aprendizagem como participação em comunidades de prática

Transcrição

aprendizagem como participação em comunidades de prática
APRENDIZAGEM COMO PARTICIPAÇÃO EM COMUNIDADES DE PRÁTICA –
O EXEMPLO DA ENCRIPTAÇÃO NO PROJECTO WEBLABS1
XIV SIEM: Seminar of Mathematic Investigation and Education, Santarém, Portugal. APM Associação de Professores de Matemática
João Filipe Matos, Centro Nónio, Projecto WebLabs CIE-FCUL, [email protected]
Ana Alves, EB 2.3 Vale de Milhaços, Projecto WebLabs CIE-FCUL, [email protected]
Cláudia Rodrigues, Centro Nónio, Projecto WebLabs CIE-FCUL, [email protected]
Madalena Santos, Centro Nónio, Projecto WebLabs CIE-FCUL, [email protected]
Paula Félix, Bolseira do ME, Projecto WebLabs CIE-FCUL, [email protected]
Raquel Palermo, Projecto WebLabs CIE-FCUL, [email protected]
Susana David, St. Peter’s School, Projecto WebLabs CIE-FCUL, [email protected]
Vanda Ramos, St. Peter’s School, Projecto WebLabs CIE-FCUL, [email protected]
Resumo
Este artigo tem como objectivo apresentar e discutir os modos como os alunos
participam em actividades matemáticas num ambiente computacional analisando algumas das
aprendizagens inerentes a essas práticas. A noção de comunidade de prática, tal como é
utilizada nas perspectivas teóricas de Jean Lave e Ettiene Wenger que consideram a
aprendizagem como fenómeno situado, é utilizada para análise e discussão das aprendizagens
emergentes das práticas de alunos do 7º e 8º ano de escolaridade num ambiente
computacional em que é feito uso do ToonTalk no âmbito do Projecto WebLabs. É utilizado
como objecto-para-pensar um exemplo de uma proposta de trabalho desenvolvida no tema da
encriptação.
Aprendizagem como participação em comunidades de prática
Uma das funções essenciais do professor de matemática é educar matematicamente os
seus alunos2. Mas esta constitui um fenómeno emergente das práticas em que os alunos são
1
O Projecto WebLabs – new representational infra-structures for e-learrning é financiado pela Comissão da
Comunidade Europeia (Programa Information Society Technology) através do contrato No. IST 2001-32220
WEBLABS. Esta comunicação apresenta uma primeira versão da análise em curso sobre os modos como se
constitui uma comunidade de prática de alunos em torno do trabalho em matemática e ciências com meios
computacionais.
imersos e em que participam. Isto decorre da ideia de que as aprendizagens são elementos
integrantes das práticas sociais (Lave e Wenger, 1991). Mas para clarificar o que se entende
com a ideia de aprendizagem como participação em comunidades de prática é necessário
analisar em pormenor este conceito e algumas das ideias que lhe estão associadas.
De acordo com Wenger (1998), “as comunidades de prática dizem respeito ao conteúdo,
(…) não à forma [das actividades]” (p. 229). Mas apesar disso, e apesar das múltiplas formas
que podem tomar, podemos considerar três elementos estruturais nas comunidades de prática
(Wenger, McDermott & Snyder, 2002): o domínio, a comunidade e a prática.
O domínio é aquilo que ajuda a criar uma base comum e um sentido de desenvolvimento
de uma identidade, legitimando a existência da comunidade através da “afirmação dos seus
propósitos e valor aos membros dessa comunidade” (p.27). Trata-se do elemento principal de
inspiração dos membros para contribuírem e para participarem de modo a fazerem sentido dos
significados das suas acções e das suas iniciativas. No entanto, o domínio não é um conjunto
fixo de problemas, trata-se de algo que acompanha a evolução do mundo social e da própria
comunidade. No que respeita ao ensino e aprendizagem da matemática, o domínio tem sido
sistematicamente entendido como matemática escolar3, mas é necessário colocar o desafio de
cada vez o definir mais como ‘educação matemática’, incluindo formas e temas de trabalho
que contemplem as diversas dimensões da matemática.
“A comunidade é aquilo que constitui o tecido social4 da aprendizagem” (Wenger,
McDermott & Snyder, 2002, p.28). Assumindo que a aprendizagem é uma questão
essencialmente de pertença e de participação, a comunidade torna-se um elemento central
como grupo de pessoas que interagem, aprendem conjuntamente, constroem relações entre si,
desenvolvem um sentido de engajamento e de pertença. Mas a ideia de comunidade não
implica que exista homogeneidade. Se as interacções a longo prazo tendem a criar uma
“história comum e uma identidade comunitária” (p. 35), ao mesmo tempo ela encoraja a
diferenciação entre os membros que assumem papéis distintos e criam as suas diversas
2
Tradicionalmente as finalidades da escola na área da Matemática têm sido reduzidas à aquisição de conceitos,
técnicas e destrezas e ao conhecimento de factos matemáticos. Educar matematicamente os alunos envolve
necessariamente contemplar a dimensão social/ética/política da Matemática.
3
Tradicionalmente os currículos em Matemática na escola básica e secundária são definidos tendo como eixos
estruturantes áreas clássicas da Matemática tais como Geometria, Álgebra, Estatística, fazendo passar aos
professores e aos alunos a mensagem de que esses são os elementos que constituem o domínio de trabalho.
Alguns matemáticos e educadores matemáticos reclamam que, ao nível do ensino básico e secundário, esses
currículos não tratam efectivamente de Matemática mas de Matemática Escolar. Isto acontece não só porque
diversos processos e definições não são consideradas correctas do ponto de vista da comunidade dos
matemáticos (são aceites naqueles níveis de ensino apenas por razões pedagógicas) mas também porque o campo
de produção dos saberes matemáticos não é de facto a escola básica e secundária (mas sim as comunidades dos
matemáticos) havendo um processo de recontextualização escolar desses saberes que leva inevitavelmente a uma
transformação da sua natureza.
