Comece a ler o livro agora!

Transcrição

Comece a ler o livro agora!
JUDIVAN J. VIEIRA
O GESTOR,
O POLÍTICO
E O LADRÃO
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© by Judivan P. Vieira – 2010
Ficha Técnica
Arte da capa
Tagore Alegria
Revisão
Fátima Loppi
Diagramação
Tagore Alegria
ISBN: 978-85-7062-961-6
V657g
Vieira, Judivan J.
O gestor, o político e o ladrão / Judivan J. Vieira. – Brasília : Thesaurus, 2010.
288 p.
CDU 82-3 (81)
CDD 869.B
Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com a lei. Nenhuma parte deste livro
pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou
informação computadorizada, sem permissão por escrito do autor. THESAURUS EDITORA DE BRASÍLIA
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Composto e impresso no Brasil
Printed in Brazil
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O pôr do Sol na cidade do Porto esparramava pelo céu
jatos de tinta que davam formas variadas ao horizonte e ao
Mister Sandman, às margens de Vila Nova de Gaia.
Sentar-se à Ribeira e apreciar as ondas coloridas do
Douro responderem ao sopro do vento naquele fim de tarde de
abril era um sonho de décadas, que naquele momento remetia
Mike e sua solidão para lembranças gravadas a fogo na tábua
de sua existência.
A saudade do Brasil agrediu seu coração no mesmo momento em que o sistema de som do barzinho começou a tocar
Erasmo Carlos. A música descrevia aquele momento de sua
vida de forma tão real, que parecia haver sido feita para ele. A
alma se embriagou com cada palavra e se deixou levar solta na
correnteza da poesia que saltava da letra:
“Eu não posso mais ficar aqui a esperar que um dia de
repente você volte para mim vejo caminhões e carros apressados a passar por mim estou sentado à beira de um caminho
que não tem mais fim
Meu olhar se perde na poeira desta estrada triste onde
a tristeza e a saudade de você ainda existe esse sol que queima
no meu rosto um resto de esperança de ao menos ver de perto
seu olhar que eu trago na lembrança...”
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Mike foi arrastado pelas lembranças de casa sem perceber que as estrelas refletidas no espelho d`água anunciavam a
madrugada. Ergueu-se preguiçosamente, pegou a garrafa do
Real Companhia Velha que houvera comprado no início da
tarde em visita às Cavas do Porto, em Vila Nova de Gaia, sacou
do bolso a pequena taça e enquanto aquecia a madrugava fria,
subia até a Rua Santa Catarina, por onde seguiu para o hotel.
A recepcionista o atendeu sonolenta, mal compreendendo os cumprimentos de bom-dia, subiu as escadas contando os
degraus até o quarto 110. Puxou a cortina, foi até a sacada e observou a neblina que parecia uma cortina estendida sob o céu
de seus olhos. Voltou o olhar para a rua e observou uma linda
prostituta que fazia ponto na calçada no outro lado da rua.
Seus cabelos loiros cintilavam sob a luz do poste, suas mãos se
abrigavam nos bolsos da jaqueta enquanto seu olhar se perdia
entre esquinas vazias.
Pensou no que fazer para chamar sua atenção sem acordar os vizinhos. Lembrou da câmera digital que trazia no bolso, ajustou o foco e disparou o flash em sua direção. Ela, incandescida pelo clarão, esfregou os olhos e sorriu antes mesmo
que a visão turva divisasse ao certo o que estava ocorrendo.
Mike olhou a foto na tela da Sony e observou a suavidade nos traços do rosto da moça. Quando levantou a cabeça,
percebeu que os olhares se encontraram. Fez-lhe sinal de silêncio e a chamou para baixo da pequena sacada. Por sussurros a
convenceu a escalar a parede até seu quarto.
Quando ela se aproximou da sacada, ele a tomou pelas
mãos. Seu corpo balançou entre o esforço, o medo de cair e os
sorrisos marotos que os dois trocaram até que, por fim, Mike
conseguiu alçá-la em segurança. Um leve abraço entre eles selou a pequena aventura que viveram no primeiro e único dia
daquela relação. Ele fechou a janela, cerrou as cortinas, pagou
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adiantado o preço combinado, sacou suavemente seu casaco e
sua roupa com gestos e toques tão carinhosos que a garota teve
a sensação de estar com o homem de sua vida e não, apenas,
com mais um cliente. Assim era Mike, um gentleman, com a
personalidade construída em um lar no qual seu pai era, com
sua mãe, a antítese do que ele decidira ser com toda e qualquer
mulher.
Eles não perguntaram o nome um do outro. Isso parecia
não fazer diferença. Também não resistiram ao impulso de se
deixarem levar. Ele ligou a água quente da banheira, a tomou
pela mão, colocou o vinho do porto e a taça numa mesa de
centro que levou para o banheiro e, em silêncio, beberam um
cálice após o outro. Depois de alguns minutos, como se fossem
uma equipe de ballet aquático com movimentos sincronizados, os dois se levantaram, ele a enxugou dos pés aos cabelos,
foram para a cama e, em silêncio, ele se recostou em seu corpo
quente, junto ao qual dormiu noite fria adentro.
Acordou tarde e despreocupado. Notou o outro lado
da cama vazio e na cabeceira seus pertences todos no mesmo
lugar. Foi despertando aos poucos com a sensação de que as
horas se transformavam em dias, os dias em meses e os meses
em anos de solidão e tristeza.
Seu pensamento, como de costume, se voltou para Samantha, o único e verdadeiro amor de sua vida. Ela era a mulher de seus sonhos, o porto para o qual sua mente navegava,
após vagar por oceanos de pensamentos. Quis se sentir culpado pela noite anterior, mas sua consciência o lembrou que
havia, apenas pagado por um cobertor de pele para aquecê-lo
e nada mais.
Lembrou-se do último contato telefônico com Sam,
quando ela ainda estava na estrada entre João Pessoa e Recife,
voltando ao Aeroporto dos Guararapes para fechar a negocia7
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ção de um lugar para ele no voo TP154 de Recife para Lisboa.
