40 Poemas … 40 Anos
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40 Poemas … 40 Anos
40 Poemas … 40 Anos Retalhos de um País Esta Gente Esta gente cujo rosto ás vezes luminoso E outras vezes tosco Ora me lembra escravos Ora me lembra reis Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abutre e a cobra O porco e o milhafre Pois gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome E em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada Meu canto se renova E recomeço a busca De um país liberto De uma vida limpa De um tempo justo Sophia de Mello Breyner Andresen Sim é o Estado Novo e o povo Sim, é o Estado Novo, e o povo Ouviu, leu e assentiu. Sim, isto é um Estado Novo Pois é um estado de coisas Que nunca antes se viu. Em tudo paira a alegria E, de tão íntima que é, Como Deus na Teologia Ela existe em toda a parte E em parte alguma se vê. Há estradas, e a grande Estrada Que a tradição ao porvir Liga, branca e orçamentada, E vai de onde ninguém parte Para onde ninguém quer ir. Há portos, e o porto-maca Onde vem doente o cais, Sim, mas nunca ali atraca O Paquete Portugal Pois tem calado de mais. Há esquadra… Só um tolo o cala Que a inteligência, propícia A achar, sabe que, se fala, Desde logo encontra a esquadra: É uma esquadra de polícia. Visão grande! Ódio à minúscula! Nem para prová-la tal Tem alguém que ficar triste: União Nacional existe Mas não união nacional, E o Império? Vasto caminho Onde os que o poder despeja Conduzirão com carinho A civilização cristã, Que ninguém sabe o que seja. Com directrizes à arte. Reata-se a tradição, E juntam-se Apolo e Marte No Teatro Nacional Que é, onde era a Inquisição. E a fé dos nossos maiores? Forma-a impoluta o consórcio Entre os padres e os doutores. Casados o Erro e a Fraude Já não pode haver divórcio. Que a fé seja sempre viva. Porque a esperança não é vã! A fome corporativa E derrotismo. Alegria! Hoje o almoço é amanhã. Fernando Pessoa Poema sobre Salazar António de Oliveira Salazar Três nomes em sequência regular… António é António. Oliveira é uma árvore. Salazar é só apelido. Até aí está bem. O que não faz sentido É o sentido que tudo isto tem Este senhor Salazar E feito de sal e azar. Se um dia chove, A água dissolve o sal, E sob o céu Fica só azar, é natural. Oh, c’os diabos! Parece que já choveu… ……………………… Coitadinho Do tiraninho! Não bebe vinho. Nem sequer sozinho… Bebe a verdade E a liberdade. E com tal agrado Que já começam A escassear no mercado. Coitadinho Do tiraninho! O meu vizinho Está na Guiné E o meu padrinho No Limoeiro Aqui ao pé. Mas ninguém sabe porquê. Mas enfim é Certo e certeiro Que isto consola E nos dá fé: Que o coitadinho Do tiraninho Não bebe vinho, Nem até Café Fernando Pessoa Port-wine O Douro é um rio de vinho que tem a foz em Liverpool e em Londres e em Nova-York e no Rio e em Buenos Aires: quando chega ao mar vai nos navios, cria seus lodos em garrafeiras velhas, desemboca nos clubes e nos bares. O Douro é um rio de barcos onde remam os barqueiros suas desgraças, primeiro se afundam em terra as suas vidas que no rio se afundam as barcaças. Nas sobremesas finas, as garrafas assemelham cristais cheios de rubis, em Cape-Town, em Sidney, em Paris, tem um sabor generoso e fino o sangue que dos cais exportamos em barris. As margens do Douro são penedos fecundados de sangue e amarguras onde cava o meu povo as vinhas como quem abre as próprias sepulturas: nos entrepostos dos cais, em armazéns, comerciantes trocam por esterlino o vinho que é o sangue dos seus corpos, moeda pobre que são os seus destinos. Em Londres os lords e em Paris os snobs, no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos acham no Porto um sabor divino, mas a nós só nos sabe, só nos sabe, à tristeza infinita de um destino. O rio Douro é um rio de sangue, por onde o sangue do meu povo corre. Meu povo, liberta-te, liberta-te!, Liberta-te, meu povo! – ou morre. Joaquim Namorado País de azulejos partidos de erva trepando entre paredes em ruína País entregue à sua sina sem olhos e sem ouvidos País voraz ruminando o almoço rindo ou chorando incapaz de sorrir País de corpo aberto a quem está a seguir País do rastejar entre a pele e o osso Pulinhos para