4
Wenger et al (2002) utilizam a expressão social fabric colocando o ênfase na ideia de que a aprendizagem é
não só constitutiva da comunidade mas também um produto da comunidade.
especialidades e estilos. Um dos aspectos mais relevantes no desenvolvimento de
comunidades em educação matemática é a necessidade de uma massa crítica de pessoas que
sustentem a participação, mas deve ter-se a noção de que se a comunidade atinge uma
dimensão demasiado grande isso pode igualmente inibir a participação5. À medida que a
comunidade evolui, a sua natureza muda e é nesse quadro que assumem grande importância
as questões de liderança (pelo professor ou pelos alunos nos seus grupos de trabalho) na
criação de uma atmosfera e ao mesmo tempo de um foco que favoreçam modos de
participação em actividades relacionadas com o domínio da educação matemática.
A prática é constituída por um conjunto de “esquemas de trabalho, ideias, informação,
estilos, linguagem, histórias e documentos que são partilhados pelos membros da
comunidade6. Enquanto que o domínio denota o tópico em que a comunidade se foca, a
prática é o conhecimento específico que a comunidade desenvolve, partilha e mantém” (p.29).
A prática tende a evoluir como um produto colectivo integrado no trabalho dos participantes
organizando o conhecimento em formas que o tornam útil para eles próprios na medida em
que reflecte a sua perspectiva.
O envolvimento dos alunos em práticas que tenham como elementos constitutivos o
domínio da matemática e das relações desta com outros domínios específicos deve fazer parte
da agenda escolar da educação matemática. Não é actualmente admissível que a Escola e os
professores se limitem a focar os seus esforços na aquisição da matemática como um recurso
linguístico (Roth, 1996). Compreender a relevância da ideia de comunidade de prática, como
elemento que ajuda a perceber a aprendizagem, exige ir um pouco mais longe na
caracterização daquilo que está envolvido na ideia de pertença a comunidades de prática.
Modos de pertença em comunidades de prática
A perspectiva situada de Lave e Wenger (1991) entende a aprendizagem como uma
experiência que faz parte integrante da participação em comunidades de prática. A
participação é algo emergente e intencional que não pode ser prescrito nem legislado; é, no
entanto, possível pensar em modos de enriquecer a atmosfera da comunidade onde se
pretende promover determinadas formas de participação. Mas é importante sublinhar que não
5
A questão da dimensão da comunidade ou do grupo (número de membros, dispersão de interesses e
interacções privilegiadas, etc.) é relevante quer no aspecto escolar da educação matemática (por exemplo,
relativamente ao número de alunos de uma turma ou de uma escola) mas também na dimensão do
desenvolvimento dos professores e dos educadores matemáticos (por exemplo, as opções estratégicas da
preparação de um Seminário de modo a estimular a interacção entre os participantes).
6
Naturalmente que nesta discussão, a ideia de prática não se opõe a teoria como algumas vezes se entende. O
espaço desta comunicação não permite um desenvolvimento da ideia de prática; uma discussão muito
interessante deste tema com referência à educação matemática pode ser encontrada em Santos (2003).
se pode entender a aprendizagem escolar como o resultado do ensino feito pelo professor, não
existe tal causalidade entre ensino e aprendizagem. A aprendizagem ocorre na medida em que
os alunos participam em práticas.
Procuramos, de seguida, clarificar e contextualizar (no âmbito da educação matemática)
os três modos de pertença, avançados por Wenger (1998), que ajudarão a pensar as
comunidades de prática em que os participantes se tornem matematicamente educados.
O engajamento. O engajamento de crianças e adultos numa dada prática não é apenas
uma questão de actividade. Para o desenvolvimento de uma comunidade com determinadas
características (com o objectivo de ajudar a criar um ambiente com uma perspectiva
específica acerca do que é ser educado matematicamente) não é suficiente proporcionar os
recursos físicos entendidos como adequados. De acordo com Wenger (1998), a construção de
uma comunidade envolve ajudar os participantes dessa comunidade a criar infra-estruturas de
engajamento que devem incluir a) mutualidade, b) competência e c) continuidade.
A mutualidade é uma condição para que a prática tenha lugar e para que a comunidade
exista. As condições para o desenvolvimento de mutualidade na comunidade incluem (i)
existirem elementos que facilitem as interacções (e.g. espaços físicos e virtuais, comunicação,
tempo), (ii) haver tarefas conjuntas definidas colegialmente (e.g. pontos de entrada para
projectos específicos, agendas transparentes), e (iii) permitir a periferia na participação (e.g.
criando oportunidades para o engajamento das pessoas em encontros de natureza mais
informal e para participar em graus diferentes nas actividades de acordo com as decisões
tomadas em espaços com esse objectivo). Uma das implicações destas ideias sobre a noção de
mutualidade é, por exemplo, que um conjunto de alunos a trabalhar na escola com um ou mais
professores em educação matemática necessita mais do que simplesmente espaços e tempos
de trabalho (mesmo que na aula de matemática); é o próprio grupo de alunos e professores
que tem na sua responsabilidade a definição das metas e das formas de trabalhar para as
atingir.