Mike nunca vai esquecer o tom triste na voz de Sam e, quando
lhe perguntou se era por sua partida, ela disfarçou, mas não
o suficiente para esconder que estava com dificuldades para
conseguir o bilhete aéreo, sem ter de revelar ao rapaz do Check
in por que insistia tanto naquela vaga, naquele dia e hora.
Não agradou a Mike saber que a última cartada de Sam,
para conseguir a vaga no voo, foi transar com o homem da
companhia aérea. Hoje, pensa que teria sido melhor não insistir para que ela lhe contasse que o filho da puta exigiu que
fizessem sexo várias vezes dentro dos toaletes do aeroporto em
troca daquela vaga.
No momento em que soube de tudo, lhe faltou chão sob
os pés. Quase morreu de ciúme, mas se conteve, ao lembrar
que, se ela não tivesse se submetido, certamente ele estaria nas
mãos da Polícia Federal e sob muita pressão para entregar pessoas e parte do esquema que haviam montado para sangrar os
cofres públicos.
Pensou na sorte de ter uma mulher capaz de tudo para
agradar ao homem a quem ama. Pensou na beleza que ela destilava em cada centímetro de seu corpo. As lembranças eram
tão vivas, que sentia o toque de seus dedos deslizarem sobre
seu corpo nu. Sentia o aroma agridoce de quem é mel na presença e fel na ausência. Deitou-se de costas na cama, absorto
em pensamentos que o deliciavam além-mar.
Lembrou que Sam era uns sete centímetros mais alta
que ele, tinha lindos cabelos negros e era quase impossível ela
passar por qualquer ambiente sem atrair olhares sorrateiros,
inclusive de algumas mulheres que disfarçadamente acompanhavam seus movimentos.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo toque do
telefone. Era a recepcionista avisando que o ônibus do City
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Tour chegaria em trinta minutos. Mike havia mergulhado tão
profundo nas lembranças da mulher amada, que mal conseguiu ouvir o que a moça dizia. Naquele momento as batidas
de seu coração pulsavam o nome de Samantha, minimizando
todas as demais percepções de seus sentidos. Era àquela mulher, que houvera se oferecido em sacrifício por ele, a quem
pretendia dedicar o resto de sua vida.
Desceu, tomou o desjejum português, tão farto quanto o brasileiro e depois foi ao salão de leitura, onde constatou
que as notícias dos jornais continuavam as mesmas: Atentado
no Iraque, Guerra na Faixa de Gaza, Inundações de Abril na
Romênia e na Bulgária e, assim, a história seguia seu curso de
repetições previsíveis.
Acabou por desistir do City Tour. Colocou o sobretudo e
resolveu passear pela cidade, em mais um dia frio.
Desceu pela Rua Santa Catarina e foi até os caminhos
de ferro. Subiu as escadarias de acesso e se encantou com as
pinturas em azulejo nas laterais e no teto do salão de entrada
da estação. Pensou consigo que aquela era uma obra de arte da
qual só os portugueses possuíam a fórmula certa. Aos demais,
restava admirar e copiar.
Como era de costume, prestou atenção a cada pessoa
e a cada movimento ao seu redor, observou cuidadosamente
quem transitava pela estação, à procura de quem pudesse estar discutindo ou lendo notícias que se relacionassem com sua
fuga do Brasil. Mais uma vez tranquilizou-se, ao ver que estava
longe das manchetes e comentários.
Acabou sendo atraído pelo som do violão e pelos os versos de um velho cantador de rua que cantava: “Coimbra do
choupal, ainda és capital, do amor em Portugal, ainda...”
Naquele momento pensou que, uma vez sem destino
em Portugal, um ótimo lugar para visitar era a cidade que en9
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cantava desde artistas e escritores a pessoas simples. Ouviu
pelo serviço de alto-falante o anúncio da última chamada pra
Coimbra, correu até o guichê, comprou o ticket e tomou o trem
para a cidade que “põe os corações à luz”.
Apreciou o roteiro que passava por sete pequenas e encantadoras cidades e se deliciou com a vista apressada do oceano Atlântico que descansava na areia da praia da cidade de Espinho. Da janela do trem o mar se mostrava por flashes como
que a provocar seu desejo de descer e ficar por ali mesmo.
Sua relação com o mar era de pura poesia. Amava caminhar descalço pela praia ao anoitecer e depois sentar-se à beiramar para ouvir o quebrar das ondas. Prometeu a si mesmo um
dia mergulhar no mar encantado daquela cidadezinha. Pegou
seu Smartphone, digitou o nome da cidade e leu na Internet:
“Espinho é uma cidade portuguesa, da Grande Área
Metropolitana do Porto, limitada a norte pelo município de
Vila Nova de Gaia, a leste por Santa Maria da Feira, a sul por
Ovar e a oeste pelo oceano Atlântico....”
Voltou a observar os passageiros naquele vagão. Entre
eles lhe chamou a atenção o que estava à sua frente na fileira
oposta. Tinha entre quarenta e cinquenta anos, aproximadamente um metro e oitenta e estava elegantemente vestido com
um terno azul risca de giz. Pernas cruzadas, trazia na mão direita uma garrafa de Moët de 375ml que, de vez em quando,
levava à boca.
O contraste entre a seriedade e a atitude em relação ao
“vinho louco” agregava charme àquele estranho personagem
que parecia entrar em transe, ao observar fixamente as borbulhas em contraste com a luz do Sol que entrava pela janela.
O temor de ser percebido fez Mike desviar rapidamente
o olhar, sem saber que o estranho também havia feito uma leitura de seu observador.
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O silêncio foi quebrado quando uma moça sentada duas
poltronas à frente olhou para trás, ajoelhou-se na cadeira e
perguntou se ele poderia fazer-lhe uma foto. Mike, na dúvida
se ela estava a falar espanhol ou português, acabou por descobrir que nem um nem outro, ela falava o galego.
