa a identidade coletiva que o grupo pudesse
ter a partir de uma frase de George Brecht (descrevendo artistas postais como sendo “indivíduos
com algo inominável em comum”), apropriada por Ehrenberg, com o pseudônimo de Kyosan
Bajin, para a primeira revista Schmuck, 1972. Conforme Brecht, “no Fluxus, nunca houve
qualquer tentativa de acordo quanto a objetivos e métodos. Indivíduos com algo inominável
em comum têm simples e naturalmente coalecido para publicar e realizar seu trabalho” (em
Hannah Higgins, Fluxus Experience, 2002, p. 69).
Ter algo “inominável em comum” não significa uma ideologia partilhada com um conjunto de princípios
fixos baseados em grandes narrativas, mas em vez disso denotava um grupo de artistas que estavam
comprometidos com a experimentação artística e que se posicionavam contra o estado e o mercado de
arte. (GILBERT, 2002, p. 48).
Em Devon nem tudo foi celebração. Problemas de convivência foram notados, sobretudo
durante o período da participação de Vicuña. O grupo teria se sentido deprimido e o ambiente
mudara. Incomodada (ou desiludida) com a desagregação em curso e com incompatibilidades
157
difíceis de superar, Hellion decidiu partir antes de Ehrenberg. Ela viajaria para Bruxelas e
Amsterdã, onde prosseguiria carreira, e ele, junto com os filhos, para o México, de onde
pensava seguir trabalhando com Mayor, que continuaria mantendo o selo BGP até 1976,
repartido entre os dois lados do Atlântico. Saito iria para a Italia e Terry Wright seguiria em
Somerset, na Grã-Bretanha, com a Wright-Matthews Press.
O nome Beau Geste tem sua origem no mimeógrafo que utilizavam, comprado
usado em Londres em 1969, por 50 libras (MELLADO, 2005). Além da referência literária e
cinematográfica bastante conhecidas, Beau Geste é a redução de beautiful Gestetner.
Nós imprimimos muito com uma duplicadora, que de fato é uma máquina muito versátil se você sabe como
usar. Michel Nyman produziu seu primeiro livro, com as próprias mãos, usando uma duplicadora Gestetner.
[...] Os gestores da Gestetner ficaram totalmente emocionados com as coisas que nós produzíamos. Eles
mandaram o seu pessoal nos fotografar, nos mandaram material gratuito. [...] Nós então compramos essa
fantástica prensa alemã, uma MAN Roland, construída em 1948. (INTERVIEW, 2010).
Os mimeógrafos constituem um capítulo à parte das lutas contra as ditaduras americanas,
apesar de pouco usados pelos artistas. É possível que sejam entendidos como por demais
precários, dadas as suas limitações. Nada disso, entretanto, autoriza o esquecimento de sua
participação no campo artístico, nem da ação de artistas no campo comunicacional através de
seus recursos. Ao contrário, realizaram um serviço eficaz, lembrado por Justo Pastor Mellado.
No México, para evitar a mordaça que impedia as imprensas de oferecer seus serviços aos opositores, as
bases recorrem ao mimeógrafo para imprimir e fazer circular a palavra reprimida [...]. Dita produção alcança
uma importância tal que a polícia reprime a propriedade dos mimeógrafos em mãos de particulares. Berta
Navarro, amiga de Felipe Ehrenberg, é presa por transportar um mimeógrafo no seu carro. [...] Contudo,
este suporte de trabalho gráfico [...] se converterá em uma ferramenta fundamental para trabalhos de
intervenção gráfica que se afastarão da tradição da gravura. A tecnologia inferior do mimeógrafo revela
suas capacidades somente a partir de seu emprego pelos artistas.
Oficialmente a primeira produção de Beau Geste em livro foi o catálogo da exposição
itinerante Fluxshoe, 1972, com 87 artistas ou grupos fluxus daquele momento, concebida
por Ken Friedman (Fluxus West, Califórnia) e Mike Weaver (Exeter University) e coordenada
por Mayor. A mostra incluiu documentos e atividades, com expografia de Hellion e catálogo
com produção de Welsh, Ehrenberg e Terry Wright, e acompanhamento de Pat Wright. O
título nasceu de um erro datilográfico, a troca do “w” de show, exposição, pelo “e” de shoe,
sapato; com humor, a falha foi incorporada. Logo o foco das edições se concentraria nas
concepções de cada integrante ou visitante. Entre os títulos (pelo menos 48, a depender do
que se inclui na conta) estavam Framed pieces, 1972, de Mayor; Sunday/cantata dominical,
1972, e Pussywillow: a journal of conditions, 1973, de Ehrenberg; Parts of a body house book,
1972, de Carolee Schneemann; Sabor a mí, 1973, de Cecilia Vicuña; Looking for poetry =
Tras la poesía e Arguments, 1973, de Ulises Carrión (muito influenciado pela experiência em
Devon); Night visit to The National Gallery, de Endre Tót, 1974, um catálogo com as silhuetas
158
Apontamentos sobre Beau Geste Press e sua contribuição nos anos 1970 - Paulo Silveira
dos quadros e legendas com títulos, artistas, etc.; e muitos outros, com contagem final ainda
não consolidada.2
Em março de 1972 foi lançada a revista Schmuck, pensada como instrumento ágil e
espontâneo, influenciada pelas publicações anuais do Fluxus, inclusive quanto ao humor e
ironia,3 e concebida como antologia artística (assembling magazine) afeita a laços geográficos
(edições centradas em artistas e identidades nacionais). Beneficiou-se das conexões
que os membros traziam, além de contribuir com o espírito de rede consagrado pela arte
postal. Apresentava inserções, dobraduras, carimbos e outras interferências. Ensaiou uma
continuidade após a dissolução do grupo, alcançando oito edições até 1976: Schmuck, n. 1,
1972; Schmuck Iceland, n. 2, 1972; Hungarian Schmuck, n. 3, 1973; Aktual Czechoslovakia
Schmuck, n.4, 1974 (produzida pelo grupo Aktual, liderado por Milan Knízák; com editorial
explicando a separação de BGP, que iria “descentralizar” entre Inglaterra e México); General
Schmuck, n.5, 1974 (montada por Mayor e Ehrenberg); French Schmuck, n.6, 1975; Teutonic
Schmuck, n.7, 1975; e Japanese Schmuck, n.8, 1976. As revistas também podiam trazer
pequenas publicações insertadas, como Me Ben I sign, de Ben Vautier (6) ou Art Impressions,
de Klaus Groh (7).
Foram idealizadas, e nunca realizadas, edições da América Latina e de Los Angeles. E
este talvez possa ser considerado um débito irreparável, dada a atenção que estas “regiões”
receberiam nas décadas seguintes. Para a edição latino-americana chegou a ser lançada uma
convocatória, com coleta de material em 1973, mas em 1974 Ehrenberg retornaria ao México.
A revista seria lançada sob o selo de uma identidade nascente, que unia seu nome com seu
aposto, “Libro Acción Libre”, quase um bordão. Apesar da não publicação da Schmuck latinoamericana, em 1978 Ehrenberg organizou com o material recolhido a mostra Testimonios de
Latinoamérica, no Museo Carrillo Gil, na Cidade do México, e uma publicação em duas partes
no suplemento semanal La Semana de Bellas Artes, do Instituto Nacional de Bellas Artes, com
participações de nomes como Antonio Caro, Cildo Meireles, Clemente Padín, Victor Muñoz,
Tunga, Regina Silveira, Harry Gamboa, Horacio Zabala, Ulises Carrión, Gabriel García
Márquez e outros, e capa com trabalho de Waltercio Caldas, uma mão segurando dados. Em
seu texto, Ehrenberg enfatiza o teor político da proposta e sua validade não diminuída pelo
tempo.
[...] o denominador comum de todos esses trabalhos é a separação radical dos cânones da ortodoxia que
até agora têm dominado a produção plástica e literária formal; ou seja, não são produções “belas”. Em
muitos casos, essa mesma rejeição do “belo” pelos artistas permitiu-lhes formular propostas – tanto na
2
Os cálculos de Mayor e Ehrenberg divergem, como apontado em MACÍAS; ISLAS, 2015, p. 22, nota 4. Sobre a produção de
Ehrenberg em geral e de BGP em particular, ver a pesquisa de Mario Albert Islas Flores para o mestrado em Produção Editorial
da Universidad Autónoma del Estado de Morelos, no México, intitulada Emitir desde otra orilla: la propuesta editorial de Felipe
Ehrenberg, 2015. Para a pesquisa, Islas publicou pelo seu selo independente, Ediciones del Paquidermo, reedições em fac-símile
de seis livros publicados pela BGP entre 1971 e 1973, especialmente os mais gráficos (não foram realizadas cópias de trabalhos
com complexidades específicas). A pesquisa contou com a colaboração de Vania Macías Osorno, mestre em História da Arte pela
UNAM, pesquisadora das atividades de Ehrenberg na Grã-Bretanha.
A palavra schmuck tem significado frequentemente pejorativo: originalmente pênis em iídiche, em inglês americano significa tolo,
estúpido, ou desagradável, detestável
3
159
forma como no conteúdo – contra a dependência cultural. Assim, todos os trabalhos incorporam um tipo
de comunicação visual alternativa. Possivelmente os únicos organismos latino-americanos que tenham
reconhecido este tipo de produção tenham sido o Centro de Arte y Comunicación (CAYC), de Buenos Aires,
e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, graças à visão de seus respectivos
titulares, Jorge Gluzberg, na Argentina, e Walter Zanini, no Brasil.4
Na mesma publicação, Néstor García Canclini reitera a importância de BGP,
desconhecida do grande público.
Esta distribuição, que geralmente limita o preço das obras, bem como a sua espetacularidade, abre, por
outro lado, novas possibilidades na estrutura de sua linguagem, na comunicação artista-público, na ação
sobre problemas sociais que a arte comercial desconhece. O desenvolvimento desta corrente alternativa
na última década modificou o panorama cultural da América Latina. O crítico ou o historiador que apenas
leve em conta o que acontece nas galerias e museus, ou o que os grandes jornais e revistas informam,
terá uma imagem mutilada.5
E prossegue:
No entanto, quase todos estes trabalhos fogem das galerias, se desinteressam do circuito comercial e
poderíamos dizer que eles foram feitos contra os museus. Pelo menos contra o que eles representam
como lugares inventados pela burguesia para preservar obras que ela mesma consagrou. [...] E eles terão
que mudar muito mais para receber uma arte cuja matéria é cada vez menos física e mais social, que
surge não da modelagem ou da pintura na intimidade do ateliê, mas sim da transformação das estruturas
comunicacionais. (Ibidem.)
Em seu país, Ehrenberg tornou-se um notável estimulador da criatividade, ministrando
oficinas, apoiando jovens, fomentando editoras independentes e assumindo o posto de um
dos propulsores da arte mexicana. Lara destaca sua presença em aulas livres ministradas em
1976 na Escola Nacional de Artes Visuais, utilizando um mimeógrafo artesanal, de madeira,
por ele chamado de Pinocchio, com métodos testados em oficinas anteriores, em seminários
que teriam forte influência para as primeiras imprensas conduzidas por grupos ou coletivos.
Participou de inúmeras exposições internacionais. Viajou muito, divulgando a produção de
seu país e a latino-americana. Morou no Brasil de 2001 a 2014, onde foi adido cultural em
São Paulo, de 2001 a 2006. E tem o gosto pela impressão literalmente gravado na pele:
sobre a mão esquerda fez tatuar suas falanges pela estadunidense Ruth Marten durante a
X Bienal de Jovens de Paris uma Homenagem vitalícia a JGP (José Guadalupe Posada),
descrita como “nanquim sobre pele humana, 19,5 x 23 x 5,5 cm”, necessária para a sua real
exposição em galeria da Cidade do México (EHRENBERG, 1998).
Após a descentralização de BGP, Hellion esteve na Holanda, onde realizou estudos
como visitante da Jan Van Eyck Akademie, em Maastricht, de 1974 a 1976. Publicou livros,
4
Acrescente-se que em 1976 a Pinacoteca do Estado de São Paulo realizou a exposição Ehrenberg: obra mimeográfica y
publicaciones de Beau Geste Press, com curadoria de Aracy Amaral, diretora da instituição de 1975 a 1979.
5
Na citação de García Canclini, assim como na de Ehrenberg, a tradução para o português foi feita a partir dos originais em
espanhol, levando em conta as suas versões em inglês, presentes na mesma publicação, já que possuem algumas diferenças.
160
Apontamentos sobre Beau Geste Press e sua contribuição nos anos 1970 - Paulo Silveira
colaborou com outras editoras independentes e realizou a expografia de inúmeros eventos,
como para os livros de artista do México na Feira do Livro de Frankfurt (1992) e do Salão do
Livro de Paris (2007), o Museu de Sítio de Monte Albán (1994) e a restauração de vestuário
cênico de Marc Chagall (1992). Segue viajando muito (ri e adjetiva a si mesma como “gata
callejera”, da rua) e reside na Cidade do México. Nos últimos anos tem vindo ao Brasil com
regularidade, para participar de feiras de publicações em São Paulo, tendo feito a curadoria
do espaço de Ulises Carrión na 5ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre.
Quanto a David F. Mayor, após encerrar as atividades de BGP em 1976 ele praticamente
abandonou a arte, dedicando-se sucessivamente à radiestesia (sensibilidade a radiações
emitidas pela natureza, tida como útil, por exemplo, na busca de poços artesianos) e, desde
1978, à acupuntura e à eletroacupuntura, clinicando na Inglaterra, além de ter publicado um
reconhecido livro sobre o tema.
Desde a volta para o México em 1974, Ehrenberg demonstrava consciência que de
alguma forma deveria prosseguir:
[...] o meu interesse tinha muito a ver com romper com a ortodoxia que prevalecia na arte mexicana e
que, em comparação com o que eu tinha sido capaz de fazer na Europa, me constrangia e, eu sentia,
constrangia outros artistas da minha geração. Livros e autopublicação eram minhas únicas respostas. A
maneira de colocar isso em prática, eu sabia, significava nadar contra a corrente” (EHRENBERG et alli,
1985, p. 169).
Apesar de amplamente reconhecida no circuito atento ao avançar de linguagens e
meios, a importância artística e histórica de BGP talvez tenha tido seu melhor momento de
reiteração na cena cultural recente através da antológica exposição La era de la discrepancia:
arte y cultura visual en México 1968-1997, realizada pela UNAM, no Museu Universitário de
Ciencias y Arte, em 2007, com curadoria de Olivier Debroise, Pilar García de Germenos,
Cuauhtémoc Medina e Álvaro Vázquez Mantecón. Oferecia um panorama das tendências de
desacordo estético e político daqueles que insistiram na autocrítica da prática artística dos
anos de crises políticas e sociais, período inaugurado por múltiplos eventos, entre eles os já
mencionados de 1968. A participação na experiência europeia não poderia ser esquecida,
notável que foi.
[...] por debaixo do radar das instituições e da representação artística padrão, um setor de artistas locais
assumiu um papel significativo na formação de circuitos alternativos tecidos em torno da edição, distribuição
e intercâmbio de publicações de artistas. Em uma etapa em que o México era em grande medida uma ilha
endogâmica da periferia artística e cultural, foi na margem que pôde localizar-se a facção mais cosmopolita
da arte local [...]. Ulises Carrión, Martha Hellion e Felipe Ehrenberg, expatriados na Europa em busca de
um território cultural e socialmente menos opressivo, colocaram no mesmo nível a ruptura com os meios
e discursos tradicionais e a invenção e ativação de circuitos de colaboração, comunicação e distribuição
artística, como requisito de independência. A característica desta “margem” foi conceber simultaneamente
o questionamento da natureza da prática artística e a produção de redes e comunidades criativas [...].
(MEDINA, 2014, p. 150).
161
Hellion resume o que o empreendimento que considera “transcontinental” foi como
ideia e prática afetiva e política:
A fundação de BGP não foi somente uma experiência comunitária, foi muito mais do que isso, deveu-se a
um conjunto de circunstâncias que a propiciaram, não só pessoais, mas também a formação de um centro
no qual pudéssemos desenvolver atividades e produzir obra autonomamente para criar uma economia de
autogestão. Somando a isso ideais políticos e de troca. (Declaração, 2015.).
Surgida como alternativa instrumental à circulação do pensamento criativo e da
emoção artística, proposta como modo de viver e conviver, compartilhando contabilidade,
gerenciamento e sonhos, Beau Geste Press é já há algum tempo considerada como uma das
mais importantes editoras independentes dos anos 1970. Suas publicações e documentos
estão disponibilizadas para pesquisas no Getty Research Institute (Los Angeles), Stanford
University Libraries (Palo Alto), Tate Archive (Londres) e Museu Universitário de Arte
Contemporânea da UNAM (Cidade do México). Ehrenberg, Hellion, Mayor e seus amigos
realizaram, no intervalo de tempo em que foi possível a existência de um sonho e no espaço
internacional de uma embaixada autogerida, a quase perfeita comunhão do ato de fazer com
o ato de comunicar, do pessoal com o convivial, do local com o transnacional. Nem mais, nem
menos do que se espera em um ponto de entrelaçamento da rede.
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Acesso em: 16/6/2015.
162
Discursos expositivos e curatoriais
Isolados ou integrados: coleções etnográficas e a modernidade brasileira - Elisa de Souza Martinez
Isolados ou integrados: coleções etnográficas e a modernidade brasileira
Elisa de Souza Martinez
Universidade de Brasília - UnB
Resumo: O passado colonial brasileiro encobre um tabu, explicitado com irreverência
no Manifesto Antropófago, publicado por Oswald de Andrade em 1928. Deste texto, a
expressão Tupi or not tupi tem sido reiteradamente empregada para expressar um confronto
de identidades, e exemplifica o uso de uma linguagem, ou língua, exógena para expressar
o estranhamento, ou o modo de nomear o outro - tupi - em uma perspectiva orientada pelo
olhar colonial moderno. Por outro lado, a vasta produção de objetos dos povos indígenas
do Brasil permanece relegada a coleções etnográficas e arqueológicas. Quando expostos,
sobretudo em eventos destinados a um público internacional, são segregados. Este
trabalho apresenta situações de confronto por meio de expografias e discursos curatoriais
que expõem a arte indígena e as dificuldades para inseri-la na história da arte brasileira.
Palavras-chave: arte indígena; modernismo brasileiro; exposições.
Abstract: The Brazilian colonial past conceals a taboo, explained irreverently in the
Anthropofagite Manifesto, published by Oswald de Andrade in 1928. From this text, the
“Tupi or not Tupi” expression has repeatedly been used to express an identity clash, and
exemplifies the use of an exogenous language to express strangeness, or how to name the
other - Tupi - in a perspective guided by a modern colonial view. On the other hand, the vast
production of objects of indigenous peoples of Brazil remains relegated to ethnographic and
archaeological collections. When exposed, especially in events aimed at an international
audience, are segregated. Our work will present confrontational situations expressed
through expographic and curatorial discourses that expose indigenous art and the difficulties
to insert it in the history of Brazilian art.
Keywords: indigenous art; Brazilian modernism; exhibitions.
A imagem visual que nos ocorre mais espontaneamente quando pensamos em
índios é a de figuras nuas empenachadas. Ao lado dos arcos e flechas, esta
nudez emplumada os tem caracterizado sempre como o atributo mais peculiar.
Darcy Ribeiro e Berta G. Ribeiro1
No livro Arte Plumária dos Índios Kaapor (Figura 1), Darcy Ribeiro e Berta G. Ribeiro
desenvolvem uma reflexão que é produto do estudo e do convívio com os índios que ocupavam
1
Este trabalho tem sido realizado com apoio do Programa de Bolsas de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Nossos
agradecimentos à Fundação Darcy Ribeiro, em cujo acervo se encontra o livro de Darcy Ribeiro e Berta G. Ribeiro pesquisado
para a elaboração deste texto.
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Figura 1 - Arte Plumária dos Índios Kaapor. Darcy Ribeiro e Berta G. Ribeiro. Capa e página com ilustração (Prancha N.13) de um
tukaniwar, de Georgette Dumas.
a orla oriental da floresta amazônica. À época de sua publicação, em 1957, registra-se no livro
que os Ka’apor são “herdeiros e mais insignes detentores atuais da arte plumária que celebrizou
os grupos Tupi”. Até aquela data, haviam mantido um convívio intermitente com representantes
da civilização” por apenas vinte e oito anos, ou seja, aproximadamente desde a época em que
Raimundo Lopes coletou um primeiro conjunto de adornos de penas.2
Embora a mais antiga menção à plumária indígena brasileira esteja na Carta de Pero
Vaz de Caminha, quem descreve o momento em que um marujo de Cabral trocou algumas
carapuças por um “sombreiro de pennas d’aves”, o estudo de Raimundo Lopes3 é, segundo os
autores, o primeiro a abordar os Ka’apor.
A coleção de Raimundo Lopes “que consta de 200 espécimens, obtidos em 1930, dos
índios que afluíram à ilha de Canindeassu, no rio Gurupi, onde se dera a pacificação anos
antes”, assim como a que fora reunida pelos autores, “pouco mais numerosa” e “colhida nas
próprias aldeias”, que se encontra no Museu do Índio (RJ), foi utilizada para a elaboração do
estudo que propõe uma metodologia geral de identificação e distinção de suas qualidades
formais e técnicas singulares. No texto, registram-se as condições e coerções do meio em que
cada objeto é produzido e “embora frequentemente associado a diversas esferas da cultura [...]
jamais perde seu caráter de pura expressão artística”.4
2
Arte Plumária dos Índios Kaapor. Rio de Janeiro, 1957. Foi consultada uma edição especial, patrocinada pelos Laboratórios Silva
Araújo Roussel S.A., executada especialmente para os autores.
3
LOPES, Raimundo. Os Tupis do Gurupy. Ensaio comparativo. Buenos Aires: Universidade Nacional de La Plata, 1934.
4
RIBEIRO, Darcy; RIBEIRO, Berta G.. op. cit. p.19.
166
Isolados ou integrados: coleções etnográficas e a modernidade brasileira - Elisa de Souza Martinez
Em linhas gerais, atribuem-se, no livro, diversas expressões à arte plumária (Figura 2)
que destacam seu elevado valor: “uma das mais altas criações estéticas dos nossos índios”,
“capazes de competir em beleza com os mesmos pássaros”, “criações singulares capazes de
suscitar emoções estéticas”, entre outras.
Além disso, ao aproximar a “procura de beleza”, “elemento imperativo” na produção
das peças, afirma-se que o “caminho para alcança-la é, na maioria dos casos, o dos arranjos
puramente formais, despidos de qualquer intenção simbólica ou figurativa”.5 Assim, objetos
elaborados por meio de uma “linguagem muda de conteúdos manifestos” são colocados em
uma região fronteiriça, entre as artes menores e as belas artes.
A descrição de condições, etapas, habilidades e procedimentos técnicos fundamenta a
afirmação de que “não podemos falar legitimamente de um estilo plumário único dos índios
brasileiros.” Apesar disso, o estudo estabelece alguns critérios para diferenciar atributos que
poderiam auxiliar, em sentido amplo, a distinção de padrões estilísticos que derivariam do
uso recorrente dos mesmos materiais e tecnologias, bem como de um “caráter formalista”
comum.
Figura 2 - À esquerda: detalhe da ilustração (Prancha N.13) de um tukaniwar, de Georgette Dumas (ver Figura 1, à direita). À
direita: página 57 do livro, com fotografia de Darcy Ribeiro e vinheta de José Coelho.
5
Ibid., p.18-19.
167
Ao mesmo tempo em que expõem uma metodologia de estudo e análise, como também
de diferenciação de tipos gerais,6 que lhes permite identificar as particularidades das coleções
de arte plumária dos Kaapor, afirmam:
O que particulariza estes estilos são certas qualidades diacríticas, como modalidades de procedimento
técnico, o uso de certas associações constantes de materiais, determinadas variantes de combinação
cromática ou modos próprios de obter efeitos formais. Mas estes atributos, por si somente, não definem
os estilos plumários. Cada um deles, além de uma combinação peculiar destas qualidades, tem de
próprio uma individualidade de expressão que se imprime em cada peça e se deixa reconhecer quase
fisionomicamente, mas que não se pode descrever com precisão.7
Para situar o grupo ao qual dedicam seu trabalho, os autores diferenciam duas grandes
“famílias estilísticas”, conforme o modo como cada uma associa a plumagem aos tecidos ou
aos trançados. Diferentemente da “família” composta por tribos do norte do Amazonas (Apalaí,
Galibí, Taulipang, Waiwai) cujos adornos montados em “imponentes armações trançadas”
apresentam “efeito majestoso”, bem como dos Borôro, Karajá e Tapirapé que adquirem
“magnífico efeito cênico” ao utilizar penas longas, as criações dos Ka’apor e dos Munduruku
são flexíveis e podem ser aplicadas diretamente ao corpo. Na exaltação de suas qualidades,
“requintes de acabamento” e “procura de efeitos cromáticos sutis”, Darcy e Berta Ribeiro
os definem como objetos de arte: possuem a “delicadeza das filigranas e a sensibilidade
e a virtuosidade das iluminuras”. Ao longo do livro, o vocabulário utilizado para descrever
as “jóias de penas” nos permitem transformá-las em objeto de pura apreciação artística. A
abordagem é fortalecida pela afirmação de que, independentemente de sua origem e uso, a
linguagem utilizada na produção de cada objeto é “muda de conteúdos manifestos”, o que
também facilita seu isolamento na subcategoria “ornamental”.
Ao considerar o caso específico da arte plumária, uma categoria ampla, que abarca
a produção de vários povos aborígenes e se caracteriza pelo uso de matéria prima nativa,
surgem dois problemas. Por um lado, o objeto de arte plumária pertence tradicionalmente
a coleções etnográficas e seu significado neste contexto é marcado por associações entre
suas características formais e condições sócio-ambientais de produção. Por outro lado, pode
também ser visto expressão de uma “vontade de beleza”, como afirmava Darcy Ribeiro, e
dispensar qualquer tipo de menção a funções utilitárias ou mágicas.
A exposição no Metropolitan Museum of Art (Met-NY)
Uma exposição de painéis de arte plumária executados por índios peruanos que teriam
vivido provavelmente entre os séculos VI e XI D.C., foi exibida no Metropolitan Museum of Art
de Nova York entre 16 de setembro de 2013 e 12 de maio de 2014 (Figura 3).
6
No mesmo ano, Berta G. Ribeiro publicou o texto “Bases para uma classificação dos adornos plumários dos índios do Brasil”.
Separata de Arquivos do Museu Nacional. volume XLIII, Rio de Janeiro, 1957.
7
Ibid., p.16-17.
168
Isolados ou integrados: coleções etnográficas e a modernidade brasileira - Elisa de Souza Martinez
Figura 3 - Detalhe da montagem da exposição Feathered Walls: Hangings from Ancient Peru, Metropolitan Museum of Art, New
York, 2014. Foto da autora.
No corredor entre as alas “Arte da África, Oceania e Américas (“Arts of Africa, Oceania,
and the Americas”) e “Arte Moderna e Contemporânea” (Modern and Contemporary Art), foi
instalada uma série de 12 “impressionantes painéis de plumas” (impressive feather panels)
que “se situam entre os trabalhos mais elaborados e raros que tenham sido criados por artistas
têxteis do Peru antes da conquista espanhola em 1532”,8 sendo acompanhada de um texto com
informações sobre seu longínquo contexto de origem e a técnica empregada na sua execução.
No site do museu, a exposição é definida como uma “instalação” (installation), cuja
montagem “pode se aproximar do modo no qual eram expostas em tempos antigos em
cerimônias especiais, cobrindo as paredes de pedra cinzenta e áspera das construções Wari,
às quais recobriam de modo elegante e luxuoso”.9 Dificilmente poderíamos associar as paredes
do museu ao ambiente de ásperas paredes de pedra cinzenta das edificações funerárias do
povo Wari, do Peru pré-colombiano. Tampouco temos elementos para aferir que “elegância e
luxo” (elegance and luxuriousness) tenham sido valorizadas no antigo Peru. De qualquer modo,
o conjunto de painéis expostos com zelo museológico é imponente a ponto de produzir um
ambiente distinto dos espaços da vida comum e efêmera. No museu, os painéis têm status de
8
“(...) rank among the most luxurious and unusual works created by textile artists in Peru prior to the Spanish conquest in 1532 (...).”
“(...) may be close to the way they were displayed in ancient times on special cerimonial occasions, covering the rough, grey stone
walls of Wari structures, and imbuing them with elegance and luxuriousness (…).”
9
169
obras de arte e passam a ser definidos em termos que pressupõem o olhar educado capaz de
identificar no “desenho minimalista” (minimalist design) dos paineis de plumas uma “conexão
impressionante entre a arte da antiguidade das Américas e o modernism”.10
Desse modo, a experiência visual nos aproxima da ecumênica Rothko Chapel e nos
afasta do “contexto original dos locais de sepultamento” (original burial context) descrito no
texto institucional.
Quando o discurso curatorial subverte a visão hegemônica, abrindo um amplo panorama
de relações entre contextos culturais, as fronteiras que separam as identidades dos grupos
implicados parecem menos excludentes. Desse modo, um tema aglutinador, por exemplo,
magia, se sobrepõe à periodização de estilos e às especificidades geográficas.
O que destacamos aqui são os obstáculos, as fronteiras entre departamentos e galerias
de um museu que se associam, comodamente, às coerções da história da arte. O primeiro
problema surge do confronto com a noção de identidade associada à produção artística de um
local, uma região ou um continente. Nesse sentido, para falar de arte brasileira, deixamos de
lado, ou de fora, os objetos que são produzidos pelos povos indígenas.
Coletados como peças de interesse etnográfico e reunidos em coleções estanques,
têm sido expostos em eventos de exaltação da nacionalidade complacente e miscigenada.
Ademais, na análise, resistem a estereótipos e atribuições de função, utilitária ou mágica, que
possam ofuscar suas qualidades plásticas. Nesse contexto, e considerando que no campo da
arte a valorização de características como ineditismo e refinamento técnico têm se tornado
irrelevantes, persiste o isolamento das coleções etnográficas cuja inserção em eventos “de
arte” contribui para apaziguamento de tensões com o sistema da arte.
No caso da arte plumária, além de considerar que o olhar habituado às pinturas de Rothko
e Barnett Newman não procura um significado mágico ou literal, devemos destacar que aquela
pertence a um contexto no qual a universalidade dos códigos artísticos é irrelevante.
Projetos de “contemporaneidade”
Realizada em 1988, a exposição Brazil Projects definida por seus organizadores como
“pioneira”, teve algumas características que se destacam na análise de projetos curatoriais
que apresentam uma visão panorâmica da produção artística brasileira. Pintura, escultura,
fotografia, arquitetura, instalação, performance, televisão e arte plumária foram reunidas em
uma bricolagem para exportação.
Entre as dificuldades que encontramos para compreender o projeto curatorial como uma
totalidade coerente, tanto ao visitar a exposição como ao folhear seu catálogo, destacamos a
marginalização, em ambas as situações, da arte plumária. Na exposição, a montagem ladoa-lado de objetos procedentes de coleções etnográficas e imagens do carnaval carioca em
monitores de TV, produzia um tipo de continuidade entre a arte plumária de grupos indígenas
e adornos utilizados nos desfiles de escolas de samba. Descontextualizados, produtos de
10
“(...) striking visual connection between the art of the ancient Americas and modernism (…).”
170
Isolados ou integrados: coleções etnográficas e a modernidade brasileira - Elisa de Souza Martinez
sistemas culturais sem qualquer tipo de afinidade eram reunidos em um único evento e geravam
um outro espetáculo, desconcertante.
A exposição, distribuída nos três andares do P. S. 1 - The Institute for Art and Urban
Resources, Inc., em New York, foi realizada de 17 de abril a 12 de junho de 1988, foi intitulada
“Uma exposição de pintura, escultura, fotografia, arquitetura, instalação, performance, televisão,
carnaval e arte plumária brasileira” (An exhibition of contemporary Brazilian painting, sculpture,
photography, architecture, installation, performance, television, carnival and feather art). No
Catálogo Geral, publicado pelas instituições organizadoras: P. S. 1 e Sociedade Cultural Arte
Brasil, os textos de apresentação situam perspectivas e objetivos diferentes para a realização do
ambicioso projeto. Se por um lado a Presidente da instituição brasileira, Carmen Elisa Madlener
dos Santos, defendia o intercâmbio cultural como “o único modo de retirar nossa expressão
artística do anonimato” (the only way of lifting our artistic expression out of its anonymity),
Alanna Heiss, Presidente e Diretora Executiva de P. S. 1, vinculava a exposição a outros
eventos realizados anteriormente, nos quais o objetivo era alcançar “resultados imprevisíveis”
(unpredictable results).
No texto de apresentação da curadoria de Artes Visuais, Frederico Morais, definiu os oito
artistas selecionados (Lygia Clark, Hélio Oiticica, Franz Krajcberg, Antonio Dias, Cildo Meireles,
Ivens Machado , Guto Lacaz e Adir Sodré) como “um pequeno grupo, exemplo suficientemente
forte e impressionante de nossa contemporaneidade”11 Embora afirmasse que não estava
preocupado “em estabelecer uma definição da identidade brasileira” (with establishing a
definition of the Brazilian identity), caracterizou suas escolhas como as que lhe permitiam
“absorver e penetrar algumas das tendências fundamentais da arte brasileira” (absorb and
penetrate some of the fundamental trends of Brazilian art). Para tanto, a característica comum
a todas as obras, era, segundo Morais, “além de uma linguagem completamente internacional
e contemporânea, a qualidade e a originalidade de suas invenções”.12
Para apresentar ao público norte-americano o “progresso criativo” (creative progress)
enaltecido por Morais, a arte plumária foi excluída do catálogo da exposição. Sua presença
parece ter sido considerada irrelevante.
Apesar das intenções, o grupo de artistas proposto por Morais expôs as limitações do
termo “contemporaneidade” (contemporaneousness) usado para qualificar tanto o trabalho de
Helio Oiticica quando o de Adir Sodré, sendo este “o único que vive fora to eixo Rio-São Paulo”
(the only one who live outside the Rio-São Paulo stretch). Enquanto o primeiro “questionava
e refletia sobre a arte internacional e, em seguida, ousou reformular os conceitos e métodos
utilizados pela vanguarda do século XX”,13 o segundo é o devorador de “mitos de sociedades
de consumo planetárias, bem como da arte em si mesma que penetra até mesmo nos confins
11
“(...) a small group but sufficiently strong and impressive example of our contemporaneousness (...).”
“(...) in addition to a completely international and contemporary artistic language, is the quality and originality of their own
inventions (...).”
12
“(...) questioned and reflected on international art and subsequently dared to reformulate the concepts and methods used by the
20th Century avant-garde(...).”
13
171
da geografia brasileira”.14 Dos confins do mundo, devora-se tudo com “um apetite voraz e
antropófago” (a voracious and anthropophagous appetite), como pode ser visto em Lunch on
the Grass VII (1988), uma paródia de Déjeuner sur l’herbe (1863) de Édouard Manet.
Se o que se apresentou ao público norte-americano foi o “prograsso criativo” (creative
progress) enaltecido por Morais, como apreciar a arte plumária, excluída do catálogo do evento,
senão à margem da representação oficial? Ainda que os aspectos simbólicos da antropofagia
tenham sido destacados pelo grupo que denominamos primeira geração de modernistas
brasileiros, sua ironia é ignorada no momento em que é citada como se fosse um movimento
organizado ou estilo oficial brasileiro. Sua institucionalização é enganosa. O antropófago
modernista é um meio-outro, sem plumas: seu apetite selvagem motiva a assimilação de um
outro, com quem trava uma interminável negociação de identidades.
Antes de Lévi-Strauss, Michel de Montaige15 denunciou o modo no qual o binômio
canibal-animal configura no imaginário europeu os contornos de um outro, distante, ameaçador,
selvagem e não-humano. A bestialidade do canibal emplumado serviu de justificativa para seu
extermínio ao mesmo tempo em que objetos exóticos eram amontoados em gabinetes de
colecionadores do Velho Mundo.
Referências Bibliográficas:
HERKENHOFF, Paulo. A cor no modernism brasileiro - a navegação com muitas bússolas. In: FUNDAÇÃO BIENAL
DE SÃO PAULO. XXIV Bienal de São Paulo: núcleo histórico - antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo: A
Fundação, 1998.
P. S. 1, THE INSTITUTE FOR ART AND URBAN RESOURCES e SOCIEDADE CULTURAL ARTE BRASIL. Brasil Projects:
An exhibition of contemporary Brazilian painting, sculpture, photography, architecture, installation, performance, television,
carnival and feather art. New York, 1988.
RIBEIRO, Darcy e RIBEIRO, Berta G. Arte Plumária dos Índios Kaapor. Rio de Janeiro: Edição Especial para os Laboratórios
Silva Araujo-Roussel S.A., 1957.
14
“(...) myths of consumer and planetary societies and of art itself that penetrate even the confines of Brazilian geography (...).”
Além do ensaio “Dos canibais”, publicado por Michel de Montaigne em 1580, considera-se também o livro O Canibal, de Frank
Lestringant (Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997).
15
172
Fotografia e Natureza: uma proposta curatorial - Marilia Andrés Ribeiro
Fotografia e Natureza: uma proposta curatorial
Marilia Andrés Ribeiro
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Resumo: Propomos refletir sobre nossa experiência na direção do Instituto Maria Helena
Andrés (IMHA). Este Instituto é uma OSCIP, fundado em 2005, e desde então tem realizado
ações educativas e culturais nas cidades de Entre Rios de Minas e no Campo das Vertentes
em Minas Gerais. Em Belo Horizonte estamos apresentando a proposta de tornar visível a
obra de artistas que tem afinidade com o projeto de Maria Helena Andrés, voltado para o
pensamento holístico e a realização de micro utopias no campo educacional, ambiental e
artístico. Estamos trabalhando, como eixo do projeto, a questão da natureza vista através
da fotografia expandida, em diálogo com outras linguagens artísticas a partir da pesquisa,
discussão e divulgação do trabalho de quatro artistas: Maria Helena Andrés, Eymard Brandão,
Jayme Reis e Pedro Ariza Gonzàlez.
Palavras Chaves: História; Arte Contemporânea; Curadoria.
Abstract: We propose a reflection about our experience in the management of the Institute
Maria Helena Andrés (IMHA). This Institute is an OSCIP, founded in 2005, and has since then
conducted educational and cultural activities in the cities of Entre Rios de Minas and Campo
das Vertentes, in the countyside of Minas Gerais. But in Belo Horizonte we are presenting
the proposal to make visible the work of artists who have affinity with the project of Maria
Helena Andrés, turned the holistic thinking and attainment of micro utopias on the educational,
environmental and artistic field. We propose to work, as a focus of the project, the question of
the nature seen through the expanded photography, in dialogue with other artistic languages,
from the research, discussion and dissemination of the work of four artists: Maria Helena
Andrés, Eymard Brandão, Jayme Reis and Pedro Ariza Gonzàlez.
Keywords: History; Art Contemporary; Curator.
Introdução
Proponho refletir sobre a função das instituições e do mercado de arte no âmbito do
desenvolvimento da nova geografia artística, tomando como ponto de partida a minha experiência
na direção do Instituto Maria Helena Andrés (IMHA). Este Instituto é uma OCIP,1 fundado em 2005,
e, desde então, tem realizado ações educativas e culturais nas cidades de Entre Rios de Minas
e no Campo das Vertentes, no interior de Minas Gerais. Ao ser transferido para Belo Horizonte,
1
OSCIP é uma organização de sociedade civil de direito privado e interesse público, sem fins lucrativos, que tem uma finalidade
filantrópica e humanitária. A OSCIP é diferente da ONG porque possui uma qualificação certificada pelo poder público.
173
iniciamos uma nova proposta de tornar visível a obra de artistas que tem afinidade com o projeto
de Maria Helena Andrés, voltado para o pensamento holístico e a realização de micro utopias no
campo educacional, ambiental e artístico.
O novo direcionamento do Instituto2 focaliza a pesquisa, a reflexão, a catalogação, a
conservação e a divulgação da obra da artista e vai ao encontro de minhas investigações sobre a
história da arte contemporânea.
Dentro desse contexto de pesquisa e curadoria, a fotografia expandida, no campo ampliado
da arte, em diálogo com outras expressões artísticas, apresenta-se como uma possibilidade de
reflexão privilegiada para compreender o significado do pensamento de Maria Helena Andrés,
pautado pela “arte estendida à vida”.3
Além dessa ideia supracitada, o pensamento da artista demonstra sua atualidade ao dar
relevância às questões ecológicas. Diante das destruições da natureza que tem acontecido ao longo
da história da modernidade, a luta pela preservação da Terra se impõe como uma necessidade de
posicionamento urgente a favor da sustentabilidade ecológica de nosso planeta.
Foi seguindo essa linha de reflexão que escolhemos trabalhar com os cinco elementos da
natureza – a terra, a água, o fogo, o ar e o éter – como eixo temático do projeto de fotografia
ampliada. Mostramos que os quatro elementos (terra, água, fogo e ar) aparecem registrados
através da lente fotográfica e desdobrados em outras linguagens artísticas. Já o éter, o invisível, o
imponderável, se manifesta de forma subjacente, unificando os diversos elementos, por meio de
um texto curatorial, de uma exposição coletiva ou de uma manifestação artística voltada para a
integração desses elementos.
Diálogos curatoriais
Minha perspectiva curatorial vai ao encontro do pensamento de Hans Ulrich Obrist que
considera o diálogo com os artistas, a visita aos ateliês, a troca de experiências afetivas e profissionais
e o trabalho conjunto de produção de uma exposição como fundamentais para a construção da
curadoria dentro do sistema de arte contemporâneo. Obrist, um dos mais respeitados curadores
da atualidade, nos mostra a relevância da pesquisa, do conhecimento teórico, da familiaridade
com a arte, mas também dá importância aos encontros com lugares e pessoas para desenvolver
o trabalho curatorial.
No livro Caminhos da Curadoria o autor resgata a sua história e escreve o seguinte depoimento:
Quando olho para trás, para os meus primeiros anos da Suiça, percebo que quase todos os meus interesses,
temas e obsessões que formaram minha trajetória surgiram bem cedo em uma série de encontros com lugares e
pessoas: museus, bibliotecas, exposições, curadores, poetas, dramaturgos e, o mais importante, artistas.4
2
Desde 2013 assumimos a direção do IMHA e no momento estamos realizando a transição da sede de Entre Rios de Minas para
o Condomínio Retiro das Pedras, em Brumadinho, na região da grande Belo Horizonte. Ver informações sobre o IMHA no site:
www.imha.org.br
3
Consultar os livros de Maria Helena Andrés: Os caminhos da Arte. Belo Horizonte, C/Arte, 2015; Vivencia e Arte, Rio de janeiro,
Vozes, 1966; e o blog Minha Vida de artista: www. mariahelenaandres.blogspot.com.br. Ver também: LOPES, Almerinda da Silva.
Maria Helena Andrés. Belo Horizonte, C/Arte, 2004
4
OBRIST, Hans Ulrisch. Caminhos da Curadoria. Rio de Janeiro, Cobogó, 2014, p. 10. (Tradução: Alyne Azuma)
174
Fotografia e Natureza: uma proposta curatorial - Marilia Andrés Ribeiro
Minha trajetória é um pouco parecida com a de Obrist, embora o nosso contexto histórico e
vivencial seja bem diferente. Fui criada numa família de artistas e intelectuais e, desde criança, tive o
privilégio de conviver com os artistas e críticos que frequentavam o ateliê de minha mãe, localizado
no quintal de nossa casa em Belo Horizonte.5 Frequentava exposições, visitava museus e estudei
na Escola Guignard nos anos 1970, onde convivi com artistas como Sara Ávila, Lotus Lobo, Eymard
Brandão, Carlos Wolney, entre outros, que foram alunos e depois professores dessa Escola. Estudei
filosofia na UFMG e história da arte na Universidade Estadual de Nova York em Stony Brook onde
fui aluna de Lawrence Alloway, crítico de arte inglês e fundador do Grupo Independente de Londres,
formado por artistas pertencentes à pop art inglesa.6 Fiz meu doutorado na USP com a historiadora
Annateresa Fabris,7 que orientou minha pesquisa sobre as neovanguardas em Belo Horizonte8 e
me estimulou a estudar a história da fotografia. No momento, estou terminando o pós-doutorado
com a supervisão do filósofo Francisco Jarauta,9 professor da Universidade de Murcia, na Espanha,
e temos conversado sobre os possíveis diálogos internacionais entre artistas, críticos e curadores
contemporâneos. Em Belo Horizonte, fui diretora da Editora C/Arte em parceria com o historiador
Fernando Pedro da Silva, onde criamos o projeto Circuito Atelier, que visa registrar os depoimentos
dos artistas e divulga-los através de publicações, vídeos e exposições.10 Esse projeto inédito nos
possibilitou mostrar a importância da história oral para a pesquisa em história da arte, da convivência
com os artistas e da construção conjunta da curadoria de uma exposição, que pode acontecer no
ateliê do artista, na Galeria, na Escola de Arte ou em outros lugares reinventados. Aprendemos
juntos, historiadores, curadores e artistas a construir a nossa própria história no contexto da arte
contemporânea.
O projeto expositivo
Para realizar esse projeto convidei os artistas com os quais tenho afinidades estéticas e
afetivas, que trabalham a fotografia expandida e que têm o olhar do artista plástico, aquele que
percebe a linha, a cor, a luz, a textura, as nuances, o movimento e as formas no espaço, através
das imagens captadas pela lente fotográfica. Entendo que, desse encontro do olhar do artista com
5
O ateliê de Maria Helena Andrés era frequentado por Alberto da Veiga Guignard, Franz Weissmann, Mário Pedrosa, Silvio
Vasconcellos, Jacques do Prado Brandão, Murilo Badaró, Frederico Morais, Pierre Santos, Mário Silésio, Marilia Giannetti Torres
e Nelly Frade, entre outros.
6
O Grupo Independente de Londres, organizado a partir da segunda metade do século XX, foi uma dissidência do Instituto de
Arte Contemporânea de Londres. Era formado por artistas, arquitetos e críticos, tais como Lawrence Alloway, Richard Hamilton,
Eduardo Paolozzi, Peter Blake, Allen Jones, Richard Smith, entre outros. Lawrence Alloway foi o teórico do grupo e quem usou
pela primeira vez o termo “pop art” para designa-lo, a partir de uma nova concepção antropológica de cultura urbana, interessada
pela cultura de massa, a produção industrial e a fotografia.
7
Annateresa Fabris publicou vários livros sobre a arte moderna e a fotografia, entre outros: O desafio do olhar. Fotografia e artes
visuais no período das vanguardas históricas. São Paulo, Martins Fontes, 2013 e O resgate do Efêmero. Belo Horizonte, C/Arte,
2015.
8
RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas. Belo Horizonte, anos 60. Belo Horizonte, C/Arte, 1997.
Francisco Jarauta realizou várias curadorias de arte contemporânea, entre outras: Arquitetura Radical. MUVIM, Valencia, 7
noviembre - 2 deciembre, 2001; Colección Chrisitan Stein. Uma historia del arte italiano. IVAM, Valencia, 7octubre, 2010 – 23
enero, 2011; Colección IVAM. XXV Aniversario. IVAM, Valencia, 18 febrero - 4 mayo, 2014.
9
O projeto Circuito Atelier foi criado em 1998, por Fernando Pedro e por mim, na C/Arte Projetos Culturais. Está na sua
quinquagésima quinta edição e tem focalizado o depoimento dos artistas brasileiros como Maria Helena Andrés, Amilcar de Castro,
Sara Ávila, Teresinha Soares, Décio Noviello, Lotus Lobo, Eymard Brandão, Jayme Reis, Waltercio Caldas, Antonio Dias, Iole de
Freitas, Paulo Bruscky, Rosângela Rennó, Anna Maria Tavares, Éder Santos, entre outros.
10
175
o objeto que se oferece ao seu olhar surge a “fotoplástica”,11 uma fotografia que é própria do olhar
que plasma as imagens com a luz e as aproxima do desenho, da pintura ou da escultura.
Maria Helena Andrés, Eymard Brandão, Jayme Reis e Pedro Ariza González são artistas
diferentes, provenientes do Brasil e da Espanha, representativos de várias gerações, no entanto
eles têm em comum o uso da fotografia como meio de expressão, em sintonia com outras mídias: a
escrita, a técnica mista, o livro de artista, o poema visual sonoro e a performance. Todos eles têm os
olhos voltados para a percepção da natureza em transformação, seja no céu do Retiro das Pedras
de Maria Helena Andrés, nas marcas registradas na terra de Eymard Brandão, nas fogueiras de
Jayme Reis ou no mar Mediterrâneo de Pedro Ariza González.
O céu de Maria Helena Andrés12
Maria Helena Andrés abre a nossa exposição com uma reflexão sobre a natureza, o meio
ambiente e com uma postura ambientalista frente à destruição das montanhas de Minas. Seu
pensamento nos dá a chave da mostra, pautada pelos cinco elementos da natureza. Suas fotografias
registram o ambiente em que ela vive, o entorno do Retiro das Pedras, as montanhas da Serra da
Calçada e o céu de Minas. O olhar expandido do alto das montanhas, em perspectiva atmosférica,
toca as pedras cor de ferrugem no primeiro plano, acolhe o verde aveludado do vale, alcança as
montanhas em diferentes nuances de azuis, encontrando o desenho das nuvens, o brilho do sol
e a transparência do céu no horizonte. O olhar sensível de Maria Helena capta a respiração das
montanhas e o seu encontro com o céu, sendo o mesmo que perpassa a transparência e a leveza de
suas pinturas e o movimento orgânico de suas esculturas, englobando o todo, o cosmos, o infinito.
Seu olhar revela, ainda, sua vivência e atuação dentro da arte moderna e a perspectiva utópica
de construção de um mundo melhor, mais humano e integrado à natureza. Maria Helena ama as
montanhas de Minas, abraça a Serra da Moeda, e, junto com os ambientalistas de nossa terra, a
exemplo de Frans Krajcberg, denuncia o desaparecimento da paisagem pela ação destrutiva das
mineradoras (Figura 1).
