“As Revistas de Variedades em Manaus (1920 - PPGH
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“As Revistas de Variedades em Manaus (1920 - PPGH
5 RESUMO A dissertação buscou explorar a trajetória das revistas de variedades que foram idealizadas e produzidas no Amazonas na primeira metade do século XX. Tal temática se apresenta como uma dimensão da História da Imprensa ainda pouco investigada, sobretudo no contexto dos estudos históricos locais, razão pela qual o tema se mostra ainda mais relevante. Informada pelos debates históriográficos contemporâneos que se desenrolam em associação, seja com o campo mais restrito da história da imprensa, dos impressos e das práticas de leitura; seja ainda mais amplamente com o campo da própria história cultural, discute a relativamente recente aproximação dos historiadores com a imprensa, que dela hoje se utilizam de múltiplas maneiras, com destaque para dois caminhos que embora distintos, não são, todavia, antagônicos. O primeiro destes caminhos é o da História através da Imprensa, por onde se busca explorar temáticas diversas utilizando-se os periódicos como suporte documental prioritário ou mesmo exclusivo. O segundo caminho consiste na produção de uma História da Imprensa propriamente dita, lançando-se à investigação de títulos, segmentos temáticos do periodismo ou mesmo conjunturas específicas de produção, circulação e consumo desses impressos. Discutindo a lenta e significativa diversificação de temas, preocupações e formatos assumidos pelos periódicos ao longo da história, o projeto busca analisar a emergência do gênero revista e, em seu interior, as revistas de variedades, tal como se projetaram a partir de um conjunto de seis revistas previamente selecionadas (Ponto nos ii, A Nota, Cá e Lá, Redempção, O Rionegrino e Sintonia). Palavras-Chave: História da Imprensa, Revistas de Variedades, Periodismo. 6 ABSTRACT The dissertation sought to explore the trajectory of magazines of varieties which have been idealized and produced in the Amazon in the first half of the 20th century. This topic presents as a dimension in the history of Press still poorly investigated, especially in the context of local historical studies, the theme becomes even more relevant. Informed by contemporary historical debates taking place in association with the narrowest field in the history of press releases, printed and read practices; it is still more widely with the field of cultural history, discusses the relatively recent rapprochement of historians with the press, which today utilize multiple ways, featuring two paths that although distinct, shall not, however, contrary. The first of these is the paths of history through the press, through which seeks to explore various thematic using journals as documentary support priority or even unique. The second path is the production of a history of the press itself, launching to research titles, thematic segments journalism or even specific situations of production, circulation and consumption of such printed. Discussing the slow and significant diversification issues, concerns and formats made by periodicals throughout history, the project aims to examine the emergence of genre magazine, and in its interior, varieties, as if designed from a set of six magazines pre-selected (Ponto nos ii, A Nota, Cá e Lá, Redempção, O Rionegrino and Sintonia). Keywords: History of the Press; Magazines Varieties, Journalism. 7 AGRADECIMENTOS Ao longo desta trajetória acadêmica, contraí dividas diversas, com instituições, amigos e familiares e essas contribuições e apoios foram tão grandes que corro aqui o risco de cometer injustiças, por esquecimento ou descuido. Gostaria de agradecer à Universidade Federal do Amazonas, e em especial ao Departamento de História, onde fiz minha trajetória acadêmica na Graduação em História. Aos professores que à época me acompanharam, em especial ao Professor Aloysio Nogueira, Geraldo Sá Peixoto, Francisco Jorge e Raimundo Saúde devo muito de minhas realizações, ainda modestas. De igual forma, agradeço a acolhida que recebi no Programa de Pós-Graduação em História. Ao professor Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, agradeço a orientação criteriosa e o apoio constante que me dedicou desde o período da Graduação. Agradeço em especial, suas palavras de estímulo e de incentivo nos momentos de crise, em que a vontade de tudo abandonar era realmente tentadora. Diversos professores do Programa de Pós-Graduação em História colaboraram comigo, sugerindo caminhos e correções. Dentre eles destaco os Professores Almir Diniz de Carvalho Júnior e Hideraldo Lima d Costa, que me ajudaram a repensar a pesquisa no âmbito do Exame de Qualificação. À Maria Luiza Ugarte Pinheiro sou grata pelas sugestões formuladas no âmbito das disciplinas e Seminários de Pesquisa, além de franquear o acesso ao espaço e ao acervo do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas. Tanto na Graduação, quanto na Pós-Graduação compartilhei os debates, conversas e fuxicos de sala de aula com um grande número de colegas, hoje amigos queridos, de quem obtive sempre apoio e compreensão. Acima de tudo, quero agradecer a meus familiares, pela contínua compreensão e apoio, sem os quais tenho certeza de que não conseguiria empreender essa jornada. Essa dissertação, pelo que de bom pode ter, é para eles! 8 C O N S ID E R A Ç Õ E S I N I C I A IS 9 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O campo de pesquisa da História da Imprensa no Brasil tem se ampliado e diversificado nas duas últimas décadas, produzindo diversas abordagens. Algo gratificante, se lembrarmos que a Imprensa brasileira que teve surgimento tardio, no início do século XIX, quando já despontava em outras áreas do globo há mais de cinco séculos1. Ela tem despertado o interesse, em especial, das novas gerações de historiadores, que vêem nela um instrumento bastante eficaz para melhor compreender a sociedade brasileira, em suas múltiplas dimensões: políticas, sociais, culturais.2 Seguindo esta tendência há quase uma década o Departamento de História da Universidade do Amazonas tem intensificado esse campo de estudos, com o desenvolvimento de diversas pesquisas, em especial através do Laboratório da História da Imprensa no Amazonas, o LHIA3. Foi a partir do ingresso nesse grupo de estudos, e de pesquisas monográficas iniciais que pude desenvolver no âmbito do Programa de Bolsas de Iniciação Científica4, que desenvolvi a proposta de pesquisa atual versando sobre as revistas de variedades em Manaus. Um primeiro problema que enfrentamos foi o da falta de estudos, no contexto local, sobre esse gênero específico do periodismo: a revista. Era preciso, portanto, partir de sua identificação, salientando as distinções frente ao gênero mais difundido e conhecido: o jornal. Mais ainda, mal nascia e a revista já adquiria várias formas, segmentando-se numa dezena de especialidades: científicas, femininas, esportivas, literárias, masculinas, de variedades, etc.5 1 MOREL, Marco e BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, Imagem, Poder. O surgimento da Imprensa no Brasil no Século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 15. 2 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa no Brasil, 1900- 2000. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. 3 PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto e PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Gavroche: Boletim de Pesquisa do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas. Manaus, vol. 1, nº 1, 2005. 4 CORREIA, Fabiana Libório. A Revista Sintonia e o Amazonas Durante a Batalha da Borracha (19391943). Monografia de Iniciação Científica. Manaus: UFAM/CNPq, 2004; CORREIA, Fabiana Libório. O Arauto da Crise: O Amazonas nas Páginas da Revista Redempção. Monografia de Iniciação Científica. Manaus: UFAM/CNPq, 2005. 5 Há dois grandes e importantes trabalhos sobre o assunto no Brasil: O primeiro – MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas: Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp /Fapesp /Imprensa Oficial, 2001 –, é pesquisa de fôlego, resultado de pesquisa doutoral realizada na Universidade de São Paulo; já o segundo – KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000. –, idealizado e produzido pela Editora Abril como forma de comemoração aos 200 anos de Imprensa no Brasil, é obra menos adensada e analítica, voltada mais para uma abordagem da diversidade e riqueza do gênero. Delas fizemos larga utilização ao longo da dissertação. 10 Além da necessária recuperarmos da trajetória do gênero revista no Amazonas, procurando estabelecer uma cronologia própria dessa evolução, será preciso reconhecer, à partida, que o enquadramento dos periódicos (jornais e revistas) a partir da percepção dos seus campos de interesses, abordagens e atuações, é, na verdade, um exercício posterior que se faz à própria vida dos impressos analisados e tem, grosso modo, preocupações didáticas e de contextualizações. Isso por que, na maioria das vezes ou os periódicos nem buscam se auto-definir, nem, quando o fazem, se identificam com os termos e categorias que a eles atribuímos. Além do mais, muitos deles, definidos por especializações temáticas ou de interesse (literários, humorísticos, classistas, esportivos), acabam desenvolvendo, na prática, um perfil diferenciado, seja transpondo os recortes iniciais propostos, seja secundarizando o tema inicial por força de um maior envolvimento com outras temáticas e interesses. Tal como a nossa própria vida, os periódicos também desenvolvem trajetórias que só podem indicar as intenções de percurso, sem, contudo, ter garantias de sua plena realização. Quantos jornais literários e/ou humorísticos, não descambaram para o mais franco engajamento político, por força das reações adversas recebidas no início de suas trajetórias? Neste contexto, mesmo mantendo o título e o corpo redacional inalterados, diversos periódicos assumiram paulatinamente novas posturas e pautas, fazendo do programa inaugural pouco mais que uma lembrança fugidia. Em mais de uma vez, tivemos que enfrentar, ao longo da dissertação essa mudança de rumo, que também nos forçava a acolher periódicos para o campo de especialidade que escolhemos trabalhar – o de revistas de variedades –, quanto, inversamente, tivemos que abrir mão deles, quando não mais diziam respeito à esse recorte. Um rápido exemplo, mais adiante trabalhado, é o da revista Sintonia, que surge em Manaus em 1939. Se só tivéssemos nos atido aos seus quatro ou cinco primeiros números, ela pouco teria a nos dizer pelo escopo diferenciado que apresentava, configurando-se como uma revista classista (de trabalhadores) voltada para a discussão mais próxima dos interesses de uma categoria profissional: os telegrafistas. De igual forma, se levássemos em consideração os números de sua segunda fase, ocorrida entre 1950 e 1955, ela também se afastaria de nossa proposta, já que então se mostrava muito mais afinada à outro gênero que passou a ganhar forte notoriedade em meados do século XX, as revistas femininas. Assim, se incluímos a revista Sintonia no rol de nossas preocupações e interesses, é porque, ao longo de sua trajetória cambiante, em especial entre os anos de 1940 e 1943, seu perfil editorial passou a assumir clara inflexão para o tema das “variedades”. 11 Outro ponto de preocupação inicial reside exatamente na definição a posteriori que esse gênero do periodismo – revistas de variedades – passa a assumir. Com efeito, foram poucas as revistas no Brasil que usaram explicitamente esse termo (variedades)6, o que não o invalida, já que ele está, todavia, na essência dos projetos editoriais, preocupados em fazer chegar o empreendimento a um público variado e com múltiplos interesses, o que só parecia possível se sua pauta também assumisse essa configuração. Assim, nenhum dos periódicos que definimos como escopo da análise desta dissertação, assumiu ao menos uma vez este termo e, desta forma, sua inclusão neste rol se fez a posteriori, a partir de própria análise da linha editorial efetivamente assumida. Nesse cômputo, incluímos quatro títulos – Cá e Lá (1915-1917), O Rionegrino (1922-1978), Redempção (1924-1932) e Sintonia (1939-1945) –, entendendo que eles foram bastantes representativos do gênero variedades, ao menos em parte significativa de suas trajetórias. Além destes títulos, lançamos mão de outros dois que para nós exemplificam, no contexto amazonense, a fase de diversificação de gêneros periodísticos e de transição do jornal à revista, onde a linguagem assumida, e os temas abordados, concorrem muito mais que os aspectos físicos (gráficos) e o layout para uma definição do que vem a ser um jornal ou uma revista7. Nessa categoria de jornais/revistas em transição, incluímos Ponto nos ii (1906) e A Nota (1917). É ainda Ana Luiza Martins, que chama a atenção para um ponto nodal, ao sugerir que, muitas vezes inebriados pelo fascínio que a leitura das revistas produz, em especial quando jogam luz sobre assuntos, episódios e atores do passado, os historiadores correm o risco de cair numa “cilada documental”. Tal cilada estaria no fato de que “os apelos que transportam e induzem o pesquisador a configurações quase pictóricas do passado, tal como um espelho disforme, refletem imagens falsas, imagens de superfície, que requerem investigação e decodificação”.8 Continua a autora: Neste sentido, a constância do uso de revistas como fonte histórica vem revelando que frases e imagens de periódicos pinçadas aqui e acolá, descosturadas do mergulho em seu tempo – vale dizer no imaginário 6 “Em janeiro de 1812, o tipógrafo e livreiro português Manoel Antonio da Silva Serva apresentou aos leitores da cidade de Salvador a publicação intitulada As Variedades, considerada a primeira revista brasileira”. KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. Op. cit., p. 114. 7 Historicizando o surgimento da revista, Ana Luiza Martins afirma que, à princípio era difícil contrapô-la “ao jornal, com periodicidade assídua, geralmente diária e muito semelhante no formato, sobretudo quando a revista se apresenta com páginas soltas, in folio. O que os distingue com freqüência, é a existência da capa na revista, acabamento que não ocorre no jornal; mais do que isso, é a formulação do seu programa de revista, divulgado no artigo de fundo, que esclarece o propósito e as características da publicação. MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista. Op. cit., p. 46. 8 Ibidem, p. 21. 12 construído ao seu tempo – não iluminam suficientemente o passado. A pertinência desse gênero de impresso como testemunho do período é válida, se levarmos em consideração as condições de sua produção, de sua negociação, de seu mecenato propiciador, das revoluções técnicas a que se assistia e, sobretudo, da natureza dos capitais nele envolvidos.9 Podemos, com facilidade, ampliar o foco de preocupações levantados por Ana Luiza Martins, levando as observações por ela produzidas para o campo mais amplo do debate historiográfico acerca do caráter supostamente neutro do documento, outrora advogado pelos historiadores que se perfilavam à escola metódica (positivista) e que foi tão fortemente combatido pela força renovadora da Escola dos Annales, de Marc Bloch aos dias atuais. Num desses embates, Jacques Le Goff ponderou que: O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, em pleno conhecimento de causa.10 Se não meramente refletem ou mesmo informam objetivamente a realidade do vivido, tal e qual ocorreram – e como desejaria a velha história positivista – os periódicos (jornais e revistas), nem por isso são meras falsificações e adulterações do passado e, deixando de se mostrarem importantes na elucidação de dimensões daquelas vivências que nos antecederam. Assim, de forma consciente ou mesmo inconscientemente, os homens deixam rastros e indícios que podem ser interpretados pelo pesquisador do presente. É assim que, tendo a mediação da imprensa ou de qualquer outro suporte documental, Marialva Barbosa considera que o passado é sempre objeto de uma interpretação, sob a ótica da leitura do pesquisador do presente. Assim, o que de fato se deu está irremediavelmente emoldurado pelas ações do passado. São as pegadas, os indícios e os vestígios que esses passos deixaram, que o pesquisador procura enxergar, mas sempre sob a ótica da interpretação.11 Tais perspectivas estão no bojo do debate historiográfico contemporâneo e mesmo na fronteira de importantes dimensões da História (História Social da Cultura, História Cultural) assumida por historiadores, correntes e escolas historiográficas. Pedra de toque 9 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista. Op. cit., p. 21. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992, p. 545. 11 BARBOSA, Marialva. “O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da imprensa brasileira”. Rio de Janeiro: Ciberlegenda, nº 7, 2002, p. 2. 10 13 no interior deste debate, o complexo12 conceito de representação, difundido por Roger Chartier13, nos parece pertinente de ser anotado, em especial, por que, à luz da discussão acerca sobre o significado dos impressos e de sua capacidade plena, limitada ou inexistente de referenciar ao historiador o passado, remete para o que Chartier chama a atenção: A problemática do “mundo como representação”, modelado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada por leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real.14 Advogando a centralidade do conceito de representação, Chartier nos lembra que “as estruturas do mundo social não são um dado objetivo, tal como não são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas figuras”15. Por tal entendimento, sai de cena toda e qualquer pretensão de uma correspondência direta do real com os discursos e as imagens sobre ele produzida, e um conseqüente deslocamento da legitimidade do conhecimento por intermédio da veracidade, em detrimento agora da verossimilhança.16 Pensamos que, embora o debate historiográfico contemporâneo pareça, por vezes, descambar para fortes e irreconciliáveis oposições17, ele frequentemente converge para pontos comuns, a partir de priorizações, estas sim, diferenciadas. É o que Daniel Roche, figura expressiva da Escola dos Annales, exemplifica, a partir de comentário que estabelece acerca dos caminhos que separam suas perspectivas daquelas de um de seus antigos discípulos: 12 Sandra Pesavento, o vê como um “conceito ambíguo, pois na relação que se estabelece entre ausência e presença, a correspondência não é da ordem do mimético ou da transparência. A representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele”. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. Grifo nosso. 13 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Difel, 1990, p. 20-23. 14 Ibidem, p. 24. 15 Idem, ibidem, p. 27. 16 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Op. cit., p. 41. 17 Com efeito, o pensamento de Chartier não tem se projetado, contudo, sem objeções da parte de diversos historiadores. Ciro Cardoso, por exemplo, o percebe no bojo de uma “virada cultural” na historiografia, cujas implicações maiores estariam, de acordo com Sandra Pelegrini, em inverter as premissas do Marxismo e da Escola dos Annales, promovendo assim uma história cultural do social, no lugar da história social da cultura, além de se perfilar entre os que promovem uma “crescente negação epistemológica do realismo”. PELEGRINI, Sandra. Resenha. Revista Brasileira de História, vol. 22, nº 43, p. 247. Cabe conferir também a obra referenciada pela autora: CARDOSO, Ciro Flamarian Santana e MALERBA, Jurandir (Orgs). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas, SP: Papirus, 2000. 