Ela se pôs a falar com ele sem qualquer inibição. Mike
se sentiu um pouco perturbado porque não queria ser identificado, mas a gentileza dela e seu entusiasmo ao descobrir que
era brasileiro, fizeram com que se pusesse a falar sem parar,
dizendo que a Galícia é o berço da língua portuguesa.
Falou em tom quase professoral que o galego-português
foi a língua falada durante a Idade Média nas regiões de Portugal e da Galiza, na Espanha, da qual as atuais línguas portuguesa e galega descendem.
Explicou que inúmeros linguistas e intelectuais defendem a unidade linguística do galego-português que seriam
parte de um mesmo sistema, com diferentes normas escritas,
como ocorre com os Estados Unidos e a Inglaterra, onde algumas palavras têm ortografias distintas.
– Como acontece também em relação a Portugal e ao
Brasil? Perguntou Mike, curioso.
– Sim, disse a garota, demonstrando satisfação por haver
despertado o interesse de seu interlocutor, ainda que por breve
momento. A decisão oficial na Galícia é considerar o português e o galego línguas autônomas, apesar das semelhanças.
Mike mergulhou no silêncio e deixou seu olhar se perder novamente pela paisagem que passava rápido pela janela
do trem. Sua distância fez a garota perceber que seu interlocutor era gentil, mas que não queria aproximação nem conversas
longas.
Nesse momento, o Homem do Moët dirigiu-lhe a palavra: – Olá, como vai?
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Tudo o que Mike queria era passar despercebido. Toda
aquela popularidade começava a lhe preocupar. Sentiu calafrios
percorrerem sua espinha. Mil coisas passaram por sua cabeça
naquele momento, mas a mais preocupante foi imaginar que
o Homem do Moët poderia muito bem ser um policial disfarçado. Simulou não ter ouvido o cumprimento e permaneceu
olhando pela janela do trem, na esperança de que o estranho
estivesse se dirigindo a outra pessoa, ou que não insistisse em
conversar com ele.
O disfarce não deu certo. Mike observou pelo reflexo da
janela que o homem o fitava atentamente. Levantou-se e quando seguia em direção ao outro vagão foi seguro pelo braço. O
homem falou baixinho: – Calma, meu camarada! Não sou da
polícia. Estou numa situação parecida com a sua. Que tal sairmos deste vagão juntos e conversarmos a sós?
Com o coração apertado, mas fingindo tranquilidade,
Mike planejou descer do trem na primeira estação e fugir do
estranho. Naquele momento, porém, não tinha saída senão
acompanhá-lo. O Homem lhe seguia tão de perto, que, às vezes, lhe tocava o calcanhar com o bico do sapato. Sentiu-se
incomodado por caminhar na frente, sem meio de se defender
de um possível ataque.
Quando chegaram à metade do vagão seguinte ao que
estavam, o estranho tocou-lhe o ombro e indicou o lugar em
que deviam sentar. Em seguida falou:
– Prazer, meu nome é Xavier. Conheço sua estória. Sei
que está fugindo da Polícia Federal brasileira. Cheguei a Portugal antes de ontem. Permita-me brindar ao seu sucesso. Que
fuga espetacular a sua! Se é que foi como li nos jornais. Falou
com certo tom de dúvida.
Já não havia mais dúvida alguma que o estranho conhecia o suficiente para representar ameaça. Agora não havia vol12
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ta. Para a vida ou para a morte era melhor embarcar naquela
conversa e procurar descobrir o que mais ele sabia, pensou
Mike.
Nos minutos que se seguiram, o Homem do Moët rasgou
elogios ao modo como Mike havia driblado a Polícia Federal,
comparando-o ao gênio das pernas tortas do futebol brasileiro
que deixava seus marcadores a ver navios, e isso lhe parecia
uma boa massagem no ego. Mike foi relaxando diante dos elogios e da admiração pelos detalhes de sua fuga do Brasil.
Xavier observou que o garçom passava, parou repentinamente de falar com Mike e pediu duas meias-garrafas
de champagne. Esperou o rapaz sair e disse que aquela ocasião sugeria a excelência do “néctar do monge cego”, acrescentando que a bebida fora criada no século XVIII pelo
monge Beneditino Dom Perignon que, ao prová-la pela primeira vez, gritava: “Estou bebendo estrelas, estou bebendo
estrelas, estou bebendo estrelas...” e rodopiava pela Abadia,
como se a garrafa fosse a parceira perfeita para aquela valsa
imaginária.
Por um momento Mike achou que aquela viagem estava
com ares de excursão. Primeiro a moça galega e suas explicações sobre o idioma português, agora era Xavier que destilava
conhecimento sobre o “néctar do monge cego”. Nada disso incomodava a Mike. Não fosse a situação em que se encontrava,
teria travado conversas longas com ambos. Mas o interesse do
estranho o deixava intrigado.
Xavier tocou com o bico da garrafa na taça de Mike e
disse: – Um brinde ao “andarilho”. Afinal, é assim que a imprensa está te chamando. O homem que conseguiu despistar a
polícia por vários estados brasileiros.
Na tentativa de mudar o foco da conversa, Mike perguntou: – E você, por que está aqui e para onde vai?
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– Ah, meu caro. Estar em qualquer lugar e seguir sem
direção também é parte de minha vida. Eu reconheci você nos
caminhos de ferro, lá em Porto. Logo que você saiu do guichê,
eu corri e disse ao atendente que éramos brasileiros viajando
para Coimbra. Sei que forcei um pouco a barra, mas era isso
ou não o conseguiria acompanhar.
Eu chutei o nome da cidade e como também acertei sua
nacionalidade, ele acreditou que éramos amigos e, sem nada
perguntar, deu-me a passagem. Deduzi que estava certo quanto ao seu destino e cá estamos.
Além do mais, vi quando você se aproximou do velho
senhor que tocava violão e o modo como prestou atenção à
música que ele cantava. Pensei: Ora, ora, somos dois indivíduos sem destino. Então, por que não seguirmos a mesma estrada?!
– Você é esperto e bem falante Xavier. Pessoas assim
chamam atenção demais, principalmente em situações nas
quais se busca anonimato, disse Mike, um tanto quanto perturbado.
