DIFERENTES E DESIGUAIS: RELAÇÕES DE GÊNERO

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DIFERENTES E DESIGUAIS: RELAÇÕES DE GÊNERO
DIFERENTES E DESIGUAIS: RELAÇÕES DE GÊNERO NA MÍDIA
ESPORTIVA BRASILEIRA
REFERÊNCIA
KNIJNIK, Jorge Dorfman; SOUZA, Juliana Sturmer Soares. Diferentes e
desiguais: Relações de gênero na mídia esportiva brasileira; In. Antonio
Carlos Simões, Jorge Dorfman Knijnik (orgs). O mundo psicossocial da
mulher no esporte: comportamento, gênero, desempenho. São Paulo, Aleph,
2004 (p. 191-212)
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DIFERENTES E DESIGUAIS: RELAÇÕES DE GÊNERO NA MÍDIA
ESPORTIVA BRASILEIRA.1
Jorge Dorfman Knijnik e Juliana Sturmer Soares de Souza.
1. BREVE CRÔNICA DA MULHER BARBADA
O meu peito não tem silicone
Sou mais macho que muito ‘ômi’
(Rita Lee / Zélia Duncan)
Estavam lá todos os jornais, as rádios, a televisão – de fato, todos os
meios de comunicação. A moça, retratada na última temporada como a “batida
mais potente da Liga Nacional”, “tão forte quanto um homem”, sempre
pareceu um deles. Ou, ao menos, era a imagem que as pessoas tinham dela,
reforçada pela mídia, que aproveitava o caso ao máximo, traçando um quadro
de suspeitas relativas ao sexo da atleta, usando as fotos e imagens apropriadas,
e juntando estas às versões colhidas dos vestiários dos clubes, ou da infância
da jogadora, em alguma cidade no interior (onde ninguém sabia ao certo ‘o
que ela era’). Desta forma, toda a imprensa amplificava o assunto, e o país
inteiro comentava e se perguntava, invertendo a famosa marchinha de
carnaval: será que ela é?
Agora, no pequeno saguão do laboratório, repórteres, câmeras,
fotógrafos, curiosos e fofoqueiros se espremiam, esperando o resultado do
teste de feminilidade que ela havia sido obrigada a fazer, para continuar
jogando. Antes disso, contudo, ela já fora orientada pela sua comissão técnica,
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Este texto é um dos frutos do Trabalho de Conclusão de Curso (TGI) realizado pela Juliana na Faculdade de
Educação Física da Universidade Presbiteriana Mackenzie, orientada pelo Jorge, em agosto/2003. Os autores
manifestam a sua profunda gratidão à profa. Dra. Claudia Pereira Vianna, (FEUSP), que generosamente
revisou este texto, fornecendo inúmeras sugestões que se agregaram ao seu formato final – no entanto, ela
não possui alguma responsabilidade sobre eventuais falhas na concepção e formato do artigo, que são
assumidas integralmente pelos autores.
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e mesmo pelos advogados: no último semestre, deixara o cabelo crescer, e já
jogava de batom e maquiagem, com short bem apertado, um número menor
que o seu. Fora das quadras, sempre andava de saias, saltos e bolsas, e posava
nas fotos com rapazes bronzeados, “sarados” e bonitos. Com esta
transformação, não parecia em nada com aquela garota musculosa, tímida, de
cabelos curtos, botas e calças jeans surradas, que na quadra urrava com as
jogadas da equipe, e que se destacara na Liga pela sua capacidade atlética.
E o resultado do teste saiu: imediatamente, as manchetes on line
destacaram: “parece, mas não é!”; finalmente, ela já estava livre das perguntas
e pressões cotidianas dos repórteres, e dos boatos jornalísticos que surgiam
todos os dias; podia representar com tranqüilidade a seleção feminina de seu
país. E seu alívio mostrou-se maior ainda no dia seguinte, quando voltou a
vestir o calção largo para treinar, e cortou os cabelos bem curtos - comentou
com a colega de apartamento que ”não agüentava mais” as mechas compridas.
2. PRETENSÕES
As representações polarizadas de gênero sempre encontraram no esporte
um vasto campo para se manifestarem. Como uma das atividades físicas
predominantes no cenário mundial, e com seu enorme potencial de reverberar
na mídia (os programas de maior audiência na TV mundial são esportivos, a
Olimpíada de Verão e a Copa do Mundo de Futebol – masculino -, sem falar
das finais do SuperBowl norte-americano) , o esporte parece ser o panorama
ideal para que se reafirmem normas e tradições a respeito de como se
comportar com o corpo, e das formas corporais e comportamentais adequadas
de ser homem, ou mulher.
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Mesmo antes do sistema global de comunicações, dentro do esporte já
se faziam configurações que opunham o masculino e o feminino, uma vez que
as normas aí impostas freqüentemente alijavam ou restringiam a participação
das mulheres, de acordo com as representações sociais – muitas vezes
travestidas de cientificidade2 - de cada época.
No entanto, com o advento das mídias globais, e a penetração do
esporte no interior destas, como um de seus principais atrativos de audiência,
estas representações sociais sobre o gênero ganharam novas dimensões. Aliás,
a mídia, dada a sua capacidade de filtrar os eventos e de atirar imagens sobre
as pessoas, se transformou, nas últimas décadas do século XX e início do
século XXI, na grande chave utilizada pela sociedade para desvendar o
mundo, e criar os seus códigos sociais. Estes filtros estabelecidos por meio da
mídia repercutem os discursos dominantes sobre as coisas do mundo – e
dentre estes discursos, se destacam aqueles que ditam como ser homem ou ser
mulher no mundo atual, fornecendo ou retirando valor das novas
conformações de gênero que aparecem continuamente na contemporaneidade.