Em segundo lugar, a questão da competência. Não se trata de algo que possa ser prédefinido ou daquilo que significa a priori ser matematicamente competente7. A competência é
criada e definida na acção. Por esta razão, os participantes numa comunidade de prática
devem ter oportunidades para actuar8 as suas competências, incluindo i) um sentido de que
existe espaço para tomarem iniciativas e condições para que essas iniciativas se tornem
visíveis e patentes a outros (e.g. criando ocasiões para usar certas capacidades e
conhecimentos, criando e partilhando soluções para problemas específicos, propondo e
7
O Currículo Nacional de Competências do Ensino Básico enuncia um conjunto de competências essenciais
para a área da matemática mas não é obviamente desta prescrição que resulta o seu desenvolvimento nos alunos.
8
Trata-se de facto de actuar e não de pôr em acção algo previamente existente.
tomando decisões quer em pequeno grupo quer a nível mais global), (ii) a compreensão de
que existem momentos de dar contas do trabalho feito (e.g. apresentando as metodologias e os
resultados do seu trabalho a outros, discutindo, exercendo e sujeitando-se a uma avaliação
crítica por parte dos outros; identificando diferentes estilos de fazer as coisas e confrontandoos com os seus próprios e tirando daí implicações; criando espaço e disponibilidade que
encorajem a expressão da diferença e integrando estilos e formas de trabalho diferentes;
ajudando a criar pontos de entrada para a negociação e desenvolvimento de empreendimentos
comuns), e (iii) colocando em jogo as ferramentas adequadas, quer em termos de artefactos
físicos quer de artefactos conceptuais, que ajudem a sustentar as competências dos
participantes (e.g. conceitos, estratégias de acção e linguagem que ajude ao desenvolvimento
de um reportório comum e partilhado entre os participantes).
Em terceiro lugar, e igualmente importante, é o elemento continuidade, uma vez que as
pessoas participando na comunidade necessitam de sentir que a prática é sustentada (e que
elas contribuem para essa sustentação) e que existe um programa relativamente estável de
actividades. De acordo com Wenger (1998), a continuidade da prática é sustentada em duas
dimensões: (i) através da produção de memórias reificativas (e.g. construindo e mantendo a
história da prática através de registos e de partilha da informação sobre as actividades em
curso, documentando os modos como as coisas vão sendo feitas, discutindo e fazendo
representações dos resultados da discussão), e (ii) produzindo memórias participativas (e.g.
partilhando e discutindo histórias da prática, criando espaços de interacção que permitam que
as pessoas participem na negociação do modo como as histórias são contadas e os
acontecimentos são relatados na comunidade, criando formas de demonstrar os seus
desenvolvimentos).
Imaginação. Tal como se referiu anteriormente, não é suficiente oferecer condições
físicas para que as pessoas participem numa dada prática. A imaginação é um recurso para os
participantes encontrarem pistas que lhes permitam estabelecer ligações entre as diversas
práticas do seu contexto de vida. Isso possibilitará que as pessoas encontrem referências
adequadas (e úteis) e adquiram um sentimento de pertença a uma comunidade mais vasta (e.g.
os adultos escolarizados, os cidadãos, etc). É por esta razão que as práticas em educação
matemática devem envolver possibilidades de orientação, reflexão e exploração. Alunos e
professores precisam de ser capazes de se localizar a si mesmos, dado que isso poderá
reforçar um sentimento de pertença à comunidade. A importância da orientação reside,
simultaneamente, no modo como pode ajudar a caracterizar o tipo e grau de participação e no
facto de que as pessoas se tornarão mais capazes de fazer sentido dos significados da prática.
O desenvolvimento de um sentido de orientação implica a preocupação de tornar possível que
as pessoas façam sentido do seu posicionamento no espaço da comunidade e de as ajudar a
localizarem-se no tempo (e.g. definindo momentos de avaliação das trajectórias que se vão
observando). Deste modo permite-se que as pessoas se localizem nos significados da prática e
nas relações de poder inerentes a qualquer prática (e.g. através da partilha de histórias da
prática). Ao mesmo tempo, os alunos e os professores devem ter tempo e oportunidade para
serem capazes de comparar a sua prática com outras práticas através da exploração e reflexão
sobre a exploração – procurar e representar padrões de actividade e de competência e partilhálos com os outros.
Alinhamento. As ideias de orientação e reflexão estão estreitamente ligadas à noção de
alinhamento. As comunidades de prática necessitam de ter a possibilidade de ligar as suas
práticas a empreendimentos mais vastos. Uma ideia de alinhamento tornará mais possível que
alguns efeitos aconteçam e que as pessoas vejam o seu papel no âmbito de outros contextos
mais alargados e em ligação com outras comunidades9. Wenger (1998) sugere que a
convergência e a coordenação constituem as duas dimensões mais importantes neste ponto. A
convergência implica uma preocupação não apenas com as tarefas comuns mais simples mas
também com a necessidade de encontrar interesses e focos comuns de um âmbito mais
alargado. Por outro lado, os participantes devem partilhar um telos construído sobre uma
compreensão comum e partilhada das situações que vivem, uma partilha de valores e de
princípios num sentido que favoreça a convergência de finalidades. A coordenação é um
passo crucial nas comunidades construídas sobre a ideia de eficiência, mas torna-se,
igualmente, um elemento emergente em todo o tipo de comunidades exista, ou não, uma
coordenação oficial. Inclui a definição de métodos de trabalho, canais de comunicação,
recursos para estabelecer pontes para outras comunidades e feedback.
Um exemplo: a encriptação com o ToonTalk no projecto WebLabs
O Projecto WebLabs visa a análise de formas de representação do conhecimento em
matemática e ciências com o auxílio de meios computacionais e os modos como os jovens
organizam e partilham esse conhecimento (nomeadamente à distância através da Internet)10,
quando trabalham em micromundos construídos na plataforma ToonTalk11. Neste quadro, os
9
Um exemplo notável do poder de um alinhamento forte dos participantes envolvidos em práticas sociais é
dado por Gelsa Knijnik (1996) ao descrever e analisar os interfaces entre os saberes populares e os saberes
académicos e as relações de poder associadas ao saber.
