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1 RESTABELECIMENTO DA MALOCA YÑAMÕRARIKÃGÃ: UM ESPAÇO DE REPRESENTAÇÃO CULTURAL DO POVO JUPAÚ. Adnilson de ALMEIDA SILVA1 Josué da Costa SILVA2 RESUMO O restabelecimento da maloca indígena Ynãmõrarikãgã no formato tradicional traz consigo signos e significados amalgamando a rica cultura Jupaú. Nesse local se encontra parte de sua história, venturas e dificuldades desse grupo que após o contato oficial na década de 1980, não esqueceu os valores do passado ao tempo demonstrando a necessidade de manter e preservar a memória daqueles que tombaram heroicamente em defesa da terra e de sua gente. A acuidade de entender os significados esse restabelecimento é uma tarefa importante, pois simbolicamente é um elemento de expressão e sustentação, implicando por sua vez na formação social, psíquica, mítica, ambiental, cultural e econômica, dando-lhe forças para vencer as lutas e desafios que são colocados em seu cotidiano para a integridade física e territorial onde habitam. RESUMÉ Le rétablissement de la village indigène Ynãmõrarikãgã dans le format traditionnel apporte les signes et significations en amalgamant la riche culture Jupaú. Dans ce lieu se trouve la partie de son histoire, bonheurs et les difficultés de ce groupe que après le contact officiel dans la décennie de 1980, il n'a pas oublié les valeurs du passé au temps en démontrant la nécessité de maintenir et préserver la mémoire de ceux ont renversé héroïquement dans défense de la terre et de leur gens. L'acuité de comprendre les significations de ce rétablissement est une tâche important, donc symboliquement c'est un élément d'expression et une sustentation, en impliquant dans la formation social, psyque, mythique, environnemental, culturel et économique, en lui donnant des forces pour gagner les luttes et les défis qui sont placés dans quotidien pour l'intégrité physique et territoriale où ils habitent. PALAVRAS-CHAVES: Jupaú. Cultura. Rondônia. Espaço e Representação. MOTS CLÉ: Jupaú. Culture. Rondônia. Espace et Représentation. 1 Mestrando em Geografia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Endereço: Rua Curitiba, 2932 – Bairro Caladinho – CEP: 78913-040 – Porto Velho-RO. E-mail: [email protected] 2 Professor do Depto de Geografia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação Mestrado em GeografiaUNIR. Endereço: Rua Odessa casa 4 nº 61 - Bairro Eletronorte – CEP: 78914-080 –Porto Velho-RO. E-mail: [email protected] 2 O PROCESSO PARA O RESTABELECIMENTO DA MALOCA-CEMITÉRIO Na concepção da cosmogonia Jupaú a maloca apresenta-se como uma representação importante e indispensável para a cultura, vivência e a própria territorialidade, refletindo diretamente no modo de vida do povo e no estabelecimento de suas relações internas e externas. A compreensão do significado de uma maloca é muito mais do que um atributo físico, é também psíquico e espiritual, é a própria alma e história que está presente em seus gestos e ações. Nesse contexto, na cultura Jupaú, a maloca no passado tinha múltiplas funções que auxiliam na explicação do entendimento das representações, sendo a primeira para o atendimento como moradia e sustentáculo as atividades agrícolas tradicionais, a segunda função como “marcador de território” oferecendo a defesa do grupo, e por último, mas não menos importantes era servir como cemitério. Uma pessoa ao morrer levava consigo todos os pertences conquistados em vida, tais como cocares, colares, arco e flecha, não se colocando cruz em razão de ser sepultada no interior da maloca, permanecendo simbolicamente com os outros moradores como se ainda estivesse presente, o que de certa forma não deixa de sê-lo, pois seu espírito está ali junto aos que ficaram vivos. Antes do contato oficial, caso fosse necessário à mudança do clã para outro local, carregavam os ossos do falecido como sinal de respeito, memória e proteção espiritual, mas sempre voltavam à antiga maloca para reviver seus sentimentos, emoções e resguardar o território. Tal ensinamento expressa claramente o sentido, o sentimento de identidade e os valores construídos ancestralmente não são atingíveis na compreensão da sociedade “civilizada”. As pressões sofridas pelo povo Jupaú através dos seringalistas, empresas mineradoras e garimpeiros e posteriormente com as frentes pioneiras colonizadoras fizeram com que na década de 1980 fosse estabelecido o contato oficial, porém a pressão continuou num nível ainda maior, agora com a presença do elemento colonizador. Esse contato trouxe vários impactos para sua cultura e o surgimento de doenças ocasionando a baixa populacional significativa, como estratégia a Fundação Nacional do Índio provocou o deslocamento dos indígenas para as áreas de entorno com menor incidência de endemias possibilitando maior facilidade de deslocamento para tratamento de saúde e a defesa territorial. 