40 Poemas … 40 Anos

Transcrição

40 Poemas … 40 Anos
40 Poemas … 40 Anos
Retalhos de um País
Esta Gente
Esta gente cujo rosto
ás vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
De um tempo justo
Sophia de Mello Breyner
Andresen
Sim é o Estado Novo e o povo
Sim, é o Estado Novo, e o povo
Ouviu, leu e assentiu.
Sim, isto é um Estado Novo
Pois é um estado de coisas
Que nunca antes se viu.
Em tudo paira a alegria
E, de tão íntima que é,
Como Deus na Teologia
Ela existe em toda a parte
E em parte alguma se vê.
Há estradas, e a grande Estrada
Que a tradição ao porvir
Liga, branca e orçamentada,
E vai de onde ninguém parte
Para onde ninguém quer ir.
Há portos, e o porto-maca
Onde vem doente o cais,
Sim, mas nunca ali atraca
O Paquete Portugal
Pois tem calado de mais.
Há esquadra… Só um tolo o cala
Que a inteligência, propícia
A achar, sabe que, se fala,
Desde logo encontra a esquadra:
É uma esquadra de polícia.
Visão grande! Ódio à minúscula!
Nem para prová-la tal
Tem alguém que ficar triste:
União Nacional existe
Mas não união nacional,
E o Império? Vasto caminho
Onde os que o poder despeja
Conduzirão com carinho
A civilização cristã,
Que ninguém sabe o que seja.
Com directrizes à arte.
Reata-se a tradição,
E juntam-se Apolo e Marte
No Teatro Nacional
Que é, onde era a Inquisição.
E a fé dos nossos maiores?
Forma-a impoluta o consórcio
Entre os padres e os doutores.
Casados o Erro e a Fraude
Já não pode haver divórcio.
Que a fé seja sempre viva.
Porque a esperança não é vã!
A fome corporativa
E derrotismo. Alegria!
Hoje o almoço é amanhã.
Fernando Pessoa
Poema sobre Salazar
António de Oliveira Salazar
Três nomes em sequência regular…
António é António.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem
Este senhor Salazar
E feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve o sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…
………………………
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.
Mas enfim é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café
Fernando Pessoa
Port-wine
O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova-York e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bares.
O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.
Nas sobremesas finas, as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.
As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos dos cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlino
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.
Em Londres os lords e em Paris os snobs,
no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino,
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.
O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! – ou morre.
Joaquim Namorado
País de azulejos partidos
de erva trepando entre paredes em ruína
País entregue à sua sina
sem olhos e sem ouvidos
País voraz ruminando o almoço
rindo ou chorando incapaz de sorrir
País de corpo aberto a quem está a
seguir
País do rastejar entre a pele e o osso
Pulinhos para trás e para a frente
de polegar na cava do colete
foguetes procissões uns copos de
palhete
país da pequenez de si mesma contente
País indiferente aos que dão por ele a
vida
País herói se não há perigo em sê-lo
País de velhos do Restelo
dado à mão-baixa perto e consentida
País que tudo quer e nada quer tudo
suporta
País do faz como vires fazer
País do quero lá saber
do quem vier depois que feche a porta
Mário Dionísio
EMIGRAÇÃO
“ Vão-se os homens desta terra…”
Balada do país que dói
O barco vai
o barco vem
português vai
português vem
o corpo cai
o corpo dói
português vai
português cai
o barco vai
o barco vem
português vai
português vem
o país cai
o país dói
o tempo vai
o tempo dói
português cai
português vai
português sai
português dói
ANA HATHERLY
VAI-SE O CANTO VÃO-SE AS ARMAS
Não sei se as pedras andam.
Mas o meu país é pedra
e anda. Desloca-se. Foge.
Pula ribeiros nas pernas
do povo. Salta fronteiras
nas minhas pernas. Rasteja.
Nada. Esconde-se. Atravessa
montanhas. Desaparece.
Disfarça-se. O meu país
deixou de ser país. É
qualquer coisa que caminha.
Que se procura. Saudade
de ser Pátria. País em
movimento. País sem
chão. Assim cortado
pela raiz. O meu país
é feito de dois países:
um é dono o outro não.
Fica o dono e vai-se o outro.
O que se fica tem tudo
o que se vai nada tem:
nem terra para ficar
nem licença para ir.
O meu país não é dono.
Não tem licença de nada.
Pais clandestino. Pedra
ambulante. Chão que sangra.