14 Penso que, apesar de escrever história cultural, continuo ainda um historiador social. Digo a Chartier que faço história socicultural, enquanto ele me diz que faz história cultural-social. Na verdade, é que renunciamos a explicar um nível pelo outro. Acredito que os historiadores possam se distinguir uns dos outros no seguinte: de um lado, há os que dão maior importância ao estudo das representações e da maneira como elas se constroem a partir dos textos e das práticas de difusão dos textos; e, de outro, há os que estudam como os grupos desenvolvem certos tipos de práticas, de usos, de leituras, de hábitos de vestir, etc. O procedimento, o caminho a ser seguido nesses dois casos, não é, evidentemente, o mesmo, mas o método não deixa de ser bastante equivalente, pois trata-se, em ambos, de um diálogo entre práticas e representações.18 A escrita da história contemporânea, assim pensada, é antes espaço de confluência a possibilitar a ampliação do debate e esse debate não deixou de se amplificar no desbravamento da fronteira em direção a novos problemas, abordagens e objetos, para usar o mote do projeto renovador da Nova História francesa de fins da década de 1960 e início de 197019. Nesse jogo de expansão e encontros, uma história dos impressos (livro, jornais, revistas) já mais madura, encontra hoje abordagens que lhe agregam valor numa mais recente história da leitura20. Mas por mais que tais influxos tenham sido e sejam inovadores e estimulantes, o desafio de perceber a recepção dos diversos impressos (em nosso caso as revistas de variedades) pelo público leitor, ficou a meio caminho, tal a dificuldades que encontramos para inquirir essas dimensões no âmbito de uma pesquisa institucional com prazos cada vez mais exíguos. Da mesma forma que a imprensa enquanto fonte tem aberturas e possibilidades, tem também limites, muitas vezes difíceis de transpor.21 A dissertação foi dividida em três capítulos, sendo o primeiro constituído de uma análise da aproximação dos historiadores com a Imprensa, além de uma discussão acerca 18 Daniel Roche, em entrevista anotada por: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As Muitas Faces da História: Nove entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 177. 19 LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Orgs). História. 3 vols (Novos Problemas, Novos Objetos, Novas Abordagens). São Paulo: Francisco Alves, 1976. 20 A bibliografia de ambas é extensa e diversificada. Registo aqui, apenas à título de exemplificação da qualidade alcançada pelo debate: CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro. Do leitor ao navegador. São Paulo: Editora da Unesp, 1998; CHARTIER, Roger. Leituras e Leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Editora da Unesp, 2004; DARNTON, Robert. Edição e Sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, 1992; DARNTON, Robert. “História da Leitura”. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 199-236; DARNTON, Robert e ROCHE, Daniel (Ed.). Revolução Impressa: A Imprensa na França, 1775-1800. São Paulo: Edusp, 1996; BURKE, Peter e BRIGGS, Asa. Uma História Social da Mídia: de Gutenberg à internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. 21 LUCA, Tania Regina de. A História dos, nos e por meio dos Periódicos. In: PINSKY, Carla Bessanezi (Orgs.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p. 111-153. 15 do surgimento da Imprensa no Brasil, a partir de suas grandes linhas interpretativas, sem, contudo, enveredar para os estudos mais regionalizados, já que em cada canto do país desenvolveram-se trajetórias singulares no processo de implementação da imprensa. Ainda neste capítulo, busca-se discutir o aparecimento do gênero revista e, depois, das revistas de variedades. O capítulo é encerrado com uma primeira aproximação ao tema central do trabalho, discutindo o surgimento das primeiras revistas em Manaus. No segundo capítulo fizemos uma discussão sobre o aparecimento da Imprensa em Manaus, buscando alargar os caminhos já trilhados por importantes trabalhos, discutindo alguns exemplos de uma lenta transição do gênero jornal para de revistas. Neste momento a pesquisa arquivística emerge mais fortemente no trabalho, trazendo à tona as primeiras análises dos periódicos selecionados. No último capítulo analisamos o desenvolvimento propriamente dito das revistas de variedades em Manaus, explorando as análises documentais geradas à partir dos quatro títulos por nós selecionados. Cá e Lá, Redempção, Sintonia e O Rionegrino. 16 C A P ÍT U L O 1 A H I ST Ó R I A D A I M P R E N S A N O B R A SI L E O S U R G IM E N T O D A S R E V I S T A S D E V A R IE D A D E S 17 CAPÍTULO 1 A HISTÓRIA DA IMPRENSA NO BRASIL E O SURGIMENTO DAS REVISTAS DE VARIEDADES 1. OS HISTORIADORES E A IMPRENSA De acordo com Maria Helena Rolim Capelato existem vários tipos de imprensa e várias maneiras de se estudá-la22. Um ponto inicial para nossa discussão vem do fato de que, quando a autora (e como ela os demais historiadores da imprensa) se refere à “imprensa periódica”, separando-a em especial do jornalismo televisivo contemporâneo, faz menção ao campo da imprensa que abrange prioritariamente o jornal e a revista, embora esta última distinção nem sempre seja percebida. No Brasil a utilização de fontes periódicas na construção do conhecimento histórico não chega a ser novidade, uma vez que há algumas décadas elas têm servido de suporte a diversos estudos realizados em diferentes campos disciplinares, em especial no interior das Ciências Humanas. A sua incorporação como objeto é, todavia, bem mais recente, pois como sugere Renné Zicman “percebemos que mesmo se frequentemente consultados e citados, os jornais são raramente estudados e analisados”. 23 Segundo Maria do Pillar Vieira e outros, na maioria das vezes, a análise historiográfica por vezes lança mão da imprensa, mas como suportes documentais e, além disso, como fonte objetiva e neutra, espécie de repositórios de informações, desconsiderando ou omitindo o fato de que eles são idealizados, produzidos e animados por pessoas com interesses e projetos específicos que vêem o mundo e as coisas sempre de forma particular.24 Por muito tempo no Brasil, enquanto durou a influência da história metódica, diz Marialva Barbosa, os historiadores percebiam a fonte periódica de duas formas distintas: a 22 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo. Contexto/Edusp, 1994, p. 27. 23 ZICMAN, Renné Barata. História Através da Imprensa: algumas considerações metodológicas. Projeto História, n. 4. São Paulo: Educ, 1985. p. 90. 24 VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo et al. A Imprensa Como Fonte para a Pesquisa Histórica. Projeto História, n. 03. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1984, p. 49; VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo, PEIXOTO, Maria do Rosário Cunha e KHOURY, Yara Maria Aun. A Pesquisa em História. 5ª ed. São Paulo: Ática, 2007, p. 54. 18 primeira que concebia o jornal como espelho da realidade, um reprodutor fidedigno dos fatos “reais”. Esse discurso da objetividade tem suas raízes na década de vinte quando grande parte da imprensa periódica adota como bandeira o compromisso de informar o leitor, a imprensa prestadora de serviço, no caso informar, estaria isenta de qualquer juízo de valor. Discurso que ainda tem grande ainda receptividade no meio jornalístico, que associam a idéia de seriedade e profissionalismo com imparcialidade principalmente na grande imprensa periódica atual que assimilam jornalismo com verdade. 25 Ao contrário dessa posição, outra vertente percebia a fonte jornalística com certa desconfiança, chegando inclusive a descartá-la justamente por seu caráter subjetivo, por reconhecer que o profissional da informação sempre emite um juízo de valor quando exerce seu ofício, logo, o documento jornal estaria fadado ao descrédito porque o reconhecimento da subjetividade era a constatação de um documento falso. O reconhecimento dessa subjetividade na documentação periódica não significa, todavia, um entrave para os historiadores contemporâneos, uma vez que o campo da nova história cultural, que tem ganhado força mundialmente nos últimos anos, reconhece a ação do historiador como intrínseca à construção do processo de conhecimento, sem, contudo, equiparar-se a livre ação ficcional do literato. Se a objetividade plena apregoada pelos positivistas ficou para trás, as novas abordagens historiográficas a percebem como possibilidade, mediada pelos caminhos do método histórico, cientificamente conduzido. No bojo dessas discussões, ganha relevo um conjunto de novas categorias conceituais, como o de representação, que, baseado em especial na abordagem de Roger Chartier, localiza duas possibilidades de se pensar o conceito: uma da representação como reflexo da realidade social, e a outra que projeta esta mesma realidade criando-se aí “uma clara distinção entre o que representa e o que é representado”.26 Nesta última perspectiva, entende-se que os grupos ao desenvolverem suas práticas culturais deixam indícios que podem ser objeto de múltiplas percepções e, dessa forma, também as possibilidades de documento se ampliam, pois quaisquer indícios deixados pelos homens no decorrer de sua existência são passíveis de interpretações. 27 25 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa no Brasil, 1900- 2000. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002, p. 74. 27 CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002, p. 74. 26 19 Nas duas últimas décadas do século XX no Brasil, dada especialmente a proliferação do campo da história cultural e de seus aportes, a escolha por fontes periódicas tem aumentado significativamente entre os historiadores, uma vez que os jornais (assim como as revistas) são indícios de forte conteúdo histórico em que os indivíduos sempre estão dispostos a imprimir uma visão da sociedade do seu tempo. Contrariando as duas posições radicais acima mencionadas, entendemos que a imprensa como fonte ou objeto de estudo não pode ser pensada como um mero repositório de fatos e nem pode ser desconsiderada por se reconhecer nela elementos de subjetividade. De fato, este caráter subjetivo, além de ser intrínseco ao papel de transmitir notícias e fatos, está presente também nos demais conjuntos documentais utilizados pelos historiadores, há muito já conscientes de que todo e qualquer documento é também, como sustenta Jacques Le Goff, monumento.28 O historiador ao escolher a fonte periódica como objeto ou fonte de pesquisa tem clareza de que o que nela se imprime não é uma mera representação do real e muito menos o real em si. Enquanto representação incorpora dimensões da vivência de pessoas e grupos que olham (compreendem) a realidade de forma singular e, além do mais é ativa também, já que capaz de intervir na própria construção do vivido. Assim, as representações veiculadas pela imprensa não são únicas e nem possível de sererem recuperadas em todas as suas múltiplas nuances, o que faz com que jornais e revistas sejam percebidos mais como indícios e práticas de determinados grupos vivendo em sociedades. Assim, nas pesquisas atuais acerca da Imprensa, o que se busca perceber são esses indícios, seus rastros são construídos no tempo ou, como nos fala Maria Helena Capellato, pensar “a maneira pela qual os sujeitos da história tomaram consciência deles e os relataram. O historiador tem o compromisso de buscar a verdade, mas há muitas verdades”.29 A partir de 1970 surgem trabalhos na disciplina histórica voltados para a análise das condições que propiciaram o aparecimento de jornais e revistas, levantando indagações até então ignoradas pela historiografia predominante, como o perfil dos impressos, seus proprietários e colaboradores e até questões relacionadas ao público leitor. Tratava-se, pois, de buscar inserir os periódicos e os sujeitos sociais que os animaram nos contextos 28 29 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Op. cit., p. 535. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. Op. Cit., p. 22. 20 históricos de determinada época, com vista a uma melhor percepção do lugar social que esses sujeitos e órgão de imprensa falam. 30 Dentro desta perspectiva, na própria Universidade Federal do Amazonas, como em outras do país, há alguns anos vem se desenvolvendo trabalhos que se vinculam ao campo da história da imprensa e que buscam através de da análise de jornais e revistas uma melhor compreensão da imprensa e de seu papel no interior da sociedade amazonense, o que tem possibilitado o surgimento e proliferação de diversas monografias, relatórios de iniciação cientifica e dissertações de mestrado. Cada um desses trabalhos, bastante influenciados pelo estudo pioneiro de Maria Luiza Ugarte Pinheiro31, tem procurado demonstrar as diversas possibilidades de abordagens da imprensa e explorado sua articulação com temáticas diversas, que vão do mundo do trabalho, aos estudos de gênero e à história da infância, por exemplo. Entre os historiadores da imprensa que se propõem a refletir criticamente a utilização dos periódicos, têm sido comum, lembra-nos Renée Barata Zicman, uma oscilação entre dois campos, sendo o primeiro aquele que busca reconstruir o surgimento e a trajetória de um periódico, tendo a preocupação essencial de levantar suas principais características e evolução histórica. Tal postura configura o que mais propriamente a autora designa como sendo um trabalho de “História da Imprensa”, já que nele o periódico é o próprio objeto de reflexão do historiador. O segundo campo, mais comum, é o da construção de uma “História Através da Imprensa”, que utiliza o periódico como fonte primária da pesquisa historiográfica acerca de temáticas diversas. 32 Esses campos não são, obviamente, excludentes e a articulação entre os dois tem produzido uma história da imprensa que contextualiza essa produção em seu tempo específico e observa dimensões importantes como os capitais envolvidos, os sujeitos que atuam na linha de frente desses empreendimentos e em seus bastidores, o público a quem se dirigem os impressos, as suas vinculações políticas, etc. Tais estudos, além de contextualizarem e analisarem com maior segurança a presença da Imprensa no interior da sociedade que a produz, resultam ainda em rica contribuição acerca da própria sociedade e de seu tempo. 30 VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo et al. A Imprensa Como Fonte Para a Pesquisa Histórica. Op. cit., p. 49. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: letramento e periodismo no Amazonas (1880-1920). Tese de Doutorado em História. São Paulo: PUC-SP, 2001. 32 ZICMAN, René Barata. História Através da Imprensa. Op. cit., p. 89. 31 21 Contudo, quando nos referimos genericamente à imprensa periódica, é sem dúvida o formato jornal que atrai o maior interesse dos pesquisadores, enquanto a revista continua ainda pouco investigada. Do ponto de vista das preocupações metodológicas necessárias para um correto manusear da fonte periódica, Renée barata Zicman deixa claro que os procedimentos utilizados para a análise e estudo dos jornais podem igualmente ser utilizados para outras modalidades de impresso, como os mensários, os semanários e os hebdomadários, que são, em boa medida, sinônimos de revistas. 33 Assim, a utilização das revistas no campo da história da imprensa ainda é uma prática muito recente e entre estas, as revistas de variedades são ainda menos analisadas. Isso se deve, em parte, pelo fato de que por muito tempo (e ainda hoje!) as chamadas revistas de variedades serem consideradas frívolas, enfatizando o que se convencionou chamar, com forte carga de preconceito, de: amenidades. Porém, entendemos que essas publicações se inserem na complexa teia social e como são produtos de seu tempo e emitem valores, projetos e visões de mundo que são, em boa medida, partilhado pela sua significativa base de leitores, merecem ser seriamente analisadas e dissecadas pelo olhar do historiador compromissado com a compreensão e transformação do mundo social que se espraia ao seu redor. 2. O SURGIMENTO E A EXPANSÃO DA IMPRENSA NO BRASIL O aparecimento da imprensa no Brasil de forma oficial em 1808 está relacionado a um complexo conjunto de transformações sociais, políticas e econômicas que se estabelecem no contexto brasileiro do início do século XIX, notadamente como desdobramento da vinda da família real portuguesa e a conseqüente instalação da Corte na cidade do Rio de Janeiro, ocorrida naquele mesmo ano. De acordo com Jurez Bahia a chegada da dinastia de Bragança e de seus milhares de súditos ao Brasil acarretou uma série de mudanças administrativas, políticas, econômicas e culturais que incluíam a abertura dos portos a outras nações (Inglaterra, 33 ZICMAN, René Barata. História Através da Imprensa. Op. cit., p. 89. 22 basicamente), a criação de instituições de ensino, como o Liceu de Artes, de escolas médico cirúrgicas e de uma Biblioteca Real. 34 Uma das medidas imediatas tomadas por D. João VI a interferir significativamente no desenvolvimento da imprensa no Brasil foi o decreto-lei que permitiu a existência da Imprensa na colônia, fazendo com que a Carta Régia de 1747, proibitiva, perdesse validade. Como é sabido, por aquele documento, vedava-se na colônia a circulação e o funcionamento de tipografias, punindo-se com severas penalidades quem desrespeitasse as determinações reais, ficando ainda os infratores sujeitos a prisão e exílio. Previa ainda que tipos e prensas apreendidos pudessem ser seqüestrados e enviados para a Metrópole.35 Essas alterações não deixaram de contribuir para que, anos mais tarde, ao longo do Brasil Imperial, se cultivasse mais fortemente o hábito da leitura, até então praticamente restrito a pequena parcela da população. Os grupos letrados representavam, inclusive, parcela extremamente pequena, sendo minoritária inclusive no interior da elite política e econômica, uma vez que a instrução pública pouco avançara ao longo do período colonial. A ênfase na necessidade do letramento da população e a centralidade de políticas de alfabetização só serão defendidas de forma concreta apenas no período republicano. Mesmo assim, de acordo com Tânia Regina de Luca, no início do século XX apenas 25% da população brasileira era alfabetizada. 36 Parece não haver dúvida, portanto, que a lenta ampliação da instrução pública, o avanço dos hábitos de leitura e a emergência de grupos letrados, acabaram estimulando a criação de vários jornais e revistas tanto na sede da Corte como em outras províncias do país. Mas havia ainda, por trás desse avanço, o desejo, desde muito materializado, da veiculação de idéias e valores, muitas vezes ancorado em intenções políticas. Assim, o panfletarismo precede e se associa à imprensa em seu surgimento, para acompanhá-la por muitos e muitos anos.37 Mesmo que o Brasil tivesse na condição de Colônia e Portugal sustentasse uma visão bastante conservadora em relação a atividades ligadas a leitura, há vestígios que 34 BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica: História da Imprensa Brasileira. São Paulo: Ática, 1990, p.33. Ibidem, p. 34. 36 LUCA. Tânia Regina de. “A Grande Imprensa na Primeira Metade do Século XX”. In: MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tania Regina de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 156. 37 RIZZINI, Carlos. O Jornalismo Antes da Tipografia. São Paulo: Cia. Imprensa Nacional, 1968. 35 23 evidenciam a existência de jornais na colônia, circulando na clandestinidade. Assim, há registro da existência de prelos em Pernambuco durante a ocupação holandesa em 1746, de um impressor em Recife no ano de 1706. De igual forma, não há qualquer dúvida acerca da existência de uma tipografia no Rio de Janeiro que, pertencente a Isidoro Fonseca, chegou a publicar quatro pequenas obras.38 Porém o caráter tardio da imprensa no Brasil tem sido frequentemente justificado pela severa vigilância metropolitana, mas em si mesma esse controle não foi suficiente para justificar o atraso da atividade impressa no Brasil por mais de três séculos. Segundo Ana Luiza Martins39, outros fatores foram determinantes e contribuíram de forma igualmente negativa, como os altos índices de analfabetismo vigente na colônia, a economia predominantemente agroexportadora alicerçada no trabalho escravo, a falta de mão-de-obra especializada e, por fim, a inexistência de equipamentos industriais. Nelson Werneck Sodré40, o mais importante historiador da imprensa no Brasil – e tendo dedicado décadas a pesquisa e analise de diversos periódicos brasileiros – afirma que se a imprensa em Portugal, que surgiu antes do descobrimento, era fortemente vigiada, tal controle foi repassado à colônia, embora com mais vigor pelo fato de Portugal pensar o Brasil apenas como uma colônia de exploração agrícola, onde o incentivo a atividades relacionas a leitura poderia colocar em perigo o imperativo da dominação portuguesa na América. Daí a justificativa para não apenas se controlar, mas para se proibir toda e qualquer atividade relacionada à leitura. De acordo com o mesmo autor, nas colônias inglesas e espanholas o surgimento da imprensa e da universidade ocorreu simultaneamente à conquista, já no século XVI, embora o avanço na área espanhola tenha sido um mecanismo sutil empregado na destruição das fortes culturas dos índios meso-americanos, marcadas pela grande complexidade e diversidade. Adotando visões já ultrapassadas com relação aos grupos indígenas brasileiros, Sodré argumenta que “essa necessidade não ocorreu no Brasil, que não conheceu, por isso, nem a universidade nem a imprensa, no período colonial”. 