1 - Bertrand

Transcrição

1 - Bertrand
Este livro é dedicado à memória das
vítimas do Holocausto e do genocídio
que não puderam contar as suas próprias
histórias.
Eva Schloss
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deixar algo para trás
— E agora sei que Eva vai querer dizer algumas palavras.
A frase ecoou pelo amplo salão e apavorou-me.
Eu era uma mulher calma, de meia-idade, casada com um banqueiro de investimentos e mãe de três filhas crescidas. O homem
que tinha falado era Ken Livingstone, nessa altura ainda o líder
ativista do Conselho da Grande Londres, que em breve seria abolido, e o maior espinho do Governo da primeira-ministra Margaret
Thatcher.
Tínhamo-nos conhecido horas antes nesse dia, e ele certamente
desconhecia que aquelas palavras me causariam insegurança. Ainda
não sabia que se tratava do início da minha longa viagem até me
conciliar com os terríveis acontecimentos da minha infância.
Tinha 15 anos quando eu e milhares de outras pessoas atravessámos às sacudidelas a Europa, num comboio composto por carruagens
de gado escuras e a abarrotar, e fomos despejados junto aos portões
do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Mais de quarenta
anos haviam passado, mas, quando Ken Livingstone me pediu para
falar, uma sensação de terror absoluto formou-me um nó no estômago. Senti vontade de rastejar para baixo da mesa, e esconder-me.
Era uma manhã do início da primavera em 1986, e estávamos
na inauguração da exposição itinerante de Anne Frank nas Mall
Galleries, junto ao Instituto de Arte Contemporânea de Londres.
Agora, mais de três milhões de pessoas em todo o mundo já assistiram a essa exposição, mas nessa altura estávamos apenas a começar a
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contar a história do Holocausto a uma nova geração através do diário
da Anne e das fotografias desta e da sua família.
Essas fotografias ligavam-me à Anne de uma forma que não poderíamos imaginar quando éramos duas jovens que costumavam brincar
juntas em Amesterdão. Tínhamos personalidades muito diferentes,
mas a Anne era uma das minhas amigas.
Após a guerra, o pai da Anne, Otto Frank, regressou à Holanda
e iniciou com a minha mãe uma estreita relação nascida das mútuas
perdas e da mágoa de ambos. Casaram-se em 1953 e Otto tornou-se
meu padrasto. Deu-me a máquina fotográfica Leica da qual se servira
para tirar as fotografias da Anne e da sua irmã, Margot, para que eu
pudesse encontrar o meu próprio caminho no mundo e tornar-me
fotógrafa. Usei-a durante muitos anos e ainda a conservo.
A história da Anne é a de uma jovem que sensibilizou o mundo
inteiro através da simples humanidade do seu diário. A minha história
é diferente. Também fui uma vítima da perseguição nazi e fui enviada
para um campo de concentração, mas, contrariamente à Anne, sobrevivi.
Na primavera de 1986, há quase quarenta anos que vivia em
Londres e, nessa altura, a cidade mudara, quase de forma irreconhecível: tinha passado de uma pobre concha bombardeada para uma
metrópole pululante, dinâmica e multicultural. Desejava poder afirmar ter passado por uma transformação semelhante.
Tinha refeito a minha vida e constituído família com um marido
maravilhoso e com os meus filhos, que significavam tudo para mim.
Até dirigia o meu próprio negócio. Contudo, faltava uma grande
parte de mim. Não era eu, e a jovem que antes andava de bicicleta,
dava saltos mortais e era uma fala-barato encontrava-se trancada num
sítio que me era impossível alcançar.
À noite, sonhava que um grande buraco negro me engoliria. Quando
os meus netos me interrogaram sobre a tatuagem no braço com a qual
tinha sido marcada em Auschwitz, respondi-lhes que era apenas o meu
número de telefone. Omiti o passado.
Contudo, dificilmente poderia recusar um convite para falar na
inauguração da exposição de Anne Frank, sobretudo tratando-se do
trabalho de uma vida de Otto e da minha mãe.
A pedido de Ken Livingstone, levantei-me e comecei a falar,
hesitante. Provavelmente, para desespero das pessoas na plateia que
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estavam à espera de uma breve introdução, verifiquei que, depois
de começar, não consegui parar. As palavras saíam em catadulta, e
pus-me a divagar, relatando todas as experiências traumáticas e dolorosas pelas quais havia passado. Sentia-me atordoada e aterrorizada:
não me recordo do que disse.
A minha filha Jacky, que estava a assistir, afirma: «Foi arrasador.
Sabíamos muito pouco sobre as experiências da minha mãe, e, subitamente, ela estava ali no palco, a falar com dificuldade e desfeita em
lágrimas.»
As minhas palavras podem não ter sido coerentes para os outros,
mas pessoalmente vivi um momento inesquecível. Recuperara uma
pequena parte de mim.
Apesar de um início tão pouco promissor, depois desse evento um
número cada vez maior de pessoas pediu-me que falasse sobre o que
acontecera durante a guerra. No início, pedi ao meu marido que me
preparasse discursos, os quais lia em voz alta… e mal. Contudo, aos
poucos, encontrei a minha própria voz e aprendi a contar a minha
história.
Muitas coisas mudaram no mundo desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, mas infelizmente o preconceito e a discriminação permaneceram. Do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, ao
apartheid na África do Sul, à guerra na ex-Jugoslávia e aos capturados
em conflitos em países como a República Democrática do Congo,
vi pessoas em todo o mundo a lutar para serem tratadas com compreensão e igual dignidade humana. Como judia, percebi que nem
a verdade sobre o Holocausto tinha despertado o mundo para todo
o horror do antissemitismo. Hoje ainda existem muitas pessoas que
procuram bodes expiatórios com base na cor da pele, nos antecedentes, na sexualidade ou na religião.