trás e para a frente de polegar na cava do colete foguetes procissões uns copos de palhete país da pequenez de si mesma contente País indiferente aos que dão por ele a vida País herói se não há perigo em sê-lo País de velhos do Restelo dado à mão-baixa perto e consentida País que tudo quer e nada quer tudo suporta País do faz como vires fazer País do quero lá saber do quem vier depois que feche a porta Mário Dionísio EMIGRAÇÃO “ Vão-se os homens desta terra…” Balada do país que dói O barco vai o barco vem português vai português vem o corpo cai o corpo dói português vai português cai o barco vai o barco vem português vai português vem o país cai o país dói o tempo vai o tempo dói português cai português vai português sai português dói ANA HATHERLY VAI-SE O CANTO VÃO-SE AS ARMAS Não sei se as pedras andam. Mas o meu país é pedra e anda. Desloca-se. Foge. Pula ribeiros nas pernas do povo. Salta fronteiras nas minhas pernas. Rasteja. Nada. Esconde-se. Atravessa montanhas. Desaparece. Disfarça-se. O meu país deixou de ser país. É qualquer coisa que caminha. Que se procura. Saudade de ser Pátria. País em movimento. País sem chão. Assim cortado pela raiz. O meu país é feito de dois países: um é dono o outro não. Fica o dono e vai-se o outro. O que se fica tem tudo o que se vai nada tem: nem terra para ficar nem licença para ir. O meu país não é dono. Não tem licença de nada. Pais clandestino. Pedra ambulante. Chão que sangra. Que caminha. Pula ribeiros. Corre. Derrama-se. E vai-se com ele a força a guitarra a pena a foice. Vai-se o canto. Vão-se as armas. Manuel Alegre Solitário por entre a gente eu vi o meu país. Era um perfil de sal e abril. Era um puro país azul e proletário. Anónimo passava. E era Portugal que passava por entre a gente e solitário nas ruas de Paris. Vi minha pátria derramada na Gare de Austerlitz. Eram cestos e cestos pelo chão. Pedaços do meu país. Restos. Braços. Minha pátria sem nada despejada nas ruas de Paris. E o trigo? E o mar? Foi a terra que não te quiz ou alguém que roubou as flores de abril? Solitário por entre a gente caminhei contigo os olhos longe como o trigo e o mar. Éramos cem duzentos mil? E caminhávamos. Braços e mãos para alugar meu Portugal nas ruas de Paris. Manuel Alegre No meu país há uma palavra proibida No meu país há uma palavra proibida Mil vezes a prenderam mil vezes cresceu. E pulsa em nós como o pulsar da própria vida sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu no meu país há uma palavra proibida. No meu país há uma palavra que se diz com a mesma ternura da palavra irmã. Palavra quente como o sol do meu país palavra clara como é cada manhã apesar da tristeza lá no meu país. No meu país há uma palavra que se escreve sobre os muros à pressa pela noite dentro. Uma palavra assim nenhuma língua a teve tão ausência-presença tão feita de vento tão impossível de apagá-la onde se escreve. No meu país há uma palavra onde se guarda tudo o que se não teve tudo o que não foi. Por ela a humilhação fabrica uma espingarda e há um tempo de luta no tempo que dói nessa palavra que nos guia que nos guarda. Palavra que murmura nos verdes pinheiros o recado que o mar vem escrever nas areias. Se já em nós morreram velhos marinheiros há uma palavra que semeia em nossas veias um país que murmura nos verdes pinheiros. No meu país em cada homem há uma palavra que rasga as trevas e as prisões: palavra-chave capaz de transformar em asa a mão que lavra. E é inútil prenderem-na que é luz e ave no meu país em cada homem essa palavra. Palavra feita de montanhas praias vento. De verde pinho e mar azul. De sol. De sal. Não vale a pena proibirem o pensamento. Há uma palavra clandestina em Portugal que se escreve com todas as harpas do vento. Manuel Alegre Não há machado que corte a raíz ao pensamento não há morte para o vento não há morte Se ao morrer o coração morresse a luz que lhe é querida sem razão seria a vida sem razão Nada apaga a luz que vive num amor num pensamento porque é livre como o vento porque é livre Carlos de Oliveira Epígrafe para a arte de roubar Roubam-me Deus Outros o diabo Quem cantarei Roubam-me a Pátria e a humanidade outros ma roubam Quem cantarei Sempre há quem