– Não me diga que encontrei alguém que ama o right to
be alone? Retrucou Xavier. Asseguro-lhe, meu caro Mike, que
seu nervosismo é extremamente mais perigoso que nosso encontro, pois quem não consegue manter a calma em momentos tormentosos é presa fácil de si mesmo.
Além do mais, sou amante da política e um bom papo sempre nos fascina. Aliás, me espanta você não saber quem sou.
– Como assim? O Brasil tem mais de 180 milhões de
habitantes, respondeu Mike.
– Mais de 190 milhões meu caro, interveio Xavier. Porém, poucos tão influentes quanto eu.
– Estranho, porque não me lembro de ter visto seu rosto
na mídia, disse Mike, em tom irônico.
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– Eu disse que era influente. Não disse que era famoso.
Nem sempre as duas coisas necessitam andar juntas, acrescentou Xavier. Em certos casos, o lema da Cosa Nostra é um mandamento. Quanto menos aparecermos, melhor.
Mas, deixemos minha estória para depois. Agora quero ouvir como conseguiu escapar da Polícia no Rio de Janeiro sem deixar vestígios. Pelo que soube, os Federais fizeram
campana para pegá-lo desde a Linha Amarela até o Galeão e,
ainda assim, pareciam baratas tontas, sem qualquer pista, disse
Xavier, sorrindo alto.
– Na verdade, disse Mike, houve uma mescla de sorte
e competência. Meu sucesso deveu-se muito ao fato de haver
sido informado do plano de captura com antecedência.
– Hum... já posso deduzir. Ter informantes dentro da
polícia é uma estratégia que dificilmente falha, disse Xavier.
– É, foi graças a um amigo policial civil que namora uma
garota da Federal, que consegui furar o cerco.
Ela, na empolgação de participar da primeira operação
policial da carreira, acabou abrindo para o namorado todas as
estratégias do grupo de operação e, como somos amigos desde
criança, ele bateu um fio me avisando. Foi só isso o que aconteceu. Não fui nenhum gênio, ao escapar.
– Ora, ora, Mike, nós temos tempo. Não seja sovina!
Conte-me a história com riqueza de detalhes. Afinal, são três
horas de viagem. Se há algo que me fascina é ouvir boas estórias. Não foi à toa que um dos filmes que mais prenderam
minha atenção foi Forrest Gump.
A conversa foi deixando Mike mais tranquilo. Ele se recostou na poltrona, bebericou mais um gole em sua taça e começou sua narrativa pessoal.
– Em 1998 fui aprovado para o concurso de gestor do
Ministério do Planejamento, onde me destaquei pelo desen15
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volvimento do projeto Fluxo de processos e melhorias nas
rotinas procedimentais dos órgãos públicos, que me rendeu
prêmio e promoção na carreira.
Certo dia recebi uma chamada pelo celular, era o Matheus, um cara muito competente em tudo o que fazia. Ele havia entrado no serviço público junto comigo e, logo em seguida, foi requisitado para assessorar o deputado federal, Porto
Rico.
– Porto Rico? Exclamou Xavier! Conheço bem a figura.
Fizemos alguns negócios juntos. O problema dele é que vivia
muito na lombra e acabou traindo os produtores da mercadoria que ele deveria atravessar pela fronteira com o Paraguai até
São Paulo e, de lá, para Milão. Aí, acabou sobrando pra ele.
– Como assim? O que houve?
– Vejo que não soube que na semana passada o helicóptero dele caiu e, quer saber, já que de alguma forma estamos
todos ligados, posso te dizer a verdade: a aeronave foi derrubada. Nesse momento, sorriu discretamente.
– Mas eu estive atento às notícias desde que saí do Brasil
e não vi sequer uma nota a respeito disso, atalhou Mike.
– Você esteve procurando só a si mesmo, porque os jornais noticiaram. Ele era uma pessoa influente que, infelizmente, colocava os negócios da “Irmandade” em risco com suas
bebedeiras e envolvimento com o tráfico de drogas.
Com a exposição exagerada de Porto Rico, a conclusão
era óbvia. Ele teria de ser eliminado e o foi de forma bastante
discreta.
De fato, só restaram pedaços carbonizados dos corpos
após a explosão da aeronave, ao se chocar com a água, no lago
Paranoá, em Brasília. O congestionamento que se formou na
Ponte JK para ver a bola de fogo sobre o espelho d´água entrou
em link nacional.
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– Mas, o inquérito não vai acabar apontando vocês como
culpados, perguntou Mike?
– Negativo, meu caro, respondeu Xavier. Tudo foi
trabalhado para que a pane elétrica seja a velha culpada de
sempre. O piloto do helicóptero tinha o costume de levar sua
água mineral numa garrafinha que recebera de presente de
seu filho. Bastou misturarmos 1mg de cianureto na água dele
e aguardar o resultado. O método foi escolhido para que Porto Rico soubesse que estava sendo eliminado, enquanto via a
aeronave cair.
Não sei se você sabe, mas o cianeto de potássio causa
intoxicação, ao reagir com a hemoglobina, impedindo o transporte de oxigênio aos tecidos. A morte é rápida e, com os corpos carbonizados, não haveria como detectar a presença do
veneno. Eliminamos Porto Ribo sem dar um tiro. Xavier não
conseguia conter o riso...
– Mas, e o piloto? Indagou Mike.
– Efeitos colaterais dessa natureza são aceitáveis, respondeu Xavier. Falemos de você, porque os boatos davam conta
que tinha parceria com Porto Rico.
– É, mas eu não conhecia nenhum dos esquemas à
época em que fui convidado para trabalhar com ele. Até,
então, minha empolgação era com os processos de capacitação de recursos humanos e com a tecnologia de inovação
nos procedimentos burocráticos que marcavam a administração pública.