E a historieta contada no início deste texto ilustra bem isto: os jornais
queriam saber, em primeira mão, o que era aquele “bicho esquisito”, aquela
atleta que não se enquadrava em seus códigos estritos. Precisavam dizer aos
seus leitores se ela podia ser mulher, “apesar” das aparências contraditórias...
Não estamos aqui afirmando que as mídias criem diretamente as
representações sociais. Estas já existem na sociedade, são frutos dos processos
interativos e comunicacionais dos grupos sociais; o ‘mass media’, no entanto,
se não cria as representações, ajuda a “(...) acelerar ou afrouxar, talvez dirigir
2
É famosa a teoria da “incapacidade menstrual” atribuída às mulheres pelo cientista e médico do século XIX,
Herbert Spencer , incapacidade esta que as impedia de praticar atividades esportivas extenuantes.
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o fluxo das representações sociais num sentido ou noutro (...) (Moscovici,
2003, p. 3).
Cabe alertar, contudo, que a própria psicanálise, enquanto ciência que
estuda e interpreta as causas psíquicas dos traumas constituintes do sujeito, já
vem chamando a atenção para o impacto traumático que as imagens midiáticas
provocam na constituição de todo o sujeito. Em artigo recente, Marcio
Giovanetti (atual presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo) escreve que
com a diluição das fronteiras e com a inundação imagética, a espessura e a
necessidade necessárias a constituição de uma identidade singular e privada
desaparecem na mesma proporção em que a velocidade das trocas efetuadas
entre o mundo externo e o mundo interno é feita (Giovanetti, 2003, p.5).
Ou seja, se um dos componentes claros da constituição identitária
individual é a identidade de gênero; se o esporte, enquanto atividade
corporal muito difundida culturalmente, tem um peso formidável nesta
constituição, e se a mídia filtra e amplia as imagens do esporte
globalmente, cabe urgentemente estudar as conexões e relações de gênero
que se apresentam na mídia esportiva.
Deste modo, a pretensão deste texto é discutir como as mulheres têm
sido descritas na mídia esportiva brasileira, sobretudo no que diz respeito
aos artigos que jornais e revistas produzem sobre as atletas, comparados
àqueles que retratam os homens esportistas. Para tal, utilizamos diversos
recortes de jornais de grandes veículos da imprensa brasileira (Folha de
São Paulo, Estadão, Veja, Superinteressante) que viemos guardando desde
1998. Estes recortes, em conjunto com diversas pesquisas internacionais
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que discutem como se dá a cobertura esportiva da imprensa sobre as
mulheres, nos permitiram traçar um quadro bem interessante da complexa
relação social de gênero que a mídia esportiva espelha e repercute. Estaria
a mídia, com toda a força que o seu status de quarto poder nas
democracias lhe confere, ajudando na criação de novas relações entre os
sexos, mais igualitárias e democráticas? Ou, ao contrário, estaria ela
apoiando a manutenção de determinadas relações de poder que oprimem e
mantém a mulher em condição subalterna, como serviçal do homem,
mesmo que esta quebre recordes e consiga marcas esportivas impensáveis
até alguns anos atrás?
Na tentativa de responder a estas questões, apresentamos uma breve
conceituação teórica sobre a categoria gênero, para então mostrar os estudos
internacionais que discutem a cobertura da mídia esportiva do ponto de vista
das relações de gênero – estudos estes que são entremeados por discursos
colhidos na própria mídia brasileira.
Como em pesquisa anterior3 comprovamos quantitativamente o quanto
a cobertura esportiva tende a ser maior e mais favorável aos homens,
tentaremos aqui fornecer e discutir exemplos de discursos que, no interior da
mídia, estruturam e conformam os símbolos relativos ao gênero no esporte.
3. GÊNERO(S)
Gênero é um termo que surgiu no sentido e na tentativa de se opor a
uma forte tendência histórica vinculada à naturalização dos comportamentos
humanos - a uma posição que descreve a personalidade essencialmente
3
SOUZA, J.S & KNIJNIK, J.D. The invisible woman – gender and sport in the largest Brazilian daily
newspaper. (no prelo), 2004.
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diferente de homens e mulheres em virtude de sua natureza anatomicamente
diferenciada. Desta forma, o debate teórico relacionado ao termo gênero,
segundo Nicholson (2000) se desenvolveu, de um lado, para marcar a
oposição entre este termo e o sexo, ou seja, para apontar tudo o que fosse
construído socialmente, em contraposição ao dado biológico. Por outro lado,
como aponta a autora, “(...) gênero tem sido cada vez mais usado como
referência a qualquer construção social que tenha a ver com a distinção
masculino/feminino, incluindo as construções que separam corpos ‘femininos’
de corpos ‘masculinos’” (Nicholson, 2000, p. 9).
Para esta autora, as variantes sociais que se desenvolveram
historicamente são mais profundas que os costumeiros e habituais estereótipos
culturais colocados sobre a personalidade e o comportamento associado aos
sexos: existem “formas culturalmente variadas de se entender o corpo”
(Nicholson, 2000, p.14), e esta variação faz com que o corpo não possa nem
deva ser a constante ideal que fundamente noções relativas aos gêneros
masculino e feminino. Há diferenças culturais enormes tanto no sentido
quanto no valor atribuído ao corpo, e estas por sua vez afetam as concepções
de masculino e feminino nas diversas culturas. Deste modo, conforme
Nicholson (2000), não seria possível se traçar características únicas de
identidade sexual, sobre as quais então seriam desenhados os estereótipos de
gênero. A autora entende que mesmo os corpos de mulheres possuem tal
ordem de diferenciação entre si, que não poderiam constituir uma base única
sobre a qual ser construir determinada estereotipia.