Desejava falar com essas pessoas sobre a amargura e a raiva que os
fez culpar outros. Tal como eles, também eu sabia como a vida por
vezes se revela difícil e injusta. Durante muitos anos, também me
senti a transbordar de ódio.
À medida que o meu mundo se foi expandindo, comecei a trabalhar
com a Casa de Anne Frank em Amesterdão e a Fundação Anne Frank,
no Reino Unido. Comecei por escrever um livro sobre as minhas
experiências, extravasando memórias do Holocausto; depois, muito
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mais tarde, com o meu irmão, Heinz, procedi a um relato da minha
vida para as crianças. Fiquei surpreendida quando outras pessoas
também quiseram escrever sobre a minha história.
Acabei por viajar pelo mundo inteiro e falar com pessoas nos EUA,
na China, na Austrália, e em toda a Europa. Em todos os lugares
onde falei, as pessoas que conheci emocionaram-me e mudaram-me
ao ponto de poder afirmar honestamente que deixara de ser alguém
incentivado pelo ódio e pela amargura. Nada alguma vez desculpará
os crimes horríveis que os nazis cometeram. Esses atos serão sempre
absolutamente imperdoáveis e espero que, devido a histórias pessoais
como a minha, sejam sempre recordados dessa forma. Porém, através
do meu trabalho de conseguir chegar às pessoas e contar a minha história, tornei-me outra pessoa — talvez aquela que sempre fui no meu
íntimo —, e isso foi uma dádiva para mim e para a minha família.
Provavelmente, a parte mais significativa do meu trabalho terá
sido o diálogo com crianças em escolas e com reclusos na prisão.
Sempre que olho para uma audiência de crianças pequenas de diferentes origens e países, ou de homens e mulheres condenados por
crimes graves, posso dizer que eles se interrogam sobre o que têm em
comum comigo — uma senhora baixinha com um casaco de lã e um
sotaque australiano. Contudo, sei que, no final do tempo que passarmos juntos, teremos partilhado o sentimento de que por vezes não nos
enquadramos, de que a vida foi dura, e não sabemos o que o futuro
nos reserva. Acabamos, em regra, por não ser assim tão diferentes.
Quero que eles saibam o que aprendi: que, apesar do nosso desespero, a esperança nunca morre. A vida é preciosa e bonita — e ninguém devia desperdiçá-la.
Neste livro, vou falar-lhes da minha família e da longa viagem que
fiz, literalmente e em espírito, com a minha mãe. Também contarei
muito mais sobre o meu pai, Erich, e o meu irmão, Heinz. Tudo o
que direi aqui é que perdi os dois e que, mesmo que me conheçam
agora com esta avançada idade, uma parte de mim continua a ser
a jovem de 15 anos que os ama, que sente desesperadamente a sua
falta, e que pensa neles todos os dias.
Há um momento especial do tempo que passámos juntos como
uma família que me guiou durante todos os anos desde essa altura e
influenciou o meu trabalho.
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Corria o mês de maio de 1940 e estávamos reunidos no nosso
apartamento, em Amesterdão. Já tínhamos fugido da nossa casa, em
Viena, e nessa altura os nazis haviam invadido a Holanda — as piores
notícias possíveis. Geralmente, podia confiar no meu irmão, Heinz,
mais velho, para me tranquilizar e animar, mas naquela noite ele
estava perturbado e incapaz de encontrar as palavras certas. Disse-me
que não sabia se o nosso pai poderia continuar a manter-nos a salvo,
que os nazis estavam a chegar e a levar os judeus. «Estou muito assustado, Evi», disse. «Tenho realmente medo de morrer.»
O meu pai juntou-nos no sofá e abraçou-nos. Disse-nos que éramos
elos de uma cadeia e que viveríamos através dos nossos filhos.
«Mas e se não tivermos filhos?», perguntou o Heinz.
«Filhos, prometo-vos isto», disse o meu pai: «Tudo o que fazem
deixa algo para trás; nada se perde. Todo o bem que praticaram
continuará nas vidas das pessoas que tocaram. Fará uma diferença
para alguém, em algum lugar, algum dia, e os vossos atos serão
continuados. Tudo está ligado como uma corrente que não pode ser
quebrada.»
Neste livro vou contar-vos como tentei dar o meu melhor para
deixar algo importante para trás.
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uma família vienense
Para quem fosse jovem, ambicioso e judeu na viragem do século
XX, só havia um lugar no qual poderia estar: Viena.
Os meus olhos de criança absorveram a grandiosidade majestosa
e a sofisticação da cidade; lá eu era uma verdadeira vienense. Quando
nasci, vivíamos numa ampla mansão nos arredores de Hietzing,
embora a minha família tenha protagonizado uma longa e por vezes
turbulenta história na cidade.
Até ao final da Primeira Guerra Mundial, Viena era considerada a
joia da coroa dos Habsburgo, a sede do vasto e imponente império
austro-húngaro, que se estendia da Ucrânia e da Polónia através da
Áustria e da Hungria, e até Sarajevo, na região dos Balcãs.
No período pré-guerra, Viena era uma potência comercial e cultural; os negócios eram impulsionados pelo comércio do rio Danúbio,
enquanto compositores, como Gustav Mahler, escritores, como Arthur
Schnitzler, e médicos, como Sigmund Freud, iluminavam as ruas, os
teatros de ópera e os cafés com novas ideias. Era praticamente impossível não se ser atraído pelo entusiasmo dos que planeavam atividades
artísticas. No café Central poder-se-ia encontrar Leon Trotsky a jogar
xadrez e a congeminar a revolução; no café Sperl, Egon Schiele e uma
das suas modelos poderiam estar a fazer uma pausa na pintura dos seus
provocadores retratos de nus.