41 38 MOREL, Marco. “Os Primeiros Passos da Palavra Impressa”. In: MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tania Regina de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 24. 39 MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tania Regina de. Imprensa e Cidade. São Paulo: Editora Unesp, 2006, p. 16-18. 40 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 41 Idem, p. 11. 24 Portanto, as inúmeras proibições e limitações não significam que o Brasil Colonial tenha de todo desconhecido o impresso e a imprensa. Juarez Bahia esclarece, todavia, a dimensão ilícita dessa presença, ao argumentar que “o bloqueio cultural, que decorre da severa vigilância política e econômica imposta por Portugal, só e burlado na colônia pela insubmissão oral e escrita.”42 Dada a inexistência de equipamentos industriais, de mão-obra especializada e a extrema complexidade para adquiri-los, os primeiros jornais produzidos na Colônia tinham traços muito simples. Em regra eram manuscritos, artesanalmente confeccionados e difundidos em ambientes restritos e de vida efêmera. Todavia, apesar das condições objetivas contrárias, o autor faz um contraponto, mencionando que “nem por isso os jornais falados e manuscritos dos anos seiscentos deixam de difundir o sentimento nativista interpretados pelos poetas do povo”.43 Talvez por isso Marco Morel afirme que o surgimento propriamente dito da imprensa em 1808, não se dá “numa espécie de vazio cultural, mas em meio a uma densa trama de relações e formas de transmissão já existentes, na qual a imprensa se inseria”.44 E o mesmo autor, embasado no inventário produzido em 1969 por Rubens Borba de Moraes, faz questão de lembrar que: Antes mesmo de 1808, foi possível inventariar mais de trezentas obras de autores nascidos no território brasileiro, incluindo não só livros, mas impressos anônimos, relatando festejos e acontecimentos, antologias e índices, além de alguns manuscritos inéditos de autores clássicos. Eram textos variados: desde narrativas históricas até poesias, passando pela agricultura, medicina, botânica, discursos, sermões, relatos de viagens e naufrágios, literatura em prosa, gramática e até polêmicas.45 Todavia, explica Ana Luiza Martins, mesmo com a liberdade de difundir a palavra impressa em 1808, o ambiente brasileiro ainda estava muito longe do modelo ideal para o desenvolvimento da atividade impressa no modelo mercantil, seja pela falta de investimentos em educação, o que limitava o público leitor; seja pela dificuldade de aquisição de papel, além da falta de mão-de-obra especializada46. Essa situação levou o primeiro jornal impresso voltado para o Brasil, o Correio Brasiliense – periódico que 42 BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica. Op. cit., p. 24. BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica. Op. cit., p. 33 44 MOREL, Marco. “Os Primeiros Passos da Palavra Impressa”. Op. cit., p. 25. 45 Ibidem, p. 24. 46 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 47. 43 25 denunciava a má administração no Brasil como a política portuguesa externa que concedia monopólios aos ingleses e portugueses –, ser produzido em Londres, e não no Brasil, sob a iniciativa e organização de Hipólito da Costa. Também as primeiras revistas voltadas para o Brasil vinham do exterior, principalmente as revistas francesas no período Imperial, sendo uma das mais requisitadas a Reuve des Deux Mondes, consumida principalmente por homens de letras, tendo se transformado “em ícone do saber elitizado, conferindo ao seu possuidor e/ou assinante a aura de leitor atualizado”.47 Posteriormente os jornais e revistas que foram surgindo a partir da legalização da imprensa no Brasil continuavam apresentando essas características materiais bastante simples, e coube, principalmente, aos jornais, o espaço onde eram travados os embates políticos que eram tão rotineiros numa Nação em processo de formação. Juarez Bahia classifica didaticamente o que seria o primeiro período grande da imprensa brasileira (entre 1808 e 1880) da seguinte forma: É um período que a influência de um jornal não é medida pelo seu tamanho [...] o que se imprime é o que vale [...] [trata-se de] um jornalismo feito por panfletários, por autores que polemizam, divergem desafiam, conciliam, lutam, instigam, ensinam, destroem, constroem. Eles sobrevivem por muitas gerações de jornalistas apenas, alguns como estadistas. Seus efêmeros os jornais também. 48 Essa fase inicial da imprensa no Brasil reflete as divergências políticas dos diversos grupos da política brasileira em que vários projetos políticos disputavam espaço e legitimação, daí a característica da luta política, da panfletagem, da artilharia verbal. Essa é a descrição de Juarez Bahia desse cenário tenso, que inclui atentados, prisões, empastelamentos, deportações e perseguições. Apesar do cenário agitado no primeiro período, Sodré frisa que aquele foi o momento em que a imprensa brasileira esteve muito perto dos acontecimentos políticos, mesmo tendo posições confusas, oscilando entre a direita e a esquerda política. Os jornais se constituíam em arenas onde preferencialmente ocorriam as disputa entre os grupos políticos, características essas que acabaram por designar essa imprensa de opinião. 47 48 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 75. BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica. Op. cit., p. 84. 26 Veículos por excelência da difusão de conteúdos políticos e sociais, onde idéias e valores eram defendidas de forma aguerrida. Mais que simplesmente espaços onde se buscavam defender causas específicas, a imprensa trazia a capacidade de conquistar os leitores diretos e indiretos (no caso freqüente da leitura pública), transformando-os também em adeptos das novas causas. 49 Se durante o período do Império, os jornais continuavam a demandar recursos altos para bancar as despesas como a impressão e o pagamento da mão-de-obra especializada que requeria (gravadores, tipógrafos e depois linotipistas, etc.), nem por isso sua presença se mostrou acanhada como antes. Na verdade, a segunda metade do século XIX no Brasil marca o surgimento de uma gama extremamente ampla e diversificada de jornais, todavia improvisados e de vida efêmera, chamados – não sem certa dose de preconceito – de pasquins, periódicos que tinham como uma das características a linguagem agressiva contra seus desafetos, além do anonimato com que frequentemente se encobriam seus idealizadores e redatores.50 Nessa imprensa denominada de opinião os jornais são instrumentos utilizados por indivíduos que procuram defender suas idéias, confrontar opiniões, contestar poderes, e, por vezes, difamar desafetos. O leitor era percebido como possível defensor de uma causa, constituindo-se uma espécie de jornalismo doutrinário em que “a bandeira do jornal constituía-se num símbolo indicativo de posição política – rebeldia, neutralidade ou apoio as forças dominantes”.51 Acompanhar o surgimento e o desenvolvimento da imprensa no Brasil é uma possibilidade de perceber as mudanças da sociedade brasileira, e esse movimento é de mão-dupla, ou seja, a imprensa não é mera registradora de fatos, instrumentos de opinião, ela influenciou na construção da história do Brasil e também foi influenciada por este contexto. Na virada do século XIX para o século XX acontecimentos importantes no direcionamento da política brasileira, como a abolição da escravidão e o golpe da Proclamação da República, geraram uma série de mudanças no âmbito sócio-cultural, 49 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Op. cit., p. 43-60. Em seu significado matricial, o termo Pasquim era empregado como sinônimo de sátira (em geral apócrifa) afixada em local público; mas sua acepção mais geral informa também um jornal ou panfleto de cunho difamador. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Op. cit., p. 83. 51 LUCA. Tânia Regina de. “A Grande Imprensa na Primeira Metade do Século XX”. Op. cit., p. 150. 50 27 apesar dessa sociedade nova ainda preservar fortes características do período precedente. A mudança do regime Monárquico para o Republicano, defendido em grande parte dos jornais como um regime moderno e eficaz para o enfrentamento dos múltiplos dilemas que se interpunham ao pleno desenvolvimento nacional52, não significou uma ruptura radical com os laços culturais do passado e nem amenizou os problemas sociais herdados desde o período colonial. Ao longo do período denominado pela historiografia brasileira como República Velha, o Brasil passou por transformações sociais e econômicas importantes, que resultaram numa expansão demográfica e numa urbanização sem precedentes. A explosão demográfica já vinha se materializando no país desde meados do século XIX e aumentou consideravelmente com a imigração européia, tendo esta se concentrado principalmente nas regiões Sudeste e Sul, fazendo ainda com que porcentagem significativa dessa população se direcionasse para os centros urbanos.53 O crescimento dos grandes centros urbanos refletia maior diversidade econômica, o que levou o desenvolvimento de uma infra-estrutura ligada aos transportes, construção de portos, estradas e ao comércio, como a criação de bancos incentivo ao consumo que eram tão defendidos nos meios de comunicação. Tais mudanças refletiam o realinhamento brasileiro numa divisão internacional do trabalho que lhe impunha, prioritariamente, o papel de fornecedor de matéria-prima e produtos agrícolas para um mercado e uma indústria mundial em expansão, enquanto reforçava também sua dimensão de mercado consumidor de produtos industrializados.54 No âmbito econômico o Brasil estabeleceu maior sintonia com as economias internacionais, reforçando sua situação de dependência, principalmente pelo forte endividamento que se realizava via contratação de empréstimos a juros altos e a concessão de inúmeros serviços urbanos à firmas estrangeiras. Houve ainda o incentivo a maiores 52 Como atestam os estudos de Maria de Lourdes Mônaco Janotti (Os Subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986) e Suely Robles Reis de Queiróz (Os Radicais da República: Jacobinismo, ideologia e ação - 1893-1897. São Paulo: Brasiliense, 1986), a imprensa foi um dos principais, senão o principal palco das disputas ideológicas entre defensores e opositores do novo regime que se institucionalizava em 1889. No Amazonas, jornais como o Quo Vadis? (monarquista) e a Federação (republicano) exerceram nos anos iniciais do século XX um espaço importante para essas confrontações, conforme demonstra pesquisa recente e inicial de: GOMES, Ivana Luisa. Quo Vadis?: A Trajetória de um Jornal de Oposição no Amazonas. Manaus: UFAM, mimeo. (Monografia de Iniciação Científica), 2009. 53 PERRONE, Maria Tereza Schorer. “Imigração”. In: FAUSTO, Boris (Org). História Geral da Civilização Brasileira, vol. 9. 3ª ed. São Paulo: Difel, 1985, p. 93-133. 54 SINGER, Paul. “O Brasil no Contexto do Capitalismo Internacional, 1889-1930”. In: FAUSTO, Boris (Org). História Geral da Civilização Brasileira, vol. 8. 3ª ed. São Paulo: Difel, 1985, p. 345-390. 28 investimentos nas atividades industriais e uma maior emissão de papel moeda que, apesar da trágica política de encilhamento, contribuiu para estimular a adoção de novos hábitos ligados ao consumo. Foi basicamente nesse contexto de transformações que os jornais vão deixando para trás a simplicidade que marcaram suas primeiras experiências no Brasil, passando a ser substituídos, de acordo com Tânia Regina de Luca, (...) por processos de caráter industrial marcados pela especialização e divisão do trabalho no interior da oficina gráfica e a conseqüente diminuição das habilidades manuais. Máquinas modernas composição mecânica, clichês em zinco, rotativas cada vez mais velozes, em fim, um equipamento que exigia considerável inversão de capital e alterava o processo de compor e reproduzir textos e imagens passou a ser utilizado pelos diários de algumas das principais capitais brasileiras. 55 Diante dessas mudanças, ocorridas na virada do século XIX para o século XX, nas mais importantes capitais brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo, foi dado início ao processo de formação de uma imprensa de caráter industrial, controlada por pequeno número de empreendedores. A sustentação de um periódico não podia mais se restringir a paixão ou boa vontade de um grupo que, na grande maioria das vezes, tinha que administrar recursos cada vez mais escassos e limitados, dificultando o confronto com o mais dinâmico e opulento jornal-empresa.56 Outro elemento importante que contribuiu para que a imprensa, em especial nos dois grandes centros urbanos brasileiros (Rio de Janeiro e São Paulo), incorporasse as inovações tecnológicas ligadas ao campo da informação foi o fato de a própria grande imprensa57 se posicionar como uma espécie de arauto do discurso modernizador e dos ideais positivistas de ordem e progresso, que a República reforçaria. 55 LUCA. Tânia Regina de. “A Grande Imprensa na Primeira Metade do Século XX”. Op. cit., p. 149. O termo é empregado por Nelson Werneck Sodré, para quem “A passagem do século, assim, assinala, no Brasil, a transição da pequena à grande imprensa. Os pequenos jornais, de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem lugar às empresas jornalísticas, com estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário ao exercício de sua função”. Apud. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 63. 57 Tânia de Luca faz questão de lembrar que a expressão grande imprensa “é bastante vaga e imprecisa, além de adquirir significados peculiares em função do momento histórico em que é empregada. De forma genérica designa conjunto de títulos que, num dado contexto, compõe a porção mais significativa dos periódicos em termos de circulação, perenidade, aparelhamento técnico, organizacional e financeiro”. LUCA. Tânia Regina de. “A Grande Imprensa na Primeira Metade do Século XX”. Op. cit., p. 149. 56 29 É neste momento, segundo Ana Luiza Martins58, que se ergueram as bases fundamentais para edificação da imprensa como grande empresa industrial, mantendo características bem diferentes da imprensa vigente no século XIX. Martins acentua a utilização do telégrafo e do telefone, um maior investimento na montagem das instalações na redação e no processo de reprografia (processo gráfico), além do já mencionado maior incentivo dos governos (federal e estaduais) na alfabetização. Contava também a exigência dos grandes empresários da comunicação a concessão de incentivos fiscais para aquisição ou produção do papel, a afiliação com as emergentes agências internacionais, capazes de acelerar a transmissão de notícias em um mundo que se transformava cada vez menor e interligado. Essa imprensa de feição industrial mudou a percepção do leitor (agora pensado como um consumidor de notícias) cada vez mais ávido pelas informações e notícias do momento. Essa é, inclusive, uma característica observada tanto nos lugares onde o desenvolvimento da imprensa teve uma trajetória mais longa, quanto naqueles em que a imprensa era uma atividade mais recente, como no caso do Brasil. Tantas mudanças implicaram diretamente a necessidade de injetar grandes recursos na atividade periódica, que por sua vez foi abandonando gradativamente aquele discurso de tonalidade política, substituindo-o por discursos mais sutis, pois a prioridade dos jornais que tem características de empresa passou a ser manter-se no mercado, o que dependia da conquista da assiduidade do leitor/consumidor. Tal assiduidade, refletida na compra de exemplares avulsos e nas assinaturas, forçava os proprietários dos jornais à contratação de colaboradores importantes e à conquista de um bom número de anunciantes, fundamentais para sustentação do empreendimento. Mas tais mudanças não significaram, de acordo com Tânia Regina de Luca, a eliminação pura e simples das pequenas tipografias. Como exemplo dessa coexistência, Tânia de Luca menciona a pesquisa de Heloísa Cruz, que demonstra a força e a diversidade da pequena imprensa que continua a conviver com órgãos que incorporavam as últimas novidades no campo da informação. 59 Segundo Maria de Lourdes Eleutério, essa conjuntura favorável vai tornar possível o ensaio de comunicação de massa no Brasil, principalmente pelo uso de ilustração 58 59 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 166. LUCA. Tânia Regina de. “A Grande Imprensa na Primeira Metade do Século XX”. Op. cit., p. 151. 30 diversificada, como a charge, a caricatura e a fotografia, propiciando uma leitura visual mais atraente e menos densa. 60 Diante desse quadro, os pequenos jornais, que tecnicamente apresentavam traços modestos e que não conseguiram se enquadrar nas inovações tecnológicas, tiveram sua existência gravemente comprometida por não conseguirem atender as demandas de um público leitor cada vez mais exigente. Esse é um dos motivos justifica a redução do número dos pequenos jornais nos grandes centros. Se houve redução, de modo algum pode se falar em extinção, pois comprovadamente ainda se prolonga a existência dessas pequenas folhas, porém de forma cada vez mais rara. Um exemplo típico dessa trajetória é o de Manaus, como será abordado no próximo capítulo, embora este processo ocorra com uma defasagem temporal de uma ou duas décadas, já que na virada para o século XX a pequena imprensa era claramente dominante, contrariando uma tendência diferenciada predominante nos dois grandes centros urbanos do país. 61 Quanto mais os jornais e revistas conseguiam incorporar essas novidades trazidas pela imprensa “moderna”, maiores eram o prestígio e a procura por parte dos leitores e mais disputada a carreira jornalística. Essa mudança não se deu apenas no campo material, pois como afirma Tânia Regina de Luca, essa imprensa se coloca como prestadora de serviço e sua missão fundamental é informar o leitor, estabelecendo uma diferenciação do que vem a ser um texto informacional ou propriamente jornalístico, supostamente neutro, frente ao texto de opinião, subjetivo e que assumia posturas ideológicas e valores. Ainda de acordo com a autora: A mudança fundamental, contudo, expressou-se no declínio da doutrinação em prol da informação, aspecto facilitado pelas agências internacionais, cuja presença no Brasil teve início nas primeiras décadas do século passado – Havas, Reuters, Associed Press e United Press Associantion – e pelas redes de sucursais dos principais diários no país e exterior. Consagrou-se a idéia de que o jornal cumpria a nobre função de informar o leitor o que se passou, com rigoroso respeito à “verdade dos fatos”. Mudança sem volta... 62 60 EULETÉRIO. Maria de Lourdes. Imprensa a Serviço do Progresso. p. 83. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 59 e seguintes. 62 LUCA. Tânia Regina de. “A Grande Imprensa na Primeira Metade do Século XX”. Op. cit., p. 152-153. 61 31 No mesmo caminho vai Ana Luiza Martins, que vê no bojo dessas transformações um início e/ou reforço da segmentação entre os jornais e as revistas. Se ambos adotam a característica de “meios de informação”, os jornais passam a abrigar “as notícias de teor político e de divulgação imediata”, enquanto as revistas passam a cuidar de “temas variados, de informação mais elaborada, anunciando as últimas descobertas sobre as matérias abordadas”. 63 Foi neste ambiente que proliferaram as revistas de variedades, configurando um grande sucesso em todos os lugares onde surgiu. No Brasil, a revista Kosmos, dirigida por Mário Behring entre 1904 e 1909, tornou-se uma das primeiras publicações do gênero e representou uma espécie de ícone das revistas consideradas modernas no limiar do século XX, com sofisticadas e características matérias que incluíam os mais competentes caricaturistas da época, como J. Carlos, Raul Calixto, Raul Perdeneiras, além da impressão de fotografias de profissionais como Marc Ferrez e Guilherme Geensly. No campo editorial, trazia a colaboração de renomados homens de letras da época, como Olavo Bilac, João do Rio (Paulo Barreto) e Capistrano de Abreu, dentre outros.64 Ao contrário das primeiras revistas produzidas e/ou voltadas para o Brasil que eram denominadas revistas doutrinárias e monotemáticas, possuindo um campo de circulação bastante restrito, as revistas de variedades possuíam como características marcantes a heterogeneidade do seu público alvo, o que possibilitou, posteriormente, uma especialização dos conteúdos, resultando o surgimento de revistas voltadas para o público infantil, feminino, estrangeiro, de caráter religioso ou esportivo. Não há dúvida, todavia, que foram revistas mais conhecidas como ilustradas e de variedades, as que fizeram maior sucesso na primeira metade do século XX no Brasil. Quando se procura traçar a gênese do gênero revista, que surge a partir do jornal, é muito difícil fazer a distinção entre eles, pois as primeiras revistas que entraram em circulação, datando do século XVII, tinham formato muito parecido com o do jornal. Ao 63 64 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 39 ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. “Imprensa a Serviço do Progresso”. In: MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tania Regina de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 90. 