Assim sendo, neste debate pode-se vislumbrar uma grande gama de
posições,
que
subsidiam desde
explicações
biológicas
até
aquelas
construcionistas - há, como referido acima, o extremo naturalista que enxerga
todas as diferenças entre os sexos sendo causadas pela natureza biológica
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destes; existem também as posições que tomam as diferenças sexuais como
base para representações e significados culturais; e no outro extremo há
aquelas posições que inserem até mesmo a própria biologia no processo de
construção social, afirmando que esta é fruto de determinada cultura e enxerga
o ser humano sob as lentes culturais específicas (Nicholson, 2000).
Assumimos aqui claramente a concepção de Scott (1995), historiadora
feminista norte-americana que propôs que gênero seria uma categoria
essencial para as análises históricas. Para esta autora, o conceito de gênero
indica construções sociais, isto é, a criação inteiramente social de idéias sobre
os símbolos, normas, atitudes e identidades relacionados aos homens e às
mulheres. É uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das
identidades masculinas e femininas. Gênero torna-se uma categoria social
imposta sobre um corpo sexuado, é um elemento constitutivo de relações
sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e uma forma
primária de dar significado às relações de poder. Ou seja, a categoria gênero
somente existe quando colocada num contexto social e histórico - as
configurações de gênero se relacionam socialmente, formando com elas
estruturas de poder que se perpetuam ou se modificam historicamente.
3.1. “VIOLENTO, HÓQUEI NO GELO É ESPORTE PARA
HOMEM”. (Folha de São Paulo, 02 de fevereiro de 2003, p. D4).
A masculinidade hegemônica, enquanto uma das configurações
possíveis de ser masculino na contemporaneidade, tem procurado se firmar
com todas as raízes dentro do esporte. Violência, agressões, ‘insensibilidade’,
entre tantas outras manifestações de hostilidade acabam ganhando corpo e
assumindo o topo da hierarquia de valores do mundo esportivo.
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Assim,
o
esporte
moderno
acaba
assumindo
um
caráter
predominantemente masculino – entendendo este masculino em uma de suas
formas mais conhecidas e, como dito, dominante. Este esporte foi formado por
e para homens e expressa hábitos e identidades masculinas. Quando as
mulheres começaram a entrar nesse domínio tinham que “jogar como homens
e comportar-se como mulheres” (Hargreaves 4, 1994 apud Dunning; Maguire,
1996, p.304).
A mulher foi considerada como usurpadora de um espaço consagrado
ao usufruto masculino. Fosse como atividade de lazer, fosse como prática
sistemática, o esporte unificou um conjunto de adjetivos que representam o
mundo masculino: força, determinação, resistência e busca de limites (Rubio e
Simões, 1999).
Segundo Mourão (2000) o processo de apropriação do espaço esportivo
pela mulher no Brasil é qualitativamente diferente do processo de apropriação
de outros espaços, nas quais é mais tensa a relação entre os gêneros; no
esporte, diferentemente, não houve um confronto entre homens e mulheres
pela redistribuição do território esportivo. O esporte foi, e ainda é, um
processo de infiltração lenta e progressiva, sem um discurso de contestação
por parte das mulheres. Não houve, no esporte, um movimento feminino,
menos ainda feminista, pela equalização do gênero, devido à ausência de um
movimento contestador das esportistas brasileiras.
Assim, ao adentrar nas arenas esportivas, a mulher acabou ficando
escondida, ou assumindo um mundo de valores hegemônicos masculinizados,
incorporando-os como seus, reafirmando a validade destes valores ... para os
homens. E aqui o conflito se estabelece: podem as mulheres, por sua ‘natureza
HARGREAVES,J.Sporting Females: Critical issues in the history and sociology of women’s sports.
London, Routledge.1994.
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intrínseca e essencial’, assumir posturas e ter atitudes ditas masculinas?
Sobretudo quando estas expressam tudo aquilo que o verdadeiro homem, e só
ele, deveria ser? A saber: ser agressiva fisicamente, xingar, se descabelar, lutar
com gana, se atirar sobre as outras, ficar forte e cheia de músculos...O corpo
da mulher, e as identidades femininas suportariam isto?
Sobre estas indagações que a mídia vem dando as suas respostas, no
modo de reportar as mulheres dentro do esporte. Não diretamente, mas em
seus textos e imagens, na quantidade de reportagens, e na qualidade da
cobertura, os jornais aqui analisados demonstram claramente a sua visão dos
limites que a mulher atleta, e o seu corpo, podem atingir.
3.2. “NAS MODALIDADES QUE EXIGEM GRAÇA E LEVEZA, AS
MULHERES SÃO IMBATÍVEIS”. (Super Interessante especial – Olimpíadas
2000, agosto de 2000, p.38).
Os meios de comunicação desempenham um importante papel ao
analisar as relações de gênero, já que a responsabilidade social da mídia pode
destruir ou construir a consciência social e o exercício da cidadania diante de
questões que, socialmente, são inerentes ao gênero feminino (Freitas, 2003).
O esporte transmitido pela mídia é um grande espetáculo de massa.
Jornais, rádios e a televisão, acompanham de perto tudo que acontece no
mundo dos esportes, levando essas informações para um grande número de
pessoas (Vargas, 1995). Canais e programas pagos (catv, pay per view), e
centenas de patrocinadores disputam espaço nos eventos esportivos
televisionados, transmitidos por rádio, ou nas páginas dos jornais e revistas
que reportam e analisam os assuntos esportivos.