3 Na atualidade o maior significado da antiga maloca é o sentimento que nutre por ela, algo apaixonante, aonde a decisão de conduzir as crianças por longos dias e caminhadas até atingir o lugar onde moraram oferece lições importantíssimas como o reencontrar com o passado e o prazer em mostrar os caminhos percorridos, além de ser um “marcador” indispensável para a defesa territorial. Essas emoções só podem ser traduzidas por quem vivencia essa situação, conforme descreve Chicão, chefe do Posto Indígena da Aldeia Alto Jamari: “quando estiveram à primeira vez em Yñamõrarikãgã há uns três anos, fato que não se realizava depois do contato em razão das constantes lutas evitando a invasão de seu território por posseiros, madeireiros e garimpeiros, todos se abraçavam e choravam muito e cantavam relembrando os antepassados”. Antes mesmo dessa viagem, em suas conversas sempre abordavam a vontade e a necessidade de retornar à antiga maloca-cemitério, tendo como fundamento a proteção do local sagrado e o com o contato espiritual com os antepassados, porque ali se encontram presente suas memórias, isso possibilitou o planejamento de um projeto concebido a partir dessas discussões. O projeto proposto pela Associação do Povo Indígena Jupaú teve em sua execução a parceria da FUNAI, IBAMA, Associação de Defesa EtnoAmbiental Kanindé com aporte de apoio material, porque como aliados à causa indígena desenvolvem atividades desde 1992, além do que houve a participação de membros da JOCUM – Jovens Com Uma Missão e os discentes da UNIR na Expedição de Restabelecimento da Maloca. Yñamõrarikãgã. Nesse sentido, Pollack (1992, p.204) constata que “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente muito importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. A memória como elemento da afirmação cultural representa a própria história cosmogonia de um povo, sendo fundamental para sua sobrevivência física, cultural e territorial, conforme define Sahlins (1997, p. 41): “a cultura não pode ser abandonada, sob pena de deixarmos de compreender o fenômeno único que ela nomeia e distingue: a organização da experiência e de ações humanas por meios simbólicos”. Para entendermos o restabelecimento da antiga maloca-cemitério de Yñamõrarikãgã é preciso destacar que está relacionado a uma série de conceitos fundamentais como a territorialidade e representação definidos por Santos (2006), Costa (2004), englobando tanto a terra e tudo que 4 nela existe e principalmente a identidade como elemento de pertença ou conhecença social. Não podendo ser desprezado o conceito de etnodesenvolvimento desenvolvido por Bonfil Batalla (1982, p.131-145) como “la capacidad social de un pueblo para construir su futuro, aprovechando para ello las enseñanzas de su experiencia histórica y los recursos reales y potenciales de su cultura, de acuerdo con un proyecto que se defina según sus propios valores y aspiraciones”. Nesse aspecto de restabelecimento da maloca-cemitério também é concebida conceitualmente com os “marcadores territoriais”, definidos por Henriques (2003), aduzindo sua importância para a construção da identidade cultural de um povo, assim como o de “representação espacial” segundo Kozel (2004, p. 221), pois “advêm de um vivido que se internaliza nos indivíduos, em seu mundo, influenciando seu modo de agir, sua linguagem, tanto no racional como no imaginário...”