32 que parece, o elemento que as distinguia, no período em que surgiram, foi, na maioria das vezes, não a forma, mas sim o conteúdo. 65 Enquanto os jornais tiveram como características a valorização de notícias de teor sócio-político direcionadas ao público geral, as primeiras revistas foram publicações especializadas monotemáticas que se dirigiram a um público restrito e especializado, passando a ser denominadas como revistas técnicas e científicas. Registre-se também que enquanto os jornais caminhavam para publicações diárias, as revistas traziam uma publicação bem mais espaçada, sendo semanais, mensais, semestrais e até anuais. O primeiro impresso voltado para o Brasil, O Correio Brasiliense, gerou um série de dúvidas e ainda hoje é alvo de polêmica quanto a sua verdadeira classificação, isso se levarmos em consideração seu formato e conteúdo – uma “brochura de mais de cem páginas, geralmente 140, de capa azul escuro, mensal, doutrinário muito mais do que informativo, preço muito mais alto” 66 – além do fato de estar direcionado a um pequeno número de leitores, possui características que levaram Ana Luiza Martins a indagar se “nosso primeiro jornal seria uma revista?”. 67 Essa mesma impressão já havia sido registrada por Nelson Werneck Sodré em sua clássica História da Imprensa no Brasil, quando ele afirma: “Em tudo o Correio Brasiliense se aproximava do tipo de periodismo que hoje conhecemos como revista doutrinária, e não jornal”. 68 Segundo Ana Luiza Martins, ao analisar o aparecimento e a difusão de revistas em São Paulo no fim do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, o termo revista surgiu em 1705, que deriva da palavra inglesa review, e que caracterizava revista como uma publicação mais ou menos especializada, geralmente mensal, que continham ensaios, contos e etc. Ainda conforme esta autora foi na cidade de Salvador, em janeiro de 1812, que foi colocada à venda a primeira revista no Brasil, As Variedades ou Ensaios de Literatura, tratando-se “de um março mal encadernado de folhas de papel, trinta páginas 65 BUITONI, Dulcília. Imprensa Feminina. São Paulo: Ática, 1986, p. 17. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Op. cit., p. 22. 67 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit. p.47. 68 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Op. cit., p. 22. 66 33 monotonamente recobertas de texto, sem uma ilustração que fosse”. 69 Embora o termo revista já existisse desde o início do século XVIII, a nossa primeira publicação do gênero não utiliza o termo próprio (revista) e sim o de folheto. No Brasil o termo revista passou a ser adotado com mais freqüência somente a partir de 1828. Como foi citado, mesmo que o termo revista surgisse pela primeira vez na Inglaterra, no início do século XVIII, “as primeiras edições periódicas configuradas na forma de jornal retrocedem no tempo, circulando episodicamente desde o século XVII”.70 Segundo a jornalista Marília Scalzo a primeira revista de que se tem notícia foi publicada na Alemanha no ano de 1663 e tinha formato de livro, só podendo ser considerada revista por que trazia vários artigos de diversos autores e tratava sobre um mesmo assunto, estando voltada para um público especifico. O mesmo ocorreu na Itália, França e Inglaterra daquele período. Para a mesma autora, o modelo inicial do que viria a ser uma revista de variedades surge na França em 1672. Le Mercure Galant é, de fato, um periódico contendo notícias curtas, entretenimento e literatura. O modelo fez tanto sucesso que logo foi copiado pelos ingleses, nascendo em Londres a The Gentleman’s Magazine, periódico que massificou as publicações denominadas revistas. A partir dessa publicação é que o termo Magazine passa lentamente a ser utilizado como sinônimo de revista. 71 Por sua vez, o termo magazine surge inspirado nas lojas que vendiam uma pauta de produtos bastante diversificada. O termo serviu para designar genericamente em francês e em inglês as publicações periódicas que mesclavam vários tópicos, como política, literatura e entretenimento. Mesmo assim era muito difícil contrapor materialmente a revista com o jornal, pois ambos ainda tinham formatos muito parecidos. O quesito que os distinguia na maioria das vezes era, como mencionamos, o conteúdo. Nesses termos Dulcília Buitoni afirma: Considerava-se revista uma publicação que mesmo tendo aparência de jornal, apresentasse maior variedade de conteúdo, principalmente ficção, poesia, relatos de viagem e outros materiais de entretenimento. Nos jornais, predominavam os textos de opinião, com discussão de idéias, polêmicas, cartas de colaboradores; no fim do século começaram a aumentar as notícias.72 69 KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000, p.16. MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 38. 71 SCALZO, Marília. Jornalismo de Revista. São Paulo: Contexto, 2004, p.12. 72 BUITONI, Dulcília. Imprensa Feminina. Op. cit., p. 17 70 34 Segundo Ana Luiza Martins, na Europa, ao longo de todo o século XIX, a revista tornou-se moda e ditou moda, oportunizando uma conjuntura favorável trazida pelo que a autora denomina de tripé indispensável para propagação da atividade impressa em massa. Esse tripé é compreendido pelos avanços técnicos das gráficas, pelo aumento da população leitora e pelo baixo custo do papel. É essa conjuntura que justifica o aumento do consumo de revistas e também a renovação das propostas editoriais: Definitivamente, o mérito de condensar numa só publicação, uma gama diferenciada de informações, sinalizadoras de tantas inovações propostas pelos novos tempos. Intermediando o jornal e o livro, as revistas prestaram-se a ampliar o público leitor, aproximando o consumidor do noticiário ligeiro e seriado, diversificando-lhe a informação. E mais – seu custo baixo, configuração leve, de poucas folhas, leitura entremeada de imagens, distinguia-a do livro, objeto sacralizado, de aquisição dispendiosa e ao alcance de poucos. 73 O modelo monotemático que caracterizaram as primeiras revistas foi dividindo o espaço com revistas voltadas para os mais diversos públicos, sendo que as mais populares foram exatamente aquelas que aliavam informações e entretenimento. Com o advento da ilustração as revistas passam a ter o raio do seu alcance ampliado, dessa forma alcançando o público não alfabetizado e depois, pelo uso acentuado da fotografia proporcionaram uma linguagem visual mais sofisticada e atrativa, fórmula copiada em todos os países onde o gênero apareceu. Dessa forma nasceram as revistas de variedades, um formato editorial “que inspirou o uso e abuso da ilustração, com ênfase nas notícias de teor sociocultural”. 74 Com surgimento da revista ilustrada e depois a de variedades é que as revistas foram se distanciando mais claramente do modelo adotado pelo jornal, e isso tanto no conteúdo quanto no formato. As revistas começaram a criar um modelo próprio, de fácil identificação. Como observou Buitoni, “com o progresso da indústria gráfica, as revistas começaram a aprimorar seu aspecto visual. Vieram as gravuras, as ilustrações, e finalmente a fotografia. Lazer e luxo foram-se associando à idéia de revista no século XX”.75 Na Europa e Estados Unidos o aumento significativo das atividades capitalistas e o conseqüente estímulo ao consumo de massas possibilitou o desenvolvimento da propaganda, que passou a explorar o espaço da revista em dimensões bem mais amplas que 73 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 40, Ibidem, p. 67. 75 BUITONI, Dulcília. Imprensa Feminina. Op. cit., p. 17. 74 35 no jornal. Os anunciantes percebiam nessas publicações a intensificação do consumo de seus produtos e passavam a injetar volumes maiores de capital nos periódicos, propiciando a sofisticação tecnológica e o aumento das tiragens. A venda dos “reclames” causou impacto direto no processo de editoração, possibilitando a diminuição nos preços dos exemplares, fator que por seu turno incentivou a ampliação da procura pelo público leitor, tornando algumas revistas verdadeiros objetos de apreciação pelo grande público, principalmente por abusarem das técnicas de ilustração e do uso da fotografia. 76 No momento em que a revista vai se desvinculando o jornal, os jornais passaram a enfocar de forma privilegiada temáticas direcionada para a política e para a informação, cedendo menos espaço à literatura, favorecendo a emergência das revistas. O interesse de escritores em atuar como colaboradores nas publicações jornalísticas sempre foi grande, mas quando o jornal passa lentamente a secundarizar os temas literários, reforçou-se em muitos escritores o interesse em criar suas próprias revistas. Literatura, moda, reclames, entretenimento, modelos normativos de educação e comportamento ocuparam espaços nessas publicações voltadas para o público em massa, passando a ser publicações multitemáticas. Dessa forma foi se consagrando paulatinamente uma diferenciação mais clara entre revistas e jornais. Ana Luiza Martins aponta outras dimensões, o conteúdo e a forma, que podem ser levadas em conta para diferenciar os dois tipos de impressos: O que os distingue com freqüência é a existência da capa na revista, acabamento que não ocorre no jornal; mais do que isso, é a formulação de seu programa de revista, divulgado no seu artigo de fundo, que esclarece o propósito e as características da publicação. [...] Insista-se que o caráter fragmentado da revista é o seu traço recorrente, imutável nas variações geográficas e temporais onde o gênero floresceu, resultando sempre em publicação datada, por isso mesmo de forte conteúdo documental.77 As revistas passaram a desenvolver estratégias de vendas incorporando as novidades tecnológicas do momento e disputando a preferência do público leitor. Para tanto, havia a necessidade de montar uma logística operacional para captar e gerenciar recursos, que iam desde a venda de assinaturas, anúncios e atrair as verbas governamentais. 76 77 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 67. Ibidem, p. 47. 36 No ano 1928 surgiu no Brasil aquela que viria a se tornar, quase que imediatamente, a revista de variedades mais importante do século XX no Brasil e América Latina e que sintetizava a consolidação do gênero. Trata-se da revista Cruzeiro, que no ano seguinte passou a ser conhecida como O Cruzeiro. 78 O Cruzeiro na década de 60 chegou a ter uma tiragem de 80 mil exemplares que eram publicados semanalmente. Na média possuía entre 50 e 60 páginas, mas nas edições especiais esse número podia chegar a 100 páginas ou mesmo mais. A difusão da revista O Cruzeiro pelo país foi facilitada pela adoção da estratégia de distribuição através dos Correios, pois apesar do país atravessar um surto de industrialização, as vias de comunicação ainda eram bastante precárias. A revista O Cruzeiro nasceu de uma criação do Grupo Diário Associados, um dos maiores conglomerados de jornais no Brasil, que no momento de apogeu totalizavam 34 jornais, 36 emissoras de rádio, 18 de televisão e uma agência de notícias, a Meridional. O conglomerado estava sob o comando do grande empresário da comunicação da época, o paraibano Assis Chateaubriand, que era formado em Direito e começou a carreira como jornalística, precocemente, aos quinze anos de idade. 79 É interessante perceber que a receita inicial que financiou esse grande empreendimento foi o empréstimo concedido pelo Banco do Brasil, intermediado pelo então ministro da fazenda, Getúlio Vargas, o que é indício forte do envolvimento bastante corriqueiro entre o empresariado da comunicação e as esferas do poder. Após a arrancada inicial, os editores da revista desenvolveram e aprimoraram técnicas publicitárias que garantiam a publicação de cifras expressivas de exemplares. Uma dessas estratégias estava na franca exploração da dimensão visual, com uso largo da fotografia. De fato, a revista impressionava o público pelas suas capas, pelas ilustrações com muitas cores, um mecanismo importante em um país que ainda possuía grande população de analfabetos. Na década de 1940, quando a revista conseguiu a tiragem de 100.000 exemplares, transferiu-se para um prédio projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, onde passou a 78 Para a construção deste breve histórico da revista, baseamo-nos em: SERPA, Leoní Teresinha Vieira. A Máscara da Modernidade: a mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945). Dissertação de Mestrado em História. Passo Fundo, RS: UFPF, 2003. 79 KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. Op. cit., p. 139. 37 ocupar nada menos que nove andares. Em 1974, momento em que a revista entrou em ruína, estava ocupando apenas três salas. No início da década de 70 a revista O Cruzeiro, embora mantendo grandes tiragens, já havia entrado numa irreversível crise financeira e seu título foi cedido a Hélio Lo Bianco como pagamento de verbas indenizatórias; os maquinários importados da Alemanha e adquiridos por mais de dois milhões de dólares, foram vendidos a preço de sucata; seu acervo completo foi vendido ao Estado de Minas, o único jornal do Grupo com condições financeiras para arrematá-lo. Uma das causas do pioneirismo da revista O Cruzeiro parece ter estado no fato dela dar maior atenção aos layouts e diagramação da capa, associando fortemente a fotografia com a notícia, o que passou a ser mais conhecido como “fotojornalismo”. Para os antigos leitores de O Cruzeiro a revista sempre era lembrada pelas suas capas e também pelas suas reportagens ricamente ilustradas. A fotorreportagem, que nasceu nas revistas ilustradas alemãs e francesas nos anos vinte e foi consolidada pela revista americana Life em 1936, passou a ser utilizada na revista O Cruzeiro já em 1936 por intermédio da dupla David Nasser e Jean Mazon, este último um fotógrafo francês e ex-funcionário do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Ainda hoje a dupla é lembrada pelas suas reportagens, algumas delas fabulosas, fictícias e polêmicas. A mais famosa dessas reportagens teve por título “Enfrentando os Xavantes” e veio à público em 1944, mas hoje se sabe que ela foi de autoria de um jornalista do jornal O Globo que havia comparecido no local a serviço do governo. Outras reportagens polêmicas foram as da simulação da morte de Jean Mazon e a que se intitulou “Barreto Sem Máscaras”, que custou a cassação de um deputado no país, Barreto Pinto, em 1946, por ter pousado para a revista de cueca. A dupla Nasser e Mazon tinha autonomia para inventar as reportagens, desde que garantisse boa vendagem e nem comprometesse politicamente nem os aliados de Assis Chateaubriand. Quanto aos desafetos, Chatô (como também era conhecido Assis Chateaubriand) não economizava na artilharia. 38 Trabalhava na redação da revista uma equipe de renomados profissionais da época, como Portinari, Di Cavalcante, Anita Mafalti, Milô Fernandes, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Manuel Bandeira e Rachel de Queiroz, além da revista manter correspondentes em todas captais brasileiras e no exterior. Da gráfica da revista O Cruzeiro saíam outras publicações de grande sucesso, voltada para os mais diversos públicos: Revista do Brasil, Cigarra, Revista Infantil, Pererê, O Guri. A revista O Cruzeiro reinou soberana como principal revista de variedades até 1950 quando passou a disputar a preferência do público leitor com a recém-lançada Manchete, de Adolpho Bloch. A revista O Cruzeiro deixou de ser publicada em 1975 e reapareceu em 1977, mas deixou de circular definitivamente em 1983, dentre outras coisas, por não conseguiu resistir ao avanço da televisão, a qual foi introduzida pelo próprio Assis Chateaubriand em 1950 no Brasil. 80 A revista O Cruzeiro representa a consagração do gênero revista no cenário nacional e a consolidação da imprensa industrial entre as décadas de 40 e 50 do século passado. 81 Nas primeiras décadas do século XX as inúmeras revistas de variedades que proliferaram no Brasil não tinham uma estrutura econômica sólida; eram, ao contrário, publicações que administravam parcos recursos e que, segundo Ilka Stern Cohen, nem por isso deixaram de forjar um discurso sobre o seu tempo, projetando simultaneamente um ideal de sociedade onde se privilegiava a temática do viver urbano. Ainda de acordo com Cohen, elas “ultrapassavam o papel de vitrine da época, constituindo-se em veículo privilegiado de imposição de um modelo social”. 82 Sendo assim, mas que empreendimentos comerciais, as revistas de variedades representavam um modelo ideal de sociedade em transformação. Esse modelo nem sempre correspondia ao cotidiano da maioria da população brasileira que, nestes projetos de modernização, nem sempre ocupava grande espaço. Como lembra Ana Luiza Martins: 80 KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. Op. cit., p. 140. BARBOSA, Marialva. “O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da imprensa brasileira”. Rio de Janeiro: Ciberlegenda, nº 7, 2002. 82 COHEN, Ilka Stern. “Diversificação e segmentação dos Impressos’. In: MARTINS, Ana Luiza e LUCA, Tania Regina de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 117. 81 39 Insista-se que na virada do século, quando o jornalismo transformou-se em grande empresa, as publicações periódicas foram criadas para ser vendidas e gerar lucro. Nesse propósito, veiculavam o que era rentável no momento, procurando “suprir a lacuna” do mercado e atender a expectativas e interesses de grupos, segmentando públicos, conformando-os aos modelos em voga; na maioria das vezes, a serviço da reprodução do sistema. Em outras palavras, desde então as revistas em geral matizavam a realidade, veiculando imagens conciliadoras de diferenças atenuando contradições, destilando padrões de comportamento, conformando o público leitor às demandas convenientes à maior circulação e ao consumo do impresso. Ou seja: expressavam o comprometimento apriorístico com aquilo que o leitor queria ler e ouvir.83 Apesar das revistas de variedades defenderem modelos de uma sociedade ideal em que o cenário maior era a cidade, espaço por excelência onde se poderia viver segundo os padrões da época considerados modernos e civilizados, essas revistas possibilitam ao historiador o acesso a uma documentação riquíssima (imagens, textos, reclames) que pode ser explorada dentro das inúmeras abordagens históricas, levando-se em consideração o contexto, os sujeitos e capitais envolvidos na sua produção e difusão.84 3. AS PRIMEIRAS REVISTAS EM M ANAUS Assim como ocorreu em diversos contextos onde o gênero revista surgiu, as primeiras revistas que circularam em Manaus, também estavam direcionadas a um público restrito e suas leituras serviram como suporte na formação profissional de certas categorias que vão se consolidando no século XIX. Ao que tudo indica, a primeira revista a surgir no Amazonas foi a Revista do Amazonas, circulando de 5 de abril a 15 de setembro de 1876. De acordo com Carlos Roque, ela desapareceu já em seu sexto número.85 Lamentavelmente não conseguimos localizá-la nos arquivos do Estado e, por esta razão quase nada sabemos dela. Já nos últimos anos do século XIX, surgiram empreendimentos de maior expressão, como a Revista Vellosia, que trazia contribuições científicas assinadas por intelectuais e cientistas que animaram o efêmero Museu Botânico do Amazonas, entre 83 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 22. MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 23. 85 ROCQUE, Carlos. Grande Enciclopédia da Amazônia. Vol. 5. Belém, Editora Amazônia, 1967, p. 1466. 