Viviam-se dias emocionantes. Em 1910, a população da cidade
ultrapassava os dois milhões. As largas avenidas de Ringstrasse estavam cercadas de ruas com novos blocos de apartamentos destinados
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a uma crescente classe média constituída por lojistas e comerciantes.
Essas pessoas formavam o público da cultura vienense — de súbito,
começaram a comprar bilhetes para o teatro, a comer fora nos restaurantes, e a fazer passeios turísticos pelos bosques e colinas de Viena.
Uma parte cada vez maior dessa classe média era formada por uma
comunidade de judeus cultos e bem-sucedidos.
Sem dúvida que o povo judaico já morava em Viena, entre idas
e vindas, há cerca de 700 anos; contudo, uma série de governantes
intransigentes fizera com que os judeus fossem expulsos da cidade, e
a comunidade permanecera pequena e instável. Somente a partir de
1867, após a política de tolerância religiosa e igualdade cívica instituída pelo imperador Francisco José, é que a comunidade judaica começou a crescer. Nos trinta anos seguintes, a população judaica de Viena,
que antes se compunha de menos de 8 mil pessoas, subiu para mais
de 118 mil habitantes e em pouco tempo começou a desempenhar um
papel proeminente na vida vienense.
Algumas dessas famílias judaicas eram muito ricas e conhecidas.
Compraram casas palacianas na Ringstrasse e decoraram-nas com mármore e ouro. Um pouco mais abaixo na classe social ­encontravam-se
os profissionais da classe média. No começo do século XX, quase três
quartos de todos os banqueiros e mais de metade de todos os médicos, advogados e jornalistas eram judeus. Havia mesmo uma equipa
de futebol judaica muito popular que fazia parte do clube desportivo
Hakoah.
Em seguida, uma crise económica e o colapso da indústria da
parafina, que dava emprego a muitos judeus polacos, seguida de
uma revolta nos Balcãs e, eventualmente, da Primeira Guerra
Mundial, trouxeram novas vagas de imigrantes para Viena. Esses
­recém-chegados eram famílias de judeus mais pobres e menos instruídos, vindos de regiões situadas mais a leste, como a Galiza polaca.
Instalaram-se em redor da estação ferroviária a norte de Viena, numa
parte da cidade chamada Leopoldstadt. Aparentemente, essas famílias eram mais religiosas e menos «alemãs» na sua cultura do que a
comunidade judaica, que já havia assimilado o estilo de vida austríaco. Famílias como a minha jamais travariam conhecimento ou
se misturariam com esses novos imigrantes, que no futuro seriam
vítimas de um preconceito antissemita ainda mais vincado.
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O meu pai provinha de uma família de classe média bem estabelecida. O meu avô, David Geiringer, nasceu na Hungria em 1869.
Depois de se mudar para Viena, fundou uma fábrica de sapatos chamada Geiringer & Brown, e quando o meu pai, Erich, nasceu, em
novembro de 1901, o negócio caminhava muito bem.
Tenho apenas uma fotografia dos meus avós paternos juntos. O
meu avô parece uma pessoa metódica, tem bigode e usa um chapéu
de coco, enquanto o meu pai e a minha tia, nessa altura crianças,
estão vestidos com trajes de marinheiro a olhar para a câmara com
uma expressão séria. A minha avó, Hermine, é esguia e elegante, e na
foto parece ter pelo menos um palmo e meio a mais de altura devido
ao chapéu enorme envolto por camadas de renda preta e de chiffon, o
auge da moda nessa altura. Tinha chegado a Viena, vinda da região
da Boémia, que hoje faz parte da República Checa.
Mesmo com a necessária imobilidade fria exigida nas fotografias da
época, pareciam uma família feliz, e é essa a lembrança que o meu pai
tinha. Infelizmente, pouco tempo depois, foi diagnosticado um cancro
à minha avó, que morreu em 1912, com 34 anos. O meu avô voltou a
casar, com uma mulher que se revelou uma madrasta intransigente, e,
por conseguinte, o meu pai saiu de casa quando ainda era um adolescente
e começou a definir a sua própria trajetória. A sua primeira experiência de
uma vida em família tivera um fim brusco e infeliz, mas ele estava prestes
a conhecer a mulher com quem passaria o resto da vida, a minha mãe.
Devo dizer que a minha mãe era bonita. Enquanto o meu pai
era moreno e vistoso, a minha mãe era loira e de olhos azuis, tinha
cabelos ondulados e um sorriso deslumbrante. Chamava-se Elfriede
Markovits, mas todos a tratavam por Fritzi, e era uma mulher cheia
de vida. Uma das suas fotos de que mais gosto foi tirada quando
ela era ainda uma jovem, e estava a sorrir e a dar de comer a um
cavalo. As circunstâncias estavam longe de ser agradáveis — tinha-se mudado para o país no qual o meu avô estava posicionado com
o exército para escapar à fome; mas, ainda assim, ela não perdera o
sorriso. A fotografia poderia transmitir a impressão de que era uma
mulher prática e rústica, mas na verdade não era nada disso. Pelo
menos naquele momento.
Helen, a mãe de Fritzi, era natural de uma família muito rica, que
possuía vinhas no que hoje é a República Checa e também uma terma
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de águas sulfurosas, próxima de Viena, em Baden bei Wien, um lugar
que detestei conhecer, porque cheirava a ovos podres.
A situação financeira da minha avó diminuiu consideravelmente
quando se casou com o meu avô, Rudolf Markovits, que representava
Osram, uma empresa que fabricava lâmpadas, entre outros produtos.