. Para compreender esse restabelecer da antiga maloca, o trabalho em campo desenvolveu-se a partir da observação ou pesquisa participante, muito utilizada na Sociologia e Antropologia, estando diretamente vinculada com a participação real do pesquisador junto à comunidade ou grupo que se pretende estudar. Assim durante o período de 12 a 23 de julho de 2006, foi realizado o trabalho de campo, partindo da Aldeia Alto Jaru, Terra Indígena Uru-Eu-WauWau, em Rondônia, contando com a participação dos indígenas Jupaú: Mbawa-Ga, WarinaGa, Taroba-Ga, Paeron-Ga (Pitanga), Uká-Ga (Gordinho), Awapy-Ga (Negão), Koari-Ga, Mongtá-Ga; Boropó-Hen e Mandei-Hen, Biteté-Ga, Morangue-Hen, Tatuí-Hen, Tangain-Ga, Juwi-Hen; Francisco ou Chicão (FUNAI), Rogério Vargas Motta (IBAMA), Adnilson de Almeida Silva (Kanindé/UNIR), Rafael Prado (UNIR), Lindinalva Azevedo (UNIR), Manoel Carneiro (IBAMA); JOCUM: Luiz, Antônio Marcos, Eloir e Markus (Suíço). A IMPORTÂNCIA DA MALOCA E SUA REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA A expedição para a construção da maloca de Yñamõrarikãgã, próxima às cabeceiras do Rio Jamari, no Estado de Rondônia, constitui-se em grandes desafios. O primeiro deles é a imensa distância até à Aldeia Alto Jamari, aproximadamente quarenta quilômetros. O segundo é o aspecto da construção, ou melhor, do seu restabelecimento na Terra Indígena Uru-Eu-WauWau, em pleno início do Século XXI, particularmente feita por parte dos membros da Aldeia, 5 traz consigo não apenas uma caracterização física, mas, sobretudo simbólica implicando na continuidade de valores culturais do povo Jupaú, ou seja, a própria sobrevivência étnica em seu território. A compreensão do significado da maloca e da territorialidade para o povo Jupaú é que trazem em sua visão particular de mundo as raízes construídas e com a necessidade de mantê-las para assim justificar a própria existência enquanto grupo, tendo o sentido dado por Costa (2004, p.50) como “um ato, uma ação, pois o território reforça sua dimensão enquanto representação, valor simbólico”. A representatividade territorial para um povo com menos de trinta de anos de contato tendo seus valores pessoais, culturais e simbólicos esgarçados, sendo reduzido a algumas dezenas de pessoas, em decorrência dos inúmeros e violentos ataques e conflitos, além de serem vítimas de uma série de doenças estranhas ao seu mundo, contudo não se curvaram frente ao desafio imposto, o momento da reconstrução traduz a grandiosidade e o encontro com o sagrado. O retorno para a antiga maloca, segundo as narrativas do próprio grupo não se realizava a pelo menos catorze anos devido às constantes pressões, sendo que durante vários o anos se discutia e planejava o seu restabelecimento como uma forma de reencontrar seu passado e assim reverenciar seus mortos, pois ali se encontra parte de sua identidade, origem, história e a própria territorialidade, revelando o que Santos (2006, p.140) caracteriza como essa última “é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”. No ano de 2005 foi efetuada uma limpeza prévia na área da antiga maloca-cemitério, todavia, devido às singularidades amazônicas, a vegetação retomou e ocupou todo espaço. O nome Yñamõrarikãgã (cabeça de inhambu) é uma homenagem a um igarapé que fica nas imediações da maloca e porque no passado ao estabelecerem o local de moradia encontraram a cabeça dessa ave em cima do tronco de uma árvore, provavelmente abatida por caçadores ou seringueiros, sendo então batizada com tal nome, tem a representatividade simbólica e a definição geográfica do território. No processo de restabelecimento da antiga maloca-cemitério, vista como um fato histórico, mas também político e simbólico ocorreu a parceria e a logística de órgãos públicos e nãogovernamentais que desenvolve atividades com o povo Jupaú. Essas entidades foram 6 convidadas e são incentivadores da valorização cultural, mesmo recebendo questionamentos daqueles que não militam ou não entendem a causa indígena. Como pesquisadores sentimo-nos privilegiados, porque poucos foram aqueles não-indígenas que chegaram até Yñamõrarikãgã, e menor foi o número de pessoas que participaram do ato em contribuir para o restabelecimento de uma maloca após três dias de caminhada pela floresta e território Jupáu. O processo de caminhada para a maloca-cemitério obedece a ritualísticas importantes para o grupo, como fator de “marcação de territórios”, tendo os mais jovens caminhando sempre a frente dos demais levando seus de instrumentos de caça, pesca e guerra, seguido das mulheres, crianças e os não-indígenas e por últimos mais velhos. Essa é uma forma de proteção para que todos chegassem bem ao destino final. No caminho costumam parar em pontos