10
O Projecto WebLabs tem uma dimensão tecnológica forte que coloca a construção e desenvolvimento de
comunidades de prática através da comunicação via Internet como uma forma de concretizar o agora chamado elearning. Esta dimensão é atingida através da publicação de web-reports por parte de alunos e professores (para
uma descrição deste processo ver http://www.weblabs.eu.com).
11
Para pormenores sobre o funcionamento desta plataforma ver http://www.toontalk.com.
alunos utilizam o Toontalk para realizar actividades propostas pelos professores, ou de sua
iniciativa, em torno de domínios de conhecimento definidos pela equipa de investigação12.
Um dos módulos transparentes13 criados no projecto incide sobre a temática dos Números e,
em particular, na área da Criptografia.
O projecto envolve trabalho com alunos de 7º, 8º e 9º anos, em sessões semanais
realizadas em horário não lectivo em três escolas. Os alunos que participaram na experiência,
relatada nesta comunicação, realizaram quatro sessões de trabalho dedicadas à criptografia.
1ª Sessão: a criptografia
A Criptografia é o estudo de técnicas matemáticas relacionadas com a segurança da
informação tais como: confidencialidade, integridade dos dados, autenticação das entidades e
autenticação da origem. Encriptação é a transformação operada sobre a informação, criando
dados que são virtualmente impossíveis de ler se não possuirmos os conhecimentos
apropriados. Decriptação é o processo inverso da encriptação14.
A sessão foi iniciada com uma exposição breve acerca do conceito de criptografia e das
suas aplicações em diferentes áreas e foi, ainda, colocado à discussão o texto “Criptografia
para massas”15. Os conceitos em questão eram do total desconhecimento dos alunos mas o
reconhecimento da sua utilidade e pertinência no dia-a-dia foi imediato. Na discussão do
processo de encriptação surgiram diversas dúvidas que conduziram os professores a
exemplificar; uma das professoras escreveu uma palavra no quadro com quatro letras, RJRT,
aparentemente sem sentido e questionou os alunos acerca do significado daquela palavra;
estes observaram que lhes era impossível decifrar o seu significado, porque não tinham
conhecimento do código; a outra professora, por conhecer a chave, disse que sabia que a
palavra que estava codificada significava AMAR. Com este exemplo foi discutida a
importância da ideia de chave no processo de encriptação. É importante notar que as
professoras avançaram com uma proposta de tema de trabalho (a Criptografia) e forneceram
os recursos iniciais (o texto, a Proposta de Trabalho I que adiante colocamos), os factos (a
informação) e as ferramentas. Os artefactos físicos estavam à disposição dos alunos. A
12
Para um desenvolvimento das estratégias de trabalho do projecto e uma descrição completa dos diversos
domínios de conhecimento definidos ver http://www.weblabs.eu.com.
13
Os micromundos criados com o ToonTalk são designados no projecto por módulos transparentes atendendo a
que se trata de conjuntos de propostas de trabalho e procedimentos ligando objectos do ToonTalk, cujo
funcionamento pode ser inspeccionado e alterado pelos alunos.
14
No entanto, a criptografia dos nossos dias é mais do que a soma da encriptação e decriptação. A autenticação
é cada vez mais importante, no âmbito da privacidade que todos desejamos poder ter. A autenticação é algo que
utilizamos todos os dias, sem nos referimos a esse acto como tal. São exemplos de autenticação a assinatura do
nosso nome num contrato, a introdução de um código num terminal multibanco, etc. À medida que nos
deslocamos de um ambiente físico e real para algo virtual, as autenticações seguem o mesmo caminho.
15 Este texto, de Luciano Ramalho, encontra-se em http://www.terra.com.br/informatica/ajuda/estiloweb/seguranca/cripto0.htm
questão central aqui é o modo como os artefactos conceptuais – essencialmente a informação
– se tornaram disponíveis para os alunos, para a comunidade de trabalho em presença. E para
se perceber esta comunidade é necessário perceber a sua perspectiva sobre a sua prática. Isto
significa que temos que procurar perceber o que é que a comunidade reclama como seu, como
descoberta genuína sua, como artefacto copiado do exterior e apropriado, etc. A introdução
histórica feita pelas professoras procurou contribuir para a percepção de um certo alinhamento
da parte dos alunos com uma realidade mais geral (e.g. os códigos de Multibanco) e, para
eles, mais tangível. Trata-se de ajudar a criar um ambiente de trabalho em que o tema de
análise era a Criptografia – embora com consciência plena de que a comunidade tem
características escolares, não é uma comunidade de matemáticos a trabalhar em problemas de
criptografia. O desenvolvimento subsequente das actividades parece indicar que a introdução
ao tema foi realizada com sucesso, despertando nos alunos bastante curiosidade e interesse no
seu aprofundamento.
A Proposta de Trabalho I feita aos alunos era a seguinte:
Proposta I
Considera a seguinte tabela de encriptação:
A
B
C
D
E
F
G
H
I
J
L
M
N
O
P
Q
R
S
T
U
V
X
Z
A
G
N
T
B
H
O
U
C
I
P
V
D
J
Q
X
E
L
R
Z
F
M
S
Decripta o texto seguinte:
QEJQJLRA C
Bdnecqra j rbz djvb, zrcpcsadtj a ‘nuafb’ tata.
Bdnecqra zva vbdlaobv, qje hjeva a bzb j rzv njsrba a tbnecqrb.