Embora o meu avô fosse um bom vendedor e a família estivesse longe
de ser pobre, o fim da Primeira Guerra Mundial trouxe muitas dificuldades à maioria dos austríacos.
A comida fora severamente racionada durante a guerra, e a queda
do regime dos Habsburgo, em 1918, deixou a Áustria em apuros. O
país recebeu indemnizações financeiras pelos prejuízos em 1919 com
o acordo de paz do Tratado de Versalhes, mas a nação foi à falência
antes de a quantia ser definida.
O que antes fora o local mais importante de um vasto império
­tornara-se um país pequeno, desprovido dos seus mais lucrativos recursos. A indústria e a agricultura, que tinham sido a espinha dorsal do
império austro-húngaro, estavam agora a sobreviver à custa das economias de outros países, como a Polónia e as recém-independentes
Checoslováquia, Hungria e Jugoslávia. Essas novas nações mantinham
a Áustria sob resgate até à resolução das disputas de fronteiras, e imediatamente se espalhou em toda a Europa o boato de que os cidadãos de
Viena estavam a morrer à fome.
A certa altura, os Markovits tinham tanta fome que mataram e
cozinharam o seu pássaro de estimação. A minha mãe, que amava
o bicho, lembra-se de ter chorado, ao mesmo tempo que separava a
carne dos ossinhos para comer.
Dessa forma, posso afirmar que, no momento em que Erich
Geiringer, com 17 anos, e Fritzi Markovits, de 14, se conheceram,
os meus pais já estavam familiarizados com as dificuldades e a incerteza. Porém, a consciência de que as circunstâncias de vida poderiam
mudar de um momento para o outro não afetou a alegria de viver
dos anos 20, em Viena. Como esta carta de 1921 o demonstra, o
meu pai estava decidido a não permitir que alguém se interpusesse
no caminho dos dois, nem sequer a mãe de Fritzi, que lhe dissera
que a filha era demasiado jovem para assumir um relacionamento
tão sério.
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Viena, 17 de agosto de 1921
Prezada senhora,
Recebi a sua carta do dia 15 e de início fiquei bastante
chocado, mas depois ocorreu-me que a senhora deve ter feito
isso com boas intenções. Sinto-me muito grato pela confiança
que atribui a Fritzi e a mim próprio. Tem alguma razão
em muitos aspetos, devo admiti-lo, embora seja doloroso para
mim, que já avancei com os nossos planos para o futuro.
Amadureci a ideia por um momento, e não me dei conta da
resistência que ela traria.
Lamento, mas não posso aceitar a sugestão feita pela prezada senhora, pedindo que me vá divertir. A minha aversão
a esse tipo de prazeres já é profunda e data de há muito. A
partir do momento em que conheci Fritzi, deixei de me interessar por qualquer tipo de diversão…
Desde o primeiro momento que encarámos o nosso relacionamento com seriedade, caso contrário não manteríamos a nossa
profunda amizade…
Prezada senhora, espero que não fique aborrecida quando
falar a Fritzi da sua carta. Não posso esconder-lhe algo tão
importante. Quero pedir-lhe perdão por discordar da sua afirmação de que Fritzi ainda é a adolescente que a senhora e o
seu marido julgam que é. Embora ela continue a ir à escola,
tem mais maturidade do que a sua idade sugere, o que a
senhora terá de admitir.
Agradeço novamente, prezada senhora, as boas intenções
que me demonstrou…
O seu servo,
Erich Geiringer
Não permaneceu subjugado por muito tempo. Erich e Fritzi
casaram em 1923, e formavam praticamente o casal mais jovem da
cidade. Era o que pensaria, se esbarrasse neles, enquanto passeavam
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pela Ringstrasse, faziam alpinismo nas montanhas, ou bebiam com
amigos num dos famosos jardins de apreciação de vinhos da cidade.
O meu pai era um homem enérgico e alegre, acolhedor e encantador. Tinha estudado na Universidade de Viena antes de assumir a
direção da fábrica de sapatos da família depois da morte do meu avô,
em 1924. A minha mãe não tinha o mesmo gosto por desporto e atividades ao ar livre do que o meu pai, e em vez disso gostava de ouvir
música, tocar piano e passar o tempo com toda a sua enorme família.
Ambos eram muito vaidosos. Os fatos do meu pai eram impecavelmente talhados na Savile Row, e há muito que usava camisas
cor-de-rosa antes de se tornarem moda. A minha mãe sempre conseguiu parecer elegante, mesmo com o novo corte de cabelo curto, ou
usando uma boina de xadrez.
O meu pai era um verdadeiro chefe de família: definia atividades, liderava excursões, geria o seu próprio negócio, e até decorou a
ampla casa nova dos Geiringer em Lautensackgasse com uma coleção impressionante de antiguidades, incluindo uma cama de casal
que havia pertencido à imperatriz Zita. O meu pai era um conjunto
incansável de entusiasmo e de ideias, tanto no trabalho como no
lazer, e a minha mãe, que era um pouco mais nova e cautelosa do que
ele, seguiu os seus passos.
Os dois eram jovens, amavam-se, e sentiam-se felizes por se terem
encontrado.
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infância
— Anda, Heinz. Quero fazê-lo …
Eu era uma menina teimosa, de cabelo loiro e liso, e o queixo frequentemente empinado, como sinal de determinação. O meu irmão
Heinz era alto e esbelto, tinha as pernas longas e esguias, cabelos
escuros e um olhar muito expressivo.