estratégicos, não apenas para descansar, mas, sobretudo para adentrarem ainda mais na floresta em locais de barreiro para capturarem animais como: yuhua (veado), mutun’a (mutum), tapi’ira (anta), tayehua (queixada), ou pescarem yniã (cascudo), jandiá (mandi), piahua (jatuarana), pakwhua (pacu), namipipihua (cascudinho), yniãpe (bodó); caratinga (acará), piranha, piau e traíra, sendo que esses alimentos são indistintamente para todos e em qualquer momento que ocorrer a vontade do tau mãtera (quero comer) de cada um. O momento da caçada é de muita magia, como se fosse uma sinfônica noturna na floresta, onde o grupo coletivamente e empenha na captura do animal, atraindo-o através de silvos imitadores dos animais. Com o sucesso da empreitada o fogo é imediatamente acesso, o moquém é armado um móquem para preparar a iguaria, o animal é carregado, esquartejado e limpo no igarapé. Ocorre então à glorificação daquele que realizou tal proeza, indeléveis gargalhadas rompem a noite, enquanto esperam apreciar a carne, todos celebram e congraçam em volta do fogo. Do animal nada se perde, aproveita-se desde a cabeça ao aparelho digestivo para produzir lingüiça, porém o que não se pode carregar como mantimento, fica na floresta para que outros animais possam servir-se, completando a cadeia alimentar. Assim, quando ocorre a caçada, fica a impressão que os Jupaú não se cansam nunca, tampouco dorme, na manhã vê-se a disposição para continuar a longa caminhada. 7 Nessa jornada ocorrem as paradas de descanso em razão intenso calor da Floresta Amazônica, é muito sentarem ao chão e tecerem cestos de vários tipos utilizados no transporte às costas de seus pertences ou alimentos, tendo matéria-prima folhas novas de palmáceas como babaçu e inajá (Attalea maripa Aubl.) amarradas com talas de envireira (Xylopia sp). Não havendo mais necessidade do uso desses cestos abandonam-no próximo aos caminhos que percorrem em suas empreitadas de caça, pesca e coleta de produtos florestais, servindo desse modo como identificadores dos locais que habituam usam. Outra estratégia utilizada na longa caminhada para a maloca antiga é o estabelecimento de pontos de apoios que denominam de maloquinhas ou tapiris, podendo nela descansar, realizar as refeições e até mesmo dormir. Elas possuem uma estrutura muito mais simples tendo apenas a cobertura com folhas de palmeiras de babaçu, servem “como marcadores territoriais” e de representação simbólica e são utilizadas para outras atividades do grupo como caça e pesca, coleta de frutos e lazer, tornando-se igualmente importante na defesa do seu espaço e de seu povo. A chegada na maloca antiga causou uma sensação fantástica, talvez porque estivéssemos num espaço sagrado ou pela expectativa do convite feito e da oportunidade de conhecermos um pouco mais aquele povo e sua cultura, em que a riqueza existente na nossa sociedade parece não ter tanta representatividade para eles. Um punhado de farinha no prato é motivo de alegria e riso, mesmo que nele não contenha um pedacinho de mbiara (carne) ou de pirá (peixe). As atividades de restabelecimento da maloca aconteceram de forma coletiva, sendo os trabalhos iniciados no raiar do sol, conduzidos por decisão dos indígenas, ficando a palavra final com Mbawa-Ga, o mais idoso e experiente do grupo. Os trabalhados pesados eram de responsabilidade masculina, assim como a caça e a pesca como manda a tradição, ficando para as mulheres a preparação dos alimentos em moquéns, em folhas de pacowá (pacova) ou cozidos. Nesse reencontro com seu passado de grande significado espiritual, a forma de construção e as tecnologias ancestrais dividiram espaço com os instrumentos utilizados pela sociedade nacional que só foram conhecidas por eles após o contato com o não-indígena, uma vez que essas facilitam o trabalho. A primeira atividade realizada no restabelecimento da maloca-cemitério consistiu na limpeza física da área de entorno através do roçado, retirada de vegetação, encoivaramento e queima 8 da vegetação arbustiva e rasteira, com a utilização de instrumentos como terçados ou facões, foices, machados, enxadas e ainda um motosserra transportados por helicóptero alguns dias antes juntamente com gêneros alimentícios como arroz, feijão, farinha, produzidos pelos indígenas entre outros. Esse transporte foi possibilitado devido às ações de