Os alunos apresentaram dificuldades iniciais na utilização da tabela, por não a interpretarem
na ordem correcta: os alunos escreviam a mensagem encriptada fazendo corresponder a cada
letra da primeira linha a letra da segunda. Como as palavras continuavam a não fazer sentido,
quando decriptadas, optaram por inverter a correspondência, observando assim que o sentido
da primeira para a segunda linha corresponde a encriptação e o sentido da segunda para a
primeira linha corresponde a decriptação; um dos alunos, o Gonçalo, observou que “fazia
sentido que fosse assim porque, a forma como a tabela está apresentada, a primeira linha
tem o nosso abecedário apresentado, logo temos que ler a tabela de baixo para cima para
decriptar”. Esta é uma ocorrência típica de desenvolvimento da competência dos alunos na
acção. Embora eles tivessem alguma experiência prévia na leitura de tabelas (quer em termos
escolares quer no seu dia-a-dia) foi notória a capacidade dos alunos de interpretarem a tabela
e construírem razões e argumentação para que a leitura do código, inserido na tabela dada,
fosse feita de um modo e não de outro. Isto ajudou os alunos a apropriarem-se da linguagem e
dos conceitos envolvidos no tema, começando a criar um reportório comum cuja partilha foi
sistematicamente iniciada, nesta fase, com questões do tipo “o que é a chave da encriptação?”,
ou seja, procurando a clarificação dos conceitos centrais utilizados na proposta de trabalho.
Proposta II
Descobre a regra de encriptação, associada à chave representada na tabela anterior.
Cria uma nova chave, utilizando uma outra regra de encriptação. Será que o teu colega consegue
descobri-la?
A
B
C
D
E
F
G
H
I
J
L
M
N
O
P
Q
R
S
T
U
V
X
Z
Encripta mensagens e envia ao teu colega.
A segunda proposta feita aos alunos colocava nestes a iniciativa de formulação de um código:
De notar que se fez uma distinção entre o código utilizado (a correspondência uma a uma) e a
chave (o modo de gerar o código). A definição de uma relação funcional biunívoca sobre um
determinado conjunto (as letras do alfabeto) subjacente ao problema constitui uma ideia
poderosa do ponto de vista matemático que os alunos descobriram, com uma certa rapidez, na
forma de uma regra associada à chave de encriptação (naturalmente sem tomarem consciência
da ideia geral de relação funcional e ainda sem acesso à terminologia matemática associada).
Os diálogos entre os alunos e as professoras desenvolveram-se com intensidade. Os alunos
procuraram formular explicitamente e usando uma linguagem muito marcada, por se
dirigirem às professoras:
Bruno: Para ficarmos com as letras todas eu tive de andar sempre de quatro em quatro
casas.
Relativamente à criação da nova chave os alunos preencheram a tabela assumindo diversas
regras para a obtenção de outras chaves de encriptação, progressivamente mais complicadas.
Alguns exemplos:
Filipa
A B C D E
A D G J
F
G H I
N Q T
J
L
M N O P
X B E H L
Q R S T U
O R U Z
C F I
V X Z
M P
S
V
A Filipa constrói a regra da esquerda para a direita ‘andando’ oito casas para obter a próxima
letra. Um aluno tenta descobrir a sua regra:
Milton: A partir do A se andarmos 8 casas sempre em frente descobrimos as letras do
alfabeto por ordem.
Este aluno cria de imediato uma outra chave:
Milton
A B C D E
X U S
F
G H I
Q O M J
J
L M N O P
H F D B Z
V T
Q R S T U V X Z
R P
N L I
G E
C A
O Milton constrói a regra da direita para a esquerda ‘saltando uma letra’. A Filipa tenta
descobrir a sua regra afirmando:
Filipa: Da última letra deixa-se uma e escreve-se a outra.
Ainda outros exemplos:
Bruno
A B C D E
F
G H I
C D A B G H E
F
J
L M N O P
L M I
J
P
Q R S
T U V X Z
Q N O T U R S
X Z
V
O Bruno constrói a regra da esquerda para a direita escrevendo as letras seguidas duas a duas
mas invertendo a sua ordem. O aluno não se apercebe que pelo facto do número de letras do
alfabeto ser ímpar a regra não é aplicável de forma regular até ao fim. Acaba por criar uma
chave muito mais complexa na medida em que o algoritmo de geração do código não é
universal no conjunto das letras do alfabeto. Mas esta questão não tem uma discussão
subsequente.
Ana Rita
A B C
D E
A Z
X C V D U E
B
F
G H I
D H M Q U A E
I
J
L
T F
M N O P
S
N R V B
Q R S
G R H K I
F
J
O S
P
T
U V X Z
J
O L
X C G L
P
N M
T
Z
A aluna cria duas regras:
- A primeira é construída da esquerda para a direita com a letra A, ‘saltando’ uma casa para
descrever o ciclo;
- A segunda é construída da esquerda para a direita, também, mas a aluna opta por escrever a
primeira letra do abecedário apenas na sexta posição, iniciando aí o ciclo de construção.
De salientar a sofisticação de muitas das chaves criadas pelos alunos, o que demonstra que as
ideias poderosas associadas à encriptação foram sendo sucessivamente apropriadas (e.g. a
necessidade de ser um código difícil de quebrar, o interesse em conhecer o algoritmo e
conseguir descrevê-lo através de uma relação funcional16).