Muitas vezes, quando estava bom tempo, eu puxava a nossa
pequena carroça de feno até ao cimo da encosta do jardim das traseiras — que parecia um parque –, saltava lá para dentro e em seguida
descia desenfreadamente até ao fundo. Esta era uma das minhas
brincadeiras favoritas, e também bastante perigosa. Por vezes,
magoávamo-nos, pois a única maneira de controlar o carrinho era
usar uma estaca como um leme improvisado. Acho que o Heinz se
entusiasmava muito menos com essas brincadeiras do que eu, mas,
como sempre, fazia a vontade à irmãzinha.
Tínhamos uma diferença de três anos e éramos completamente
diferentes, tanto na aparência como na personalidade.
O Heinz nasceu em 1926, e os meus pais adoravam-no. O primeiro
trauma da sua vida ocorreu num dia de primavera, três anos mais tarde,
quando foi mandado sem qualquer explicação para casa da minha avó.
Passou uma longa semana, e ele continuou sem notícias do que havia
acontecido com a mãe e com o pai. Por fim, voltou para casa e encontrou
a minha mãe feliz e a embalar um bebé recém-nascido nos braços: eu.
Nasci a 11 de maio de 1929, no Hospital Geral de Viena, e
esse primeiro encontro com o meu irmão poderia ter causado um
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ressentimento para a vida inteira. Hoje, parece-me incrível que,
naquela época, a maioria dos adultos achasse preferível não contar
aos filhos que um novo bebé estava a caminho, mas era assim que as
coisas funcionavam.
Felizmente, o Heinz não guardou rancor; pelo contrário, tornou-se desde logo o meu grande defensor e o melhor irmão mais velho
que eu poderia desejar. Contudo, o trauma que sofreu nessa semana
deixou-lhe uma sequela permanente. Desenvolveu uma gaguez que
nenhum médico ou remédios conseguiram curar. Os meus pais chegaram a levá-lo a uma consulta com Anna Freud, filha de Sigmund
Freud e fundadora da psicanálise infantil, mas sem sucesso. Foi um
rapazinho sensível desde criança.
Gostaria de poder dizer que era encantadora, mas não herdei o
temperamento fácil do Heinz. Numa das fotografias de família, estou
sentada de testa franzida, esmagada entre os meus pais, que tratava
por Pappy e Mutti, demonstrando uma certa irritação pelo facto de
eles aparentemente prestarem mais atenção um ao outro, ou ao Heinz.
Fui crescendo, sempre com a mesma obstinação. Durante a infância, lembro-me nitidamente de ter passado muitas noites em pé ao
canto de uma sala, onde deveria ficar a refletir sobre alguma maldade
e, de seguida, pedir desculpa. Havia uma cadeira de madeira e eu
caminhava à volta dela, delineando o círculo do assento com o dedo,
e repetindo que jamais pediria desculpas.
Esses episódios ocorriam frequentemente por causa de discussões
sobre a comida. Eu era, digamos, exigente, e detestava legumes.
Muitas vezes, ficava sentada sozinha à mesa depois de todos terem
acabado a refeição, proibida de me levantar antes de comer tudo o
que havia no prato. Geralmente conseguia colar as ervilhas debaixo
da mesa, uma a uma.
Certa noite, os nossos pais desejaram-nos boa noite e foram comer
fora, enquanto o Heinz e eu ficámos com a empregada. O jantar era
um peixe cheio de espinhas, e eu detestava ter de tirá-las da boca.
A meio da refeição, a minha mãe ligou para saber como estávamos.
«Estão bem», respondeu a empregada, antes de eu correr para o telefone, arrancar-lhe o auscultador da mão e reclamar em alto e bom
som à minha mãe: «Não estou bem. Estamos a comer peixe que tem
muitas espinhas e eu odeio isso.»
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Naturalmente, a minha mãe ordenou-me que voltasse para a mesa,
me sentasse e acabasse de comer imediatamente. Contudo, por vezes
interrogo-me se esse traço de rebeldia e teimosia não foi o responsável por me manter firme em circunstâncias infinitamente piores
que vieram depois, quando de facto precisei de usar toda a minha
obstinação.
Nesses primeiros anos da minha vida, morava com a minha família no piso intermédio de um casarão do século XIX, em Hietzing,
um bairro conhecido por ser o mais verde da cidade devido a todos os
seus parques e jardins. A casa de campo dos Habsburgo, um palácio
chamado Schönbrunn, ficava na esquina, e do famoso arquiteto Otto
Wagner tinha construído uma estação de metro nas proximidades,
exclusiva para o imperador (que a utilizou duas vezes). Na outra
esquina, o cemitério de Hietzing albergava sepulturas de uma série
de aristocratas austríacos, sendo um dos pontos mais renomados da
cidade.
O bairro deve ter parecido bastante acolhedor e confortável para
um artista que enfrentava dificuldades, não tinha um futuro promissor e passou por Hietzing na primeira década do século XX. Adolf
Hitler chegou à cidade para tentar entrar na prestigiada Academia
de Belas Artes de Viena, mas, apesar das aulas extraordinárias, não
conseguiu ser aprovado — em duas tentativas.
A nossa casa na esquina de Lautensackgasse mais parecia um castelo do que uma vulgar casa dos subúrbios, com um torreão enorme
e um grande jardim, onde, muitas vezes, celebrámos as nossas festas
de aniversário.
Adorava a nossa casa agitada e as pessoas que viviam nela. Não
éramos ricos, mas morávamos num sítio aconchegante e confortável, com janelas de vidro duplo que nos protegiam do inverno rigoroso de Viena. Tínhamos uma empregada que vivia num quarto
pequeno atrás da cozinha, e outras mulheres vinham uma vez por
semana para ajudar a lavar e a costurar.
Quem quer que nos fosse visitar poderia encontrar-me a tomar
chá, sentada à mesinha que ficava na alcova do meu quarto, com toda
a família a preparar-se para a principal refeição do dia, o almoço, sentada com o Pappy na sala de jantar forrada de papel de parede florido.