As marcas telúricas de Eymard Brandão13
O diálogo de Eymard Brandão com a fotografia surge como complemento de seu trabalho
artístico dentro do ateliê. No silêncio de seu ateliê Eymard refina os pigmentos naturais e os resíduos
O termo foi usado por Roberto Conduru ao referir-se à fotografia de Mário Cravo Neto, publicado no texto “Imagens-corpos na
fotoplástica de Mário Cravo Neto”. In: SANTOS, Alexandre e DE CARVALHO, Ana Maria Albani (Orgs.), Imagens, Arte e Cultura.
Porto Alegre, UFRGS, 2012, p. 223-230.
11
Maria Helena Andrés atua no circuito artístico brasileiro desde os anos 1940, quando integrou a geração de artistas da Escola
de Guignard. Participou do movimento concretista em Minas nos anos 1950 e orientou-se para a tendência abstrata lírica nos anos
seguintes. Atualmente a artista está realizando projetos de desenho, pintura, escultura, fotografia e escreve semanalmente um
blog sobre suas experiências artísticas e vivenciais. A artista, que é também escritora, escreveu diversos livros e artigos de reflexão
sobre arte, educação artística e intercâmbios culturais entre o Oriente e o Ocidente.
12
Eymard Brandão pertence à geração de artistas que atuou, desde os anos 1970, na paisagem urbana de Belo Horizonte. É
artista plástico, pesquisador e professor da Escola Guignard, onde leciona desenho de criação e técnica mista. Atualmente está se
dedicando também à pesquisa com a fotografia. Ver textos que publiquei sobre o artista: A transfiguração dos resíduos na arte de
Eymard Brandão. In: Catálogo da exposição Arte em Resíduos, Centro Mineiro de Referências em resíduos, Belo Horizonte, 8 de
junho - 8 de julho, 2010; A poética de Eymard Brandão: da arte em resíduos à fotoplástica. In: Anais do 23º Encontro Nacional da
ANPAP, Belo Horizonte, 15 a 19 de setembro de 2014.
13
176
Fotografia e Natureza: uma proposta curatorial - Marilia Andrés Ribeiro
Figura 1 - Maria Helena Andrés, fotografia, 2015.
minerais usando trituradores e peneiras, constrói os objetos com diversos materiais e sucatas,
pinta os suportes, explorando a cor, a matéria, a linha, a textura, e, no final do processo,
registra seus trabalhos através da fotografia digital (Figura 2).
Mas, no deslocamento de seu ateliê exterior, imerso na paisagem ao redor, o artista
fotografa as marcas de tapumes, paredes, portões desgastados pelo tempo e aquelas
deixadas no solo pelos tratores e caminhões que trabalham na construção de estradas ou no
calçamento de ruas. Entre o trabalho de diversas máquinas Eymard vai registrando aquilo que
o sensibiliza e atrai a sua atenção, usando a lente fotográfica. O que interessa ao artista é captar
aquele momento do encontro de seu olhar com o objeto anônimo, o olhar criativo e plástico
que percebe, na vida cotidiana e na natureza, fragmentos de realidade transfigurados em arte.
Na série Solo e Subsolo, que dá continuidade à sua pesquisa com a fotografia integrada aos
pigmentos e resíduos minerais, o artista estabelece uma relação entre a fotografia e a matéria,
o olhar macro focado nas cicatrizes da terra e o reaproveitamento dos resíduos e pigmentos
encontrados no solo. Essas marcas, registradas pela fotografia, são justapostas aos trabalhos
em técnica mista, estabelecendo um diálogo entre opostos, uma mestiçagem14 que consiste na
justaposição de elementos heterogêneos e ao mesmo tempo íntegros, distinguíveis uns dos
outros. O diálogo de Eymard Brandão ultrapassa as montanhas de Minas e vai ao encontro
O termo foi usado por Icleia Cattani para designar o hibridismo presente na arte brasileira. Ver : CATTANI, Icleia Borsa.
Mestiçagens na Arte Contemporânea. Porto Alegre, Editora UFRGS, 2007.
14
177
Figura 2 - Eymard Brandão, 2013. Díptico: 37x55cm cada imagem. Fotografia e trabalho em técnica mista s/ MDF.
178
Fotografia e Natureza: uma proposta curatorial - Marilia Andrés Ribeiro
das pesquisas dos artistas da Land Art,15 que trabalham diretamente com a terra e a natureza,
recriando outras paisagens.
As fogueiras de Jayme Reis16
Jayme Reis apresenta fotografias das fogueiras que surgem engolindo igrejas, padres,
caveiras, bonecas, cadeiras, barcos, aviões e corações “apaixonados”. As fogueiras saltam
do espaço bidimensional dos entalhes em madeira e das estórias eróticas em photoshop para
o espaço real e se mesclam com a vida, a obra e a performance do artista. São verdadeiros
rituais dionisíacos que acontecem no espaço apropriado do ateliê, a exemplo da Fogueira da
Despedida, realizada sobre a égide de Fênix, no quintal de sua casa-ateliê, em Tiradentes,
onde o artista queimou “obras eternamente inacabadas”.17 As fogueiras, associadas à imagem
da combustão, simbolizam a destruição e a transformação da obra, apontando a importância
do processo na criação artística. A fotografia é usada por Jayme Reis como registro do evento
e, quando mesclada aos registros das procissões da Semana Santa, se transforma no livro
de artista. A Série Epiphania, termo religioso referente à aparição divina, foi apropriado pelo
artista para designar esses trabalhos de fogo, remetendo à imagem do homem que observava
fogueiras durante um ritual da Igreja Católica. Epiphania resgata, ainda, imagens da história
da arte desde os tempos das fogueiras medievais, passando pela luz barroca de Caravaggio
e Rembrandt, até os rituais com o fogo de Yves Klein.18 O olhar crítico de Jayme Reis capta os
momentos de transformação do fogo nos objetos, a mudança da luz, das formas e das cores,
configurando uma visão neobarroca e uma crítica bem-humorada da arte e da vida (Figura 3).
O Mar de Pedro Ariza Gonzàlez19
Pedro Ariza Gonzalez tem o mar no olhar. Ele também focaliza o processo, a
transformação, o movimento e a transparência da água no mar Mediterrâneo, o azul das pedras
Desde os anos 1960 os artistas da Land Art propõem trabalhar com a escultura no campo ampliado realizando intervenções
nos parques, desertos, vales e rios. Usam a fotografia como meio para registrar suas obras, que são exibidas para o público
que frequenta galerias e museus. Os artistas pioneiros desse movimento são os europeus e americanos: Carl Andre, Walter de
Maria, Michael Heizer, Richard Long, Dennis Oppenhein, Richard Smithson, entre outros. Ver: LAILACH, Michael. Land Art. Koln,
Taschen, 2007.
15
Jayme Reis pertence à geração de artistas mineiros que despontou nos anos 1980 e tem como objetivo a retomada do trabalho
manual, do fazer artístico, em contraposição ao conceitualismo. Trabalha na produção de objetos, gravuras, pinturas, fotografias
e escrita. Sua experiência com a fotografia e também com o photoshop remonta a 2006/2007, quando o artista realizou uma
exposição polêmica na Galeria da CEMIG, em Belo Horizonte, onde apresentou, pela primeira vez, a série Epiphania. Essa série
está documentada no catálogo da exposição e foi recolhido pela direção da Instituição devido ao seu caráter irreverente. Ver: REIS,
Jayme. EPIPHANIA. Belo Horizonte, CEMIG, novembro de 2007.
16
Essa fogueira marcou a mudança de seu ateliê de Tiradentes para Belo Horizonte, em 2009, e foi a primeira de uma série de
fogueiras realizadas em Minas Gerais. Recentemente, Jayme Reis realizou a fogueira “O Último Picasso” no ateliê rural de Maria
Helena Andrés, na fazenda Luiziânia, em Entre Rios de Minas, onde o artista queimou entre outros objetos, uma pintura de Picasso
feita por ele.
17
Yves Klein, artista francês que pertenceu ao movimento neorealista, realizou pesquisas e rituais com a cor e o fogo. Construiu
a primeira escultura com o fogo, em 1961, nos jardins do Museu de Krefeld, por ocasião de sua retrospectiva. Ver: “El maestro
del Fuego”. In: BIANCHI, Paolo. “Siete Anos para la posteridad”, publicado no catálogo da exposição de Yves Klein, no Museo
Guggenhein, Bilbao, 2004, p. 43-45.
18
Pedro Ariza González é artista visual, fotógrafo, videomaker e dançarino. Atua no campo artístico de Málaga desde os anos
2000 e sempre se interessou pela integração entre o espiritual e as artes, aproximando-se da visão holística de Maria Helena
Andrés. Trabalha em cooperação com outros artistas e produziu para o nosso projeto o vídeo Pazo Básico, que é a sua primeira
experiência de trabalho coletivo e interdisciplinar com a imagem em movimento.
19
179
Figura 3 - Jayme Reis, fotografia, 2014.
na praia e a luz do céu no horizonte. A força e a exuberância da paisagem em seu estado
natural é apresentada na série Gratitud como um agradecimento à vida e à natureza. Essa
série se completa na série Contact, que focaliza o movimento da dança, do corpo humano,
despojado e nu, em contato com outro corpo. A paisagem natural da praia é preenchida pela
performance de um homem e de uma mulher, mostrando a paisagem do corpo humano. A
dança improvisada do corpo se desdobra na dança das águas, sendo apresentada no vídeo
Paso Básico, um trabalho coletivo realizado por dançarinos, fotógrafos e videomakers nas
águas dos rios e mares da região de Málaga. O olhar generoso de Pedro percebe a grandeza,
a exuberância e a maravilha da natureza como uma gratidão da vida. Revela, ainda, o seu
180
Fotografia e Natureza: uma proposta curatorial - Marilia Andrés Ribeiro
respeito por ela e vai ao encontro do olhar de Sebastião Salgado, que apresenta, na série
Gênesis, um “hino visual à grandeza e à fragilidade da natureza em seu estado primordial”.20
Sebastião Salgado, considerado um dos fotógrafos mais significativos de nosso tempo, não só
faz uma homenagem à origem da natureza, como também nos convida a participar do grande
desafio de lutar pela preservação de nosso planeta.21 Embora não tenha participado dessa
exposição, o exemplo, a militância e a fotografia de Sebastião Salgado está presente no nosso
olhar, em sintonia com a nossa proposta curatorial (Figura 4).
Figura 4 - Pedro Ariza Gonzàles, fotografia, 2014.
Considerações finais
O projeto Fotografia e Natureza, que já teve realizado sua primeira etapa, nos propiciou
a oportunidade de pensar e experimentar: o processo de produção da curadoria junto com
os artistas participantes; a elaboração do texto curatorial, da expografia e do catálogo da
exposição como um trabalho coletivo de colaboração; a escolha da Galeria Lemos de Sá
que trabalha com os artistas convidados e que nos proporcionou o espaço e a produção do
catálogo da exposição;22 o registro de todo o processo de produção e recepção através da
fotografia e do vídeo, realizado junto com a equipe de produção que atua no IMHA.23 Tivemos
20
SALGADO, Sebastião Salgado. Genesis. Colonia, Editora Tashen, 2013.
Junto com sua esposa Lélia Wanick Salgado, o fotógrafo fundou, em 1998, o Instituto Terra, responsável pela reconstituição,
preservação e divulgação da Mata Atlântica, situada na região de Aimorés, no leste de Minas Gerais. Esse Instituto é uma
organização ambiental dedicada ao desenvolvimento sustentável do Vale do Rio Doce. Ver o filme documentário sobre Sebastião
Salgado: O Sal da Terra, dirigido por Win Wenders e Juliano Salgado, indicado ao Oscar de melhor documentário em 2015.
21
A produção da exposição contou com a doação dos artistas participantes e a colaboração de Antonio Costa e de sua esposa
Meire Costa.
22
A primeira versão deste texto foi publicada na apresentação do catálogo da exposição Fotografia e Natureza, realizada Lemos
de Sá Galeria de Arte, Nova Lima, 14 de março a 11 de abril de 2015. O catálogo foi produzido por Jayme Reis e Paulo Fatal,
a expografia foi criada pelo arquiteto João Diniz e o vídeo está sendo realizado pela equipe de produção do IMHA formada por
Fernanda Granato e Walmir Gois. O professor André Melo Mendes, responsável pela comunicação do projeto, escreveu o texto
23
181
também a oportunidade de dialogar com teóricos e curadores que muito nos enriqueceram
com suas diferentes perspectivas teóricas e de compartilhar com o público a experiência
dos artistas com a fotografia e a natureza, bem como a possibilidade de discutir questões
contemporâneas tais como a arte, a ecologia, o corpo e o cuidado com o nosso planeta.24
crítico A Natureza em transformação em Belo Horizonte, publicado no Jornal Arte&Crítica, da ABCA, numero 33, Ano XIII, Março
de 2015.
No momento, estamos trabalhando o desdobramento desse projeto, visando reconfigurar novas exposições, em outros espaços
culturais, com a inserção de novos artistas, propiciando novos debates sobre o tema.
24
182
A produção artística como texto histórico: o caso da 31ª Bienal de São Paulo - Neiva Maria Fonseca Bohns
A produção artística como texto histórico: o caso da 31ª Bienal de São Paulo
Neiva Maria Fonseca Bohns
Universidade Federal de Pelotas - UFPEL
Resumo: O presente trabalho pretende colocar em discussão o desafio de produzir
história da arte na contemporaneidade, a partir da análise de casos de proposições
artísticas que já se apresentam como textos históricos. Os exemplos discutidos no
presente trabalho foram extraídos da 31ª Bienal de São Paulo, ocorrida de setembro
a dezembro de 2014, sob responsabilidade da equipe curatorial chefiada por Charles
Esche. Com o sugestivo título “Como falar de coisas que não existem”, a exposição
tinha como fio condutor uma coleção de discursos sobre diferentes realidades sociais, e
sobre formas de atuação artística que ultrapassam a esfera da apreciação estética e se
inserem na história contemporânea como registro, escrita e atuação política.
Palavras-chave: História da Arte; Arte Contemporânea; 31ª Bienal de São Paulo.
Abstract: This paper aims to put in discussion the challenge of producing art history in
contemporary times, from the analysis of cases of artistic proposals already presented
as historical texts. The examples discussed in this study were extracted from the 31th
São Paulo Biennial, which took place from September to December 2014, under the
responsibility of the curatorial team headed by Charles Esche. With the suggestive title
“How to talk about things that do not exist”, the exhibition had as its guiding thread a
collection of speeches about different social realities, and on forms of artistic action that
exceeded the sphere of aesthetic appreciation and fit into contemporary history as record,
as writing and political activity.
Keywords: History of Art; Contemporary Art; 31th São Paulo Biennial.
Diante do conjunto de obras de forte teor crítico e reflexivo reunidas em algumas das
grandes exposições de arte contemporânea realizadas nos últimos anos, as evidências de
que estamos vivendo um processo de consolidação da autonomia do discurso artístico e de
descentralização do poder político no campo da arte são inegáveis. Como consequência
imediata desta descentralização na produção artística, que não é recente, e que se amplia
exponencialmente a cada nova década, os críticos e os historiadores da arte encontram novos
desafios.
183
O presente trabalho pretende colocar em discussão o desafio de produzir história da
arte na contemporaneidade, a partir da análise de proposições artísticas que já se apresentam
como textos históricos. Cabe observar, inicialmente, que o conceito de texto histórico que estou
utilizando aqui se refere a formas narrativas que não só fazem uso dos recursos verbais e
dos códigos escritos, mas que também se utilizam de imagens, que podem se apresentar
sequencialmente ou simultaneamente. Também parto do princípio de que as narrativas
históricas podem ser construídas a partir de um único narrador ou de vários narradores, com
pontos de vista diferentes.
Essa abundância de recursos na maneira de narrar os acontecimentos parece ser uma
característica da nossa era, tão prolixa em eventos quanto na forma de registrá-los. Contestando
as noções convencionais de temporalidade e de historicidade, as investigações artísticas
também podem contribuir para a formação das diferentes camadas dos discursos históricos.
Muitas proposições artísticas contemporâneas propõem intervenções sociais, políticas e
religiosas e, não raramente, o deslocamento de artistas propositores para diferentes lugares
do mundo pode gerar olhares surpreendentes sobre a realidade local. Além de impactar pela
aparente diluição de fronteiras entre ética, estética e política, certas formas de percepção e de
leitura dos fenômenos sociais desenvolvidas por artistas (que, não raro, são também ativistas e
militantes de causas politicas e ecológicas) podem suscitar polêmicas e gerar conflitos capazes
de provocar reações violentas.
Miguel Chaia, no livro “Arte e Política”, chama a atenção para o fato de que, no Brasil
não é recente o interesse pela associação entre estes dois campos da atividade humana. A
27ª Bienal de São Paulo, por exemplo, realizada em 2006, cuja curadora era Lisette Lagnado
e tinha como título-tema “Como viver junto”, elegeu um tema de forte cunho político, em que
a arte era tratada em relação estreita com o contexto, permitindo que a dimensão artística se
impregnasse do debate político.1
Os exemplos discutidos no presente trabalho foram extraídos da 31ª Bienal de São
Paulo, ocorrida de setembro a dezembro de 2014, sob responsabilidade da equipe curatorial
chefiada por Charles Esche. Com o sugestivo título “Como (...) coisas que não existem”, a
exposição apresentava-se através de uma coleção de discursos - muitos dos quais de teor
sociológico, antropológico e histórico - sobre diferentes realidades sociais, e sobre formas de
atuação artística que ultrapassam a esfera da apreciação estética e se inserem na história
contemporânea como registro, como escrita e como atuação política.
No texto de abertura do Guia da exposição, os curadores dizem que Como (...) coisas
que não existem é uma invocação poética do potencial da arte e de sua capacidade de agir e
de intervir em locais e comunidades onde ela se manifesta. O espaço entre parênteses deveria
ser completado com diferentes expressões, tais como: falar sobre, viver com, acreditar em etc.
1
CHAIA, Miguel (org.), 2007, p.15.
184
A produção artística como texto histórico: o caso da 31ª Bienal de São Paulo - Neiva Maria Fonseca Bohns
De acordo com os curadores,
“O jogo político tradicional, com suas oposições binárias, está desconectado do dia a dia e precisa abrir o
caminho para novas atuações; a representação política, como refletem os recentes movimentos de protesto
em diversas regiões do mundo, está em crise profunda, embora nenhuma alternativa tenha surgido. Essa
situação, porém, não é nem necessária nem permanente..”.2
Baseou-se o projeto da 31ª Bienal de São Paulo na reflexão sobre acontecimentos
internacionais do mundo contemporâneo por um viés extremamente crítico. Tratando do modelo
econômico vigente no mundo ocidental, afirmam os curadores que:
“em uma época em que as trocas de informações crescem exponencialmente, há uma redução nas estruturas
de pensamento. O modelo econômico dominante, com sua lógica fria de eficiência, ignora a história e a cultura
locais em favor de análises simplistas de lucros e perdas; a complexidade do desejo humano é deixada de
lado, embora os antigos discursos de oposição ao capital também fracassem em tentar incorporá-los”.3
Tratando das práticas religiosas do mundo contemporâneo, mais adiante, dizem os
mesmos autores:
“Apesar do espiritual ser uma presença imperativa na vida de muitas pessoas, expressando-se em uma
grande variedade de modos e condutas, os abusos praticados em nome da religião são inúmeros.4
A adoção de uma atitude eminentemente laica, que observa com olhar crítico as práticas
religiosas que exploram indevidamente a ingenuidade das populações mais desatendidas fez
parte da linha curatorial adotada. Vários trabalhos artísticos selecionados tratavam de temas
ligados a religiões de maneira irônica e sarcástica, o que produziu reações hostis por parte de
grupos religiosos de diversas procedências.5
O discurso assumido pela equipe curatorial incorporou uma alta carga de criticismo tanto
em relação a assuntos políticos, econômicos e religiosos da contemporaneidade, quanto a
assuntos do próprio campo da arte. Essa produção textual pode ser incorporada ao campo
da história como elaboração intelectual autônoma. Neste caso, o trabalho curatorial, além de
assumir a forma de um projeto autoral, também se colocaria como narrativa histórica.
No texto de apresentação do projeto, publicado no catálogo da 31ª Bienal, os curadores
explicitam a intenção de abordar a situação contemporânea no Brasil e em outros lugares,
“por meio de uma articulação de projetos artísticos e culturais que mantenham uma relação
específica com o momento atual”.6 Também fazem referência ao “sentimento profundo de
2
31ª Bienal de São Paulo, 2014, (Guia) p. 18.
3
Idem ibidem.
4
Idem. Ibidem.
Observem-se os casos dos trabalhos “Dios es marica” de Nahum Zenil, Ocãna, Sergio Zevallos, Yeguas del Apocalipsis, “Errar
de Dios”, de Etcétera e León Ferrari e, principalmente, “Inferno”, de Yael Bartana.
5
6
31ª BIENAL DE SÃO PAULO. MAYO, 2014, p. 52 (Catálogo)
185
decepção quanto às modalidades de organização social, econômica e política existentes”7
Os autores referem-se à expansão das práticas artísticas contemporâneas aos diversos
espaços da vida e afirmam que os espaços da política tem sido foco da ação crítica da arte.
Afirmam que
“as práticas de transgressão das velhas vanguardas artísticas se transformaram ao longo do tempo em
práticas essencialmente ativistas: não são apenas uma crítica do sistema; em vez disso, tentam interferir,
instigar insubordinação e desfazer os códigos de representação e ação impostos pelos espaços de poder.
A meta dessas práticas é identificar os processos e aparatos que definem esses códigos e normas, e
enfraquecê-los”.8
Há aqui, não apenas um franco ataque ao sistema político vigente, mas também um
elogio à insubordinação, que coloca em xeque os próprios processos institucionais que
permitiram a construção do projeto curatorial em questão. Ao procurar absorver ao máximo
o teor crítico das ações artísticas de cunho político, o partido curatorial adotado acaba por
produzir uma espécie de legitimação do discurso anti-institucional.
A vertiginosa ampliação do acesso às informações e o interesse pelos fatos políticos
e sociais da contemporaneidade mobilizou a atenção dos curadores. Ao tratar do uso de
imagens do “amplo arquivo cultural ou de nosso presente hipertecnológico”, dizem os autores
que:
“Lidando tanto com a memória quanto com a observação, obras que realizam tais operações podem
alcançar potencial transformador, especialmente em lugares devastados por guerras ou ditaduras. Nesses
espaços pós-catastróficos, as imagens não mais representam, nem são um reflexo do entorno, mas sim
uma força insurrecional que ajuda a expressar o que não pode ser dito ou o que ainda não existe dentro
do senso comum”.9
Efetivamente, na obra One Hundred Thousand Solitudes o artista, arquiteto e intelectual
libanês Tony Chakar trabalha com imagens das revoluções árabes e de diferentes movimentos
de ocupação no mundo inteiro. De acordo com Nuria Mayo,
“elas captam singularidades, momentos únicos, que levam à declaração do advento de tempos messiânicos,
porém, sem um messias: mortos voltando à vida, rios transformando-se em sangue, pessoas que falam
uma só língua, os últimos se tornando os primeiros, a inversão da ordem histórica, homens transformandose em mulheres e vice-versa. Tais imagens não foram observadas em primeira mão, mas através das
mídias sociais (principalmente Facebook e YouTube)”.10
O mesmo artista, no trabalho On other worlds that are in this one utiliza imagens
captadas através do telefone celular. Ao processá-las com a utilização de um programa
de reconhecimento facial, acaba por produzir correspondências surpreendentes. No texto
7
Idem Ibidem.
8
Idem p. 53
9
Idem, p. 53
10
31ª Bienal de São Paulo, 2014, (Guia), pg. 129.
186
A produção artística como texto histórico: o caso da 31ª Bienal de São Paulo - Neiva Maria Fonseca Bohns
intitulado “Sobre a busca desinteressada” coloca em xeque o próprio estatuto da arte. Ao
tratar da grave situação dos habitantes de regiões em conflito no Oriente Médio, desenvolve
o seguinte raciocínio:
Quando se pergunta “de onde você é?” para pessoas que vem de países que já não existem, elas baixam a
voz, inclinam a cabeça para frente e ajustam a postura para responder. A resposta sempre carrega consigo,
ou assim parece, uma espécie de remorso, mas não exatamente; uma certa nostalgia, ou nem isso, um
embaraço, quem sabe, mas talvez seja o embaraço de quem está respondendo uma pergunta imprópria.
Se as coisas em minha região do mundo - para a qual ainda não encontramos um nome adequado (o
Oriente Médio? O Levante? O mundo árabe? O mundo islâmico?) - continuam no mesmo rumo em que
agora estão, tenho quase certeza de que muito em breve estarei na ponta receptora desta pergunta. (...)
Tudo à nossa volta está nos dizendo que estamos sentados em um vulcão prestes a entrar em erupção.
Mas continuamos ali. Não há consolo algum para os que constantemente são informados de que algo
chegou ao fim.11
Mais adiante, o mesmo autor se pergunta:
“Em situações como essa, o que quer dizer “arte”? O que significa fazer objetos, chamá-los de arte e
disseminá-los como arte? O que significa realizar exposições em espaços específicos destinados ao
consumo dessa arte e depois convidar pessoas a virem olhar para esses objetos e conversarem a respeito?
E se essas perguntas parecem despropositadas e exageradas, ainda estamos aqui, ainda fazendo arte -,
a última delas seria: o que significa quando alguém que vive nessa região do mundo se sente compelido
a levantar tais questões?”12
O filósofo Vladimir Safatle, no livro O circuito dos afetos, trata, entre outros temas,
dos motores de coesão social produzidos pela sociedade contemporânea a partir do medo
contínuo da invasão da privacidade, do desrespeito dos predicados pessoais, da despossessão
dos bens e da morte violenta.13 O próprio Safatle apresenta um conceito de temporalidade
própria de uma simultaneidade espectral que “nos abre a experiências temporais capazes
de nos fazer pensar tempos múltiplos em contração e fornecer uma chave de leitura para
a força de des-identificação de conceitos como “historicidade”.14 No caso da obra citada,
o discurso artístico, impulsionado pela necessidade de defesa da integridade individual, e
constituído com material extraído da experiência direta da realidade, gera textos em que a
noção tradicional de historicidade é colocada à prova (Figura 1).
As imagens da série Open Phone Booth, da artista Nilbar Güres, gravadas no Curdistão
turco, onde vivem as minorias curdas e alevitas isoladas do resto do país por razões políticas,
são um testemunho bem-humorado da dura realidade da vida daquela população. As longas
sequências mostram situações reais em que, para obter contato telefônico com familiares
que moram em outras regiões do país, as pessoas precisam subir nos pontos mais altos das
montanhas, mesmo durante os invernos rigorosos. Passam muito mais tempo tentando se
11
CHAKAR, Tony. Sobre a busca desinteressada. In: 31ª BIENAL DE SÃO PAULO, 2014, p. 80 (Catálogo)
12
Idem, ibidem.
13
Vide SAFATLE, Vladimir, 2015, p. 18-19.
14
Idem, p. 26.
187
Figura 1 - Nilbar Güres, Open Phone Booth, 2011.
comunicar do que falando com os parentes e amigos. De acordo com Santiago Navarro, “as
imagens [de Nilbar Güres] se equilibram na linha entre o cômico e o trágico, entre o real e o
absurdo, entre o testemunho do documento e a aparência da encenação (Figura 2)”.15
A instalação Violência, do artista argentino Juan Carlos Romero, realizada pela primeira
vez em 1973, consiste num arquivo de imagens produzidas pela imprensa - muitas vezes
15
Idem, p. 132-133.
188
A produção artística como texto histórico: o caso da 31ª Bienal de São Paulo - Neiva Maria Fonseca Bohns
Figura 2 - Juan Carlos Romero, Violencia, 1973-1977.
189
sensacionalista - dedicada a cobrir situações de conflito. De acordo com Santiago Navarro, além
de ser uma experimentação gráfica e conceitual, a obra é uma
“intervenção militante que exorta - nos termos de Frantz Fanon e Jean-Paul Sartre - a responder com violência
libertadora à violência do opressor; uma concepção integral do espaço expositivo e sua relação com o espaço
da rua; uma postulação do papel do espectador como agente necessário da mudança social”. 16
A coleção de imagens extraídas dos jornais, que mostram cadáveres ou pessoas sendo
submetidas pelos aparatos repressivos institucionais constitui material de análise não apenas
para historiadores em geral (e historiadores da arte em particular), mas também para sociólogos,
filósofos e cientistas políticos. Neste caso, a obra tem uma vocação inequívoca para a constituição
de texto histórico, mesmo que os elementos principais sejam da ordem da visualidade e que a
forma de apresentação fuja do modelo “livro” impresso.
Projetos que questionavam a centralização das formas de produção e de exibição do
trabalho artístico, assim como a validade dos processos ligados ao sistema da arte para as
parcelas mais desassistidas da população, também foram foco de interesse dos curadores.
A artista Graziela Kunsch propôs uma linha experimental de ônibus circular e gratuita, sem
trajeto conhecido, durante os meses da exposição. O Ônibus Tarifa Zero não passaria pelas
proximidades do prédio da Bienal de São Paulo, já que o interesse principal do projeto estava
na ideia de facilitação do deslocamento das populações desatendidas pelos serviços públicos.17
No texto de apresentação do projeto, a artista refere-se a experiências vividas pela população
de Mambu, bairro da periferia de São Paulo, em que as pessoas precisam andar cerca de catorze
quilômetros a pé para chegar a um ponto de ônibus e a uma Unidade Básica de Saúde. Em
resposta à falta de assistência dos poderes públicos, os moradores de Mambu se organizaram e
criaram uma linha de ônibus temporária, em que os custos eram divididos coletivamente. Também
há referências ao Movimento Passe Livre, que sugere que o financiamento do transporte público
aconteça através da cobrança de impostos e da taxação da riqueza (Figura 3).18
Alguns trabalhos apresentados na 31ª Bienal de São Paulo associavam procedimentos de
construção de discursos históricos e ficcionais. O artista israelense Yochai Avrahmi baseia seus
trabalhos na análise dos recursos que sustentam as narrativas oficiais ou extraoficiais sobre
acontecimentos políticos e sociais. Depois de estudar memoriais, museus e monumentos criados
por autoridades públicas ou cidadãos comuns em várias partes do mundo, o artista observou que
existe um processo de espetacularização das narrativas, que muitas vezes são unilaterais. Em
entrevista à equipe da 31ª Bienal de São Paulo, o próprio artista falou sobre a curiosidade que
sente pelo uso de meios visuais e materiais para “celebração de atrocidades”:
“Meu interesse no tema existe porque vejo nesses lugares uma tensão entre a vontade de impressionar e a
vontade de ser confiável. (...) No mundo ocidental, os grandes museus são geralmente os ditadores de narrativas
16
Idem, p. 170-171.
17
Idem, p. 61.
18
Idem ibidem..
190
A produção artística como texto histórico: o caso da 31ª Bienal de São Paulo - Neiva Maria Fonseca Bohns
Figura 3 - Yochai Avrahmi, Small Word, 2014.
grandiosas; mas os pequenos museus, com frequência criados por particulares ou pequenas comunidades,
são capazes de exibir outro tipo de complexidade em termos tanto tecnológicos como narrativos”.19
Para realizar Small World, presente na 31ª Bienal de São Paulo, o artista visitou o Museu do
Escravo, na periferia de Belo Horizonte, as escavações do Cais do Valongo, na cidade do Rio de
Janeiro, e o projeto para o Museu Penitenciário de São Paulo, no local da antiga penitenciária do
Carandiru. Como resultado final, construiu uma obra com dispositivos similares aos utilizados nos
museus, para narrar uma história fictícia. Nas palavras de Benjamin Seroussi, o artista “propõe uma
situação na qual não há história, um museu para algo que não existe, uma fraude em que a memória
se torna flexível para uma vez mais se tornar emancipatória”.20
Já o artista brasileiro Yuri Firmeza, que ficou conhecido pelo gosto de fundir realidade e ficção,
apresentou a obra Nada é - um filme baseado em fatos verídicos, realizado na cidade de Alcântara,
no Maranhão, que mostra, entre imagens de ruínas arquitetônicas e novas instalações militares,
cenas da tradicional Festa do Divino Espírito Santo, que acontece todos os anos, quarenta dias
depois da Páscoa.
Tendo sido a primeira capital do Estado do Maranhão, a cidade de Alcântara, no século XVIII,
era habitada por grandes proprietários rurais (donos de engenhos de cana-de açúcar e de plantações
19
31ª BIENAL DE SÃO PAULO, 2014, p. 78 (Catálogo)
20
31ª Bienal de São Paulo, 2014, p. 152-153. (Guia)
191
de algodão). Passado o auge econômico, a cidade permaneceu longo período no ostracismo até
receber um centro de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira, em 1990. De acordo com
Ana Maria Maia, nesse hiato em que a cidade vive, entre o passado de prosperidade e a promessa
de um futuro interplanetário, “misturam-se discursos da ciência e da religião em torno de um mesmo
ideário de fé naquilo que pode ser, mas (...) ainda não é”. 21
O artista Jonas Staal, no trabalho Nosso Lar, Brasília, de 2014, realizou uma associação
inusitada ao comparar o projeto modernista de Brasília à cidade descrita pelo médium brasileiro Chico
Xavier, que os religiosos acreditavam existir no chamado “plano espiritual”. O trabalho reúne mapas,
maquetes, modelos computacionais que exploram, além das incríveis semelhanças, as diferenças
entre as duas cidades. Apesar das distinções de origem - uma cidade efetivamente planejada e
construída a partir de parâmetros racionais, e outra fertilizada pela imaginação popular, as duas
apresentam diversos pontos em comum, especialmente no que se refere aos elementos imagéticos.
A instalação labiríntica Histórias de aprendizagem, de Voluspa Jarpa, compõe-se por arquivos
da CIA, revelados recentemente pelos Estados Unidos, sobre o período da ditadura brasileira. Vários
documentos tem trechos riscados ou apagados. Segundo Santiago Navarro,
“em todos os casos [Jarpa] analisa o que foi apagado e chama a atenção para a imagem resultante do documento
que sofreu intervenção: uma imagem que expressa tanto a construção de visibilidade quanto a potência poética e
política dos usos dos arquivos, e que cria sombras no presente”.22
Todos os trabalhos aqui apresentados e discutidos trazem elementos que se relacionam
com registros ou narrativas, e podem ser considerados textos históricos. Em alguns casos, estes
textos se originam a partir da articulação entre dados da realidade e dados fictícios. Noutros casos,
há uma conjugação entre narrativas produzidas pelos sistemas tradicionais e pelos sistemas de
representação que se utilizam dos recursos tecnológicos de produção e reprodução mecânica de
imagens.
A distância entre o trabalho artístico e a produção de texto histórico encurta-se nos casos
analisados de uma maneira tão evidente, que não apenas a experiência criativa existe a partir de
dados da realidade, como as formas de apresentar e de interpretar os dados da realidade recebem
uma oxigenação que pode alterar - positivamente - as práticas dos historiadores contemporâneos. O
material produzido pelos artistas desafia o público em diferentes níveis de raciocínio e de expressão.
Há de desafiar mais intensamente o segmento de público formado pelos historiadores da arte.
Referências Bibliográficas:
CHAIA, Miguel (org.). Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
31ª BIENAL DE SÃO PAULO. ESCHE, Charles. MAYO, Nuria Enguita. BELTRÁN, Erick. EILAT, Galit. SAGIV, Oren. LAFUENTE,
Pablo. SEROUSSI, Benjamin. PROENÇA, Luiza. Como (...) coisas que não existem. São Paulo : FBSP, 2014. 326 p. (Catálogo)
31ª BIENAL DE SÃO PAULO. Como (...) coisas que não existem. MAYO, Nuria Enguita; BELTRÁN, Erick (org.). São Paulo: FBSP,
2014, 223 p. (Guia)
21
Idem, p. 79.
22
Idem, p. 82-83.
192
Onde fica a fronteira entre a China e o Brazil? - Rosana Pereira de Freitas
Onde fica a fronteira entre a China e o Brazil?
Rosana Pereira de Freitas
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Resumo: O presente trabalho analisa a recepção da obra do artista contemporâneo
chinês Ai Weiwei, intitulada “Circle of Animals/Zodiac Heads”, por ocasião de sua primeira
exibição pública. Na Bienal de São Paulo de 2010, os doze animais do horóscopo chinês
travaram um mudo diálogo com nosso passado comum. Como se livrar do passado que
a forjou, se a obra repousa precisamente em tal eco? Se a arte contemporânea pode
ser confundida com ativismo, a arte do passado se funde aos discursos de poder aos
quais serve. Nos bronzes de Yuanming Yuan, o tema do horóscopo chinês se funde ao
projeto jesuítico. Ao mesmo tempo sob as ruínas do projeto universalizante jesuítico e
com os jardins de Yuanming Yuan transmutados em parque temático, trataremos das
dificuldades em lidar com o conceito de barroco com sinais trocados.
Palavras-chave: Ai Weiwei; Arte Asiática; Barroco.
Abstract: This paper analyzes the reception of the work of the Chinese contemporary
artist Ai Weiwei “Circle of Animals” on the occasion of its first public show. At the Sao Paulo
Biennial in 2010, the twelve animals of the Chinese horoscope started a silent dialogue
with our common past. On Brazilian soil, where the Jesuits were expelled during the
eighteenth century, the Zodiac Heads of Ai Weiwei resonated with our colonization. How
to get rid of the past that forged it, if the work rests precisely in this echo? If contemporary
art can be confused with activism, the art of the past merges with the discourses of power
it serves. At the same time under the ruins of the Jesuits’ universalizing project and with
the Yuanming Yuan Gardens transmuted into a thematic park, we will treat the difficulties
in dealing with the concept of Baroque with opposite signs.
Keywords: Ai Weiwei; Asian Art; Baroque.
O presente texto1 busca avaliar a recepção da obra do aclamado artista contemporâneo
chinês Ai Weiwei, intitulada “Círculo de Animais/Cabeças do Zodíaco”, em sua primeira exibição
pública, ocorrida em 2010, no Brasil. Na obra em questão ele reedita, a seu modo, as doze
cabeças de animais do horóscopo chinês originalmente pertencentes ao relógio de água do
1
Apresentado no Segundo Encontro de Pesquisadores em Arte Oriental, cujo tema foi “Oriente-se: AmpliandoFronteiras”, sob o
titulo de “Sobre a arte de prever o futuro”, ocorrido na Pinacoteca e na Unifesp, em 2014.
193
antigo Palácio de Verão, em Beijing. Se parte significativa da arte moderna fazia tabula rasa
da tradição em seu culto ao novo, a produção contemporânea viaja no tempo e no espaço
em sua busca de produção de sentido, valendo-se da cópia e do pastiche. Em uma dura
crítica à política cultural de seu país, à qual atribui violência equivalente àquela praticada pelos
europeus, Ai Weiwei parecia, paradoxalmente, alinhar-se ao movimento chinês atual, que
reclama os bronzes como patrimônio cultural a ser restituído à China.
Mas ao expô-los pela primeira vez no Brasil, talvez à revelia, ele nos fez lembrar que
do ponto de vista artístico não seria possível simplesmente fazer voltar ao local de origem as
formas ou o gosto que as produziram. Significaria, em última instância, a inútil tentativa de
restituir à Europa um capítulo da história da arte que também é nosso. A temática do horóscopo
encontra-se fundida ao projeto jesuítico nos bronze de Yuanming Yuan. Animais da tradição
chinesa e jesuítas habitam a arte contemporânea.
Não há qualquer menção a Ai Weiwei no catálogo da exposição Alors, la Chine?2 Não se
trata de mais um caso de censura. Estamos na França, de onde teriam partido os ideais que
Ai tão bem incorpora durante sua estadia norte- americana - liberdade, igualdade, fraternidade
-, subsumidos por lá em uma só palavra: democracia. Não há menção à sua obra no catálogo
simplesmente porque ele não tomou parte da exposição. A mostra ocorreu em Paris, durante
o ano da China na França, 2003-2004, integrada a uma virada no engajamento chinês em
eventos culturais, à nova estratégia político-diplomática oficial. No âmbito das artes visuais tal
virada começou no ano de 2000, quando o Museu de Arte de Shanghai pretendeu transformar
sua bienal no maior evento artístico do país, teve seu primeiro grande evento internacional na
mostra Living in Time realizada em Berlim em 2001 e culminou com a primeira participação
oficial chinesa em uma Bienal de Veneza, em 2005 (KOCH, 2013).
Tampouco há qualquer menção à sua participação em mostras sobre a cena artística
chinesa nos anos anteriores à virada. Em The China Project, na publicação que busca reter a
memória da iniciativa australiana - a APT, Asia Pacific Triennial of Contemporary Art - iniciada
em 1993, na Queensland Art Gallery, em Brisbane, ele comparece em apenas duas de suas
cerca de trezentas páginas. Em Why Asia? Contemporary Asian and Asian American Art, de
1998, que amplia o foco para a cena norte-americana, publicação póstuma dos textos de Alice
Yang, prematuramente falecida no ano anterior (1997), não há sequer uma única referência
a Ai Weiwei. Estão presentes não só expoentes da geração imediatamente anterior, como
da sua: Xu Bing, Wand Guangyi, Zhang Huan, Zhang Xiaogang, entre inúmeros outros. São
apenas alguns exemplos, quase aleatórios, da Europa (Paris), Austrália (Brisbane) e EUA
(Nova Iorque).
Servem para fazer notar que Ai Weiwei é um fenômeno recente na cena contemporânea.
Se o sucesso de Cai Guo-Qiang é constante desde seu reconhecimento no Japão, ainda em
seus anos de formação, Ai Weiwei amargaria uma década - a de noventa - sem realizar uma
2
O título da exposição e do catálogo que a acompanhava faziam referencia ao artigo homônimo de Roland Barthes publicado
no jornal francês Le Monde, em 24 de maio de 1974.
194
Onde fica a fronteira entre a China e o Brazil? - Rosana Pereira de Freitas
só exposição individual que tenha merecido ser incluída no elenco de sua retrospectiva, e
teria de aguardar o sucesso de sua participação na Documenta 12, em Kassel, na Alemanha,
e sua participação como consultor artístico junto aos arquitetos suíços Herzog & de Meuron
no projeto do estádio olímpico “Ninho de Pássaro” para iniciar a lista de epítetos pelos quais
costuma ser anunciado hoje.3
Quando era mencionado, timidamente, ele comparecia como membro fundador do grupo
Stars, ou como exemplo dos artistas da diáspora chinesa. Mesmo tendo participado de algumas
coletivas durante essa época, seu nome não era incorporado aos textos que pretendiam
abordar a arte contemporânea de origem chinesa. Ai Weiwei parece gostar da posição “de
fora” que terminaria por adquirir. Ao deixar a China em direção aos Estados Unidos, em 1981,
declarou à família que seguia rumo a seu novo lar, antevendo um caminho sem volta. O que o
fez retornar? O pai doente, episódio que iria coincidir com o fim do seu romance de formação,
de sua estadia nova-iorquina.
Os anos oitenta seriam transcorridos, a maior parte do tempo, em Nova Iorque, levando
o que ele chamou de uma vida “inútil” e produzindo objetos em conformidade ao adjetivo: são
ready-mades modificados, fruto de seu entendimento e emulação da obra de Marcel Duchamp.
A apropriação de outra grande descoberta - Andy Warhol - seria mais apropriada para descrever
sua produção após o retorno ao país natal, já de fins dos anos noventa e da década seguinte,
marcada por agenciamentos e produção em escala industrial, além da exploração de múltiplas
mídias.
Ao retornar, segundo ele próprio como um fracassado,4 sua produção americana conflui,
como a muitos dentre os artistas da diáspora que voltavam à pátria na mesma época, à segunda
fornada da chamada “Apartment Art”: instalações de pequeno porte, feitas de materiais baratos
e conceitos aleatórios (GAO, 2011). Remontando à década de oitenta, tal tendência iria
desaparecer rapidamente em meados dos anos noventa. Graças a convites para exposições
internacionais e à criação de inúmeras galerias de arte na China, os artistas “de apartamento”
se abriram ao mundo. Seus trabalhos não narravam mais a própria vida, como no início de
suas carreiras. Transcendiam o limite privado do apartamento rumo à arena internacional. A
produção “de apartamento”, que crescia em escala, carga conceitual e capacidade projetiva
com a chegada dos colegas vindos do exterior, realizada ou não - muitos trabalhos mantiveramse em projeto - ganhou as páginas das publicações organizadas por Ai Weiwei e Zeng Xiaojun,
batizadas respectivamente de Black (1994), White (1995) e Grey (1997) Cover Book. A década
seguinte seria destinada à definitiva projeção de seus artistas e organizadores.
Ai Weiwei chega ao Brasil já consagrado. Sua primeira aparição é na coletiva “China:
Construção/Desconstrução”, apresentada em 2008 no Museu de Arte de São Paulo (MASP),
onde comparece com fotos do Ninho de Pássaro. A segunda exibição de uma obra sua ocorre
3
Dos quais “o maior”, ou “o mais conhecido”, ou ainda “o mais influente” artista contemporâneo chinês vivo são apenas os mais
comuns.
4
“When I returned to China [from the United States], I din’t have a U.S. passport, a wife, or a university degree. Form the Chinese
point of view, I was a total failure”. WARSH, Larry (ed.) Weiwei-isms. New Jersey: Princeton University Press, 2013.
195
em 2010, e já se trata da primeira exibição mundial do “Círculo de Animais/Cabeças do Zodíaco”,
que ocorreu na vigésima nona edição da Bienal Internacional de São Paulo, na capital do
estado homônimo. A despeito de sua reconhecida importância no cenário internacional e de
seu papel local - criada em 1951, a Bienal de São Paulo só foi precedida em termos mundiais
pela Bienal de Veneza, e por ser o primeiro evento desse porte na America Latina, ela manteve
durante muitos anos e mantém ainda hoje relevante impacto na cena local - até recentemente
ela conservava em seu formato as tradicionais representações nacionais, oriundas, em última
instância, dos pavilhões dos países nas grandes exposições mundiais.
Conhecida como uma bienal tradicional, criada nos moldes da Bienal italiana, a Bienal
de São Paulo manteve a plena participação das representações nacionais - portanto com
autonomia para o organizador local, o comissário nacional do local de origem - até a sua 25a
edição, em 2002, quando ela foi reduzida a um único artista por país. Na ocasião, a intenção
dos organizadores era forçar a aproximação com o tema geral da mostra, “Iconografias
Metropolitanas”. Finalmente, na edição de 2008, a 28a edição da mostra paulista, a que ficou
conhecida como a “Bienal do Vazio”, as representações nacionais são suprimidas de todo.
A participação de Ai Weiwei na 29a. Bienal, a bienal política de Moacir dos Anjos e
Agnaldo Farias, respondia a um convite direto dos organizadores, e não estava portanto, de
modo algum vinculada a qualquer representação chinesa oficial. É possível que ela tenha sido
fruto de um convite da curadora japonesa Yuko Hasegawa, ou de outro entre os curadores
convidados. Como no caso dos demais participantes, a participação do artista chinês deveria
responder ao tema da Bienal, que a utilização do verso do poema “A Invenção de Orfeu”, de
Jorge de Lima, pretendia subsumir. Os organizadores faziam questão de lembrar que a Bienal
não era “apenas sobre arte e política”, mas que ela era “um espaço político.” Usando poesia e
política como motrizes, falavam de um “conceito arquipélago, sem bordas nítidas” (ANJOS &
FARIAS, 2010). Reclamavam a noção de hipertexto, de polifonia. Dentre os roteiros previstos,
Ai Weiwei foi elencado para “Lembrança e esquecimento”. Era o trajeto5 que versava sobre
memória individual e coletiva, que pretendia tratar da história e tudo aquilo que ela preserva
ou olvida.
As cabeças foram produzidas na China, e viajaram até São Paulo, de onde após a exibição
seguiram para New Jersey, onde ficaram em um depósito até que Larry Warsh e equipe fossem
resgatá-las, durante a prisão de Ai Weiwei. A grande inauguração do tour internacional da obra
estava de fato prevista para ocorrer em Nova Iorque, como o site especialmente criado para
a itinerância deixava claro à época. Na ocasião, a apresentação brasileira era devidamente
eclipsada, em favor da estréia americana.
O fato de terem feito uma rota análoga a dos bens oriundos da China na ocasião de sua
inauguração parece não ter chamado atenção de ninguém. A dissimulação da apresentação
paulista tampouco. A estréia nova-iorquina seria a “grande estréia”, e assim a presença na
Bienal simplesmente aparecia no site oficial da obra em espaço absolutamente à parte, apenas
5
Roteiro foi termo preterido pelos organizadores, por seu uso na Bienal precedente.
196
Onde fica a fronteira entre a China e o Brazil? - Rosana Pereira de Freitas
parcialmente mencionada. O curioso que se reportar ao site atual encontrará São Paulo no
roteiro, mas isso não ocorria até que “o círculo” tivesse completado ao menos quatro montagens.
O trabalho foi mostrado pela primeira vez no Brasil, contrariando a intenção do artista,
numa situação indoors, dentro do pavilhão do Ibirapuera. No material de divulgação da Bienal,
no demo que circulou durante o período de divulgação, o “Círculo” era mostrado junto à cortina
de vidro da fachada lateral, dando para o parque, mais integrado à paisagem. Mas não foi essa
a montagem final. A obra que já nascia pensada para uma itinerância de dois anos, e com o
irônico subtítulo de “Uma histórica exposição pública de escultura ao ar livre”, se via confinada
logo de saída, e era apresentada logo à entrada do pavilhão, sem qualquer fundo verde, sem
integrar o cenário de praça alguma, como previsto pelos produtores e pelo artista. A montagem
de São Paulo surge, assim, como uma espécie de ensaio aberto, de experimento, que só a
posteriori seria definitivamente incorporada ao circuito oficial, estendido depois em mais dois
anos, e atualmente agendado até 2014. É possível que a dissimulação da montagem paulista,
no site do projeto, seja derivada, ao menos em parte, do local destinado a sua instalação.
Todas as montagens posteriores, sem exceção, ocorreram em praças públicas.