fiscalização que o IBAMA fazia na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau e Parque Nacional de Pacaás Novos, e como ocorreu um sobrevôo naquele espaço aproveitaram a oportunidade para deixarem esses materiais da maloca antiga, diminuindo o peso das bagagens levadas durante a expedição. As demais atividades ocorreram quase simultaneamente, enquanto uns se encarregavam em encontrar madeira bruta para a estrutura da edificação, outros faziam seu transporte deixando no local apropriado. Num segundo momento era feito abertura de buracos necessários ao levantamento da estrutura, utilizando-se cipós e alguns pregos. Essa estratégia de construção rápida utilizando instrumentos não-indigenas, devia ao fato dos vários compromissos com suas famílias que haviam permanecido na Aldeia e que poderiam passar necessidade com falta de alimento. A estrutura ao final ficou com uma dimensão aproximada de 100m² de área e quatro metros de altura no ponto mais elevado, tendo a cobertura uma forma arredondada. A terceira etapa do processo ocorreu na floresta com a retirada de palha de babaçu (Orbignya phalerata, Mart), posteriormente foram transportadas pelos homens e dobradas com a participação de todos os presentes na expedição, e finalmente fez-se a cobertura da malocacemitério. Alguns detalhes interessantes marcaram profundamente o restabelecimento da maloca e vale citá-los: a) Taroba-Ga e Mongta-Ga ao realizarem a amarração da cobertura, estavam caindo de costas, uma vez que a madeira com troncos finos se rompeu, porém com agilidade fantástica, realizaram acrobacia no ar e atingiram o solo literalmente em pé; b) quando um dos lados da cobertura estava pronto, uma das madeiras de sustentação quebrou-se, pairando no ar um misto de desespero e profunda tristeza, mas imediatamente todos se mobilizaram e trocaram-na por outra com melhor qualidade; c) Mbawa-Ga desceu da maloca construída em poucos segundos, demonstrando que apesar da idade avançada ainda é extremamente ágil; d) Warina-Ga subiu e desceu de uma árvore com aproximadamente dezoito metros de altura numa rapidez indescritível, isso com um laço nos pés que lhe dava suporte e ainda um terçado (facão) nas mãos o qual cortou as galhas da árvore próxima à maloca restabelecida para que ela não danificasse a construção. 9 Por decisão dos indígenas a maloca foi parcialmente construída, sendo que a frente e o fundo não foram revestidos com palhas das palmeiras. No momento não entendemos porque não optaram pelo seu término, posteriormente explicaram que voltariam no ano seguinte e de fato fizeram isso, pois era uma estratégia para que outros parentes conhecerem Yñamõrarikãgã e assim ajudasse a protegê-la de invasores e reverenciá-la como local sagrado de suas tradições. Como iriam retornar no ano seguinte deixaram as ferramentas utilizadas na construção. Nesse aspecto a representação de sua cosmogonia assume os papéis de “marcadores de territórios”, conforme enfatizado por Henriques (op.cit., p. 9-11). No contexto do restabelecimento da maloca Jupaú aparecem esses marcadores, sendo plenamente identificáveis, como: a) marcadores vivos por considerarem o rio e a floresta como elementos do seu meio; b) os simbólicos porque ali encontram sua história e as memórias dos antepassados; c) os fabricados que representa a sacralização do espaço construído e as técnicas utilizadas em tal atividade; d) os históricos por representar a mobilização do grupo; e) os musicais com a expressão de canções para celebrar as vitórias e relembrar dos antepassados; f) os funcionais com o restabelecimento de trilhas que levam à maloca antiga, permitindo a caça e a pesca. As representações simbólicas constituem a amálgama da cultura, onde o mesmo objeto pode ter diferentes significados em culturas distintas, logo o que apresenta sagrado para uns, não é para outros ou não tem importância alguma. A sua criação depende substancialmente dos fatores históricos, econômicos, sociais e ambientais, sendo que: O mundo das representações é anterior ao nosso nascimento e outros o construíram para nós, porém precisamos, no decorrer da existência individual, criar mundos simbólicos pessoais ou inventar uma linguagem, e deste modo, na relação que estabelecemos com os outros, passamos a construir nosso próprio mundo semiótico. (KOZEL, op.cit., p.229). Nesse universo