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E são vários os estudos que demonstram os modos e jeitos de se reportar
as vivências e as glórias e derrotas das mulheres – atletas nas quadras,
ginásios, campos e piscinas.
Para Koivula (1999), a interação entre mídia e esporte apresenta
expectativas tradicionais de feminilidade e masculinidade, incluindo a
perspectiva que existem esportes masculinos, como futebol e hóquei, que
devem ser praticados apenas por homens; e esportes femininos, como
ginástica olímpica e nado sincronizado, que devem ser praticados apenas por
mulheres.
Como resultado dessa representação social, mulheres que praticam
esportes considerados masculinos têm que enfrentar estereótipos de gênero,
combatendo a crença de que sua participação nesses esportes é menos valiosa
do que a dos homens. Em recente trabalho, Jones, Murrel & Jackson (1999),
afirmam que as atletas são julgadas e avaliadas baseadas nas representações
tradicionais sobre gênero, tanto quando estão competindo ou não, em esportes
tradicionalmente apropriados ou não apropriados para mulheres.
Estes autores realizaram extensa pesquisa sobre a cobertura dada pela
mídia impressa de seis jornais norte-americanos nas Olimpíadas de verão de
1996 e nas Olimpíadas de inverno de 1998. Os autores analisaram as equipes
femininas medalhistas de ouro de basquetebol, ginástica olímpica, hóquei,
futebol e softbol. A cobertura para as atletas de esportes tradicionalmente
masculinos (basquetebol, hóquei e futebol) freqüentemente enfatizavam fatos
irrelevantes ao invés de sua performance atlética; era comum a comparação
entre as atletas e os homens da mesma modalidade. Isso representa claramente
um dos métodos que a mídia utiliza para desvalorizar a performance dessas
atletas. Na cobertura dos esportes tradicionalmente femininos (ginástica
olímpica e softbol), havia uma tendência a enfatizar a performance das atletas,
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descrevendo detalhes das apresentações das ginastas. Os resultados ainda
indicaram que, na cobertura desses esportes, havia maior freqüência de
comentários que traziam estereótipos tipicamente femininos, como a beleza e
graça das atletas.
Os autores provavelmente não analisaram as revistas semanais
brasileiras, mas talvez o exemplo abaixo, retirado de uma reportagem sobre a
ginástica olímpica, fosse relevante para o seu estudo:
Svetlana tem 21 anos, boca carnuda, olhar de veludo, perigoso, e pernas de modelo. O corte de cabelo
à la garçonne, repartido no meio, e a linguagem do corpo sugere uma sensualidade contida, pronta
para irromper. Foi a única a seduzir fotógrafos do mundo inteiro (Veja, 4 outubro 2000, p.169).
De um lado, o retrato de um corpo sensual, tipicamente feminino,
pronto para a sedução, um corpo nascido para o sexo. E de outro, corpos de
mulheres que, por não se adequarem nem estarem em conformidade com estes
padrões femininos estabelecidos, são estigmatizados e colocados sob suspeita:
mulheres que derrubam as normas de gênero no esporte ao desenvolverem e
mostrarem um corpo atlético e musculoso são vistas como mulheres não
apropriadas (Speer, 2001).
Assim, os jornais costumam tratar as atletas de esportes que são
tradicionalmente praticados por homens, como o rúgbi, de forma
discriminatória, já que nesses esportes são necessárias força física,
agressividade e dureza, que são características atribuídas exclusivamente aos
homens. Então, se uma mulher possui esses atributos, que não seriam
apropriados para uma mulher heterossexual, ela é considerada lésbica – com
toda a carga de preconceitos e possíveis discriminações que esta opção sexual
carrega consigo.
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Para Kolnes (1995) mulheres que aparecem fortes e em boa forma
física não são aceitas sem objeções, se a mulher é muito forte ela não pode ser
uma mulher normal -é 'mulher macho'! Um corpo forte e musculoso está
diretamente associado à imagem masculina e na descrição de uma atleta com
essas características normalmente aparece essa comparação:
Gail Devers, favorita nos 100 m com barreiras: treino e musculação dão ao corpo
feminino uma aparência andrógina. (Super Interessante especial – Olimpíadas
2000, agosto de 2000, p. 39).
3.3 “OS MACAQUINHOS COLANTES USADOS PELO TIME
BRASILEIRO DE BASQUETE TORNAM AS JOGADORAS MAIS
ATRAENTES (...)” (VEJA, 4 outubro 2000, P.168).
A linguagem utilizada na mídia também indica uma diferença de
tratamento nos esportes praticados por homens e mulheres. Os comentários
relacionados com gênero são muito mais comuns para as mulheres no esporte.
Neste caso, podemos entender que o esporte praticado por homens é
considerado normal e universal, e o esporte praticado por mulheres, anormal.
Os comentários relacionados às mulheres utilizam termos infantis e quase
sempre as atletas são chamadas pelo primeiro nome; já os homens são tratados
com termos adultos e pelo sobrenome. Essa linguagem constrói e legitima a
superioridade dos homens no esporte (Koivula, 1999).
A pesquisa realizada por Duncan et al (1994) revelou grandes contrastes
em relação à maneira com que homens e mulheres eram referidos pelos
comentaristas. Era muito comum a referência às atletas como meninas,
mulheres e jovens mulheres e os homens nunca eram tratados como meninos,
apenas como homens ou companheiros. A utilização do primeiro nome era
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mais comum para as mulheres (52,7%) do que para os homens (7,8%). O
efeito de focalizar combinadamente mais em força do que em fraqueza, mais
no sucesso do que no erro e utilizar muitas e variadas metáforas remetendo ao
poder ao descrever os homens atletas tem o efeito semântico de envolver os
homens atletas em uma aura de poder e força. Já nos jogos das mulheres, as
metáforas e descrições de força são muito menos freqüentes, são empregadas
em uma proporção muito maior atribuições verbais de fraqueza e a tendência é
enfatizar os motivos por que uma atleta ou time falhou, e não o motivo pelos
quais o oponente ganhou.