À noite, as pessoas que passavam na rua poderiam ouvir o Heinz a
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sussurrar-me algo na varanda, enquanto contemplávamos as estrelas
e ele me contava algumas das suas histórias favoritas de cowboys e do
faroeste sobre o índio apache Winnetou e Old Shatterhand, escritas
por Karl May.
Embora houvesse uma sinagoga na vizinhança, muito poucos judeus
moravam em Hietzing, e o Heinz e eu só tomámos verdadeiramente
consciência da nossa religião e da nossa cultura quando começámos a
ir à escola. Todas as crianças austríacas recebiam, obrigatoriamente,
educação religiosa. Para a maioria da sala, isso significava ter lições de
catolicismo romano, mas três vezes por semana éramos enviados para
aulas diferentes, o que queria dizer que todos sabiam quem eram as
crianças judaicas.
Gostávamos muito das aulas religiosas que tínhamos, e entusiasmávamo-nos com as celebrações dos feriados e das tradições judaicas.
Os meus pais incentivavam o nosso interesse, e começaram obedientemente a acender velas antes da refeição de sábado, na sexta-feira à
noite. As noites de sexta-feira tornaram-se ocasiões especiais: a Mutti
chamava-me e ao Heinz, e nós ajudávamo-la a pôr a mesa para o jantar
de sábado. Dispor o nosso melhor serviço de prata e de porcelana e
colocar as velas nos castiçais era um dos momentos altos da minha
semana, e sentia-me orgulhosa por fazer parte de uma família judaica.
Contudo, nem o Pappy ou a Mutti se interessavam muito pela
religião. A minha mãe não tinha grandes conhecimentos acerca das
tradições judaicas e o meu pai não era praticante, embora se preocupasse muito com a preservação da nossa herança e da nossa cultura. No quotidiano, o meu pai incluía grandes reuniões de família
em feriados judaicos, como a Páscoa, e nunca permitia que houvesse
carne de porco em casa. No entanto, havia ocasiões nas quais a nossa
religião tomava grandes dimensões.
Ocasionalmente, a nossa governante católica levava-nos à missa.
Penso que isso acontecia sobretudo para que ela pudesse ir à igreja aos
domingos, e conheço muitos judeus que tiveram a mesma experiência em pequenos, porque a maioria do pessoal doméstico de Viena era
constituída por raparigas do campo provenientes de famílias grandes
e católicas. Eu adorava esses passeios, sobretudo a cerimónia em si, o
espetáculo e os aromas da celebração católica. Mas, quando o meu pai
descobriu, ficou furioso e demitiu a nossa governanta imediatamente.
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Algum tempo depois, a irmã da minha mãe e a sua família
­mudaram-se para Inglaterra para escapar aos nazis, e converteram-se
ao cristianismo. Isso enfureceu profundamente o meu pai. Ele achava
que, quando se nasce judeu, se deve permanecer judeu para sempre.
Na opinião dele, converter-se por temer a perseguição demonstrava
total falta de firmeza e de determinação.
Apesar das nossas tradições e da cultura judaica, participávamos
na vida vienense da mesma maneira que outros austríacos da classe
média. Embora não comemorássemos o Natal, dávamos as boas-vindas a São Nicolau e ao seu ajudante Black Peter, no dia da sua
celebração, a 5 de dezembro. Durante muitos anos esperei que São
Nicolau, o antecessor do Pai Natal, me trouxesse um triciclo vermelho com pedais. Lançava várias dicas aos meus pais com meses de
antecedência, acordava cedo nesse dia tão esperado e espreitava por
baixo da cama para verificar se o presente havia chegado durante a
noite. Isso nunca aconteceu, mas o primeiro carro que comprei em
adulta era vermelho.
Olhando para trás, imagino que os meus pais pudessem achar
que nós já tínhamos recebido presentes e guloseimas que chegassem,
porque às vezes embrulhavam presentes que já nos tinham dado em
anos anteriores e ofereciam-nos novamente.
A verdade é que nunca nos faltou atenção nem afeto. Um dos nossos
passeios diários consistia em visitar os meus avós paternos, que moravam num apartamento mais pequeno em Hietzinger Hauptstrasse.
Digo que visitávamos os meus avós, mas a maior parte dessas visitas
era para ver a empregada deles, Hilda, que administrava a casa como
um comandante, mas nos mimava muito. Hilda fazia parte da família
há quarenta anos, e, embora a minha avó fosse oficialmente a dona da
casa, e pudesse levantar a voz noutras ocasiões, mantinha-se em silêncio e deixava que ela cuidasse de tudo como bem entendesse. Quando
os meus avós foram obrigados a fugir dos nazis, Hilda cuidou do
apartamento até que eles pudessem finalmente regressar a casa.
A única parte da visita diária que eu detestava era ter de cumprimentar a minha bisavó, que na época também morava lá. Ela
parecia-me uma figura assustadora, vestida de preto da cabeça aos
pés. Dizia à minha mãe que ela era «velha e feia», e implorava para
não ter de falar com ela. Mas, por mais que protestasse, a minha mãe
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empurrava-me sempre para o seu quarto, nas traseiras, onde eu tinha
de caminhar nas pontas dos pés até junto da cama dela, e dar-lhe
nervosamente um beijo na face.
Felizmente, a alegria de passar algum tempo com os meus avós
superava o medo. Adorava sobretudo o meu avô, Rudolf. Ele tinha
sempre atividades especiais para cada um de nós. Era uma pessoa
muito musical e o Heinz sentava-se junto a ele no banco do piano,
de onde o observava a respirar fundo, a fechar os olhos, e em seguida
a deslizar as mãos de um lado para o outro sobre as teclas. A música
era sempre maravilhosa, mas o meu avô só tocava de ouvido, porque
se recusou a aprender a ler partituras quando era um jovem aluno.