de representação o restabelecimento da maloca Iñamũrarikãgã, envolve aspectos da espiritualidade e da materialidade, a primeira com a relação com a evocação dos espíritos protetores do povo, o segundo como um marcador de território. Em sinal de amizade e confiança da presença de não-indígenas, Mbawa-Ga revelou que estava ali para lembrar dos seus queridos parentes antepassados, mostrando onde era a maloca e os locais do sepultamento, explicando que “o Ga significa que é homem vivo, enquanto a mulher é Hen’a, 10 quando morrem são chamados pelo nome e acrescentam o wae, como uma forma de manter as memórias”. Durante o processo de restabelecimento da maloca, realizado em três dias, embora a expedição fosse de doze dias, na segunda noite um dos homens Jupaú realizou o ritual do omãpuãbuga (choro) e do imbu’ika (canto), como forma de relembrar a memória de sua mãe. É uma manifestação muito forte e serve para realimentar a alma através da invocação dos bons espíritos que auxiliam na proteção do território e de sua gente, ao mesmo tempo em que retribui com o choro e a música como forma de agradecimento por tudo àquilo que conquistaram. Esse ritual provoca sensações arrebatadoras produzindo um êxtase sublime e levando-o a introspecção psíquica unindo o passado com o presente, ou seja, naquele momento o sentimento de morte parece ser abandonado, como enfatiza Schaden (1974, p.131): “de modo inequívoco resulta de tudo isso que morte não equivale necessariamente a destruição”. A canção em formato de ladainha exalta a glória, os valores e as memórias, mas traz a inquietação com o presente refletido no receio do surgimento de entidades maléficas que possam causar danos ao povo, à cultura e ao território. O estabelecimento do ato de representação simbólica no ritual evocando-se as reminiscências, como aquela realizada pelo indígena na volta da antiga maloca, enquanto os demais ficam em silêncio profundo silêncio e somente ele se manifestando nesse momento especial de sua existência, demonstra o respeito e a identidade do grupo, conduzindo-nos a reflexão de que: Os grupos só acham seu equilíbrio quando dispõem de meios para se aproximar das fontes da potência e da verdade. Os ritos correspondem a isto. A dança prepara o transe: a divindade penetra então no indivíduo que age e fala em seu nome. O sacrifício reata a aliança com as forças que comandam o mundo: ele permite captar sua atenção, acalmar sua cólera e atrair suas boas graças... (CLAVAL, 2001, p. 156157) Nesses momentos simbólicos, os rituais espirituais integrantes da cosmogonia Jupaú constituem-se como “marcadores territoriais” permitindo a manifestação física dos espíritos, incorporando no indígena e assim produz o canto, choro, gritos, inclusive danças em algumas situações, de tal modo que em seu imaginário essas representatividades simbólicas “ajudam a estruturar as identidades coletivas, o território desempenha um papel central”, conforme constata Piveteau (1995 apud Claval op. cit., p. 158). 11 Um elemento muito poderoso e intimamente ligado ao processo de restabelecimento da maloca é o fogo, sempre o fogo, permitindo não apenas o preparo da alimentação, mas oferece dupla proteção contra os animais ferozes da floresta que podem atacá-los, além de aquecer as noites frias de julho, sendo colocado embaixo e ao lado das redes. Ele está invariavelmente nas coivaras, na limpeza do terreno da maloca e queimando a vegetação seca o tempo todo, facilitando as atividades desenvolvidas pelo grupo. O fogo também como parte do universo simbólico das representações protege o guerreiro da ação sinistra de Anhangá, como explica Awapy-Ga: “se não fosse pelo fogo acesso à noite quando estava sozinho na maloca, uma vez por brigar com meu irmão, e outra quando estava caçando, Anhangá teria me levado”. Esse espírito maléfico é uma visagem ou assombração e apresenta-se como um grande morcego sugador de sangue, mas pode assumir quaisquer outras formas, conforme as narrativas míticas do povo Jupaú, desaparece com as pessoas para um local desconhecido. Outro elemento constante e espiritual é a água, fazendo-os lembrar da antiga maloca situada às margens do rio, pois onde habitam atualmente possui um igarapé intermitente em muitos trechos, privando-os da pesca e dos demorados banhos. Ao chegarem à Yñamõrarikãgã uma das primeiras