No telefonema que recebi de Matheus, seu assessor, foi
dito que ele tinha uma proposta irrecusável para mim. Disse
que aquele seria o início de uma grande carreira dentro dos escalões superiores do governo, e que um assunto daqueles não
poderia ser discutido por telefone. Ao final, o assessor sugeriu
que eu indicasse dia e hora para um encontro pessoal.
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O GESTOR, O POLÍTICO E O LADR ÃO
Marcamos em um restaurante no Pontão Sul, às margens
do Lago Paranoá, um dos lugares mais lindos para se apreciar
o pôr do Sol, em Brasília.
– Conheço bem o local, atalhou Xavier, tomando mais
um gole de seu néctar. Estive lá umas duas vezes. Que seleção
de garotas que eles fazem, hein?!? É só você pedir e o céu desce
sobre a terra...
– Pois bem, cheguei às vinte e uma horas como combinado. Fui recebido na entrada por uma atendente que me
ofereceu uma mesa no ambiente interno do restaurante, mas
notei que havia muita gente e preferi o que fica suspenso sobre
o Lago, nos fundos do bar. É pequeno, mas bastante agradável
e perfeito para conversas particulares. Pedi um Synergy Cape
Blend 2002 e esperei.
Os momentos que se seguiram pareciam preparados
pelo destino para moldar os anos seguintes de minha vida. No
sistema de som do bar começou a tocar You and I, just have a
dream... Skorpions, um lindo ambiente e um vinho que deixa os neurônios em frenesi formam uma trilogia mágica. Foi
assim que me senti naquele momento em que minha carreira
dava sinais de que iria deslanchar.
Enquanto surfava em ondas de sonhos, a gerente do restaurante surgiu como o horizonte claro e florido que os olhos
desejam ver. Cabelos longos, negros e lisos, magra de um corpo bem definido. Lábios carnudos, uma camada leve de sombra prateada realçando com a cor metálica da Lua refletida no
espelho d´água do Lago Paranoá.
Levitei por um tempo enquanto sua voz doce invadia
meus ouvidos, acelerando as batidas no meu peito, como se
houvesse tomado uma dose de adrenalina sintética.
You and I, just have a dream. Sempre amei essa música,
mas naquela noite eu a ouvi como se fosse o elo da corrente
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JUDIVAN J. VIEIRA
que amarrava minha vida à daquela moça cuja beleza me encantara. Samantha, esse era o nome escrito na plaqueta presa
à lapela do uniforme e que para sempre houvera sido grafado
nas tábuas do meu coração.
Tentei em vão conter o olhar, mas sem conseguir resistir
ao ímpeto, escrevi discretamente o número do meu telefone
no guardanapo sobre a mesa. Eu o dobrei colocando sob meus
dedos enquanto tamborilava para lhe chamar a atenção. Ela
percebeu meus movimentos, assentiu com a cabeça, o pegou e,
sem dizer uma palavra, se foi.
Matheus chegou no momento em que a moça se retirava. Deu uma olhada em seu corpo de cima a baixo, voltou-se
pra mim e piscou o olho, balbuciando palavras, das quais só
me lembro de “gostosa”. Sentou-se e foi direto ao assunto, sem
perceber que eu ainda flutuava na trilha de encanto que Samantha deixara atrás de si.
– Olha Mike, eu poderia fazer uma longa digressão sobre Direito, Ética, Corrupção etc, mas o que tenho a lhe dizer
é mais real que palavras. Portanto, falarei de forma simples e
rápida.
O deputado precisa de alguém para comandar um esquema de fraude em licitações em algumas estatais, autarquias
e fundações federais. Esse esquema tem rendido alguns milhões por ano, mas pode render muito mais se for bem administrado.
Porto Rico me mandou lhe fazer uma proposta. Se você
topar entrar no negócio, lhe entregamos estes duzentos mil
reais. Falou apontando para a pasta que havia posto sobre a
mesa. Se você não topar, nunca teve essa conversa conosco.
O deputado até pensou em me indicar para o cargo de
diretor-presidente de uma das Agências do Estado, mas ele
precisa de mim como ponte entre ele e o pessoal que fecha os
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contratos públicos. Além do mais, alguém com sua experiência em gestão e com sua credibilidade será perfeito para nos
manter fora de suspeita.
– Mas, por que eu? Perguntou Mike.
– Porque eu o indiquei, respondeu Matheus.
– Cara, você está louco de querer me envolver num negócio desses. Eu não tenho estrutura para fazer essas coisas e
escapar ileso.
– Você não precisa temer Mike. O negócio tem uma estrutura muito bem definida e transcende governos, partidos
políticos, religião, ética etc. Entenda que todas as pessoas que
comandam esses campos da vida têm um preço e, quando nós
descobrimos quanto é, as amarramos à grande teia que nos
sustenta. É assim que tudo funciona. Há outros detalhes sobre
a Irmandade que só aos poucos você saberá. Mas, uma coisa é
certa, Ela dirige nosso negócio, no Brasil e fora dele, de forma
insuspeita.
A “Irmandade” financia governos em vários países do
mundo, independentemente da ideologia que eles adotam. Aliás, a ideologia é escolhida por ela de acordo com o que mais se
adapta ao tempo e espaço de cada país que queremos dominar.
O que estou lhe propondo transcende a tudo e a todos. É um
negócio que sobreviverá, inclusive, às nossas vidas. O tempo
de aproveitar é agora ou não é mais. Cabe a você escolher.
A questão é se queremos fazer parte de um plano maior
de vida, ou se vamos nos manter no nível dos que não passam
de plateia, de espectadores desavisados do que vai ocorrer em
um futuro que está mais perto do que o que eles possam imaginar.
Analisando de forma simplória, você e outros poderiam
pensar que nosso interesse é o enriquecimento pessoal, a corrupção pela corrupção. Mas, posso lhe assegurar que toda a
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JUDIVAN J. VIEIRA
nosssa arrecadação de fundos tem um propósito definido em
relação ao futuro da própria humanidade.
Nós estamos, apenas, dando continuidade a um projeto
desenvolvido por nossos antepassados, que será responsável
pela criação de um mundo absolutamente novo para uma existência digna daqueles que forem escolhidos para habitá-lo.