A recepção do público parece não ter sido, porém, muito afetada por isso. O posicionamento
- logo na entrada - o tamanho das cabeças, bem maiores do que as da fonte original, as hastes e
as bases que as deixavam ainda maiores, a técnica de fundição tradicional, tudo isso contribuiu
para uma empatia imediata com as crianças e o grande público. As Cabeças de Animais foram
muito fotografadas. Em tempos de popularização da bienal, de mega eventos culturais, poucos
ficaram constrangidos com a atitude Disney: “por favor, poderia tirar uma foto minha com o
rato?”. Fazia parte do show, e quem já conhecia bem o trabalho do artista também sabia disso.
Mas a obra integrava, ou deveria integrar, o projeto maior, temático, dos curadores. Junto
ao público especializado, houve queixa. Junto à imprensa local, indiferença.
A documentação disponível nos arquivos da Bienal - Arquivo Histórico Wanda Svevo não fornece maiores pistas da reação do público, mas atesta uma eloqüente lacuna: das cento
e quarenta matérias publicadas na imprensa na ocasião, recolhidas no clipping da 29a Bienal
Internacional de São Paulo, só uma, precisamente a única que não versa sobre a exposição
paulista, é sobre Ai Weiwei. Moacir dos Anjos havia enfatizado - enquanto divulgava a mostra o forte componente político da instalação de Ai Weiwei. Talvez lhe possamos imputar ao menos
parte do problema: expectativa frustrada. Eram duas as razões de lamento: Para começar, não
era “chinesa” o bastante. E tampouco política o suficiente.
Na mídia, o “Círculo” de Ai Weiwei iria competir com outras obras, com outras polêmicas,
com outros animais: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) revogando a licença e
6
exigindo a retirada dos urubus da instalação “Bandeira Branca” de Nuno Ramos6 - é bom lembrar
que os três urubus de cabeça-amarela vivos, que compunham a obra do artista brasileiro,
motivo da confusão, já tinham sido expostos “legalmente” no Centro Cultural do Banco do
Brasil de Brasília -; a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pedindo a retirada dos desenhos
6
Onde um membro do grupo Pixação escreveu “Liberte os urubu [sic]”.
197
de Gil Vicente onde ele se retratava assassinando os presidentes Lula, Fernando Henrique,
George Bush, a rainha Elizabeth, e outras personalidades políticas.7 A única matéria sobre Ai
Weiwei8 havia sido publicada por ocasião de sua agressão, feita por policiais à paisana, quando
iria registrar uma queixa por outra agressão que sofrera. Tratava do episódio da delegacia
de Chengdu, capital da província de Sichuan, no sudoeste da China: “Policiais disfarçados
rasgaram nossas camisas e tentaram pegar nossas câmeras, havia uns dez deles (...) agora
estamos sendo atacados porque reclamamos da última vez, é muito irônico.” (AI, 2011). Na
ocasião, Ai levou um soco na cabeça. Um registro do ocorrido, fotos e imagens de exames ele teve de passar por uma cirurgia, quando montava Remembering (2009), o trabalho sobre o
terremoto de Sichuan, na Haus der Kunst, na Alemanha, depois que médicos detectaram uma
hemorragia - seriam futuramente integrados a sua obra, gerando novos trabalhos. A instalação
que apresentava quando precisou ser operado, era justamente sobre a morte dos estudantes,
onde nove mil mochilas evocavam o número de vítimas e compunham a frase da mãe de uma
delas: “ela viveu rapidamente por sete anos nesse mundo”.
Por contraste, o sucesso de Ai Weiwei na Documenta 12 de Kassel com Farytale - 1001
Chinese Visitors (2007) e de Remembering (2009), obras de inconteste viés político, e que
antecedem sua participação na bienal paulista, ajudam a explicar a forma reticente como a
instalação Círculo de Animais/Cabeças do Zodíaco foi recebida, e a alegação de que a obra
não seria suficientemente política.
Se hoje há clareza de que a posição oficial do governo chinês em relação aos bronzes
originais, que reclama sua repatriação, bem como o movimento popular que a sustenta não
correspondem à posição do artista, na ocasião da Bienal isso não ficou assim tão claro. A obra
de Ai Weiwei reproduz, em maior escala, com poucas alterações, os bronzes ainda existentes
e cria novas versões para os quais só existem gravuras antigas do conjunto arquitetônico,
buscando criticar a fixação da atenção oficial e popular com o parque arqueológico de
Yuanming Yuan. Era recente a colaboração do artista no projeto do Ninho de Pássaro (20052008) e a ambigüidade do auto-exilado que retorna ao lar e rapidamente se torna colaboradordissidente, no contexto de uma mega exposição, como era o caso, poderia facilmente passar
desapercebida.
A recuperação das doze cabeças originais havia se tornado uma prioridade para a China.
Foram adquiridos em leilões - e a partir dos preços é possível ter uma idéia do que ocorreu no
mercado nos últimos anos - o rato e o coelho, comprados no leilão da coleção de Yves Saint
Laurent por quinze milhões de euros cada, em 2009, por Cai Mingchao; o cavalo, arrematado
pelo magnata de Macao, Stanley Ho, que o doaria para o governo chinês, por oito milhões e
oitocentos e quarenta mil dólares, em 2007, e o porco também por Stanley Ho, por apenas
7
LOPES, Jonas. “Adeus aos urubus”. Veja, São Paulo, 13 out. 2010.
“Artista Ai Weiwei volta a ser agredido por policiais na China”. In: Folha de São Paulo, 10 ago 2010. O título da matéria fala no
artista, mas é o ativista a ser citado no texto. Haverá diferença? Entre nós, brasileiros, do ponto de vista da recepção, parece
haver. A presença de Ai Weiwei na última edição da Rio Art Fair - a feira de arte internacional do Rio de Janeiro - passou
desapercebida pelo público e pela crítica especializada. O documentário exibido no Festival [de Cinema] do Rio, “Never
Sorry”, de Alison Klayman, teve melhor sorte, graças à presença de ativistas.
8
198
Onde fica a fronteira entre a China e o Brazil? - Rosana Pereira de Freitas
setecentos e setenta mil dólares, em 2003. O porco teria recebido o preço mais baixo entre
todas as cabeças leiloadas, e não devido à época em que foi negociada. Isso porque o boi, o
tigre e o macaco foram vendidos por preços que variaram de novecentos e oitenta mil dólares
a dois milhões de dólares em 2000, pelo conglomerado chinês China Poly Group Coorporation,
que com o apoio do Estado, desenvolve programas de economia criativa. Os outros ainda não
apareceram.
Quando arremata o rato e o coelho, Cai Mingchao, que depois se revela conselheiro do
Fundo do Tesouro Nacional Chinês, recusa-se a pagar pelas peças, alegando que tratava-se
de tesouro nacional pilhado, a ser repatriado a seu país, e que jamais deveriam ter ido a leilão.
Pierre Berger, herdeiro de Saint Laurent que havia posto à venda toda a coleção do estilista,
contra-ataca: se os chineses liberarem o Tibete, ele entregaria pessoalmente os bronzes.
(DELSON, 2011).
Para Ai Weiwei é a noção de prioridade das autoridades chinesas que deve ser
questionada. Ele chama atenção, em sua obra, para o fato de que as cabeças originais sequer
foram desenhadas por chineses. E denuncia: “Eles nunca se importaram, de fato, com arte. É
a natureza do comunismo. Eles simplesmente querem destruir o antigo para construir o mundo
novo. O Zodíaco é apenas um ótimo exemplo da ignorância deles.” (DELSON, 2011, p. 125).
Ele diz claramente: “não é patrimônio nacional. É obra de estrangeiros.”
Ele questiona o problema da originalidade, da autenticidade da arte chinesa, ou do que
seria autenticamente chinês. E em tal processo, e em muitas outras ocasiões, devido a sua
atuação, nos lembra um perfil de artista bastante conhecido em sua China ancestral, na forma
como é descrito, por exemplo, Su Tungpo, o Su Shi (1037-1101) de Lin Yutang. Um certo perfil
de intelectual público. O intelectual banido pelas instancias de poder, que retorna honrado pela
exclusão:
Durante a primeira perseguição de intelectuais e exclusão do grupo incurso nas penas da censura, equiparado
aos criminosos comuns pelo ilustre defensor do capitalismo de Estado (...) havia pelo menos uma vintena de
intelectuais notáveis e homens de integridade disposta a sofrer por suas convicções. Quando (...) ocorreu a
segunda perseguição, quase todos os homens decentes estavam mortos, ou iriam morrer depois do exílio.
Esse solapamento das energias nacionais começou em nome da ‘reforma social’, visando evitar a ‘exploração
pelo capital privado’ e tinha em mira ‘o benefício do sempre amável povo da China’, sendo insuflado por um
ardente admirador de si próprio. Nada é tão prejudicial ao destino de uma nação quanto um idealista mal
orientado e cheio de obstinação. (LIN, 1947, p. 21).
Na lista negra do regime, encabeçada pelo nome do poeta biografado por Lin, Su Shi,
todos os trezentos e nove indivíduos listados, bem como seus filhos, ficaram oficialmente
proibidos de ocupar cargos públicos. E por conseqüência, também honrados por nela figurarem:
Visava-se, assim, extirpar, para sempre, qualquer espécie de oposição e, acreditavam-no os autores da
medida, recobrir de infâmia eterna os nomes que a lista consignava. Aconteceu, porém, que a China deveria
ser entregue pelos reformadores sociais ao conquistador que descia do Norte e o efeito alcançado com a
organização daquela lista foi na realidade muito diferente do que o que tinham em vista os que a organizavam.
199
Por mais de um século, os descendentes que figuravam na Relação Yuanyu mencionaram como um título de
glória o fato de que seus antepassados fizeram parte da lista negra. (LIN, 1947, p. 22).
A lista histórica trazia também os inimigos pessoais do regime, o que não garantia, portanto,
sua idoneidade, ou a pura linhagem de seus herdeiros. Que a lista tenha sido destruída por
um raio, como que por intervenção divina, e que o ministro de então tivesse declarado que os
nomes para sempre seriam lembrados, o que de fato ocorreu, é algo de menor interesse para
nossa comparação, ao menos até o presente momento. Como o poeta Su Shi, que na primeira
década após sua morte teve decretada a destruição de todas as suas inscrições em pedra e a
proibição de seus livros, acrescida da multa de oitocentos mil ienes pela posse dos mesmos,
Ai Weiwei teve seu blog prescrito, seu direito de expressão cerceado, seus colaboradores
investigados. Também como ele, sua situação era herdada de um contexto familiar: seu pai, o
poeta Ai Qing (1910-1996), havia sido enviado ao campo, com a função de limpador de latrinas,
à guisa de se reformar (ANDREWS, 2012). Ai Weiwei cresceu “em exílio” antes de se autoexilar na América. Era um dos artistas da diáspora chinesa: “Meu pai era um poeta. Aos vinte
e poucos anos de idade, foi condenado a seis anos de prisão, e depois exilado por vinte anos,
realmente na pior situação, limpando banheiros públicos, e ainda assim sobreviveu.” (OBRIST,
2011, p.36) Ele diz que não o admira como artista, mas por sua vida. Mas é o Ai Weiwei maduro
quem diz isso. Quando volta à Beijing, no início dos anos oitenta, no momento em que o pai
é reabilitado, ele se diz alienado. Será sua experiência com o Ninho do Pássaro, o estádio
olímpico, a abrir-lhe os olhos e ativar sua militância contra as autoridades corruptas, às quais
não atribui autoridade alguma em termos de arte:
Eu tinha muita experiência, por ter crescido com a geração do meu pai e por viver em uma sociedade
democrática, em Nova York, mas apenas depois de 1999, quando me envolvi com a arquitetura, é que
enxerguei melhor a estrutura interna do governo. Como cada acordo foi feito. Como as terras foram vendidas.
Como essas pessoas enriqueceram. Como fizeram seu dinheiro. A arquitetura é uma coisa que você constrói
no interior da sociedade, e tem que lidar com o governo. A arquitetura é muito política, como o estádio Ninho
de Pássaro. (OBRIST, 2011, p. 37).
Segundo Willian Safran,9 o que caracterizaria o membro da diáspora seria a vinculação,
a importância fundamental da “terra natal”, a idealização do “lar ancestral”, além do
comprometimento com sua restauração, e sua ligação com ela, independente da adversidade
das situações. Para Safran o conceito é útil para tratar de comunidades minoritárias
expatriadas, que poderiam ser identificadas por compartilhar as seguintes características: 1) os
próprios agentes ou seus ancestrais teriam sido dispersos de um “centro” original para regiões
estrangeiras; 2) eles reteriam o mito acerca da terra natal original (localização física, história,
realizações) e a memória coletiva; 3) compartilhariam a crença de que não são, nem nunca
serão, plenamente aceitos na nova pátria, nas sociedades que os acolhem, permanecendo
9
Safran não foi, é certo, o único autor a se valer do termo diáspora para se reportar a experiências análogas à judaica, mas
parece ter sido ele o responsável pela mais bem sucedida tentativa de sistematizar a expressão no contexto acadêmico.
200
Onde fica a fronteira entre a China e o Brazil? - Rosana Pereira de Freitas
parcialmente isolados; 4) sonhariam com o lar originário, supondo que quando as condições
forem favoráveis irão retornar; 5) comungariam da crença de que todos os membros da diáspora
devem comprometer-se com a manutenção, restauração e prosperidade da mítica terra natal
de origem; 6) seguiriam ligados a ela de muitos modos, e isso seria contribuição fundamental
para definir sua consciência, identidade etno-comunitária e solidariedade (SAFRAN, 2005).
Ainda que Ai Weiwei viva agora na sua China natal, para a qual retornou, a tipologia
descrita por Safran parece corresponder, em boa parte, ao modelo de consciência, identidade
e solidariedade ainda praticado pelo artista: “Meu trabalho sempre relaciona-se à história e à
memória. Eu gosto de explorar a relação entre elas e o que as habilidades que a humanidade
desenvolveu em milênios de luta”. (BROUGHER, 2012, p. 39). E o modelo de intelectual a que
nos referíamos, algo que aponta para uma certa tradição, tida como legítima, que excluiria
as usurpações recentes. O questionamento do que seria tipicamente chinês, assim, merece
ser melhor observado. A vinculação com o passado e com a atualidade, no caso da poética
de Ai, é um dos ingredientes na sua receita de “chinesidade”. Como muitos de seus colegas
de geração, no caso da diáspora chinesa, prevalece a agenda da identidade. De acordo com
Melissa Chiu, para os artistas que vivem no exterior, a exploração do passado e do presente,
tanto simultânea como alternadamente, é uma constante em seus trabalhos. As três estratégias
mais usadas são, em primeiro lugar, recuperar a iconografia chinesa como modo de resgatar
o passado, a uma distância geográfica e psicológica da China; em segundo, a justaposição
de memórias da China com a realidade atual, e em terceiro a modificação dos significantes
chineses, como por exemplo os caracteres chineses, para torná-los acessíveis ao público não
chinês. (CHIU, 2011). É aliás, por comportar-se como um artista da diáspora em solo chinês
que Ai Weiwei atraiu para si a perseguição que tem sofrido. Ele acusa os políticos de não se
preocuparem com sua terra natal, com seu povo, e de defenderem como política de patrimônio
a preservação de obras estrangeiras, cujo índice de chinesidade não seria suficiente para alçálas à categoria de tesouro nacional.
Para Ai Weiwei, como para o público da Bienal de São Paulo, as cabeças originais - e sua
versão repaginada por Ai, no caso do público - não tinham exatamente uma “aparência” chinesa.
Para o artista, o tratamento realista denuncia que haviam sido feitas por mãos estrangeiras. E
acrescenta: “realmente não é cultura chinesa”, pois chineses não estariam interessados na “tão
falada copia do real”:
Eu não acho que as cabeças do zodíaco sejam um tesouro nacional. Elas foram desenhadas por um italiano,
executadas por um francês para um imperador Qing que era o governante, mas os manchus da dinastia Qing
de fato invadiram a China. Então se estamos falando de tesouro nacional, de qual nação estamos falando?
(OBRIST, 2011, p. 41).
Se para Ai Weiwei o irmão jesuíta Giuseppe Castiglione é um estrangeiro em uma corte
estrangeira, no Brasil a produção jesuítica cedo torna-se sinônimo de patrimônio nacional.
Reclamar nossa posição desde o contexto das grades navegações é algo que nossos órgãos
201
de proteção ao patrimônio não se furtaram a fazer. Eurocêntrica, é sempre necessário repetir,
nossa história da arte foi produzida a partir de parâmetros metropolitanos, portugueses, de onde
advém também, ao menos em parte, o gosto estrangeiro do qual reclama o artista. Castiglione
passou cinco anos em Portugal antes de ir para a China, e é em uma missão portuguesa que
permanece por lá, mesmo após a expulsão de seus colegas missionários. Ele comparece, ao
lado de dois alemães, um boêmio, um austríaco, quatro chineses e cinco portugueses, na lista
de jesuítas da missão portuguesa em Beijing, de acordo com a lista do Padroado na China,
no ano de 1762, elaborada por Martins do Vale a partir das fontes por ele consultadas. (VALE,
2002, p. 428).
É importante notar que à presença jesuíta na China corresponderia um novo olhar, de
natureza mais cultural, de curiosidade mais etnográfica que econômica.10 O texto “Emformação
da Chyna”, atribuído a São Francisco Xavier aparentemente pelo fato de ter sido ele quem
formulara as perguntas do questionário que o gerou, corresponderia a essa nova tipologia. Em
“Emformação da Chyna” - não há qualquer menção a informações de natureza econômica,
política ou militar, como era comum nos inúmeros relatos da época. O questionário teria sido
elaborado, esclarece Rui Loureiro, com base em preocupações culturais e religiosas muito
precisas: se tinham livros e bibliotecas, se já tinham tido contato com outras religiões, etc.:
Os portugueses interessavam-se sobretudo por questões mercantis ou de marinharia: mercadorias
existentes ou em falta, preços, pesos e medidas, calendários de feiras e mercados, e também portos mais
acessíveis, rotas, fundeadouros, ventos e correntes. A ação inquiridora do Padre-mestre [ele se refere ao
questionário enviado por São Francisco Xavier, respondidas supostamente por um comerciante português e
um informante chinês] veio desperta-los para a importância do conhecimento mais aprofundado das gentes
orientais, desencadeando o aparecimento de um ‘interesse cultural’ pela China. Após a chegada dos jesuítas
ao Oriente, assim, começam a surgir novos dados sobre a realidade chinesa, anteriormente desconhecidos
ou mesmo desprezados. Os padres e irmãos da Companhia, graças a uma sólida preparação intelectual,
e em virtude de interesses muito específicos, vão desempenhar um papel de catalisadores no processo de
acumulação de notícias de caráter geográfico e etnográfico. (LOUREIRO, 2000, p. 406).
Descrever uma sociedade, adverte Jonathan Wright, seria o primeiro passo para a
conversão dessa sociedade (WRIGHT, 2006). Desde o tempo de Ruggieri e Ricci, para os quais
parecia prudente agradar a elite intelectual local, ler Confúcio e produzir maravilhamentos, os
relatos enviados à Europa demonstram uma alteração de conteúdo, ainda que tal inflexão seja
realizada exclusivamente pro domo. Joseph Amiot descreveria de forma explícita a agenda, ou
a esperança dos missionários:
Dessa forma procuramos no interesse da nossa religião ganhar a boa vontade do príncipe e tornar nossos
serviços tão úteis e necessários para ele que no fim ele vai se tornar mais favoravelmente inclinado em
direção aos cristãos e importunar menos do que já importunou. (WRIGHT, 2006, p. 94).
“A Companhia de Jesus, no seu afã de conhecer a fundo as realidades asiáticas que teria de enfrentar, adotou uma deliberada
política de investigação. São Francisco Xavier, quando ainda estava nas Ilhas Molucas, recebe uma carta de Goa, enviada pelo
Padre Henriques Henriques [sic], que já incluía uma breve descrição da China: “‘huum reyno muito grande’, cujos habitantes eram
brancos e usavam longos cabelos negros, ‘assi homens como molheres’, para se distinguirem dos estrangeiros.”
10
202
Onde fica a fronteira entre a China e o Brazil? - Rosana Pereira de Freitas
Na esperança de não serem incomodados, os missionários iriam até mesmo produzir
mapas e canhões, em uma simbiose verdadeiramente arriscada do ponto de vista militar. E
construir palácios e jardins, como Yuanming Yuan. Embora Ai Weiwei não demonstre qualquer
interesse pelos aspectos mecânicos da fonte, é graças a eles - ao uso da ciência - que os
jesuítas lograram efetivamente aproximar-se das altas esferas de poder. Giuseppe Castiglione,
o pintor que cai nas graças do imperador Qianlong, mantém outros jesuítas trabalhando
consigo na corte. Castiglione gozava de prestigio incomum nos ambientes do poder à época.
Durante o primeiro movimento de expulsão - com a morte do imperador - ele é convidado a
ficar, enquanto muitos outros são expulsos. Se o imperador aprecia seu trabalho, não deixa
de mencionar também, em seus comentários, que embora de interesse, sua pintura é inferior
à grande tradição chinesa (JONES, 2006). Castiglione traduziu o tratado do Padre Pozzo Perspectiva Pictorum et Architetorum - para o chinês. É ele o responsável não pela introdução
da técnica, mas pelo desenvolvimento do gosto pela pintura a óleo, a despeito do comentário
do imperador. É ele o autor do projeto da fonte do Palácio de Verão.
É consenso hoje que não teria havido um “estilo jesuítico”, como já apontara John Bury,
ao comentar a arte brasileira que merecera tal epítome (BURY, 1999). Os jesuítas seguiam
o estilo de seu tempo, e não da sua companhia. E na época da expansão portuguesa os
estilos internacionalizavam-se, chegando a regionalizar-se. No Brasil, o barroco e o rococó
- devidamente reabilitados - há muito se tornaram objeto de orgulho nacional, bandeira de
identidade, índice de brasilidade. Nas mãos dos nossos artistas contemporâneos e curadores,
no contexto da globalização, da “negociação de identidades” (RAMÍREZ, 2000) cedo foi
lembrado e transformado em clichê útil - Neobarroco, Ultrabarroco -, a ser produtivamente
explorado (ARMSTRONG, 2000). O público da Bienal de São Paulo, leigo ou especializado,
herdeiro da nossa tradição moderna, não via problema algum em considerar a produção
jesuítica como monumento a ser preservado. É possível que tenha-lhe escapado a ironia do
gesto do artista chinês.
Ao artista chinês, por sua vez, parece ter escapado o processo de nativização (KUDIELKA,
2003) do gosto europeu, e mesmo de conceitos estéticos dos quais termina por se valer. Em
seu típico tom ativista, Ai Weiwei se queixa do destino dado ao antigo Palácio de Verão:
Eu odeio ver como eles realmente o estão destruindo mais uma vez. Deveria permanecer intocado. Agora,
todo mundo fala sobre reconstrução, ou sobre adicionar algum prédio turístico. Eles estão tentando arruiná-lo.
É realmente ruim - não foi arruinado pelos estrangeiros, mas verdadeiramente pelos chineses. (AMBROZY,
2011, P. 57).
Ele está tentando preservar o aspecto de ruína de um local ao qual costumava ir na
juventude, de bicicleta, logo que se mudou para Beijing, e que foi palco de inúmeros encontros
para ler poesia, organizados pelo seu círculo, pelo grupo Stars. Ai Weiwei nostalgicamente
se curva diante da estética da ruína, sem perceber o quanto ela se distancia dos índices de
chinesidade que ele cobra, rumo a um encontro, como poderíamos descrever os episódios
203
da perspectiva e da pintura à óleo na China, e da chegada do estilo rococó, que caracteriza
o conjunto. Encontro do qual também tomamos parte, e também ele devidamente eclipsado,
como a presença de navios vindos do Oriente aportados na Bahia. (LAPA, 2000).
Para Wu Hung, há uma diferença marcante entre o significado de ruína, se compararmos
o moderno culto europeu às ruínas e o sentido a elas dado no contexto cultural chinês. Em
primeiro lugar porque o sentimento chinês em relação às ruínas era um fenômeno pré-moderno,
e que teria adquirido uma carga simbólica negativa na era moderna (WU, 1999). E mesmo na
China tradicional, a estetização das ruínas tinha lugar apenas na poesia. Imagens visuais delas
praticamente não existem. Preservá-las seria um tabu: imagens de ruínas, nada auspiciosas,
deveriam ser evitadas. Não haveria lugar para Riegl. Ai Weiwei, ao freqüentá-las com seu
grupo e ao defende-las em estado de ruína, a um só tempo reverencia a China antiga e o
Ocidente moderno.
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205
206
Tradições em trânsito: permanências e transformações
A contenda entre um carpinteiro de móveis e o escrivão de seu ofício na Lisboa do século XVIII - Angela Brandão
A contenda entre um carpinteiro de móveis e o escrivão de seu ofício na
Lisboa do século XVIII
Angela Brandão
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
Resumo: Ao observar a documentação contida no volume intitulado “Livro 3 de Registro
dos Regimentos dos Oficias Mecânicos da Casa dos 24, 1768-1796”, no Arquivo
Municipal de Lisboa, localizei o processo que descrevia a contenda envolvendo um
carpinteiro de móveis e semblagem e o escrivão de seu ofício, em Lisboa, no ano de
1772. O conflito consistia em que o artesão denunciava as dificuldades enfrentadas
para se examinar, por obstruções impostas pelo escrivão. Tratava-se do reflexo de uma
transformação maior que envolvia o sentido dos exames de ofício e da determinação
das peças que deveriam ser executadas para que o artífice fosse aprovado. É preciso
reconhecer, neste documento sobre a contenda entre um artífice que quer examinarse e o escrivão de seu ofício, a permanência e as mudanças das formas de trabalho
artesanal na segunda metade do século XVIII no contexto luso-brasileiro.
Palavras-chave: Regimentos dos Oficiais Mecânicos; exames de ofício; artífices.
Abstract: By observing the documentation contained in the volume entitled “Livro 3
de Registro dos Regimentos dos Oficias Mecânicos da Casa dos 24, 1768-1796”,
in Lisbon Municipal Archives, I found a process describing the dispute involving a
cabinetmaker and the clerk of his office, in Lisbon, in the year 1772. The conflict was
that the craftsman denounced the difficulties faced to do the examinations because of
obstructions imposed by the Registrar. It was the reflection of a larger transformation
that involved the sense of craft examination and the determination of the pieces that
should be performed so that the carpenter was approved. It must be recognized in this
document about the feud between a craftsman who wants to be examined and the clerk
of his office, the permanence and the changing forms of craftsmanship in the second
half of the eighteenth century in the Portuguese-Brazilian context.
Keywords: Regiment of Craftsmen; crafts examinations; artisans.
209
Forão sempre as Artes mecanicas
aquelas de quem peedeu a Republica,
se fizeram distintas na attenção dos Monarcas,
e formando estas nos seus destinctos
manejos e deferentes manofacturas
hum corpo ou hum colegio digno
de toda a superior providencia (...)
Introdução ao Regimento que o Senado
da Camara de Lisboa manda dar para o bom regimento
do Officio dos Doiradores Anno de 1774.
Este texto deve confessar-se inspirado no artigo de Noronha Santos, publicado na revista do
SPHAN, em 1942, que narrava o conflito ocorrido no Rio de Janeiro, entre 1759 e 1761, envolvendo
os juízes de ofício de carpinteiros e marceneiros, onde o acusado era um entalhador que executava,
indevidamente, obras de marcenaria em lugar de dedicar-se “somente a seus trabalhos de talha,
oratório, retábulos e lanternas, destinados a igrejas e casas”.1 A atualidade do artigo de Noronha
Santos se observa por propor tanto uma história social da arte, como algo que poderíamos chamar
de uma microhistória da arte, assim como a monumentalização do documento.
O Regimento dos Ofícios de 1572 e o Regimento dos Marceneiros e Carpinteiros de Móveis
e Semblagem de 1767.
O modelo de organização do trabalho artesanal que se mantinha em Portugal desde a Idade
Média, com características das corporações de ofícios, manteve-se e foi aplicado no Brasil, numa
série de regras que determinaram a produção artística, com suas devidas variações, desde o
século XVI até o começo do século XIX. Estas leis, de matriz consuetudinária, foram reunidas pelas
primeira vez no livro manuscrito em 1572: Livro dos Regimentos dos officiaes mecanicos da mui
nobre e sëpre leal cidade de Lixboa, cujo original se encontra no Arquivo da Câmara Municipal de
Lisboa. Este manuscrito foi acrescentado, em distintas datas, por novas leis e modificações até o
XVIII. No entanto, em sua totalidade, manteve-se como o conjunto mais geral de regras para o
exercício das atividades artesanais no contexto luso-brasileiro.2
De acordo com o Regimento de 1572, depois de aprender o ofício, como aprendiz numa
tenda, logia ou no canteiro de obras, o artesão poderia estabelecer seu próprio negócio, desde que
fosse aprovado no exame de seu oficio.3 Este exame, de acordo com o Regimento, seria realizado
na casa do Juiz de seu ofício, diante dele e de mais dois artesãos já examinados, que exerciam
a determinada profissão. Os juízes não poderiam examinar filhos ou parentes. Ocorrendo que as
peças executadas pelo artesão não fossem bem feitas, de acordo com as regras dos Regimentos
SANTOS, Noronha. Um litígio entre marceneiros e entalhadores no Rio de Janeiro. Revista do SPHAN, Rio de Janeiro, n.6, pp.
295-317, 1942.
1
2
CORREIA, Vergílio. Prefácio. Livro dos Regimentos dos officiaes mecanicos da mui nobre e sëpre leal cidade de Lixboa -1572.
Publicado e prefaciado pelo Dr. Vergílio Correia. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926 . Na página VI se lê: “acrescentou
alguém com letra que suponho seja já do século XVII: ‘os originais se entregaram neste tempo aos juizes de ofício e ainda hoje
muitos se conservam’.”
3
“Que nenhum oficial mecânico ponha tenda nesta cidade sem primeiro ser examinado.” Ibid. p.234.
210
A contenda entre um carpinteiro de móveis e o escrivão de seu ofício na Lisboa do século XVIII - Angela Brandão
e, ainda assim, fosse aprovado o candidato, o juiz seria multado. Se o artesão não lograsse
realizar a peça para comprovar sua capacidade, poderia apresentar-se outra vez para o exame
somente seis meses depois. Caso este prazo não fosse respeitado, também isso resultaria em
penalidade prevista sobre o juiz. Se, por outro lado, o artesão executasse sua tarefa de acordo com
as exigências do regulamento e fosse aprovado, sua “carta de exame” seria levada para a Câmara
Municipal para ser vista, confirmada e registrada sob juramento e assinatura do escrivão. A partir
desse momento, o artesão estava autorizado a exercer sua profissão e a montar sua tenda para
vender seus produtos ou aceitar encargos.4
A execução de uma ou de série de tarefas específicas para o exame de cada profissão era
estabelecida pelos Regimentos. A avaliação da execução se dava pelo Juiz e outros artesãos que
acompanhavam o exame. Vemos o recorrente emprego de termos que indicavam a exigência de
excelência na execução das peças - objetos do exame tinham que ser: “bem laboradas e bem
acabadas”, “bem feitas”.
Além disso, pode-se verificar, nas tarefas exigidas para o exame, de um lado, a ideia da
cópia de modelos artísticos e artesanais, e, por outro lado, em alguns casos, a permissão para
que o artesão criasse a peça com motivos ou formas segundo “sua invenção”. No entanto, a peça,
em geral, teria que ser executada segundo um modelo preestabelecido, um desenho, um cânone
clássico - uma coluna de ordem dórica com seu capitel e sua base, por exemplo, ou uma peça
equivalente, realizada por outro artesão. Para o exame dos ourives de prata, o examinado teria que
executar: “uma imagem lavrada de cinzel de relevo e uma prancha de prata de sua fantasia ou
contrafeita por outro bem lavrada e acabada, poderá usar de todas as imagens e de toda obra de
cinzel5 [sem grifo no original].”
O exame dos pedreiros exigia que o artesão realizasse uma escada, uma porta, uma coluna
dórica com sua base e capitel6. O carpinteiro teria que madeirar uma casa de quatro águas, fazer
uma porta de duas faces e também uma escada. Os ensambladores fariam um painel de sete
palmos de altura e cinco palmos de largura, com sua moldura, utilizando cola feita de peixe e,
depois, este painel deveria que ser decorado com colunas dóricas, torneadas, bem proporcionadas
e, sobre as colunas, havia que se fazer um friso, com seus tríglifos, sua arquitrave e frontispício
com proporções adequadas. Porém, se o ensamblador quisesse examinar-se também no ofício
de imaginaria ou escultura de madeira, era obrigado a realizar, diante do Juiz e de mais quatro
escultores, um Cristo de três palmos em sua Cruz e uma Nossa Senhora com o Menino Jesus nos
braços, do mesmo tamanho, e de vulto pleno.
Nas duas peças deverá demonstrar beleza de rostos, formosura nas mãos, boa ordem nas posturas e boa
invenção nos panos e nos cabelos. Quando fizer as duas peças não será permitido que tenha modelo diante
de si nem outra coisa qualquer7 [sem grifo no original].
4
Ibid. p. 1-3.
5
Ibid. p. 18
6
Ibid. p. 105 y ss.
7
Ibid. p. 110.
211
Vários elementos indicam não só a necessidade de conhecimento dos valores da arquitetura
e da escultura eruditas - as ordens clássicas, colunas e frontispícios, o vulto pleno, valores de
beleza, formosura, proporções, o domínio da iconografia cristã, mas também a capacidade de
“invenção” e de esculpir as imagens sem ter diante dos olhos algum modelo e nem tampouco
“nenhuma outra coisa” - um desenho, uma gravura ou uma pintura, supomos.
Para o exame de entalhador, o artesão teria que realizar um friso com ornamentos romanos,
muito bem ordenados e, no centro, teria que esculpir:
um serafim muito bem feito e de formoso rosto e em tudo segundo a ordem e o desenho que aqui vai (…) Fará
um capitel coríntio de um palmo de diâmetro e a altura será proporcionada a esta divisão, o capitel será ornado
de folhas e caulículos muito bem feitos (…) na ordem das folhas e disposição de todo o ornamento deste capitel
guardará as obrigações coríntias que em tudo seja conforme este desenho [sem grifo no original]”.8
Alguns exames exigidos aos aspirantes a oficiais, indicavam as possíveis aproximações de
alguns trabalhos artesanais e a produção de peças detentoras de princípios artísticos eruditos. Este
é o caso dos entalhadores que eram obrigados a produzir um capitel coríntio em seu exame, para
a emissão de sua carta.
Como resultado de uma série de transformações, foi necessário reorganizar o sistema de
atuação dos artífices da madeira, publicando-se em Lisboa em 1767, o Regimento do Officio de
Carpinteiro de Moveis e Semblage. Grande parte das disposições anteriores seriam mantidas. Aqui
eram também mencionados os exames para exercer o ofício, entre os quais o examinado deveria
ser solicitado a executar “um retábulo de sete palmos ou como lhe determinar os juízes o qual
levará suas colunas e será feito dentro do preceito da Arquitetura, ordenando os juízes de qualquer
das cinco ordens, e desta ha de fazer a obra de exame”.9 Supõe-se que além do ensino prático e
em sintonia com este, os mestres transmitiam a seus aprendizes, para que se apresentassem aos
exames, também um conhecimento teórico, de caráter erudito: o domínio e a leitura dos tratados
italianos e suas derivações que, com suas gravuras, circularam pelo mundo ibérico e teriam chegado
até as distantes colônias.
Não por acaso, entre carpinteiros e marceneiros, houve grande parte dos conflitos registrados
nos processos em Portugal na segunda metade do século XVIII entre os ofícios. Esta problemática
pode ser, em parte, esclarecida pelas modificações nas profissões a partir do terremoto de Lisboa,
de 1755. Segundo Langhans, a permanência dos Regimentos de Ofícios, reunidos em 1572, se
justificava pelo caráter consuetudinário e permanente de tais relações de trabalho, cuja ruptura
e desestabilização se observaria, apenas, com o terremoto de Lisboa de 1755. Para o autor, o
terremoto causou perturbações à ordem estabelecida: “ruíram as tendas de arruamentos inteiros
do mesmo ofício”, muitos documentos se perderam. A reconstrução de Lisboa exigiu muitos ofícios
e oficiais a mais, que a cidade não podia oferecer, vieram artífices de outras províncias e de outros
8
Ibid. p. 111.
No estágio atual desta pesquisa localizamos este manuscrito no Arquivo Municipal de Lisboa, citado em TOLEDO, Benedito Lima
de. Do Século XVI ao início do Século XIX: maneirismo, barroco e rococó. (A obra de Serlio e Vignola e os Regimentos de Ofícios).
In ZANINI, W. Historia Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983.
9
212
A contenda entre um carpinteiro de móveis e o escrivão de seu ofício na Lisboa do século XVIII - Angela Brandão
países. A Casa dos 24 tentava, ainda e inutilmente, manter os antigos privilégios e regras. Os ofícios
e suas regras começaram, então, a ceder lugar a outras formas de comércio e manufaturas. Daí
nasceram os Decretos de 1761, “mas não era o fim do sistema”.10 É preciso, portanto, reconhecer,
ao mesmo tempo, a permanência e as transformações do trabalho artesanal na segunda metade
do século XVIII no contexto luso-brasileiro.
Desde meados do XVIII, por exemplo, pelas modificações a ampliações no feitio de mobília
em toda a Europa, inicia-se, em Portugal, um longo transcorrer de conflitos entre marceneiros,
carpinteiros e entalhadores, em torno do domínio sobre a “fabricação” de mobília e da valorização
da marcenaria, o que Dicionário de Bluteau,11 de 1728, expressou como uma forma de carpintaria
“mais elegante”, “com mais arte”, “com mais primor”. Pode-se deduzir que, entre o Livro dos
Regimentos de 1572 e a necessidade de sua reformulação, em 1767, importantes modificações
tinham ocorrido, especialmente no que se referia aos trabalhos de marcenaria. O século XVIII
assistira ao fenômeno da diversificação e especialização dos móveis e outros objetos domésticos
de madeira. Um novo Regimento, de 1767, “Regimento do Offício de Carpinteiros de Móveis e
Sembrage”, pôs fim ao embate, uma vez que agrupou os ofícios dos carpinteiros e marceneiros
(carpinteiros de móveis) numa única profissão:
Ponderandosse na Caza dos Vinte e quatro desta Corte, a grande desordem, em que nella vivião, os dois officios
de Carpinteiro chamado da rua das Arcas, que com o officio do Marsineiro, tinham conexão entre si, e que cada
um dos Officios, pertendiam apropriar-se a diversas obraz, e melhorar-se; de Sorte, que o outro ficasse com
grande diminuiçam os Deputados da dita Caza, se fizesse huma reprezentaçam ao Senado da Camara, para que
ordenasse se unissem estes dois officios, para que assim ficasse Conservado huma paz firme, e cessarem entre
elles, todas as ocazioes de pleitos, e disputas, que aperturbe, ficando ambos denominandosse daqui em diante
por Carpinteiros de moveis, e Sambragem.12
Entre as modificações do “novo” Regimento” que estabelecia as regras dos oficiais de
marcenaria e carpintaria de móveis e “semblagem”, estava a ampliação do papel e das obrigações
do Escrivão de Ofícios, eleito por seus iguais, assim como os juízes de ofício. O escrivão passaria
a ficar responsável por “manter em ordem os Livros de Matrícula dos Aprendizes.13
No mesmo livro e pela mesma ordem se fará assento os aprendizes que vierem aprender este ofício, declarando o
nome do mestre com quem aprende e o dia, mês, ano em que teve princípio de aprender e o Mestre que o ensinou
será obrigado a apresentá-lo no termo de um mês ao Escrivão do Ofício para este fazer o dito assento e o Mestre
que faltar em apresentar o seu aprendiz (...) será condenado em quatro mil réis.14
LANGHANS, Franz Paul. As Corporações dos Ofícios Mecânicos, Subsídios para sua história. Com um estudo do prof. Marcello
Caetano. 2 vols. Imprensa Nacional de Lisboa, 1943. p. XXV.
10
BLUTEAU, R. VOCABULARIO PORTUGUEZ & LATINO, aulico, anatomico, architectonico. In www.brasiliana.usp.br/dicionario.
P. 324
11
REGIMENTO QUE O SENADO DA CAMARA DÁ PARA REGIMENDO OFFICIO DE CARPINTEIRO DE MOVEIS, E SAMBRAGEM
ANNO DE 1767. Apud. LANGHANS, Franz Paul. As Corporações dos Ofícios Mecânicos, Subsídios para sua história. Com um
estudo do prof. Marcello Caetano. 2 vols. Imprensa Nacional de Lisboa, 1943. p. 495.
12
LIVRO TERCEIRO DE MATRÍCULAS DOS OFICIAIS E APRENDIZES DE CARPINTEIROS DE MÓVEIS E ENSAMBLAGEM,
1768-1805. ARQUIVO DA CÂMARA DE LISBOA. BL 2A 033.02.93
13
LIVRO TERCEIRO DE MATRÍCULAS DOS OFICIAIS E APRENDIZES DE CARPINTEIROS DE MÓVEIS E ENSAMBLAGEM,
1768-1805. ARQUIVO DA CÂMARA DE LISBOA PT - AMLSB CASVQ 25-01 FOLHA 29 VERSO
14
213
Os “Livros de matrículas dos oficias e aprendizes de carpinteiros de móveis e ensamblagem”,
datados de 1768 - 1805, constituem uma curiosa documentação. Aparentemente tratavam-se apenas
de extensas listas com o nome dos aprendizes registrados em cada ateliê, em ordem alfabética,
seguidos de um registro oficial do aprendiz. Já no “Livro terceiro de matrículas”15 aparece ao lado dos
registros, anotada nas margens do documento, a comprovação de que o aprendiz cumpriu o tempo
contratado de aprendizado junto ao mestre. Este numeroso controle do trabalho dos aprendizes, já
em grande número a compor os trabalhadores de um ateliê, demonstrava a gradativa transformação
do trabalho artesanal em direção à manufatura, no contexto da Revolução Industrial já em curso na
Inglaterra.
Sabe-se que os ateliês de produção de mobília na Inglaterra do século XVIII haviam atingido
um alto grau de excelência técnica e cuidadoso refinamento estético, assim como um alto grau de
aperfeiçamento na divisão das etapas de corte das madeiras, montagem, estofamento e acabamento
da mobília. Ateliês de ebanistas famosos como Chippendale, Happlewhite ou Sheraton chegaram
a empregar mais de quatrocentos trabalhadores e a dispor de um moderno sistema de vendas,
incluindo divulgação, catálogos impressos com ilustrações, encomendas e exportação de móveis
em escalas proto industriais.16
O que assistimos, ao examinar o Livro de Matrículas e o Livro Terceiro de Matrículas, com
os registros dos numerosos aprendizes e a data de início e fim de sua atuação em oficinas de
móveis de Lisboa, assemelha-se a um processo de transformação do trabalho artesanal em direção
à manufatura, onde pouco a pouco o aprendiz passava a ser visto como um operário em estado
embrionário. Ou seja, um sistema controlado pelo Regimento com regras oriundas da Idade Média,
começava a ceder lugar ao sistema de trabalho em que o domínio do fazer e do saber ia diluindose numa massificação dos aprendizes e, provavelmente, numa perda gradativa do conhecimento
artesanal.
O Escrivão do Ofício era também responsável, de acordo com o Regulamento de 1767, por
manter em ordem o Livro de Registro de Exames e o Livro de Despesas. Finalmente, foi necessário
acrescentar novas regras em 1775, quando se publicou o “Regimento que ha de Servir para
Governo e Regimen da Bandeira de Nossa Senhora da Encarnação da Corporação dos Officios de
Carpinteiros de Moveis e Samblagem, Entalhadores e Coronheiros dado pelo Senado da Camara
Anno de 1775”. Neste novo documento, o Escrivão passava a controlar também as finanças da
Bandeira:
Cofre da Bandeira. O Escrivão Geral hirá ter com o Escrivaens dos Officios encorporados e anexos os quais terão
obrigação de lhe entregar as listas dos Mestres de seus respectivos Officios para que obriguem os Juizes dos
mesmos officios a pagarem o que faltao para conteira a mencionada cobrança. E o mesmo Escrivão Geral terá
obrigação de arecadar todas as multas, e condenações pertencentes à Bandeira e não aos dos Officias pois a este
só pertence, em respeito de ter fee noteficando todas as pessoas que cahidas nas penas deste Refimento não
quizerem pagar, para aprezença do Amatace da Cozinha, lhe porpo a sua acção, e porllas abrirem condenados de
preceito.17
15
LIVRO TERCEIRO DE MATRÍCULAS.ARQUIVO DA CÂMARA DE LISBOA. BL 2A 330234
16
HESKETT, Jonh. Desenho Industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997 pp. 10-26
17
Regimento que ha de Servir para Governo e Regimen da Bandeira de Nossa Senhora da Encarnação da Corporação dos
214
A contenda entre um carpinteiro de móveis e o escrivão de seu ofício na Lisboa do século XVIII - Angela Brandão
Suas
funções
resultavam,
provavelmente,
daqui
em
diante,
em
grandes
responsabilidades e poderes sobre o curso da profissão e sobre as etapas da vida
profissional dos artesãos ligados à madeira.
A contenda entre um carpinteiro de móveis e semblagem e o escrivão de seu ofício
Ao observar a documentação contida no volume intitulado “Livro 3 de Registro dos
Regimentos dos Oficias Mecânicos da Casa dos 24, 1768-1796 18”, no Arquivo Municipal
de Lisboa, localizei o processo que descrevia a contenda envolvendo um carpinteiro de
móveis e semblagem e o escrivão de seu ofício, em Lisboa, no ano de 1772. O conflito
consistia em que o artesão denunciava as dificuldades enfrentadas para se examinar, por
obstruções impostas pelo escrivão.
Tratava-se de um requerimento que o Senado mandava lançar no Regimento do
Ofício de Carpinteiro de Móveis e Sembrage (sic) no qual José Rodrigues, oficial de
carpinteiro de móveis e sembragem dizia querer examinar-se para poder exercer o seu
ofício. Alegava o artesão ter executado corretamente a obra que os Juizes e seus adjuntos
lhe haviam determinado “na forma do Regimento”, mas:
porque o Escrivão do dito Ofício por espírito de parcialidade com que está desunido com os ditos
juízes e adjuntos e ainda contado a Mesa do Ofício não quis ir assistir ao dito exame, nem depois
para fazer certidão desse (...) em Requerimento do Suplicando o que responderam o dito Escrivão e
Juízes mandou Va. Exa. Que o Suplicante fosse examinado novamente e que o Escrivão assistisse
obedecendo os mesmos Juizes o que se faria sem novas despesas e querendo proceder o dito segundo
exame um novo embaraço da parte do mesmo Escrivão, que pretende impugnar o arbítrio dos Juizes
e adjuntos sobre a eleição da obra em que esse exame se deve fazer, quando pelo Regimento Cap.
3º. Em princípio e parágrafo 1º. Os mesmos Juizes e Adjuntos toca a eleição da dita obra que nisso
costumam atender ao uso do tempo presente e a o que o Examinado tem aprendido e pretende o
Escrivão sem razão alguma de utilidade pública ou bem comum do Ofício que precisamente se faça
o exame nas antigas e desusadas obras, em que no tempo passado falou o Regimento, como são
um retábulo de sete palmos e caixa de malhete, trastes que nem se usam, nem os mesmos Mestres
de quantos têm em Lisboa este ofício os ensinam aos seus Aprendizes e do Suplicante somente lhe
ensinou as obras que constam na Certidão junto e porque parece justo que não obste ao Suplicante
a intriga com que o Escrivão se desune com os seus Juízes recorre a Va. Exa. Para que seja servido
ordenar que o Escrivão execute o que lhe for mandado a respeito do dito Exame, pois o Regimento
só requer a sua assistência para dar fé do que se fazia e não lhe confere voto, o qual é somente dos
Juízes e Adjuntos para assim cessarem de uma ve os escândalos e prejuízos das partes e se executar
o que Vossa Ex.a. decretou no Requerimento Junto: Pede a V. Exa. seja servido deferir ao Suplicante
na forma que requer attendido o que expoem. O receberá mercê.19
Officios de Carpinteiros de Moveis e Samblagem, Entalhadores e Coronheiros dado pelo Senado da Camara Anno de 1775 in
LIVRO 3 DE REGISTRO DOS REGIMENTOS DOS OFICIAS, p. 116. MECANICOS DA CASA DOS 24 1768-1796 ARQUIVO DA
CÂMARA DE LISBOA CÓD. BL2 A 32.03.40.
LIVRO 3 DE REGISTRO DOS REGIMENTOS DOS OFICIAS MECANICOS DA CASA DOS 24 1768-1796 ARQUIVO DA
CÂMARA DE LISBOA.CÓD. BL2 A 32.03.40.
18
Requerimento que o Senado manda lanças neste Regmto. Do Off.o. de Carpinteiro de Moveis e Sembrage in LIVRO 3 DE
REGISTRO DOS REGIMENTOS DOS OFICIAS MECANICOS DA CASA DOS 24 1768-1796 ARQUIVO DA CÂMARA DE LISBOA.
CÓD. BL2 A 32.03.40, P.141
19
215
E assim, o Oficial que queria examinar-se obteve o seguinte resultado, por meio de
Despacho do Senado:
O Escrivão do Officio passe logo e já ao Suplicante a sua Certidão mandando o assim os Juízes do
Officio, cujas ordens a respeito do mesmo Officio deve executar logo, ao que satisfará com pena de
prizão, e o mesmo se abstenha destas afectadas demoras, com tanto prejuizo das partes, alias, este se
Registe no seu Regimento: Meza vinte e sete de outubro de mil setecendos setenta e dous// com duas
rubricas dos Menistros Vereadores// Faria// Antonio Andre// Domingos Nunes Correa.20
Encerra-se, assim, a contenda entre o artesão e o escrivão, tendo obtido o primeiro
a certidão de examinado. Esta pequena série de documentos poderia indicar apenas um
conflito pessoal entre o escrivão e os juízes do ofício de marceneiros e carpinteiros de móveis
e semblagem, mas queremos propor uma interpretação que monumentalize o documento.