A norte-americana derrotou ontem a compatriota Jennifer Capriati, por 4/6, 6/4 e
6/1, para vencer pela segunda vez consecutiva o torneio. Foi a sétima vitória seguida
da atual número um do mundo sobre Capriati. Apesar da vitória, Serena não exibiu
sua fluidez e cometeu 42 erros não-forçados no jogo de ontem (Folha de São Paulo,
30 março 2003, p.D7).
Para os autores desse estudo a linguagem sugere como mulheres e
homens devem ser avaliados. Incorpora valores positivos e negativos de como
certos grupos são vistos pela sociedade. Convenções lingüísticas específicas
são sexistas quando isoladas ou estereotipam algum aspecto da natureza de um
indivíduo ou de um grupo de indivíduos, baseadas em seu sexo.
Se nunca esteve realmente entre as grandes nas quadras, a dublê de tenista e pop star
Anna Kournikova também começa a perder a majestade fora delas. Derrotada ontem
no Aberto dos EUA pela Indonésia Angelique Widjaja, a russa anda cada vez mais
preocupada. È que tem gente lutando pelo seu posto de musa do tênis. A começar por
sua atual inimiga número 1, a eslovaca Daniela Hantuchova (Folha de São Paulo,
29 agosto 2002, D4).
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Os comentaristas esportivos normalmente enfocam a atratividade,
emotividade, feminilidade e heterossexualidade das atletas (tudo para
convencer a audiência que seus estereótipos de gênero são mais salientes que
suas habilidades atléticas), enquanto os homens atletas são descritos por seu
poder, independência, dominação e valor. Na verdade a mídia tende a
representar as atletas primeiro como mulheres (focando em seu cabelo, unha,
roupa e atratividade) e depois como atletas (Knight, 2001).
As descrições a seguir focalizam a aparência das atletas, sem citar ou
minimizando seu desempenho atlético:
Para que a boa forma das jogadoras fique mais evidente, os uniformes oficiais dos
doze clubes participantes foram, digamos, modernizados “. (Veja SP, 10 outubro
2001, p.30).
Hoje, após a crise da seleção com a debandada de cinco titulares, Paula Pequeno
não só é uma das principais atacantes do país. Desponta também para o papel de
musa, sempre misturado à imagem das atletas de vôlei (Folha de São Paulo, 22
fevereiro, 2003, p. D1).
A cada vez que a silhueta esguia e bronzeada de Tatiana se colocava em marcha, o estádio aplaudia a
cadência das passadas e urrava. A cada vez que o telão focava seu rosto intenso, emoldurado por uma
penca de cabelos loiros, a sedução era absoluta (Veja, 4 outubro 2000, p.167).
Das 1620 candidatas, foram aprovadas 360, com idade entre 16 e 23 anos. Várias
delas devem atrair a atenção dos torcedores por seus atributos, como a modelo Talita
Cassiano, meia do São Paulo, e a estudante de educação física Joice Hagar Vaz,
volante do Palmeiras. Até dezembro receberão salários, alimentação e o direito de
freqüentar de graça cabeleireiro, manicure e depilador. (Veja SP, 10 outubro 2001,
p.30).
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Para a mídia, bem como para patrocinadores e organizadores, mais
interessante do que ter boas jogadoras é ter jogadoras bonitas:
Os Estados Unidos já têm quatro das cinco melhores tenistas do momento. Agora, quer também ter a
maior musa do esporte. A busca por alguém para rivalizar na ponta do ranking da beleza com a russa
Anna Kournikova parece ter acabado. Os americanos já acharam sua candidata. Nunca antes em toda
história do Aberto dos EUA uma menina de 16 anos com resultados tão modestos recebeu tanta
atenção como Ashley Harkleroad. Com seus cabelos loiros, pernas bem torneadas e seu umbigo quase
sempre à mostra – sugestão da patrocinadora Nike -, a menina teve na semana passada um prazer que
gente muito mais famosa do circuito masculino, como o espanhol Juan Carlos Ferrero, nunca sentiu
na carreira
(Folha de São Paulo, 09 setembro 2001).
A Federação Paulista de Futebol considerou, ao selecionar atletas para o
campeonato feminino de futebol de 2001, que mais importante do que as
habilidades atléticas das jogadoras, era a aparências delas:
No lugar dos cabelos ralos, longos rabos-de-cavalo. Dos calções masculinos, shorts
minúsculos. Da cara limpa, a maquiagem. Em seu campeonato feminino, que
começará em 7 de outubro, a Federação Paulista de Futebol vê a beleza como
requisito fundamental para selecionar as meninas que disputarão a competição (...)
Conforme as regras do Paulista, a meia Sissi, principal jogadora da história do
futebol feminino brasileiro, não teria vez no torneio. Sissi tem os cabelos raspados
(Folha de São Paulo, 16 setembro 2001, p.D5).
3.4. “QUANDO TUDO PARECIA FAVORÁVEL AO SÃO PAULO,
UM PERSONAGEM EM QUE NINGUÉM APOSTAVA APARECEU.
ONTEM, O GOLEIRO DONI, 23, TEVE SUA NOITE DE HERÓI” (Folha
de São Paulo, 23 março 2003, p.D3).