Talvez eu tenha herdado a teimosia dele, mas com certeza não o talento
musical. Enquanto o Heinz passava horas a praticar no piano e, depois,
no acordeão e na guitarra, eu ocupava-me com atividades ao ar livre.
Nas manhãs de domingo, o meu avô levava-me à taberna próxima do cruzamento ferroviário, onde ele bebia cerveja e eu comia
sopa. As tabernas austríacas eram mais parecidas com cafés do que
com pubs ou bares; eram lugares onde os homens se costumavam
reunir para uma conversa. A melhor parte desse ritual de domingo
era sentar-me junto ao meu avô, enquanto a empregada nos trazia
goulash. Este guisado de carne era servido numa enorme terrina de
aço inoxidável, e a empregada trazia-a e vertia-a nos nossos pratos de
sopa, enquanto eu a observava de olhos arregalados, contando quantos pedaços de carne caíam no meu prato. Eu era o centro das atenções. Os amigos do meu avô ouviam atentos tudo o que havia feito
nessa semana ou quais eram os meus novos interesses. Sentia-me no
paraíso.
Na cidade, a nossa vida girava em torno da família, da casa e da
escola. A nossa empregada incentivava-nos a gastar um pouco de
energia e levava-nos a brincar ao parque do palácio de Schönbrunn
ou a assistir a um filme de Shirley Temple. Às vezes, íamos ao famoso
parque de diversões de Viena, o Prater, para brincarmos. Com mais
frequência ainda, visitávamos os parentes dos meus pais, a irmã do
meu pai, Blanca, e a minha prima Gaby, que também era a minha
melhor amiga. A irmã da minha mãe, Sylvi, e o marido dela, Otto,
moravam muito próximo, e eu podia ir até à casa deles para brincar
com o meu primo Tom, que ainda era bebé.
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Sempre gostei muito de crianças e de cuidar de bebés, e fiquei
fascinada com o meu novo priminho. Depois de ter visto a minha
tia Sylvi a amamentá-lo, tentei fazer o mesmo em casa com o meu
amigo Martin. Martin e eu éramos ainda crianças e eu não tinha,
obviamente, seios, mas a mãe de Martin descobriu-nos a fazer isso e
foi uma enorme confusão. Fiquei extremamente irritada quando ela
o proibiu de brincar comigo durante uns tempos. Senti-me confusa
e, talvez pela primeira vez, envergonhada.
Na escola dedicava-me à leitura, mas não me interessava por
números. Na parte da tarde, passávamos horas a escrever palavras e
letras do alfabeto gótico numa ardósia.
Era ao ar livre que me sentia realmente viva. Queria ser como o
Pappy e praticar mergulho, natação, corrida e alpinismo.
«Nunca devem ter medo,» gritava o Pappy antes de fugirmos da
sua perigosa perseguição, que sempre me emocionava e chocava o
Heinz.
O meu pai começou a ensinar-me a ser destemida, encorajando-me a saltar do alto roupeiro do meu quarto diretamente para os
seus braços, e, mais tarde, passou a atirar-me para o canto mais
fundo da piscina. A minha mãe encarava assustada essas atividades
e o Heinz sorria e dizia: «Não, obrigado, Pappy», antes de retomar
a leitura de uma das suas histórias favoritas de Júlio Verne. Mas
eu tinha confiança no Pappy; sabia que nunca me colocaria numa
­situação de perigo real, e tinha a certeza de que os seus grandes
braços sempre estariam lá para me segurar.
O Heinz considerava a minha devoção por heróis muito divertida,
e riu-se de mim quando decidi dormir numa almofada de pedra,
porque o meu pai me dissera que uma almofada macia causava má
postura. Durante as nossas excursões nas montanhas, o Heinz costumava esperar com a Mutti no fundo, enquanto eu trepava fendas,
corria descalça pelos caminhos rochosos e me pendurava em cordas.
Eu parecia mesmo uma macaquinha magricela. Continuava a ser
meticulosa com a comida, e nem uma viagem desastrosa a um sanatório, aliada a doses de óleo de fígado de bacalhau, me tinha engordado.
Assim, pendurava-me nas árvores com os meus braços compridos e
magros, e as costelas a sobressair como os ressaltos de uma tábua de
lavar a roupa.
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Saíamos todos os domingos para essas aventuras familiares, e nas
férias viajámos para lugares mais distantes, como o Tirol ou os Alpes
­austríacos. Hospedávamo-nos em acolhedores chalés e usávamos as calças
de cabedal e os vestidos tiroleses, tradicionais do país.
Essas viagens tornaram-se mais agradáveis num certo dia, quando
o Pappy nos levou para casa no primeiro carro que tivemos. O meu pai
gostava, obviamente, de conduzir a alta velocidade, fazendo guinchar
os pneus ao dobrar as curvas apertadas das montanhas. Com o movimento rápido do carro, os nossos corpos inclinavam-se para o outro
lado do banco e podíamos avistar as casinhas das aldeias na parte
de baixo. A Mutti sentava-se ao lado dele, no banco do pendura, a
gritar, enquanto eu e o Heinz ficávamos abraçados no banco de trás,
agarrados um ao outro com tanta força, que cheguei a imaginar que
os nossos ossos se poderiam quebrar.
No calor do verão, a minha mãe levava-nos para fora da cidade em
férias prolongadas, geralmente na companhia da minha tia Blanca
e da minha prima Gaby. Descíamos rumo à costa do Adriático, em
Itália, onde nadávamos e brincávamos na praia. O Heinz preocupava-se com as alforrecas, mas eu gostava de enterrar os pés na areia fina
e, em seguida, correr para o mar.