Emprestamos aqui o pensamento de Michel Foucault aplicado à prática historiográfica de
Jacques Le Goff,21 no célebre jogo de palavras que dizia respeito, por certo, a algo mais do
que um mero jogo de palavras: “o documento como monumento”.22
Esta contenda parece sintomática ao revelar vários aspectos das tranformações
ocorridas nos ofícios da madeira e, de modo geral, em todas as atividades artesanais no
decorrer do século XVIII. Transformações essas que somatizavam, em certo sentido, a
morte do artesanato e o nascimento da indústria.
O conflito indicava, por um lado, o crescimento do poder dos escrivãos, de acordo
com as modificações ocorridas sobre o texto do Regimento de 1572. O novo regimento
específico para os marceneiros, carpinteiros de móveis e semblagem, agrupados agora
numa única profissão, a envolver os trabalhos de ensambladores e entalhadores, datado
de 1767 e modificações na mesma legislação que ocorreriam em 1775, demonstravam
uma desconhecida e nova perda da estabilidade do sistema, como diria Langhans. Os
pequenos ateliês de artistas-artesãos, com número controlado e reduzido de aprendizes,
cedia espaço para “negócios”, manufaturas com numerosos grupos de trabalhadores ainda
grafados como “aprendizes”, mas podemos vislumbrá-los como “operários” em gestação.
O sistema, pautado nas corporações de ofício e em leis consuetudinárias, manuscritas em
1572, perdia sua longevidade pela necessidade de alteração das leis, em 1767 e 1775.
Porém, ao lado da ampliação do poder dos Escrivãos, percebe-se uma simplicação
dos saberes transmitidos aos aprendizes - sem responder mais aos ensinamentos exigidos
pelo “antigo” Regimento, como vimos, relacionadas ao conhecimento erudito dos Tratados
de Arquitetura do Renascimento Italiano e ao domínio das Ordens Clássicas. Ao considerar
20
Despacho do Senado In Ibid. P. 141 verso.
21
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e memória. Campinas: Unicamp, 1990.
(…)"A história tradicional dedicava-se a "memorizar" os monumentos do passado, a transformá-los em documentos e a fazer
falar os vestígios, que em si não são verbais ou, em silêncio, dizem algo de diferente que o que de fato dizem; nos nossos dias,em
nossos dias, a história é o que transforma documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados
pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados,
agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2009. P. 8.
22
216
A contenda entre um carpinteiro de móveis e o escrivão de seu ofício na Lisboa do século XVIII - Angela Brandão
as obras exigidas pelo antiga compilação de leis como “trastes que nem se usam, nem os
mesmos Mestres de quantos têm em Lisboa este ofício os ensinam aos seus Aprendizes e
do Suplicante somente lhe ensinou as obras que constam na Certidão”, os exames estavam
renunciando ao Regimento de 1572 e as exigências de execução de elaboradas peças
de madeira, alegadas na contenda como “antigas e desusadas obras, em que no tempo
passado falou o Regimento, como são um retábulo de sete palmos e caixa de malhete,
trastes que nem se usam” e advogava-se em favor de novas peças, definidas pelos Juizes
e Adjuntos: “dita obra que nisso costumam atender ao uso do tempo presente e a o que o
Examinado tem aprendido” [sem negritas no original], quer dizer, obras em uso do tempo
presente e pautadas nos limites do aprendizado do examinado e não mais em valores do
padrão regido pelos cânones de 1572.
Embora o documento propunha que todo o dilema em torno da escolha da peça a ser
realizada pelo artesão examinado, na contenda registrada pela documentação, fosse um
mero pretexto para o desentendimento de ordem pessoal entre o Escrivão, o Juiz e seus
adjuntos, desejamos entrever que neste pretexto revelou-se uma modificação no parâmetro
das exigências do exame de ofício, uma mudança paradigmática “das antigas e desusadas
obras” para “obras que costumam atender ao uso do tempo presente”.
Havia vários problemas envolvidos, desde o sentido das publicações durante o
século XVIII em novas e amplas edições dos Tratados de Arquitetura do Renascimento,
revigorados pelo neoclassicismo, como o advento da Revolução Industrial. Minha leitura
se esforça por monumentalizar o documento e transformá-lo no sinal de modificações na
organização e controle dos ofícios mecânicos dentro do contexto luso-brasileiro, indício da
exaustão do sistema que permanecera desde o período medieval. É preciso reconhecer,
em nosso documento sobre a contenda entre um artífice que queria examinar-se e o
escrivão de seu ofício, a permanência e as mudanças das formas de trabalho artesanal
na segunda metade do século XVIII no contexto luso-brasileiro. O conhecimento teórico e
prático dos Tratados de Arquitetura do Renascimento Italiano, exigido desde o Regimento
de 1572 estaria sendo, agora, colocado em cheque.
Referências Bibliográficas:
BLUTEAU, R. VOCABULARIO PORTUGUEZ & LATINO, aulico, anatomico, architectonico. In www.brasiliana.usp.br/
dicionario
CORREIA, Vergílio. Prefácio. Livro dos Regimentos dos officiaes mecanicos da mui nobre e sëpre leal cidade de
Lixboa -1572. Publicado e prefaciado pelo Dr. Vergílio Correia. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
HESKETT, Jonh. Desenho Industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
LANGHANS, Franz Paul. As Corporações dos Ofícios Mecânicos, Subsídios para sua história. Com um estudo do
prof. Marcello Caetano. 2 vols. Imprensa Nacional de Lisboa, 1943.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e memória. Campinas: Unicamp, 1990.
Livro Terceiro de Matrículas dos Oficiais e Aprendizes de Carpinteiros de Móveis e Ensamblagem, 1768-1805. Arquivo
Da Câmara De Lisboa. BL 2A 033.02.93
Livro dos Regimentos dos officiaes mecanicos da mui nobre e sëpre leal cidade de Lixboa -1572. Publicado e
prefaciado pelo Dr. Vergílio Correia. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926 .
Livro 3 de Registro dos Regimentos dos Oficias Mecanicos da Casa dos 24 1768-1796. Arquivo Municipal da Câmara
de Lisboa. CÓD. BL2 A 32.03.40.
217
SANTOS, Noronha. Um litígio entre marceneiros e entalhadores no Rio de Janeiro. Revista do SPHAN, Rio de
Janeiro, n.6, pp.295-317, 1942.
TOLEDO, Benedito Lima de. Do Século XVI ao início do Século XIX: maneirismo, barroco e rococó. (A obra de Serlio
e Vignola e os Regimentos de Ofícios). In ZANINI, W. Historia Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther
Moreira Salles, 1983.
218
A longa duração do grotteschi e suas múltiplas faces - Cybele Vidal N. Fernandes
A longa duração do grotteschi e suas múltiplas faces
Cybele Vidal N. Fernandes
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Resumo: Estudo do ornamento em grotteschi, a partir da obra de Rafael e seus discípulos
e sua adoção por diferentes países e culturas. Rafael deu nova vida à ornamentação
mural criada na Roma antiga. A moda avançou pela Europa, e chegou a Portugal, onde foi
chamada de brutesco, enriquecida por modelos tomados à corte francesa. Entendemos que,
no Brasil, essa forma de arte não foi apenas uma simples repetição da matriz portuguesa,
que influências podem ser observadas, que essa obra se revela fruto do fazer do artista
que aqui viveu. Importa compreender essa decoração mural, que foi adotada no Brasil, do
século XVII ao XIX.
Palavras-chave: Grotesco; Ornamento; Clássico/anticlássico.
Abstract: Study ornament in grotteschi from the work of Raphael and his disciples and their
adoption by different countries and cultures. Rafael gave new life to ornamental wall created
in ancient Rome. Fashion forward for Europe, and came to Portugal, where he was called
brutesco, enriched by models taken to the French court. We understand that, in Brazil, this
form of art was not just a simple repetition of the Portuguese matrix, which influences can be
observed, that this work was revealed to the result of the artist who lived here. It is important
to understand this wall decor, which was adopted in Brazil, from the nineteenth century XVII.
Keywords: Grotesque; Ornament; Classic/anticlassic.
O ornamento na História dos Estilos
O ornamento (pintura, estatuária, relevo aplicado, embutidos, outros) é uma forma
de intervenção no espaço, onde outros elementos também atuam, modificando, sugerindo,
comunicando, em função de um determinado objetivo. O nosso tema é a pintura mural em
grotteschi, arte ornamental de grande importância na história dos Estilos.1 O emprego do
ornamento2 sempre foi uma questão muito discutida. Na Antiguidade, Vitrúvio dizia que a beleza
dos edifícios depende apenas do correto emprego das regras da arquitetura. No século VI, Isidoro
1
O presente texto é parte de um trabalho anterior, que foi publicado em Portugal, na “Revista População e Sociedade. A matriz
italiana na arte Luso-Brasileira”. Universidade do Porto/CEPESE/Edições Afrontamento, Série População e Sociedade, número
19, 2011: “A decoração em grotteschi na obra de Rafael como referência para o ensino artístico da Academia Imperial das Belas
Artes do Rio de Janeiro”. O referido texto tinha o objetivo de encontrar e refletir sobre os referenciais para o ensino artístico na
AIBA, século XIX, Rio de Janeiro.. O presente texto voltou-se para outro objetivo, que é a análise de uma forma decorativa que
parte da “Escola de Rafael”, atravessa o tempo, é adotado por diversas culturas e chega ao século XIX, retomando a expressão do
século XVI italiano. De forma mais objetiva, procurou enquadrar-se nos objetivos gerais do “Colóquio CBHA 2015”, considerando
em particular as repercussões no Brasil, séculos XVIII e XIX, da referida forma de decoração mural.
2
Sobre ornamento ver: CAMPOS, Jorge L. de. “Sobre Riegl, Panofsky e Cassirer: a intencionalidade histórica da representação
espacial”. São Paulo/Fortaleza: “Revista de Cultura”, julho de 2002.
219
de Sevilha, estudando as artes figurativas, escreveu o “Etymologiarum”, obra composta de vários
livros, que por sua importância tornou-se referência na Idade Média, e chegou ao Renascimento.
No livro XX dessa obra, onde discorreu sobre alimentos e ferramentas, considerou também
as relações entre a caixa construída e os adornos aplicados sobre os muros.3 Posteriormente,
São Bernardo (1090/1153) ao abordar a questão do ornamento, condenou excessivo o luxo
das igrejas, o ouro, os adornos escultóricos e fantasiosos. Vicente de Beauvais (1190/1264- 67)
também refletiu sobre o tema no “Speculum Maius”,4 obra dividida em três livros e estes em
outros tantos, que reunia todo o conhecimento do mundo até o seu tempo.
Mais tarde Vasari, escrevendo sobre a vida dos arquitetos, pintores, escultores, referiu-se à
decoração em grotteschi realizada por Rafael no Vaticano, e avaliou os aperfeiçoamentos técnicos
realizados pelo artista e as possibilidades de aplicação daquela expressão ornamental. Por outro
lado, foi possivelmente em 1541, quando regressava da Itália, que o português Francisco de
Holanda escreveu “Da pintura antiga”, dedicando o livro ao rei de Portugal, D. João III. Sobre a
pintura em grotteschi dizia:
“O pintar do grotesco é tachado ( censurado) de M. Vitruvio, porque é pintura impossível, fingida; e é muito
antiga e galante e acha-se nas grutas de Roma... A mais rara e a mais fingida é a melhor delas...”5
O grotteschi avançou no tempo: no século XVIII Willian Hogarth, ao estudar o ornamento
na obra “Análise da beleza” (1753)6 concluiu que a linha curva é mais apropriada à ornamentação
que a reta, e que a linha serpenteada, característica do Rococó, é a linha da graça e da elegância.
O Romantismo e a Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII e no XIX, iriam
recolocar em debate a questão do ornamento, ao considerar a Idade Média e o estilo gótico,
repensando a relação artista X artesão. Nesse sentido, Willian Morris também se manifestou
sobre o tema, ao fazer a defesa do artesanato. Alois Riegl, em 1893, em “Questões de estilo:
fundamentos para uma história do ornamento”, estudou o motivo ornamental, do Egito ao mundo
árabe. Seus contemporâneos reconheceram que a prática ornamental resultara do ensino nas
oficinas, onde segredos foram passados aos discípulos durante gerações, mas não aceitaram a
ideia de uma história do ornamento.
A descoberta do grotteschi romano e a Escola de Rafael
Domênico Ghirlandaio e Pinturiccio, antes de Rafael, já haviam experimentado o sabor
dos motivos ornamentais oriundos dos antigos edifícios romanos, cabendo a Pinturiccio o ciclo
3
Isidoro de Sevilha (cerca de 560 a 636) era espanhol, um erudito: foi Bispo de Sevilha e ficou famoso por sua obra “Etymologiarum”,
na qual reuniu todo o conhecimento sobre o mundo antigo, através da compilação de inúmeras obras de escritores de valor. Assim,
preservou o conhecimento e organizou uma enciclopédia que teve muitas edições ( 10 entre 1470 e 1530).
4
A obra “Speculus Maius” foi encomendada a Vicente de Beauvais pelo rei Luiz IX, foi escrita entre 1246 e 1264.e se divide em:
“Speculum Naturale”; “Speculum Doputrinal”; “Speculum Historial”. Foi reimpresso até 1624.
5
HOLANDA, Francisco de. “Da pintura antiga”. Livros Horizonte, 1984.
HOGART, W. “The analysiss of the beauty written with a view of fixing the fluctuating. Ideas of taste”. Londres: Variety, 1753
(análise da beleza). Entre as inúmeras ilustrações que orientam a lógica do seu raciocínio, o autor incluiu em sua obra duas
gravuras da sua própria autoria que conduzem o raciocínio do leitor enquanto discorre sobe a sua teoria da beleza.
6
220
A longa duração do grotteschi e suas múltiplas faces - Cybele Vidal N. Fernandes
decorativo em grotteschi, nas arcadas e pilastras da catedral de Siena. Em 1514, continuando as
obras do palácio papal, Rafael utilizou a superposição de ordens, em três arcadas, e concebeu
uma grande galeria com treze arcos, numa extensão de sessenta e cinco metros de comprimento
por quatro metros de largura. Em 1518 surgia, nessa galeria, uma original decoração mural,
criada pelo artista e discípulos: Pierino del Vaga, Giovanni Francesco Penni, Giovanni da Udini,
e Giulio Romano (1499 / 1546). Rafael deu nova vida à ornamentação mural utilizada na Roma
antiga, a partir do modelo descoberto em 1480 nas termas de Tito e na Casa Dourada de Nero.
Em 1516, Giovani da Udini iniciara a decoração da Casa de Banho do Cardeal Bibiena, localizada
no terceiro andar do palácio, seguindo a orientação de Vitrúvio ( no Livro VII, Sessão V). Sob sua
direção, Rafael confiou ao artista a decoração das loggias, no espaço que se referia às áreas de
entorno das cenas bíblicas a serem pintadas pelo mestre.7
Renascia, naquele momento, a decoração em grotteschi:8 uma decoração fantasiosa,
aplicada ao interior das residências e edifícios públicos antigos. Frans Sales Meyer, em sua obra
“Manual de Ornamentación”, se refere à decoração em grotteschi da seguinte maneira:
“Los grotescos son figuras fantásticas, com frecuencia muy feas, resultantes de combinar organismos humanos,
animales y vegetales em disposición caprichosa”.9 Em seu livro, Vitrúvio manifestava sua posição contrária ao
uso de elementos fantasiosos ou oníricos. No século XVI, a pintura em grotteschi deveria ser considerada uma
expressão da arte maneirista, pois nela eram percebidos ambiguidade, estranheza, bizarria, complexidade,
quebra de sentido e de ordem.10 A técnica, além da pintura, utilizava o relevo, com materiais fingidos, o que
levou Vasari a observar: “Il grotteschi sono una spezie di pitture licenziose e ridicole molto fatte dagli antichi per
ornamenti di vani, dove in alcuni luoghi non stava bene altro che cose in area”.11
O grotteschi poderia ser representado de quatro maneiras: na primeira empregava o estuque
a seco e alguns relevos; na segunda o ornamento somente em estuque definia os temas através
de elementos pintados na superfície das paredes; na terceira forma, concebia a figura em parte
trabalhada em estuque, em parte pintada de branco e negro, e essa era a forma mais utilizada;
na quarta modalidade, utilizava a aquarela sobre o estuque, empregando cores diversas.12 Rafael
7
O conjunto é conhecido como “A bíblia de Rafael”; tem 52 quadros que tratam da Criação do Mundo á Última Ceia. Pode ser
comparado à obra de Miguelângelo, no teto da Capela Sistina, pela mesma temática e pelo emprego, na narrativa sagrada, de
elementos de teor profano.
8
Grotesco é um termo nascido no século XVI, vem do italiano grotta (gruta) seguido de sufixo formador de adjetivo esco, o
grottesco. Também aparece como crotesque ( no caso, a derivação é do latim crypta que, por sua vez vem do grego kryptós). As
primeiras manifestações do grotesco devem-se a Rafael, o primeiro a combinar os desenhos grotescos pagãos com o sublime
da arte cristã, mesmo que os desenhos tenham sido adicionados de forma acessória, como o fez no “Palácio Papal do Vaticano”.
9
“Os grotescos são figuras fantásticas, com frequência muito feias, que resultam da combinação de organismos humanos, animais
e vegetais, em disposição caprichosa”. MEYER, F. S. , 1929 : 113.Manual de Ornamentación. Ordenado sistematicamente para
uso de dibujantes, arquitectos, escuelas de arte y ofícios y para los amantes del arte.
Tal forma de decoração mural já se anunciava em artistas da geração anterior a Rafael, Pinturicchio ( Livraria do Domo de Siena,
entre 1502 /1507, construída em 1492 pelo Cardeal Francesco Piccolomini Todeschini, futuro papa Pio III), Pietro Perugino, Lucca
Signorelli. No entanto, as pinturas dos muros dessoterrados da antiga Roma deram novo sentido a essa técnica ornamental.
10
“O grotesco é uma espécie de pintura licenciosa e ridícula, feita por ornamentos antigos para quartos onde em alguns lugares não
se encaixam outras coisas (na área)”. VASARI, Giorgio. “Le vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti. Il primo fundamentale
testo della storia dell´arte italiana”. Vasari. “Roma: Newton Compton Editori, 1991/2007, p. 85 . A obra de Vasari foi dedicada ao
Grão-Duque Cosimo de Médicis e publicada no ano de 1550 e em 1568 uma reedição incluiu o retrato dos artistas. Vasari incluiu
na sua obra uma parte em que tratou das técnicas dentro dos diferentes campos das artes plásticas.
11
Rafael pesquisou a técnica do estuque nas ruínas do Coliseu, onde aparecia combinado a pinturas murais. Pesquisou para
encontrar a pasta mais bem elaborada, como a da Roma antiga. Assim empregou na abóboda dos arcos estuque branco sobre
fundo branco, solução elegante, na qual a cor é dispensável.
12
221
e Giovanni da Udine enriqueceram a técnica: pintaram fundos e detalhes em ouro e bronze,
e elementos delicados em forma de camafeus, pequenos insetos, animais exóticos de todo
tipo, festões de flores e frutos.
Numa composição muito elegante, tal decoração contribuía para criar um clima
de frescor, que sugeria um jardim interior, trazendo a natureza para dentro do palácio e
colocando-a sob o olhar e deleite do papa. A solenidade das cenas do Antigo Testamento
que compunham a “Bíblia de Rafael” não se chocava com a ornamentação fantasiosa
empregada; pelo contrário, aqueles monstros e figuras estranhas, vegetais humanos
arrancados das antigas grutas, nas quais se haviam escondido durante séculos, despertavam
e eram devolvidos à vida e abençoados pela força divina, presente nas cenas bíblicas
representadas.
O aperfeiçoamento técnico conseguido por Rafael, foi elogiado por Vasari, que
observou:
“... questo, opera di Giovanni per belezza di desegno, invenzione di figure e colorito, o lavorate di stuco,
o dipinte, sono senza comparazione, miglioreche quell antiche”.13
Esse modelo rapidamente se difundiu na Itália: em Mantova, Giulio Romano o utilizou
no Palacio de Té, auxiliado por Primaticio, responsável pela sua introdução na corte de
Francisco I de França. Posteriormente, Benevenuto Cellini, decorador de Fontainebleau,
reuniu o grotteschi ao estuque de forma moderna e elegante. A disseminação da moda do
grotteschi deve-se à grande circulação de gravuras, nos séculos XVII e XVIII. Na Rússia, por
exemplo, o artista Unterbergher, a serviço de Catarina II, decorou o “Palácio do Hermitage”,
à semelhança da decoração das loggias do Vaticano.
O grotteschi em Portugal
Em Portugal, o grotteschi denominou-se brutesco; foi estudado por Vitor Serrão, que
considerou que a influência maior dessa decoração, no país, veio da escola francesa e das
gravuras ítalo-flamengas. Viu, porém, um caráter original no brutesco português, entendendo
que revelou-se plenamente integrado aos espaços interiores; não se tornou apenas um
complemento das cenas bíblicas ( como na obra de Rafael) mas foi um meio de expressão
original, bem ambientado à talha dourada e aos azulejos. Segundo Serrão, enquanto a pintura
erudita dos tetos ilusionísticos era praticada em Lisboa por Vicenzo Baccherelli e outros, o
grotteschi / brutesco coexistia plenamente, como forma de resistência às novidades. Desde
cedo o grotteschi/brutesco foi ensinado nas oficinas dos mestres portugueses e chegou ao
apogeu no século XVII. No XVIII, durante o reinado de D. João V, o brutesco adaptou-se
ao barroco, como política artística, no país e no Brasil. A grande produção em Portugal,
antecede o momento em que conviveu com as pinturas ilusionísticas barrocas.
“Esta obra de Giovani, pela beleza do desenho, invenção, figura, colorido e trabalho em estuque pintado é, sem comparação,
melhor que a antiga”. Conferir: VASARI, 1991: p. 87.
13
222
A longa duração do grotteschi e suas múltiplas faces - Cybele Vidal N. Fernandes
Segundo Vitor Serrão, pode-se definir a pintura do brutesco em Portugal da seguinte
maneira:
“Tem um perfil a parte, que se resume particularmente na amplitude das folhas acânticas nervosamente
entrelaçadas, no recurso dos doirados, no cromatismo dos vegetalismos, na exuberância dos motivos
acessórios e, principalmente, na sapiente articulação espacial que tais decorações assumem na sua
aliança apaixonada com o azul e a talha”.14
O pesquisador considera que, em Portugal, esse tipo de decoração não foi uma
expressão simplesmente ligada às raízes italianas, francesas ou flamengas. Na verdade,
revelou-se com originalidade, exigiu especialização dos artistas, e contribuiu para a afirmação
do Barroco, perfeitamente ambientado com os azulejos, os embutidos de mármore, a
talha dourada. E foi esse modelo português que chegou ao Brasil, e teve sua aplicação
intensificada a partir do movimento migratório de artistas e artífices nos séculos XVII e XVIII,
especialmente para a região das Minas Gerais.
A pintura em grotteschi no Brasil, séculos XVIII e XIX
Entendemos que, no Brasil, essa decoração não foi uma simples repetição da matriz
portuguesa, embora suas primeiras representações remontem aos séculos XVI e XVII, fase
maneirista. Em sua forma inicial, foi aplicada em muitas igrejas, mas a maioria desses
exemplares foi substituída por pinturas ilusionísticas, ou perdeu-se por falta de conservação,
ou ainda acham-se escondidos sob camadas de tintas ou painéis de talha.15
São poucos os exemplares remanescentes: na Bahia, na Sé de Salvador, o forro da
capela-mor e da sacristia da igreja; no Pará, na igreja do Colégio de Santo Alexandre, o forro
da sacristia. Em Minas Gerais, há exemplares preservados, de grande valor, como o forro
da capela-mor da Matriz de Tiradentes, do pintor Antônio Caldas, considerado uma obra
prima no mundo português.16 Várias influências podem ser observadas nesses exemplares,
uma vez que essa obra se revela fruto do fazer do artista que aqui viveu, e que inúmeros
fatores estão presentes no seu desvendamento. A liberdade criativa dos pintores da época
colonial os levou a empregar diversos elementos originais, como a flora e a fauna, junto aos
símbolos sagrados, em perfeita harmonia com o espírito fantasioso que caracteriza esse
tipo de decoração.
Quando o primeiro romantismo alemão propôs o retorno ao passado, o Neoclassicismo
se revelou como uma dessas vias e voltou-se para a busca de referenciais do passado
SERRÃO, Vitor; DACOS, Nicole (1992) “Do grotesco ao brutesco. As artes ornamentais e o fantástico em Portugal, séculos XVI
a XVIII”. In: Portugal e Flandres: visões da Europa, 1550 – 1680. Lisboa: Instituto Português de Património Cultural, Europália/91,
p. 125.
14
É esse o caso da “Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência”, por exemplo, obra encomendada a Francisco
Corrêa, segundo informa Mário Barata (1965, p. 65), depois substituído por pintura ilusionística ( capela-mor e nave) obra de
Caetano da Costa Coelho. Resta ainda no Rio de Janeiro, em razoável estado, o forro em caixotões da igreja do Mosteiro de São
Bento.
15
A atribuição da obra foi feita por Olinto dos Santos, por documento datado de 1751-1752, passado ao artista, “pelo douramento
da matriz”. A nave da igreja também é em caixotões mas, por suas características, deve ser obra posterior.
16
223
clássico, iniciada com a descoberta das cidades italianas de Herculano e Pompéia, então
dessoterradas. Nesse sentido, a decoração do palácio papal, realizada por Rafael no século
XVI, era uma referência muito segura. Assim, o pintor Gaetano Savorelli; o desenhista Ludovico
Teseo; o arquiteto Pietro Camporesi; os gravadores Giovanni Ottaviani e Giovani Volpato
solicitaram ao papa Clemente XIII licença para confeccionar gravuras, em água forte e pintura,
sobre a decoração do palácio papal. O trabalho foi publicado em Roma (cerca de 1772/1777)
tornou-se referência e foi adotado por instituições de ensino em diferentes países.
No Brasil, os registros da Academia Imperial das Belas Artes, em 1870, informavam que,
“por ordem do ministro Conselheiro Paulino José Soares de Souza tinham sido transferidas da Biblioteca
Nacional para as galerias escolares, trinta e oito gravuras a buril coloridas a guache, representando painéis
e elementos decorativos das loggias de Rafael”.17
Hoje essa série de gravuras faz parte do acervo do Museu D. João VI/EBA-UFRJ. Essas
gravuras são um referencial incontestável em relação aos princípios do Neoclassicismo e do
Romantismo, tendências artísticas que se desenvolveram no século XIX.
No Rio de Janeiro há um bom exemplo do emprego dos elementos grotescos,
o Palacete da Marquesa de Santos. Trata-se de uma casa nobre do século XIX, para
o imperador e sua favorita que, por suas funções, deveria merecer toda a atenção dos
arquitetos e decoradores (cerca de 1827/1828). Assim, o Salão dos Deuses, dependência
principal do palacete, além dos relevos comemorativos, recebeu uma decoração mural que
testemunha as ressonâncias do groteschi nas molduras que envolvem as cenas principais (
as “Alegorias dos Quatro Continentes - Europa, Ásia, África, América” e flores tropicais, em
vasos estilizados). Uma outra dependência do Palacete, o Salão da Aurora, para comemorar
o mundo conhecido, apresenta igualmente paisagens diversas, contornadas por motivos em
grotesco. A decoração pictórica foi realizada pelo pintor nacional Francisco Pedro do Amaral,18
com base na estética neoclássica, ainda impregnada do frescor rococó, e revela a atualidade
do gosto em relação a essa forma ornamental no Brasil, através da visão de um artista
local.
Referências Bibliográficas:
ARGAN, G. C. “Renacimiento y barroco. 1- El arte italiano de Giotto a Leonardo da Vinci; 2- De Miguel Angel a Tiépol”.
Madrid: Editora Akal, 1987.
ARGAN, G. C. “Clássico anticlássico. O Renascimento de Bruneleschi a Bruegel”. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
A série de gravuras encontra-se no Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da UFRJ, Cidade Universitária. As pranchas têm
os seguintes registros: Vista da loggia, 3430 - A primeira família, 3431; A construção da arca, 3432 – Abrahão e seus filhos, 3433 –
Deus aparece a Isaac, 3434 - Moisés salvo das águas, 3435 - Moisés e as tábuas da lei, 3436 - A queda de Jericó, 3437 – O triunfo
de David, 3438 – O julgamento de Salomão, 3439 – A última ceia, 3440 – As demais são detalhes das pilastras da galeria, com
indicação “p” e o número correspondente em romano: P I, 3441 – PII, 3442 – PIII, 3443- PIV,3444 – PV, 3445 – PVI, 3446 – PVII,
3447- PVIII, 3448 –PIX, 3449 PX, 3450 – PXI, 3451 – PXII, 3452 – PXIII, 3453 –PXIII, 3454 – PXIII, 3455 – P XIII, 3456 – P XIII,
3457 – PXIII, 3458- PXIII 3459 –PXIII, 3460- PXIII, 3461, PXIII, 3467. Sobre a transferência das gravuras conferir: MORALES DE
LOS RIOS FILHO, Adolfo (1938), p. 45.
17
Sobre o artista há uma observação de Porto-Alegre:” Homem perseverante no estudo, teve a coragem de copiar todos os
arabescos de Rafael, todas as composições de Percier, para abandonar pela escola clássica a borromínica, em que foi educado
por Manoel da Costa”.PORTO-ALEGRE, Manoel de A. Iconografia brasileira – Francisco Pedro do Amaral. In: Revista do IHGB.
Rio de Janeiro: IHGB, tomo 19, 1856, P. 375-378.
18
224
A longa duração do grotteschi e suas múltiplas faces - Cybele Vidal N. Fernandes
BRAGA, Sofia F. “Pintura mural neoclássica em Lisboa. Cyrillo Volkmar Machado no Palácio do Duque de Lafões e Pombeiro
– Belas”. Lisboa: Edição Scribe Produções Culturais Ltda, 2012.
CAMPOS, Jorge L.de. “Sobre Riegl, Panofsky e Cassirer: a intencionalidade histórica da representação espacial”. In:
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FERNANDES, Cybele V. N. “A decoração em grotteschi na obra de Rafael como referência para o ensino artístico na
Academia Imperial das Belas Artes do Rio de Janeiro”. Porto: Edições Afrontamento / Universidade do Porto / CEPESE,
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FERNANDES, Cybele V.N. “O complexo caminho: da encomenda à obra realizada. Uma casa nobre no Rio de Janeiro”.
In: FERREIRA-ALVES, Natalia M (org. ) “A encomenda. O artista. A obra”. Porto:Universidade do Porto / CEPESE, 2010,
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FRANÇA, José-Augusto. “A arte em Portugal no século XIX”. Lisboa: Bertrand Editora, 1990, 2 volumes.
JANNEA, Giullaume. “Dicionário de estilos”. Rio de Janeiro: Editora Larousse, 1966.
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SERRÃO, Vitor; DACOS, Nicole. “Do grotesco ao brutesco. As artes ornamentais e o fantástico em Portugal, séculos XVI a
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VASARI, Giorgio.”Le vite dei più eccelenti pittori, scultori e architetti Il primo fundamentale testo della storia dell´arte italiana”.
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VITRUVIO. “Da arquitetura”. São Paulo: Annablume Editoria/ Hucitec, 2002.
225
226
A Paixão de Cristo por José Joaquim da Rocha, depois de Adrien Collaert - Luiz Alberto Ribeiro Freire
A Paixão de Cristo por José Joaquim da Rocha, depois de Adrien Collaert
Luiz Alberto Ribeiro Freire
Universidade Federal da Bahia - UFBA
Resumo: Entre 1785 e 1786 o pintor José Joaquim da Rocha desempenhou uma
encomenda feita pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia, constante de dezesseis
painéis, sendo oito narrando os passos da Paixão de Cristo e oito com as armas de
Cristo apresentadas por anjos. Os painéis se destinavam à Procissão dos Fogaréus.
Do nosso contato com as obras de J. J. da Rocha no Museu de Arte da Bahia, sempre
observamos a diferença estilística entre os painéis narrativos e os das armas de Cristo.
Agora conseguimos identificar as gravuras que provavelmente serviram de base para as
cenas narrativas, essas gravuras são da autoria de Adrien Collaert, gravador europeu
nascido na Antuérpia, entre 1555-1565 e morto na mesma cidade em 1618. Em 1588
gravou uma série sobre a Paixão de Cristo, da qual podemos relacionar algumas delas
às composições de Rocha e analisar os procedimentos e decisões do artista.
Palavras-chave: José Joaquim da Rocha; Adrien Collaert; Paixão de Cristo; Procissão
dos Fogaréus; Bahia.
Abstract: Between 1785 and 1786 the painter José Joaquim was hired to execute a work
for Santa Casa de Misericórdia in Bahia, which was composed by sixteen panels, eight
of them were a narrative of The Passion of Christ (the Stations of the Cross), and eight
displaying the coat of arms of Jesus Christ presented by angels. The panels should be
used in the Procession of Fogaréus. When we observed J.J. da Rocha’s artistic works in
the Museu de Arte Moderna da Bahia, we have always noticed the stylistic differences
between the narrative panels and the ones with the coat of arms of Christ. Now we can
identify the engravings that were probably used as a base to the narrative scenes. The
author of these engravings is Adrien Collaert, European engraver that was born in Antwerp,
between 1556 and 1565 and died in the same town, in 1618. In 1588 he engraved a set of
Passion of Christ, from some of which we can find relations to the Rocha’s compositions
in order to analyse the procedures and the decisions made by the artist.
Keywords: José Joaquim da Rocha; Adrien Collaert; The Passion of Christ; The
Procession of Fogaréus; Bahia.
Os passos da paixão pintados por José Joaquim da Rocha entre 1785-86 para figurarem
na Procissão dos Fogaréus, realizada pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia, estiveram
por cerca de 70 anos no acervo do Museu de Arte da Bahia, expostos permanentemente.
227
Do contato diuturno com essas obras e da observação das suas composições questionamos
acerca da diferença estilística entre os painéis narrativos dos passos da Paixão de Cristo e dos
seus correspondentes simbólicos das Armas de Cristo.
Há entre eles uma diferença estilística que consiste nos acentuados traços da pintura
barroca italiana presentes nos painéis das Armas de Cristo apresentadas por anjos, nos quais
podemos observar as cinco categorias criadas por Wolfflin para tipificar a pintura barroca,
enquanto nos narrativos há uma contenção maior dos movimentos e uma ordenação compositiva
menos dinâmica, com narrativa mais desdobrada e povoada de personagens.
Uma parte dessa questão resolvemos nos anos 1997-98, quando identificamos na
coleção de gravuras da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Portugal uma
série das Armas de Cristo de autoria do gravador francês Elie du Bois e da mesma série feita
pelo gravador Egídio Sadeler II1.
A comparação entre as duas séries de gravuras e as pinturas de José Joaquim da Rocha
renderam a publicação de um artigo intitulado As “Arma Christi” de Elie du Bois e José Joaquim
da Rocha2 e de um compact disk3 com uma mídia completa em que analisamos os aspectos
históricos, religiosos e artísticos.
A crescente disponibilização eletrônica dos fundos iconográficos europeus nos possibilitou
identificar a série de gravuras flamengas da Paixão de Cristo realizadas por Adrien Collaert,
depois de Maarten de Vos, editadas por Cornellis Galle I e Phillips Galle, e compará-las com
os passos pintados por José Joaquim da Rocha. Permitindo assim, o estudo mais completo do
conjunto baiano e de suas fontes iconográficas.
Ainda não se conhece a origem do pintor José Joaquim da Rocha. Era branco4, solteiro,
morador junto a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe5, provavelmente em uma das ruas
transversais à Rua José Joaquim Seabra, entre o Corpo de Bombeiro e o largo da Barroquinha6.
Integrava a Irmandade de São Pedro Velho desde 5 de novembro de 1786, tendo sido eleito
Irmão da Ressureição e empossado em 5 de novembro de 17867. Era também irmão da Ordem
Terceira de Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão, constando no seu Abecedário que o
artista pagou as suas contribuições de 1789 a 1801 e que o mesmo faleceu em 12 de outubro
de 1807 e foi sepultado no esquife de Nossa Senhora da Palma8.
1
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A paixão de Cristo segundo José Joaquim da Rocha, Egídio Sadeler II e Eli Du Bois. Salvador:
Tecnomuseu Consultoria Ltda, 2003. Versão em Mídia (CD).
2
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As “Arma Christi” de Eli Du Bois e José Joaquim da Rocha. In.: Revista Museu. IV série. No 8.
Publicação do Círculo Dr. José de Figueiredo. Porto/Portugal, 1999, p. 151-181.
3
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A paixão de Cristo segundo José Joaquim da Rocha, Egídio Sadeler II e Eli Du Bois. Salvador:
Tecnomuseu Consultoria Ltda, 2003. Versão em Mídia (CD).
4
Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia (BC-UFBA) - Centro de Estudos Baianos (CEB).., OTT, Carlos. Fichas
avulsas.
5
BC-UFBa - CEB. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José Joaquim
da. - 1786. (Arquivo da Igreja de São Pedro Velho, 2º Livro de Termos de Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento, 17851823. Nr. 28) OTT, 1961, op. cit., p.108.
FARIAS, Mônica Farias Menezes. A pintura de falsa arquitetura em Salvador: José Joaquim da Rocha 1750 - 1850. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Escola de Belas Artes. 2012 - 2012. 1026 f.: Il. f. 518.
6
7
BC-UFBA- CEB. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José Joaquim
da. - 1786. (Arquivo da Igreja de São Pedro Velho, Livro dos Termos de Eleições e Posses, 1768-1870. Fl. 70v e 71v.)
8
BC-UFBA- CEB. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José Joaquim
228
A Paixão de Cristo por José Joaquim da Rocha, depois de Adrien Collaert - Luiz Alberto Ribeiro Freire
Em 31 de agosto de 1795 a Irmandade do Senhor da Cruz mandou fazer termo de irmão
à J. J. da Rocha “pela razão de conhecerem os grandes benefícios que sempre fes e faz a
nossa irmandade, achando-se sempre nelle hum louvável zello a tudo que hé para aumento do
culto do mesmo Senhor...”9.
Relacionava-se com outros artistas se apresentando como fiador juntamente com
o escultor Felix Pereira Guimarães do empréstimo de $150$000 contraído pelo entalhador
Antônio Joaquim dos Santos à Santa Casa de Misericórdia da Bahia em 1794.
Aparece na documentação das instituições religiosas baianas realizando diversas
obras de pinturas de cavalete, pinturas e douramentos de obras de talha e pintura de teto em
perspectiva de 1764 a 1801. Realizou muitos trabalhos para a Santa Casa de Misericórdia da
Bahia.
Sua maior obra em extensão e importância artística foi a pintura do teto em perspectiva
da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, obra de 1773. Outras pinturas de tetos em
perspectiva lhes são atribuídas sem, contudo, confirmação documental.
A memória oral lhe conferiu o lugar de fundador da Escola Baiana de Pintura dado à sua
capacidade de liderar oficina e formar discípulos, que continuaram nos séculos XVIII e XIX a
arte da pintura na Bahia, formando novos pintores e alcançando destaque social, a exemplo de
José Theófilo de Jesus e Antônio Joaquim Franco Velasco.
O gravador Adriaen Collaert nasceu na Antuérpia entre 1555 e 1565. Em 1580 ele se
tornou “wijnmeester” da guilda de São Lucas, título dado aqueles que eram filhos de membros
da Guilda, pois era filho do gravador Jean Collaert e de Anna van der Heijden. Casou-se
com Justa Galle, filha de Philip Galle, editor holandês conhecido pelas gravuras de pinturas.
Trabalhou para o sogro e para Gerard de Jode (onde fez edições reproduzindo as obras do
pintor e desenhista Maerten de Vos), Eduard Hoeswinckel and Hans van Luyck10.
A partir de 1593-1594 admitiu alunos e de 1589, trabalhou para a editora Plantijn Moretus,
fundada no século XVI por Christophe Plantin, assumida, depois da sua morte, por seu genro
Jan Moretus. Era irmão de Jan Collaert II. Dentre seus pupilos estão Jan Boel, Quirin Boel I,
Adriaan Boon, Jan Collaert II, e Abraham van Merlen. Fez também impressões independentes11.
Morreu na Antuérpia em 1618.
A primeira bandeira Jesus no Monte das Oliveiras, J. J. da Rocha toma como modelo a
gravura de número 3612 do mesmo tema de Cornelis Galle I (1576-1650) depois de Maarten de
Vos, editada por Adrien Collaert. O pintor mantém na sua pintura a postura de Jesus ajoelhado,
da. - 1786. (Arquivo da Igreja do Boqueirão, Abecedário de todos os irmãos da Venerável Ordem 3º da Imaculada Conceição da
Beata Maria Virgem do Boqueirão de 1789 a 1808, fl. 88) OTT, 1961, op. cit., p.108.
9
BC-UFBA- CEB. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José Joaquim
da. - 1795. (Arquivo da Igreja da Palma, Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz, Termos de Irmãos 1785-1831, fl. 107r. OTT,
1961, op. cit., p.108.
Adriaen Collaert. In Wikipedia The free Encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Adriaen_Collaert. Acesso em:
22/08/2015.
10
Adriaen Collaert. In Wikipedia The free Encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Adriaen_Collaert. Acesso em:
22/08/2015.
11
Gravura nº 36 de Cornelis Galle I, depois de Maarten de Vos, editada por Adrien Collaert. disponível em: http://www.statenvertaling.
net/kunst/iconclass/73D3121/2
12
229
corpo inclinado para frente, pé esquerdo aparente, mãos postas em oração, fisionomia contrita,
cabeça inclinada. No canto superior direito da composição um bloco de nuvens sustenta um anjo
que traz na mão esquerda um cálice e a direita segura uma cruz latina apoiada sobre o ombro.
O pintor deslocou os apóstolos que dormem para a direita da composição, na altura da
cintura de Jesus, elimina o detalhamento das vestes e acessórios apresentados. Deixa apenas
a cabeça e um pouco mais no apóstolo central, enquanto na gravura os três aparecem de corpo
inteiro, com suas vestes de farto panejamento e uma espada.
O esquema de iluminação é semelhante, mas o pintor fez uma alteração importante, colocou
um halo de luz que perfaz uma diagonal do canto superior direito até a cabeça de Cristo, passando
por traz do anjo e por entre os blocos de nuvens. O claro-escuro das vestes de Cristo repete o da
gravura (Figuras 1 e 2).
Figura 1 - Jesus no Monte das Oliveiras, 1785-86, óleo sobre tela, José Joaquim da Rocha, Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
Salvador.
230
A Paixão de Cristo por José Joaquim da Rocha, depois de Adrien Collaert - Luiz Alberto Ribeiro Freire
Figura 2 - Jesus no Monte das Oliveiras, gravura de nº 36 de Cornelis Galle I (1576-1650) depois de Maarten de Vos, editada por
Adrien Collaert
No segundo painel processional denominado Beijo de Judas e Violência de Pedro, o
pintor colocou dois episódios do Novo Testamento na mesma bandeira individualizando-os, mas
cuidando para que houvesse uma integração compositiva entre eles. O bloco do Beijo de Judas é
localizado no lado direito da tela e o tema da Violência de Pedro aparece na porção do centro para
a esquerda, perfazendo uma diagonal que relaciona as ações dos temas.
Decerto que Rocha se inspirou na gravura número 3713 do gravador Cornelis Galle, depois
de Maarten de Vos, resumindo a cena e sintetizando os temas, o que exigiu do pintor uma solução
bastante diferente daquela da gravura. Entretanto foi a gravura de número cinco14 de Adriaen
Collaert que forneceu a informação da cena do ato violento de Pedro decepando a orelha de
Malco, um dos servos do Sumo Sacerdote.
O painel da Flagelação de Cristo foi baseado na gravura de Nº 4715 de Adriaen Collaert. A
cena principal constante de três personagens é transplantada quase literalmente da gravura para
Gravura. Judaskus en arrestatie van Christus, Cornelis Galle (I), Adriaen Collaert, 1598 - 1618. Disponível em: https://www.
rijksmuseum.nl/en/collection/RP-P-1885-A-9659, Acesso em 22 de agosto de 2015.
13
Gravura. Judaskus en arrestatie van Christus, Adriaen Collaert, 1570 - 1618, 8,6 × 6,4cm. Disponível em: https://www.rijksmuseum.
nl/en/collection/RP-P-BI-6063XD. Acesso em 22 de agosto de 2015.
14
Gravura. Geseling van Christus, Adriaen Collaert, 1598 - 1618. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/RP-P1885-A-9663. Acesso em 22 de agosto de 2015.
15
231
a pintura: o cenário arquitetônico é repetido com simplificação, mantendo-se a ordem toscana
da coluna, a postura e a movimentação dos personagens são idênticas, com pequenas
alterações como o joelho do carrasco da direita da composição escondido atrás da coluna.
É notável também as modificações nos trajes, nos quais se mantem a forma geral e
elimina-se os pormenores. Um procedimento comum na pintura dos painéis traseiros, os das
Armas de Cristo e que se justifica na funcionalidade das bandeiras. O óculo gradeado do
fundo da gravura e os personagens aí situados, assim como os da esquerda são eliminados
da pintura, afinal era preciso síntese.
Supomos que a gravura que informou o painel do Ecce Homo tenha sido a de nº 19 de
Conrad Meyer16 (1618 - Zurique -1689). Parece ter contribuído com o ambiente arquitetônico
constituído de pilastras retas sobre patamar curvo, que Rocha fez reto.
O grupo central dessa gravura pode também ter inspirado o pintor, que interviu mudando
a lateralidade e fazendo com que o grupo de protagonistas ocupasse uma diagonal que vai
do centro à direita da tela, ficando Jesus exatamente no eixo central. É notável a repetição
do Sumo Sacerdote com um dos braços apoiados sobre a pilastra.
O templo circular pode ter sido indicado pela gravura do Ecce Homo de Adriaen
Collaert depois de Ioan Strada, produzida por Phillips Galle17. Rocha novamente colocou dois
episódios em um único quadro resolvendo com objetividade e clareza o escárnio de Cristo
quando foi coroado de espinhos, vestido com um manto real e recebendo a cana verde como
cetro, diante da população, situada embaixo, que decide pela crucificação de Jesus.
Pedro, um dos seus apóstolos, nega por três vezes que conhece Cristo, ao final da
terceira negação, o galo cantou, confirmando a profecia: “Digo-te, Pedro, não ressoará hoje o
galo até que três vezes negue me conhecer” (Lc. 22,34)18. O painel narrativo se complementa
com o simbólico em que o galo figura como arma.
Não temos dúvidas de que a gravura nº 44 de Adriaen Collaert19, depois de Maarten de
Vos, que narra o episódio em que Pilatos lava as mãos e entrega Jesus para o julgamento
popular informou a cena em que J. J. da Rocha pintou para esse passo da paixão.
Reduziu o número dos personagens para três, novamente simplificou tudo, inclusive o
tablado. O serviçal que segura a bacia repete a posição e o gestual da gravura, suprimindo
a espada; o que segura o gomil, que na gravura está completamente aparente, em plano
central, na pintura se esconde em grande parte atrás de outro personagem que conduz
Jesus, mas repete a postura do da gravura, inclusive a deferência que faz suspendendo o
gorro. O pintor compactou a composição cuidando mais uma vez da clareza das imagens.
Gravura. Ecce Homo. Conrad Meyer, Swiss, 1618 - 1689. Disponível em: http://www.philamuseum.org/collections/
permanent/10562.html?mulR=373039175|9. Acesso em 22 de Agosto de 2015.
16
Gravura. Ecce Homo de Adriaen Collaert depois de Ioan Strada produzida por Phillips Galle. Disponível em: https://www.
rijksmuseum.nl/en/collection/RP-P-1985-251. Acesso em 22 de Agosto de 2015.
17
18
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém.Dir. Paulo Bazaglia. São Paulo:Paulus, 2002. 2206 p. p. 1829.
Gravura. Pilatus wast zijn handen, Adriaen Collaert, 1598 - 1618. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/search/objecten
?q=Adraen+Collaert&f=1&p=41&ps=12&ii=10#/RP-P-1885-A-9666,487. Acesso em 22 de Agosto de 2015.
19
232
A Paixão de Cristo por José Joaquim da Rocha, depois de Adrien Collaert - Luiz Alberto Ribeiro Freire
A postura do Sumo Sacerdote e a forma do traje coincidem muito, mas o pintor trabalhou
no sentido de eliminar os ornatos e definir cada parte da vestimenta com cores mais uniformes
e diferentes.
O grupo formado por Cristo e os dois guardas que o conduzem à multidão também repetem
os gestos e movimentação dos personagens, havendo o mesmo trabalho de simplificação das
vestes e destaques delas pela diferenciação da cor e supressão da espada do guarda do
primeiro plano.
Cristo fica destacado por sua túnica azul e auréola na cabeça. O restante do destacamento
da guarda romana que aparece na gravura é suprimido na pintura (Figuras 3 e 4).
Figura 3 - Pilatos lavando as mãos, 1785-86, óleo sobre tela, José Joaquim da Rocha, Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
Salvador.
233
Figura 4 - Pilatos lavando as mãos. Gravura de nº 44 do gravador Adrien Collaert (1555-65-1618) depois de Maarten de Vos.
Certamente a gravura nº 45 de 51 da série da vida, paixão e ressureição de Cristo
de Adriaen Collaert depois de Maarten de Vos (1598), executada por Joan Galle intitulada:
Cristo carregando a cruz e o milagre do sudário de Verônica20 informou a bandeira A caminho
do calvário pintada por Rocha, ou a gravura nº 1521 de Adriaen Collaert.
O pintor altera a lateralidade e recorta o bloco central sintetizando a cena. Mais uma vez
reúne duas informações no mesmo quadro, o do encontro com as mulheres de Jerusalém,
as três Marias e a Virgem e o da ajuda que Simão Cireneu deu a Jesus carregando a cruz
no trajeto.
Na gravura, a ênfase recai sobre a Verônica que se ajoelha diante de Cristo com o
pano na mão, na pintura somente duas mulheres estão presentes, a Virgem Maria que se
destaca por seu manto azul e mãos postas em oração e por outra que lhe fica próxima.