ações que tomaram foi direcionar até o rio onde passaram longo tempo tomando banho, contemplando as águas e relembrando a história do lugar. Embora não podemos afirmar que a cultura do povo Jupaú seja religiosa, tem certos atributos que compõe o sagrado através das ritualísticas espirituais e a utilização de elementos da natureza semelhantemente ao constatado por Gil Filho (2004, p. 258), onde “em muitas culturas religiosas a realidade sensível é inerentemente sagrada, na medida em que faz parte do mundo da natureza”. Nessa relação de integração do homem e a natureza, a maloca cumpre seu papel de afirmação da identidade cultural do povo, conforme constata Sahlins (op. cit., p. 41): “as pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e significados que não podem ser determinados a partir de propriedades biológicas ou físicas”. Sob essa ótica acreditamos que o conhecimento, o respeito e a compreensão do mundo indígena com seus valores, símbolos e significados de representação e de contribuição significativa não somente para entendermos as diferenças existentes entre as várias culturas 12 humanas, mas, sobretudo para que possamos tê-las como referencial de aprimoramento de nossas próprias relações. A territorialidade, as representações simbólicas se manifestam por uma necessidade objetiva em ter resguardado os valores intrínsecos construídos ancestralmente, sendo que o “espaço não é a cristalização do fenômeno, mas parte das possibilidades relacionais do mesmo. Assim, construímos imagens do espaço e atribuímos a elas as representações de nossa existência”, na definição de Gil Filho (op.cit. 259), e como tal deverá ser entendido, pois explica a existência das relações sociais e a materialidade das diferentes resiliências colocadas ao grupo. Nesse contexto das representações territoriais, é mister a abordagem de Bonfil Batalla (1991) situando-o como um fenômeno social em que a “capacidad de decisión que define al control cultural es también una capacidad social, lo que implica que, aunque las decisiones las tomen individuos, el conjunto social dispone, a su vez, de formas de control sobre ellas”. A necessidade objetiva é, assim, estendida pela compreensão da capacidade de decisão e a da apropriação dos espaços com seus objetos e bens naturais, incluindo os aspectos psíquicosociais e míticos, contribuindo na formação e manutenção de sua cosmogonia, permitindo a existência material do grupo. Os objetivos propostos para a execução do trabalho foram plenamente alcançados, onde o convívio de doze dias na Aldeia, sendo três deles na execução da construção da antiga maloca-cemitério, permitiu entender um pouco do modo de vida do povo Jupaú. A observação participante foi de um grande significado para todos, estabelecendo-se um círculo de amizade, solidariedade e confiança, possibilitando o engajamento ativo nas atividades que propuseram. Nesse contexto, mesmo a maloca não sendo totalmente construída por decisão do próprio povo da Aldeia Alto Jamari, fomos convidados a participar em 2007 de dois importantes rituais que simbolicamente representam os “marcadores territoriais”. O primeiro ritual é o de passagem conhecido como festa da menina-moça, marcando a entrada da fase adulta da mulher; o segundo com o Yreruá (dança das flautas de taboca) com a manifestação e evocação dos espíritos dos antepassados como o ocorrido em Yñamõrarikãgã. Em ambos rituais as relações sociais tornam-se mais fortalecidas, pois são neles que os membros de outras aldeias se encontram, cantam, dançam, bebem e comem seus produtos 13 ancestrais, realizam as tarefas de forma coletivas com os papéis definidos entre homens e mulheres, além de contar suas tradições e situações vivenciadas no dia-a-dia. A partir dessas participações passamos a contar com valioso material de pesquisa científica, inclusive fotográfica, com as imagens sendo posteriormente devolvidas ao povo, como sinal de respeito e ética por terem permitido o acesso ao seu território e aos valores que preciosamente tentam manter e preservar frente às situações de “fricção étnica” na definição de Cardoso de Oliveira (1972). Numa expedição também ocorrem alguns dissabores, não provocados pelos indígenas, mas pela distância percorrida ocasionando o seguinte: lesões em parte dos componentes da equipe causados pelos espinhos e estrepes