roube Quem eu deseje E de mim mesmo Todos me roubam Quem cantarei Quem cantarei Roubam-me a Pátria e a humanidade outros ma roubam Quem cantarei Roubam-me a voz quando me calo ou o silêncio mesmo se falo Aqui d'El Rei. Jorge de Sena Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade. Eu não posso senão ser desta terra em que nasci. Embora ao mundo pertença e sempre a verdade vença, qual será ser livre aqui, não hei-de morrer sem saber. Trocaram tudo em maldade, é quase um crime viver. Mas, embora escondam tudo me queiram cego e mudo, não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade. Jorge de Sena (1956) GUERRA COLONIAL “Diz, oh mar, à minha mãe,/que matar não me apraz/ no fundo quem vai à guerra/é aquele que a não faz.” Luís Cília ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé Para ver como é, Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas Despertas; Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas, Órfãos de pais e mães, Andarem acossados pelas ruas Como matilhas de cães; Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente, Num silêncio de espanto Rasgado pelo grito da sereia estridente; Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas Amassando na mesma lama de extermínio Os ossos dos homens e as traves das suas casas; Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade, Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia, O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade: ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA António Gedeão Hora H A Primavera cheira a laranjas. (Há umas granadas de mão, redondas e pequenas, a que chamam laranjas.) O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios. (Dizem que as noites de luar são as melhores para bombardeamentos aéreos.) António Gedeão Metralhadoras cantam Acenderam-se as armas pela noite dentro. Quem rebenta? Quem morre? Quem vive? Quem berra? Há um vento de lamentos nos lamentos do vento... Metralhadoras cantam a canção da guerra. Cantam granadas a canção da morte. E há uma rosa de sangue à flor da terra. Morrer ou não morrer é uma questão de sorte. Metralhadoras cantam a canção da guerra. Cantam bazucas e morteiros e estilhaços... Cantam esta canção do aço que não erra no espaço do seu fogo o espaço entre dois braços. Cantam metralhadoras a canção da guerra. Há um tiro que parte. Há um corpo que tomba. Nesta boca fechada há um morto que berra. Quem estoira no meu peito: O coração? Uma bomba? Metralhadoras cantam a canção da guerra. Todo o tempo é uma batalha. Ataque. Fuga. Fuga. Ataque. Silêncio. Um silêncio que aterra. Que marca o rosto com seu peso ruga a ruga. Um silêncio que canta na canção da guerra. Mina. Emboscada. Pó. Pólvora. Sangue. Fogo! Acerta não acerta? Erra não erra? Perdeu todo o sentido dizer-se até logo. Metralhadoras cantam a canção da guerra. Cada segundo pode ser o último segundo. Como enterrar os mortos que a memória desenterra? Há um poço tão fundo tão fundo tão fundo. Metralhadoras cantam a canção da guerra. Há um soldado que grita eu não quero morrer. E o sangue corre gota a gota sobre a terra. Vai morrer a gritar eu não quero morrer. Metralhadoras cantam a canção da guerra. Houve um que se deitou e disse: Até amanhã. Mas amanhã é o dia em que se enterra O soldado que disse: Até amanhã. Metralhadoras cantam a canção da guerra. E um jipe corre pela noite dentro. Avança não avança? Emperra não emperra? Passam balas de chumbo nas balas do vento. Metralhadoras cantam a canção da guerra. E há duzentos quilómetros de morte em duzentos quilómetros de terra. Neste caminho de Luanda para o Norte metralhadoras cantam a canção da guerra. Manuel Alegre Notícias do Bloqueio Aproveito a tua neutralidade, o teu rosto oval, a tua beleza clara, para enviar notícias do bloqueio aos que no continente esperam ansiosos. Tu lhes dirás do coração o que sofremos nos dias que embranquecem os cabelos... tu lhes dirás a comoção e as palavras que prendemos – contrabando – aos teus cabelos. Tu lhes dirás o nosso ódio construído, sustentando a defesa à nossa volta - único acolchoado para a noite florescida de fome e de tristezas. Tua neutralidade passará por sobre a barreira alfandegária e a