Apesar da inexistência do pano com a efígie de Cristo no painel narrativo, o painel da insígnia
correspondente consiste em um anjo com a Verônica.
Gravura. Christ carrying the Cross and the Miracle of Veronica's Sudarium. Adrien Collaert (Antwerp, c. 1560-1618), Engraving
after Maarten de Vos, 1598. Number 45 of a series of 51 engravings on The Life, Passion and Resurrection of Christ. Disponível
em: https://www.pinterest.com/pin/327003622917711021/. Acesso em 22 de Agosto de 2015.
20
Gravura. Kruisdraging, Adriaen Collaert, 1570 - 1618, .8,6 × 6,4cm. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/nl/collectie/RP-PBI-6063XN. Acesso em 22 de agosto de 2015.
21
234
A Paixão de Cristo por José Joaquim da Rocha, depois de Adrien Collaert - Luiz Alberto Ribeiro Freire
A cena pintada é uma das mais povoadas de personagens, mas muito menos do que a
gravura. O Cristo ajoelhado com a cruz às costas com sua auréola domina o primeiro plano
e o centro dele.
Infelizmente, o painel narrativo da Crucificação de Cristo pintado por Rocha não
foi preservado, desapareceu sem qualquer registro ou notícia sobre o que lhe sucedeu.
Provavelmente a gravura de nº 1822 de Adriaen Collaert informou a cena.
O oitavo e último painel narrativo dos Passos da Paixão de J. J. da Rocha apresenta o
tema do Sepultamento de Cristo. Parece muito provável que a gravura que serviu de modelo
para o pintor foi a gravura do mesmo tema de Jan Sadeler (1550-1600) depois de Dirk
Barendsz.(c. 1586)23.
O pintor muda a lateralidade da cena colocando-a voltada para o lado direito do
observador, enquanto a da gravura volta-se para o lado esquerdo. A cabeça de Cristo foi
descoberta, já que na gravura ela se esconde sob o braço o sovaco do fariseu José de
Arimatéia.
Dos nove personagens da cena da gravura o pintor manteve sete. O túmulo torna-se
quadrangular na pintura e o corpo de Cristo morto jaz em posição semelhante à gravura. Ao
lado da tumba, no chão estão o vaso de unguento, a coroa de espinhos e um pano. Os homens
sustentam o corpo de Cristo, enquanto as mulheres, inclusive a Virgem Maria, situam-se no plano
de fundo e estão melancólicas com as cabeças inclinadas.
A interpretação da gravura que o pintor mexicano Juan Rodriguez Juaréz dá à sua pintura em
cerca de 170224 é muito mais literal do que a de Rocha e, se observada as vestes do personagem
que dá as costas ao observador e segura as pernas de Cristo, pensamos ter tido Rocha contato
com a reprodução da pintura mexicana.
Com a identificação dessas fontes iconográficas fica explicada a diferença estilística que
há entre as cenas narrativas e as emblemáticas pintadas por Rocha. As gravuras que informaram
foram produzidas em Flandres entre as últimas décadas do século XVI e as primeiras do
século XVII. Nesse período, a lógica da narrativa renascentista ou de transição para o barroco
preponderava. O artista recorria às gravuras25 ou aos debuxos que lhes estivessem ao alcance,
independentemente da época em que foram produzidos.
Rocha por sua vez confere uma harmonia às bandeiras dos passos da paixão pela constância
de uma paleta reduzida e contrastante, pela simplificação dos elementos, pela suavização dos
semblantes, não descuidando de indicar a malignidade dos algozes; pela objetividade e clareza dos
Gravura. Kruisiging met lanssteek, Adriaen Collaert, 1570 - 1618,8,6 × 6,4cm. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/nl/
collectie/RP-P-BI-6063XQ. Acesso em 22 de agosto de 2015.
22
Gravura. The Entombment. Jan Sadeler (Dutch, 1550-1600). Engraving after Dirk Barendsz., c. 1586. Disponúivel em: http://
www.spaightwoodgalleries.com/Pages/bible.lamentation.html. Acesso em 22 de Agosto de 2015.
23
Pintura. The Entombment of Christ México, c. 1702. JUARÈZ, Juan Rodriguez. Oil and gold on copper. Disponível em: http://
www.metmuseum.org/collection/the-collection-online/search/631985. Acesso em 22 de Agosto de 2015.
24
Há poucas provas documentais da existência dessas gravuras e dos debuxos na oficina dos artistas no Brasil. Hudson Martins
revelou o testamento do pintor João Nepomuceno Correia de Castro datado de 1795 em que deixava para seus discípulos
“estampas, riscos e debuxos”. MARTINS, Hudson Lucas. O Mestre pintor: A trajetória de João Nepomuceno Correia Castro e a
arte da pintura em Minas Gerais nos séculos XVIII. 2013. 144 fl. Il. Dissertação (Mestrado Acadêmico em História), Instituto de
Ciências Humanas, Juiz de Fora. 2013. Fl. 29.
25
235
motivos e, sobretudo, pela capacidade de integrar dois assuntos em um só painel, apresentandoos de forma inconfundível para a clareza da razão e movimento dos afetos.
A suavização dos semblantes diz diretamente do conceito de santificação das imagens
divinas, que no Brasil estava relacionada à fisiologia europeia de pele branca, faces róseas,
narizes afilados, bocas delineadas, mãos com dedos delgados e olhos claros.
As modificações que simplificam, sintetizam, contrastam os tons e enfatizam as ações pela
luz e cor e integram ações diferentes em uma única imagem devem-se às finalidades dos painéis,
que era a de figurarem na Procissão dos Fogaréus, que revivia a busca e a prisão de Cristo, em uma
Salvador pouco iluminada pelas tochas dos integrantes do cortejo. Deveriam atuar didaticamente,
ensinando o sacrifício que Cristo fez voluntariamente para a salvação da humanidade.
Referências Bibliográficas:
FARIAS, Mônica Farias Menezes. A pintura de falsa arquitetura em Salvador: José Joaquim da Rocha - 1750 - 1850. 2012. 518
f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Escola de Belas Artes, Salvador.
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A paixão de Cristo segundo José Joaquim da Rocha, Egídio Sadeler II e Eli Du Bois. Salvador:
Tecnomuseu Consultoria Ltda, 2003. Versão em Mídia (CD).
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As “Arma Christi” de Eli Du Bois e José Joaquim da Rocha. In.: Revista Museu. IV série. n. 8.
Publicação do Círculo Dr. José de Figueiredo. Porto/Portugal, 1999, p. 151-181.
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Dir. Paulo Bazaglia. São Paulo:Paulus, 2002. 2206 p.
MARTINS, Hudson Lucas. O Mestre pintor: A trajetória de João Nepomuceno Correia Castro e a arte da pintura em Minas
Gerais nos séculos XVIII. 2013. 144 fl. Il. Dissertação (Mestrado Acadêmico em História), Instituto de Ciências Humanas, Juiz
de Fora.
Arquivísticas:
Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia (BC-UFBA). Centro de Estudos Baianos (CEB). Ott, Carlos. Fichas
avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José Joaquim da.
BC-UFBA - CEB. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José
Joaquim da. - 1786. (Arquivo da Igreja de São Pedro Velho, 2º Livro de Termos de Irmãos da Irmandade do Santíssimo
Sacramento, 1785-1823. Nr. 28) OTT, 1961, op. cit., p.108.
BC-UFBA- CEB. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José
Joaquim da. - 1786. (Arquivo da Igreja de São Pedro Velho, Livro dos Termos de Eleições e Posses, 1768-1870. Fl. 70v e 71v.)
BC-UFBA- CEB. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José
Joaquim da. - 1786. (Arquivo da Igreja do Boqueirão, Abecedário de todos os irmãos da Venerável Ordem 3º da Imaculada
Conceição da Beata Maria Virgem do Boqueirão de 1789 a 1808, fl. 88) OTT, 1961, op. cit., p.108.
BC-UFBA- Centro de Estudos Baianos. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores
- ROCHA, José Joaquim da. - 1794. (Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Salvador, Livro 4º de escrituras, fl. 283r. - 285r.)
OTT, 1961, op. cit., p.108.
BC-UFBA- CEB. OTT, Carlos. Fichas avulsas datilografadas - Registro de pesquisa arquivistica. Pintores - ROCHA, José
Joaquim da. - 1795. (Arquivo da Igreja da Palma, Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz, Termos de Irmãos 1785-1831, fl.
107r. OTT, 1961, op. cit., p.108.
Eletrônicas:
Adriaen Collaert. In Wikipedia The free Encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Adriaen_Collaert. Acesso
em: 22/08/2015.
Gravura nº 36 de Cornelis Galle I, depois de Maarten de Vos, editada por Adrien Collaert. disponível em: http://www.
statenvertaling.net/kunst/iconclass/73D3121/2
Judaskus en arrestatie van Christus, Cornelis Galle (I), Adriaen Collaert, 1598 - 1618. Disponível em: https://www.rijksmuseum.
nl/en/collection/RP-P-1885-A-9659
Gravura. Geseling van Christus, Adriaen Collaert, 1598 - 1618. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/RPP-1885-A-9663
Gravura. Ecce Homo. Conrad Meyer, Swiss, 1618 - 1689. Disponível em: http://www.philamuseum.org/collections/
permanent/10562.html?mulR=373039175|9.
Gravura. Ecce Homo, Jan-Baptist Barbé, Adriaen Collaert, 1598 - 1618. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/search/
objecten?q=Adraen+Collaert&f=1&p=3&ps=12&ii=1#/RP-P-1885-A-9665,22
Gravura. Ecce Homo de Adriaen Collaert depois de Ioan Strada produzida por Phillips Galle. Disponível em: https://www.
rijksmuseum.nl/en/collection/RP-P-1985-251.
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A Paixão de Cristo por José Joaquim da Rocha, depois de Adrien Collaert - Luiz Alberto Ribeiro Freire
Gravura. Pilatus wast zijn handen, Adriaen Collaert, 1598 - 1618. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/search/object
en?q=Adraen+Collaert&f=1&p=41&ps=12&ii=10#/RP-P-1885-A-9666,487
Gravura. Christ carrying the Cross and the Miracle of Veronica’s Sudarium (New Hollstein 218iv/iv), Adrien Collaert (Antwerp,
c. 1560-1618). Engraving after Maarten de Vos, 1598. Number 45 of a series of 51 engravings on The Life, Passion and
Resurrection of Christ. Disponível em: https://www.pinterest.com/pin/327003622917711021/
Gravura. Christ carrying the Cross and the Miracle of Veronica’s Sudarium (New Hollstein 218iv/iv), Adrien Collaert (Antwerp,
c. 1560-1618), Engraving after Maarten de Vos, 1598. Number 45 of a series of 51 engravings on The Life, Passion and
Resurrection of Christ. Disponível em: http://spaightwoodgalleries.com/Pages/Bible_Crucifixion.html
Gravura. The Entombment (TIB 7001:177, Holl. 188). Jan Sadeler (Dutch, 1550-1600), Engraving after Dirk Barendsz., c. 1586.
Disponível em: http://www.spaightwoodgalleries.com/Pages/bible.lamentation.html
Pintura. The Entombment of Christ. JUARÈZ, Juan Rodriguez. México, c. 1702. Oil and gold on copper. Disponível em: http://
www.metmuseum.org/collection/the-collection-online/search/631985
237
238
Três encantamentos do Brasil com a arte funerária italiana - Maria Elizia Borges
Três encantamentos do Brasil com a arte funerária italiana
Maria Elizia Borges
Universidade Federal de Goiás - UFG
Resumo: A arte funerária italiana despertou nos brasileiros três encantamentos. O primeiro
a se encantar foi D. Pedro II, por ocasião de sua visita ao Cemitério Staglieno de Gênova,
Itália, em 1888. No século seguinte, os brasileiros encantaram-se com as marmorarias
italianas que se instalaram nas regiões brasileiras que viviam o auge da riqueza advinda
da cultura cafeeira, e seu ideário artístico contribuiu para a formação do gosto estético da
época. Logo depois, veio o período do terceiro encantamento, quando famílias brasileiras
abastadas começam a contratar escultores da Itália para prestar serviços estatuários
no país. Vieram para o Brasil escultores realistas, que registraram os valores morais da
família brasileira, e simbolistas, que enalteceram o erotismo da “morte bela”. Este artigo
aborda, portanto, o olhar brasileiro sobre o mundo exterior de D. Pedro II, bem como a
contribuição de marmorarias, marmoristas e escultores para a arte funerária brasileira.
Palavras-chave: arte funerária; escultura italiana; Brasil; século XX.
Abstract: The Italian funerary art aroused in Brazilian three spells. The first to be enchanted
was Dom Pedro II, during his visit to Staglieno Cemetery in Genoa, Italy, in 1888. In the
following century, the Brazilian became enchanted with Italian marble shops who settled
in Brazil in upcoming wealthy regions of the coffee plantations, and these artistic models
helped shape the aesthetic references of the time. Soon after came the period of the third
spell, when to the country. They came to Brazil as Realistic sculptors, who portrait the
moral values ​​of the Brazilian family, and the Symbolists, who praised the eroticism of the
“beautiful death.” This article discusses the Brazilian view over the outside world of D.
Pedro II, as well as the contribution of marble shops, marble workers and sculptors for the
Brazilian funerary art.
Keywords: funerary art; Italian sculpture; Brazil; XX century.
O primeiro encantamento
“3 de abril de 1888, Gênova. Campo Santo. Vi os
principais monumentos fúnebres, entre os quais o
de Mazzini. A vista do ponto mais alto é muito bela”.
(Anotações de D. Pedro II; De volta à Luz, 2003:136).
Possivelmente o primeiro encantamento dos brasileiros com os cemitérios italianos
ocorreu 60 anos depois da recomendação de D. Maria de Portugal para o bispo do Rio de
239
Janeiro, Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, para que se construíssem
cemitérios separados da igreja, tal como já se fazia na Europa. Sabe-se que quando D. Pedro II
foi a Gênova, em 1888, fez questão de visitar o Cemitério de Staglieno com o renomado fotógrafo
local, Alfredo Noack(1833 -1895).1 As fotografias tiradas à época fazem parte da Coleção de D.
Thereza Christina Maria, acervo fotográfico hoje conservado pela Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro e trazido a público com a exposição De Volta à Luz, promovida pelo Instituto Cultural
Banco Santos, em 2003.
Trata-se de 126 imagens de viagens da família imperial brasileira, do acervo pessoal de
D. Pedro II, um colecionador pioneiro no Brasil, que não só selecionou obras de importantes
fotógrafos da história da fotografia universal e como também os contratou para prestar serviços
a ele e assim construiu uma memória visual bem diversificada da Europa e do Oriente Médio,
inclusive, do Cemitério de Staglieno, de Gênova, Itália, e do Cemitério Árabe da cidade de
Tourab, no Egito. Essa sua curiosidade aguçada constitui nosso objeto de estudo, pois nos
permite ponderar sobre o olhar brasileiro sobre o mundo exterior do imperador diante das obras
funerárias italianas.
Durante sua visita ao Cemitério de Staglieno, em Gênova, D. Pedro II chama a atenção
para o Jazigo-capela de Giuseppe Mazzini (1805-1872), construído pelo arquiteto Gaetano
Vittorio Grasso entre 1874 e 1877. Acreditamos que o imperador brasileiro se referia mais à
importância do herói italiano do que à obra em si, que simboliza o Revival Clássico ao representar
um panteão incrustado na pedra com colunas dóricas em granito.·.
D. Pedro II destaca a bela vista do Cemitério Staglieno, que é considerado como um dos
melhores exemplos de cemitério monumental da Europa, denominado como autêntico “museu a
céu aberto”.2 O cemitério está situado na encosta dos Apeninos e possui uma entrada majestosa,
que conduz ao Templo dos Sufrágios (panteão), ladeado por galerias. Nestas estão concentradas
as melhores obras escultóricas, com linguagens artísticas em estilos neoclássico, realista,
simbolista, liberty e art déco.
Esses monumentos tornaram-se referência para os escultores funerários e marmoristas
da Europa, da América do Norte e da América do Sul, inclusive para os imigrantes italianos
que vieram para o Brasil. Todo esse conjunto confirma também a importância das escolas de
escultores que existiam na região e nas demais partes da Itália.
O fotógrafo Alfredo Noack vendeu para D. Pedro II algumas imagens expostas nas galerias
do Cemitério de Staglieno, a saber:
Monumento da família Raggio, 1872 - obra realista do escultor Augusto Rivalta
(Alessandria,1837 - Florença, 1925). Um dos melhores exemplos do realismo burguês, a
1
Coube a Alfredo Noack fazer as fotografias em papel albuminado, um tipo de papel fotográfico de algodão ou de linho obtido a
partir da clara de ovo e que recebe um banho de nitrato de prata. Era o procedimento fotográfico mais popular do século XIX e
como resultado a imagem é esmaecida e/ou amarelada (DE VOLTA À LUZ, 2003).
2
O Cemitério de Staglieno foi inaugurado oficialmente em 1851 e segue o projeto neoclássico e grandiloquente do arquiteto
Carlo Barabino (1768-1835), mas foi executado por seu discípulo Giovannia Battista Resasco (1799-1872). A estrutura do núcleo
originário do cemitério é quadrangular: há o setor das galerias; o jardim do bosque; o panteão; o columbário e o quadrilátero
interno para as sepulturas comuns. Atualmente existem áreas reservadas para os protestantes, os hebreus, os ortodoxos gregos
e para os muçulmanos, e uma seção dedicada aos anglicanos militares e civis (GUERELLO, 2004).
240
Três encantamentos do Brasil com a arte funerária italiana - Maria Elizia Borges
composição é uma concepção de morte burguesa. Os gestos e expressões dos rostos dos filhos,
da nora e da esposa, que se encontram em torno do leito de morte do industrial Carlo, expressam
seus sentimentos de dor e de tristeza (Figura 1).
Figura 01 - Monumento da família Raggio, 1872 - obra realista do escultor Augusto Rivalta. Cemitério Staglieno, Gênova,
Itália. Foto: Ana Rita V. Fernandes, 2015.
241
Monumento do Capitão da Marinha Erasmo Piaggio, 1876 - obra neoclássica do escultor
Santo Saccomanno (Genova, 1833-1914). O escultor recorre ao motivo iconográfico da
antiguidade clássica ao retratar O Pai do Tempo - um anjo de tamanho natural, idoso, sentado
sobre um túmulo e ao seu lado, no chão, o crânio -, alegoria que simboliza o inevitável destino
do homem.
Monumento do comerciante Francesco Oneto, 1882 - obra simbolista do escultor Giulio
Monteverde (Bistagno, 1837; Roma, 1917). Para Sandra Berresford (2004), o olhar sensual
e ambíguo do anjo esculpido para o monumento desafia o observador, já que ele próprio
cobre a parte de cima do seu corpo com as mãos, um gesto normalmente reservado à mulher
surpreendida pela nudez. O anjo perde sua conotação cristã, pois tem uma postura herética,
uma vestimenta transparente e uma modelagem perfeita do corpo. Berresford (2004) considera
essa obra como padrão da ideia simbolista da “beleza da morte”, em que as características
eróticas desta foram sublimadas e reduzidas à beleza.
Monumento de Ada Carrena, 1898 - obra do escultor Giovanni Scanzi (Gênova, 18401915). Provavelmente D. Pedro II encantou-se com a maneira como o escultor retrata a
liberdade de uma criança saltando por entre as flores, vestida com sua camisolinha esvoaçante
a caminho do céu, uma concepção da pureza da alma infantil. Scanzi cultiva em outras obras
os mesmos conceitos simbolistas: o do belo e do sublime.
Desde sua inauguração, o Cemitério Staglieno passou a ser visitado por pessoas ilustres,
tais como Elizabeth, rainha do Reino Unido; o escritor e poeta francês Guy de Maupassant;
o filósofo alemão Nietzsche e, no nosso caso, D. Pedro II, que tinha sede de conhecimento e
paixão pela fotografia como registro histórico de um momento. Para Annateresa Fabris (1997,
p. 67), o imperador estava “mais atento ao potencial informativo da nova imagem do que a uma
possível carga estética”.
Podemos então deduzir que o acervo fotográfico dos monumentos funerários condiz
com o gosto particular do imperador e que coincidentemente são obras avultadas no percurso
artístico que se faz no cemitério atualmente (GUERELLO, 2004). Em visita recente ao local,
ficamos desconsoladas com a falta de conservação e de manutenção do cemitério como um
todo.
O segundo encantamento
“A escultura funerária vive além dos limites do padrão
acadêmico corrente, não é para ser contemplada como um
fato estético e cumpre a função específica, como a maioria
dos objetos da arte popular, sendo popular mais que
individual na sua motivação”. (LICHT, 1979:199)
A visão de Fred S. Licht (1979) sobre a escultura funerária realizada após a produção
escultórica do italiano Antônio Canova (1757- 1822) vem ajustar-se com a produção dos
marmoristas (artistas artesãos) italianos que chegaram ao Brasil no fim do século XIX e começo
242
Três encantamentos do Brasil com a arte funerária italiana - Maria Elizia Borges
do século XX. Diríamos que esse é o segundo encantamento de nós, brasileiros, com a arte
funerária italiana.
Os marmoristas chegaram ao Brasil com uma formação profissional de boa qualidade,
adquirida em escolas de Belas Artes da Itália, e aqui produziram uma arte funerária similar ao
repertório estilístico já cristalizado em seu país. Na maioria das vezes, o processo artístico
concentrou-se na elaboração de esculturas e adornos realizados em série, tanto no Brasil
como na Itália, e sedimentados pelos postulados da arte erudita.
As primeiras marmorarias foram instaladas em regiões promissoras do país, como a zona
cafeeira do estado de São Paulo. Um dos pressupostos para a instalação e proliferação de uma
firma marmórea era acompanhar o progresso econômico da simbiose café-ferrovia-imigração
da região paulista pesquisada por nós. Os “coronéis de café” encomendavam túmulos de
mármore de Carrara, que conferia status às famílias enterradas nos cemitérios de São Paulo
e em cidades do interior do estado. Confirmamos em pesquisas o quanto esse ideário artístico
contribuiu para a formação do gosto estético de uma época.
A Marmoraria Vélez, fundada em1876, teve uma produção significativa no Cemitério da
Saudade, na cidade de Campinas (SP). Seu proprietário Patrício Vélez e seu filho realizaram
obras neoclássicas adornadas com alegorias e imagens de cunho religioso, conforme consta
no próprio túmulo da família.
A Marmoraria Carrara provavelmente instalou-se no mesmo período da Marmoraria Vélez
e foi considerada como uma grande firma comercial e de importação com sede em São Paulo e
filial no porto de Santos (Il BRASILE E GLI ITALIANI, 1906, p. 1.092). O proprietário e marmorista
Nicodemo Roselli, natural da cidade de Arezzo, tinha o hábito de receber patrícios e parentes
para trabalhar em sua firma. Em sua obra no Cemitério do Araçá (SP), no jazigo-capela da
Família Amâncio de Souza, “o anjo da ressurreição” é contemplado com anjos crianças que o
rodeiam e um deles beija-lhe o pé, uma maneira jocosa de personalizar essa temática cristã.
Já a Marmoraria de Giuseppe Tomagnini, Gratello e Co., criada em 1890, tinha sua sede
em Pietrasanta (Itália) e uma filial em São Paulo. O marmorista Giuseppe e seu filho realizaram
obras no Cemitério da Saudade, na cidade de Campinas (SP), e entre elas destacamos o
túmulo de Leonor Penteado (1896), intitulado por nos como A criança saltitando, que mostra
uma menina em um nicho neoclássico, pulando sobre um vaso de flores. Ela nos remete à
plástica formal da obra do escultor Scanzi que citamos anteriormente no texto. Pelas datas
das obras, possivelmente Giuseppe e Scanzi reproduziram o gestual infantil inspirados em
catálogos de época (Figura 2).
A Marmoraria Ítalo-brazileira foi o primeiro estabelecimento do gênero a ser instalado
em Ribeirão Preto (SP) em 1892. Foi fundada por Orlando Carlo Francisco Barberi que contou
com a colaboração de seus filhos e mais especificamente de Ovídio Barberi. Carlo foi o
marmorista mais reconhecido da região, não só pelo teor de sua produção funerária e pelos
projetos arquitetônicos que fizera na cidade, mas também pelo seu desempenho em formar
artistas-artesões em sua escola, que era vinculada à firma. Queremos, aqui, destacar o modo
243
Figura 02 - Túmulo de Leonor Penteado, 1896, Marmoraria de Giuseppe
Tomagnini, Gratello e Co. Cemitério da Saudade, Campinas (SP). Foto:Adriano
Rosa, 1991.
como Barberi elaborou as estatuárias funerárias em mármore de Carrara, especificamente a
pranteadora, figura feminina que chora a morte do falecido.
Todas as pranteadoras de Barberi são de tamanho natural. Exemplificamos aqui o caso
da pranteadora instalada no tumulo do Capitão Abdenago do Nascimento (+ 1926), ela está
sentada em pose de descanso e seu corpo fica posicionado levemente para o lado esquerdo,
com os pés juntos. A pranteadora faz um gesto corriqueiro: o de tampar o rosto com as duas
mãos, interpretando assim o seu estado de desolação. A pranteadora usa uma vestimenta longa,
e um manto (himation, para os gregos) cobre-lhe a cabeça. Esse tipo de vestimenta é comum
para representar as pranteadoras e a Virgem Maria (BORGES, 2014).
244
Três encantamentos do Brasil com a arte funerária italiana - Maria Elizia Borges
Para o pesquisador Nicholas Penny (1979, p. 189), o tema das pranteadoras apresenta
incertezas iconográficas, pois não está claro se elas são amigas ou parentas dos falecidos, ou
se personificam alguma virtude. Para nós, essas figuras também são exemplos de mulheres
modernas: dóceis, a ponto de suportar a dor da separação de modo sereno e resignado;
dispostas a consolar seus familiares; e mães e/ou viúvas que compatibilizam a espiritualidade do
cristianismo e cujos gestos interpretam, em pranto, o lamento e a dor da perda do ente querido.
São peças únicas, que denotam certa liberdade do marmorista na sua feitura (BORGES, 2011).
A Marmoraria Sanjoanense foi fundada em 1896 na cidade de São João de Boa Vista
(SP) pelo marmorista Antônio Furlanetto, também originário da cidade de Pietrasanta. Sua
firma tornou-se reconhecida na região por causa das obras realizadas pelo seu filho Fernando
Furlanetto, que se especializou na Itália. No túmulo de Boanerges Ferreira (Cemitério de S. João
da Boa Vista, 1922), esculpido por Fernando Furlanetto, percebemos a influência do estilo liberty
no trato com as vestimentas das mulheres que ladeiam o retrato do falecido. Há um componente
de sensualidade nas mulheres, que usam um vestido transparente e levemente esvoaçante,
com decote tomara que caia. Em uma delas, as mãos cobrem o colo do corpo, enquanto em
outra, as mãos no rosto insinuam tristeza diante da perda do ente querido.
Na cidade de Franca (SP) foi instalada a Marmoraria Natale Frateschi, também no fim do
século XIX. O marmorista Natale Frateschi, originário de Lucca, teve como ajudante o escultor
Agostinho Balmes Odísio que veio de Turim. Como obra representativa dessa marmoraria,
escolhemos o túmulo de Marietta Villela Luz (Cemitério da Saudade de Franca, SP) pela
maneira como foi representada a falecida: uma jovem encantadora que brota por entre as flores.
A sensualidade que insinua é recorrente na iconografia funerária simbolista criada por Leonardo
Bistolfi (Casale Monferrato, 1859 - La Loggia, 1933), reconhecido na época como o “Poeta da
Morte” e líder do simbolismo na Itália.
É possível identificar a caligrafia escultórica de cada marmoraria? Como resposta
podemos lembrar que é difícil descobrir propostas estilísticas singulares dentro de uma
marmoraria, pois o sistema de trabalho de uma peça é feito em coletivo na oficina e na maioria
das vezes é reproduzida em série, apenas variando de tamanho, seguindo o início do processo
de industrialização do objeto artístico funerário, principalmente em se tratando de anjos e
santos. Apesar disso, com muita atenção é possível detectar determinados tipos de adornos e
de acabamentos de vestuários que são mais empregados por essa ou aquela marmoraria e de
algumas obras esculpidas como peças únicas para atender às exigências de alguns clientes.
Devemos ressaltar o quanto a produção funerária das marmorarias contribuiu para a
formação do gosto artístico da população brasileira, que na época, fim do século XIX e início
do século XX, passou a conhecer essas variedades de esculturas nas visitas habituais aos
cemitérios de suas cidades. Assim, ampliou-se o conhecimento sobre o uso do mármore
de Carrara como produto artístico, e não só como revestimento para a construção civil. Os
repertórios estilísticos popularizaram-se de forma democrática e foram facilmente assimilados
por serem compostos por imagens sacras e profanas, cabendo a estas últimas contribuir para
245
enaltecimento da burguesia emergente. De uma forma ou de outra, tais obras despertam nos
sobreviventes os sentimentos de dor e de encantamento pela visualidade criada dentro de um
espaço público e de livre acesso como são os cemitérios secularizados no Brasil.
O terceiro encantamento
“O enlevo, o êxtase e a resolução se expressam
plenamente nas alegorias conduzidas aos túmulos,
na temática de consagração, desolação e
integração. Há figuras que parecem revelar a dor e
o prazer, o amor e o morrer”. (VALLADARES, 1972: 603).
Acreditamos que o terceiro encantamento ocorreu quando a burguesia brasileira já se
sentia familiarizada com a estética da arte funerária produzida pelos marmoristas italianos e
teve o privilégio de poder contratar escultores da Itália para prestar serviços estatuários no
Brasil. Os novos clientes, nas décadas de 1920 e 1940, foram os “imigrantes enriquecidos”
dos grandes centros urbanos, como os das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Todavia,
com a crise da importação do mármore de Carrara, a maioria dos monumentos passou a ser
construída em granito e ornamentada com esculturas em bronze, e muitas delas transmitem o
que o pesquisador Clarival Valladares (1972) descreve na epígrafe acima: “o enlevo, o êxtase
e a resolução”.
Objetivamos exemplificar, para apreciação crítica, algumas tipologias da arte funerária
italiana existentes em São Paulo, mas que são recorrentes em todo o país, seja pela similaridade,
seja pela réplica ou pela preferência de temáticas afins.3
No Cemitério Staglieno, em Gênova, Itália, existem obras que exploram a temática do
realismo burguês, conforme aludimos anteriormente. No caso do Brasil, selecionamos a obra A
Caridade, do escultor Lucca Arrighini, de Pietrasanta, construída em 1919 e que se encontra na
entrada do Jazigo-capela de Clarissa Índio do Brasil e família, no Cemitério São João Batista,
do Rio de Janeiro. Ela consiste na representação simbólica da história de vida da matriarca:
uma mulher rica, que tinha como hábito e princípio ajudar os mais necessitados e que morreu
esfaqueada justamente por um indigente. O grupo escultórico, em mármore de Carrara e em
tamanho natural, mostra a senhora rodeada por uma família simples, simulando um gesto seu
de atenção para com eles.
A arte funerária italiana também se dedicou a temáticas voltadas ao realismo social, como
a obra do escultor Tullo Golfarelli (Cesena, 1853-1928), que retratou o artífice Gaetano Simoli
e suas ferramentas no seu túmulo, construído em 1892 no Cemitério Monumental de Certosa,
de Bologna.
O ateliê do escultor florentino Antello Del Débbio foi responsável pela confecção do Jazigocapela do industrial Ignácio Demétrio Calfat, falecido em 1979 (Cemitério da Consolação, São
Paulo). O conjunto escultórico foi feito em bronze e representa, dentro da plástica formal do
3
Tomamos como referência o levantamento realizado por Josefina Eloína Ribeiro (1999).
246
Três encantamentos do Brasil com a arte funerária italiana - Maria Elizia Borges
Novecento, a família de um trabalhador, com os objetos de trabalho utilizados nas siderúrgicas,
todos protegidos por um grande anjo. É interessante atentar para a representação da virilidade
do trabalhador. Estaria tal obra exaltando a construção do imaginário social idealizado sobre a
construção de fortuna do imigrante no Brasil? A se confirmar, essa seria uma postura política
diversa da que observamos em Bologna.
O Simbolismo italiano, criado por Leonardo Bistolfi, conforme visto anteriormente,
também influenciou os escultores que aqui vieram prestar serviço e acabaram se instalando
definitivamente no país. Foram instituídas narrativas que enaltecem a morte, que visam a
amenizar o luto, a representar o sentido pleno do amor universal, a valorizar o lado espiritual da
vida e a expressar as angústias do homem moderno. Para tanto, eram destacados os sentimentos
mais humanitários, por meio da presença do nu masculino, que simboliza a masculinidade, e do
nu feminino, que representa a virtude, a paixão e o erotismo ao mesmo tempo. Assistia-se então
ao que André Chabot denominou “erotismo da morte” (apud BOSSAGLIA,1979).
Selecionamos como exemplo do Simbolismo italiano a obra que Materno Giribaldi, oriundo
de Asti, realizou para a família de Nami Jafet, em 1932, no Cemitério da Consolação (SP).
Denominada por nós O prazer da dor, é uma narrativa de composição assimétrica, na qual o
êxtase da dor está representado por 20 figurantes seminus, que brotam na profusão de flores,
criando um movimento cenográfico teatral surpreendente, independentemente do lado do qual
a obra for vista (BORGES, 2011). Detectamos a influência de Rodin quando Giribaldi modela,
esculpe e funde os seus baixos-relevos em vários graus de stiacciato, relevos extremamente
baixos das flores.
Luigi Brizzolara, de Gênova, também adota os nus “provocativos” no túmulo da família
Basílio Machado, em 1921 (Cemitério da Consolação, São Paulo). Nele foram instaladas duas
estátuas de corredores nus, com corpos musculosos contorcidos e bem delineados. O túmulo
traz a inscrição “et quaci cursores vitae lampada tradunt” (os corredores transportam a tocha da
vida).
Seguindo o mesmo princípio formal, o escultor paulistano, de origem italiana, Alfredo
Oliani fez a obra Triste Separação para o túmulo de F. Giannini, em 1946 (Cemitério São Paulo,
na cidade de São Paulo). Uma mulher, debruçada sobre o túmulo, chora o doloroso momento
da separação. Dois homens nus carregam o morto, também nu, em uma alegoria profana, mas
que também nos remete a uma interpretação da Pietá de Michelangelo, obra muitas vezes
reproduzida na arte funerária do período em questão (Figura 3).
Coube ao crítico Enrico Thovez criticar, no início do século passado, os seguidores de
Bistolfi:
Muitos escultores jovens acreditam que qualquer nó muscular nos corpos nus em poses impetuosas, fazendo
uma composição um pouco parecida com as obras de Michelangelo e Rodin, seja adequado para celebrar
qualquer herói ou expressar uma ideia. (THOVEZ, 1911 apud BERRESFORD, 2004, p. 89).
247
Figura 03 - Túmulo de F. Giannini, 1946, Escultor Alfredo Oliani. Cemitério São Paulo (SP). Foto: Maristela Carneiro.
A crítica de Thovez vem pontuar as demais obras funerárias de Alfredo Oliani, que
estudara em Florença, e de outros escultores que também exploraram o nu de forma ostensiva
e gratuita. Para Berresford (2004, p. 89), os “bistolfianos” de fato sofreram influência de Rodin
no modo de distribuir os volumes ao redor de um eixo, levando-os muitas vezes a exagerar nas
poses contorcidas, visível, sobretudo nos braços da representação do falecido Giannini. Esses
escultores também filtraram de Rodin a paixão por representar grupos mistos e isso tornou-se
uma expressão particular na escultura funerária do início do século XX.
A circulação das obras
O nosso encantamento com a arte funerária italiana ficou ainda mais evidenciada
quando as marmorarias compraram ou reproduziram réplicas de obras de alguns escultores
que transformaram temáticas funerárias tradicionais e cujas obras popularizaram-se em várias
cidades da Europa e da América do Sul. Apresentamos, como exemplo dessa nova sensibilidade
iconográfica, as duas reproduções do Anjo feminino de Monteverde, já analisadas anteriormente
no presente texto: uma delas está no Cemitério São João Batista (Rio de Janeiro) e a outra, no
Cemitério Recoleta (Buenos Aires).
O anjo masculino seminu também se tornou fetiche na sociedade burguesa com a obra
de Federico Fabiani (Genova, 1835-1914), na qual O anjo indica à alma Electra o caminho
248
Três encantamentos do Brasil com a arte funerária italiana - Maria Elizia Borges
do céu no dia do juízo final. Existem três versões desse tema, instalados respectivamente no
Cemitério dell’ Osservanza, Faenza, 1876, Itália; no Cemitério de Staglieno, 1884, Itália; e no
Cemitério de Poblenou, 1880, Barcelona, Espanha. Em todas elas, o anjo seminu e jovem ajuda
à alma do defunto - que usa um vestuário transparente, transmitindo uma sensualidade ímpar
- a alçar seu voo. Já no Brasil (Cemitério da Saudade, Ribeirão Preto, SP, 1926), o anjo é
feminino, mais adulto e concorre em grau de sensualidade com a alma. Enfim, trata-se de uma
temática clássica, que foi considerada como uma das mais eróticas existentes em cemitérios
secularizados.
Percebemos que cada passo do nosso encantamento pela arte funerária italiana fez
crescer a presença de suas características em nossas necrópoles de várias maneiras, conforme
apresentamos no presente texto. Os artistas e artistas-artesãos italianos contribuíram para
um investimento de acervo funerário bastante relevante e propicio para ser estudado pelos
historiadores da arte brasileira e áreas afins. As obras foram instaladas, prioritariamente, nos
cemitérios das grandes cidades do país, todavia falta ainda muita pesquisa de campo para
obtermos uma noção mais ampla sobre a influencia italiana em cemitérios de pequeno porte
que contou com obras realizadas por marmorarias e que ainda estão sem o devido registro
documental.
Referências Bibliográficas:
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Janeiro. Ano 6, n. 65, p. 66 - 71, fev. 2011 a.
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Campinas, SP. p. 355 - 367.
______Carlo Barbieri: um marmorista de formação eclética. VI CONGRESO INTERNACIONAL DE CIENCIAS SOCIALES
Y HUMANIDADES IMÁGENES DE LA MUERTE. 2014. Salta, Argentina: Universidad Nacional de Salta. Anais Imagenes de
la Muerte, Salta, Argentina [CD].
BERRESFORD, Sandra. Italian Memorial Sculpture 1820-1940. A legacy of love. London: Frances Lincoln Limited, 2004.
BOSSAGLIA, A.Rossana. Scultura Cimiteriale a Milano tra Scapigliatura e Simbolismo. In: JANSON, H. W. (Coord.). La
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DE VOLTA À LUZ. Fotografias nunca vistas do Imperador. São Paulo: Banco Santos; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
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FABRIS, Annateresa. A fotografia como objeto de coleção. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 117, p. 67, 1997.
GUERELLO, Giorgio. Percorsi d’arte a Staglieno. Gênova: Comune di Genova/ Assessorato al servizi civici e cimiteriali,
2004.
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LICHT, Fred. Italian Funerary Sculpture after Canova. In: In: JANSON, H.W. (Coord.). La scultura nel XIX secole. 24º
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PENNY, Nicholas. “Symbol and style in English Nineteenth Century Sepulcral Sculpture”. In: JANSON, H.W. (Coord.). La
scultura nel XIX secole. 24º CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA ARTE. 6, Bologna Editrice Clueb, 1979.
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VALLADARES, C. Prado. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura/
Departamento de Imprensa Nacional, 1972. 2 v.
249
250
Outros circuitos, novos trânsitos
Mail Art na América Latina: rede marginal de comunicação em um mundo sem fronteiras - Almerinda da Silva Lopes
Mail Art na América Latina: rede marginal de comunicação em um mundo
sem fronteiras
Almerinda da Silva Lopes
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Resumo: O texto reflete sobre as estratégias artísticas, comunicacionais e interativas
da Mail Art na América Latina, desde sua afirmação no final dos anos de 1960 - com a
veiculação underground de todo o tipo de imagens e textos, muitas vezes de teor político
ou subversivo -, até o processo de institucionalização dessa tendência, na década
seguinte, quando se estabelece o embate entre política e arte. Numa época em que a
comunicação interpessoal era severamente vigiada e controlada pela censura, os mail
artistas formularam uma rede rizomática de comunicação, para troca de ideias e envio
de mensagens de solidariedade aos artistas perseguidos ou condenados à prisão, que
desafiou o poder instituído e menosprezou o conceito de autoria, individualidade e o
mercado de arte.
Palavras-chave: Mail Art; Arte e Política; Rede; América Latina.
Abstract: The text reflects on the artistic, communicational and interactive strategies
of Mail Art in Latin America, since its statement in the late 1960s with the underground
placement of all types of images ant texts, often in political or subversive content, to the
process institutionalization of this trend in the following decade, when establishing the
clash between politics and art. At a time when interpersonal communication was severely
guarded and controlled by censorship, the mail artists formulated a rhizomatic network
communication, to exchange ideas and sending messages of solidarity to the persecuted
artists or sentenced to prison, which challenged the established power and despised the
concept of authorship, individuality and the art market.
Keywords: Mail Art; Art and Politics; Network; Latin America.
Alguns teóricos localizam a origem da Mail Arte, Arte Correio ou Arte Postal na metade
do século XIX, quando surge na Inglaterra o selo postal adesivo (1840),1 e o cartão-postal na
Áustria (1869). Mas a prática de enviar a amigos, colecionadores e galeristas cartas ilustradas,
postadas em envelopes e selos originais, criados pelos próprios remetentes, já havia se difundido
entre os artistas. A novidade da cartofilia causou grande impacto e rapidamente se expandiu
pelo mundo, tanto em virtude de o cartão postal poder ser enviado e circular a descoberto,
1
LASZLO, Jean-Noël. Les Artists prennent le chemin de la poste. Revista Communication et Langage, 1994, p. 42.
253
quanto pela facilidade de aquisição, preenchimento com mensagem curta e custo reduzido do
envio, correspondendo, então, à metade do preço de uma carta convencional. Esse gênero de
postagem tornava-se um dos hábitos mais comuns e democráticos da vida moderna.
A remessa via correio de cartões-postais instaurava, ainda, a possibilidade de os artistas
veicularem, a título de divulgação, pequenas obras gráficas - em especial xilogravuras-, desenhos
e fotografias de sua autoria, enviando-os a colegas, amigos e instituições. Outros iriam imprimir
postais em escala comercial, com imagens de algumas de suas obras, vislumbrando além do
objetivo citado, retorno financeiro.
Todavia, até o início do século passado essa prática precursora ou inicial de Mail Arte
seria adotada apenas por um círculo relativamente pequeno de artistas, envolvendo a troca
de trabalhos, mensagens e ideias entre amigos, merecendo destaque os envios feitos por
dadaístas, futuristas e surrealistas.
Somente na década de 1960 é que a Mail Arte encontraria terreno mais fértil, “tornandose um dos fenômenos mais notáveis da vanguarda internacional naquele momento”, como
observou Walter Zanini.2 Contribuiu para a sua afirmação a New York Correspondance School
of Art criada por Ray Johnson (1962), e as ideias revolucionárias e irreverentes dos integrantes
do Grupo Fluxus. Ambos os empreendimentos teriam a participação de artistas de diferentes
partes do mundo, unidos pelo desejo de formular uma arte livre de regras e valores estéticos, e
também bem humorada e acessível a todos. Para esses artistas, era indiferente se os trabalhos
que produziam eram enviados em fluxo contínuo pelo correio ou publicados em catálogos,
revistas, boletins, livros de artistas. No primeiro manifesto que marcaria a fundação do Fluxus
(1963), George Maciunas propunha o rompimento com a “arte burguesa”, para “torná-la divertida
e acessível a todos”, e desmistificá-la, pois “todas as pessoas podem fazer e compreender a
arte”.
Balizando-se nessas e em outras premissas, a Mail Arte contaria, a partir de então, com
a adesão de muitos artistas, em especial de jovens, rebelados contra o elitismo da arte oficial,
as manobras operacionais do mercado, o sistema museológico e a crítica de arte. Elegiam o
correio como eficiente suporte para o envio de imagens e mensagens irreverentes ou de viés
político, a congêneres e não artistas de todos os locais do mundo, formalizando um canal
alternativo e marginal de comunicação. A participação dessa rede aberta ou democrática
de comunicação,3 antes do advento da Internet, não impunha regras, padrões ou limites de
postagem, e tampouco seleção prévia dos participantes ou dos trabalhos enviados.
Para driblar os custos do correio e os investimentos, dada a quantidade de trabalhos que
enviavam, os mail artistas recorriam a processos reprodutíveis e a materiais, meios e suportes
2
ZANINI, Walter. La Mail Art è una ricerca di un nuovo mezzo di comunicazione internazionale, 1978, p. 32.
O artista mexicano radicado na Holanda, Ulisses Carrión, refuta a ideia que a rede postal é democrática e um processo barato,
observando que os nomes dos destinatários “são escolhidos com todo cuidado e não ao acaso, ou de forma aleatória, e que as
respostas ou intervenções feitas nos trabalhos eram selecionadas pelos receptores, em função de seu significado, ou de seu teor
crítico, enquanto outras tantas, desconsideradas ou descartadas”. E ao contrário do que afirmam alguns, para ele, não é nada fácil
e barato enviar um cartão postal, pois “o artista raramente produz e envia um único cartão, mas centenas de cópias”, o que impede
os que não têm condições financeiras de arcarem com tais custos. CARRIÓN, U. A Arte Postal é o grande monstro, 1981, p. 14.
3
254
Mail Art na América Latina: rede marginal de comunicação em um mundo sem fronteiras - Almerinda da Silva Lopes
efêmeros ou precários, para multiplicar imagens e textos, subvertendo a ideia de unicidade e
perenidade da arte. Alguns criaram também envelopes de tamanhos, cores e formatos fora
do padrão postal, além de selos falsos. Outros subscritavam as postagens usando nomes e
endereços fictícios ou incompletos, para forçar a devolução, pois os envelopes repletos de
carimbos e anotações feitas pelos funcionários dos correios agregavam valor e originalidade
aos trabalhos. Se isso interferia subversivamente na rotina do sistema de comunicações, não
deixava de ser uma maneira de afrontar indiretamente o poder e a censura militar.
Tais artistas criaram, portanto, maneiras variadas de ironizar o sistema e de agir de
maneira underground, interferindo e hibridizando livremente imagens e textos, cartões postais,
imagens elaboradas por eles ou extraídas dos meios de comunicação de massa, fotografias,
telegramas, documentos pessoais, boletins, poemas visuais, livros de artista. Lançaram mão
de recursos tecnológicos como as máquinas eletrostáticas, offset, mimeógrafo, ou mesmo
processos artesanais, como carimbos, para serializar tais produtos. Esse material era postado
com a solicitação que os receptores interferissem nas imagens e textos recebidos e os
pusessem novamente em circulação para não interromper o fluxo da rede. Tal condição atribuía
aos trabalhos de mail arte a ideia de inacabamento e de imprevisibilidade, seja porque depois
de várias interferências a imagem ou texto acabavam bastante modificados, até perderem
suas características originais, ou porque não se podia preconizar qual seria o resultado final do
trabalho, até sair de circulação e integrar o arquivo do artista ou de alguma instituição.
O incentivo à interferência do receptor, para modificar ou completar a imagem, mensagem
ou poema recebido, potencializava a ideia de obra em processo, mas também de consentimento,
partilha e de alteridade. Por sua vez, a ressignificação da simbiose texto/imagem abria diferentes
possibilidades de “investigação intersemiótica”, gerando “novas situações estruturais e de
comunicação para a linguagem da arte”.4 Para Anne Cauquelin, “o declínio da aura espiritual
instaurou o aparecimento de outro tipo de aura de natureza comunicacional”.5
A afirmação que os mail artistas refutavam as instituições expositivas oficiais, a crítica e
o marchand, deve ser entendida com alguma cautela. Primeiro, considerando o curto espaço
de tempo que os trabalhos dessa natureza circularam de maneira underground; segundo por
constarem das listas de envios postais os nomes de conhecidos críticos, marchands e até
de museus e galerias. Isso não diminui, no entanto, o significado desse sistema artístico e
da rede comunicacional formalizada pelos artistas postais, e do empenho dos mesmos para
alimentarem e manterem o fluxo contínuo.
Ao ingressar na rede, o artista passava a exercer funções, que inexistiam nos circuitos
artísticos convencionais, pois além de produzir os trabalhos, responsabilizava-se também pelo
seu envio, circulação e manutenção da rede rizomática. Incumbia-se, ainda, de analisar as
respostas e as interferências recebidas dos receptores nas imagens e mensagens por ele
postadas, mantendo-as sob sua guarda ou pondo-as novamente em circulação. Esse sistema
4
ZANINI, Op. Cit.
5
CAUQUELIN, Anne. Fréquenter les incorporels, 2006, p.79.
255
acabaria gerando importante legado de Arte Postal, que antecipou a prática de elaborar arquivos
pelos artistas contemporâneos.
A opção por postar trabalhos no Correio permaneceria uma constante ao longo da
trajetória da Mail Arte, dada a rapidez, eficiência e os custos relativamente acessíveis das
postagens. Para Poinsot, isso ocorreu, curiosamente, em um momento de transformação
do próprio sistema de postagem, quando “o Correio sob a forma tradicional era substituído
pelas telecomunicações, e a mensagem postal, em seu aspecto material, substituída pela
mensagem imaterial”.6 Se ele não deixava de ter razão ao observar que boa parte dos
artistas postais recorreu, intermitentemente, a processos artesanais, também não ignoraram
os recursos técnicos e tecnológicos de seu tempo, considerando que muitas das postagens
eram decorrentes de registros fotográficos ou vídeos de performances e happenings por eles
realizados. Mas, ao dotá-los não raramente, de um acento irônico ou crítico, e ao subverterem
e porem à prova todos os valores, conceitos e padrões estéticos do passado, os mail-artistas
acabariam mostrando que o caminho mais viável “da arte passaria a ser a crítica à própria
arte”.7
Deve-se considerar, ainda, que a máxima eficácia da comunicação em rede não se media,
nem se completava com o envio e o recebimento de imagens e mensagens pelo destinatário,
mas com a interação e interferência de uns nos trabalhos de outros. Tal liberdade de ação e
compartilhamento tornaria difícil, em muitos casos, saber quem fez a primeira postagem ou
quem é o autor do trabalho interferido. Essa não era, porém, a preocupação fundamental dos
artistas postais, pois estes refutaram a supremacia da obra única, a autoria, a originalidade
poética e a individualidade do objeto artístico.