Que caminha. Pula
ribeiros. Corre. Derrama-se.
E vai-se com ele a força
a guitarra a pena a foice.
Vai-se o canto. Vão-se as armas.
Manuel Alegre
Solitário
por entre a gente eu vi o meu país.
Era um perfil
de sal
e abril.
Era um puro país azul e proletário.
Anónimo passava. E era Portugal
que passava por entre a gente e solitário
nas ruas de Paris.
Vi minha pátria derramada
na Gare de Austerlitz. Eram cestos
e cestos pelo chão. Pedaços
do meu país.
Restos.
Braços.
Minha pátria sem nada
despejada nas ruas de Paris.
E o trigo?
E o mar?
Foi a terra que não te quiz
ou alguém que roubou as flores de abril?
Solitário por entre a gente caminhei contigo
os olhos longe como o trigo e o mar.
Éramos cem duzentos mil?
E caminhávamos. Braços e mãos para alugar
meu Portugal nas ruas de Paris.
Manuel Alegre
No meu país há uma palavra proibida
No meu país há uma palavra proibida
Mil vezes a prenderam mil vezes cresceu.
E pulsa em nós como o pulsar da própria vida
sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu
no meu país há uma palavra proibida.
No meu país há uma palavra que se diz
com a mesma ternura da palavra irmã.
Palavra quente como o sol do meu país
palavra clara como é cada manhã
apesar da tristeza lá no meu país.
No meu país há uma palavra que se escreve
sobre os muros à pressa pela noite dentro.
Uma palavra assim nenhuma língua a teve
tão ausência-presença tão feita de vento
tão impossível de apagá-la onde se escreve.
No meu país há uma palavra onde se guarda
tudo o que se não teve tudo o que não foi.
Por ela a humilhação fabrica uma espingarda
e há um tempo de luta no tempo que dói
nessa palavra que nos guia que nos guarda.
Palavra que murmura nos verdes pinheiros
o recado que o mar vem escrever nas areias.
Se já em nós morreram velhos marinheiros
há uma palavra que semeia em nossas veias
um país que murmura nos verdes pinheiros.
No meu país em cada homem há uma palavra
que rasga as trevas e as prisões: palavra-chave
capaz de transformar em asa a mão que lavra.
E é inútil prenderem-na que é luz e ave
no meu país em cada homem essa palavra.
Palavra feita de montanhas praias vento.
De verde pinho e mar azul. De sol. De sal.
Não vale a pena proibirem o pensamento.
Há uma palavra clandestina em Portugal
que se escreve com todas as harpas do vento.
Manuel Alegre
Não há machado que corte
a raíz ao pensamento
não há morte para o vento
não há morte
Se ao morrer o coração
morresse a luz que lhe é querida
sem razão seria a vida
sem razão
Nada apaga a luz que vive
num amor num pensamento
porque é livre como o vento
porque é livre
Carlos de Oliveira
Epígrafe para a arte de roubar
Roubam-me Deus
Outros o diabo
Quem cantarei
Roubam-me a Pátria
e a humanidade
outros ma roubam
Quem cantarei
Sempre há quem roube
Quem eu deseje
E de mim mesmo
Todos me roubam
Quem cantarei
Quem cantarei
Roubam-me a Pátria
e a humanidade
outros ma roubam
Quem cantarei
Roubam-me a voz
quando me calo
ou o silêncio
mesmo se falo
Aqui d'El Rei.
Jorge de Sena
Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Jorge de Sena (1956)
GUERRA COLONIAL
“Diz, oh mar, à minha mãe,/que matar não me apraz/ no fundo quem vai à guerra/é aquele que a não faz.” Luís Cília
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA
Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
Para ver como é,
Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas
minhocas
Despertas;
Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
Órfãos de pais e mães,
Andarem acossados pelas ruas
Como matilhas de cães;
Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
Num silêncio de espanto
Rasgado pelo grito da sereia estridente;
Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
Amassando na mesma lama de extermínio
Os ossos dos homens e as traves das suas casas;
Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA
António Gedeão
Hora H
A Primavera cheira a laranjas.
(Há umas granadas de mão, redondas e pequenas, a que
chamam laranjas.)
O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios.
(Dizem que as noites de luar são as melhores para
bombardeamentos aéreos.)
António Gedeão
Metralhadoras cantam
Acenderam-se as armas pela noite dentro.
Quem rebenta? Quem morre? Quem vive? Quem berra?