tua mala levará fotografias, um mapa, duas cartas, uma lágrima... Dirás como trabalhamos em silêncio, como comemos silêncio, bebemos silêncio, nadamos e morremos feridos de silêncio duro e violento. Vai pois e noticia com um archote aos que encontrares de fora das muralhas o mundo em que nos vemos, poesia massacrada e medos à ilharga. Vai pois e conta nos jornais diários ou escreve com ácido nas paredes o que viste, o que sabes, o que eu disse entre dois bombardeamentos já esperados. Mas diz-lhes que se mantém indevassável o segredo das torres que nos erguem, e suspensa delas uma flor em lume grita o seu nome incandescente e puro. Diz-lhes que se resiste na cidade desfigurada por feridas de granadas e enquanto a água e os víveres escasseiam aumenta a raiva e a esperança reproduz-se Egito Gonçalves Receita para fazer um herói Tome-se um homem, Feito de nada, como nós, E em tamanho natural. Embeba-se-lhe a carne, Lentamente, Duma certeza aguda, irracional, Intensa como o ódio ou como a fome. Depois, perto do fim, Agite-se um pendão E toque-se um clarim. Serve-se morto. Reinaldo Ferreira EDUCAÇÃO E TRANSMISSÃO DA IDEOLOGIA EDUCAÇÃO CÍVICA Faz-se de tudo o abano da anca o olho sorridente o rebolado perante o presidente da república faz-se o bailado e a pirueta para agradar e arejar o presidente do conselho lubricamente mostra-se o joelho aos ministros todos lança-se simpatia a rodos aos generais e aos marechais também aos furriéis se for preciso afinal o que é preciso é ter juízo faz-se de tudo sempre a abanar a anca Mário-Henrique Leiria Caridade As senhoras da sociedade deram um baile a rigor para vestir a pobreza e a pobreza horas a fio cortou, coseu, enfeitou os vestidos deslumbrantes que a caridade exibiu. Depois das contas bem feitas bem tiradas as despesas arranjou um namorado a mais nova das Fonsecas; esteve bem a viscondessa, veio o nome e o retrato da comissão nos jornais, e o Doutor, o Menezes, o senhor desembargador, estiveram muito engraçados, dançaram o tiro-liro já meio-tombados... Parece que ainda sobrou algum dinheiro para chita para vestir a pobreza numa festa comovente com discursos de homenagem e uma missa... a que assistiu toda a gente. Joaquim Namorado Pastelaria Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura Afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio Afinal o que importa não é ser novo e galante - ele há tantas maneiras de compor uma estante! Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício Não é verdade rapaz? E amanhã há bola antes de haver cinema madame blanche e parola Que afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim como assim ainda há muita gente que come Que afinal o que importa é não ter medo de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo! Que afinal o que importa é por ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria e, lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra. Mário Cesariny Queixa das almas jovens censuradas Dão-nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola mais um letreiro que promete raízes, hastes e corola Dão-nos um mapa imaginário que tem a forma de uma cidade mais um relógio e um calendário onde não vem a nossa idade Dão-nos a honra de manequim para dar corda à nossa ausência. Dão-nos um prémio de ser assim sem pecado e sem inocência Dão-nos um barco e um chapéu para tirarmos o retrato Dão-nos bilhetes para o céu levado à cena num teatro Penteiam-nos os crâneos ermos com as cabeleiras das avós para jamais nos parecermos connosco quando estamos sós Dão-nos um bolo que é a história da nossa historia sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro somos vazios despovoados de personagens de assombro Dão-nos a capa do evangelho e um pacote de tabaco dão-nos um pente e um espelho pra pentearmos um macaco Dão-nos um cravo preso à cabeça e uma cabeça presa à cintura para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura Dão-nos um esquife feito de ferro com embutidos de diamante para organizar já o enterro do nosso corpo mais adiante Dão-nos um nome e um jornal um avião e um violino mas não nos dão o animal que espeta os cornos no destino Dão-nos marujos de papelão com carimbo no passaporte por isso a nossa dimensão não é a vida, nem é a morte Natália Correia Torah Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima, acenou a Moisés. Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente. Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro. No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei. Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera: -- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já. Alguns foram. Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico. Depois disso, é o que se vê. Mário Henrique Leiria O MEDO O Poema Pouco Original do Medo O medo vai ter tudo pernas ambulâncias e o luxo blindado de alguns automóveis Vai ter olhos onde ninguém os veja mãozinhas cautelosas enredos quase inocentes ouvidos não só nas paredes mas também no chão no tecto no murmúrio dos esgotos e talvez até (cautela!) ouvidos nos teus ouvidos O medo vai ter tudo fantasmas na ópera sessões contínuas de espiritismo milagres cortejos frases corajosas meninas exemplares seguras casas de penhor maliciosas casas de passe conferências várias congressos muitos óptimos empregos poemas originais e poemas como este projectos altamente porcos heróis (o medo vai ter heróis!) costureiras reais e irreais operários (assim assim) escriturários (muitos) Intelectuais (o que se sabe) a tua voz talvez talvez a minha com certeza a deles Vai ter capitais países suspeitas como toda a gente muitíssimos amigos beijos namorados esverdeados amantes silenciosos ardentes e angustiados Ah o medo vai ter tudo tudo (Penso no que o medo vai ter e tenho medo que é justamente o que o medo quer) O medo vai ter tudo quase tudo e cada um por seu caminho havemos todos de chegar quase todos a ratos Sim a ratos Alexandre O'Neill Variações sobre "O poema pouco original do medo" de Alexandre O´Neill Os ratos invadiram a cidade povoaram as casas os ratos roeram o coração das gentes. Cada homem traz um rato na alma. Na rua os ratos roeram a vida. É proibido não ser rato. Canto na toca. E sou um homem. Os ratos não tiveram tempo de roer-me os ratos não podem roer um homem que grita não aos ratos. Encho a toca de sol. (Cá fora os ratos roeram o sol). Encho a toca de luar. (Cá fora os ratos roeram a lua). Encho a toca de amor. (Cá fora os ratos roeram o amor). Na toca que já foi dos ratos cantam os homens que não chiam. E cantando a toca enche-se de sol. (o pouco sol que os ratos não roeram). Manuel Alegre, in " Praça da Canção ", 1965 A morte Saiu à rua Num dia assim Naquele Lugar sem nome P'ra qualquer fim Uma Gota rubra sobre a calçada Cai E um rio De sangue Dum Peito aberto Sai O vento Que dá nas canas Do canavial E a foice Duma ceifeira De Portugal Só olho Por olho e Dente por dente Vale E o som Da bigorna Como Um clarim do céu À lei assassina À morte Que te matou Vão dizendo em toda a parte O pintor morreu Teu corpo Pertence à terra Que te abraçou Teu sangue, Pintor, reclama Outra morte Igual Aqui Te afirmamos Dente por dente Assim Que um dia Rirá melhor Quem rirá Por fim Na curva Da estrada Há covas Feitas no chão E em todas Florirão rosas Duma nação Manuel Alegre À memória do pintor José Dias Coelho assassinado pela PIDE Era de noite e levaram Era de noite e levaram Quem nesta cama dormia Nela dormia, nela dormia Sua boca amordaçaram Sua boca amordaçaram Com panos de seda fria De seda fria, de seda fria Era de noite e roubaram Era de noite e roubaram O que na casa havia na casa havia, na casa havia Só corpos negros ficaram Só corpos negros ficaram Dentro da casa vazia casa vazia, casa vazia Rosa branca, rosa fria Rosa branca, rosa fria Na boca da madrugada Da madrugada, da madrugada Hei-de plantar-te um dia Hei-de plantar-te um dia Sobre o meu peito queimada Na madrugada, na madrugada José Afonso Contracanto Aqui longe do sol que mais farei Senão cantar o bafo que me aquece? Como um prazer cansado que adormece Ou preso conformado com a lei Mas neste débil canto há outra voz Que tenta libertar-se da surdina Como rosa-cristal em funda mina Ou promessa de pão que vem das mós Outro sol mais aberto me dará Aos acentos do canto outra harmonia E na sombra direi que se anuncia A toalha de luz por onde vá. José Saramago