A manutenção da marginalidade pela Mail Arte, não se sustentou, porém por muito
tempo, considerando que já no início década de 1970, essa modalidade artística iria se
institucionalizar, quando inúmeras exposições passaram a ser realizadas em diferentes países,
com a participação de artistas de todos os continentes. Nos Estados Unidos a primeira mostra
de trabalhos dessa modalidade, ocorreu no Whitney Museum (1970), com destaque para a
participação dos integrantes da New York Correspondence School. Na França, a Mail Arte
angariou sessão especial na VII Bienal de Paris (1971), organizada por Jean-Marc Poinsot. Essas
e outras deferências serviriam de inspiração para as mostras realizadas subsequentemente na
América Latina.8
A repressão política e a difícil relação com a arte
Na década de 1970, quando os regimes ditatoriais entraram em sua fase de maior
repressão, no Brasil e em grande parte dos países do continente sul-americano, a Mail Arte
6
CLAIRE, Jean. Préface. In: POINSOT, Jean-Marc. Mail-Art: Commnunication à distante. Concept, 1971, p. 10.
7
GIL, José. Sem título: escritos sobre arte e artistas, 2005, p. 93.
Segundo Zanini (Op. Cit., , 1978, p. 35), Julio Plaza, com a colaboração de Regina Silveira organizaram na Universidade de Porto
Rico, em 1972, o que parece ter sido a primeira mostra internacional de Mail Arte do continente latino-americano. O americano
Kern Friedman informa que, até o início de 1978 mais de 200 mostras de Mail Art haviam sido realizadas em museus e galerias de
todo o mundo. FRIEDMAN, K. História da Arte Postal, 1978, p. 5.
8
256
Mail Art na América Latina: rede marginal de comunicação em um mundo sem fronteiras - Almerinda da Silva Lopes
tomou grande impulso, e gerou um eficiente sistema underground de circulação de produtos
artísticos a-estéticos, denunciadores das mazelas sociais e políticas.
O correio, embora sob o controle dos órgãos de repressão e sujeito ao cumprimento
de regras e ao pagamento de taxas, segundo o formato e a pesagem, foi considerado um
meio confiável e seguro pelos artistas para envio das respectivas postagens, sem levantar
suspeita. E não deixariam de ter razão, uma vez que não foram registrados casos de violação
de correspondência no nosso país, nem houve denúncia dos artistas postais nesse sentido,
apesar de alguns terem enviado mensagens de advertência para que ficassem atentos a essa
possibilidade.
Essa prática conceitualista e experimental, com forte referência no vivido, na ação, no
gesto compartilhado e na conexão entre arte e vida, dadas as suas implicações sociológicas
tornava-se assim um dos fenômenos mais originários e marcantes da história da arte do século
XX, como bem observou Barbanti.9 As propostas de efemeridade, de não acabamento, de
reprodutibilidade e de coautoria, mediante a interferência de uns nos trabalhos dos outros,
subvertiam os conceitos de autoria, de originalidade e perenidade, e rompiam com a “lógica
puramente estética”, ou seja, com as fórmulas e os processos artísticos tradicionais.
A reprodutibilidade técnica, aliás, muito contribuiu para a eficácia e a dinâmica do
processo de comunicação, por possibilitar o intercâmbio e a partilha de imagens, mensagens e
ideias. Mas foi também necessária a criação de estratégias eficientes para driblar a censura e
fazer chegar essa produção crítica ao máximo de receptores. A maneira encontrada para não
levantar suspeita foi fazer circular de maneira marginal ou subterrânea, imagens, mensagens
e textos denunciadores da falta de liberdade, de repressão e de tortura impostas pelo poder
político às vozes dissidentes. Esse sistema alternativo, e ao mesmo tempo revolucionário e
utópico de arte, nascia, assim, da necessidade de tomada de um posicionamento crítico frente
a uma realidade sufocante e conturbada.
Todavia, tanto no Brasil quanto na maioria dos países da América Latina que viviam sob
a égide de regimes ditatoriais, a marginalidade da Mail Art se mostraria mais efêmera que os
próprios produtos artísticos veiculados em rede. Basta citar que o Museu de Arte Contemporânea
da USP, sob a direção do historiador e crítico Walter Zanini, realizou desde 1973 vários eventos
que contaram com a participação dessa modalidade artística. Outras importantes mostras
acabariam ocorrendo em diferentes estados brasileiros, organizadas por Paulo Bruscky,
Ypiranga Filho, Daniel Santiago, Júlio Plaza, para não citar outros. Como curador geral da
XIV Bienal de São Paulo (1981), Zanini dedicou à Arte Postal uma sessão específica, cuja
organização foi confiada por ele a Júlio Plaza. Muitas outras exposições ocorreram em países
sul-americanos, montadas em espaços privados ou públicos, contando com a participação de
artistas de várias localidades, sendo que os brasileiros marcariam presença em todas elas.
A Mail Art passava, então, a ser exposta e comercializada como qualquer produto artístico
convencional, demovendo uma de suas premissas iniciais de produto não comercializável,
9
BARBANTI, Roberto. Ultramedialité et mail art, 1999, p. 21
257
passando a integrar importantes coleções públicas e privadas. Se isso não impediu que os
artistas continuassem a desafiar, de diferentes maneiras o poder vigente, alguns acabariam
ameaçados, perseguidos e presos, ao terem o teor de suas imagens, mensagens e poesias
visuais, exposto ou decodificado pelos órgãos repressores, tal como ocorreu com Paulo
Bruscky, Daniel Santiago, Leonhard Frank Duch, Falves Silva (Brasil), Clemente Padín e Oscar
Jorge Caraballo (Uruguai), Edgardo Antonio Vigo, Graciela Guttierrez Marx, Horácio Zabala,
(Argentina) Jonier Marin (Colômbia), Guillermo Deisler (Chile), Damaso Ogaz (Venezuela).
Se em razão da realidade política, nessa época, todas as formas de comunicação foram
interrompidas, nem as prisões e ameaças aos mail artistas impediu que os mesmos produzissem
e pusessem em circulação um amplo leque de produtos criativos: visuais, linguísticos, sonoros,
repletos de ironia, elaborados com toda a sorte de técnicas, suportes e materiais, assegurando
o contato permanente entre eles, não obstante a distância que separava os diferentes países
da América Latina.
Isso expunha as contradições e o desvirtuamento das premissas iniciais, e tornava a
Mail Arte alvo da censura, redundando no fechamento de exposições, perseguição e prisão de
artistas, em diferentes países, o que confirmava a difícil relação entre arte e poder. Exemplo
dessa ação radical dos militares foi o fechamento pela Polícia da II Exposição Internacional
de Arte Postal,10 organizado por Paulo Bruscky e Daniel Santiago, poucas horas depois de
sua inauguração, no dia 27 de agosto de 1976, em uma sala na sede dos Correios, em Recife
(Pernambuco). Os artistas acabariam detidos, e os trabalhos expostos recolhidos, sendo
que um mês depois parte deles, de autoria de brasileiros e até de estrangeiros, foi restituída,
embora alguns bastante danificados. Todavia, número expressivo dos trabalhos de Mail Arte
desapareceu, sem que jamais tivessem sido resgatados ou localizados, o que levanta a suspeita
de terem sido destruídos pela polícia.11
Mas talvez se possa admitir que a decisão de encerrar a mostra não foi motivada
exclusivamente pelo teor das obras. O artista já era conhecido e perseguido pela polícia, em
razão de pendengas e enfrentamentos anteriores. Basta citar que alguns anos antes a polícia
havia determinado o fechamento da mostra de Arte Cemiterial (1971), que Paulo Bruscky
realizava na sede da Empetur, também em Recife; mas a irreverência e a insubordinação de
Bruscky às determinações do poder ditatorial, e o estranhamento que causavam seus projetos
criativos, anúncios utópicos ou irônicos em jornais de grande circulação, ações performáticas
e happenings realizados em espaços públicos, obviamente foram alguns dos agravantes que
motivaram a perseguição e o encarceramento do artista algumas outras vezes.
O mesmo ocorreu com os artistas e poetas visuais, como Guillermo Deisler (1940-1995),
Clemente Padím e Oscar Jorge Caraballo. O primeiro foi demitido da Universidade do Chile e
preso em 1973 pelo regime de Pinochet. Ao ser solto, por interferência de amigos intelectuais,
10
A I Exposição Internacional de Arte Postal ocorreu em 1975, no Hospital Agamenon Magalhães, em Recife, organizada por Paulo
Bruscky e Ypiranga Filho.
BRUSCHY, P. Comunicação. In: ROMANO, Peli e VERSARI, Michaela (Org. e Edição). Esibizione Internazionale di Mail Art ,
1978, p. 43.
11
258
Mail Art na América Latina: rede marginal de comunicação em um mundo sem fronteiras - Almerinda da Silva Lopes
exilou-se na Europa, ali permanecendo até à morte. Padín e Caraballo foram presos pelas
“Fuerzas Armadas” do governo ditatorial uruguaio (1977-1979), o que gerou protestos e a
mobilização pública de artistas postais pela libertação dos mesmos, não apenas no âmbito
local, mas assumiu ampla repercussão internacional. Conseguimos levantar, ao longo da
pesquisa, inúmeras mensagens e imagens de solidariedade aos uruguaios presos, tanto da
parte de artistas brasileiros, quando de estrangeiros.
Se esses e outros incidentes atestam a difícil relação da política com a Arte Postal,
ao contrário do que esperavam os ditadores daqueles países, a penalidade não dirimiu nem
afastou os artistas de seus ideais, nem os impediu de continuarem enviando e expondo seus
trabalhos, se não internamente, pelo menos no exterior. Basta citar, entre outras mostras, a
participação de Padín e Caraballo da Mostra Internacional de Mail Art – Mantua Mail 78 (Itália),
realizada no período em que os mesmos se encontravam encarcerados em Montevidéu,
conforme se constata no catálogo da exposição e na correspondência enviada aos artistas
pelos organizadores da mesma, Romano Peli e Michaela Versari, em 15 de agosto de 1978.
Isso contribuiu para consolidar ainda mais o grau de afinidade, solidariedade e
compartilhamento de imagens e mensagens, que culminaria com a criação da Associação
Uruguaia de Artistas Postais (1983). A entidade e as estratégias adotadas para o fluxo de
comunicação exerceram papel significativo na coesão de seus signatários, como repercutiram,
de alguma maneira, “no processo de democratização do país, governado por uma ditadura
fascista” (Padín, 1988).
Esses e outros artistas e poetas latino-americanos fizeram da imagem e da palavra
poderosas armas de contestação à repressão, à violência e à exploração da América Latina,
mas alguns não conseguiram evitar que trabalhos fossem decodificados e interditados pela
censura e seus respectivos autores perseguidos e presos. Entretanto, a argentina Marta
Minujín, que desde a década de 1960 realizou performances, happenings e instalações,
entre outras propostas conceituais que ironizavam a censura e o autoritarismo militar. Entre
elas pode ser citada Partenon de livros (1983), uma ousada e grandiosa obra inteiramente
construída com milhares de livros proibidos durante a ditadura na Argentina. Mas na década
anterior também se deixou seduzir pela Mail Art, elaborando propostas inusitadas que apenas
atestam a diversidade de conceitos, materiais, processos e mensagens críticas de que pode
se constituir esse gênero de arte experimental, como atesta a complexa proposição híbrida
denominada Machu Picchu, também conhecida como Comunicando com terra (1976). Consistiu
em retirar, com a anuência das autoridades locais e a ajuda de assistentes, trinta quilos de terra
de diferentes áreas da antiga cidade pré-colombiana, edificada durante o Império Inca, no Peru
(século XV). Vinte e cinco quilos dessa terra foram divididos em 25 sacos plásticos de um quilo
cada um e os cinco quilos restantes misturados com terra argentina pelo pequeno pássaro
conhecido como João-de-barro, que com ela construiu seu ninho, que a artista integraria a uma
instalação, constituída por objetos, esboços, textos e fotos mostrando todo o processo. Durante
a exposição Minujín construiu um enorme ninho com os 25 quilos de terra de Machu Picchu
259
misturados com terra argentina, semelhante ao elaborado pelo pássaro e enviou a artistas
latino-americanos envelopes contendo uma pequena porção dessa terra, registrando os locais
dos envios em um mapa traçado por ela em papel vegetal. Os receptores deveriam espalhar
metade da terra recebida em algum local de seu entorno e enviar em resposta à artista, um
envelope contendo terra de seu respectivo lugar de origem, misturada a outra parte da terra
recebida. Após a recepção da terra original misturada à do solo da terra natal de cada artista
envolvido no projeto, Minujín propunha-se devolvê-la ao local de onde a matéria orgânica foi
extraída.12
Tal intercâmbio revestia-se de forte conotação política, pois evocava a origem ancestral
do homem sul-americano e o passado de paz e glória do Império Inca, propondo uma reflexão
crítica sobre a dominação colonialista pautada em massacres, destruição e espoliação impostos
aos colonizados. Essa dominação continuava em vigor e se repetia de maneira não muito
diferente naquele momento de crueldade e exploração, a que as grandes potências capitalistas
submetiam os países sul-americanos.
A mistura alquímica da terra proposta pela artista remetia, assim, utopicamente à
comunhão universal entre os povos latino-americanos, com a derrubada das fronteiras entre
todos os territórios. Ao aludir a um episódio da história pregressa deste continente, Minujín
instaurava uma reflexão sobre a ideia de território como lugar de unidade, de identidade e de
alteridade, anseios capazes de unir os povos da América Latina, contra a violência, a espoliação
e as punições impostas pela ganância e pelo totalitarismo político.
Referências bibliográficas:
BARBANTI, Roberto. Ultramedialité et mail art. In: LASZLO, Jean-Noël. Correspondances. Provence-Alpes-Côte d´Azur:
Ministère de la Culture et Communication: 1997, p. 21-28 (Catálogo Exposição Gare de Toulon, fev./mar, 1997).
BRUSCKY, Paulo. In: ROMANO, Peli e VERSARI, Michaela (Org. e Edição). Esibizione Internazionale di Mail Art – Mantua
Mail 78 – Casa del Mantegna, 21 settembre 21 ottobre 1978. Bologna: Centro Rank Xerox, 1978, p. 43-44.
CARRIÓN, Ulisses. A Arte Postal é o grande monstro. Catálogo da XVI Bienal Internacional de São Paulo, 1981, p. 12 a 15.
CAUQUELIN, Anne. Fréquenter les incorporels. Paris: PUF – Presses Universitaires de France, 2006.
FRIEDMAN, Ken. História da Arte Postal, In: ROMANO, Peli e VERSARI, Michaela (Org. e Edição). Esibizione Internazionale
di Mail Art – Mantua Mail 78 – Casa del Mantegna, 21 settembre 21 ottobre 1978. Bologna: Centro Rank Xerox, 1978, p.
05-12.
GIL, José. Sem Título: escritos sobre arte e artistas. Lisboa: Relógio D´Água Editores, 2005.
LASZLO, Jean-Noël. Les Artists prennent le chemin de la poste. In: Revista Communication et Langages, no. 102, 1994,
Paris, Ed. Retz, p. 42-58.
MARIN, Jonier. Em torno da Arte Postal (1977). In: ROMANO, Peli e VERSARI, Michaela (Org. e Edição). Esibizione
Internazionale di Mail Art – Mantua Mail 78 – Casa del Mantegna, 21 settembre 21 ottobre 1978. Bologna: Centro Rank
Xerox, 1978, p. 48-49.
POINSOT, Jean-Marc. Mail art: communication à distance. Concept. Préface Jean Clair. Paris: CEDIC, 1971.
ZANINI, Walter. La Mail Art é una ricerca di un novo mezzo di comunicazione internazionale.In: ROMANO, Peli e VERSARI,
Michaela (Org. e Edição). Catálogo Esibiione Internazionale di Mail Art – Mantua Mail 78. Casa de Mantegna, 21 set. a 21
ott. 1978. Bologna: Centro Rank Xerox, 1978, p. 32-35.
12
MARIN, Jonier. Em torno da Arte Postal (1977), In: ROMANO, Peli e VERSARI, Michaela (Org. e Edição), 1978, p. 49.
260
Circuitos de arte à oeste do Rio São Francisco - Marco Antonio Pasqualini de Andrade
Circuitos de arte à oeste do Rio São Francisco
Marco Antonio Pasqualini de Andrade
Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Resumo: O Estado de Minas Gerais ingressou na História da Arte Brasileira inicialmente
a partir do século XVII, quando as minas de ouro e pedras preciosas trouxeram o
deslocamento de pessoas e riquezas, com o consequente incentivo à produção
artística que, além das expectativas determinísticas, construiu um sistema produtivo
coerente e complexo, que de fato tornou-se, não só marcante, mas referencial para o
país; e ainda além, ultrapassando as fronteiras internacionais.
Após o hiato de influência da Academia, que deslocou o eixo artístico principalmente
para o Rio de Janeiro, o século XX presencia uma reconstrução progressista com
a implantação da capital Belo Horizonte, que após a década de 1930 estrutura
lentamente uma tradição moderna amparada na figura emblemática de Guignard e
apoiada pela arquitetura de Niemeyer. Enquanto isso, à oeste do rio São Francisco, os
caminhos abertos pelas bandeiras se expandem, e o passado rural aos poucos vai se
transformando com a formação e desenvolvimento dos núcleos urbanos.
Essa comunicação tem por fim discutir os momentos de troca cultural acontecidos na
região do Triângulo Mineiro e entorno, centrando a atenção na formação de núcleos
de difusão cultural que permitiram a circulação de artistas e obras: Mary Vieira,
José de Moraes, Lina Bo Bardi, Maciej Babinski e outros artistas contribuíram para
a constituição de novas referências estéticas, que em sentido oposto às migrações
centrífugas, teceram uma trama complexa que ora se articula solidamente em meio a
um contexto de natureza global.
O processo de mapear tais dados encontra dificuldades tanto em relação à pesquisa
de campo, ainda bastante incipiente, mas também quanto aos modelos metodológicos
de pesquisa e análise. Serão enfocados alguns resultados iniciais e prospectivas
de entendimento, a fim de contribuir com a grande discussão dos novos mundos da
História da Arte.
Palavras-chave: Circuito de arte; Triângulo Mineiro; Arte Global.
Abstract: The State of Minas Gerais joined Brazilian art history initially in the seventeenth
century, when the mines of gold and precious stones brought the movement of people
and wealth, with the consequent encouragement of artistic production. That, in addition
to deterministic expectations, built a coherent and complex production system, which
in fact has become not only remarkable, but a reference to the country; and beyond,
surpassing international borders.
261
After the hiatus of the influence of the Academy, which displaced the artistic axis mainly
to Rio de Janeiro, the twentieth century witnesses a progressive reconstruction with
the implementation of the capital city Belo Horizonte, that after the 1930 structure
slowly a modern tradition supported by the emblematic figure Guignard and supported
by Niemeyer’s architecture. Meanwhile, the west of the river San Francisco, the paths
opened by the brands expand, and the rural past is slowly turning with the formation
and development of urban areas.
This communication is intended to discuss the moments of cultural exchange that took
place in the region of Triangulo Mineiro and surroundings, focusing on the formation of
cultural diffusion cores that allowed the circulation of artists and art works: Mary Vieira,
José de Moraes, Lina Bo Bardi, Maciej Babinski and other artists contributed to the
creation of new aesthetic references, which in the opposite direction to the centrifugal
migration, wove a complex plot that is now firmly articulated in the midst of a global
nature context.
The process of mapping such data is difficult both in terms of basic data, still incipient,
but also on the methodological models of research and analysis. This paper will focus
on some initial results and prospects of understanding, in order to contribute to the
great discussion of the new Art History worlds.
Keywords: Art circuit; Triângulo Mineiro; Global art.
O Estado de Minas Gerais ingressou na História da Arte Brasileira inicialmente a partir
do século XVII, quando as minas de ouro e pedras preciosas trouxeram o deslocamento
de pessoas e riquezas, com o consequente incentivo à produção artística que, além das
expectativas determinísticas, construiu um sistema produtivo coerente e complexo, que de
fato tornou-se, não só marcante, mas referencial para o país; e ainda além, ultrapassando
as fronteiras internacionais.
Após o hiato de influência da Academia, que deslocou o eixo artístico principalmente
para o Rio de Janeiro, o século XX presencia uma reconstrução progressista com a
implantação da capital Belo Horizonte, que após a década de 1930 estrutura lentamente
uma tradição moderna amparada na figura emblemática de Guignard e apoiada pela
arquitetura de Niemeyer. Enquanto isso, à oeste do rio São Francisco, os caminhos abertos
pelas bandeiras se expandem, e o passado rural aos poucos vai se transformando com a
formação e desenvolvimento dos núcleos urbanos.
Essa comunicação tem por fim discutir os momentos de troca cultural acontecidos
na região do Triângulo Mineiro e entorno, centrando a atenção na formação de núcleos
de difusão cultural que permitiram a circulação de artistas e obras: Mary Vieira, José de
Moraes, Lina Bo Bardi, Maciej Babinski e outros artistas contribuíram para a constituição de
262
Circuitos de arte à oeste do Rio São Francisco - Marco Antonio Pasqualini de Andrade
novas referências estéticas, que em sentido oposto às migrações centrífugas, teceram uma
trama complexa que ora se articula solidamente em meio a um contexto de natureza global.
O processo de mapear tais dados encontra dificuldades tanto em relação à pesquisa de
campo, ainda bastante incipiente, mas também quanto aos modelos metodológicos de pesquisa
e análise. Serão enfocados alguns resultados iniciais e prospectivas de entendimento, a fim
de contribuir com a grande discussão dos novos mundos da História da Arte.
As origens históricas da região, oeste ou margem ocidental do Rio São Francisco,
remontam principalmente aos séculos XVIII e XIX, quando a região, disputada anteriormente
entre as capitanias de Pernambuco e de São Paulo, vai adquirindo configuração própria. Na
região noroeste, segundo Antonio de Paiva Moura, a exploração de minérios, inclusive prata
e ouro, trouxe a chegada das bandeiras, especialmente as de Felisberto Caldeira Brandt e
José Rodrigues Frois. A atração de pessoas de diversas regiões do Brasil, da Bahia, São
Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas, e também de portugueses (do Minho, Braga
e Trás-os-Montes) fez criar o povoado de Paracatu, cruzamento também de estradas de
caminho a Goiás.
Emancipada e tornada comarca no início do século XIX, Paracatu será responsável
pelo Sertão da Farinha Podre (atual Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba), que pertencia à
Comarca de Goiás.
Antonio Borges Sampaio nos conta sobre o curioso antigo nome do Triângulo, que seria
originado, no início do século XIX, de uma excursão bandeirante provinda do Desemboque
(Sacramento), na cabeceira do Rio das Velhas, que havia deixado provisões antes da
travessia da Espinha, próximo ao Ribeirão da Prata, e quando retornaram encontraram a
farinha de milho apodrecida. Desde então, ficou conhecida com esse nome a região entre o
Rio Grande e o Paranaíba, em cujo entroncamento foi erguido o Colégio de Nossa Senhora
Mãe dos Homens de Campo Bello, onde, segundo Sampaio, “moços, pobres e com recursos,
receberam educação distinta, ministrada por professores ilustrados”. Próximo à Espinha, foi
se constituindo a paragem de Santo Antonio da Lage, atual Uberaba. E, numa região alta e
plana, antes habitada por índios e pelo Quilombo do Ambrósio, nascia Araxá, terra de Dona
Beja e das águas minerais.
Com o declínio da mineração, os habitantes da região passaram a se dedicar à pecuária
e à agricultura, e com a instalação da Companhia Mogyana e a implantação da estrada de
ferro, a partir de 1889, ao comércio.
A construção de Brasília, na década de 1950, viria a ser outro marco importante, pois
criou um novo referencial, político, social, comercial, cultural, artístico. Traços de modernidade,
especialmente na arquitetura, seja erudita ou vernacular, espalharam-se pelo território, que
com a implantação de faculdades e universidades foi tornando-se polo atrativo em termos
educacionais, e também industriais.
Atualmente a região do Triângulo e Alto Paranaíba encontra-se em pleno desenvolvimento
da economia e aumento da população, e sua emancipação política de Minas, que já foi
263
defendida há tempos atrás, mostra de fato uma autonomia singular em relação ao restante do
estado.
Produção artística
No processo de identificar os agentes, ou melhor, os artistas que contribuíram para a arte
a região, estabeleceu-se uma diferenciação de acordo com o movimento: força centrífuga, força
centrípeta e inércia, correspondendo a artistas que nasceram na região, mas construiram sua
carreira fora; artistas que foram atraídos pela região; e artistas que nasceram e conseguiram
manter uma carreira na própria região.
Um dos principais problemas quando se estuda os artistas de uma região fora dos eixos
hegemônicos é que, devido à falta de condições de formação, produção e fixação, estes acabam
por deixar seu local de nascimento e, frequentemente, nunca mais retornam. Nas regiões à oeste
do São Francisco isso não foi diferente. Se a construção os núcleos e povoamento e urbanização
eclodem por questões de natureza econômica, normalmente não há, em um primeiro momento,
espaço para as artes. Por esse motivo, vamos começar falando dos artistas que foram embora,
“expulsos”, por assim dizer, levados por uma força acima de seus desejos e controles, que
podemos identificar à força centrífuga, usando uma metáfora da física do movimento.
Nem sempre o motivo de tal êxodo se dá ou se conhece facilmente. Às vezes é a própria
família que se muda buscando melhores condições e oportunidades, e a criança ou jovem (ainda
não artista) os acompanha. Sua vocação será desenvolvida, assim, fora, nos grandes centros ou
centros maiores. Outras vezes trata-se de uma escolha pessoal, de alguém que procura aquilo
que não encontra onde habita. E então, é a aventura particular que ganha vulto, e vai ao encontro
de seus objetivos.
Vamos tratar aqui de uma seleção desses artistas, exemplares, mas não únicos. São
referências que ganham uma dimensão para o país, e mesmo extrapolam suas bordas, em
carreiras ou reconhecimento internacional. È interessante que nem sempre o povo de sua cidade
os conhece. Não viram nome de rua, nem de galerias ou instituições. Mas em outros casos, e quem
sabe por esse texto, alguns despertem curiosidade e se transformem em símbolos importantes
de sua terra. Entre eles, destacam-se: José Maria dos Reis Junior, Willys de Castro, Farnese de
Andrade, Severiano Porto, Terezinha Soares, Guilherme Vaz, Edgar Franco, Henrique Lemes,
Maria Regina Rodrigues e Thiago Honório.
Nem todos artistas que saem de sua cidade e região o fazem de modo definitivo. Há casos
em que esse retorno se dá por diversos motivos, principalmente de ordem pessoal, mas também
profissional. Esse retorno é, principalmente, um fato simbólico significativo, que pode ter uma
origem memorial, emotiva, familiar, mas implica em trazer elementos culturais novos, que são
fundamentais para o desenvolvimento artístico da região. É o caso de João Jorge Cury, Calmon
Barreto e Edmar de Almeida.
É possível perceber que os centro de atração se modificam a partir da década de 1960:
do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, passam a também Brasília e Goiânia, ou seja,
264
Circuitos de arte à oeste do Rio São Francisco - Marco Antonio Pasqualini de Andrade
há visivelmente uma modificação dos eixos, que tornam-se mais pulverizados e dispersos.
Aos poucos, vão sendo criadas estruturas capazes de manter e sustentar circuitos locais,
mas, mesmo assim, há ainda claramente uma hierarquia artística, que nem sempre é de fácil
convivência. O processo globalizador e as redes de comunicação permitem a fixação fora dos
eixos hegemônicos, mas os fios que ligam tais pontos tem necessariamente que ser construídos
e esticados, e cuidados para não serem rompidos. Veremos, então, como se teceram e tecem
essas redes.
Quando as cidades começam a se desenvolver, a força se inverte, e artistas passam a ser
atraídos, primeiro dentro de um sistema conectado com a própria construção das cidades, ou seja,
há um trabalho artesanal especializado que torna-se necessário. A pintura decorativa de paredes
é um primeiro trabalho, assim como os murais, painéis de mosaicos, esculturas e monumentos
públicos. Aqui encaixa-se a passagem de Antonio Poteiro por Araguari, a proposta de Mary Vieira
em Araxá, a contribuição de José Moraes, e a vinda de Ido Finotti,. Este, nascido em São Paulo
de uma família de migrantes italianos que passa por Uberaba e fixa-se em Uberlândia. Cessado
o ciclo voltado ao gosto decorativo, passa a pintar paisagens e a construir uma iconografia ou
imaginário local. por outro lado, comercializa suas obras de modo improvisado nas paredes de
sua Confeitaria Na Hora.
Mais significativa é a contribuição da universidade, que instala-se em Uberlândia na década
de 1960. De um curso de música, que apoia-se ainda em uma tradição aristocrática amparada
pelos conservatórios, cria-se um curso de desenho, que aos poucos incorpora outras linguagens,
como a pintura, a cerâmica, a gravura. O contexto de expansão para o interior, iniciado com
a inauguração da capital Brasília, e com o subsequente golpe militar, criaram uma condição
dúbia: as novas oportunidades coincidiam com a perseguição às esquerdas, e assim forma-se
um agrupamento de artistas heterogêneo e significativo: o polonês Maciej Babinski, a carioca
Mary de Iório, os paulistas Lucimar Bello, Dante Velloni e Alexandre Sampaio, a goiana Shirley
Paes Leme e os mineiros Afonso Lana e Maria José Carvalho constituem um primeiro núcleo
que organiza o curso, funda uma galeria (na qual serão expostas também obras de artistas de
fora convidados) e de fato possibilita a constituição de um circuito que formará a nova geração
de artistas locais. Mais recentemente vieram Beatriz Rauscher, Claudia França, Aninha Duarte,
Carolina Melo, Paulo Buennoz, Clarissa Diniz, Gastão Frota, Marcel Esperante, Luciana Arslan
e Paulo Angerami.
Em Uberaba organiza-se um polo em torno de Hélio Siqueira e Paulo Miranda, que ministram
cursos livres, organizam exposições, dirigem instituições da cidade. A Feira de Arte/ Participação,
criada em 1981 e com 10 edições, foi um dos eventos significativos criados na região.
Entre os artistas que nasceram e conseguiram se manter na região, temos uma primeira
geração, praticamente autodidata, na qual se destacam Geraldo Queiroz (em Uberlândia) e
Hélio Fantato (em Uberaba). Já na década de 1970, teremos José Otávio Lemos, Hélvio Lima,
Adélia Lima e Julio Monteiro. E, já formados na universidade, Darli de Oliveira, Assis Guimarães,
Alexandre França e João Virmondes. A universidade também se transformará em um polo de
265
atração para alunos oriundos de outras regiões, entre eles Elaine Corsi, Lilian Tibery, Ana Teixeira
e Glayson Arcanjo, que conforme o contexto permanecem ou não na cidade.
Considerações finais
É possível perceber, a partir da análise da circulação de artistas na região do Triângulo
Mineiro, que temos uma grande primeira leva de artistas que desloca-se de seu local de
nascimento a procura de melhores oportunidades, tendo sua formação e desenvolvimento fora
da região. Embora haja algumas exceções, esse fluxo só se altera a partir das décadas de 1960
e 1970, especialmente com a implantação da universidade e de um curso superior de artes
plásticas. A atração de artistas nascidos e formados em outros locais estabelece uma base local
para criação e manutenção de um circuito, e instaura a possibilidade de formação de artistas
na região. O circuito de exposição cria oportunidades de fixação, embora o comércio de obras
ainda seja incipiente. Assim, os artistas exercem, predominantemente, função educativa, seja no
ensino formal ou através de cursos livres.
O transito de informações, através das redes e da internet, vão aos poucos construindo um
novo patamar de possibilidades, assim como o próprio circuito universitário, que ora já avança
para a pesquisa com um curso de mestrado. Por outro lado, museus, fundações e centros culturais
se espalham, disseminando outros ramos e potenciais de atividades e divulgação.
Porém, a legitimação em nível local ainda encontra-se em situação frágil, ou seja, um artista
que nasce, forma-se ou reside na região encontra pouco espaço para o reconhecimento de sua
produção, a não ser em termos locais. Ou seja, de fato o processo de legitimação e valoração
continua externo e distante, sendo necessária a circulação nos meios hegemônicos (nas capitais
nacionais ou internacionais) para o reconhecimento público do produto artístico.
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267
268
1958, I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites da utopia - Paula Viviane Ramos
1958, I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites
da utopia1
Paula Ramos
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Resumo: O artigo apresenta e discute o I Salão Pan-Americano, realizado em Porto
Alegre, em 1958, nas comemorações do cinquentenário do Instituto de Belas Artes
do Rio Grande do Sul. Exibindo trabalhos oriundos da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,
Estados Unidos, México, Peru e Uruguai, o evento deflagrou questionamentos e críticas,
ao apresentar tanto obras comprometidas com a academia e a tradição, como trabalhos
forjados na abstração-geométrica. Concomitante ao Salão, aconteceu no mesmo IBA o
I Congresso Brasileiro de Arte, reunindo mais de 120 participantes, que debateu, entre
outros, a proposta de criação não apenas de “Universidades de Artes”, mas de um
Ministério das Artes. O texto analisa o contexto institucional e político, limites e utopias de
um evento proposto a partir da mais meridional das capitais brasileiras.
Palavras-chave: I Salão Pan-Americano; I Congresso Brasileiro de Arte; Instituto de
Belas Artes; Tasso Corrêa.
Abstract: The article introduces and discusses the I Pan-American Exposition, held in
Porto Alegre in 1958 in celebration of the fiftieth anniversary of the Institute of Fine Arts of
Rio Grande do Sul. The event presented artworks from Argentina, Bolivia, Brazil, Chile,
United States, Mexico, Peru, and Uruguay. It outbroke questions and critics because it
showed both works implicated with the academy and tradition and works influenced by the
geometric abstraction. Concomitantly to the inauguration of the Exposition, in the same
IBA, the First Brazilian Congress of Art took place too, bringing together more than 120
participants, who presented and discussed the proposal to create “Art Universities” and a
“Ministry of Arts”. This article analyses the institutional and political context, the limits and
the utopias of an event proposed from the southernmost Brazilian capital.
Keywords: I Pan-American Exposition; I Brazilian Art Congress; Institute of Fine Arts of
RS; Tasso Corrêa.
Porto Alegre, abril de 1958. Nas comemorações de seu cinquentenário, o Instituto
de Belas Artes (IBA)2 promove dois eventos que trazem à cidade centenas de artistas,
O presente artigo é um desdobramento do ensaio intitulado Entre a tradição e a modernidade: a Pinacoteca Barão de Santo
Ângelo nas décadas de 1940/1950, publicado em Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: Catálogo Geral - 1910-2014. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2015, p. 415-448.
1
2
Atual Instituto de Artes da UFRGS.
269
jornalistas, historiadores e críticos de arte de várias regiões não apenas do Brasil, mas do
exterior; dois eventos que levantam polêmicas de proporção nacional e indicam mudanças
no cenário artístico local; dois eventos emblemáticos e ambiciosos, muito comentados, talvez
pouco compreendidos: I Salão Pan-Americano de Arte e I Congresso Brasileiro de Arte. Se o
primeiro foi gérmen, de certo modo, da própria Bienal do Mercosul, trazendo representações da
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Estados Unidos, México, Peru e Uruguai, o segundo discutiu,
em meio a debates sobre ensino e difusão da arte e profissionalização dos artistas, a criação
não apenas de “Universidades de Artes”, mas de um Ministério das Artes. Idealizados por
Tasso Corrêa (1901-1977), diretor do IBA durante 22 anos (1936-1958), os episódios marcaram
a culminância de sua administração, reeleita e referendada de mandato em mandato, no
período mais crítico da história da entidade; reforçaram, igualmente, a autonomia do campo
artístico e o reconhecimento de seu lugar no âmbito universitário; mas, fundamental: atestavam
a resistência e a superação de um grupo.
Uma história de sobrevivências
Criado em 22 de abril de 1908, o Instituto Livre de Belas Artes (ILBA, posteriormente
IBA) era formado pelo Conservatório de Música, instituído em 1909, e pela Escola de Artes, de
1910, voltada ao ensino de Desenho, incluindo as artes aplicadas.3 O aparecimento do ILBA foi
pautado, de um lado, pelo Decreto Federal nº 1.232, de 2 de janeiro de 1891, que incentivava
a criação de Escolas Superiores Livres, e, de outro, por uma elite de bom preparo intelectual,
capitaneada pelo então Governador do Estado, Carlos Barbosa Gonçalves (1851-1933), pelo
médico Olympio Olintho de Oliveira (1865-1956) e pelo artista Libindo Ferrás (1877-1951),
mentor e responsável pela Escola de Artes.4
Durante suas primeiras décadas, o Instituto foi administrado pela chamada “Comissão
Central”, constituída por profissionais liberais simpatizantes à causa da cultura e que funcionava
como conselho fiscal, instância deliberativa e eletiva. Em outubro de 1933, como paraninfo de
uma turma, o jovem professor de piano Tasso Bolívar Dias Corrêa5 atacou a Comissão Central,
dizendo, no discurso que publicaria em 26 de outubro, no jornal Diário de Notícias:
[...] O Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul é uma instituição dirigida por médicos, advogados,
engenheiros, comerciantes etc. Daí se verifica que o Instituto, sendo uma organização destinada à difusão do
ensino artístico no Rio Grande do Sul, é orientada por cavalheiros de alta distinção, mas que, infelizmente, na
sua grande maioria, nada entende de arte. Para demonstrar o absurdo de nossa organização administrativa,
3
A partir de 1926, teríamos a introdução de cursos de pintura.
Sobre a história do Instituto de Artes, ver: SIMON, Círio. Origens do Instituto de Artes da UFRGS - Etapas entre 1908-1962 e
contribuições na constituição de expressões de autonomia no sistema de artes visuais do Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado
em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto
Alegre, 2003.
4
5
Tasso Bolívar Dias Corrêa (1901-1977) foi figura de proa no cenário artístico e cultural do Rio Grande do Sul. Teve formação
como pianista, concluída no Instituto Nacional de Música, em 1921. Naquele ano, em concurso público no mesmo Instituto, foi
laureado com duas Medalhas de Ouro, sendo uma correspondente ao Prêmio Alberto Nepomuceno. Também iniciou, na Capital
Federal, o curso de Direito, que concluiu em Porto Alegre, em 1933, sob os olhares do Desembargador Manoel André da Rocha
(1860-1942), primeiro Reitor da Universidade de Porto Alegre (UPA), criada em 1934, base da UFRGS. Exibia, assim, nas palavras
de Círio Simon, uma “iniciação para a burocracia” (SIMON, 2003, p. 291). Na sua atividade profissional, Tasso lecionava piano no
Conservatório de Música de Porto Alegre desde 1922.
270
1958, I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites da utopia - Paula Viviane Ramos
lembraria o seguinte: uma Faculdade de Medicina dirigida por uma comissão de músicos, pintores, escultores...
A sua situação deveria ser idêntica a do Instituto de Artes.
O fato lhe rendeu a demissão, revogada a partir de abaixo-assinado de 102 estudantes.
Tasso saiu do embate fortalecido e, em 16 de abril de 1936, tendo o ex-professor Manoel
André da Rocha (1860-1942) como primeiro Reitor da UPA, foi designado diretor do Instituto,
cargo que deixaria apenas em 1958.6 Ao assumir, instaurou nova estrutura, alterando postos,
cargos e disciplinas e criando o Curso de Artes Plásticas (CAP), em substituição ao modelo
da Escola de Artes. Foi para esse novo e remodelado Curso que contratou profissionais que
poderiam garantir a efetiva visibilidade social ao IBA, e cujas obras a comunidade conhecia e
respeitava (SIMON, 2003). Se, na primeira fase da Escola de Belas Artes, havia tão somente
dois professores, Libindo Ferrás e o tcheco Francis Pelichek (1896-1937), a partir de 1936
verificamos uma mudança significativa: naquele mesmo ano, Tasso Corrêa contrata seu irmão,
Ernani Dias Corrêa (1900-1982), personagem central na criação do Curso de Arquitetura
(primeiramente como curso técnico, em 1939), e o crítico de arte Angelo Guido (1893-1969),
que assumiria as disciplinas de História da Arte; em 1937, com o falecimento de Pelichek,
chama João Fahrion (1898-1970) para ministrar Desenho de Modelo Vivo e, em 1938, são
contratados os espanhois Fernando Corona (1895-1979), para as disciplinas de Modelagem
e Escultura, Benito Castañeda (1885-1955) e Luiz Maristany de Trias (1885-1964) para as de
Pintura de Paisagem, e o alemão José Lutzenberger (1882-1951) para Desenho Geométrico e
de Perspectiva.7
Tasso Corrêa também incentivou, desde 1939, a realização dos Salões de Belas Artes
do IBA, que movimentavam o cenário local e davam corpo, por meio dos prêmios-aquisição, à
coleção da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, instituída em 1910.8 Ao longo de sua história, o
IBA realizou 15 eventos nessa modalidade.9 Entre 1939 e 1956, em sete edições, ocorreram os
Salões de Belas Artes do Rio Grande do Sul10; em 1958, o I Salão Pan-Americano; em 1962, o
9º Salão de Artes Plásticas do IBA; nos anos de 1964 e 1965, temos os Salões dos Alunos; e,
entre 1970 e 1977, os quatro Salões de Artes Visuais da UFRGS.11
Além de fortalecer os laços da escola com outros agentes, esses eventos foram
6
Tanto o Auditório do Instituto de Artes, como o Centro Acadêmico dos estudantes de Artes Visuais e História da Arte prestam-lhe
homenagem, adotando seu nome.
Observa-se, rápida e unicamente a partir desses dados, a presença maciça de profissionais estrangeiros, do campo das artes
visuais, vivendo e trabalhando em Porto Alegre naqueles idos. Havia um núcleo italiano, um espanhol e um teuto. Esses artistas
trouxeram consigo um aporte único ao IBA. Fahrion, embora nascido no Brasil, fez sua formação na Alemanha do início dos anos
1920; Castañeda, antes de se fixar no Rio Grande do Sul, percorreu a Espanha e a Argentina; Corona e Lutzenberger vinham de
uma rica experiência com arquitetura e decoração de fachadas. Os professores, portanto, incorporaram múltiplos saberes, fazendo
do Instituto um centro dinâmico, que chegou ao final dos anos 1950 concentrando as discussões e decisões sobre o estado da
visualidade no Rio Grande do Sul (PIETA, 1988).
7
8
Sobre a história da Pinacoteca, ver Pinacoteca Barão de Santo Ângelo - Catálogo Geral - 1910 - 2014. Organização: Paulo
Gomes. Textos de: Ana Maria Albani de Carvalho, Blanca Brites, Eduardo Veras, Paula Ramos, Paulo Gomes e Paulo Silveira.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015.
9
Sobre os Salões organizados pelo Instituto de Artes, ver KRAWCZYK, 1997; BOLZAN, 2011.
Em sete edições, os Salões de Belas Artes do Rio Grande do Sul aconteceram nos seguintes anos: 1939, 1940, 1943, 1953,
1954, 1955 e 1956.
10
11
Voltados à produção contemporânea, os Salões de Arte da UFRGS aconteceram em quatro edições: 1970, 1973, 1975 e 1977.
271
fundamentais para assegurar a permanência da própria instituição. Observemos: em 1939,
quando ocorre o primeiro dos Salões, a comunidade do IBA estava abalada. Isso porque,
em 5 de janeiro, por meio do Decreto nº 7.672, publicado no Diário Oficial, o Instituto era
expurgado da Universidade de Porto Alegre, que ele mesmo havia ajudado a criar, cinco
anos antes.12 No dia seguinte, a Comissão Central entregava a administração da escola à
Congregação de Professores, que precisava encontrar formas de mantê-la, pedagógica,
jurídica e economicamente.
Desde o início da década, a instituição vinha sentindo os desdobramentos do conjunto de
decretos-lei de 11 de abril de 1931, sobretudo os de nº 19.850/19.851, propostos pelo ministro
Francisco Campos (1891-1968) e chancelados por Getúlio Vargas (1882-1954), que criavam,
respectivamente, o Conselho Nacional de Educação e o modelo da “universidade brasileira”.
Quando a UPA foi instituída, em 1934, a partir da união das Escolas Superiores Livres, essas
precisaram se ajustar ao novo paradigma universitário; no entanto, o IBA não dispunha nem de
condições físicas adequadas, tampouco de um Corpo Docente estruturado. Tais dificuldades
seriam motivo, contudo, de expulsão? Círio Simon, em sua referencial tese de doutorado sobre
o assunto, reforça o espanto: “[...] não há nenhum precendente, nem foi localizada na história
institucional das artes, alguma exclusão de uma unidade de uma universidade por decreto”
(SIMON, 2003, p. 325). Professores e alunos do IBA, na época, ficaram em choque, mas Tasso
Corrêa, segundo o pesquisador, não.
[...] não houve o menor estranhamento administrativo, nem o menor protesto de Tasso Corrêa contra a expulsão
do Instituto da UPA. [...] É possível até adiantar que, na óptica de Tasso, era só esse ato que faltava para levar
adiante o seu audacioso projeto de um Instituto com autonomia para o campo das artes. (SIMON, 2003, p. 326)
A inclusão do saber das artes no âmbito universitário é recente e, no caso do Instituto
de Belas Artes, foi traumático. Ao todo, foram seis desanexações,13 que, ao contrário do
que se possa imaginar, não fragilizaram, mas fortaleceram a entidade. Durante 23 anos, ela
precisou lutar pela sua sobrevivência e reconhecimento. Uma das formas de fazê-lo estava na
organização dos Salões.
As duas primeiras edições (1939 e 1940) conseguiram atrair a Porto Alegre obras
de profissionais reconhecidos nos principais circuitos artísticos da época - Rio de Janeiro,
principalmente. Nesse processo, o círculo de relações cultivado por Tasso Corrêa foi
fundamental. Em seu período formativo, vivendo na então Capital Federal, Tasso conheceu
músicos, artistas e teóricos. Era amigo do pintor Manoel Ferreira de Castro Filho (1901-?), que,
em 1939, estava à frente da Sociedade Brasileira de Belas Artes (SBBA), a qual Tasso seria
incluído em novembro de 1940, como Sócio Honorário. O mesmo Castro Filho mantinha no
A UPA foi criada em novembro de 1934 a partir de seis instituições: Faculdade de Medicina, com suas Escolas de Odontologia
e Farmácia; Faculdade de Direito, com sua Escola de Comércio; Escola de Engenharia; Escola de Agronomia e Veterinária;
Faculdade de Educação, Ciências e Letras; e Instituto de Belas Artes. A UPA passou a se chamar, em 1947, URGS, Universidade
do Rio Grande do Sul, e, desde 1950, federalizada, UFRGS.
12
13
Sobre o tema, ver SIMON, 2003.
272
1958, I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites da utopia - Paula Viviane Ramos
jornal carioca Correio da Noite uma coluna intitulada Bellas Artes, na qual, ao longo de várias
edições, encontramos referências elogiosas e ampla divulgação das atividades desenvolvidas
pelo IBA.
Porto Alegre já se firmou como um dos principais centros de arte do país. [...] E tudo isso, se procurarmos a
origem, vamos encontrá-la no trabalho admirável que vem realizando, sem desfalecimento, esse verdadeiro
ninho de professores notáveis - o Instituto de Belas Artes de Porto Alegre. Foi o seu diretor, um moço a que
não faltam os atributos de uma grande tenacidade, aliados à sólida cultura - o professor Tasso Corrêa - quem,
amparado na coesão absoluta do corpo docente do estabelecimento onde pontificam: João Fahrion, Maristany
de Trias, Ernani Corrêa, pode realizar o I Salão do Rio Grande o Sul. Constitui, esse certame, um dos motivos
principais no movimento artístico de 1939. [...]14
Parceiro e apoiador inconteste, Castro Filho seria convidado a presidir o Júri do II Salão
de Belas Artes, inaugurado em novembro de 1940, para o qual a Sociedade Brasileira de Belas
Artes enviou quase 300 trabalhos, “[...] referentes a 80 e poucos artistas [...], sendo premiados
51 desses concorrentes, todos pertencentes ao quadro social da S.B.B.A.”.15 Relações, sempre
elas. O capital social e simbólico dos artistas fluminenses seria conclamado em dezembro de
1941, por meio da coluna Bellas Artes, e se tornaria palpável em março de 1942, quando o IBA
organizou a “Grande Exposição de Belas Artes em benefício da construção do novo edifício do
Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, com a apresentação de trabalhos dos maiores
artistas brasileiros”.
Foi lançada, há dias, a pedra fundamental do novo edifício do Instituto de Belas Artes, tradicional educandário
rio-grandense [...]. Nas obras do seu novo edifício, o Instituto empregou todos os fundos de que dispunha e,
dada a sua insuficiência, ainda está lançando mão de donativos que são endereçados por amigos das belas
artes de todo o Brasil. A Sociedade Brasileira de Belas Artes, que mantém a mais estreita ligação com o
prestigioso estabelecimento de ensino artístico do Rio Grande, lançou um apelo a todos os seus associados,
no sentido de que fizessem o donativo de trabalhos para uma exposição de arte a realizar-se em Porto Alegre
[...].16
Obras de 160 artistas foram apreciadas e comercializadas, rendendo 34.000$000. A
edificação de uma nova sede era condição imposta pelo Governo Federal para que a instituição
pudesse dar continuidade aos seus trabalhos.17 Em 23 de setembro de 1942, outra exposição
filantrópica era inaugurada. E, cinco meses depois, em fevereiro de 1943, na Casa das
Molduras, acontecia um terceiro evento. Os nomes dos benfeitores seriam lembrados em 1º de
julho de 1943, quando da inauguração do edifício e da realização do III Salão de Belas Artes.
CASTRO FILHO, Manoel Ferreira de. O Segundo Salão de Belas Artes do Rio Grande do Sul [Coluna Bellas Artes]. In: Correio
da Noite, Rio de Janeiro, set. 1940.