84 40 os anos de 1885 e 1888, dentre Barbosa Rodrigues, idealizador e primeiro diretor do Museu, além de organizador da revista.86 Na recente província do Amazonas as práticas de leitura foram se disseminando, em especial quando Manaus foi sofrendo modificações estruturais provocadas pelo crescimento da economia ligada ao extrativismo da borracha87. Neste ambiente renovado, as publicações técnico-científicas foram dividindo espaço com outras revistas e impressos, denunciando a presença de diversas propostas editoriais, o que em si já demonstra uma igual e correlata diversificação do público leitor na cidade. Tais ocorrências não apenas refletiam, como se menciona comumente as mudanças na sua estrutura socioeconômica da região – que teve seu apogeu nas primeiras décadas do século XX –, mas também a forte assimilação de valores e ideais de modernidade e civilização cultuados por uma pequena e cosmopolita “elite” local, desejosa de associar-se aos padrões de refinamento estéticos que marcaram a chamada Belle Époque.88 De acordo com Ana Luiza Martins, mas do que suporte na formação profissional, as publicações monotemáticas, podiam “ser percebidas como lugar de afirmação coletiva, não comportando a motivação mercantil que posteriormente marcou os empreendimentos do gênero”. 89 Precisar, a partir das próprias revistas, uma média de quantos números estes primeiros empreendimentos dedicados a um público leitor especializado conseguiram manter em circulação é uma tarefa extremamente difícil, em especial pelo fato dos números conservados nos arquivos públicos ou privados locais serem ínfimos, sem dar pistas seguras de sua continuidade, como no caso da Revista Médica do Amazonas, de 1899 e da Revista de Educação, de1931 (Imagens nº 1 e 2). Delas conseguimos apenas um exemplar, insuficientes, portanto, para que as exploremos numa dimensão mais ampla e que não nos dão conta de informar questões relevantes como de onde vieram os recursos necessários à suas edições, onde foram produzidas, quais foram os obstáculos que encontraram, qual sua tiragem, qual forma de receptividade do público, etc. Portanto, 86 A publicação foi recentemente reeditada pela Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas /Biblioteca Pública Estadual na forma digital (CD-ROM), o que facilitou seu acesso pelo público. 87 Região marcada pela forte presença indígena, na Amazônia a introdução de uma cultura letrada foi lentamente se associando (mais que suplantando) à forte tradição de oralidade que marca suas sociedades. Cf.: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 25-56; FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel: a História das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004. 88 DAOU, Ana Maria. A Belle Époque Amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 89 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 59. 41 ficam sem respostas uma série de indagações que são indispensáveis para compreensão desses periódicos e de sua relação com a sociedade do seu tempo. 90 Esse é, entretanto, um problema que acontece em menor monta com outras segmentações do gênero revista, principalmente as chamadas de variedades, que são, na verdade, o nosso objeto de reflexão. Imagens nº 1 e 2 Fonte: Revista Médica do Amazonas e Revista de Educação. Manaus, julho de 1899 e março/maio de 1931. Acervo Particular de Geraldo Pinheiro.91 Pode-se inferir, todavia, que na grande maioria das vezes essas revistas conseguiam manter a publicação graças ao apoio financeiro das categorias as quais elas se direcionavam e do patrocínio estatal, frequentemente anunciado e/ou percebido pela impressão em agências públicas, como a Imprensa Oficial. Este parece ser o caso da 90 Poderíamos ainda incluir no rol dessas edições voltadas para um público mais específico um conjunto de periódicos, como a Revista da Associação Comercial do Amazonas, cuja fase inicial projetou-se de 1908 a 1918; A Revista Arquivos, editada por Bento Aranha em 1908-1909 e voltada para a divulgação do Arquivo Público Estadual através de peças documentais e estudos históricos ligeiros, além das Revistas do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (o primeiro número de 1917) e da Academia Amazonense de Letras (1918), ambas veiculadas com bastantes interrupções. Sobre a revista da ACA, cabe registrar o recente estudo de: AVELINO, Alexandre Nogueira. O Patronato Amazonense e o Mundo do Trabalho: A Revista da Associação Comercial e as Representações Acerca do Trabalho no Amazonas, 1909-1919. Dissertação de Mestrado em História. Manaus: UFAM, 2008. 91 Há cópias digitais disponíveis no Laboratório de História da Imprensa no Amazonas – DH/UUFAM. 42 Revista Médica, de 1899, dirigida pelo Dr. Astrolábio Passos e que se dirigia aos médicos e farmacêuticos do Estado, já que num simples olhar sobre a capa de seu primeiro número, revela um claro apoio governamental; apoio este que, a nosso ver, parecia ser fundamental para manutenção da publicação. A Revista de Educação, de 1931, era igualmente especializada. Idealizada e produzida por uma gama de intelectuais e educadores locais, como José Chevalier (Diretor), André Araújo (Secretário), Agnello Bittencourt, Júlio Uchoa e Eunice Serrano, ela se direcionada explicitamente ao público docente das escolas públicas locais, buscando reforçar a qualidade do ensino no Estado. Nela também quase não se percebe o uso de publicidade e nem mesmo uso de ilustrações ou fotografias, o que denuncia seu caráter mais técnico e sua difusão restrita e dirigida a um público especializado. Imagem nº 3 Fonte: Revista Amazonense, nº1. Manaus, 1923. Acervo Particular de Geraldo Pinheiro.92 A Revista de Educação, contudo, não foi o primeiro empreendimento do gênero no Amazonas, uma vez que, na verdade, ela parece ter sido editada aos moldes da Revista 92 Há cópias digitais disponíveis no Laboratório de História da Imprensa no Amazonas – DH/UUFAM. 43 Amazonense (Imagem nº 3), surgida anos antes, em 1923, também ela direcionada aos professores e dedicada à informação e renovação das práticas pedagógicas. Vinha à luz com uma plêiade de intelectuais de grande destaque, como o seu diretor, Álvaro Maia, e seus redatores e colaboradores, como João Batista Faria e Souza e o jovem Arthur César Ferreira Reis, que nela publica um de seus primeiros ensaios, ainda com 17 anos. Imagem nº 4 Fonte: Revista Collegial. Manaus, agosto de 1906. Acervo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Também existiram publicações que apresentavam traços mais amadorísticos e artesanais, o que foi característica comum dos primeiros jornais no Amazonas. Esse foi o caso da Revista Collegial (Imagem nº 4), organizada por alunos secundaristas e que se utilizava largamente da improvisação em suas edições manuscritas e datilografadas, como atesta o número reproduzido e discutido na tese de Maria Luiza Ugarte Pinheiro, que dela comenta: A própria Revista Collegial, de publicação mensal, pode ser tomada como um exemplo claro da vitalidade demonstrada pelo periodismo manuscrito. Produzida por alunos secundaristas do Colégio Sant Anna Nery, e vindo à luz em um momento (1905) em que já era maior o número de tipografias e jornais impressos, ela apresentava-se ao público 44 não só manuscrita, como também artesanalmente ilustrada e pintada a cores. Chama a atenção ainda, o fato de ser veiculada com um número grande de páginas (mais de vinte) e de ter alcançado certa longevidade, tendo tirado trinta e quatro números antes de seu desaparecimento, em 3 de junho de 1907.93 Em que pese a grande importância das revistas até aqui mencionadas, nelas não nos deteremos, voltando, todavia, ao tema da emergência do gênero revista no capítulo seguinte, enquanto as revistas de variedades que proliferaram em Manaus na primeira metade do século XX, e que serão por nós melhor discutidas, ocuparão a atenção do terceiro capítulo. 93 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 69. 45 C A P ÍT U L O 2 A IMPRENSA NO AM AZO NAS E AS M U T A Ç Õ E S D O J O R N A L À R E V IS T A 46 CAPÍTULO 2 A IMPRENSA NO AMAZONAS E AS M UTAÇÕES DO JORNAL À REVISTA 1. O CONTEXTO DO SURGIMENTO DA IMPRENSA NO AMAZONAS Diferente de outras regiões do Brasil em que os primeiros jornais apareceram em concomitância com o processo de emancipação política, no Amazonas os jornais surgiram apenas na segunda metade do século XIX. Da mesma forma, se foi comum em outros contextos do país que jornais manuscritos antecedessem o impresso, o primeiro jornal do Amazonas já nasceu impresso. Tratava-se do O Cinco de Setembro que começou a circular no dia 3 de maio de 1851associado, portanto, ao processo de criação e implantação da Província do Amazonas. A partir de 7 de janeiro de 1852, O Cinco de Setembro passou a denominar-se Estrella do Amazonas. De acordo com Arthur Cezar Ferreira Reis, “sob esse nome publicava-se uma vez por semana até 1855 e de 1856 em diante, duas vezes. Viveu, aumentando de formato em1864, com feição política, desenvolvidas as seções comercial e noticiosa, até 30 de julho de 1865”. 94 O Cinco de Setembro era impresso na Oficina Tipográfica, a primeira montada no Amazonas e que havia sido trazida de Belém para Manaus por Manoel da Silva Ramos, o qual aportou na capital amazonense a convite do primeiro presidente de Província João Batista Figueiredo Tenreiro Aranha. De acordo com Genesino Braga, Silva Ramos era “Homem empreendedor e de intelecto cultivado”, trazendo para Manaus, “além da tipografia, a sua grande experiência na feitura de jornais impressos, pois que na capital da Província paraense, tipógrafo ele o era, com atividade na grande oficina tipográfica de Honório José dos Santos”. 95 Maria Luiza Ugarte Pinheiro, num dos mais recente e importante trabalho de pesquisa acerca da História da Imprensa no Amazonas96, analisou a trajetória de alguns dos primeiros jornais surgidos no Estado do Amazonas, apontando ali as razões que levaram a tardia introdução da imprensa no Estado e os fatores que contribuíram para o seu desenvolvimento. De acordo com a autora, um dos aspectos que podem justificar a tardia 94 REIS, Arthur Cézar Ferreira, História do Amazonas. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, p. 208. BRAGA, Genesino. Chão e Graça de Manaus. 3ª ed. Manaus: Editora Grafitec, 1995, p. 244. 96 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit. 95 47 circulação de jornais na Província do Amazonas tem haver com o processo histórico singular da região, notadamente pelo fato da mesma se estruturar a partir de componentes étnicos e socioculturais associados pela forte influência indígena. A autora argumenta que as formas de comunicação estavam praticamente estabelecidas pela predominância da oralidade no ambiente amazônico, já que as sociedades indígenas eram ágrafas e a própria implantação da língua portuguesa (falada e escrita) demorou a ocorrer, tornando-se preponderante apenas no alvorecer do século XX, conforme sustentam as pesquisas de José Ribamar Bessa Freire97. Daí porque a larga utilização do Nheengatu em todo o período colonial e mesmo na época da Província, ancorando toda uma tradição cultural fincada na oralidade. Os fortes limites do letramento e da instrução pública encontrados no Amazonas já foram sobejamente registrados pela historiografia. De acordo com Arthur Cézar Ferreira Reis: A instrução primária, nos dias coloniais, reduzia-se à dos missionários que ensinavam com carinho as crianças indígenas, embora não lhes falassem português e não lhes dessem mesmo noções dessa língua, contrariando, assim, as determinações reais. Uma escola de primeiras letras, criada em 1787 para os filhos dos moradores, em Barcelos, não chegou a ser instalada, pela desistência do professor nomeado. Outras em vários pontos da Capitania, ou não funcionavam ou funcionavam com muita irregularidade e sem produzir resultados animadores.98 Quanto aos aspectos econômicos, a região mostrava-se igualmente acanhada, se comparada com as principais províncias do Brasil em que as atividades comerciais eram mais diversificadas, notadamente aquelas regiões do país que ganharam destaque por terem desenvolvido sua base econômica através da exportação de produtos agrícolas como açúcar, o algodão ou o café. No Vale Amazônico a atividade comercial mostrou-se tímida tanto no período colonial quanto no período imperial, permanecendo a economia alicerçada no extrativismo vegetal e animal – as chamadas “Drogas do Sertão” –, com a predominância da mão-deobra indígena em todos os setores. Mãos e pés dos colonos, como argumentou-se no 97 98 FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel. Op. Cit. REIS, Arthur Cézar Ferreira, História do Amazonas. Op. cit., p. 202. 48 período colonial99, os índios foram largamente empregados na extração dos produtos da floresta, nos transportes pelos rios, nas obras públicas, etc. Essas atividades extrativistas também eram bastante diversificadas, mas as transações comerciais, na grande maioria das vezes, ainda ocorriam através de escambo havendo pouca circulação de moedas, o que desestimulava o investimento em outras atividades mercantis.100 De acordo com Maria Luiza Ugarte Pinheiro, o momento inicial da imprensa no Amazonas ocorreu entre 1850 e 1880; ou seja, no período entre a data da elevação do Amazonas à categoria de Província até o início da ascensão da economia de exportação da borracha. Para a autora a História da Imprensa neste período pode ser caracterizada em linhas gerais pela carência de recursos humanos e técnicos, dificuldade amplificada pela ausência de capitais necessários não apenas para a importação de instrumentos, papeis, prensas e tipos, como também vital para o pagamento da mão-de-obra especializada, o que levava grande parte dos jornais do Estado do Amazonas a apresentar características simples, muitos deles sendo artesanalmente construídos na forma de manuscritos ou, após o advento e generalização da máquina de escrever, datilografados. A grande maioria vinha à luz com tiragens muito pequenas e muitos saíam em média uma única vez, sendo o número inaugural frequentemente o único. Acerca dessas características, acrescenta Pinheiro: Seja no caso dos manuscritos, seja no caso dos jornais datilografados, foi bastante comum a tendência à reprodução de um layout típico dos jornais impressos, tendência que, por vezes, acabou ocasionando verdadeiros malabarismos gráficos por parte de seus idealizadores, tal como os que apareceram nas páginas de propaganda d’A Confederação. De qualquer forma, essa presença insistente dos jornais manuscritos ou datilografados no Amazonas parece traduzir tanto uma situação de tímido desenvolvimento socioeconômico, onde a ausência de capitais se impôs como uma barreira efetiva, uma vez que pelo menos metade da população jornalística amazonense não conseguiu superar a casa dos dez números. Enquanto menos de 10% dos jornais foram além de uma centena.101 Neste contexto, a figura do Estado emergia como sendo uma das únicas forças financeiramente capaz de arcar com os altos custos de impressão o que lhe era vital, devido 99 FREIRE, José Ribamar Bessa (Coord). A Amazônia Colonial. 4ª ed. Manaus: Metro Cúbico, 1991, p. 30. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Economia e Sociedade em Áreas Coloniais Periféricas: Guiana Francesa e Pará. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 183. 101 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p.70. 100 49 a necessidade de publicização das medidas e leis necessárias ao funcionamento das atividades burocráticas ligadas à administração pública. Ainda de acordo com Pinheiro, os entraves estruturais estavam ligados também ao baixo número populacional da região e à já mencionada tardia e difícil penetração da língua portuguesa, refletindo nos baixos índices de alfabetização e letramento. Analisando os relatórios dos presidentes de Província Pinheiro constatou que embora os governos nomeados para administrar a Província buscassem suprir estas carências com a criação de instituições públicas de ensino, havia uma dificuldade muito grande de recrutar professores, pela falta de profissionais qualificados, já que os que atuavam na Província, na grande maioria das vezes, não atendiam aos mínimos critérios estabelecidos, alguns dos quais mal sabiam ler e escrever. Segundo Arthur Reis, com a inauguração da Província “os homens que vieram lhe tomar direção receberam um encargo pesado, por que era preciso criar tudo, num meio onde se obtinham com dificuldade as coisas mais comezinhas noutras partes”102. Sendo assim, além do Estado não possuir recursos necessários para investir seriamente em educação, a falta de profissionais qualificados na recente Província não podia apresentar progressos muito significativos na expansão da cultura letrada. Quanto aos entraves ligados aos fatores técnicos propriamente ditos, registrava-se a inexistência de mão-de-obra especializada, como de mestres tipógrafos, impressores e gravadores, além da escassez de matérias-primas e de recursos financeiros para adquiri-los. Maria Luiza Ugarte Pinheiro afirma que se esses fatores não justificam por si só a tardia instalação da imprensa no Amazonas, não há dúvida de que eles acabaram contribuindo negativamente no processo de emergência da Imprensa na região. 103 Outro aspecto importante é a defasagem temporal entre o contexto do sul e sudeste do país com o ocorrido no Amazonas. Assim, enquanto nas áreas mais dinâmicas do país as pequenas folhas mais artesanais saíam de cena, dando espaço ao jornal-empresa, no Amazonas, registra a autora, as pequenas folhas prosperam e dominam o cenário: Se este processo de restrição e fechamento [das pequenas folhas] parece estar evidenciado para contextos culturais mais dinâmicos, como Rio de Janeiro e São Paulo, a emergência de pequenos jornais no Amazonas continuou. Aí, as possibilidades para experimentações dessa 102 103 REIS, Arthur Cézar Ferreira, História do Amazonas. Op. cit., p. 203. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 65. 50 nova linguagem [o jornal], bem como o nível técnico relativamente mais modesto dos processos de editoração, animaram os pequenos grupos letrados a se lançarem na arena jornalística. Embora alguns grandes jornais já tivessem aparecido neste momento, e trazendo consigo características modernas de produção, o grosso da publicação periódica amazonense ainda recaía sobre as pequenas folhas algo improvisadas. 104 Se com a elevação do Amazonas a categoria de Província, em 1850, a região praticamente continuou com a mesma fisionomia sociocultural do passado, nas décadas posteriores, por volta de 1880, a região começou dar sinais de vitalidade econômica e a sinalizar modificações mais contundentes, em decorrência da ascensão da economia de exportação da borracha, que apesar de ter se mostrado posteriormente efêmera, influenciou uma série de mudanças socioculturais na região.105 A região que vinha exportando borracha para o mercado internacional desde o início do século XIX viu a procura pelo produto aumentar consideravelmente nos dois últimos decênios do século XIX quando o produto foi adaptado as rodas de bicicleta e em seguida as rodas dos automóveis o que contribuiu de forma muito positiva o sucesso da indústria automobilística. Embora a Amazônia não fosse a única região do globo a abastecer de borracha a indústria automobilística norte-americana e européia, pela qualidade superior de seu produto foi, todavia, a região que passou a atrair maior interesse e capitais desses mercados consumidores. A necessidade do mercado capitalista em atender a demanda das indústrias automobilística internacional manteve a Amazônia na primazia do fornecimento mundial do produto até o final da primeira década do século XX, momento em que a produção asiática superou definitivamente a produção amazônica. 106 O aumento da procura pela borracha havia atraído agentes investidores para a região visando incrementar e dinamizar o processo produtivo local que consistia basicamente da extração do látex e sua transformação em pelas que facilitavam o processo de sua exportação. Durante quase todo o período da borracha, esta foi extraída utilizando- 104 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 62. Sobre este período, cf.: SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980; WEINSTEIN, Bárbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo, Hucitec, 1993. 106 WEINSTEIN, Bárbara. A Borracha na Amazônia. Op. cit., p. 241. 