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Ao contrário das mulheres, os homens atletas costumam ter suas
habilidades como esportista, sua condição de herói, ídolo e sua capacidade de
liderança citadas inúmeras vezes. Alguns exemplos ilustram essa exaltação
feita em relação aos homens, que usualmente são tratados como astros ou
heróis: “Com Ronaldo, o Real Madrid aumenta sua constelação de astros, rara
na história do futebol” (Folha de São Paulo, 1° setembro 2002, p.D1).
Kaká e Robinho, os dois maiores símbolos da talentosa nova geração do futebol
brasileiro, são as grandes atrações do clássico entre Santos e São Paulo pelo
Campeonato Paulista, mas, mais que isso, são as grandes esperanças do país na
Olimpíada de 2004, e potencialmente, no Mundial de 2006 (Folha de São Paulo, 15
fevereiro 2003, p. D1).
A habilidade dos atletas, bem como características positivas em relação
ao desempenho e mesmo em relação à personalidade do jogador, também
costumam ser bastante evidenciados durante as reportagens:
Os “elásticos” (drible no qual o jogador insinua que conduzirá a bola por um lado,
mas sai por outro), um chapéu desconcertante, as tabelas com Diego e as
finalizações, das quais uma na trave, fizeram Robinho deixar o campo aplaudido de
pé pelos torcedores, aos 31min do segundo tempo (Folha de São Paulo, 7 fevereiro
2003, p.D3).
Yao é adepto de um basquete solidário. Ama dar assistências. (...) Dentro da quadra
ágil, cerebral, sofisticado. Sabe arremessar do perímetro. Sabe passar a bola. E não
tem medo do embate bruto no garrafão, apesar de preferir jogar de frente para a
cesta. Fora da quadra, paciente (quase sempre) com a imprensa e simpático com os
torcedores (Folha de São Paulo, 9 fevereiro 2003, p.D5).
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Além disso, as reportagens costumam retratar o quanto os homens são
capazes de superar obstáculos, desafiar seus próprios limites, tais como lesões
e violência por parte dos adversários:
Recuperado da mais grave lesão de sua carreira, o atacante Marcelo Negrão volta
nesta Superliga a se destacar e ser decisivo. Contando com a experiência do veterano
atleta, a Ulbra conquistou ontem uma vaga na final do torneio (Folha de São Paulo,
27 março 2003, p.D3).
Dessa vez, os pontapés dos adversários não foram capazes de parar Kaká. Com a
melhor atuação de seu astro no Campeonato Brasileiro-2002 (...) Conseguiu isso,
principalmente, graças ao desempenho de Kaká, que novamente apanhou muito, mas
ainda assim foi capaz de marcar um gol e dar uma assistência para outro (Folha de
São Paulo, 19 agosto 2002, p. D5).
Quase sempre a cobertura da mídia sobre o esporte praticado por
mulheres é acompanhada por uma trivialização e sexualização, constituindo
uma negação do poder esportivo dessas mulheres. Essa negação dá suporte a
idéia de que o esporte praticado por mulheres é menos poderoso e valioso do
que o esporte praticado por homens.
Para Birrell e Theberge 5 (1994 apud Wigmore, 1996) a banalização das
conquistas das mulheres no esporte é uma negação destas como atletas, e
como profissionais. Velocidade, força e habilidade atlética das mulheres são
pouco anotadas e os comentários são em relação a sua atratividade física e
vida pessoal. Além disso, as atletas são construídas como objeto de desejo
BIRREL, S.; THEBERGE, N. Ideological control of women in sport. In. D. Costa & S. Guthrie (Eds.),
Women and sport, interdisciplinary perspectives. Champaign, IL: Human Knetics, 1994.
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heterossexual, sendo que mulheres são consideradas atletas não-naturais e
atletas são consideradas mulheres não-naturais.
Na sua estréia, contra uma espanhola –Maria José Martinez - que também arrancou
suspiros, a mais velha das irmãs Williams usou um top que, em muitos lances,
deixavam seus seios parcialmente à mostra. (Folha de São Paulo, 21 janeiro 2001,
p.D8).
No trabalho de Kolnes (1995), algumas atletas entrevistadas achavam que
a personalidade é o fator decisivo para quantidade de cobertura que uma atleta
recebe, e que a aparência tem menor importância. Porém, a maioria delas
sentia que faziam parte de um sistema em que, particularmente a mídia,
selecionava aquelas que tanto tinham uma boa performance quanto tinham boa
aparência. Portanto, para atrair atenção da mídia tanto a personalidade quanto
a feminilidade aparente são importantes, esses dois fatores são mutuamente
dependentes em relação à cobertura feita pela mídia das mulheres no esporte.
Quem lançou a moda foi Anna Kournikova, 19 anos, a belezinha russa das quadras.
No ano passado, a loira compareceu ao torneio de tênis de Roland Garros num
decotado uniforme de alcinhas, usado com top e bermudinha por baixo. Neste ano,
Anna, para desprazer dos titios, não passou do primeiro jogo, mas fez escola. A
americana Vênus Williams, 19 anos, praticamente repetiu o modelito, só que mais
cavado, mais decotado e sem top nenhum – e assim, toda exuberante, foi até as
quartas de final. A colega Mary Pierce, 25, com uma roupa bem fresquinha e trança
à la Kournikova, foi outra que mostrou mais que pernas e músculos na marcha até a
final. Aguarda-se ansiosamente a competição feminina do ano que vem (Veja, 14
junho 2000, p.118).
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A mídia, que em relação aos homens dá preferência aos que apresentam
melhor performance atlética, favorece as mulheres que correspondem as suas
preferências estéticas, dando visibilidade para estas, porém sem relação com
suas qualidades técnicas como atletas. Para conseguir esse espaço as atletas
tentam se encaixar de qualquer forma em padrões estéticos impostos pela
sociedade, que insiste em priorizar qualidades dispensáveis ao rendimento
esportivo (Knijnik, 2003).