Tarrafal O Viajante Clandestino Este é o local, o dia, o mês, a hora. O jornal ilustrado aberto em vão. No flanco esquerdo, o medo é uma espora fincada, firme, imperiosa. Não espero mais. Porquê esta demora? Porquê temores, suores? Que vultos são aqueles, além? Quem vive ali? Quem mora nesta casa sombria? Onde estão os olhos que espiavam ainda agora? O medo, a espora, o ansiado coração, a noite, a longa noite sedutora, o conchego do amor, a tua mão... Era o local, o dia, o mês, a hora. Cerraram sobre ti os muros da prisão. Daniel Filipe Não fora o grito a faca de súbito rasgando a fronteira possível Não fora o rosto o riso a serena postura de cadáver na praia Não fora a flor a pétala recortada em vermelho o longínquo pregão o retrato esquecido o aroma da pólvora a grade na janela Não fora o cais a posse do nocturno segredo a víbora o polícia o tiro o passaporte a carta de Paris a saudade da amante Não fora o dente agudo de nenhum crocodilo Não fora o mar tão perto Não fora haver traição Daniel Filipe A UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA Nesta parede que me veste da cabeça aos pés, inteira, bem hajas, companheira, as viagens que me deste. Aqui, onde o dia é mal nascido, jamais me cansou o rumo que deixou o lápis proibido... Bem haja a mão que te criou! Olhos montados no teu selim pedalei, atravessei e viajei para além de mim. Luís Veiga Leitão MORTE NO INTERROGATÓRIO Às três da madrugada eu dormia sem sonhos. Minha mulher dormia a meu lado. Eu tinha Uma das mãos pousada sobre a sua coxa. Uma lua de outono brilhava sobre as ruas; Um ar agreste preparava as noites para o inverno. Às três da madrugada os companheiros Dormiam quase todos. Um deles, porém, Regressava, fatigado, de um trabalho nocturno. Era a hora dos fogos fátuos sobre as campas, A hora em que os exilados buscam o sono em comprimidos. Às três da madrugada sua mulher ainda velava. Embrulhada num xaile tinha um livro entre mãos; Insone, acendera a luz havia meia hora. Na sala o interrogatório atravessava o tempo; Lâmpadas de mil vátios tornavam a vida irrespirável. Às três da madrugada o coração fraquejou E os dois comissários ficaram perante um homem morto E dois cinzeiros com trinta pontas de cigarros. Egito Gonçalves “Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão/ há sempre alguém que resiste/ há sempre alguém que diz NÃO.” Manuel Alegre «Trova do Vento que Passa» Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome. Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio -- é tudo o que tem quem vive na servidão. E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste. Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar. Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não. Manuel Alegre 25 de ABRIL de 1974 (…) Ora passou-se porém que dentro de um povo escravo alguém que lhe queria bem um dia plantou um cravo. (…) Foi esta força viril de antes quebrar que torcer que em vinte e cinco de Abril fez Portugal renascer(…) Ary dos Santos Esta é a madrugada que eu esperava O dia inicial inteiro e limpo Onde emergimos da noite e do silêncio E livres habitamos a substância do tempo. Sophia de Mello Breyner Andresen PORTUGAL, CRAVO VERMELHO Em vinte e cinco de Abril, em Portugal, de repente, no ermo da madrugada, floriram cravos vermelhos. Já quarenta e oito anos a treva nos tinha cegos, quando da treva rasgada floriram cravos vermelhos. Veio a manhã que tardava. Estava a longa noite finda. Num rumor de asas de pombas, floriram cravos vermelhos. Desde os peitos dos soldados aos peitos dos marinheiros, nas próprias metralhadoras, floriram cravos vermelhos. Mal rompeu o dia novo, logo por ruas e praças, das cidades às aldeias, floriram cravos vermelhos. Quer nas mãos dos operários, quer nas mãos dos camponeses, no tempo de um pensamento, floriram cravos vermelhos. Nos olhos baços dos velhos, na gralhada das crianças, no enlevo das mulheres, floriram cravos vermelhos. Nas páginas dos escritores, na atenção dos estudantes, nas comoções da razão, floriram cravos vermelhos Era um povo renascido da morte em que estava morto, em cujos gestos e gritos floriram cravos vermelhos. No sol, na lua, no vento, nas searas, nos montados, nos