perfurando pés e mãos, galhos e vegetação machucando o rosto e o extenuante cansaço físico no corpo; o frio intenso; as inevitáveis picadas de insetos como as formigas tracoá, taxi, de fogo, tocandira e vespas conhecidas como cabas; calçados, roupas e bolsas se deteriorando, além de serem trituradas por saúvas e marimbondos; e a máquina fotográfica se oxidando, não podendo ser mais utilizada. A Expedição à Yñamõrarikãga foi tão importante ao povo Jupaú despertando nos parentes das demais aldeias o desejo de restabelecer antigas trilhas e malocas de igual significado: a valorização cultural, a proteção do território, o reencontro com os espíritos dos antepassados, além de outras simbologias e representações. CONSIDERAÇÕES FINAIS NÃO CONCLUSIVAS A Expedição para o restabelecimento da maloca Yñamõrarikãgã, ofereceu grandes aprendizados, principalmente sobre a importância da representação simbólica dos povos indígenas em articular o espaço cultural de vivência, impregnando nele seu conhecimento e sabedoria, primando pelas relações sociais de humanismo, companheirismo e participação coletiva, estabelecendo o caráter respeitoso de preservação e utilização racional da biodiversidade. A experiência de conviver com a cultura Jupaú é única e indescritível, causando a sensação de paz de espírito e harmonia, típico do seu modo de vida simples do ponto de vista do nãoindígena, que se contenta com o muito que a natureza lhes oferece, dando-lhe uma 14 grandiosidade mágica. Esse povo sorridente, hospitaleiro e trabalhador merecem mais do que ser reconhecido e respeitado. É do seu imaginário e das relações estabelecidas com seus antepassados e com o meio onde vivem encontrando a energia indispensável para a defesa de seu território imemorial e do rico patrimônio imaterial das tradições, valores e costumes. Entender isso, não é apenas conciliar com o passado, embora esse, também deverá ser explicado. O ato do restabelecimento da antiga maloca-cemitério representa antes de tudo para eles o pacto amalgamador de sua cosmogonia com o mundo exterior, oportunizando as atuais e futuras gerações o conhecimento das fortes lições porque contêm sua história e a vida, mesmo com as constantes tentativas de “invisibilidade” efetuadas pela sociedade nãoindígena. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONFIL BATALLA, Guillermo. El etnodesarrollo: sus premisas jurídicas, políticas y de organización. In: F. Rojas Aravena (Ed.): América Latina: etnodesarrollo y etnocidio. San José de Costa Rica: FLACSO, 1982. BONFIL BATALLA, Guillermo. Pensar nuestra cultura, ensayos. 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São Paulo: Editora Pedagógica/Edusp. 1974. 16 ANEXO (MAPA DA TERRA INDÍGENA URU-EU-WAU-WAU) 17 TERRA INDÍGENA URU-EU-WAU-WAU LOCALIZAÇÃO DAS ALDEIAS - TERRA INDÍGENA URU-EU-WAU-WAU 64°15' 64°00' 63°45' 63°30' 63°15' 63°00' -64 62°45' -63 CACAULÂNDIA LEGENDAS V& $T M.NEGRO 10°30' de Atração JAMARI # Postos Indígenas Aldeias antigas confirmadas CAMPO NOVO DE RONDÔNIA $T 10°30' $T # GOVERNADOR JORGE TEIXEIRA # MAMORÉ Jamari- 623 ALTO JAMARI Inãmõrarikãgã # Limites Municipais $T ALTO JARU -11 11°00' JARU GUAJARÁ-MIRIM $T $T -11 11°00' JARU # ALTO Alto 10°45' 621 NOVA Trilha T$ $T V& 621 10°45' Trilha Alto Jaru-Cmte Ary $T INÃMÕRARIKÃGÃ SÃO LUIZ(ORO-TOWATI) $T # V& MIR.DA SERRA J A M A R I TRINCHEIRA(AMONDAWÁ) ALVORADA D'OESTE 11°15' O E S T E D LIMOEIRO D 'O E IA S H O D A N 1 P.N. Pacáas Novos IN A D H CUJUBIM R A C PORTO VELHO M ALTO PARAISO 2 O ARIQUEMES 3 I A A E L A N D THEOBROMA SÃO MIGUEL DO GUAPORÉ 5 JARU 4 7 8 6 G 11 12 CACOAL EST E U A P O PIG O 14 13 15 16 R É A P O R É 19 1718 11°30' 11°30' P IM E TE U G D'O G OR O O ALE D FL O . D'O C TA IS ES C EST N ALT A COSTA MARQUES ÃO URUPÁ . D'O D O L E N E R B U ALV U F A IG 21 S ES M GUAJARÁ-MIRIM PEDREIRAS(CABIXI) D'O ES 22 T 10 E N O TE JI-PARANÁ 9 S Ã 11°15' COM.ARY (ALTA LÍDIA) V BURITIS NOVA MAMORÉ AL # Postos C V& $T PN PACÁAS NOVOS PARECIS VILHENA CHUPINGUAIA $T CORUMBIARA 20 CEREJEIRAS PIMENTEIRAS D'OESTE CABIXI SERINGUEIRAS 11°45' 11°45' COSTA MARQUES -64 64°15' 0 30 64°00' -63 63°45' 63°30' 63°15' 63°00' 62°45' 60 Km FONTE: Elaborado com base nos dados da SEDAM/ZSEE/PLANAFLORO, Escala 1:1.000.000 Localização das Aldeias, baseado em informaçãoes de campo de Rogério Vargas Mota Adnilson de Almeida Silva/2007