Há um vento de lamentos nos lamentos do vento...
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cantam granadas a canção da morte.
E há uma rosa de sangue à flor da terra.
Morrer ou não morrer é uma questão de sorte.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cantam bazucas e morteiros e estilhaços...
Cantam esta canção do aço que não erra
no espaço do seu fogo o espaço entre dois braços.
Cantam metralhadoras a canção da guerra.
Há um tiro que parte. Há um corpo que tomba.
Nesta boca fechada há um morto que berra.
Quem estoira no meu peito: O coração? Uma bomba?
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Todo o tempo é uma batalha. Ataque. Fuga.
Fuga. Ataque. Silêncio. Um silêncio que aterra.
Que marca o rosto com seu peso ruga a ruga.
Um silêncio que canta na canção da guerra.
Mina. Emboscada. Pó. Pólvora. Sangue. Fogo!
Acerta não acerta? Erra não erra?
Perdeu todo o sentido dizer-se até logo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cada segundo pode ser o último segundo.
Como enterrar os mortos que a memória desenterra?
Há um poço tão fundo tão fundo tão fundo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Há um soldado que grita eu não quero morrer.
E o sangue corre gota a gota sobre a terra.
Vai morrer a gritar eu não quero morrer.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Houve um que se deitou e disse: Até amanhã.
Mas amanhã é o dia em que se enterra
O soldado que disse: Até amanhã.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
E um jipe corre pela noite dentro.
Avança não avança? Emperra não emperra?
Passam balas de chumbo nas balas do vento.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
E há duzentos quilómetros de morte
em duzentos quilómetros de terra.
Neste caminho de Luanda para o Norte
metralhadoras cantam a canção da guerra.
Manuel Alegre
Notícias do Bloqueio
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam
ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que
sofremos
nos dias que embranquecem os
cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos
teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das
muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu
disse
entre dois bombardeamentos já
esperados.
Mas diz-lhes que se mantém
indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e
puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres
escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se
Egito Gonçalves
Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
Reinaldo Ferreira
EDUCAÇÃO E TRANSMISSÃO DA IDEOLOGIA
EDUCAÇÃO CÍVICA
Faz-se de tudo
o abano da anca
o olho sorridente
o rebolado
perante o presidente
da república
faz-se o bailado
e a pirueta
para agradar
e arejar o presidente
do conselho
lubricamente
mostra-se o joelho
aos ministros todos
lança-se
simpatia a rodos
aos generais
e aos marechais
também aos furriéis
se for preciso
afinal
o que é preciso
é ter juízo
faz-se de tudo
sempre a abanar
a anca
Mário-Henrique Leiria
Caridade
As senhoras da sociedade
deram um baile a rigor
para vestir a pobreza
e a pobreza horas a fio
cortou, coseu, enfeitou
os vestidos deslumbrantes
que a caridade exibiu.
Depois das contas bem feitas
bem tiradas as despesas
arranjou um namorado
a mais nova das Fonsecas;
esteve bem a viscondessa,
veio o nome e o retrato
da comissão nos jornais,
e o Doutor, o Menezes,
o senhor desembargador,
estiveram muito engraçados,
dançaram o tiro-liro
já meio-tombados...
Parece que ainda sobrou
algum dinheiro para chita
para vestir a pobreza
numa festa comovente
com discursos de homenagem
e uma missa...
a que assistiu toda a gente.
Joaquim Namorado
Pastelaria
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tantas maneiras de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é por ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.
Mário Cesariny
Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte
Natália Correia
Torah
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de
cima, acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível
a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro.
A primeira, se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço.
Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os
que estavam à espera:
-- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida.
Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso
patriótico.
Depois disso, é o que se vê.
Mário Henrique Leiria
O MEDO
O Poema Pouco Original do Medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
Intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
Alexandre O'Neill
Variações sobre "O poema pouco original
do medo" de Alexandre O´Neill
Os ratos invadiram a cidade
povoaram as casas os ratos roeram
o coração das gentes.
Cada homem traz um rato na alma.
Na rua os ratos roeram a vida.
É proibido não ser rato.
Canto na toca. E sou um homem.
Os ratos não tiveram tempo de roer-me
os ratos não podem roer um homem
que grita não aos ratos.
Encho a toca de sol.
(Cá fora os ratos roeram o sol).
Encho a toca de luar.
(Cá fora os ratos roeram a lua).
Encho a toca de amor.
(Cá fora os ratos roeram o amor).