Além disso, de acordo com um consultor cujo trabalho é “vender”
atletas para patrocinadores na Suécia, a atratividade da atleta é de importância
primordial para ser selecionada pelos patrocinadores, e tanto homens quanto
mulheres devem ter personalidade e carisma para conseguir contratos de
propaganda, mas os patrocinadores enfatizam que as mulheres com quem eles
fazem contratos são heterossexualmente atrativas.
A tenista Anna Kournikova é o ícone do “carisma” de atleta
sexualizada, que, sem possuir grande poder na raquete, é adorada pelo que
provoca de desejo. No entanto, a própria exaltação de sua beleza vem
acompanhada pelo menosprezo de sua condição atlética:
Sem nunca ter ganho um torneio, Kournikova, 19 anos, amealhou no ano passado
10 milhões de dólares (quase tudo em publicidade) e é a atleta mais acessada da internet.
Tudo graças à beleza, infinitamente superior à qualidade de seus voleios.(Veja, 05 julho
2000, p.111).
Como pode ser percebido no trecho a seguir, é muito comum que seja
exigido das atletas uma boa aparência para atrair mais público e publicidade
para o esporte. Porém, quando as atletas agem dessa forma por conta própria
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acabam causando polêmica e até mesmo recebendo punições por parte dos
dirigentes:
Fora das quadras, a Alemanha, anfitriã do torneio, está provocando a grande
fofoca do Mundial e uma corrida às bancas de revistas. Oito das 12 jogadoras
do time alemão posaram nuas para uma publicação local. A revista dedicou
oito páginas com fotos em grupos e individuais das atletas. Quem não gostou
dessa história foram os dirigentes da FIVB, que já estariam até estudando
algum tipo de punição para a federação alemã. Para quem acompanha vôlei,
essa onda moralista da FIVB é um tanto contraditória. Há poucos anos, a
entidade incentivou e até exigiu que as seleções usassem uniformes mais
justos, que realçassem o físico das atletas (Folha de São Paulo, 2 setembro
2002, p.D5).
Pesquisas apontam que a cobertura de atletas mulheres raramente
acontece em virtude de seu poder atlético; ou as atletas são enfocadas e
prestigiadas, como mostrado anteriormente, por serem sex symbols, ou a mídia
normalmente opta por focalizá-las nos papéis que a atleta desempenha, como
esposa, mãe. Portanto, ao invés de ser um mecanismo de mudança, a mídia
perpetua características "apropriadas" de feminilidade (Fink, 1998).
As reportagens a seguir mostram que mais importante do que a
performance das atletas é o fato delas serem esposas e mães, ou seja, estarem
de acordo com o que a sociedade considera apropriado:
(...) a cada cesta da ala Sheryl Swoopes, as câmeras de televisam focalizavam seu marido, Eric, e
bebê, Jordan, no ginásio. Dava até para desconfiar, tamanho o exagero. Pois bem, na semana passada
o serviço noticioso CoxNews, baseado em Atlanta, divulgou uma série de reportagens sobre a questão
da sexualidade no esporte – e diz que a liga norte-americana de basquete está, sim, preocupada em
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propagandear, ao vivo e na tv, a feminilidade “família” de suas jogadoras (Folha de São Paulo, 29
setembro 1998).
Esta seria mais uma jogada do Campeonato Finlandês de hóquei da segunda divisão não fosse por
alguns detalhes. Wickenheiser fazia sua estréia pela equipe. Wickenheiser é mulher. A primeira a
jogar na linha em um time profissional masculino e a primeira a dar assistência para um gol (...)
Hayley agora vai procurar um lugar para morar e poder levar à Finlândia o marido, Thomas, e o
filho, Noah, de dois anos e meio, que ficaram no Canadá (Folha de São Paulo, 02 fevereiro 2003, p.
D4).
Recente pesquisa realizada por Knight (2001) confirmou que as
percepções das pessoas sobre os atletas são influenciadas pelas características
adequadas de gênero dos atletas e pelo tipo de cobertura dada pela mídia.
Quando a atratividade da atleta era o foco principal da reportagem, ela era
percebida como mais atrativa fisicamente do que quando a conquista esportiva
era o foco principal. Porém o mesmo não acontecia quando as reportagens
eram sobre homens atletas, o que demonstra que as pessoas são mais aptas a
focalizar em características periféricas para formar opiniões sobre atletas
mulheres. Os resultados também mostraram que os homens atletas também
são prejudicados por uma cobertura trivializada; contudo, como os homens
raramente são retratados por sua atratividade (as mulheres esportivas
normalmente são), essa marginalização parece afetar apenas as mulheres
esportistas.
A cobertura televisiva, na maioria das vezes, dá a impressão que a
performance de mulheres é menos importante e menos interessante comparada
com a dos homens, sendo muito comum incluir a competição feminina como
uma forma de aumentar o suspense para a masculina. Algumas coberturas de
mulheres no esporte aparentavam ter menor custo de produção, incluindo
qualidade técnica e menos informação (Koivula, 1999).
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Watson6 (1993 apud Wigmore, 1996) argumenta que o esporte é
apresentado de maneira discriminatória em relação às mulheres e cita um
exemplo de um jogo televisionado de basquetebol masculino, que foi descrito
como um espetáculo dramático e de importância histórica, enquanto o jogo
das mulheres foi apresentado como menos sofisticado tecnicamente,
preliminar e menos dramático.