A “Irmandade” vem escrevendo uma história paralela
para criar e às vezes modificar o consciente coletivo sobre a
importância do planeta Terra e de seus constantes redesenhos
geográficos, de acordo com a política de dominação traçada
para cada região do mundo.
Eis uma das razões que levaram a “Irmandade” a investir nas cruzadas e retraçar o mapa do mundo inúmeras vezes,
ora fazendo surgir dezenas de novos países, ora riscando-os do
mapa por meio de fusões e guerras.
Algumas nações são criadas para servir de base de lançamento de nossas ideologias e, também, para funcionar como
fonte da riqueza de onde tiramos recursos para financiar nossos projetos.
Para dar suporte ao maior sonho da “Irmandade”, fomenta-se a guerra da mesma forma como fomentamos a paz,
a doença e a cura. Empobrecemos e enriquecemos a quem
nos é útil, desde que o foco seja garantir a sobrevivência dos
nossos eleitos e de seus descendentes. Eles, sobretudo, os
eleitos, são os escolhidos para receber a grande herança de
nossos esforços.
Se você decidir trabalhar conosco, nunca estará sozinho.
A “Irmandade” lhe oferece onipresença e onisciência e, em
breve, parte na onipotência que ela está conquistando.
A “Irmandade” defende a ideia de que seus membros
devem viver com a máxima regalia possível no planeta Terra,
porque sabemos que muitos de nós não viveremos para ver o
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O GESTOR, O POLÍTICO E O LADR ÃO
novo mundo que criaremos. Por isso, investimos em uma vida
melhor enquanto estamos aqui, por isso cada segundo de vida
digna aos nossos nos é tão importante.
Eis uma das razões por que oramos juntos: “O pão nosso
de cada dia, dá-nos hoje...” Não como fazem os comuns que
pensam que o Cristo pedia a ração de cada dia, mas como os
evoluídos que sabem que ele pediu ao Pai para antecipar o pão
de todos os dias, para o dia de hoje.
Em três ou quatro anos você terá ganhado tanto dinheiro, que não conseguirá contar. Você se surpreenderá, ao ver o
quanto algumas poucas fraudes licitatórias que armamos em
órgãos públicos são capazes de render. Mas esses esquemas
não são os mais importantes.
A “Irmandade” tem projetos em andamento em quase
todos os países do mundo e são eles mesmos que suportam
nossas conquistas. É no nível de corrupção transnacional que
conseguimos fundos para nosso projeto maior que, em breve,
lhe será revelado, se você se juntar a nós.
Arrecadamos somas estratosféricas sacrificando um ou
outro interesse em países diferentes entre os que controlamos.
Ora realizamos projetos que parecem atender às necessidades
do povo, ora pendemos a balança para nossos interesses. Por
exemplo, sacrificamos o projeto do álcool combustível brasileiro, em prol dos interesses das grandes empresas automobilísticas
do Primeiro Mundo. Mas, para compensar essa perda, damos ao
Brasil uma vitória de Pirro contra os agricultores europeus, na
Organização Mundial do Comércio, e pronto. Com o boicote ao
programa brasileiro de combustível “limpo”, asseguramos o dinheiro do petróleo e sustentamos o sistema que continuará garantindo boa vida aos nossos descendentes e aos futuros eleitos.
Não pense, porém, que nosso convite a você é um ato
de benevolência. Há um propósito, uma missão para cada um
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JUDIVAN J. VIEIRA
dos que são escolhidos pela “Irmandade”. Você saberá qual a
sua missão no momento que ela decidir. Enquanto isso, sua
lealdade absoluta seguirá sendo testada. Se você falhar, não haverá perdão para você como não houve nem haverá para quem
falha. Você está lembrado do que aconteceu ao Eduardo?
Mike tremeu, ao ouvir o nome de Eduardo. Ele se lembrou da morte trágica do amigo que, na infância, brincava nas
entrequadras da Asa Sul, em Brasília. Até aquele momento, a
explosão de seu carro no autódromo da cidade parecia fruto
de simples falha mecânica.
Enquanto Mike se perdia em pensamentos e recordações, Matheus abriu discretamente a pasta e disse: – Olha o
presente que o deputado lhe mandou. Se você tiver a fim de
fazer negócio, pega o dinheiro. Se não quiser, esqueça o pouco
que ouviu.
– O que é isso, uma ameaça? Perguntou Mike.
– Não, é apenas uma oportunidade de negócios. Não vamos nos enganar. Você sabe que a corrupção está em todas as
esferas de governo deste país e do mundo. Sabe que não falta
esquema para fraudar a estúpida fé do povo que segue o caminho da ignorância, sem questionar a pobreza por nós mesmos
fabricada.
Quem você acha que esculpiu a política do pão e do circo? Foram os antepassados da “Irmandade”! Esses são alguns
dos ingredientes que nos mantêm no poder enquanto o povo
aplaude na arquibancada da vida.
A “Irmandade” controla as finanças de uma boa parte do mundo. Nós definimos, no setor público e privado, os
esquemas que em cada país será usado para financiar nossos
projetos e, mais recentemente, vimos trabalhando com o Terceiro Setor da Economia. A ideia de organizações sociais que
cuidam do planeta sensibiliza o povo e amolece corações. Essa
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nossa fórmula para tergiversar com a economia e a política
mundial, por si só, já merecia um Oscar.
Mike seguia assustado com tudo o que ouvia, com a loquacidade do amigo. Por mais que admirasse Matheus, jamais
havia sequer suspeitado que ele tivesse um envolvimento tão
profundo com o Poder. Uma vez mais dava razão ao ditado
popular “as aparências enganam”.
Matheus seguia com retórica impecável: – Nós fabricamos o conhecimento e noticiamos lentamente o que dele nos
interessa. Somos a voz da mídia e da religião. Somos a liberdade e a escravidão, o certo e o errado, o justo e o injusto, porque
sabemos que oferecendo, ou melhor, criando os dois lados e
oferecendo-os, sem que o povo saiba quem está por trás dos
acontecimentos, ele escolherá sempre o “lado bom”, e nós só
teremos de eliminar um suposto “lado ruim” que nós mesmos
criamos para justificar a primeira escolha.