105 51 se praticamente os mesmos métodos tradicionais empregado pelos indígenas, que já conheciam e utilizavam o produto, fazendo com eles diversos objetos impermeáveis. A Amazônia veio a se tornar a grande produtora mundial não apenas pelo seu potencial e pela qualidade de suas reservas, mas graças ao grande contingente de trabalhadores que migraram para região fugindo das secas avassaladoras que assolaram o Nordeste no final do século XIX. A acumulação produzida pela borracha, além de possibilitar, através da migração nordestina, a extração do produto em larga escala e à custos baixos – o sistema de trabalho tirânico foi muitas vezes comparado à escravidão107 – promoveu uma outra onda migratória, esta de estrangeiros e de nacionais mais qualificados que vinham para os postos de direção das firmas estrangeiras e casas exportadoras (no caso dos primeiros) e para as chefias e funções intermediárias, além da burocracia estatal (no caso dos segundos). Tudo isso engendrou um aumento populacional do Estado que, até aquela época, contabilizava a menor taxa demográfica do território brasileiro. A intensa procura pela borracha amazônica interferiu no cotidiano das duas capitais amazônicas, Manaus e Belém, que passaram por mudanças estruturais importantes, sendo que em Manaus a intensidade dessas mudanças foi mais visível, uma vez que durante todo o período Imperial, a cidade ainda conservava uma feição acanhada que vinha, praticamente inalterada, do período colonial. Já a cidade de Belém vinha de uma configuração mais bem estruturada, já que desde o período colonial desenvolveu uma atividade comercial muito mais dinâmica, ligando-se diretamente a Lisboa, fazendo da capital paraense o mais importante centro urbano do Norte do Brasil. Apesar da extração da borracha ocorrer na densa floresta, havia a necessidade de igual interferência no meio urbano, uma vez que o capital internacional impunha a exigência do rápido escoamento do produto e as duas cidades configuravam-se basicamente como entrepostos comerciais da borracha. Assim, desenvolveram-se uma série de melhorias urbanas, que visavam a dinamização do comércio e escoamento da borracha para as indústrias estrangeiras. Em Manaus essas mudanças se intensificaram na década final do século XIX, principalmente quando o governo do Amazonas passou a ter maior controle sobre a cobrança de impostos que incidiam nas exportações e negociações de borracha, o que foi 107 CUNHA, Euclídes da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 52 conquistado com a oferta de maiores vantagens tributárias, deixando a capital paraense em franca desvantagem. 108 Maria Luiza Ugarte Pinheiro argumenta que esse cenário de expansão e prosperidade econômica da região, compreendido entre 1880 a 1920, marca uma segunda fase da Imprensa no Amazonas, que se mostra mais propícia à intensificação de uma Imprensa mais desenvolvida tecnologicamente e de caráter mais industrial no Estado, possibilitando ainda um aumento na tiragem dos jornais impressos. As pequenas folhas improvisadas que utilizavam recursos considerados arcaicos para o período, não sumiram de todo, mas tiveram sensível redução. Sobressaem deste período uma maior quantidade de impressos e uma melhor qualidade na impressão dos jornais que circulavam no Estado.109 No limiar do século XX, Manaus configurou-se, portanto, como uma das cidades mais importantes da Região Norte, que praticamente de uma hora para outra teve que se estruturar para receber os representantes do capital industrial estrangeiro e nacionais que passaram a engrossar os segmentos médios urbanos da cidade. Essa articulação ao mercado internacional exigia a criação de bancos, casas comerciais e a forte intervenção do poder estatal no cenário urbano, único poder capaz de fomentar a construção de um verdadeiro Porto, capaz de receber embarcações de grande calado. Todos esses fatores contribuíram para que Manaus fosse abandonando seus traços de simples vila colonial e fosse lentamente se inserindo no modelo urbano predominante do período da chamada Belle Époque. Para Ednéa Mascarenhas Dias, a cidade sofre uma metamorfose, passando de um simples vilarejo pacato à cidade moderna nos parâmetros da Belle Époque, mesmo que, em muitos aspectos, essas transformações fossem mais aparentes que efetivas e que por outro lado, em nome do progresso e de tantos avanços técnicos, se observasse uma severa política de segregação aos populares. 110 De acordo com Maria Luiza Ugarte Pinheiro, a comercialização da borracha e a supervalorização do produto no mercado internacional possibilitaram que a Imprensa em Manaus conhecesse uma fase de inovações em todos os aspectos da produção jornalística, indo do campo gráfico, até a qualidade editorial, que passou a contar mais efetivamente 108 WEINSTEIN, Bárbara. A Borracha na Amazônia. Op. cit., p. 219. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit. 110 DIAS, Edinéa Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999. 109 53 com a presença de um grupo de intelectuais que autuavam consistentemente na atividade jornalística. 111 A montagem de estabelecimentos de ensino de ensino como o Ginásio Amazonense, contribuiu para que os jovens da Província, oriundo tanto da pequena elite local como das classes menos favorecidas, obtivessem uma formação acadêmica que até então só era obtida saindo da Província. Algumas das famílias abastadas investiram maciçamente em recursos financeiros para que seus filhos desfrutassem de uma educação superior de maior qualidade, mandando-os estudar nas melhores Faculdades do País, como as do Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. As mais opulentas buscavam os títulos doutorais dos filhos nas tradicionais instituições de ensino na Europa, escolhendo, em especial, Lisboa e Paris.112 Uma vez terminados os estudos esses jovens eram obrigados a retornar à cidade natal para administrar os negócios da família, geralmente os seringais, o que causava situações de desgosto e insatisfação. Muitos desses recém formados recusavam-se a voltar, alegando que Manaus se mostrava um ambiente cultural muito tímido em relação aos grandes centros urbanos onde a vida intelectual era efervescente e dinâmica.113 De acordo com Maria Luiza Ugarte Pinheiro, os que retornavam a Manaus empenharam-se em montar estratégias de recriação de uma ambiência cultural refinada e foi na imprensa manauense da época que encontraram um desses espaços. Além do mais, foi na Imprensa que os intelectuais da época, tanto os de formação superior, quanto os autodidatas, conseguiram divulgar seus trabalhos e fazer-se notar, tentando copiar o modelo efervescente da capital do país114, pois como afirmou Nelson Werneck Sodré “só a capital consagra” os talentos intelectuais. 115 Foi principalmente na segunda fase do periodismo amazonense que os jornais e as revistas passaram a abrigar esses intelectuais, que podiam ganhar um espaço de visibilidade e prestígio na sociedade local e em alguns casos até mesmo nos centros mais dinâmicos do país. 111 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 91. Ibidem, p. 97. 113 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 98. 114 Ibidem, p. 104. 115 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Op. cit., p. 294. 112 54 Além do mais, as firmas internacionais que se instalaram em Manaus acabaram por trazer recursos humanos e técnicos de monta que foram oportunizados pela Imprensa, contribuindo para que esta se intensificasse em Manaus e se mostrasse, inclusive, um empreendimento empresarial rentável e lucrativo. Contavam para essa intensificação e modernização a ampliação e diversificação do público leitor, a importação de maquinário e a contratação de uma mão-de-obra mais especializada de tipógrafos, compositores, clicheristas e, mais tarde, com o desenvolvimento da arte/técnica fotográfica, fotógrafos. Também contribuíram as mudanças no âmbito internacional, com a criação de instrumentos que dinamizaram a informação como o telégrafo e a formação das primeiras agências de notícias internacionais. 116 De acordo com Djalma Batista vieram para Manaus e Belém os melhores artistas da época estimulando as atividades artísticas e profissionais para atuarem nos diversos campos do conhecimento. Em seus termos, a cidade atraiu “professores abalizados, jornalistas de alta estirpe, engenheiros, advogados que merecem justificada fama, médicos e humanistas de grande cabedal, profissionais de toda sorte e de rara capacidade”. 117 Assim, economia extrativista da borracha, apesar de seu curto período de apogeu, teve seu lado positivo, pois possibilitou que na região ocorresse uma alta demográfica e o aumento das receitas governamentais que geraram recursos para remodelar a cidade através das obras públicas. Ocorreu também, como mencionado, a atração para Belém e Manaus de homens de negócios e também de uma elite de intelectuais, incentivando assim as atividades ligadas à cultura letrada e a criação de instituições educacionais, como a Escola Universitária Livre de Manaus, em 1909, o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, em 1917 e a Academia Amazonense de Letras em 1918. Todos esses fatores acabaram estimulando as atividades ligadas ao campo artístico e intelectual. 118 Nas principais capitais do Brasil os jornais estavam atravessando outro processo mudança, configurado na transição de uma imprensa de opinião para uma imprensa de informação com visível caráter de empreendimento industrial. No Amazonas o movimento de expansão da economia havia permitido certa atualização, com a incorporação de algumas das mais recentes novidades no campo de informação. O processo era ainda 116 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 61. BATISTA, Djalma. Amazônia – Cultura e Sociedade. Manaus: Valer, 2003, p. 70. 118 BATISTA, Djalma. O Complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Conquista, 1976. 117 55 incompleto, já que como sustenta Maria Luiza os grandes diários que surgiram na capital amazonense e se apresentavam como empreendimentos modernos, dividiram espaço com as pequenas folhas que tratavam de temáticas variadas ligadas ao cotidiano da cidade.119 Em que pese essa situação ambivalente, Maria Luiza Ugarte caracteriza este novo período como marcado por um verdadeiro boom do periodismo amazonense: ... O período que se abriu após 1880 foi caracterizado pela proliferação de uma grande e diversificada quantidade de jornais que, embora ainda mantivessem muitas das características do período anterior, começaram já a mostrar sinais de significativo avanço não só em relação ao processo de composição e editoração gráfica, mas também no sentido de ampliação da qualidade editorial, consolidando a presença de um grupo cada vez mais amplo de intelectuais, que faziam das páginas dos jornais um campo fértil para troca contínua de idéias e para o desenvolvimento do debate político. 120 Mesmo com incorporação de tecnologias que possibilitaram uma parte do periodismo amazonense inserir-se na era da imprensa industrial, então em franca expansão no Brasil, a qualidade gráfica e editorial dos impressos mostrava diferenciações significativas. No Amazonas do início do século XX as revistas em particular se mostravam embrionárias e bastante simples, em relação as revistas que haviam surgido no eixo Rio de Janeiro e São Paulo no mesmo período. Com efeito, nos centros mais promissores a atividade jornalística ancorada na produção industrial estava em fase de consolidação e havia alcançado o gênero revista com igual vigor. Como afirma Heloisa de Faria Cruz: Nas últimas décadas do século XIX, o movimento de crescimento e circulação dos materiais impressos em São Paulo, principalmente da imprensa periódica, acompanha o próprio ritmo de desenvolvimento da cidade. As tipografias, além de imprimirem uma grande variedade de materiais ligados às novas necessidades mercantis, passavam também a publicar correspondências, panfletos, opúsculos, brochuras diversas, elegantes folhetins e almanaques bem organizados, brochuras com a mais fina encadernação, folhetos e jornais.[...]. Em meio a essa gama de publicações, tendo como ponto de partida a temática do viver urbano na metrópole em formação, despertava especial atenção um determinado conjunto de periódicos que passamos a chamar de culturais e de variedades. Diferente da imprensa diária, onde as questões políticas e 119 Pinheiro sustenta que embora modestas, as pequenas folhas deram uma importante contribuição, estimulando as práticas de leitura e difundindo a cultura letrada na região, razão pela qual optou por estudá-las em sua tese doutoral. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 16. 120 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 63. 56 institucionais de caráter nacional ou estadual ocupavam maior espaço, nessas publicações culturais e de variedades, através de diversas linguagens – a crônica, a fotografia, o reclame, a caricatura etc – eram os temas do cotidiano da cidade que ganhavam destaque. 121 Com efeito, o segmento caracterizado pelas revistas de variedades começava a se expandir no Brasil e refletia, como sustenta Maria de Lourdes Eleutério, o acentuado processo de crescimento urbano nas principais capitais do país, traduzindo uma série de mudanças que perpassam pela reestruturação arquitetônica e pela mudança e introdução de novos hábitos. Grande parte da Imprensa se fez, de imediato, porta-voz dessa nova sociedade urbana que emergia em diversas áreas do país. Convém registrar que essa imprensa não era unívoca nem possui um discurso monolítico, mas, ao contrário, era campo polivalente e multifacetado como a própria sociedade que a abrigava e seus discursos eram percebidos e representados das mais variadas formas pelos diversos grupos sociais. 122 Nos grandes centros urbanos, sustenta Ana Luiza Martins123, a inserção de recursos tecnológicos, a melhoria e ampliação das políticas de alfabetização, o incentivo à aquisição e produção do papel, formaram o tripé indispensável para a sustentação da grande empresa editorial. De acordo Maria de Lourdes Eleutério, todas essas transformações possibilitaram ainda uma “melhor qualidade de impressão, menor custo do impresso, propiciando o ensaio de comunicação de massa”. 124 Em Manaus o conhecimento das inovações tecnológicas ocorridas no campo da imprensa paulista ou carioca eram acessíveis, pois segundo Maria Luiza Ugarte Pinheiro na cidade “circulavam todas as grandes revistas do país (e do exterior), e estas eram alvo da atenção e dos comentários dos círculos letrados da cidade”. 125 As carências técnicas e a falta de recursos humanos parecem ter contribuído para que, no contexto amazonense, as primeiras revistas voltadas ao entretenimento, tanto quanto as folhas de humor, apresentassem traços mais amadores e grosseiros, se comparados com os grafismos produzidos no mesmo período por grande nomes da 121 CRUZ, Heloísa de Faria (Org). São Paulo em Revista: catálogo de publicações da imprensa cultural e de variedades paulistana, 1870-1930. São Paulo: Arquivo do Estado, 1997. 122 ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. “Imprensa a Serviço do Progresso”. Op. cit., p. 83. 123 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 166. 124 ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. “Imprensa a Serviço do Progresso”. Op. cit., p. 83. 125 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 209. 57 caricatura brasileira que atuavam na Imprensa carioca e paulista. Mesmo sem qualidade artística, os periódicos de Manaus que exploraram com maior desenvoltura a linguagem imagética e tratavam temas do cotidiano da cidade de maneira mais suave ou mesmo cômica, parecem ter alcançado sucesso. 126 Essa associação do gênero revista (notadamente a de Humor ou de variedade!) com a ilustração e o traço caricatural tem sido bastante destacada pela historiografia e emerge como uma das razões do enorme sucesso que elas vão alcançar já na virada do século XIX para o XX e, em especial, ao longo da primeira metade deste. Com efeito, as primeiras publicações no formato de revista surgiram no Brasil ainda no período imperial e não por coincidência, quem publicou as primeiras revistas populares (como também eram conhecidas) no país foi o piemontês Angelo Agostini, que tendo estudado Belas Artes em Paris, fixou-se em São Paulo nos anos de 1850. Agostini tornou-se de imediato um marco na Historia da Caricatura brasileira, sendo até hoje referenciado como um dos maiores chargistas que o país conheceu. 127 Na verdade, a primeira publicação do gênero surgiu em 1864, quando Agostini, em pareceria com o líder abolicionista Luís Gama, lançou o folheto ilustrado, Diabo Coxo, impresso fortemente opinativo, politicamente engajado e bem-humorado que incomodou de imediato os lideres políticos e religiosos brasileiro, razão pela qual os autores do folheto foram processados. Angelo Agostini, fugindo das pressões, refugio-se na capita do Império em 1867.128 No Rio de Janeiro Agostini atuou como colaborador em diversos periódicos da capital, como o O Arlequim, onde publicou sua primeira caricatura, “A Vida Fluninense”. Em 1867 Agostini fundou sua própria revista, a Revista Illustrada, mais tarde chamada por Joaquim Nabuco de a “Bíblia da Abolição”. Embora se utilizasse largamente do traço humorístico, tratava-se de uma publicação engajada que: Derrubava do trono do sonolento D. Pedro II, satirizava o clero, flagrava as falcatruas do Segundo Império e fustigava os escravocratas. Documentou a tortura contra os negros, que mostrava empilhados como sacas de café ou pendurados como carne bovina. Captou o espírito das 126 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 197. KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. Op. cit., p. 78 128 Idem. 127 58 massas – das cenas de ruas às festas de Carnaval – e o caráter dos tipos populares. 129 Devido um escândalo familiar a Agostini refugiou-se em Paris com sua jovem amante Abigail com a qual teve um filho. Com o falecimento precoce de sua companheira e do filho, o ilustrador retornou ao Brasil em 1895 e lançou a revista Don Quixote, outro sucesso de público, que deixou de circular em 1903. Dois anos depois passou a colaborar como caricaturista e ilustrador na revista O Malho, uma das edições mais destacada e influente nas primeiras décadas do século.130 Outro importante ilustrador que atuou no Brasil foi o alemão Henrique Fleuiss criador da revista Semana Illustrada, publicação que também fez grande sucesso no Rio de Janeiro entre 1860 a 1876. Sendo a Imprensa um palco predileto para as disputas políticas, as contradições entre as posições políticas dos impressos surgiam de imediato e o semanal recebeu severas críticas do criador da Revista Illustrada que acusava a concorrente de complacente com as questões políticas que envolviam o Império. 131 2. NA ENCRUZILHADA DOS GÊNEROS (JORNAL E REVISTA): PONTOS NOS II E A NOTA De acordo com Maria Luiza Ugarte nas primeiras folhas de humor que surgiram em Manaus os temas discutidos eram praticamente os mesmos tratados pelos outros jornais de linguagem formalizada, sendo que o que os diferenciava era a maneira como estes temas eram abordados. Por outro lado, as folhas de humor e depois as revistas ilustradas carregavam uma imagem depreciativa de um jornalismo pouco sério. Contudo, sua legitimidade diante do público leitor emergia frequentemente da independência que demonstrava diante da órbita do poder, de quem fazia troça. É nessa dimensão de maior ou menor autonomia e independência política que reside, muitas vezes, a possibilidade de sucesso desses impressos: Numa ambiência política marcada pela ação arbitrária de oligarquias prepotentes, foi muitas vezes o jornal de humor – acobertado pela pecha de ser um jornalismo pouco sério e, portanto, 129 KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. Op. cit., p. 82. Idem. 131 Ibidem, p. 86. 130 59 a que não se devia dar atenção – o único discurso dissonante permitido, contradizendo a fala oficial. Em boa medida, era essa postura de perigosa irreverência, que acabava por alavancar alguns títulos na preferência do público local. Mas nesse contexto, a contrapartida do sucesso poderia ser trágica: perseguição a jornalistas e editores, atentados, prisões e, com muita freqüência, empastelamentos. 132 Segundo Maria Luiza Ugarte essas folhas fizeram enorme sucesso dentre outros fatores por encontrarem na ilustração e na adoção de uma linguagem cômica e satírica a fórmula perfeita numa sociedade marcada pelo pouco cultivo das letras, pois por mais que o processo de difusão da escrita se mostrasse em franca expansão, ainda não conseguia alcançar grande parte da população da cidade.133 Um pouco antes do fragoroso sucesso das revistas ilustradas cariocas e paulistas, o gênero revista surgia de forma tímida, com seu formato ainda muito semelhante (quase indistinto) ao do jornal. Muitos impressos que hoje identificaríamos facilmente como “jornais” vinham à luz com o título de “revista”. Com efeito, de início, os animadores dessas publicações não pareciam ter grandes preocupações em definir o tipo de impresso, utilizando indiscriminadamente o termo revista ou jornal. Essa ambigüidade e imprecisão aparece demonstrada no editorial de lançamento de Pontos nos ii, para nós um periódico que marca exemplarmente essa transição do jornal à revista no Amazonas: A falta de um jornal humorístico que servisse a todas as classes, comentando alegremente os fatos da semana e caricaturando os de modo a provocar o riso, fazias-se sentir entre nós. Pontos nos ii pretende preencher esta lacuna e semanalmente apresentar ao público uma revista hilariante dos sucessos desta terra. 