No que diz respeito a encriptar novas mensagens e enviar aos colegas, os alunos iniciaram a
sua escrita por perguntar coisas acerca das quais já sabiam a resposta, entrando em diálogo
sobre questões do seu dia-a-dia na turma. Para além das chaves criadas nesta sessão, os
alunos, encriptaram mensagens utilizando o código da linguagem dos p’s. Esta linguagem
consiste em dividir uma palavra nas várias sílabas e, se a sílaba se inicia por uma vogal, esta
sílaba é repetida precedida de p, se a sílaba se inicia por uma consoante, esta sílaba é repetida
substituindo a consoante por p (e.g. a palavra ‘escola’, neste código, torna-se
‘espescopolapa’). Inicialmente, os alunos desconheciam esta linguagem mas, rapidamente, se
apropriaram dela tendo-se seguido várias conversas (orais e escritas) entre todos os elementos
envolvidos no projecto. O facto de conseguirem estabelecer um diálogo sem que,
aparentemente, outras pessoas, exteriores ao projecto, pudessem compreender, estimulou os
alunos para a utilização desta linguagem em diversas situações, por exemplo, em casa com os
pais, no supermercado, na escola com outros colegas e professores. A situação de pertença a
esta comunidade de trabalho foi reforçada pelo facto de apenas os seus elementos poderem
decriptar as mensagens, uma vez que só eles conheciam a chave. As reacções a esta situação
foram variadas; enquanto que os alunos não participantes no projecto se mostraram curiosos
por saber qual a forma de decriptar as mensagens (para poderem, também eles, entrar no
grupo dos que sabiam a linguagem), os professores destes alunos mostraram-se incomodados
com o facto de serem transmitidas, na sua presença, mensagens em código, sem que eles as
conseguissem decifrar.
2ª sessão: encriptar números
16
Não é claro se os alunos se aperceberam totalmente do interesse em conhecer um algoritmo matemático para
gerar o código de encriptação, questão que tem que ver com a encriptação e decriptação automática de
mensagens.
Proposta III
Vamos agora encriptar números, através de uma certa operação.
Por exemplo,
Número
Número
dado
encriptado
1
2
2
4
4
8
8
16
...
...
Agora é a tua vez!
Cria uma encriptação numérica!
Será que o teu colega consegue adivinhá-la?
A segunda sessão foi iniciada com uma proposta feita pela professora:
Os alunos facilmente entenderam que a regra inserida na proposta de trabalho era multiplicar
o número dado por dois. Depois iniciaram a criação de encriptações numéricas
progressivamente mais difíceis. Uma vez mais, começam “presos” ao exemplo dado:
O Milton propõe à professora Vanda:
A professora identifica a chave rapidamente dizendo que é muito fácil,
sendo semelhante à apresentada (basta multiplicar o número dado por 9)
Número
dado
1
2
3
Número
encriptado
9
18
e desafia o aluno a construir uma que ela não consiga decifrar. O aluno
aceita o desafio, apesar de alegar ser difícil inventar uma que a professora não descubra...
Número
dado
1
2
3
4
Número
encriptado
8
17
26
35
Após alguns instantes, apresenta uma chave que recorre não só à
multiplicação mas também à subtracção; fica contente por, desta vez, a
identificação da regra não ser tão imediata por parte da professora.
O desafio continua...
O aluno esforça-se por criar uma chave que seja
realmente difícil....conversando com a professora Paula, e depois de esta
o ter questionado no sentido de relembrar outras operações, que em
Número
dado
1
2
3
4
Número
encriptado
5
14
29
50
termos de cálculo mental, pudessem parecer mais difíceis, ele propõe à
professora Vanda, pouco tempo antes do fim da sessão, a seguinte tabela:
Não sendo tão óbvia como as anteriores, o desafio ficou como TPC para a professora. O aluno
reclamou logo na aula de Matemática seguinte se a professora tinha feito o TPC. Apesar desta
não ter tido ainda tempo de pensar na questão, o aluno pensou que a razão para não o ter
trazido feito se devia ao facto de ser verdadeiramente difícil, o que foi para ele um momento
de grande entusiasmo. Notar como o aluno, de certo modo, imita a prática escolar numa
sessão fora da sala de aula.
Na sessão seguinte de WebLabs a professora devolveu a chave, que reconheceu ser difícil – o
triplo do quadrado do número dado mais dois – o aluno sentiu-se orgulhoso, por ter criado
uma chave que a professora tivesse tido alguma dificuldade em decifrar.
A Ana Rita e a Filipa resolvem criar chaves para se desafiarem uma à outra, o que funciona
para elas tipo jogo numérico. Começam com algo muito semelhante à chave dada e evoluem
para adições e depois para adições com multiplicações. É curioso o facto que as leva a repetir
diversas vezes estas operações e não utilizam outras diferentes. Encontramos aqui elementos
que permitem falar engajamento na actividade em curso. Os alunos denotam uma construção
colectiva dos saberes no tema da criptografia, desafiando-se mutuamente a encontrar as
chaves inventadas por cada um e a sua prática (embora fortemente centrada, nesta fase, na
realização de tarefas propostas pela professora) cria ligações entre os conceitos presentes na
actividade e os motivos dessa sua actividade.
3ª sessão: encriptação e relações funcionais
A terceira sessão foi conduzida a partir de uma proposta mais ambiciosa:
Proposta IV
Entra do freeplay do Toontalk.
Cria um procedimento que te permita obter a operação aqui definida.
Número
Número
dado
encriptado
1
2
2
4
4
8
8
16
...
...
Descreve os passos por ti seguidos.
Cria um procedimento que te permita obter a operação definida pelo teu colega.
Descreve os procedimentos por ti realizados.
Será possível criar um procedimento que te permita associar qualquer operação?
Tenta obtê-lo. Descreve todos os passos.
Quando o Milton entra para o modo de trabalho livre do ToonTalk sente dificuldades em
iniciar o procedimento pretendido17. Segue-se uma descrição cronológica do início das
17
Segundo a metáfora presente no ToonTalk, programar o computador, isto é, construir um procedimento é
treinar um robot a executar um conjunto de tarefas sequenciais.
interacções no desenvolvimento da actividade. A coluna do lado direito sugere a imagem dada
pelo ToonTalk no ecrã.