Na toca que já foi dos ratos cantam
os homens que não chiam. E cantando
a toca enche-se de sol.
(o pouco sol que os ratos não roeram).
Manuel Alegre, in " Praça da Canção ", 1965
A morte
Saiu à rua
Num dia assim
Naquele
Lugar sem nome
P'ra qualquer fim
Uma
Gota rubra sobre a calçada
Cai
E um rio
De sangue
Dum
Peito aberto
Sai
O vento
Que dá nas canas
Do canavial
E a foice
Duma ceifeira
De Portugal
Só olho
Por olho e
Dente por dente
Vale
E o som
Da bigorna
Como
Um clarim do céu
À lei assassina
À morte
Que te matou
Vão dizendo
em toda a parte
O pintor morreu
Teu corpo
Pertence à terra
Que te abraçou
Teu sangue,
Pintor, reclama
Outra morte
Igual
Aqui
Te afirmamos
Dente por dente
Assim
Que um dia
Rirá melhor
Quem rirá
Por fim
Na curva
Da estrada
Há covas
Feitas no chão
E em todas
Florirão rosas
Duma nação
Manuel Alegre
À memória do pintor José Dias
Coelho assassinado pela PIDE
Era de noite e levaram
Era de noite e levaram
Quem nesta cama dormia
Nela dormia, nela dormia
Sua boca amordaçaram
Sua boca amordaçaram
Com panos de seda fria
De seda fria, de seda fria
Era de noite e roubaram
Era de noite e roubaram
O que na casa havia
na casa havia, na casa havia
Só corpos negros ficaram
Só corpos negros ficaram
Dentro da casa vazia
casa vazia, casa vazia
Rosa branca, rosa fria
Rosa branca, rosa fria
Na boca da madrugada
Da madrugada, da
madrugada
Hei-de plantar-te um dia
Hei-de plantar-te um dia
Sobre o meu peito queimada
Na madrugada, na
madrugada
José Afonso
Contracanto
Aqui longe do sol que mais farei
Senão cantar o bafo que me aquece?
Como um prazer cansado que adormece
Ou preso conformado com a lei
Mas neste débil canto há outra voz
Que tenta libertar-se da surdina
Como rosa-cristal em funda mina
Ou promessa de pão que vem das mós
Outro sol mais aberto me dará
Aos acentos do canto outra harmonia
E na sombra direi que se anuncia
A toalha de luz por onde vá.
José Saramago
Tarrafal
O Viajante Clandestino
Este é o local, o dia, o mês, a hora.
O jornal ilustrado aberto em vão.
No flanco esquerdo, o medo é uma espora
fincada, firme, imperiosa. Não
espero mais. Porquê esta demora?
Porquê temores, suores? Que vultos são
aqueles, além? Quem vive ali? Quem mora
nesta casa sombria? Onde estão
os olhos que espiavam ainda agora?
O medo, a espora, o ansiado coração,
a noite, a longa noite sedutora,
o conchego do amor, a tua mão...
Era o local, o dia, o mês, a hora.
Cerraram sobre ti os muros da prisão.
Daniel Filipe
Não fora o grito a faca
de súbito rasgando
a fronteira possível
Não fora o rosto o riso
a serena postura
de cadáver na praia
Não fora a flor a pétala
recortada em vermelho
o longínquo pregão
o retrato esquecido
o aroma da pólvora
a grade na janela
Não fora o cais a posse
do nocturno segredo
a víbora o polícia
o tiro o passaporte
a carta de Paris
a saudade da amante
Não fora o dente agudo
de nenhum crocodilo
Não fora o mar tão perto
Não fora haver traição
Daniel Filipe
A UMA BICICLETA
DESENHADA NA CELA
Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.
Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...
Bem haja a mão que te
criou!
Olhos montados no teu
selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.
Luís Veiga Leitão
MORTE NO INTERROGATÓRIO
Às três da madrugada eu dormia sem sonhos.
Minha mulher dormia a meu lado. Eu tinha
Uma das mãos pousada sobre a sua coxa.
Uma lua de outono brilhava sobre as ruas;
Um ar agreste preparava as noites para o
inverno.
Às três da madrugada os companheiros
Dormiam quase todos. Um deles, porém,
Regressava, fatigado, de um trabalho
nocturno.
Era a hora dos fogos fátuos sobre as campas,
A hora em que os exilados buscam o sono em
comprimidos.
Às três da madrugada sua mulher ainda
velava.