134 Neste momento inicial da imprensa em que a ilustração ainda não se materializava com o vigor que marcaria as revistas no início do século XX, a distinção entre os gêneros parecia estar muito mais na adoção de uma linguagem diferenciada pelas revistas. Linguagem direta, objetiva e ligeira, em textos curtos que não cansavam o leitor. Pois como sustentam os editores de A Revista no Brasil, “as revistas não se esparramavam em 132 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 177 Ibidem, p. 180. 134 Ponto nos ii, nº 1. Manaus, 14 de julho de 1906. 133 60 artigos de fôlego... bastavam-se com pequenos textos-legendas”.135 Os temas também diferiam e, em lugar da constante e pesada crônica política da grande imprensa, imperavam os temas corriqueiros que faziam o cotidiano da cidade. O humor, em gradações diversas, fechava o círculo da distinção e já começava a atribuir à revista um sentido maior que mais tarde passaria a ser até maior que a informação: o entretenimento. Novamente o editorial do Pontos nos ii parece elucidar com precisão essa dimensão: O nosso programa é vastíssimo. Em política não acompanharemos os que aplaudem incondicionalmente os governos, nem os que hostilizam por sistema. Não pertencemos nem a um, nem a outro desses grupos, antes pelo contrário. Em religião achamos que Deus é bom e que o diabo não é mal, e pensamos como o caboclo, - que se Deus é grande, o mato é ainda maior. Financeiramente falando, apoiaremos todos que comprarem este jornal e nos trouxerem seus anúncios. Em arte, ah em arte, somos uns verdadeiros artistas. Pintamos a manta, o padre, o sete, o Simão de carapuça e outras personagens importantes e conhecidas das respectivas famílias. Somos pela liberdade de comércio. Cada um vende seu peixe como quiser e puder. Confessamos lealmente que não nos envolvemos nos negócios do Acre. Nós gostamos de coisas doces, salvo seja. Encomendamos muito sal e muita pimenta para polvilhar – sem a alusão aos pós do nosso amigo Ferraz – as colunas deste jornal. Poremos sempre, em todas as questões os pontos nos ii (...). É este o nosso programa. ”136 A quase indistinção inicial entre revistas e jornais no Amazonas deriva, ao que parece, dos escassos recursos humanos e técnicos que tanto caracterizavam negativamente a região. Em todo o período inicial (850-1880) foi notória a ausência de ilustrações e traços caricaturais nos impressos. Mesmo no período posterior, de maior dinamismo, muitas ilustrações veiculadas (caricaturas, charges e mesmo fotografias) eram constantemente reaproveitadas e reimpressas pelos diversos periódicos locais 137. Ana Luiza Martins afirma ter sido prática comum a compra de clichês importados que, impresso nos jornais e revistas do país, serviam como suporte ao título do periódico: Os modelos de cabeçalho importados, sucediam-se para todos os gostos e tendências. Trazidos da França, que por sua vez os reproduzia de 135 KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. Op. cit., p. 21. Ponto nos ii, nº 1. Manaus, 14 de julho de 1906. 137 Ver exemplo dessas reimpressões em: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 216. 136 61 matrizes alemães, os clichês foram usados à exaustão pelas tipografias do país, adaptando seus motivos às mais diversas tendências.138 Quanto à dificuldade inicial na adoção de ilustrações, o mais comum foi, contudo, a larga utilização do improviso e a franca experimentação do grafismo e do traço caricatuaral. A regra era simples: utilizava-se o que se dispunha. Uma vez mais tomaremos o Ponto nos ii, como se verá adiante, como um marco dessa transição em Manaus. Imagem nº 5 Fonte: Ponto nos ii, nº 3. Manaus, 28 de julho de 1906. Cópia digital disponível no Laboratório de História da Imprensa. Começando a circular em 14 de julho de 1906, Ponto nos ii chegou a publicar nove exemplares e era um empreendimento idealizado, dirigido e editado por ninguém menos que João Batista de Faria e Souza, um dos mais importantes e prestigiados jornalistas e intelectuais amazonenses do início do século. J. B. como era mais conhecido, notabilizouse ainda por sua atividade de historiador, dedicando seus estudos a temas diversos, dentre os quais sobressaiu a Abolição da Escravidão no Amazonas e a própria História da Imprensa amazonense. Foi um dos idealizadores e fundadores do Instituto Geográfico e 138 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista. Op. cit., p. 94. 62 Histórico do Amazonas (IGHA), em 1917, deixando para aquela instituição sua preciosa coleção de jornais e revistas editados no Amazonas, que ele começou a colecionar exaustivamente ainda jovem. Essa mesma coleção constitui, em 1908, uma das mais importantes exposições de acervos de jornais apresentada com aplausos na capital federal, o Rio de janeiro, por ocasião do Centenário da Imprensa no Brasil139. Foi como peça de apresentação à essa mesma exposição que J. B. elaborou seu famoso catálogo de jornais, encimado pelo texto introdutório “A Imprensa no Amazonas”, que ele escreveu em consonância com Alcides Baia e Monteiro de Souza.140 J. B. Faria e Souza não se apresentava abertamente no Pontos nos ii, mas através do pseudônimo de “Gato Preto”, que o marcou ao longo daquele período nos círculos boêmios de Manaus. O uso do pseudônimo, embora frequentemente não ocultasse a verdadeira autoria, dava uma certa liberdade de movimento e conferia uma espécie de licenciosidade a muitos intelectuais que também atuavam na esfera pública, seja como funcionários públicos, seja como profissionais liberais, seja ainda como colunistas ou jornalistas nos grandes diários, que buscavam legitimidade e credibilidade junto ao grande público, apresentando-se como órgão de imprensa “sérios”, o que os levava a adoção de um estilo mais sóbrio e formal. As pequenas folhas humorísticas e, posteriormente as revistas ilustradas, eram, portanto, espaços menos formalizados que permitiam improviso, audácia e ousadia. Apesar do jornal/revista se comprometer a executar um programa vastíssimo, os temas prediletos eram de fato o relacionado ao cotidiano dos leitores, como as diversas contendas urbanas e mesmo as intrigas havidas na zona do meretrício (Imagem nº 6), ali retratadas de forma coloquial e jocosa. Em Pontos nos ii a crônica cotidiana, caindo frequentemente para os redutos da vida privada, era ancorada numa farta base imagética – em geral constituída de gravuras sem muita elaboração –, recurso este cada vez mais empregado nos periódicos como estratégia de cooptação de leitores. À época de Pontos nos ii, outros títulos da imprensa manauara havia também se lançado ao recurso da ilustração, 139 REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: Tomo Consagrado à Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário da Imprensa Periódica no Brasil, promovida pelo mesmo Instituto. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1908. 140 FARIA E SOUZA, João Baptista, BAHIA, Alcides, e SOUZA, A. Monteiro de. A Imprensa no Amazonas, 1851-1908. Manaus: Tipografia da Imprensa Oficial, 1908. 63 caso, por exemplo, de O Bonde, outra folha humorística de circulação efêmera que a cidade conheceu.141 Imagem nº 6 Texto abaixo da ilustração: “A nossa reportagem deu um verdadeiro furo na policia. Lembram-se os leitores do rolo havido na Pensão da Mulata? Pois nos conseguimos apanhar a cena em flagrante. A Maria Alves, de faca em punho, ameaçava a Maria Joana e esta puxou-lhe as melenas. Aquilo é que foi bonito! Pareciam duas gatas assanhadas. Mal comparando, fazia lembra a fúria da Ricordeau ao saber do sucesso da sua colega Berthy!”. Fonte: Ponto nos ii, n.02. Manaus, 1906. Apesar dessas publicações não disporem dos mesmos recursos dos grandes diários que circulavam na cidade os editores de Pontos nos ii, em um tom bastante provocador e jocoso, vangloriava-se frente aos rivais de suas edições ilustradas: “somos o primeiro a noticiar esta tragédia, os únicos a dar gravura sobre o fato”, dizem os editores, ao noticiar um trágico assassinato envolvendo questões passionais: “A nossa cidade sempre ordeira e pacifica foi surprehendida hoje pela manhã com a noticia de um crime sensacional. Trata-se do assassinato do bacharel em sciencia juridicas e sociaes Luiz Ribeiro Gonçalves delegado de policia no Acre. O cadáver apareceu á rua Barroso, com diversas facadas. Questões intimas motivaram o assassinato do dr. Ribeiro Gonçalves. O assassino, Neutel Maia, homem muito conhecido e abastado capitalista, residente no Acre, confessou o crime entregando-se a prisão. Damos hoje o croqui do cadáver como estava na mesa do Necrotério. O facto prende-se a questões de família, e trata-se de um marido ultrajado em sua honra. Dando esta noticia, não podemos deixar de chamar a atenção do público para o furo brutal de Pontos nos ii; somos o primeiro a noticiar esta tragédia, os únicos a dar gravura sobre o facto. O vovô Amazonas e o bebê Jornal do Commercio estão danado”.142 141 142 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Op. cit., p. 193. Ponto nos ii, nº 2. Manaus, 21 de julho de 1906. 64 O suporte imagético, tão exaltado no periódico, não passava, é verdade, de uma simples gravura, pouco elaborada esteticamente e de grossos traços, mas a se levar em conta (com as devidas ressalvas motivadas pelo inequívoco tom humorístico) o argumento dos editores, sugerindo a possibilidade dos grandes diários empresariais – “o vovô Amazonas e o bebê Jornal do Commercio” – ficarem incomodados, há que se pensar que estes pequenos esforços podem ter tido e tiveram, à época, uma significação muito maior do que o que se afiguram hoje. Imagem nº 7 Fonte: Ponto nos ii, nº 2. Manaus, 21 de julho de 1906. Observa-se que não tendo condições de arcar com as inovações e recursos tecnológicos da época, notadamente a utilização da fotografia, o periódico faz a opção de abordar o assunto de forma jocosa, fazendo troça de si mesmo, enquanto espezinha a grande e opulenta imprensa por também não assumir um perfil mais moderno que à época já se colocava em outros contextos. Com efeito, poucos periódicos locais, como o Jornal do Comércio, por dispor de um suporte econômico empresarial de envergadura, tinham condições financeiras de imprimir fotografias ou fotogravuras, mas estas se desenvolvem em seu interior de forma lenta e timidamente ao longo dos seus primeiros anos de existência. Mesmo na grande imprensa manauara da época, poucos títulos podiam se lançar à incorporação das mais recentes novidades seja no campo tecnológico seja no campo da informação. É claro que os croquis empregados pelo Pontos nos ii não tinham a mesma qualidade dos artistas de renome nacional, nem produziam os mesmos impactos visuais que a fotografia, ainda um novidade na Imprensa. Mas sua utilização parece ter dado certo como uma estratégia de atrair a atenção do público que estava sempre ávido pelas notícias 65 do momento, e tinham a finalidade também de informar através do desenho. É preciso pensar no desenhista/chargista também como um narrador, como alguém que pode, por vezes, se colocar como testemunha ocular dos eventos e deles elaborar uma representação imagética que reforça a narrativa jornalística. Essa dimensão, por vezes presente na crônica policial da Imprensa do passado é até hoje empregada, como no caso dos julgamentos famosos em que a grande mídia televisiva se vê impedida de participar. Já no caso da charge, o tom humorístico (jocoso, satírico) acentuado, rompe essa presunção de representação fidedigna da imagem e assume integralmente sua ficcionalidade. Uma tentativa aproximada de uso do desenho gráfico como suporte informativo e “fiel” da realidade, aparece a partir do quinto número de Pontos nos ii, quando este periódico inaugura uma coluna chamada “Chronica Semanal”, que retrata alguns dos acontecimentos importantes da cidade, em especial aqueles relacionados a sua pauta preferida: brigas, confusões, suicídios, assassinatos e raptos. Como se percebe, os temas da crônica policial desde cedo já haviam assegurado espaço no interior do periodismo amazonense, tendo sido sempre um grande atrativo para alcançar a preferência do público leitor. A imprensa periódica, principalmente os jornais do início do século XX que estavam buscando se inserir no modelo jornalístico mais empresarial e que, portanto, visavam o lucro, mais que a defesa de qualquer idéia ou valor, argumentavam continuamente seu desejo de apenas informar o leitor. Com efeito, o tom opinativo e associado intimamente ao debate político que foi tão característico da fase inicial da Imprensa no Brasil produzia no público a idéia de manipulação, e este público enxergava muitas vezes a opinião explícita dos jornais como algo danoso, pois entendia que o ato de informar deveria ser feito de forma imparcial, cabendo ao leitor fazer seu próprio julgamento frente aos dados narrados. Mas essa imparcialidade de fato nunca existiu. Apesar de Pontos nos ii se autodenominar um “hebdomadario humoristico, critico impolitico e rebartivo”, a política local e nacional foi um dos temas mais visitados e discutidos. Ocorre que por se apresentar como uma publicação cômica e destinada ao entretenimento tratava desses temas com mais liberdade e desenvoltura, seja para enaltecer as autoridades do Estado, inversamente, para tecer críticas. Esse tom opinativo (como se dizia então) frequentemente emergia e tomava 66 partido, como na discussão motivada pela crítica internacional à situação dos imigrantes europeus no país: Nós somos muito amigos da Itália, dos italianos e principalmente das italianas bonitas; mas devemos confessar que a bela pátria de Dante nos tem mandado para aqui um bom par de aventureiros que só vem explorar o nosso cobre e depois vão proclamar que o nosso país é de morte, que a febre aqui mata aos milhares, que uma garrafa de água custa uma fortuna e outras baboseiras do mesmo jaez. 143 Não sendo propriamente uma revista, pontos nos ii apresentava uma estrutura de jornal que, embora modesta, expressara uma experimentação inovadora da linguagem de comunicação, incorporando características que estavam à época consagrando o nvo gênero revista nos centros mais dinâmicos do país. Outro exemplo bastante interessante de periódico em processo de transição do gênero jornal para o gênero revista, pode ser percebido em A Nota, que surgiu no ano de 1917144. A proposta editorial de A Nota é, em linhas gerais, semelhante a da revista Pontos nos ii, porém ao que tudo indica A Nota de fato se parece muito mais com uma revista do gênero de variedades, em especial se levarmos em consideração seus aspectos gráficos e editorias. O primeiro aspecto a ser destacado está exatamente no layout assumido por A Nota, que traz em todos os seus exemplares uma capa, algo que sempre foi um elemento definidor e distintivo do gênero revista. Para as revistas a capa era um elemento vital na comunicação direta que estabelecia com o leitor. Os editores de a Revista no Brasil ressaltam essa dimensão: Destinada a seduzir o leitor à primeira vista, a capa sempre foi, por isso mesmo, o grande desafio dos editores: como criar um rosto que, entre centenas de outros, tenha o poder de fisgar quem vai a uma banca de revistas? Boas capas vendem e consagram uma publicação... Publicações mundanas do começo do século XX (como Fon-Fon!) traziam na capa apenas desenhos ou reproduções de pinturas. Ela tinha vida própria, não refletia o conteúdo de artigos e reportagens. Caberia a O Cruzeiro, nos anos 143 Pontos nos ii, nº 8. Manaus, 12 de setembro de 1906. O periódico foi discutido com densidade na já citada tese de: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Esp. capítulo 5, p. 175-217. 144 67 de 1940, e também a Manchete, a década seguinte, sair atrás do furo jornalístico. Os editores descobriram, então, o valor da chamada de capa, texto breve, preciso, irresistível piscadela verbal a seduzir o leitor.145 Imagem nº 8 Fonte: A Nota. Manaus, 1917. Cópias Digitais. Laboratório de História da Imprensa no Amazonas. Embora seja correto argumentar, como ressaltou Maria Luiza Ugarte Pinheiro, que tanto o Pontos nos ii, quanto A Nota mostraram grande aproximação com o gênero revista, “nenhum dos dois chegou a assumir realmente esta definição”.146 Mas sua recepção no cenário jornalístico amazonense muitas vezes percebeu-a como sendo claramente pertencente ao gênero revista. Assim é que o Jornal do Commércio a saudou como “Uma brilhante revista que se edita nessa capital. Vem repleta de charges e ilustrada de caricaturas sobre assumptos locaes”. 147 145 KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. Op. cit., p. 24. A citação completa é: “Embora tanto o jornal de Faria e Souza [Ponto nos ii] quanto A Nota, de 1917, apresentassem características mais próximas do que se convencionou chamar de revista ilustrada, nem um dos dois chegou a assumir realmente esta definição”. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 198. 147 Jornal do Commércio, nº 4795. Manaus, 3 de setembro de 1917. Apud: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p 201. 146 68 O perfil de A Nota como associado ao gênero revista é visível também pelo estilo literário assumido já desde o seu primeiro número: ....Enfim amigo Erasmo de Roterdam tinha sérias razões ao affirmar no Elogio da Loucura “que seria da vida sem o prazer”? Has de convir que Manaós actualmente, com suas ruas largas, recortadas pelos autos, com sua greves caricatas, com seus arautos políticos não possue um jornal leve, que semei riso e a ironia fina por ahi afora, sem offender a ninguém... São todos os jornaes sujeitos a programas definidos e nenhum só ai delle - tem o arbítrio de desopilar os fígados doentes com pilherias e criticas, que não ferem a mais requintada sensibilidade. Vê, pois, que A Nota, airosa e trafega, preenche um pequeno lugar em teu espírito. De formato ligeiro, occupará o vazio deixado em teu bolso pelo nickel de duzentos réis despendido por ella. Protege-a amigo velho! Neste tempo insípido é uma grande cousa – e tu reconheces essa verdade – dizer mal a vida alheia sem receio de bengalas e da policia. Protege-a! A Nota, com teu valioso auxilio, annota, em notas esplendidas e alegres o que por ahi vae acontecendo, precisando para essa victoria das notas módicas do teu bolso...148 Pelas características de seu programa editorial – “airosa e trafega, preenche um pequeno lugar em teu espírito. De formato ligeiro, occupará o vazio deixado em teu bolso pelo nickel de duzentos réis despendido por ella” – A Nota assume mais um elemento diferencial de suma importância na distinção entre revistas de variedades e jornais: a apresentação dos conteúdos através de uma linguagem direta e menos formal e a associação contínua dos textos curtos com os recursos gráficos. Tais recursos, embora incomparáveis com os traços refinados dos chargistas que fizeram o sucesso das revistas do eixo Rio de Janeiro/São Paulo (por exemplo: J. Carlos, K. Listo e Raul Pederneiras)149, já demonstravam sinais de avanço e melhoramentos. Tais melhoramentos gráficos parecem advindos da chegada de quadros técnicos melhor qualificados à Manaus, no bojo das migrações provocadas pela expansão da Borracha. Ao analisar o periódico A Nota, Pinheiro destaca a grande contribuição dada à revista por um novo chargista, Marcial Tosca: A partir da publicação de seu sexto número, A Nota passa a reproduzir os desenhos de um novo colaborador, Marcial Tosca. À época 148 A Nota, n. 01. Manaus, 26 de agosto de 1917. LIMA, Herman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, p. 142. Sobre um dos pioneiros do gênero caricatura no Brasil (Angelo Agostini), ver o recente: BALABAN, Marcelo. O Poeta do Lápis: sátira e política na trajetória de Angelo agostini no Brasil Imperial (1864-1888). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. 