-
A professora Vanda aproxima-se e concretiza uma
situação prática. Vai buscar o número 1 a caixa de
ferramentas e pergunta ao Milton o que fazer para
criar o dois.
-
O Milton foi buscar dois uns e somou-os, obtendo
assim o dois.
-
A professora pergunta: e agora? Como obter o
quatro?
O aluno vai buscar a varinha e duplica o dois.
-
-
O aluno preocupa-se com a arrumação dos
números no ecrã como apresentado na tabela.
-
A professora questiona: mas como encriptar sem
declarar explicitamente a regra usada? E de uma
forma mais automática, menos manual... Será que
o robot pode ajudar?
-
O Milton vai buscar um robot.
Dá uma caixa dupla com dois números, 1 e 2 ao
robot, entrando para o pensamento do robot.
-
-
Aspira o 2 por observar que assim já teria o
primeiro número da sequência (observa que basta
ter o numero 1 para aplicar a regra desejada,
continuando com a caixa dupla);
Multiplica o 1 por 2, para obter o dobro;
Coloca sobre o 1;
Sai do pensamento do robot.
1
1
1
1
2
*2
-
Observou que tinha feito passos desnecessários;
Explode a casa;
Repete os procedimentos anteriores, entrando para
o pensamento do robot agora apenas com uma
caixa com o número 1;
Neste episódio pode ver-se que o Bruno, ao solicitar o colega, está implicitamente a pedir-lhe
que torne visíveis alguns dos processos de pensamento para que consiga encontrar pontos de
entrada e mobilizar a sua imaginação para elaborarem uma forma de falar sobre os artefactos
que têm em mãos. Este processo ocorre numa fase em que os alunos estão a construir a sua
comunidade, engajando-se na actividade com motivos e propósitos que contemplam as
respostas imediatas aos problemas colocados na Proposta de Trabalho mas que têm como
produto (lateral) a consolidação da comunidade através da definição e redefinição de canais
de comunicação, linguagem etc.
4ª sessão: programação de códigos no ToonTalk
A quarta sessão continuou o trabalho em encriptação com base na seguinte proposta:
Proposta V
Junta-te ao teu colega para fazerem um jogo com pássaros e encriptação. Agora um de vocês é a Personagem Enigmática e a o
Como é um projecto secreto, todas as mensagens devem ser encriptadas.
A Personagem Enigmática vai escolher uma regra (divisão, subtracção, adição, multiplicação, números primos, etc.) e aplicá-l
A Personagem Enigmática envia o resultado ao Detective, para se descobrir qual é a regra utilizada.;
Para ter pistas, o Detective envia números à Personagem Enigmática, que aplica a regra e os devolve.
Joguem até que o Detective descubra qual é a regra. Nessa altura troquem de papéis.
Os alunos tiveram alguma dificuldade em iniciar a sua actividade utilizando o ToonTalk e
começaram por tentar compreender o que era pedido discutindo entre eles...chamaram a
professora para clarificar o pretendido. A professora explicou que a ideia era que um deles
criasse uma regra numérica de tal forma que a aplicasse sobre um número dado, obtendo
assim um número encriptado. Assim, o outro jogador deveria também aplicar uma certa regra,
no número encriptado pelo colega; o jogo sucedia-se até que fosse descoberta a encriptação. O
diálogo seguinte ocorre entre a professora, a Filipe e a Ana:
Professora: Para simplificar vamos começar no número 1. Vou aplicar a minha regra...dá
3!...queres tentar adivinhar qual é a regra aplicada?
Filipa: Não, porque pode ser qualquer coisa...
Professora: Agora é a tua vez de aplicar a tua regra...que número é que dá?
Filipa: 16...
Professora: Vou tentar adivinhar...4n+4?
Filipa: [pensa durante algum tempo] Não sei...
Professora: Nem queres tentar adivinhar uma regra possível? Então... agora é a minha vez...
Aplicando a minha regra ao 16 dá 33! Vê lá se agora já consegues adivinhar...
Filipa: [Pensa durante algum tempo]
Professora: Podíamos estipular um intervalo de tempo cerca de um minuto, senão não saímos
daqui.
Filipa: Ok... [ultrapassa 1 minuto]
A professora desafia a aluna a ‘adivinhar’ a regra de codificação dos números e define as
regras da actividade colocando o tempo como um dado importante. Mas é interessante ver que
quando a aluna responde que não pode adivinhar a regra dado que “pode ser qualquer coisa”
está objectivamente a responder do modo mais exacto. A professora assume uma atitude
exploratória convidando a aluna a entrar num jogo de exploração solicitando um palpite. A
aluna não entra no ‘jogo da exploração’ porque está no ‘jogo da aula de matemática’, não
sugere resposta porque não há ainda uma resposta para dar com segurança.
A conversação é sustentada entre ambas com o objectivo de fazer sentido das regras que cada
uma pensou para a encriptação dos números.
Professora: Bem, já ultrapassaste o tempo.... aplica novamente a tua regra, agora ao 33...
Filipa: Posso usar um papel e lápis?
Professora: Claro!
Filipa: Dá 76.
Professora: Vou tentar...2n+10?
Depois, a professora colocou a questão: como propor ao robot a construção dos números
obtidos a partir da regra 2n+10?
Professora: Por exemplo...se dermos o 1 ao robot obtemos...
Filipa: O 12.
Professora: Se dermos o 2....pensando da mesma forma...
Filipa: Temos o 14.
Professora: Então como fazer para obter [a professora escreveu num papel] 1 J 12 J 14...
Filipa: Preciso dum robot... [pega numa caixa e coloca lá dentro o número 1, penso que por
ser o primeiro da sequência; dá a caixa ao robot; aí teve dúvidas em como continuar].