Embrulhada num xaile tinha um livro entre
mãos;
Insone, acendera a luz havia meia hora.
Na sala o interrogatório atravessava o tempo;
Lâmpadas de mil vátios tornavam a vida
irrespirável.
Às três da madrugada o coração fraquejou
E os dois comissários ficaram perante um
homem morto
E dois cinzeiros com trinta pontas de cigarros.
Egito Gonçalves
“Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão/ há sempre alguém que resiste/ há sempre alguém que diz NÃO.”
Manuel Alegre
«Trova do Vento que Passa»
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Manuel Alegre
25 de ABRIL de 1974
(…) Ora
passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
(…)
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer(…)
Ary dos Santos
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.
Sophia de Mello Breyner Andresen
PORTUGAL, CRAVO VERMELHO
Em vinte e cinco de Abril,
em Portugal, de repente,
no ermo da madrugada,
floriram cravos vermelhos.
Já quarenta e oito anos
a treva nos tinha cegos,
quando da treva rasgada
floriram cravos vermelhos.
Veio a manhã que tardava.
Estava a longa noite finda.
Num rumor de asas de pombas,
floriram cravos vermelhos.
Desde os peitos dos soldados
aos peitos dos marinheiros,
nas próprias metralhadoras,
floriram cravos vermelhos.
Mal rompeu o dia novo,
logo por ruas e praças,
das cidades às aldeias,
floriram cravos vermelhos.
Quer nas mãos dos operários,
quer nas mãos dos camponeses,
no tempo de um pensamento,
floriram cravos vermelhos.
Nos olhos baços dos velhos,
na gralhada das crianças,
no enlevo das mulheres,
floriram cravos vermelhos.
Nas páginas dos escritores,
na atenção dos estudantes,
nas comoções da razão,
floriram cravos vermelhos
Era um povo renascido
da morte em que estava morto,
em cujos gestos e gritos
floriram cravos vermelhos.
No sol, na lua, no vento,
nas searas, nos montados,
nos olivais, nas charnecas,
floriram cravos vermelhos.
Na voz das fontes e rios,
nas ondas do mar amigo,
nas penedias dos montes,
floriram cravos vermelhos.
No pão, no vinho, nos frutos,
de sangue e suor nutridos,
mais na fome e sede deles,
floriram cravos vermelhos.
No azul do céu profundo,
no branco leve das nuvens,
no canto alegre das aves,
floriram cravos vermelhos.
Na sombra vil das prisões
abertas de par em par,
dos irmãos delas libertos,
floriram cravos vermelhos.
Mas no Primeiro de Maio,
foi que, em todo Portugal,
Portugal todo floriu
num mesmo cravo vermelho.
Armindo Rodrigues
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste pais,
e conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essa paz de cemitério
toda prisão ou censura,
e o poder feito galdério.
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.
Qual a cor da liberdade?
É verde. verde e vermelha.
Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por politica demente.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.
Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Jorge de Sena
Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.
Qual a cor da liberdade?
E verde, verde e vermelha.
Cantiga de Maio
Da prisão negra em que estavas
a porta abriu-se p´ra rua.
Já sem algemas escravas,
igual à cor que sonhavas,
vais vestida de estar nua.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Na rua passas cantando,
e o povo canta contigo.
Por onde tu vais passando
mais gente se vai juntando,
porque o povo é teu amigo.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Entre o povo que te aclama,
contente de poder ver-te,
há gente que por ti chama
para arrastar-te na lama
em que outros irão prender-te.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Muitos correndo apressados
querem ter-te só p´ra si;
e gritam tão de esganados
só por tachos cobiçados,
e não por amor de ti.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Na sombra dos seus salões
de mandar em companhias,
poderosos figurões
afiam já os facões
com que matar alegrias.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
E além do mar oceano
o maligno grão poder
já se apresta p´ra teu dano,
todo violência e engano,
para deitar-te a perder.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Com desordens, falsidades,
economia desfeita;
com calculada maldade,
Promessas de felicidade
e a miséria mais estreita.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Que muito povo se assuste,
julgando que és tu culpada,
eis o terrível embuste
por qualquer preço que custe
com que te armam a cilada.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Tens de saber que o inimigo
quer matar-te à falsa fé.
Ah tem cuidado contigo;
quem te respeita é um amigo,
quem não respeita não é.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
4/6/74
Jorge de Sena
Abril de Sim Abril de Não
Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.
Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.
Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.
Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.
Manuel Alegre

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