Éramos jovens de mais para compreender o objetivo dessas
viagens, mas a minha mãe ia visitar o seu amante italiano e, por
vezes, ficávamos lá três meses seguidos. Gino era muito elegante e
encantador, vestia calças brancas de flanela e tinha um cabelo negro
e lustroso. Embora a minha mãe pudesse ter tido outros amantes,
Gino era uma presença duradoura e séria na sua vida. A dada altura,
deslocou-se a Viena e exigiu-lhe que se divorciasse e casasse com ele.
Continuaram a corresponder-se durante muito tempo, mesmo depois
de a minha mãe descobrir que ele era casado com outra pessoa.
Na época, Viena era conhecida por ter uma atitude bastante complacente em relação ao casamento, e o meu pai também mantinha
inúmeras admiradoras para o divertirem, enquanto passava o verão
a trabalhar na fábrica. Era esse o espírito da altura, mas nós, apesar
disso, formávamos uma família muito feliz. As nossas personalidades
contrastantes — ousadas e extrovertidas, no meu caso e no do meu
pai, e criativas e delicadas, no caso do meu irmão e no da minha mãe
— complementavam-se perfeitamente entre si.
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Os meus pais partilhavam um gosto profundo pela música clássica e,
por vezes, em vez de um conto de fadas, o meu pai ligava o gramofone
e tocava-nos o quinteto para piano de Franz Schubert. Em seguida,
deitávamo-nos os quatro no chão da grande sala de estar e deixávamo-nos levar pelo som daquela a que chamávamos «música de embalar».
Para mim, esses dias e os sons animados do quinteto faziam com
que o mundo parecesse inocente e despreocupado, mas, na realidade,
acontecimentos sinistros nublavam o horizonte. Muitos deles eclodiram no significativo ano de 1933.
Quando tinha sete anos, o Heinz apanhou uma grave infeção e
ficou de cama com uma febre alta, a olhar para as paredes.
Esgueirei-me para o ver e espreitei por cima da sua cama.
— Queres que te leia alguma das tuas histórias? — sussurrei,
achando que isso faria com que se sentisse melhor. — Que tal o Old
Shatterhand?
Contudo, o Heinz abanou a cabeça. Estava muito doente, mesmo
para ler.
— Ele não está a melhorar — disse a minha mãe, aflita. — Por
que não descobrem o que se passa com ele?
Os médicos iam e vinham, mas nenhum deles parecia saber o que
estava errado.
— Vou procurar outro médico — decidiu o Pappy, tentando parecer calmo. — Não te preocupes. Vamos chegar ao fundo da questão e
ele ficará bem. — Contudo, até mesmo ele parecia muito preocupado.
Depois de muitas consultas com médicos diferentes, os meus pais
descobriram finalmente um especialista que diagnosticou corretamente o problema, e removeu as amígdalas do Heinz. Ele começou
a recuperar, mas nessa altura a infeção já lhe tinha afetado a visão, e
ficou cego de um olho. Esse facto provocou obviamente uma enorme
ansiedade nos meus pais. E o Heinz também estava aterrorizado. «E
se não conseguir voltar a ler os meus livros, Pappy?»
Tudo o que podia fazer era preocupar-me, junto à cama dele, incapaz de algo mais.
«Hoje sentes-te melhor, Heinz?», perguntava-lhe, com medo, por
ver o meu irmão tão fraco e indefeso.
Foi uma provação terrível para todos nós. O Heinz nunca chegou
a recuperar do medo de perder a vista, enquanto o meu pai se
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p­ reocupava com o facto de as ansiedades recentemente desenvolvidas
poderem impedir o filho de seguir caminho.
Como uma família, estávamos prestes a sofrer outro problema.
A Grande Depressão e a violenta inflação estavam a causar imensas
dificuldades na Áustria, e o negócio do Pappy estava em queda. Uma
viagem de elétrico, que em 1918 custara meia coroa, custava agora
o equivalente a mais de 1500 coroas em xelins, a moeda que substituíra a antiga coroa em 1924. Um jantar de uma coroa custava mais
de 30 mil coroas.
Não havia futuro para a nossa fábrica, Geiringer & Brown, mas o
Pappy era criativo e empreendedor, e começou a empregar mulheres para trabalhar em casa a fazer mocassins. Contudo, até ele conseguir reconstruir o negócio da família, tivemos de mudar para um
bairro mais modesto. «O nosso novo apartamento é um pouco mais
pequeno, mas muito bonito», disse-nos a Mutti, tentando parecer
alegre: «E pensem em como estaremos mais perto da avó Helen e
do avô Rudolf.» Porém, nem mesmo isso poderia compensar o meu
sentimento de perda.
«Tudo vai dar certo, Evi», garantiu-me o Pappy, mas detetei
na sua voz a tristeza que ele sentia por deixarmos a nossa casa em
Lautensackgrasse.
A casa de uma família feliz é muito mais do que quatro paredes,
mas sabia que estávamos a fechar a porta às nossas primeiras recordações de risos, brigas, crescimento em conjunto, refeições e festas de
aniversário. Uma nova fase das nossas vidas havia começado.
Com todos esses traumas familiares e revoltas para ocupar os meus
pensamentos, suponho que seja pouco de admirar que apenas me
recorde de vagos sussurros sobre grandes acontecimentos mundiais.
Por vezes, via uma tia ou um tio a franzir a testa; ou notava um
tom de preocupação nas vozes dos meus pais quando escutavam uma
transmissão de rádio. Era 1933, e, na Alemanha, Adolf Hitler tinha
acabado de subir ao poder.
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