olivais, nas charnecas, floriram cravos vermelhos. Na voz das fontes e rios, nas ondas do mar amigo, nas penedias dos montes, floriram cravos vermelhos. No pão, no vinho, nos frutos, de sangue e suor nutridos, mais na fome e sede deles, floriram cravos vermelhos. No azul do céu profundo, no branco leve das nuvens, no canto alegre das aves, floriram cravos vermelhos. Na sombra vil das prisões abertas de par em par, dos irmãos delas libertos, floriram cravos vermelhos. Mas no Primeiro de Maio, foi que, em todo Portugal, Portugal todo floriu num mesmo cravo vermelho. Armindo Rodrigues Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinquenta anos reinaram neste pais, e conta de tantos danos, de tantos crimes e enganos, chegava até à raiz. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Tantos morreram sem ver o dia do despertar! Tantos sem poder saber com que letras escrever, com que palavras gritar! Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Essa paz de cemitério toda prisão ou censura, e o poder feito galdério. sem limite e sem cautério, todo embófia e sinecura. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Esses ricos sem vergonha, esses pobres sem futuro, essa emigração medonha, e a tristeza uma peçonha envenenando o ar puro. Qual a cor da liberdade? É verde. verde e vermelha. Essas guerras de além-mar gastando as armas e a gente, esse morrer e matar sem sinal de se acabar por politica demente. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Esse perder-se no mundo o nome de Portugal, essa amargura sem fundo, só miséria sem segundo, só desespero fatal. Saem tanques para a rua, sai o povo logo atrás: estala enfim altiva e nua, com força que não recua, a verdade mais veraz. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Jorge de Sena Quase, quase cinquenta anos durou esta eternidade, numa sombra de gusanos e em negócios de ciganos, entre mentira e maldade. Qual a cor da liberdade? E verde, verde e vermelha. Cantiga de Maio Da prisão negra em que estavas a porta abriu-se p´ra rua. Já sem algemas escravas, igual à cor que sonhavas, vais vestida de estar nua. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. Na rua passas cantando, e o povo canta contigo. Por onde tu vais passando mais gente se vai juntando, porque o povo é teu amigo. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. Entre o povo que te aclama, contente de poder ver-te, há gente que por ti chama para arrastar-te na lama em que outros irão prender-te. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. Muitos correndo apressados querem ter-te só p´ra si; e gritam tão de esganados só por tachos cobiçados, e não por amor de ti. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. Na sombra dos seus salões de mandar em companhias, poderosos figurões afiam já os facões com que matar alegrias. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. E além do mar oceano o maligno grão poder já se apresta p´ra teu dano, todo violência e engano, para deitar-te a perder. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. Com desordens, falsidades, economia desfeita; com calculada maldade, Promessas de felicidade e a miséria mais estreita. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. Que muito povo se assuste, julgando que és tu culpada, eis o terrível embuste por qualquer preço que custe com que te armam a cilada. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. Tens de saber que o inimigo quer matar-te à falsa fé. Ah tem cuidado contigo; quem te respeita é um amigo, quem não respeita não é. Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam. 4/6/74 Jorge de Sena Abril de Sim Abril de Não Eu vi Abril por fora e Abril por dentro vi o Abril que foi e Abril de agora eu vi Abril em festa e Abril lamento Abril como quem ri como quem chora. Eu vi chorar Abril e Abril partir vi o Abril de sim e Abril de não Abril que já não é Abril por vir e como tudo o mais contradição. Vi o Abril que ganha e Abril que perde Abril que foi Abril e o que não foi eu vi Abril de ser e de não ser. Abril de Abril vestido (Abril tão verde) Abril de Abril despido (Abril que dói) Abril já feito. E ainda por fazer. Manuel Alegre