Se você quer estabelecer uma diferença, seja ela qual for,
precisa ter ao menos dois elementos distintos. Por essa razão
trabalhamos com a ideia do bem e do mal, segundo os conceitos do homem comum, mediano. Isso não significa que tenhamos o controle absoluto, ainda não. Chegamos até a permitir
esquemas de corrupção paralela e, às vezes, perpetrados por
membros nossos, desde que não interfiram em nosso Interesse
Maior, porque, como disse antes, os nossos eleitos devem receber das benesses do planeta Terra, enquanto aqui estivermos.
– Até agora você não me explicou que Interesse Maior
é esse, atalhou Mike. O que pode ser maior que o interesse
democrático? O interesse que cada governante tem de desenvolver seu país e fazer dele um orgulho para seu povo? De criar
uma sociedade mais equilibrada, justa e solidária?
– Mike, Mike... Você sempre foi um sonhador, mas não
creio que saiba muito sobre Thomas More, um dos nossos me24
JUDIVAN J. VIEIRA
lhores. Foi por ele que o sonho de divulgar nossos planos aos
eleitos se materializou. Se o houvesse lido melhor, saberia que
as sementes que ele plantou não são para este Planeta.
Utopia é uma ideia e se traduz por uma civilização
ideal, imaginária, fantástica. Pode ser uma cidade ou um mundo, tanto no futuro, quanto no presente, porém em um mundo
paralelo. Foram os gregos que cunharam o vocábulo com o
significado de “lugar que não existe”.
Com base na ideia, Thomas More criou a palavra “utopia, que serviu de título a uma de suas obras escritas em latim
por volta de 1516, por haver ficado fascinado pelas narrações
extraordinárias de Américo Vespúcio sobre a recém-avistada
ilha de Fernando de Noronha, em 1503. Foi aí que Thomas decidiu escrever sobre um lugar novo e puro onde existiria uma
sociedade perfeita.
Utopismo, portanto, é idealizar não apenas um lugar,
mas uma vida, um futuro, ou qualquer outro tipo de coisa,
numa visão fantasiosa e normalmente contrária ao mundo
real. É um modo absurdamente otimista e irreal de ver as coisas do jeito que gostaríamos que elas fossem.
Em sua visão, Thomas More descreve uma sociedade
organizada racionalmente, por meio da narração dos feitos do
explorador Rafael Hytlodeo, para quem Utopia é uma comunidade que estabelece a propriedade comum dos bens. Nela a
cidade ou país não envia seus cidadãos à guerra, salvo em casos extremos. Para tal missão, contrata mercenários entre seus
vizinhos mais belicosos.
Na narração de Rafael, todos os cidadãos de sua “Ilha”
vivem em casas iguais, trabalham por períodos no campo, se
dedicam à leitura e à arte. Nessa organização social da Ilha,
não há diferenças e impera a paz, por conta da harmonia de
interesses. A fórmula para eliminação do conflito reside na
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O GESTOR, O POLÍTICO E O LADR ÃO
aniquilação das possibilidades de sua materialização, pois, se
você dá igualdade aos homens, não há por que um desejar o
que o outro possui e, onde não há inveja ou cobiça, não há
conflitos.
Na Utopia, por mais que os recursos sejam escassos, a
sociedade é perfeita por causa de sua organização e equitativa
distribuição dos recursos garantidores da paz social.
Aplausos para você, meu caro Mike. Falou Matheus, tocando com os dedos da mão direita na palma da mão esquerda. Conseguiu provar que fez os deveres de casa do último semestre de filosofia de sua faculdade. Se está mesmo antenado,
sabe que o pensamento utópico não morreu. Continuamos a
semeá-lo, ainda que a conta-gotas, de modo que sempre haverá alguns escritores renomados da “Irmandade” dispostos a
alimentar esse desejo humano. Mais recentemente temos defendido que as utopias modernas são essencialmente diferentes de suas predecessoras.
Para não gerar qualquer suspeita no homem comum,
também temos dito que os melhorees sistemas utópicos são os
modernos, as cronotopias ou protoutopias. As utopias anteriores preconizadas por Thomas More que não teriam atingido
seu objetivo seriam uma preparação para o melhor caminho
que desponta com as utopias modernas e se orientam para o
futuro. É aqui que nosso pensamento tem feito escola. Vimos,
há algum tempo, pregando a transformação radical da sociedade por meio de processos que revolucionem a vida do homem no planeta terra e fora dele.
– Você está sugerindo que as revoluções sociais dos dois
últimos séculos estão ligadas à “Irmandade”, com base no fato
de que as utopias têm derivações no pensamento político a
exemplo das correntes socialistas ligadas ao marxismo e anarquismo?
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– Não apenas isso, meu caro Mike. A verdaderia utopia
não passa só pela interpretação que você fez até agora. Nós
sabemos que a política comanda o mundo, mas a aversão que
os políticos criam nas pessoas nos leva a pensar que, se nos
restringíssemos somente à política, estaríamos decretando o
fim de algumas de nossas ideias utópicas.
– Você está insinuando que essa suposta “Irmandade”
que você diz existir expandiu a ideia de utopismo para outras
áreas do conhecimento?
– Não é isso que estou dizendo. Raciocine melhor. Eu
não disse que expandimos a ideia para outras áreas do conhecimento. O utopismo é uma de nossas melhores ferramentas
para alcançar nosso intento de colonizar outros mundos para
os eleitos, porque ele prepara, lentamente, a aceitação dessa
realidade que estamos criando. É utopismo para o hommo sapiens medius e realidade iminente para os eleitos.
O que eu estou dizendo é que, para seguirmos preparando os homens comuns para esse futuro próximo, que não
comporta a todos, é que nos utilizamos de campos do conhecimento humano que permitem atingir um número expressivo
de pessoas que possam ser convencidas de nossas ideias, mesmo que seja por mensagens subliminares, como ocorre com o
campo cinematográfico, por exemplo.