Professora: [Ao sentir dificuldades na progressão do procedimento exemplificou, construindo
com a aluna, o que fazer para multiplicar um número por 2]. Agora o que fazer para
construirmos a sequência? Temos que desenvolver um procedimento que permita
obter um número a partir da regra 2n + 1.
É notório que a professora procura conduzir os alunos à apropriação das relações entre as
sequências de números e as expressões algébricas generalizadas que as definem
matematicamente. Num segundo momento a preocupação da professora vai para a tradução
do processo de cálculo para a linguagem do ToonTalk com vista a poder gerar-se rapidamente
um conjunto de pares e verificar se a chave definida está correcta. Mas aparentemente os
alunos estão numa fase anterior da sua participação na actividade dado que, embora sustentem
de forma inteligível o diálogo com a professora, eles posicionam-se (e são posicionados)
numa atitude de resposta às perguntas da professora intersectando o problema conceptual do
modo de gerar a sequência com o problema de ensinar um robot a executar uma regra. E
rapidamente o diálogo passou para os modos de operacionalizar o ToonTalk para obter
determinado resultado:
Ana e Filipa: [Após conversarem as duas sobre qual o procedimento a fazer as alunas,
multiplicaram por 2 fora do pensamento do robot e dentro do pensamento do robot
somavam 10 ao número. Observaram que o robot só somava repetidamente o número
10, não fazia por isso o procedimento desejado. Repetiram todo o procedimento inicial
executando os mesmos passos mas agora no pensamento do robot. Ao sair do
pensamento do robot verificaram ter obtido sucesso no procedimento].
Professora: E agora sem eu saber qual a encriptação feita por vocês?
Filipa: É muito mais difícil...
Professora: Quais as ferramentas que vocês conhecem que poderiam ser usadas para
permitir tal fim?
Ana: Os pássaros...
Filipa: O camião.
Professora: E então como fazer?
Filipa: Tínhamos que ter um pássaro para levar o número dado para ser encriptado fora do
ecrã.
Professora: E depois traria o número já encriptado?
Filipa: Sim.
Professora: Então e o robot? Como desenvolvia ele o procedimento para que não se visse?
Ana: Púnhamos a dar uma volta de carro… [ri]
Professora: Vocês estão-se a rir mas o procedimento a desenvolver até pode ser esse. E que
tal pormos em prática?
Embora as alunas mostrassem dificuldades em concretizar o modo utilizar os pássaros do
ToonTalk para resolver o problema, elas mantiveram-se num grau muito elevado de
participação e discussão com a professora. O seu engajamento na actividade e os modos como
sucessivamente foram definindo os seus objectivos (nomeadamente através de processos do
senso comum), apoiadas no questionamento sistemático da professora, constituem elementos
relevantes para a caracterização da comunidade que está em construção.
Conclusão
O desenvolvimento destas propostas mostra como o conhecimento sobre encriptação e
decriptação foi sendo construído pela comunidade dos alunos e das professoras. Embora de
início as professoras, na 1ª sessão, procurasse clarificar o conceito de encriptação junto dos
alunos (essencialmente recorrendo à ideia mais comum de código), naturalmente que estes
não se apropriaram de imediato do reportório linguístico exigido neste domínio de
conhecimento, nem dos modos de realizar encriptação. Mas a prática nestas sessões mostra
que os alunos evoluem nos seus modos de participação de um posicionamento com
características escolares fortes para o assumir de iniciativas no âmbito dos problemas que são
colocados. Simultaneamente, verifica-se nas professoras uma tendência para um modo de
participação fortemente interessado no problema em discussão e menos preocupado com os
aspectos puramente didácticos da situação. Este facto sugere que a actividade entusiasma
genuinamente o professor e transforma a sua participação para um modo mais engajado na
tarefa em questão.
A terminar devemos salientar que uma noção de educação matemática que inclua a ideia
de que a aprendizagem é uma parte integrante das práticas sociais e, desse modo, elemento
constitutivo da participação dos alunos em comunidades de prática, tem múltiplas implicações
ao nível de (i) definição dos currículos no que respeita a metodologias de trabalho, áreas
temáticas organizadoras das actividades e avaliação das aprendizagens, e (ii) definição de
princípios base da formação de professores de educação matemática. E aqui está a assumir-se
a ideia de educação matemática como fenómeno emergente, o que obriga a (re)pensar a
natureza das práticas em que se pretende envolver os alunos como participantes na escola. Em
última análise esta perspectiva decorre de pensar a educação matemática em duas dimensões
complementares que constituem as práticas escolares em matemática: uma aproximação ao
pensar matematicamente e a uma forma de organizar a experiência incluindo um ponto de
vista matemático.
Referências
Knijnik, G. (1996). Exclusão e Resistência – Educação Matemática e Legitimidade Cultural.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Lave, J. & Wenger, E. (1991). Situated Learning: Legitimate Peripheral Participation.
Cambridge: Cambridge University Press.
Roth, W.M. (1998). Designing Communities. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.
Santos, M.P. (2003). Encontros e Esperas com os Ardinas de Cabo Verde - Aprendizagem e
Matemática numa Prática Social. Tese de Doutoramento, Departamento de Educação da
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. (no prelo)
Skovsmose, O. & Valero, P. (2002). Quebrando a neutralidade política: o compromisso
crítico entre a educação e a democracia. Quadrante, vol.11, 1, pp.7-28.
Wenger, E. (1998). Communities of Practice – learning, meaning and identity. Cambridge:
Cambridge University Press.
Wenger, E., McDermott, R. & Snyder, W. (2002). Cultivating Communities of Practice.
Boston: Harvard Business School Press.