14
15
O 2º Salão de Belas Artes de Porto Alegre. In: Beira-Mar, Rio de Janeiro, 21 dez. 1940, p. 5.
CASTRO FILHO, Manoel Ferreira de. O novo edifício do Instituto de Belas Artes do Rio G. do Sul [Coluna Bellas Artes]. In:
Correio da Noite, Rio de Janeiro, 16 dez. 1941.
16
Na reunião da Congregação do IBA, de 23 de agosto de 1940, era aprovada a “Campanha Pró-Construção do Novo Edifício”,
para a qual a comunidade, de estudantes a empresários, foi chamada a colaborar: eram os “legionários do Instituto”. Em 4 de
setembro de 1941, iniciava-se a demolição do antigo casarão, na Rua Senhor dos Passos, Centro Histórico de Porto Alegre e,
em 14 de novembro daquele mesmo ano, era lançada a pedra inaugural do novo edifício, inaugurado em 1º de julho de 1943, no
mesmo terreno. Quase uma década depois, em 1952, era iniciada a construção do bloco destinado aos ateliês de artes plásticas.
Nos anos 1960, ainda seria adquirido um pequeno prédio anexo. Sobre o assunto, ver SIMON, 2003.
17
273
Em 1958, portanto, ao organizarem o I Salão Pan-Americano e o I Congresso Brasileiro
de Arte, os professores comemoravam os 50 anos da instituição e sua sobrevivência; mais
que isso, comemoravam a superação e a prova concreta da força do campo artístico no Rio
Grande do Sul. Para reforçar essas conquistas, naquele mesmo ano Tasso Corrêa chamou os
artistas professores Ado Malagoli (1906-1994), Aldo Locatelli (1915-1962), Alice Soares (19172005), Fernando Corona e João Fahrion a executar murais no 8º andar do prédio, na área que
abrigava o Salão de Festas. Dos cinco executados, restam apenas três: o painel cerâmico de
Fernando Corona e as pinturas de Fahrion e de Locatelli. Se as obras dos dois primeiros são
essencialmente decorativas, a pintura As artes, de Locatelli, assume outra instância, simbólica
e política, ao perenizar e homenagear os personagens que capitanearam a condição que a
Escola conquistara, como uma das mais importantes instituições voltadas às artes visuais no
Brasil (Figura 1).
Portentosa, em seus quase dez metros de comprimento, As artes é constituída de três
grandes blocos, cada qual marcado por representações de figuras-chave no contexto histórico
e institucional da entidade. Ali estão, à direita, as efígies do médico Olinto de Oliveira e do
então Governador do Estado, Carlos Barbosa Gonçalves, que viabilizaram, em 1908, a criação
do IBA; à esquerda, identificamos os retratos de João Fahrion, Ernani Dias Corrêa e Tasso
Corrêa, professores e membros do CTA, Conselho Técnico e Administrativo; e, no centro, entre
274
1958, I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites da utopia - Paula Viviane Ramos
Figura 1 - ALDO LOCATELLI (1915-1962). As artes, 1958. Pintura mural, 295 x 995 cm
localizada no 8º andar do Instituto de Artes, no antigo Salão de Festas, a obra assinala os 50
anos do IBA e presta homenagem aos fundadores e construtores de uma tradição.
representações de estudantes e alegorias do Desenho, da Pintura e da Escultura, o perfil de
Fernando Corona e a autorrepresentação de Locatelli. Co-autor do projeto arquitetônico do
IBA,18 Corona incentivava as inovações artísticas; já o italiano Aldo Locatelli, festejado pelos
afrescos em prédios públicos e religiosos de Porto Alegre, Pelotas e Caxias do Sul, era o
baluarte de um legado que remontava à pintura renascentista e, por extensão, aos cânones
acadêmicos. Ambos emergem vigorosos, no eixo da composição. De certo modo, eles
representam o próprio momento vivenciado pelo Curso de Artes Plásticas: entre a tradição e a
modernidade, limbo que assinalou os eventos de 1958.
I Salão Pan-Americano/I Congresso Brasileiro de Arte: debates
Em junho de 1957, eram enviados os convites de honra a Presidentes de Estado, bem
como a diretores de museus, associações e entidades das áreas de Artes Visuais, Música,
Literatura, Teatro e Arquitetura. Ao todo, foram lembradas 84 instituições estrangeiras; outros
110 artistas foram chamados a enviar obras para concorrer aos prêmios; e, dos 938 trabalhos
inscritos, 268 foram recusados, num índice de 28,57% (KRAWCZYK, 1997).
No dia 24 de abril de 1958, centenas de pessoas prestigiaram a abertura do I Salão PanAmericano. Expograficamente, adotou-se um modelo até então inédito no IBA, que distribuiu as
18
Corona divide a autoria com Ernani Dias Corrêa.
275
obras ao longo dos oito andares do edifício. O destaque ficou com as delegações do Uruguai e
da Argentina, que apresentaram obras abstrato-geométricas, cingidas pela presença de Torres
García (1874-1949) em Montevideo, a partir de 1934; ou pelo viés surrealista, como verificado
nas obras de Raquel Forner (1902-1988) e Alfredo Guido (1892-1967). Na análise de Fernando
Corona,
[...] Neste certame pan-americano da arte estamos assistindo a uma coexistência formidável. Argentina está
representada pelos concretistas mais avançados. [...] O Uruguai pelos cubistas, surrealistas e construtivistas,
muitos deles consagrados artistas. As salas desses países amigos contrastam com as obras enviadas do Rio
e São Paulo, em sua maioria medíocres pela fórmula acadêmica. Entretanto, Rio e São Paulo poderiam ter
enviado o que de melhor se faz no país. [...] 19
Para o crítico Luis Martins (1907-1981), que fazia a cobertura do evento para o jornal O
Estado de São Paulo, a mostra era “inconveniente”:
[...] O Salão Pan-Americano, com raras e, por isso mesmo, destacadas exceções, pairou, no setor nacional, nos
limites da subarte, de um amadorismo pitoresco, de um academismo sem expressão vital e sem vigor plástico,
fora da vida e do tempo, índice melancólico de uma sensibilidade arcaica e ultrapassada pelo tumulto, pela
inquietação e pela angústia do homem contemporâneo.20
Corona reconhecia na “coexistência” de acadêmicos e modernos uma característica
importante do evento sulino, para o bem e para o mal:
[...] os artistas do Rio e São Paulo não querem se misturar. Eles lá fazem dois salões. Um, dos acadêmicos,
outro dos modernos. Nós aqui fazemos um só salão e aceitamos todas as tendências, pensando mais no povo,
onde ele por si poderá gostar ou não, e aprenderá, ajudado pela crítica, a separar o joio do trigo. [...] Entretanto,
essa coexistência é um primor pelos disparates extremos. [...] Uma pintura acadêmica a mim faz muito mal
quando vejo que seu autor não tem 40 anos, o que confirma sua falta de talento criador, com espírito de pintor
de domingos.21
As premiações evidenciam um certo equilíbrio entre as vertentes artísticas concorrentes
que, via de regra, ilustravam o cenário da arte naquele momento. Como lembra Cíntia
Bohmgahren, o fato de Dorothea Vergara (1923) ter recebido Medalha de Ouro em Escultura
por sua Figura feminina validava a produção orientada por cânones acadêmicos; o fato
do mexicano Raul Anguiano (1915-2006) ter recebido Medalha de Ouro em Pintura por
Dolientes validava a produção marcada pela temática e preocupação social, tão forte no
México e na América Latina como um todo, principalmente a partir da década de 1930; o
fato das pinturas Natureza morta, do uruguaio Julio Verdié (1900-1988), e Composição, de
Ernani Mendes de Vasconcellos (1912-1989), terem sido agraciadas com prêmios aquisição
validava as tendências geométricas e abstratas... O Salão, portanto, exibiu as principais
19
CORONA, Fernando. Salão Pan-Americano de Arte. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 7 mai. 1958.
20
DUARTE, Paulo. O Congresso de Arte de Porto Alegre. In: O Estado de São Paulo, São Paulo, 6 mai. 1958.
21
CORONA, Fernando. Salão Pan-Americano de Arte. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 7 mai. 1958.
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1958, I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites da utopia - Paula Viviane Ramos
orientações em voga: obras figurativas, de interesse social, regionalista, expressionista,
acadêmica e arte abstrata, esta última majoritariamente representada pela delegação
uruguaia (BOHMGAHREN, 2013) (Figura 2).
Figura 2 - Vista do I Salão Pan-Americano, IBA-RS, Porto Alegre, 1958.
Já o I Congresso Brasileiro de Arte, estruturado em sessões,22 tinha como objetivo
discutir problemas relacionados ao ensino das artes, sua difusão, assim como direitos
e deveres das instituições públicas. Antecipando o evento, o IBA, por meio de seus três
“Boletins Informativos”, republicava textos divulgados pela imprensa e anunciava as pessoas
confirmadas, dentre as quais Mário Pedrosa (1900-1981), Pietro Maria Bardi (1900-1999) e
Lúcio Costa (1902-1998), que, entretanto, não chegaram a participar. Vicente Mecozzi, em
reportagem no jornal O Tempo, comenta as ausências:
[...] Infelizmente, algumas das nossas entidades máximas contemporâneas (Museu de Arte Moderna de
São Paulo e outras) se olvidaram até de responder ao convite generoso. Analogamente, fizeram outros
nossos expoentes das artes; aliás, alguns poderiam, respeitando o protocolo, mas não compareceram:
Na sessão “Arquitetura”, participaram 41 pessoas, dentre as quais Vilanova Artigas (1915-1985), Edgar Graeff (1921-1990)
e Edvaldo Pereira Paiva (1911-1981); na sessão “Letras”, foram 39 participantes, dentre eles Erico Verissimo (1905-1975),
Guilhermino César (1908-1993), Manoelito de Ornellas (1903-1969) e Athos Damasceno Ferreira (1902-1975); na sessão “Teatro”,
10 pessoas participaram, com destaque para o ilustrador e cenógrafo Nelson Boeira Faedrich (1912-1994); já na sessão “Música”,
63 pessoas se inscreveram, entre elas o maestro Eleazar de Carvalho (1912-1996); por fim, na sessão “Artes Plásticas”, foram
80 inscritos, desde artistas como Arcangelo Ianelli, Carlos Scliar (1920-2001), Xico Stockinger (1919-2009) e o então estudante
Waldeny Elias (1931-2010), passando por historiadores e críticos como Mario Barata (1921-2007), Dante de Laytano (1908-2000)
e Marc Berkowitz (1914-1989).
22
277
Sergio Milliet, ocupadíssimo com Congresso na Bélgica; Lourival Gomes Machado, com a Bienal de Veneza;
Francisco Matarazzo Sobrinho não tomou conhecimento, porquanto não respondeu ao convite, ou este se
extraviou pelo Correio; Pietro Maria Bardi, como sempre, atarefado com suas viagens ao estrangeiro. E foi
pena, pois que esses elementos valiosos e outros muitos teriam contribuído para benefício do conclave.23
Foi durante o congresso que Mario Barata (1921-2007) defendeu, por exemplo, Da
criação de um Curso Superior de História da Arte no Brasil, seguida de apontamentos sobre a
necessidade da inclusão da disciplina de História da Arte nas Faculdades de Filosofia e mesmo
nos colégios.24 Quirino Campofiorito, em reportagem no jornal Diário de Notícias, um mês antes
do episódio, anunciava:
[...] Participarão as entidades e as pessoas que houverem sido convidadas, não devendo cada delegação
contar com mais de cinco membros. [...] Terminado o congresso, será apresentado ao Presidente da República
e ao Congresso Nacional um anteprojeto de criação do Ministério das Artes e das Universidades de Arte.25
Exposta pelo pintor Vincenzo Mecozzi (Vicente Mecozzi, como era conhecido, 19091964), a tese Conselho Estadual de Arte e Fundo Legal Pró-Arte era, de certa forma, a matriz
do conclave. Apresentada no dia 26 de abril, ela acenava, a partir de ideias nascidas no seio do
IBA, a criação do Ministério das Artes e das Universidades de Arte. Mas a proposta era polêmica
demais, e foi derrotada em votação, por 75 a 61 votos.26 Luis Martins participou da contenda e,
em artigo n´O Estado de São Paulo, não apenas qualificou o Congresso de um “malogro”, como
desprezou a ideia defendida por Mecozzi:
[...] Não creio que seja necessário enunciar aqui as razões contrárias à criação desse absurdo Ministério
das Belas Artes, sonho burocrático de brasileiros fascinados pelas comodidades do empreguismo público, num
momento em que o bom senso aconselharia cortes drásticos no quadro do funcionalismo, que devora a maior
parte do combalido orçamento nacional. Tanto mais que já existe um Ministério da Educação e Cultura!27
Seis dias depois, no mesmo jornal, Paulo Duarte (1899-1984), diretor da revista cultural
Anhembi e Secretário-Geral do Congresso, apresentou a revanche:
[...] Acontece, no entanto, que os defensores de um Ministério de Belas Artes não vinham embalados “pelo
sonho burocrático de brasileiros fascinados pelas comodidades do empreguismo público”, como diz Luis
Martins. Eram eles liderados pelo professor Tasso Corrêa, figura eminente, com posição social e mental
definida, homem desprendido, dedicado, afastado da malícia política, para o qual o novo Ministério seria um
meio de dar às Artes no Brasil a assistência que os poderes públicos lhe têm negado [...].28
23
MECOZZI, Vicente. Primeiro Congresso Brasileiro de Arte. In: O Tempo. Rio de Janeiro, mai. 1958.
Lembrando que, no Brasil, o oferecimento de formações em História da Arte, em nível de graduação, só aconteceria efetivamente
a partir de 2009, com o surgimento dos Bacharelados em História da Arte. Exceção à iniciativa da UERJ que, ainda em 1961,
oferecia formação na área, porém em Licenciatura.
24
CAMPOFIORITO, Quirino. 1º Congresso Brasileiro de Artes - Aproveitamento da Riqueza Humana que o Brasil possui. In: Diário
de Notícias, Porto Alegre, 23 mar. 1958, suplemento p. 3.
25
Acerca disso, Círio Simon lembra que a proposta do Ministério das Artes no Brasil antecipa em um ano o surgimento, na França,
do Ministère des Affaires Culturelles, a partir de 8 de janeiro de 1959, cujo primeiro dirigente foi André Malraux (1901-1976)
(SIMON, 2003, p. 523).
26
27
MARTINS, Luis. O Congresso de Arte de Porto Alegre. In: O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 abr. 1958.
28
DUARTE, Paulo. O Congresso de Arte de Porto Alegre. In: O Estado de São Paulo, São Paulo, 6 mai. 1958.
278
1958, I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites da utopia - Paula Viviane Ramos
Em 7 de maio, nas páginas do Correio do Povo, Fernando Corona afirmava:
[...] Sabíamos também que não seria possível a criação do Ministério das Artes em momentos como este,
onde parece que as coisas do espírito são secundárias. [...] Os otimistas veem a vida com telescópio - neles
estou incluído -, pensam no amanhã, porque, francamente, se passamos a vida ante o microscópio, veremos
unicamente miséria. Porto Alegre foi a primeira cidade no mundo que conseguiu reunir num congresso
representantes de todas as artes. Foi um congresso nacional. [...] Francamente, nós que lançamos a ideia da
criação de um Ministério das Artes queríamos apenas lançar uma ideia que coroasse o sucesso do Congresso.
Um dia, algum governo sentirá necessidade de sua criação. As ideias, como as frutas, amadurecem com o
tempo.29
O lugar das artes
Tasso Corrêa, no discurso de saudação aos participantes dos eventos de 1958, anunciara:
[...] É certo que o I Salão Pan-Americano de Arte não será o último. A Congregação de Professores do Instituto
de Belas Artes tomou a seu cargo a sua realização bienal. Assim, em 1960, já nos magníficos salões da
Universidade do Rio Grande do Sul, será realizado o II Salão Pan-Americano de Arte. A semente está lançada.30
O II Salão nunca aconteceu. Na reunião do Conselho Técnico e Administrativo do IBA,
de 14 de novembro daquele ano, foi colocada em dúvida a realização de um outro evento com
tais dimensões. Círio Simon enfatiza, contudo, que já na reunião de 19 de setembro esse futuro
estava selado: Tasso não havia recebido o apoio inconteste, tampouco a costumeira unanimidade
de votos para mais um mandato (SIMON, 2003, p. 526). Abatido, deixou o cargo, solicitando a
aposentadoria poucos dias depois. Antes disso, deixou marcada, por meio da arte, a teleologia
que regeu sua gestão de 22 anos.
Naquele mesmo ano, Tasso intermediou a produção de duas obras, de João Fahrion e de
Aldo Locatelli, junto à Reitoria da UFRGS.31 Se Fahrion levou para o ambiente que hoje lhe presta
homenagem o mesmo clima sensual e bucólico do mural junto ao 8º andar do IBA, Locatelli
construiu, na sala do Conselho Universitário, órgão máximo da instituição, uma apologia a alguns
dos saberes que então constituíam a Universidade (Figura 3).
Como As artes, a pintura As profissões traz, em meio a alegorias, três grupos, cada qual
marcado por representações específicas. Ao centro, sentado em postura reflexiva, está Manoel
André da Rocha, ex-professor de Tasso Corrêa e primeiro reitor da UPA. Acima dele, representantes
da Faculdade de Medicina e da Escola de Engenharia.32 Ainda neste grupo, mais à esquerda do
observador, vemos o autorretrato de Locatelli, que se insere na composição em primeiro plano,
pés descalços, lendo um livro e protegido por um simples avental, como a reiterar uma das
29
CORONA, Fernando. Ministério das Artes. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 7 mai. 1958.
Fragmento do discurso de Tasso Corrêa. In: Catálogo do I Salão Pan-Americano de Arte. Porto Alegre: Instituto de Belas Artes
do Rio Grande do Sul, 1958.
30
O IBA, depois das várias integrações e expurgos, continuava como uma instituição independente, mas os membros do CTA,
cautelosos, fortaleciam as relações com a UFRGS, graças ao canal estabelecido com o atual Reitor, o médico Elyseu Paglioli
(1898-1985), à frente da Universidade entre 1952 e 1964.
31
Cíntia Bohmgahren identifica a figura com pelerine vermelha e barrete na cabeça como Eduardo Sarmento Leite (1868-1935),
histórico diretor da Faculdade de Medicina; à sua frente, João Simplício Alves de Carvalho, da Escola de Engenharia, dois
importantes cursos constituintes da UPA (BOHMGAHREN, 2013).
32
279
Figura 3 - ALDO LOCATELLI (1915-1962). As profissões, 1958. Óleo sobre tela, 362 x 794 cm localizada na sala do CONSUN/
UFRGS, a pintura insere as artes entre os saberes universitários.
grandes lições de Leonardo (1452-1519): do artista como um pensador criativo e ilustrado, e não
como mero artífice habilidoso. Na ala esquerda, identificamos as alegorias relativas às Ciências
Biológicas e da Saúde. Círio Simon também reconhece na figura masculina altiva, encarando e
apontando em direção ao espectador, um retrato-homenagem a Elyseu Paglioli, médico e então
Reitor. Finalmente, no canto direito, as humanidades, com ênfase para as Artes, representadas
pelo violoncelo (Música), busto (Escultura), fragmento de capitel (Arquitetura) e pela figura
feminina sentada, contemplando tudo e segurando um pincel, elemento de ação para o artista
plástico. As Artes, portanto, dentro da UFRGS, estavam simbolicamente inseridas no contexto
dos saberes e das profissões universitárias. Faltava a sua inserção legal, que coube ao próprio
Elyseu Paglioli, por meio do Decreto nº 4.159, de 30 de novembro de 1962.
As artes: trânsitos políticos e simbólicos em um momento de rupturas e transformações.
Talvez essa tenha sido a segunda cartada; a primeira se percebe não apenas nos documentos,
mas no projeto arquitetônico inicial para o IBA, nunca concretizado, dos anos 1940. No desenho
de traço seguro de Fernando Corona, estão explícitas as grandes aspirações daquele legendário
grupo de professores: ali funcionaria a primeira “Universidade das Artes do Brasil”. A utopia,
porém, encontrou limites (Figura 4).
Referências Bibliográficas:
BOHMGAHREN, Cíntia Neves. A modernidade nos murais de Aldo Locatelli e de João Fahrion na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e o Cinquentenário do Instituto de Belas Artes, 1958. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Programa
de Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre,
2013.
BOLZAN, Adriana Pinto. Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: um pouco de sua história. Monografia (Trabalho de Conclusão
de Curso em Artes Visuais - Habilitação: História Teoria e Crítica de Arte). Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2011.
KRAWCZYK, Flávio. O espetáculo da legitimidade: os salões de artes plásticas em Porto Alegre - 1875/1995. Dissertação
(Mestrado em Artes Visuais). Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 1997.
PIETA, Marilene Burtet. A modernidade na pintura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sagra/DC Luzzatto, 1995.
280
1958, I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes do RS: os limites da utopia - Paula Viviane Ramos
RAMOS, Paula. Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: Relações Sistêmicas nos anos 1940/1950. ENCONTRO NACIONAL DA
ANPAP, 24, 2015. In: Anais... Santa Maria: ANPAP, 2015, p. 474-489. Disponível em <http://anpap.org.br/anais/2015/comites/
chtca/paula_ramos.pdf>. Acesso em 25 out. 2015.
RAMOS, Paula. Entre a tradição e a modernidade: a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo nas décadas de 1940/1950. In:
Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: Catálogo Geral - 1910 - 2014. Organização: Paulo Gomes. Textos de Ana Carvalho,
Blanca Brites, Eduardo Veras, Paula Ramos, Paulo Gomes [e] Paulo Silveira. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015, p.
415-448.
SIMON, Círio. Origens do Instituto de Artes da UFRGS: etapas entre 1908-1962 e contribuições na constituição de expressões
de autonomia no sistema de artes visuais no Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, 2002.
100 anos de Artes Plásticas no Instituto de Artes da UFRGS: três ensaios. Textos de Blanca Brites, Icleia Borsa Cattani, Maria
Amélia Bulhões, Paulo Gomes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012.
Figura 4 - FERNANDO CORONA (1895-1979). Projeto para a sede do Instituto de Belas Artes, década de 1940. Impressão
heliográfica, 32 x 45 cm. A primeira “Universidadade de Artes do Brasil”?
281
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No es facil: estudos comparados da história da arte entre Brasil e Cuba - Renato Palumbo Dória
No es facil: estudos comparados da história da arte entre Brasil e Cuba
Renato Palumbo Dória
Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Resumo: As histórias da arte latinoamericanas possuem múltiplas narrativas, sendo
relevantes os estudos comparados neste ámbito. Possuem particularmente a historia
da arte no Brasil e em Cuba muitos pontos de contato - desde a presença nelas da
cultura de matriz africana, passando pela implementação do ensino acadêmico das
Belas Artes nestes territórios e chegando-se, em ambos países, já no século XX, à
busca por uma arte supostamente nacional e autônoma. Diante da reaproximação
diplomática entre Cuba e os Estados Unidos ensaiada a partir de dezembro de 2014,
é estratégico que, apesar das dificuldades existentes, possamos aprofundar e ampliar,
a partir das atividades do CBHA, as relações de pesquisa com Cuba e toda a América
Latina.
Palavras-chave: Brasil; Cuba; História da Arte.
Resumen: Las historias del arte latinoamericanas poseen múltiples narrativas, siendo
relevantes los estudios comparativos en este ámbito. Tiene, particularmente, la
historia del arte en Brasil y en Cuba, muchos puntos de contacto - desde la presencia
de la cultura de matriz africana, pasando por la implementación de la enseñanza
académica de las Bellas Artes en estos territorios y llegando, en ambos países, ya en
el siglo XX, a la búsqueda por un arte supuestamente nacional y autónoma. Ante la
aproximación diplomática entre Cuba y Estados Unidos ensayada desde de diciembre
de 2014, es estratégico que, pese a las dificultades existentes, podamos profundizar y
ampliar, teniendo en cuenta las actividades del CBHA, las relaciones de investigación
con Cuba y con toda América Latina.
Palabras clave: Brasil; Cuba; Historia del Arte.
O pintor criollo José Nicolás de la Escalera (1734-1804) tem sido considerado
usualmente pela historiografía da arte cubana como seu primeiro artista propriamente
nacional, e autor da primeira representação artística de um homem negro no país, em fins
do século XVIII, em plena dominação colonial espanhola. Trata-se da pintura realizada para
a familia aristócrata de Casa Bayona, dedicada à igreja de Santa Maria del Rosário: um
tradicional povoado açucareiro, hoje situado nos subúrbios da cidade de Havana. Homem
283
negro sem nome, mas que figura como personagem essencial de um episódio narrado pela
tradição oral local, segundo a qual um dos escravos da familia Bayona, principal plantadora
de açucar da região, revela ao seu senhor enfermo, Don José de Bayone y Chacón “[...]las
virtudes curativas de los manantiales de su feudo, que en una serie de baños lo curaron
milagrosamente de sus dolencias”. Pintura que não é apenas o registro de um evento
específico e singular mas sim uma metáfora sobre a presença ativa dos saberes e poderes
da cultura de matriz africana no proceso civilizatório latinoamericano: saberes capazes de
curar ou de ao menos indicar as fontes da cura mesmo para seu senhor branco, à partir
da compreensão das forças naturais condensadas nas cachoeiras, ríos, praias, caminhos,
florestas e plantas específicas. A pintura de Escalera parece assim revelar, na Cuba de
fins do século XVIII, uma valorização da presença negra e dos saberes africanos por parte
dos colonizadores brancos. Ela traz também, contudo, como seu reverso, um profundo
medo dos senhores de escravos (e não apenas diante deste manejo de energias por eles
desconhecidas): medo sobretudo das rebeliões de escravos, cada vez mais frequentes à
partir do século XVIII. Medo que atravessaria os territórios escravistas latinoamericanos ao
longo do século XIX, e que chegaria ao ápice diante da revolução negra da colônia francesa
de Saint-Domingue, atual Haiti. A aproximação entre escravos e senhores ensaiada na
pintura de Escalera, portanto, talvez expresse menos um reconhecimento efetivo da
contribuição advinda da cultura africana do que um complexo sistema de subordinação,
num sintoma da busca de um novo arranjo social, capaz de garantir a manutenção do
sistema escravocrata sem ter que valer-se somente do uso da força física. Novo arranjo
social que se fazia sentir necessário para o sistema colonial hispanoamericano em fins do
século XVIII, sobretudo em Cuba, sendo a própria fundação da Vila de Santa Maria del
Rosário pensada já como estratégia de defesa das ricas fazendas e engenhos de açucar no
entorno de Havana diante da ameaça constante dos temíveis ‘levantamientos de esclavos’,
evitando-se que se repetissem ali os “actos de violencia ocurridos” em outras partes do
Caribe, além de visar também o crescimento da “población blanca del país” (ORAÁ: 2006,
p. 42). A pintura de Escalera, neste contexto específico - de medo dos senhores diante das
rebeliões de escravos - e em conjugação com o dispositivo religioso fornecido pela igreja
católica como discurso catalizador do sistema de dominação colonial, pode ser entendida
portanto como um eficaz aparato simbólico de domesticação cultural1 (Figura 1).
Outro exame útil parta se pensar estas questões, já em começos do século XIX, é a
atuação paralela, em Havana e no Rio de Janeiro, de dois pintores franceses emigrados,
fugidos da restauração monárquica de 1815 na França. Buscando nas Américas um novo
começo para sua carreira, em Cuba desembarcaria Jean Baptiste Vermay (1786-1833),
1
Domesticação cultural que também ocorreria no Brasil, podendo perguntarmo-nos em que medida mesmo durante os
modernismos do século XX, tanto no Brasil e em Cuba (com a incorporação mais incisiva da represantação visual do negro como
parte do discurso identitário nacionalista), e ainda hoje, em que medida esta incoporação da representação visual das populações
negras latinoamericanas não permanece, com raras exceções, operando dentro de uma lógica similar, de busca simultânea pela
dominação e pelo apaziguamento dos conflitos raciais.
284
No es facil: estudos comparados da história da arte entre Brasil e Cuba - Renato Palumbo Dória
Figura 1 - Gravura alemã de fins do século XVIII retratando a revolucão haitiana.
discípulo de Jaques-Louis David que se tornaria um dos fundadores e Diretor da primeira
academia de belas artes de Cuba, a Academia de San Alejandro, inaugurada em La Habana
em 1818. No Brasil por sua vez teríamos outro discípulo de David: Jean Baptiste Debret
(1768-1848), que junto à outros membros da chamada Missao Artística Francesa de 1816
funda a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, sendo o sistema académico
implementado nos dois países fundamental para o estabelecimento de uma estética
européia nos trópicos. Sistema que tinha na representação da figura humana uma de suas
disciplinas centrais, mas que não considerava qualquer tipo de corpo apto a ser utilizado
nestes estudos, devendo os modelos vivos acadêmicos serem preferencialmente brancos e
285
jovens, próximos do ideal clásico contido nas cópias em gêsso da estatuária greco-romana,
um dos seu mais importantes materiais de ensino. Os próprios artistas franceses fundadores
da academia brasilera, contudo, por vezes reconheciam, como registra uma ata acadêmica
de 1837, que mesmo entre os escravos haviam alguns “[…]individuos dotados de formas
artísticas” (DIAS: 2007, sn), sendo evidente que o que estaba em jogo era não só esta suposta
artisticidade dos corpos negros, mas também o reconhecimento destes para além de sua
corporalidade, como indivíduos portadores da mesma humanidade e direitos pertencentes
aos brancos. Neste sentido é significativo que Jean Baptiste Debret tenha sido um dos
mais profícuos produtores de imagens da escravidão e do cotidiano das populações negras
no Brasil das primeiras décadas do século XIX. Produção que se destinava obviamente a
entreter o público europeu, e não seus mecenas brasileiros, mais interesados que estavam
em se valer das artes visuais para projetar um ideal de civilidade que estavam longe de
possuir. É interesante observarmos por sua vez que embora Jean Baptiste Vermay não
tivesse produzido em Cuba nada de similar ao realizado por Debret no Brasil, quanto ao
registro do cotidiano da escravidão, o mesmo situará de modo extremamente significativo
alguns personagens negros naquela que é considera sua obra máxima: os painéis internos
para o monumento arquitetônico dedicado à fundação da cidade de La Habana, o Templete
erigido em 1928. Em seu painel central, concluido posteriormente à inauguração do
monumento, Vermay representa esta mesma cerimônia de inauguração, situando na tela
os mais importantes personagens da sociedade cubana de então. Em segundo plano, por
trás de uma cerca, amontoa-se o povo, podendo detectar-se entre eles alguns poucos
personagens negros. Em primeiro plano no entanto Vermay situa centralmente a imagen de
um oficial mulato, com seu garboso uniforme, e à esquerda, ao lado de sua esposa e de um
pequeno grupo de damas, a imagen de uma bela mulher negra: segundo alguns registros
a criada de sua própria esposa, que na cena olha não para a celebração em andamento
mas sim, pelo contrário, voltando sua cabeça em direção oposta, parece olhar diretamente
para sua acompanhante. Embora necessitemos aqui de mais documentação para melhor
determinarmos qual a posição de Vermay diante da escravidão, sabemos que ele estava
ligado em Havana à círculos intelectuais anti-monarquistas e independentistas, dentre
cujos membros haviam alguns claramente contrários à escravidão. É assim relevante que
Vermay situe em sua tela esta bela mulher negra que pode ser lida como alegoría da própria
negritude cubana: mesmo que em uma posição supostamente subordinada (assim como as
outras mulheres em cena, ainda que brancas), esta mulher negra pode ser lida porém como
uma das mais importantes personagens da pintura em questão, pois é justmente para ela
que sua esposa dirige seus olhos, sendo que para um pintor o jogo dos olhares nunca é
fortuito, mas sempre fundamental, não havendo nada mais importante do que o próprio
olhar do ser amado, guiando e dirigindo o desejo do artista (Figura 2).
É adentrando o século XX, contudo, com as vagas modernistas que se sucedem,
que se condensem tavez maiores possibilidades comparativas entre a história da arte
286
No es facil: estudos comparados da história da arte entre Brasil e Cuba - Renato Palumbo Dória
Figura 2 - Detalhe da pintura de Jean Baptiste Vermay para El GTemplete, Havana, c. 1928.
do Brasil e de Cuba, havendo certa equivalência entre a realização de Semana de Arte
Moderna de 1922, em São Paulo, e a realização em 1927, em Havana, da Expocición
de Arte Nuovo, que buscaba segundo seus articuladores, a [...]revisión de los valores
falsos y gastados; por el arte vernáculo y, en general, por el arte nuevo en sus diversas
287
manifestaciones”.2 Modernismos que enfrentavam impasses similares diante dos modelos
das vanguardas européias; atrativos mas alheios às realidades locais; tendo que inventar
soluções adequadas às demandas e realidades de suas culturas, sendo neste contexto
novamente a representação dos tipos negros um sintoma interesante do jogo de relações
sociais e políticas que então se expressava através da linguagem das artes visuais. As
modernidades estéticas em Cuba e no Brasil não foram portanto apenas a aplicação em
segunda mão de soluções e criações vindas de fora, ou meras reverberações periféricas
de procesos artísticos e culturais mais centrais, mas antes a descoberta e invenção de
posibilidades próprias e autônomas, construídas em torno de identidades precárias e
provisórias, de identidades em construção. Modernidades que sofreriam a ansiedade da
tensão entre a busca pela originalidade radical e, simultâneamente, do ajuste com um
suposta hora global, dando-se recorrentemente uma dependência do olhar estrangeiro para
a validação e reconhecimento da produção local - olhar validador europeu, branco, céntrico,
civilizado, canónico. Subordinação diante de um olhar supostamente internacional à qual
se contraporia o otimismo revolucionário do pintor cubano Eduardo Abela (1891-1965),
que em 1928 declarava na Revista de Avance (a principal publicação da intelectualidade
modernista cubana da década de 20) acreditar, “[...]que en la América está el caudal que
ha de fertilizar el arte del siglo XX” (ABELA: 1928, p. 361).
As histórias da arte praticadas na América Latina são portanto heterogêneas e
fragmentários, tal como o monumento erigido em homenagem ao líder estudantil cubano
Julio Antonio Mella (1903-1929), assassinado em 1929 em seu exílio no México: situado
próximo à Universidad de La Habana, ele integra formalmente restos de outros monumentos
e edificações destruídas ou inacabadas. Volumes residuais que, apesar de suas
idiossincarsias, apoiam-se formando uma massa coesa e vertical, em um constructo feito
de materiais inacabados e ajustes entre partes inconciliáveis. Também parciais, múltiplas e
divergentes, as narrativas das histórias da arte na América Latina frequentemente adotam
um viés estritamente nacional, capaz de aprofundar questãos relevantes mas não de
formar uma visão integradora, sob um viés mais amplo e propriamente latinoamericano.
Propomos assim esboçar aqui um paralelo multifacetado dos problemas das artes visuais
no Brasil e em Cuba, culturas que apesar da distância geográfica possuem múltiplos
pontos de convergência, salientando dentre estes a presença da cultura de matriz africana
em ambos países - com a consequente tópica das representacões visuais que tomam os
afrodescendentes como tema, e dos usos sociais que se fazem destas representações
- além dos problemas em torno do reconhecimento e visibilidade das artes visuais
propriamente afrocubanas e afrobrasileiras. Trata-se assim de, superando narrativas
2
O chamado Grupo Minorista (que apesar do nome se entendia como voz de camadas mais amplas da sociedade cubana da época),
articulador intelectual do modernismo artístico em Cuba, e da Exposición de Arte Nuovo, pretendia, segundo seus manifestos (...)
la introducción y vulgarización en Cuba de las últimas doctrinas teóricas y prácticas, artìsticas y cientìficas (defendendo ainda) (...)
el autonomia universitaria". Rúben Martinez Villena. "Declaración del Grupo Minorista". Carteles, vol. X, no.2, la Habana, 22 de
mayo de 1927.
288
No es facil: estudos comparados da história da arte entre Brasil e Cuba - Renato Palumbo Dória
parciais, recompormos rotas perdidas, recosturando o tecido esgarçado do mapa que
nos une, sendo um importante ponto de partida “[...] la presencia de la cultura africana,
insoslayable en el fenômeno del sincretismo peculiar del Brasil y Las Antillas” (ORAÁ: 2006,
p.54).3 Esboçamos assim a necessidade de uma analise relacional, que possa contribuir
na construção de uma história da arte efetivamente latinoamericana, calcada não apenas
em obras singulares e projetos artísticos individuais, mas também em questões comuns à
diferentes países do continente, como os conflitos em torno das construções identitárias,
as dicotomias entre os conservadorismos e as rupturas estéticas (sendo nem sempre fácil
definir cada um destes pólos); o lugar das manifestações artísticas tidas com anacrônicas
e os variados processos de apagamento e ocultação da diferença; a coexistência de
diversas temporalidades culturais em um mesmo território e outros problemas a serem
ainda percebidos e nomeados, criando e compartilhando práticas historiográficas e
narrativas que se abram para diferentes lugares, trânsitos e sujeitos, em processos que
se contraponham aos mecanismos de legitimação já estabelecidos, experimentando a
descentralização e a desincronía como valores positivos e poéticos, capazes de ampliar
não somente nossa compreensão do que seja a arte na América latina mas, também, de
ampliar o campo da própria produção e circulação da arte no território latinoamericano, e
mesmo redimensionando a concepção do artístico. Sendo 2014 um ano já histórico pelo
ensaio da reaproximação diplomática entre Cuba e Estados Unidos, e ressurgindo por
sua vez no Brasil, nas manifestações de março de 2015, a utilização negativa do modelo
revolucionário cubano como espantalho a ser combatido pelo imaginário conservador;
com sua concepção dicotômica e imóvel da história (retomando slogans anti-comunistas
de 1964), parece-nos estratégico caminharmos em direção diametralmente opostaa, não
apenas superando os estereótipos ainda em voga do que seja a arte e a cultura em Cuba
(e mesmo no Brasil), mas também ampliando e aprofundando as relações de pesquisa com
todos os países da América Latina.
Estebelecendo outras interelações que possibilitem revermos as práticas da
historiografia contemporânea, situando novamente os lugares de onde se vê e se escreve
a história da arte, e o trânsito entre estes lugares, podemos transformar os mecanismos
de legitimação da arte e de sua história, reconhecendo para tal a coexistência positiva de
múltiplas temporalidades culturais em um mesmo espaço geográfico (temporalidades não
necessariamente hierarquizáveis entre si), e incorporando a experiência do distanciamento
e do descentramento como prática e atitude, não se tratando aqui de parodiar Eduardo
Abela e afirmar que nas Américas está ‘lo caudal que ha de fertilizar el historia del arte
del siglo XXI’, ou de insistir nas utopias anacrónicas de uma modernidade exausta, mas
antes de abrir as fronteiras da história da arte e os contornos do artístico, promovendo
inclusões pelo reconhecimento das alteridades e diferenças, e entendendo nossos objetos
3
Percepção do crítico e curador cubano Pedro de Oraá exposta no texto "Entrada a la Pintura Cubana", de 1972, ao situar na
genêse da liberação alcançada pela linguagem da pintura em Cuba durante o século XX esta presença africana.
289
de interesse não como textos fixos e imutáveis, mas sim como manchas e desenhos
fantasmáticos, como as das fachadas desgastadas dos casarões de Havana: potentes
palimpsestos que são, guardando e revelando múltiplas camadas de memória (Figura 3).
Figura 3 - Detalhe do monumento à Júlio Antonio Mella, Havana.
290
No es facil: estudos comparados da história da arte entre Brasil e Cuba - Renato Palumbo Dória
Referências Bibliográficas:
ABELA, Eduardo. “Respuesta a Indagación “¿Qué debe ser el arte americano?””. Revista de Avance, año II, tomo III,
no. 29, La Habana, 15 de deciembre de 1928, p.361.
D`ARCIER, Sabine Faivre. Vermay: Mensajero de las Luces. La Habana: Imagem Contemporânea, 2004.
DIAS, Elaine. “Um breve percurso pela história do Modelo Vivi no Século XIX - Princípios do método, a importância
de Viollet Le Cuc e o uso da fotografia”, in 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n.4, out 2007.
Disponível em <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ed_mv.htm>
JAMES, C.L.R. Los Jacobinos Negros: Toussaint L`Ouverture y la revolución de Saint-Domingue.
MARTÍ, José. “Nuestra America”, in Ni “siervos futuros” ni “aldeanos deslumbrados”: Documentos. La Habana: Casa
Editorial Abril / Panamá: Ruth Casa Editorial, 2010, p.212.
ORAÁ, Pedro de. “Entrada a la Pintura Cubana”, in Visible e Invisible. Bogotá: Editorial Letras Cubanas, 2006, pp.
09-57.
VILENA, Rúben Martinez. “Declaración del Grupo Minorista”, in Carteles, vol. X, no.2, La Habana, 22 de mayo de
1927.
291
292
Apresentação de Pôsteres
Arte e Zoologia: Representações do tatu e a construção do Novo Mundo na primeira época moderna - Maria Berbara
Arte e Zoologia: Representações do tatu e a construção do Novo Mundo na
primeira época moderna
Maria Berbara
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Resumo: O tatu foi, talvez, o único animal americano a ser sistematicamente
incorporado à iconografia europeia dos séculos XVI e XVII. Ele aparece, sobretudo,
em representações dos gabinetes de curiosidades - como, por exemplo, no frontispício
do Museum Wormianum - e em emblemas das Américas, nos quais é frequentemente
figurado, em tamanho maior que o natural, sendo montado por uma personificação das
Américas usando trajes e atributos indígenas.
O que o tatu deveria evocar, nessas imagens? A quais outros animais conhecidos ele
pode ter sido associado? Como se conectava à iconografia anterior? Esta apresentação
procurará iluminar algumas dessas questões através da análise comparativa de
representações do tatu durante os séculos XVI e XVII.
Palavras-chave: Renascimento global; zoologia; tatu; alteridade.
Abstract: The armadillo was, perhaps, the only American animal to be systematically
incorporated into European iconography in the 16th and 17th centuries. It appeared, mainly,
in representations of cabinets of curiosities - such as, for instance, the frontispiece from the
Museum Wormianum - and emblems of the Americas, where it was often represented as
a larger than life animal being mounted by a personification of the Americas in indigenous
guise.
What was the armadillo meant to evoke in these images? To what other known animals
could it have been associated? How was it connected to previous iconography? This
paper will seek to shed light upon these questions through a comparative analysis of
some representations of the armadillo during the 16th and 17th centuries.
Keywords: Global Renaissance; zoology; armadillo; alterity.
A primeira descrição literária conhecida do tatu aparece na Suma de Geografía de Martin
Fernandez de Enciso, publicada na Espanha em 1519. Enciso descreve uma estranha criatura
que, de acordo com ele, é pequena como um leitão, tem patas e cabeça como as de um cavalo,
e é totalmente coberta por uma carapaça. Parece um cavalo armado, diz ele. Esta observação
haveria de originar o nome “armadillo”, empregado contemporaneamente em diversas línguas
295
para designar o tatu.1 Termos muito parecidos seriam utilizados por Gonzalo Fernández
de Oviedo em sua Natural História de las Indias, na qual se enfatiza a semelhança entre a
carapaça do tatu e a armadura envergada pelos cavalos espanhóis. Outras analogias tornaramse também frequentes nos séculos XVI e XVII: tatus foram comparados a rinocerontes, répteis
e tartarugas, entre outros animais (Figura 1). De acordo com Athanasius Kircher, por exemplo,
o animal era o produto do cruzamento entre ouriços e tartarugas; em muitos outros livros de
história natural, ele aparece assimilado, ainda, a coelhos.2
Era relativamente fácil preservar o corpo de tatus, e, provavelmente também por essa
razão, em meados do século XVI mercados e coleções em toda a Europa estavam repletos
deles; não é impossível, ainda, que alguns tatus tenham chegado vivos ao continente. De
acordo com um levantamento realizado dos anos 1980, a carapaça do tatu era o item mais
comum em coleções zoológicas europeias no século XVII.3 Apesar disso, representações do
tatu realizadas na Europa durante a primeira época moderna frequentemente fundiam-no com
outros - às vezes fantásticos - animais. No amplamente divulgado livro de Hans Staden sobre
suas aventuras entre os tupinambás, por exemplo, o tatu aparece como uma espécie de raposa
armada, enquanto em uma cerâmica inglesa do século XVI ele enverga a carapaça de uma
tartaruga.
A mais célebre construção do tatu, nesse período, é, talvez, aquela realizada por Bernini
na Fontana dei Quattro Fiumi na praça navona, em Roma. Como é bem sabido, o projeto
berniniano, profundamente vinculado a Athanasius Kircher,4 pretendia figurar uma alegoria dos
quarto continentes emparelhando rios a animais e plantas: a Ásia, assim, era representada
pelo Ganges e pelo que parece ser um estranho crocodilo; a Europa pelo Danúbio e um cavalo;
a África pelo Nilo, uma palmeira e um leão, e a América pelo Rio de la Plata e um tatu (Figura
2). Apesar de que Bernini tenha usado por modelo o tatu empalhado que fazia parte da coleção
do padre Kircher - e que, por sinal, ainda existe na faculdade de biologia da Universidade de
Roma - o resultado é um animal fantástico que muito dista do seu modelo. Não apenas do
fato de ter sido esculpido em tamanho muito maior do que o natural - um feito que poderia ser
atribuído ao desejo de Bernini de igualar as dimensões de todos os animais que compõem a
fonte - mas seus lábios encurvados, suas ferozes garras, as grossas lâminas que cobrem seu
corpo, aproximam o tatu berniniano mais do que contemporaneamente poderia ser entendido
como imaginação mitológica do que observação científica.
Mas Bernini não é, em absoluto, o primeiro artista a relacionar o tatu às Américas; em
meados do século XVII, de fato, essa associação já havia assumido o status de um topos. Nos
1
A palavra portuguesa “tatu”, por sua vez, é de origem tupi.
Para essas e outras referências cfr. TEIXEIRA, Dante Martins, “A curiosa história dos tatus: um improvável símbolo renascentista
do Novo Mundo.” In: THOMAS, Werner et al. (orgs.), Um mundo sobre papel: livros, gravuras e impressos flamengos nos impérios
português e espanhol (séculos XVI-XVII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014, pp. 447-473.
2
GEORGE, Wilma, “Alive or Dead: Zoological Collections in the 17th century”. In IMPEY, Oliver, e MACGREGOR, Arthur (orgs.), The
origins of museums: the Cabinet of Curiosities in 16th and 17th century Europe. Oxford: Oxford University Press, 1985, pp. 179-187.
3
4
Cfr. LO SARDO, Eugenio, “Kircher’s Rome. A Way to Understand the Celeberrimus Museum.” In FINDLEN, Paula (org.),
Athanasius Kircher. The Last Man who knew Everything. Nova York: Routledge, 2004, pp. 51-62.
296
Arte e Zoologia: Representações do tatu e a construção do Novo Mundo na primeira época moderna - Maria Berbara
Figura 1 - Ilustração do Naturalien-Buch de Jacob Wilhelm Griebe (1680-1708).
Figura 2 - Gianlorenzo Bernini, tatu da Fonte dos Quatro Rios. Roma, Praça Navona, 1648-1651
Países Baixos, um particular interesse pelo tatu torna-se muito forte desde, ao menos, os anos
1570. Adriaen Coenen incluiu o que ele descreve como um animal estranho e híbrido em seu
Visboek, escrito e ilustrado ao longo dos anos 1577-79, e Maarten de Vos criou, em ca. 1589,
a imagem alegórica da América como uma mulher semi-nua usando uma espécie de cocar e
297
segurando um arco e um machado (Figura 3). A personificação da América como uma guerreira
havia aparecido antes, mas de Vos é o primeiro, acreditamos, a representá-la montando um
enorme tatu cuja ferocidade é acentuada por um par de chifres. Em segundo plano vê-se, à
direita, uma batalha entre europeus e ameríndios, e, à esquerda, uma cena de canibalismo ato que apareceria quase invariavelmente em representações da América nesse período. O
continente, portanto, vincular-se-ia visual e conceitualmente à violência, e o tatu - na realidade,
um animal pequeno e pacífico - haveria de assumir um importante papel nesta construção.
Figura 3 - Alegoria da América. Adrian Collaert a partir de Maarten de Vos (1589-91 ca.)
Nas décadas seguintes surgiriam muitas outras imagens representando América
montando um tatu; em 1617, por exemplo, a alegoria é figurada no diário de Hendrick Ottsen
(Figura. 4);5 em 1630, das Descrições das Índias Ocidentais de Joannes de Laet.6 Em outras
representações, ainda, o tatu não aparece sendo montado por América, mas sim como seu
atributo, de modo a torná-la imediatamente identificável ao observador. Em outra composição
originalmente desenhada por Maarten de Vos e provavelmente executada por Gregorius
Fentzel, por exemplo, América está sentada em uma carruagem puxada por unicórnios, mas o
tatu surge no primeiro plano da composição (Figura 5); outra gravura, neste caso do gravador
5
Iournal oft daghelijk-register van de voyagie na Rio de Plata (Amsterdã, 1617).
6
Niewe Wereld ofte Beschrijvinghe van West-Indien (Leiden, 1630).
298
Arte e Zoologia: Representações do tatu e a construção do Novo Mundo na primeira época moderna - Maria Berbara
Figura 4 - Detalhe da primeira página do Iournal oft daghelijk-register van de voyagie na Rio de Plata (Amsterdã, 1617).
Figura 5 - Gravura realizada a partir de um desenho de Maarten de Vos (provavelmente executada por Gregorius Fenzel), 1650 ca.
londrino John Stafford, representa América, tipicamente, associada ao canibalismo,7 sendo o
tatu introduzido em segundo plano, uma vez mais, como um sinal de distinção e reconhecimento.
Assim como o canibalismo, o tatu participa de uma visão estereotipada da América.
7
A alegoria, atualmente conservada no British Museum, foi produzida em 1634 e pode ser vista no link https://commons.
wikimedia.org/wiki/File:John_Stafford_America.jpg (acessado em outubro de 2015).