Cada época deixa seu rastro. Outrora nos utilizávamos
muito do campo literário, mas ele, apesar de frondoso e de
produzir frutos aos milhares, não tem muitos adeptos. São
pouquíssimas as pessoas que têm prazer na leitura. Isso nos levou a buscar novos instrumentos como o cinema, a TV e a Internet como aliados eficazes para o convencimento das ideias
que defendemos.
A “Irmandade” não perde tempo lamentando por pequenos fracassos, por tentativas frustradas. Não nos importa
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questionar o modus vivendis do homem comum. Afinal, se ele
se tornasse leitor ávido, pesquisador, questionador, ele não seria o homem comum que é. Isso, inclusive, poderia atrapalhar
nossos planos. Assim, manipulamos a história com os fatos
que o homem comum necessita, para fazer dele o meio pelo
qual atingiremos nossos fins.
Mike sentia a paixão com a qual Matheus defendia as
ideias da “Irmandade”. Seus olhos fitavam um futuro que, para
Mike, parecia distante, mas para ele parecia estar tão perto
quanto os dois se encontravam naquele restaurante.
Mike interveio em meio à eloquente explicação de seu
amigo, para quem a ideia utópica vinha sendo semeada há
séculos e, com certo temor de colocar em xeque tanto fervor,
disse: – Você está insinuando que as ideias utópicas econômicas, políticas, históricas, ecologistas e religiosas são sementes
plantadas pelos eleitos?
– Eu não estou insinuando. Estou revelando. Espero que
entenda o privilégio que o abraçou neste momento de sua vida.
A maioria das ideias utópicas econômicas surgiram no
século XIX com a divisão social advinda com o capitalismo. As
utopias socialistas e comunistas se centraram na distribuição
equitativa dos bens com a luta pela abolição total da força do
dinheiro, do capital. Na utopia econômica, os cidadãos fazem
o trabalho que realmente gostam e têm tempo livre para desfrutar as artes e as ciências.
– Rapaz, disse Mike, com misto de espanto e prazer. Eu
li essas ideias em dois clássicos da utopia socialista, o livro
Looking Backward, de Edward Bellamy, e News from Nowhere, de William Morris, este último foi traduzido em português
como: “Notícias de lugar nenhum”.
O elo que une ambos é que anarquistas e comunistas
acreditam que a sociedade que surgiria após o fim do capitalis28
JUDIVAN J. VIEIRA
mo seria uma livre associação de indivíduos em que o Estado
e a propriedade privada seriam abolidos. Anarquistas como
Bakunin e marxistas divergem apenas quanto ao meio de instaurar essa sociedade. Entretanto, à medida que o socialismo
se desenvolvia, foi se afastando das ideias utópicas, o que, até
certo ponto, tinha de acontecer, porque, ao conquistar novos
territórios, tinha de provar o que teorizava.
Diferentemente, as utopias capitalistas têm como fundamento a propriedade e a livre empresa, em uma sociedade em
que todos os habitantes tenham acesso à atividade produtiva e
alguns ao governo... Faz sentido, pensou Mike... governar nunca foi e nunca será para todos.
– Confesso não me surpreender que você tenha argumentos para sustentar uma discussão como a que travamos.
Sua curiosidade em tantos campos do saber chamou a atenção
da “Irmandade”. Você é meio das antigas. Não bestializou sem
conhecimento com a ideia de saber uma coisa só, disse Matheus.
Por isso, não preciso fazer rodeios para lhe dizer que
a utopia ecologista... nesse momento, Mike toma a palavra e
diz:
– Baseia-se no livro Ecotopia, no qual a Califórnia e parte dos estados da costa Oeste se têm secessionado dos Estados
Unidos, formando uma nova espécie de “Estado ecologista”,
perguntou Mike, atalhando seu interlocutor. Por isso, recentemente a Califórnia divergiu do governo central americano e assinou o Protocolo de Kioto? Não me diga que Arnold
Schwarzenegger...
– Passa por aí, disse Matheus. A construção dessa ideia
vem sendo possível graças à ideia precursora da Utopia política e histórica ou histórica e política. As duas, de tão antigas
se confundem. Na utopia política, o governo estabelece uma
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sociedade e faz com que ela caminhe em busca da perfeição.
Os principais instrumentos para esse “porvir perfeito” são as
leis que regem o todo, sem negar um pouco de individualismo
dentro dos regimes, para que o homem não se descubra escravizado pela própria democracia.
Aquelas palavras deixaram Mike pensativo e se estabeleceu a primeira pausa na conversa, o primeiro silêncio entre
eles, de modo que ambos tomaram suas taças e as levaram à
boca, ouvindo as pequenas ondas do Paranoá quebrarem contra a estrutura metálica flutuante do bar.
– É, veja você. Disse Mike, olhando por entre a taça e o
vinho: a utopia religiosa também segue esse caminho. Quem
não leu na Bíblia sobre a “Cidade Santa”, com ruas de ouro e
de cristal, ou sobre a paz final, duradoura e eterna, prometida
por Cristo quando ele aniquilar a morte? E o paraíso prometido pelo Islã? Seus pensamentos seguiram navegando no silêncio...
– Preciso ir. Quanto à oferta de Porto Rico, é pegar ou
largar.
Notei certa impaciência no semblante de Matheus e lhe
disse que precisava pensar. Afinal, seria uma decisão que mudaria o resto de minha vida.
– Você tem até amanhã à noite para nos dar resposta. Se
disser que sim, sua indicação para diretor-presidente de uma
Estatal ou de uma Autarquia será publicada no Diário Oficial,
já na semana que vem. Você começará gerindo esquemas menores, mas muito rentáveis, como é o caso de licitações e contratos públicos.
Dentro da “Irmandade” alguns iniciados começam com
licitações municipais, passam pelas estaduais e se interligam
com as de âmbito nacional, até adquirirem conhecimento e a
confiança necessária para gerenciar esquemas maiores e até
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