Duncan et al (1994) constataram que na transmissão dos jogos dos
homens eram utilizadas técnicas altamente profissionais, com ângulos de
câmeras e edições visuais sofisticadas, o que pode levar os espectadores a se
sentirem privilegiados de estarem assistindo a um espetáculo dramático e de
importância histórica. Já nos jogos das mulheres foi verificada uma menor
qualidade de som, erros freqüentes na edição, imagens menos coloridas,
menos aparições de legendas durante os jogos e pouco uso de ângulos de
câmera diferentes, o que pode levar a audiência a pensar que o esporte
praticado por mulheres é menos importante e de menor qualidade.
A representação visual também é problemática, já que normalmente as
atletas são mostradas em poses glamurosas, que ignoram suas habilidades
atléticas e transformam as atletas em objeto de desejo e inveja, fornecendo
uma mensagem ambígua da mulher atleta como corpo sexualizado
(Hargreaves7, 1993 apud Wigmore, 1996). A representação visual das atletas
normalmente enfatiza a aparência física e as mostra em poses submissas,
cenas emotivas e ângulos que pegam a mulher de cima para baixo mostrando
sua posição inferior (Birrell & Theberge, 1994 apud Wigmore, 1996).
As fotografias nunca mostram imagens neutras, já que os fotógrafos
decidem o que mostrar e os editores selecionam as imagens que lhes convém.
WATSON, S. Discrimination against women as a subtext of excellence. Quest, 45.
HARGREAVES, J. Bodies matter!Images of sport and female sexualization. In: C. Brackenridge
(Ed.), Body matters: Leisure images and lifestyles. Brighton, UK:LSA.
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A forma dominante de feminilidade normalmente é enfatizada nas fotos de
mulheres atletas, com fotografias que dão ênfase aos quadris, glúteos ou seios
da atleta. A posição do corpo pode retratar uma imagem de submissão,
sinalizando um determinado tipo de feminilidade, enquanto poses de
dominação dos homens ilustram a masculinidade hegemônica e superior
(Sleap, 1998).
4. MUDANDO A PAUTA
Para Sleap (1998), as implicações da cobertura limitada feita pela mídia
de mulheres esportistas são claras: um número reduzido de modelos esportivos
para meninas, não contribuindo para a formação de novas atletas; mulheres
atletas parecem não serem tão importantes quanto homens atletas; e é mais
difícil para as atletas encontrarem patrocinadores devido a baixa exposição na
mídia. E conseqüentemente as chances de mulheres esportistas continuarão
reduzidas em relação aos homens.
Neste artigo, procuramos retratar o quanto o discurso da mídia ressalta a
existência de dois tipos de identidade feminina, como se fossem os únicos: ou
aquela ligada ao ser maternal e familiar, mesmo sendo atleta – isto é, uma
concepção ainda remanescente de uma época vitoriana; ou uma concepção de
corpo (e consequentemente de identidade) voltado para a sedução, para o
prazer e a sexualização – enquanto o corpo masculino é heróico, bravo e
corajoso, capaz de realizar proezas mesmo machucado – ou seja, este
poderoso, aquele, feito para o desfrute sexual.
Ora, como se sentiria uma menina de 12 anos ao ver os uniformes do
tipo macaquinho, colados no corpo das atletas? Comprar o uniforme “sexy” de
seus ídolos, como todo garoto e garota gostam de fazer? Praticar basquete com
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uniformes agarradinhos, que evidenciem o seu corpo em transformação? E
como se sente alguém que, mesmo tendo sido a campeã ou tido a melhor
performance, vê que as mais ‘bonitinhas’ ganham muito mais espaço na mídia
– e atraem consequentemente mais patrocinadores, e têm melhores salários do
que ela, independentemente dos critérios esportivos? E, sobretudo, percebe
que os homens não precisam suportar constantes avaliações estéticas para
serem alçados às glórias esportivas, ao passo que mulheres ficarão à margem,
caso não se submetam aos ditames estéticos e corporais – baseados, como já
afirmado, em concepções hegemônicas de gênero que colocam o corpo da
mulher como maternal ou sexualizado, e o do homem como heróico,
importante e independente.
Não há aqui intenção alguma tampouco um apelo para que se anulem as
diferenças entre os sexos. Aliás, a regra na humanidade é a diferença e a
diversidade, seja física, biológica, social e cultural. Muitas vezes, em termos
esportivos, há mais diferenças entre um homem de dois metros comparado a
outro de um metro e meio, do que entre um homem e uma mulher com
estaturas semelhantes. As diferenças existem, devem ser respeitadas e mesmo
celebradas como constituintes da riqueza e da diversidade humanas, e como
fonte de engrandecimento para todos que compartilhamos este planeta terra.
No entanto - e os exemplos que ilustram este texto deixam isto bem
claro - as diferenças biológicas têm dado respaldo a perseguições, formação de
representações sociais preconceituosas, e até mesmo a discriminações. Se as
diferenças são bem vindas, as desigualdades sociais, também no campo
esportivo, devem ser repudiadas. Deste modo, deixaremos de ser “diferentes E
desiguais”, passando a ser “iguais MAS diferentes”, seres plenos de diferenças
(grandes ou pequenas, físicas ou culturais) mas portadores de igualdade de
direitos.
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O esporte, e a mídia esportiva que faz com que este seja um fenômeno
verdadeiramente de massas, poderiam ser espaços sociais de afirmação das
diferenças e de reafirmação dos direitos humanos sociais e culturais,
referentes às práticas corporais em todos os níveis, competitivos ou não. Urge
que o discurso sexista da mídia dê lugar a uma visão mais equalitária,
favorecendo a harmonização das relações sociais de gênero nesta esfera que é,
sem sombra de dúvida, uma que mais repassa modelos sociais a serem
seguidos mundo afora.
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