299
Um exemplo significativo, neste sentido, é a conhecida tela de Albert Eckhout
representando uma dança “tapuia” (Figura 6). Oito guerreiros são figurados batendo os pés
no chão e segurando tacapes e lanças. Muito se escreveu acerca da estratégia colonialista
de demonizar os “tapuias” e, mesmo, sobre o fato de jamais ter existido, verdadeiramente,
uma “nação tapuia”, tendo esta sido uma construção cujo objetivo era designar ameríndios
totalmente “incivilizáveis”.8 Não surpreende que, no canto inferior direito, seja representado um
tatu.
Figura 6 - Albert Eckhout , Dança “tapuia” (tarairiu). Museu Nacional de Copenhagem, 1640-50 ca.
Um aspecto interessante da representação do tatu - que foge um pouco do escopo deste
trabalho e que, por isso mesmo, será mencionado apenas de modo breve, é o fato de que
o animal tenha se relacionado tanto à América como, mais especificamente, ao Brasil. Ele
assim aparece, por exemplo, em um arco erguido em Antuérpia para comemorar as conquistas
portuguesas.9 O fato de o tatu ter sido utilizado de modo intercambiável como atributo ora
da América, ora do Brasil, pode ser relacionado à tendência geral de construir a iconografia
americana tendo por base precedentes brasileiros - ou, para maior precisão, tupinambás. Esse
processo foi chamado “tupinambação” por alguns estudiosos.10
Jesuítas portugueses e espanhóis que viajaram para o atual Brasil no século XVI como José de Anchieta e Fernão Cardim - descreveram o tatu como um animal pacífico que
os indígenas poderiam ou comer - eles contam, de fato, que era muito saboroso - ou tratar
Peter Mason, em Infelicities: Representations of the Exotic (Baltimore/Londres: Johns Hopkins University Press, 1998), p. 52,
sugere que o termo “tapuia” seja sempre utilizado entre aspas e apenas como referência historiográfica. A palavra “tapuia” é, ela
própria, de origem tupi, e supostamente significa “ocidentais” ou “inimigos”. Não se trata, portanto, de uma auto-descrição, mas de
uma etiqueta cunhada pelos tupis para referir-se aos “não-tupis” - etiqueta esta haveria de ser apropriada pelo discurso colonialista.
8
9
Trata-se do arco dos lusitanos, gravado por Van der Borcht a partir de Johannes Bochius, Descriptio publicae gratulationis…in
adventu…Ernestis Arhiducis Austriae (Antuérpia, 1595).
LESTRINGANT, Frank, Le Huguenot et le sauvage. L'Amerique et la controverse coloniale en France au temps des guerres de
religion (1555-1589). Paris: Diffusion Klincksieck, 1990, p. 251.
10
300
Arte e Zoologia: Representações do tatu e a construção do Novo Mundo na primeira época moderna - Maria Berbara
como animais de estimação. Algumas das imagens analisadas aqui, porém, representamno como um animal feroz, enorme, às vezes híbrido ou monstruoso. Filippo Baldinucci, por
exemplo, refere-se ao tatu de Bernini como “uno spantevole mostro”, um monstro espantoso.11
Nos séculos XVI e XVII representações imaginativas de monstros podiam mesclar-se às de
animais reais. Mesmo tão tardiamente como em meados do século XVII monstros podiam ser
entendidos simultaneamente como portentos políticos ou religiosos e espécies cientificamente
classificadas. É dessa forma que aparecem, por exemplo, em Des monstres et prodigies de
Ambroise Parè, livro publicado pela primeira vez em 1573. O tatu é um excelente exemplo de
como descrições de animais reais às vezes mesclavam-se à imaginação de modo a produzir o
que, em alguns casos, poderia ser entendido como um monstro.
Nesse período, por outro lado, os conceitos de monstruosidade e hibridismo estavam
profundamente conectados; basta recordar os monstruosos híbridos de Ulisse Aldrovandi em
seu Monstrorum Historia (1642-58), por exemplo, ou o supracitado Ambroise Parè.12 O fato de
que tanto na literatura quanto em imagens o tatu tenha frequentemente aparecido como um
híbrido poderia, por um lado, responder a um dos mais importantes grupos de problemas que
a existência de animais do novo mundo colocava: como eles haviam chegado às Américas,
depois do Dilúvio Universal? Porque eles são tão diferentes dos animais até então conhecidos?
Por outro lado, associá-lo a híbridos permitia transformá-lo - assim como a outros animais
Americanos - em uma espécie inferior: sobretudo na Arca de Noé do Padre Kircher (1675),
mas, também, em outros textos, híbridos são considerados imperfeitos e impuros, uma vez que
teriam sido criados per coitum e não, como os outros animais, no gênesis.13
Mas por que se fez necessário associar a América ao hibridismo - com todas as suas
conotações negativas - e à monstruosidade? A resposta a essa pergunta, naturalmente,
supera amplamente o escopo deste texto e exige uma pesquisa que reúna estudos de campos
acadêmicos diversos - da tradição clássica ao pós-colonialismo. Aqui cabe enfatizar, apenas,
que o caso do tatu indica muito bem de que maneira o que contemporaneamente se entende
como os domínios da arte e da ciência intersectaram para construir uma categoria não zoológica,
mas ideológica. De particular importância, nesse processo, é como um pequeno e inofensivo
animal pôde ser visualmente traduzido como uma fera robusta o bastante para carregar uma
mulher ou puxar uma carruagem. Porque o tatu foi escolhido para representar a América?
Ao longo dos séculos XVI e XVII, animais, com frequência, podiam oferecer um sistema de
convenções válido para a descrição de qualidades ou defeitos humanos. No caso da América,
houve uma marcada preferência pela sua associação a animais estranhos e pouco familiares.
Cfr. MORGAN, Luke, The Monster in the Garden: The Grotesque and the Gigantic in Renaissance. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 2015, p. 69.
11
Paré, entretanto, interpretou os monstros como sinais de uma desgraça iminente, enquanto Aldrovandi procurou classificá-los
cientificamente. Como vêm demonstrando pesquisas recentes, até fins do século XVIII a cosmovisão mágica convivia com a
concepção de um mundo ordenado no qual mesmo os monstros podiam ser classificados. A esse respeito cfr. a introdução do livro
de STOLS, Eddy, THOMAS, Werner, e VERBERCKMOES, Johan, Naturalia, Mirabilia & Monstrosa en los impérios Ibéricos (siglos
XV-XIX). Louvain: Louvain University Press, 2006, especialmente pp. VII-VIII.
12
Cfr. ENENKEL, Karl, “The Species and Beyond: Classification and the Place of Hybrids in Early Modern Zoology”, in: ENENKEL,
Karl e SMITH, Paul (orgs.), Early Modern Zoology. Intersections of Science, Theology, Philology and Religious Education. Brill:
Leiden-Boston, 2014, pp. 57-148.
13
301
O tatu, neste sentido, podia personificar a intrespassável alteridade do mundo natural alémmar. Era estranho; era pouco familiar, e, adicionalmente, podia ser associado, por analogia, a
diversos outros animais. Sua carapaça permitia que a ele fosse conectado o adjetivo “armado”,
vinculando-o, portanto, à guerra e à violência. O fato de que, na verdade, se trate de um
pequeno animal que come apenas plantas e insetos, é algo que, absolutamente, não vinha ao
caso. Através de imagens e descrições literárias, o tatu transforma-se no feroz atributo de uma
ainda mais feroz América.
302
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de ideias - Mirian N. Seraphim
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de
ideias
Mirian N. Seraphim
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato Grosso
Resumo: Sob o impacto causado pela retrospectiva histórica de Eliseu Visconti, realizada
no Rio de Janeiro, em 1949, a crítica de arte redesenhou a imagem do pintor, reafirmando
sua excelência e definindo novos pontos de vista a partir da confrontação com a
modernidade. Em seguida, pequenas mostras solidificaram essas ideias, tanto no eixo
cultural Rio-São Paulo, como fora dele, através de uma itinerante ocorrida na década de
1970. Mais tarde, foram montadas algumas exposições que abordaram especificamente
sua produção menos conhecida até então - a de arte decorativa. Somente em 2011 foi
organizada outra grande retrospectiva, abordando tanto a obra de pintura a óleo, quanto
desenho, aquarela, design e objetos pessoais, com o propósito de repensar o lugar de
Visconti na história artística brasileira, em toda a complexidade e riqueza de seu fazer
artístico.
Palavras-chave: Eliseu Visconti; Exposição retrospectiva; Crítica de arte.
Abstract: Under the impact of the historical retrospective of Eliseu Visconti, organized
in Rio de Janeiro, in 1949, the art criticism redesigned the Painter image, reaffirming
its excellence and defining new points of view from the confrontation with modernity.
Following, small shows solidified these ideas, both on the cultural axis Rio-São Paulo,
and out of it, through an itinerant exhibition that took place in the 1970s. Later, some
exhibitions were organized specifically addressing little known production until then - the
decorative art. Only in 2011 another major retrospective was organized, addressing both
the work of oil painting, and drawing, watercolor, design and personal items, purposing to
rethink the place of Visconti in Brazilian art history, in all the complexity and richness of
his art making.
Keywords: Eliseu Visconti; Retrospective exhibition; Art criticism.
Sediada no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), cinco anos após a morte do mestre,
a exposição retrospectiva histórica de Eliseu Visconti (1866-1944) foi organizada num esforço
ousado do grupo de técnicos da instituição, auxiliado pela família Visconti, em poucos meses,
sem tempo para a pesquisa necessária e sem patrocínio. Ainda assim, reuniu 285 obras, na
303
sua ampla maioria pinturas a óleo, mas também aquarelas, desenhos, projetos e peças de
arte decorativa. Apesar de aberta apenas durante um mês, entre novembro e dezembro de
1949, sua repercussão foi enorme e marcada pela grande surpresa que o efeito de conjunto
proporcionou, como se constata pela imprensa da época. Antonio Bento, logo no início da sua
resenha, pondera: “Visconti não fez exposições individuais nos últimos anos de vida, de modo
que as gerações novas conheciam apenas fragmentaria e superficialmente a sua obra”. Mais
adiante, ele relata sua experiência como espectador daquela grande mostra:
Diante de várias dessas telas, o observador põe de parte o tema e só vê o problema plástico, o jôgo delicado
das tonalidades, a solução cromática, a procura de luminosidade. E verifica que está diante de “pintura pura”,
no sentido em que a concebem os modernos [...].1
Franklin de Oliveira sintetiza suas sensações já no primeiro parágrafo da sua crítica, que
é de pura poesia:
A Exposição Retrospectiva de Eliseu Visconti é um ato de justiça. Num país que vota frenético desamor às
coisas e aos homens de espírito, Eliseu Visconti cometeu a heróica imprudência de viver tôda sua vida em
estado de dedicação à pintura: viveu, respirou, sonhou, sentiu, amou, meditou e sofreu a pintura.2
Flávio de Aquino, outro que logo se manifestou sobre a mostra, compartilha da mesma
ideia que seus colegas:
Visconti é um dos raros artistas do passado que resiste à crítica moderna pela sua aspiração de encarar a arte
como uma forma de expressão superior dos sentidos, dos poucos cujos imperativos do “mettier” não constituem
uma prisão, mas decorrem, tão só, de uma necessidade de expressão mais pronta e mais direta da imaginação
criadora.3
Os autores que puderam apreciar esta exposição são aqueles que chegam mais
próximos de uma compreensão ampla da produção de Visconti, muitas vezes mal interpretada
pelos que não tiveram o mesmo privilégio. Várias resenhas desta retrospectiva exaltaram
nele o precursor do modernismo, o colorista, o representante legítimo do impressionismo, o
pesquisador infatigável. Garcia Junior, porém, não evidenciou essas mesmas características,
mas sim, o envolvimento afetivo que Visconti tinha com todos os seus temas, com todos os
seus assuntos:
Só uma grande estima, dir-se-á, tem fôrças para explicar detalhes de introspecção que a alma de mestre
Visconti, adivinhava naqueles que êle prendia ao seu coração, [...]. São retratos que falam, porque Visconti os
fazia falar, definia-lhes o caráter, imprimia-lhes alegria ou a tristeza, severidade ou bonhomia! Daí porque os
seus retratos mostram o que são, revelam-se [...].4
1
Antonio Bento. A Retrospectiva de Visconti. Diário Carioca (As Artes). Rio de Janeiro, 20 nov. 1949, p. 6.
2
Franklin de Oliveira. O silencioso e belo Eliseu Visconti. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 10 dez. 1949, p. 26 e 28.
3
Flávio de Aquino. Eliseu Visconti. Diario de Noticias. Rio de Janeiro, 27 nov. 1949, 4ª seção, p. 3.
4
Garcia Júnior. A exposição retrospectiva do mestre Visconti. Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, 27 nov. 1949, p. 11.
304
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de ideias - Mirian N. Seraphim
Além dos vários críticos que comentaram a exposição, Mário Pedrosa escreveu, a partir
do seu impacto, o texto mais completo e denso sobre Visconti, que foi publicado somente após
o encerramento da retrospectiva, no alvorecer do ano seguinte. Ao contrário de Garcia Júnior
que ressaltou o retratista, Pedrosa manifestou sua preferência pelas paisagens, comentando
várias delas e chegando a declarar: “O impressionismo é a revelação de sua verdadeira
personalidade”.5 Nos parágrafos finais, Pedrosa dedicou-se a demonstrar que Visconti era um
belo exemplo a ser seguido (Figura 1):
Foi pena que o movimento moderno brasileiro, no seu início, não tivesse tido contacto com Visconti. Os seus
precursores teriam tido muito o que aprender com o velho artista, mais experimentado, senhor da técnica da
luz, aprendida diretamente na escola do neo-impressionismo.6
Figura 1 - Eliseu d’Angelo VISCONTI (1866-1944): Leitura à beira do rio, c.1915. Óleo sobre tela, 65 x 81 cm. Coleção particular.
Foto: Paulo Kuckzynski.
Depois desta grande retrospectiva, somente pequenas mostras de Visconti haviam sido
montadas. A primeira delas teve uma importância particular por ser uma Sala Especial da 2ª
Bienal de São Paulo, aberta no Parque Ibirapuera, de dezembro de 1953 a fevereiro do ano
Mário Pedrosa. Visconti diante das modernas gerações. Correio da Manhã (Suplemento de Literatura e Artes). Rio de Janeiro,
1º jan. 1950, p. 6.
5
6
Idem, p. 10.
305
seguinte, apresentando 37 obras - um pastel e o restante, pinturas a óleo - na sua ampla
maioria de coleções particulares. Muito antes de aberta a 2ª Bienal, tão logo a ideia da Sala
Especial foi lançada, Valter Zanini escreveu um artigo parabenizando a iniciativa, e comentando
a estranheza de alguns:
Não importa, entretanto a surpresa dos mal informados. Importa que a idéia é certa e feliz a opção, pela
oportunidade de encaixar num certame de arte viva, a obra de um artista que não foi um expectador indiferente
às transformações radicais que sofreu a pintura no momento histórico que viveu. [...] Estudante na Europa,
teve a visão suficientemente limpa e aguda para não deixar passar despercebida a espicaçante revolução
impressionista, o que equivale dizer que pressentiu o começo de uma era nova, cujo processo ainda hoje está
em ebulição.7
José Simeão Leal foi quem sugeriu o nome de Visconti para uma das salas especiais,
numa reunião da Comissão Organizadora da 2ª Bienal. Ele considerava Visconti não apenas
um precursor do modernismo brasileiro, mas seu iniciador. Numa entrevista ao Correio da
Manhã, quando presidia a equipe que selecionou as obras para a Sala Especial, ele declarou:
As coisas serão postas no seu devido lugar, como se costuma dizer... Sem menosprezar o trabalho de
excepcional importância realizado por Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Di Cavalcanti e outros,
pioneiros do nosso modernismo no Brasil, é preciso apontar, entretanto, o verdadeiro marco do movimento, que
é, sem dúvida, Visconti, com o impressionismo de grande parte da sua obra.8
Num catálogo publicado à parte, exclusivamente para a Sala Visconti, além do artigo do
organizador, foram editados textos de diversos críticos, escritos inicialmente por ocasião da
grande retrospectiva no MNBA. Todos os trechos selecionados têm, em comum, argumentos
que demonstram a modernidade do pintor (Figura 2).
Porém, nem todos os críticos, àquel a altura, viam a atuação de Visconti com o mesmo
entusiasmo. O Estado de S. Paulo publicou várias reproduções de pinturas expostas na Sala
Especial Visconti, acompanhadas de um texto anônimo que reafirmava as vigentes concepções
sobre o modernismo brasileiro, que a 2ª Bienal, ao contrário, procurava revisar. O autor reforçava
a ideia de uma passagem abrupta do academismo ao modernismo revolucionário, e colocava
Visconti quase como uma tentativa acanhada de preencher o vazio entre os dois movimentos,
aceitável apenas pelas condições precárias do meio artístico brasileiro, embora julgasse Anita
Malfatti a verdadeira merecedora de tal honraria.9
A retrospectiva que comemorou o centenário de nascimento do pintor, e esteve aberta
durante todo o mês de agosto de 1967, ficou muito aquém da mostra realizada anteriormente
no mesmo local - o MNBA, tanto em quantidade de obras expostas, quanto em relação à sua
recepção. Inspirou a metade dos textos críticos produzidos em 1949, alguns poucos anúncios
e a total indiferença por certos jornais cariocas. No catálogo publicado para esta mostra, a
conservadora do museu apresenta o recorte curatorial: a paisagem e o retrato de família. “Nêles,
7
Valter Zanini. Retrospectiva de Eliseu Visconti. O Tempo. São Paulo, 6 mar. 1953.
8
Organizada a “Sala Visconti” da II Bienal. Correio da Manhã (Artes Plásticas), 6 nov. 1953, p. 9.
9
A II Bienal de São Paulo: A Exposição Retrospectiva de Eliseu Visconti. O Estado de S. Paulo, 31 jan. 1954, p. 84.
306
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de ideias - Mirian N. Seraphim
Figura 2 - Eliseu d’Angelo VISCONTI (1866-1944): O colar, 1922. Óleo sobre tela, 51 x 38 cm. Fortaleza, coleção particular. Foto:
Falcão Jr.
307
Visconti deixa ver a sua técnica acurada e segura, sua excepcional sensibilidade colorística,
um conhecimento exato e ao mesmo tempo liberto no traçar a composição”.10 (Figura 3)
O catálogo lista 44 pinturas a óleo, três aquarelas e dois desenhos, e sua organização
evidencia o grau de improvisação que deve ter presidido a mostra, realizada, de fato, um ano
após o centenário da morte de Visconti que ela comemorava. As obras no catálogo estão
listadas por coleções, sendo que mais de três quartos delas pertencia à família Visconti, e
outras seis obras, a três dos quatro autores de textos críticos do catálogo: Mário Barata, José
Paulo M. da Fonseca, Clarival do Prado Valladares e José Roberto Teixeira Leite. Apesar da
singeleza da mostra, publicaram resenhas sob seu impacto: Hugo Auler, no jornal Correio
Braziliense - um longo texto dividido em duas edições - e Carlos Cavalcanti, na revista O
Cruzeiro. Acompanhando as reproduções em cores de nove das pinturas expostas, Cavalcanti
afirma:
Agora, vendo a retrospectiva parcial que o mesmo museu organizou para homenagear-lhe o centenário de
nascimento, a gente enraíza a certeza de que morrera aos setenta e oito anos como um rapaz e de que fôra
realmente o nosso primeiro moderno. [...] Pois veja o leitor que a modernidade de Visconti está também nessa
versatilidade, tão característica do pintor contemporâneo. Ainda ontem morria de amores pela linha na sua
paixão botticelliana. Agora, embriagado de luz, está destruindo a linha.11
Outra importante retrospectiva de Eliseu Visconti, embora coletiva, foi aquela organizada
pelo Museu Lasar Segall que durou também um mês, de setembro a outubro de 1974. Era
a primeira do “Ciclo de Exposições da Pintura Brasileira Contemporânea” que o museu
organizava, com obras de coleções particulares e públicas da cidade de São Paulo. O título
da exposição - Os Precursores - colocava em destaque a designação já corrente, outorgada a
Visconti.
Seu catálogo conta com um único texto crítico, assinado por Pietro M. Bardi, e com sucintas
biografias dos três pintores participantes: além de Visconti, Artur Timotheo da Costa e Belmiro
de Almeida. O texto de Bardi tem um tom didático e de advertência, convocando visitantes e
críticos a examinarem a exposição sem preconceitos, e abertos a uma nova perspectiva. Sobre
Visconti, Bardi revela um conhecimento fragmentário, porém, sobre os outros dois pintores,
demonstra menos conhecimento ainda, e termina lançando uma necessidade em forma de
expectativa: “É de se esperar que a exposição suscite interesse de nossa juventude dedicada
à História da Arte, despertando considerações e contribuições críticas”.12
Visconti foi o artista mais bem representado nesta mostra - são 22 obras, vinte das
quais pinturas a óleo; contra nove de Belmiro (cinco óleos) e dez de Artur Timotheo (todas, a
óleo). Sendo assim, a participação de Visconti era mais que o dobro da de cada um de seus
companheiros de coletiva. Ao menos Gilda de Mello e Souza atendeu ao apelo de Bardi e
10
Regina Liberalli Laemmert. Apresentação. In: Catálogo E. Visconti. Rio de Janeiro: MNBA, 1967.
11
Carlos Cavalcanti. Visconti, o pintor da alegria. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 23 set 1967, p. 29 e 30.
P. M. Bardi. Os Precursores - até 1917. In: Catálogo Os Precursores: Ciclo de Exposições de Pintura. São Paulo: Museu Lasar
Segall, set/out 1974.
12
308
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de ideias - Mirian N. Seraphim
Figura 3 - Eliseu d’Angelo VISCONTI (1866-1944): Louise, c.1928. Óleo sobre tela, 66 x 81 cm. São Paulo, coleção particular.
Foto: Sergio Guerini, 2011.
publicou, no jornal Última Hora, uma longa resenha da exposição. Ela inicia declarando estar
diante do inesperado:
É surpreendente que, no final do século passado, já existissem no Brasil pintores cuja técnica prenunciasse a
explosão da Semana de Arte Moderna, em 1922. [...] Reunindo obras de Belmiro de Almeida, Eliseu d’Angelo
Visconti e Artur Timóteo da Costa, os organizadores tiveram a intenção de sugerir ao visitante que os olhasse
pensando nessa reformulação da arte, procurando vislumbrar neles certos traços do futuro.13
A autora usa um título impactante - “A arte brasileira já era moderna no final do século”
- e subtítulos provocadores - “Timóteo da Costa só consegue exprimir-se a si próprio”; “Eliseu
Visconti: um virtuoso indeciso e contraditório”; e “O admirável impressionismo de Belmiro de
Almeida”.
Assim como Bardi, parece que Mello e Souza pouco conhecia dos três pintores. Porém,
sua análise da mostra Os Precursores não é isenta de pressupostos. Ela afirma que a partir das
obras expostas é possível apreender as características básicas de Visconti: “domínio técnico,
Gilda de Mello e Souza. A arte brasileira já era moderna no final do século XX. Última Hora (Cultura critica). São Paulo, 19 e 20
out. 1974, p. 16.
13
309
erudição, versatilidade, elegância e mesmo um certo pendor decadentista”.14 Em seguida
começa a análise de oito das pinturas de Visconti presentes na mostra. Mesmo observando
a liberdade com que o pintor se utiliza da técnica impressionista, mesclando-a a tendências
diversas, e o efeito “bonito”, “admirável”, conseguido por ele nas pinturas analisadas, a autora
não se dá conta de sua originalidade e ousadia. Os adjetivos usados para qualificar as obras
vão muito além das “características básicas de Visconti” apontadas no início da crítica. Percebese que Mello e Souza notou muito mais em Visconti do que apenas virtuosismo e indecisão,
por isso, o “contraditório” parece ficar por conta do choque entre o presumido - revelado nas
características básicas apontadas por ela - e o observado na exposição (Figura 4).
Figura 4 - Eliseu d’Angelo VISCONTI (1866-1944): Na alameda, c.1931. Óleo sobre tela, 121 x 104 cm. Fortaleza, coleção
particular. Foto: Falcão Jr.
14
Idem, ibidem.
310
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de ideias - Mirian N. Seraphim
Outra retrospectiva de Visconti que expôs poucas pinturas - 32 apenas, de coleções
particulares, nenhuma de instituições ou da família Visconti - teve uma característica específica
que a distingue e lhe confere maior significado. Ela foi aberta inicialmente em São Paulo, em
dezembro de 1977, passando depois por Goiânia, Belo Horizonte, Salvador, Olinda, Brasília e
terminando no Rio de Janeiro, em abril de 1978. Constituiu-se, assim, numa mostra itinerante,
que ficou aberta apenas 10 dias em cada cidade, com a exceção de Brasília, onde permaneceu
15 dias, e de São Paulo, 20 dias. Para cada uma das cidades por onde a itinerante passou,
o seu catálogo foi reeditado, sempre com o mesmo texto de Mário Barata, o único escolhido
para dar seu testemunho ali. Ele considerou Visconti mais do que um artista excepcional,
por sua qualidade pictórica e valores humanos que representou. Viu sua obra como “fator
preponderante de expressão e, sobretudo, de alteração da visualidade dominante no país, nas
camadas em que a arte de elite atuava”.15
Durante a mostra em São Paulo, a revista IstoÉ publicou dois artigos sobre Visconti,
acompanhados das reproduções de alguns quadros expostos e de dois do MNBA. O primeiro
artigo, de Moacir Japiassu, começa com uma observação interessante: “Há dez anos, quando
o ex-marchand Giuseppe Baccaro batia o martelo na Casa dos Leilões, em São Paulo, os
quadros de Eliseu Visconti costumavam dividir a platéia: eram acadêmicos demais para uns,
ousados demais para outros”.16 Tanto quanto a crônica de Japiassu, a segunda publicada
pela mesma edição da IstoÉ, de autoria de Geraldo Ferraz, lança muitas perguntas e chega
a pouca conclusão. O fato é que a exposição itinerante, apresentando apenas seis nus, doze
retratos, quatro composições variadas e dez paisagens, não se constituiu numa amostragem
que permitisse uma análise aprofundada do significado da obra de Visconti. Mas teve o mérito
de levar essas pinturas a capitais brasileiras que jamais haviam tido a oportunidade de exibir
sua obra.
Quando em março de 1978 a itinerante chegava a Brasília, Hugo Auler republicou no
Correio Braziliense os principais trechos do longo artigo sobre Visconti que apareceu no mesmo
diário, em outubro de 1967. Em novo artigo publicado cinco dias depois, o desembargador e
crítico de arte comenta sobre a especificidade daquela pequena retrospectiva e as dificuldades
surgidas em decorrência dos vários transportes das obras.17 Como Auler conhecia as grandes
composições de Visconti ausentes nesta exposição, citou especificamente, no primeiro artigo,
as paisagens de Saint Hubert e de Teresópolis, assim como alguns títulos dos acervos dos
museus. Ele sabia que, de fato, a itinerante não daria, para quem estivesse entrando em contato
com a produção viscontiana pela primeira vez, uma boa representação da sua grandeza, e por
isso chamava a mostra de “reflexo” da obra.
Depois desta, só haviam sido montadas retrospectivas de Visconti que abordavam
especificamente sua produção menos conhecida até então - a de arte decorativa, como era
15
Mário Barata. Significação de Visconti. In: Exposição Retrospectiva de Eliseu Visconti, 1977.
16
Moacir Japiassu. Visconti uma arte acima do velho e do novo. IstoÉ (Cultura) nº 53. São Paulo, 28 dez. 1977, p. 54.
17
Hugo Auler. A obra imortal de Elyseu Visconti. Correio Braziliense. Brasília, 21 mar. 1978.
311
chamada em sua época, hoje conhecida como design.18 Há pouco mais de uma década,
começaram a surgir várias pesquisas acadêmicas sobre Visconti, sendo que anteriormente, a
pioneira havia sido uma dissertação de mestrado defendida em 1982, na ECA/USP, por Maria
José Sanches, com o título Impressionismo Viscontiniano. Em 2005, foi criado por um dos
netos do pintor, o Projeto Eliseu Visconti, que então, começa a desenvolver diversos trabalhos
com o objetivo de estudar e divulgar a produção do mestre, dentre os quais, o primeiro foi a
criação do site oficial do pintor. Depois de várias inciativas realizadas, finalmente conseguiuse patrocínio para montar uma nova grande retrospectiva, que agora poderia contar com os
esforços que já vinham sendo efetuados, no sentido de catalogar as obras de Visconti, e com
os trabalhos da Comissão de Autenticação, ativa desde dezembro de 2008.
Repensar o lugar de Visconti na história artística brasileira, em toda a complexidade e
riqueza de um fazer artístico que foge aos rótulos e às ideias preconcebidas, foi o objetivo
dos curadores da recente exposição Eliseu Visconti - a Modernidade Antecipada, que esteve
aberta ao público de dezembro de 2011 a fevereiro seguinte na Pinacoteca de São Paulo, e
de abril a junho de 2012 no MNBA, no Rio de Janeiro. O texto dos curadores, publicado no
catálogo da exposição, observa o legado daquelas últimas retrospectivas de Visconti:
Apesar das reiteradas tentativas de inseri-lo na trajetória da arte moderna brasileira, o preconceito renitente
contra o século XIX continua a mantê-lo em lugar de menor projeção e reconhecimento. [...] A presente
exposição representa uma oportunidade para que o público de hoje tome contato com a produção de
Visconti, em toda sua extensão.19
A intenção era que a mostra pudesse abarcar toda a multiplicidade de técnicas,
gêneros e temas da obra viscontiana, representativos de todas os períodos da sua carreira
de seis décadas, em quantidade suficiente para que uma nova geração de espectadores
pudesse minimamente conhece-la. Desde o início, manifestou-se o desejo de expor ao lado
de suas grandes composições, também seus estudos e esboços, uma vez que a produção
destes revelou-se prática constante no processo criativo de Visconti. Para tanto, não seria
suficiente recorrer a coleções particulares e acervos públicos restritos ao Rio de Janeiro e
São Paulo, como aconteceu com quase todas as retrospectivas anteriores de Visconti. A
ideia era buscar as obras mais significativas onde quer que elas estivessem. Infelizmente, e
por motivos diversos, não foi possível trazer algumas das obras selecionadas, mas no geral,
esse objetivo foi alcançado. E todo o empenho foi empregado desde o início para facultar
ao público um privilégio, até então único, o de apreciar uma pintura que havia sido levada
do Brasil em 1910, para a exposição que inaugurava o Museo Nacional de Bellas Artes de
Santiago, quando foi adquirida pelo governo do Chile, e por lá ficou: Sonho místico (Figura 5).
Em 1983, “Eliseu Visconti e a arte decorativa”, no Rio de Janeiro; em 2000/2001, “Eliseu Visconti designer”, no Rio e em São
Paulo; em 2007-2009, “Eliseu Visconti - Arte e design”, no Rio, São Paulo, Salvador e Brasília.
18
19
Rafael Cardoso, Mirian N. Seraphim & Tobias S. Visconti. O artista retoma o seu lugar. In: Eliseu Visconti: a modernidade
antecipada. Rio de Janeiro: Hólos, 2012, p. 19.
312
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de ideias - Mirian N. Seraphim
Figura 5 - Eliseu d’Angelo VISCONTI (1866-1944): Sonho místico, 1897. Óleo sobre tela, 101 x 81 cm. Santiago, Chile, Museo
Nacional de Bellas Artes. Foto: MNBA, Santiago, Chile.
O mérito daquela grande retrospectiva histórica, cinco anos após a morte de Visconti,
foi o de rememorar sua obra para a geração que o conheceu pessoalmente, mas de uma
forma completamente nova, pelo profundo impacto causado pela amostragem realmente
representativa. A nova retrospectiva, já no século XXI, teve a missão de apresentar o talento
de Visconti a uma geração distante daquela, que pôde experimentar a leitura de suas obras
313
contando com o conhecimento de tantos movimentos artísticos surgidos desde então, e verificar
que ela resiste até hoje com enorme frescor e força expressiva. No total foram 236 obras de todos
os períodos, todos os temas abordados por Visconti, todas as técnicas incluindo a cerâmica, das
mais diversas dimensões, e de todas as etapas do seu processo criativo, além de publicações,
documento e objetos pessoais.
Essa nova ampla visão de conjunto da obra de Visconti permitiu, ainda, que fosse
elaborada uma divisão de sua carreira artística em períodos, diferente daquela proposta na
“Apreciação da Obra” publicada no catálogo da Retrospectiva de 1949. Obviamente, para essa
revisão contribuíram também as diversas pesquisas acadêmicas e os trabalhos da Comissão
de Autenticação das Obras de Visconti, possibilitando, assim, a correção de alguns equívocos
daquela primeira versão, que procurava associar cada fase a um movimento estético. Partindo de
outra premissa, da liberdade com a qual Visconti adaptava e mesclava as diversas técnicas que
aprendeu e observou em sua formação e pesquisas posteriores, utilizando-as durante toda a sua
carreira, para expressar sua visão de mundo e seu temperamento independente de modismos, a
nova divisão de sua carreira em períodos foi publicada no livro recentemente editado pelo Projeto
Eliseu Visconti.20
Uma versão resumida da Retrospectiva de 2011-2012, foi exposta ainda no Instituto Ricardo
Brennand, no Recife, de agosto a novembro de 2014, levando ao Nordeste, 36 anos depois, duas
vezes mais obras de Visconti que a Retrospectiva Itinerante, por um período quase dez vezes
maior. Embora não contasse com a presença das composições dos grandes museus, exibiu
obras representativas das mesmas fases, técnicas e temas. Num total de 71 obras, incluiu três
pinturas recém-localizadas pelo Projeto Eliseu Visconti, que lhe foram então incorporadas; sendo
uma delas A Leitura, exposta no Salon des Champs-Élysées, em 1894, a primeira oportunidade
em que Visconti exibiu sua criação em Paris, e na 1ª Exposição Geral de Belas Artes do período
republicano, no Rio de Janeiro, em outubro do mesmo ano (Figura 6).
Ferreira Gullar publicou um artigo em julho de 2012, no qual declara: “... fui ao MNBA e não
me arrependi. Pelo contrário, vi confirmada minha convicção de que Visconti, embora nascido na
Itália, é um dos maiores pintores brasileiros”. Depois de observar que a fase realista de Visconti
é a menos interessante, talvez por uma questão de gosto, o poeta ainda reconhece: “... já ali se
mostra um excelente pintor, pela composição, a qualidade do desenho e domínio da linguagem
pictórica propriamente dita”. E termina fazendo uma comparação entre obras apreciadas em
outra exposição:
Embora seja eu fã de nossa pintora modernista, não pude deixar de reconhecer a diferença de qualidade
artística entre as duas obras. O quadro de Visconti ali exposto, comparado ao de Tarsila, era indiscutivelmente
melhor. Não se trata aqui de diminuir a importância de Tarsila que, naquele momento, abria um caminho novo
para nossa pintura. Mas não se deve confundir o papel histórico com valor estético. Como disse Picasso, toda
arte é atual. 21
20
Mirian N. Seraphim. A carreira artística. In: Tobias S. Visconti (Org.) Eliseu Visconti: a arte em movimento. Rio de Janeiro: Hólos,
2012, p. 64-141.
21
Ferreira Gullar. Toda arte é atual. Folha de S. Paulo (Ilustrada), São Paulo, 29 jul. 2012.
314
As retrospectivas de Visconti: rememoração, construção e circulação de ideias - Mirian N. Seraphim
Figura 6 - Eliseu d’Angelo VISCONTI (1866-1944): A leitura, 1893. Óleo sobre tela, 38 x 47 cm. São Paulo, coleção particular. Foto:
Escritório de Arte James Lisboa, 2014.
315
316
Uma história da arte mestiça - Silvia Miranda Meira
Uma história da arte mestiça
Silvia Miranda Meira
Universidade de São Paulo - USP
Resumo: A discussão sobre história da arte no Brasil esbarra muitas vezes em limites
pela falta de integração de modelos diferentes, principalmente quando não se enquadram
na historiografia tradicional europeia. Esta pesquisa procura entender a desigualdade de
tratamento nos escritos das produções artísticas “fora do eixo: do mundo não europeu,
primitivo e exótico”. A tradição em pesquisa nos contornos do regional, contaminada pela
terminologia da exclusão, acentua o debate em torno da busca de identidade cultural,
em detrimento a suas autenticidades. Reconhecer a pratica artística associada às
relações de significação e de sentido para a cultura brasileira exige uma operação de
re-conceituação da arte. O conceito ainda impreciso busca incluir diferentes narrativas
à história da arte brasileira, contrapondo-se à herdada de uma situação colonial, hoje
defasada.
Palavras-chave: Expansão de Fronteiras da Historiografia da arte brasileira.
Abstract: The research and discussion in which the history of art in Brazil is seen tied
often feature views limited by the lack of integration of different models of art. The research
arises trying to understand the unequal treatment in the writings of Brazilian art history,
specially of artistic productions “off-axis: the non-European world, primitive and exotic”. The
tradition in Brazilian art history research in regional contours, pre dominantly accentuates
the debate on the search for cultural identity, contaminated by the terminology of exclusion
in their considerations. Recognize the artistic practices associated with the significance
relationships and meaning to the Brazilian culture requires a reconceptualization of the art
operation. The concept still imprecise search to include different narratives to the history
of Brazilian art, in opposition to the research polo inherited from a colonial situation, a way
to get closer to our specificities.
Keywords: New Frontiers to history of art in Brazil.
Introdução
“Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”, menciona Sergio Buarque de
Holanda, em 1936, em Raízes do Brasil. O historiador afirma: “Somos apenas um povo
317
endomingado...”, “uma periferia sem um centro, sem apoiar-se sobre si próprio, em todas as
circunstâncias da existência, que é antes um viver nos outros”. (PEDROSA & SCHWARCZ,
2006 (1936), pp.148-9)
O conceito de nação usado outrora parecia ser o modo lógico de organizar a cultura e
as artes, e cenário para o entendimento de diferentes identidades regionais, locais e globais,
mas o cosmopolitismo tem contribuído para que artistas atravessem fronteiras, fazendo circular
seus trabalhos sem referência às origens ou à procedência, em um discurso de como perceber
a sociedade humana. (MICHAUD, 2009, p.17)
Segundo Claudia Mattos (MARQUES et al, 2014), “as significativas produções artísticas
afro-brasileiras e ameríndias foram esquecidas e em larga medida ainda são ignoradas pois a
história da arte teria sido construída no Brasil identificada com a história dos conquistadores
europeus”. Interpretações mais interessantes sobre produção artística local, como reflexões
dos próprios artistas, eram encontradas em campos afins, como na antropologia, na sociologia
ou na filosofia, menciona ainda Mattos. Para Huchet (2008), “a historiografia brasileira
carece de uma formação teórica mais aprofundada e pertinente que lhe possibilite embates
meta-históricos e, conceituais, faltam-lhe igualmente métodos atualizados, assim como um
incremento das pesquisas de campo”.
Como já enunciava Gilberto Freyre em Casagrande & Senzala, de 1933, o entendimento
de nossa sociedade híbrida, agrária na estrutura e escravocrata na exploração econômica,
deve começar pelo ponto de vista da miscigenação, considerada de modo geral como
um processo de antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a
africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege.
O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o
mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. (FREYRE, 1990, p. 53).
Histórias Mestiças
Inicialmente o “juízo estético sobre produções artísticas não ocidentais”, terminologia
usada por Franz Boas (ALMEIDA, 2001, p. 51), marca o estatuto problemático entre os
diversos gêneros de arte. Boas considerava que os índios eram capazes de fazer verdadeiras
obras-primas. Para ele, em terras selvagens, a produção artística e a experiência estética a ela
associada exigem, para o seu mapeamento, a inclusão de investigações antropológicas como
metodologia de pesquisa da dimensão sociocultural do contexto estético, em que se pratica as
artes ditas primitivas.
Do ponto de vista do relativismo cultural, o alargamento à diversidade cultural coloca a
inquietação em relação ao contexto, função e significado da categoria arte e estética. A expansão
das fronteiras1 dos discursos interculturais evoca diferentes estratégias de investigação como
maneira de legitimar outras categorias da arte.
1
A ideia de fronteira móvel foi apresentada pelo historiador americano Frederick Jackson Turner em seu trabalho intitulado “The
Frontier in American History”. Segundo ele o caráter americano foi forjado na expansão para o Oeste, ressaltando que “o efeito
mais importante da fronteira foi a promoção da democracia”.
318
Uma história da arte mestiça - Silvia Miranda Meira
De um lado, a alternativa de pesquisas e estudos antropológicos não tem como finalidade
compreender o fenômeno artístico e estético no contexto de outras culturas. Os antropólogos,
menciona Almeida (2001, p. 56), recorrem a diferentes temáticas tidas como estruturais, tais
como a política, religião, economia ou parentesco, na abordagem contextual; cabendo ao
desenvolvimento do estudo antropológico tentar identificar e traduzir a função da arte e seu
significado. A antropologia como princípio metodológico forneceria a organização narrativa de
contextualização da arte em diferentes culturas.
A perspectiva antropológica teria proliferado a partir da década de 1970, tendo como
denominador comum a combinação entre a antropologia como disciplina, a arte e a estética
como temática, e a noção de primitivo como qualificação, na tentativa de investigar “o ponto de
vista do nativo”, ou seja, identificar a arte e a estética como prática social e categoria linguística,
uma investigação proposta por Mauss (ALMEIDA, 2001, p. 55).
Um reconhecimento das manifestações estéticas de profundo significado para o povo
brasileiro, entre elas fenômenos artísticos de origem afro-brasileira, indígena e/ou cabocla,
seriam exemplos de experiências estéticas internas à nossa cultura, onde a especificação do
que seja artístico é feita em função de diferentes dimensões, ainda menciona Almeida.
Identificadas como coleções etnográficas, elas desvelam infinidades de referentes
culturais, históricos, materiais, e aguardam, envoltas em esquecimento, que sejam resgatadas,
estudadas e incluídas na história da arte brasileira, menciona Velthem (2012, pp. 51-56).
Não se deve esquecer que as primeiras coleções dos museus brasileiros, que datam de
meados do séc.XIX (quando predominavam os museus nacionais de caráter enciclopédico),
eram coleções reveladoras deste fato. A exemplo, o caso das vastas coleções de flechas
colhidas nos campos onde foram travadas batalhas entre índios e as frentes de expansão no
séc.XIX. Esta coleção, que hoje integra o acervo do Museu Nacional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, representava a prática de colecionamento referente a uma sociedade
humana específica, inserida no plano técnico, produtivo, estético e simbólico. O papel social
dos acervos se encontraria nesta possibilidade de representar a sociedade brasileira por meio
dos sentidos que impregnam suas coleções.
Relativismo cultural: saber como a arte opera
Para Lux Vidal,
O homem ocidental tende a julgar as artes dos povos indígenas como se pertencessem à ordem estática de um
Éden perdido. Dessa forma deixa de captar, usufruir e incluir no contexto das artes contemporâneas, em pé de
igualdade, manifestações estéticas de grande beleza e profundo significado humano. (...)
A pintura e as manifestações gráficas dos grupos indígenas do Brasil foram objeto
de atenção de cronistas e viajantes desde o primeiro século da descoberta, e de inúmeros
estudiosos que nunca deixaram de registrá-las e de se surpreender com essas manifestações
319
de grande beleza e profundo significado humano, insistentemente presentes ora na arte
rupestre, ora no corpo do índio, ora em objetos utilitários e rituais, nas casas, na areia e mais
tarde no papel.
No entanto, apesar da riqueza do material, dotadas de notável especificidade histórica
e cultural, esses estudos de arte foram relegados a segundo plano. (VIDAL, 1992, p.13)
Considerar as especificidades das identidades regionais que aqui habitam, junto a
outras propostas de pesquisa, ensino, colecionismo e conservação, representa hoje, para
a história da arte brasileira, consideração com o patrimônio nacional. Incluir o trabalho
de campo – sobretudo o do antropólogo – representaria fonte e estrutura para organizar
essas histórias outras, ligadas mais a técnicas de produção do objeto artístico – criado em
um contexto particular, mas também inserido em um plano estético, simbólico e produtivo
–, histórias essenciais em relação à diversidade cultural em que vivemos. Configuraria a
dialética local-universal, que vem a ser a relação entre a forma europeia e a matéria local.
Um ponto limitante estaria relacionado com o fato de muitos objetos dessas culturas
terem a sua contemplação restrita aos iniciados, em contextos sociais específicos e, portanto,
expostos poderiam se tornar descontextualizados e desfuncionalizados, uma vez que
estariam distanciados fisicamente e estruturalmente da origem de sua produção. Somente
por intermédio de pesquisa poderiam ser recontextualizados dependendo de estratégia
interpretativa adotada.
“Um objeto etnográfico”, segundo Velthem,
é o resultado de um trabalho manual elaborado de acordo com materiais e técnicas locais e cujo aspecto
formal obedece a parâmetros da sociedade que o produziu. Permite identificações particulares ou mais
gerais que diferenciam cada elemento dos demais e, ao ser coletado e introduzido no âmbito dos museus,
passa a ser rotulado e numerado enquanto “peça única”. (VELTHEM, 2012, p. 53)
Entretanto, muitos objetos etnográficos são transportados de uma cultura para outra
por etnógrafos, há os que só percebem e selecionam os objetos impactantes, de cores fortes
e formas complexas, como é o caso de objetos rituais, outros se interessam pela categoria
artesanal ou ainda por artefatos. Ao serem recolhidos e integrados aos acervos não podem
admitir uma superposição de valores institucionais que ignore sua prévia categorização, e
encubra seu ciclo de vida que está conectado a seus produtores. (VELTHEM, 2012, p. 54)
Para Cunha (1992, pp.9-16), a história dos índios no Brasil esta atrelada à noção,
herdada da metade do séc.XIX, de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da
evolução; consideradas sociedades primitivas, foram condenadas a uma eterna infância,
sem registro da história, só etnografia. Esse novo espaço de reconhecimento de cultura,
ainda que incerto, híbrido ou deslocado, reflete uma perspectiva de narrativas mestiças,
estabelece um lugar de interlocução sem prática de modelo ou discriminatória. Da arte
indígena conhecemos muitas indumentárias que, além da enorme beleza, é material de valor
documental e explicativo desta cultura. Objetos de uso diário que, apesar do rigor formal
320
Uma história da arte mestiça - Silvia Miranda Meira
e estético, servem como reflexão da organização sócio-política e hierárquica das tribos
indígenas, a exemplo dos adornos usados em cerimoniais.
O movimento de ampla revisão da historiografia em todos os lugares do globo tem
tomado, como ponto de partida, a rejeição às leituras feitas outrora que causavam incômodo, e
desconforto. Hoje, o grande desafio não é só a tolerância, mas a aceitação, o compartilhamento
e a convivência; a igualdade nas diferenças. A demanda é de falas explicativas que forneçam
noções sobre expressões identitárias que propiciem a dimensão do encontro com o outro:
concepções que reconheçam e incorporem os modos de representação das diversas culturas,
estabelecendo uma poética da diversidade e não uma política de diferenças; algo ainda
novo no território de “caciques e não dos índios”, como menciona o artista Carlos Vergara,
referindo-se à política cultural brasileira.
Alimentadas pela mestiçagem ou pelo hibridismo, corresponderiam a uma estratégia
de pesquisa de construção de sentido do diferente, eliminando os referenciais clássicos
europeus que serviam como única verdade e colocariam em discussão, e às avessas, as
categorias metodológicas de pesquisa da arte conhecidas, dirigindo-se à contaminação, à
diversidade e ao sincretismo.
A inclusão da antropologia como técnica de investigação e estratégia metodológica de
mapeamento de nossa diversidade sociocultural forneceria os meios para uma renovação da
estética ocidental. Entretanto, o estudo da arte e da estética na antropologia demonstra ser
um referencial forjado (ALMEIDA, 2001, p. 54), uma categoria questionável do ponto de vista
da antropologia.
A “retirada de artefatos de seus contextos de utilização para inseri-los em um espaço
regido por critérios de classificação bem distanciados dos que estão na origem de sua
produção” seria, segundo Gonçalves (2007), problemático.
O vínculo constitutivo entre a antropologia e a arte residiria nas diferentes estratégias
de construção dos valores culturais. (MARCUS, MEYERS, 1995, p. 20) Foi a partir da
expansão das investigações antropológicas que o princípio da pluralidade dos valores tornou
possível postular a relatividade radical das culturas e, consequentemente, das formas de
arte. É preciso considerar que o sentido de uma obra não é redutível à sua aparência. Um
objeto pode deter diferentes sentidos, de acordo com as circunstâncias e as relações que
são estabelecidas por seu intermédio; o que significa que a apreensão de um artefato, objeto
testemunho ou objeto documento pode comportar muitas formas e aspectos, pois depende
da estratégia interpretativa adotada. Um objeto exibe uma forma e constituição que informa
a respeito de técnicas e matérias-primas, de usos e funções e, ainda, dos valores simbólicos
e estéticos da sociedade que o produziu e consumiu, segundo Velthem (2012, pp.51-66).
Nessa ótica, os objetos etnográficos serviriam como suportes de um discurso identitário de
povos longamente silenciados na ampliação da noção do nosso patrimônio cultural.
O alargamento das pesquisas da História da Arte a este tipo de arte e estética qualificada
como “primitiva” inclui a inquietação sem um consenso nem um mesmo parâmetro: “saber
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como a arte opera e a definição de um conceito instrumental do que é arte”, segundo Azevedo
(1985, p. 703).
A heterogeneidade e a complexidade das relações entre as nossas diversas culturas
demonstram as várias possibilidades de abordagem a elas pertinentes, abrindo-se a uma
“história outra da arte”, uma lente da cultura brasileira relativa a uma identidade própria,
com um lastro de qualidade artístico cujas referências não se limitam a grandes tendências
internacionais, mas se tornariam um processo de abertura de fronteiras na procura de um
olhar sobre a cultura brasileira. Entretanto, para considerarmos de maneira abrangente o
conjunto de nossa produção visual, devemos ultrapassar uma compreensão polarizada,
tanto teórica quanto geograficamente, de seus traços básicos. Muitas de nossas tendências
artísticas, inversamente, alimentam-se das especificidades regionais, buscando na arte
popular as raízes que lhes emprestariam sentido.
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