149 69 de sua contratação, Tosca desenhava para outros jornais da cidade, como a Imprensa. O nome de Marcial Tosca havia aparecido em anúncio veiculado no primeiro número de A Nota, onde oferecia seus serviços de desenhista. A presença deste chargista na A Nota mostrou-se impactante, sendo tal reconhecimento em mais de uma oportunidade externada pelo jornal. O impacto de suas charges podia ser percebido pelos comentários que os leitores encaminhavam à redação do jornal.150 A Nota também reflete um momento que a imprensa amazonense vai se inserindo de maneira mais clara na era da imprensa de caráter industrial. Embora nessa nova imprensa haja uma maior diversidade nos temas, eles tendem a ser abordados, como já se afirmou, mais ligados ao entretenimento. É um momento em que também se consagra a imagem como suporte da linguagem jornalística, passando-se em especial a uma utilização mais larga da fotografia. Imagem nº 9 Fonte: A Nota, nº 8. Manaus, 21 de outubro de 1917. Em A Nota a utilização da fotografia ocorreu de forma bastante modesta se comparado com as publicações similares que surgiram na década posterior. Das mais de cem imagens que compõem os doze números publicados pelo periódico, apenas três são constituídas de fotografias. A primeira aparece no oitavo número e a última no décimo 150 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 207. 70 primeiro, todas elas trazendo fotografias de expoentes da imprensa e da literatura regional quando ainda eram crianças. Tais fotografias encimadas sempre pelo título “Na Ephoca da Mamadeira” funcionavam como suporte de uma nova sessão, de resto consagrada pelas revistas de variedades: a coluna social. Já argumentamos que enquanto Ponto nos ii representa o arquétipo embrionário da transição do Jornal à Revista, A Nota representa uma espécie de segunda fase desse mesmo processo. O traço caricatural nela se sofistica com as charges de Marcial Tosca, enquanto a capa recebe nova diagramação e – em seu décimo primeiro número – cores! Imagens nº 10 e 11 Fonte. A Nota, nº 9 e 11. Manaus, 28 de outubro e 11 de novembro de 1917. Cópia Digital do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas A Nota avança ainda em outra direção igualmente relevante: a utilização de uma linguagem leve e divertida e a diversificação de sua pauta: o cotidiano de mazelas da cidade, embora ainda presente, cede espaço para uma abordagem mais cosmopolita. Seja pela moda, seja pela guerra, as novidades do mundo também chegam aos leitores de A Nota, assim como a economia e a política oligárquica da capital da república e do Amazonas. Tanto A Nota quanto Pontos nos ii enxergaram uma lacuna no cenário da Imprensa amazonense e propuseram-se a suprir essa carência de um jornalismo leve, 71 divertido e diversificado, ancorado na crônica ligeira e densamente ilustrada. Segundo Pinheiro: Uma característica comum à maioria dos jornais que exploram essa dimensão do humor visual é a sua recorrente atenção a um punhado de temas, desde a sátira política, explorando figuras do quadro local e nacional, até as mais diversas cenas do cotidiano citadino. Em quase todos os títulos, o humor visual volta-se também para o próprio mundo da imprensa, dando visibilidade ás freqüentes querelas assumidas pelos diversos jornais. 151 Ainda segundo Pinheiro, o elemento que possibilitou A Nota ter um grande sucesso no interior do periodismo amazonense foi o estabelecimento de uma linha editorial que priorizava a abordagem não apenas “de temas e assuntos que estivessem em sintonia com o cotidiano do publico leitor, mas também na opção por uma linguagem capaz de estabelecer de forma mais eficaz essa identificação”.152 A associação de uma linguagem leve com os recursos gráficos, inovadores para o contexto do periodismo amazonense, foi o outro componente que integrou a fórmula por onde periódicos como A Nota e Pontos nos ii buscassem conquistar o grande público. É ainda Pinheiro que reforça essa idéia, quando afirma: Temos insistido em que numa sociedade com pouquíssima tradição no mundo das letras e onde o processo de expansão da cultura letrada, por mais dinâmico que se mostrasse, não conseguia incorporar-se ao cotidiano de grandes parcelas da população, não chega a ser novidade a proliferação de jornais que entabulassem uma linguagem coloquial, clara, direta, tratando de temas do cotidiano com grande irreverência. Fugindo das formalizações herméticas da norma culta – em franca expansão não só nos jornais empresas, mas também nas novas instituições que buscavam congregar e consagrar a “nata” da intelectualidade local –, muitos jornais do Amazonas, buscaram compensar suas fragilidades técnicas/financeiras, por meio do uso desabusado da linguagem humorística. 153 A Nota e Pontos nos ii, apesar do ponto de vista material e editorial serem empreendimentos jornalísticos modestos, se comparados com outras revistas de variedades que surgiram na mesma época no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, exigiram a presença e a colaboração de profissionais do desenho “capazes de sintetizar, a partir de simples traços, a 151 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 201. Ibidem, p.180. 153 Idem. 152 72 complexidade dos temas que o jornal abordava”154. Essa carência foi um dos obstáculos que a imprensa amazonense teve que enfrentar para que pudesse fazer emergir empreendimentos diferenciados, como as revistas de variedades. Esse obstáculo não ficou restrito ao periodismo amazonense das duas primeiras décadas do século vinte, pois ao pesquisar as revistas de variedades que surgiram posteriormente (na década de 1920) percebemos que essa carência de quadros técnicos é ainda bastante sentida. Dela se queixaria Clóvis Barbosa – o grande criador e incentivador das revistas de variedades no Amazonas –, registrando a grande dificuldade que teve de encontrar um profissional do desenho em Manaus e de pagar o alto custo dessa mão-deobra especializada, fundamental para que ele viabilizasse seu projeto de edição daquela que foi, como se verá adiante, uma das revistas de variedades mais importantes da primeira metade do século XX no Amazonas: Redempção.155 154 155 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Op. cit., p. 205. Redempção, nº 5/6, Manaus, 1925. 73 C A P ÍT U L O 3 AS REVISTAS DE VARIEDADES NO AMAZO NAS 74 CAPÍTULO 3 AS REVISTAS DE VARIEDADES NO AMAZONAS 1. NAS ASAS DA BORRACHA Nenhuma área da região Amazônica sofreu tantos impactos quanto Manaus na época da extração e comercialização da borracha, atividade que, como vimos, favoreceu uma série de transformações econômicas, sociais e culturais, sendo a imprensa periódica um dos setores que mais refletiu este momento modernizador. Todas essas mudanças estruturais levaram Manaus no início do século XX a deixar pra trás boa parte de seus os traços coloniais e introduzir uma nova dinâmica urbana, também ela associada à modernização de hábitos e valores para cuja inspiração concorreu sobremaneira o universo estético da belle époque parisiense. Como tantas outras cidades mundo a fora, Manaus se espelha na capital francesa, não apenas redesenhando seu traçado urbano para a abertura de boulevard, jardins e praças, mas também e principalmente, na tentativa de recriar a atmosfera elegante e refinada, onde proliferam as cocottes, os magazines, os cafés e os círculos boêmios. 156 Nessa aventura da modernidade nos trópicos (que também consagra a barbárie da exploração do seringueiro e de milhares de deserdados do látex!157) a imprensa foi a um só tempo projeção da modernidade e seu espelho, por onde as diversas mudanças ganhavam visibilidade e eram debatidas. Não é à toa, portanto, a grande proliferação de jornais e revistas com temáticas as mais variadas, fossem tais periódicos humorísticos, esportivos, religiosos, estudantis, femininos, comerciais, etc. As revistas que circularam em Manaus nos primeiros cinqüenta anos do século XX, mais que publicações especializadas, eram também instrumentos da intervenção na sociedade do seu tempo, ditando valores e modas que frequentemente encontravam eco em parcelas da sociedade urbana. Cada uma delas possuía uma maneira específica de enxergar o mundo e de defender ou criticar padrões de comportamento. 156 Cf: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. “O Espelho Francês na ‘Paris das Selvas’”. In: VIDAL, Laurent e LUCA, Tânia Regina de (Orgs). Franceses no Brasil: Séculos XIX-XX. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 271-287. 157 Um olhar, mesmo que ligeiro, pela história da borracha na Amazônia parece confirmar a máxima de Walter Benjamim, para quem “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”. BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 225. 75 Em Manaus, foi na segunda década do século XX que as primeiras revistas de variedade, propriamente ditas, surgiram. Essas publicações englobavam uma gama variada de assuntos e informações, sendo graficamente elaboradas com utilização de ilustrações e fotografias. Além do mais, assumiam uma linguagem menos formalizada e traziam explícita a intenção de proporcionar lazer e entretenimento aos leitores. Essa trajetória das revistas de variedades em Manaus não é, de forma alguma, marcada por uma ascensão contínua e vigorosa do gênero, antes por experimentações árduas e sucessivas, com grande dificuldade de se consolidar. Isso se deve uma vez mais à conjuntura econômica bastante específica vivenciada na região, uma vez que mal as inovações tecnológicas começavam a ser experimentadas nos jornais – como a introdução da fotografia e das charges que, como vimos, requeria recursos financeiros e materiais humanos qualificado – dando vazão aos primeiros ensaios no gênero revista, a Amazônia vivencia uma brutal crise de seu produto de exportação, que afasta de imediato o capital estrangeiro, enquanto joga ao chão uma centena de outrora ricos seringalistas. Ora, foi exatamente neste período de forte depressão econômica, com a quase extinção da atividade extrativa e a estagnação da atividade comercial em Manaus, que o gênero revista de variedades começou a se expandir, o que nos parece ser a razão pela qual esses empreendimentos ficaram sempre à meio caminho de seu pleno desenvolvimento. Apesar do curto período de prosperidade, a atividade comercial ligada a extração da borracha foi o fator desencadeador que possibilitou que Manaus se enquadrasse em um processo mais amplo de transformações similares aos que algumas capitais brasileiras estavam atravessando no mesmo momento. O Rio de Janeiro, então a capital da República, foi o exemplo emblemático desse processo de modernização, igualmente inspirado na Paris projetada pela ação urbanística do Barão Haussmann, mas imprimindo nesse movimento de importação de modelos civilizatórios seu estilo próprio. Como sustenta Jeffrey Needell, na belle époque carioca, “a cultura e a sociedade da elite serviram para manter e promover os interesses da própria elite e... paradigmas culturais derivados da aristocracia européia foram adaptados ao meio carioca com essa finalidade”. 158 O que acontecia na capital federal foi praticamente difundido pelas cidades mais dinâmicas do país e, em todas elas foi possível assistir a um processo que levou à 158 NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque Tropical. São Paulo: Cia das letras, 1993, p. 11. 76 demolição de casebres e de prédios antigos. Ruas estreitas e atravancadas, em conjunto com os casarões coloniais, foram substituídos por largas avenidas e bulevares, agora com moradias com sofisticadas fachadas inspiradas na arquitetura parisiense. Porém essas mudanças não ocorreram sem resistência, pois o custo social foi sempre muito elevado e essas melhorias urbanas não atingiam grande parte da população que permaneceu as margens do propalado progresso. Daí a ocorrência de inúmeros conflitos populares, que iam bem mais além das greves que marcaram a emergência da classe operária nas principais cidades brasileiras. Como lembra Nicolau Sevcenko, este foi o período de inserção compulsória do Brasil na Bélle Époque. Para o autor, que analisou esse fenômeno sob o prisma da capital federal: Assistia-se a transformação do espaço público, de modo de vida e da mentalidade carioca, segundo os padrões totalmente originais; e não havia quem lhe pudesse opor. Quanto aos princípios fundamentais regeneraram o transcurso da metamorfose... a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória a sociedade tradicional; a negação de qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense. 159 Manaus, assim como o Rio de Janeiro, sofreu processo modernizador similar – embora de dimensões diferenciadas –, igualmente marcado pela exclusão dos componentes tradicionais das culturas e das sociedades tradicionais e pela defesa de novos hábitos e valores ligados ao mundo ocidental. Este é ainda o período onde recaí a maior atenção da historiografia regional, porém com as novas abordagens e campos de atuação historiográfica, a análise do período ganhou novas perspectivas, dando-se, por exemplo, visibilidade aos diversos grupos sociais que interagiram conflituosamente nesta sociedade. 160 No bojo dessas revisitações historiográficas, a própria imprensa foi abordada de forma diferenciada, por onde se buscou ressaltar a grande diversidade de empreendimentos 159 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 30. 160 Cabe conferir: DIAS, Edinéa Mascarenhas. A Ilusão do Fausto. Op. cit.; PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A Cidade Sobre os Ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus (1899-1925). Manaus: Edua, 2001; TELES, Luciano Everton Costa. A Vida Operária em Manaus: Imprensa e Mundos do Trabalho (1920). Dissertação de Mestrado em História. Manaus: UFAM, 2008; PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. Na Contramão da História: Mundos do Trabalho na Cidade da Borracha (Manaus, 1920-1945). Canoa do Tempo, Manaus, nº1, 2007, p. 11-32. 77 e projetos gráficos e editoriais a consagrar a Imprensa como um espaço aberto de disputas e tensões.161 Foi exatamente buscando contribuir no bojo dessa reabertura da História da Imprensa no Amazonas a partir da exploração de novos temas e segmentações, que o trabalho atual se materializou, visando historicizar o desenvolvimento da imprensa em Manaus através da trajetória das principais revistas de variedades que surgiram na primeira metade do século XX. 2. A PIONEIRA CÁ E LÁ A primeira experiência efetivamente do gênero revista de variedades surge em Manaus como uma clara inspiração de uma congênere paulista de grande sucesso na época, dela copiando inclusive o nome: Cá e Lá. O periódico paulista havia vindo à luz em 1908, definindo-se como um “semanário ilustrado, literário e noticioso”. 162 Já o periódico manauara, ao que sabemos, publicou 17 números, sendo que os sete primeiros constituíram a fase inicial, ainda no ano de 1915 e do oitavo em diante uma segunda fase, esta já em maio de 1917. Lamentavelmente, nada pudemos aferir acerca da revista em sua primeira fase, já que nenhum dos seus sete primeiros exemplares foi por nós encontrado nos arquivos locais. A edição digital contendo cinco números da segunda fase da revista, pertencentes à Biblioteca Pública Estadual e por ela reeditados na forma de CD ROM, foi a base material que nos servimos para sua análise. A redação e a administração da revista ficava no centro da cidade, na Rua Joaquim Sarmento, nº 12. Cá e Lá, produzida em tipografia própria, informava ser vendida dentro e fora do Estado e mantinha um serviço de assinaturas. Saía quinzenalmente, aos sábados e parece ter mantido esta periodicidade até o número 17 que supomos ter sido também seu último número. 161 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Op. cit.; SOUZA, Leno José Barata. Vivência Popular na Imprensa Amazonense do Inicio do Século XX. Dissertação de Mestrado em História. São Paulo: PUCSP, 2005; ALVES, Hosenildo Gato. Imprensa e Poder: A Propaganda Varguista na Imprensa Amazonense, 1937-1945. Dissertação de Mestrado em História. Manaus: UFAM, 2009; COSTA, Francisca Deusa Sena da. “Manaus e a Imprensa Operária: o discurso do trabalhador também exclui”. Amazônia em Cadernos, nº 2/3, 1993/1994, p. 221-232. 162 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 173; 400. 78 Imagem nº 12 Fonte: Cá e Lá, nº 17. Manaus, 10 de Outubro de 1917. Nomes importantes da intelectualidade amazonense assumiram a organização da Cá e Lá, sendo seu diretor-proprietário o coronel Aprígio de Menezes e seu redatorsecretário, o jornalista Heitor de Figueiredo, que também teve passagem por A Nota. A revista contou ainda com Olympio de Menezes, como Diretor Artístico, e com Manuel Rebello, na função de Gerente de Oficinas. Por suas páginas desfilavam uma plêiade de homens de letras, cujos nomes estão hoje consagrados na literatura amazonense e mesmo nacional. Este é o caso de João Leda, Raul de Azevedo, Raimundo Monteiro e Péricles de Moraes, que circularam poemas e crônicas ligeiras sobre assuntos diversos na revista. Heliodoro Balbi, T. H. Vaz, Adriano Jorge, Américo Antony, Marvignier de Castro, Alfredo da Matta, Álvaro Maia, dentre outros. A forte presença de literatos reforça a opção pelo entretenimento a partir de gama diversificada de temas, sem, contudo mostrar-se uma revista de humor, embora ela alegue 79 essa faceta, como se verá adiante. Seu perfil é mais – como a congênere paulista –literário e noticioso, evitando priorizar os temas mais áridos da política. Essa opção aparece reforçada no editorial que inaugura a segunda fase: Queremos dar a essa revista uma feição instrutiva e alegre; e não daremos guarita à insinuações malévolas de quem quer que seja, porque nos sentimos suficientemente fortes para cumprir o programa que traçamos, o que faremos, ainda que a custa de maiores sacrifícios. 163 Ainda no mesmo número, a defesa de uma postura “imparcial” e afastada do campo político partidário também se explicita: “Cá e Lá não tem dependência partidária com qualquer agremiação política. É uma revista de caráter essencialmente artístico, humorístico e imparcial, agasalhando em suas colunas toda a colaboração que estiver no estalão de sua feitura”. Tais arroubos de imparcialidade são, contudo, difíceis de convencer mesmo um leitor pouco atento, tal o volume de fotografias e textos dedicados em diversas páginas às autoridades e aos políticos locais. O governador do Estado, Pedro de Alcântara Bacellar, por exemplo, aparece, num único número, quatro vezes, sendo a primeira em retrato de página inteira encimando texto elogioso (bajulador mesmo!) e em outras três fotografias, quando de suas visitas a uma fazenda no interior e ao asilo de mendicidade, além de um banquete por ele ofertado aos deputados e senadores do Estado. Cá e Lá tem, de fato, um tom conservador e até mesmo oficialesco, já que a mesma atenção dada à casta dirigente do Estado em seu primeiro número se repete em todos os outros números da revista. Quanto à ação operária, por exemplo, que à época agitava o mundo, o país e a própria capital amazonense, a revista traz uma única, breve e jocosa referência: “Greve: O que é uma greve?”, perguntam os editores, para logo a seguir sentenciar: “é, em geral, um pretexto que a gente arranja para não fazer coisa nenhuma”. 164 Como as boas revistas de sua época, Cá e Lá aposta na atração dos leitores não apenas pela excelência de seus quadros literários e jornalísticos, sobretudo pela larga utilização do recurso imagético. A análise dos poucos números que nos chegaram à mão nos permite perceber que as próprias capas da revista, embora não apresentassem um projeto gráfico elaborado, exagerava nas cores (Imagem nº 12), outra inovação tecnológica 163 164 Cá e Lá, nº 8. Manaus, 12 de maio de 1917. Cá e Lá, n º 16. Manaus, 3 de outubro de 1917. 80 que chega à imprensa apenas na virada do século XIX para o XX165. Por outro lado, os “instantâneos”, como frequentemente a revista se refere às fotografias (em geral porque tomada no calor dos acontecimentos), ocupam as páginas da revista em grande profusão, sendo as charges e as gravuras empregadas em bem menor monta. Boa parte desses inúmeros instantâneos foi empregada para ancorar a crônica local, dando conta, em geral, dos eventos importantes ocorridos na cidade durante a quinzena. Em sua décima edição uma dessas fotografias flagra a visita do Governador e dos Senadores do Estado à Universidade Livre de Manaus, deixando raro registro da audiência dos primeiros alunos e professores daquela pioneira instituição. Imagem nº 13 Fonte: Cá e Lá, nº 10. Manaus, junho de 1917. Há relativamente poucos conteúdos femininos, e a crônica de Péricles de Moraes, sobre “As Mulheres de Von Jan – a graça feminina” é muito mais uma ode à beleza feminina idealizada filtrada pelos nus artísticos do pintor holandês por ele analisado166. Nem de longe pode se afigurar como um conteúdo dedicado as mulheres, como mais tarde vai acontecer com outras revistas manauaras. No entanto, buscava também direcionar sua fala ao público feminino, como se depreende do alerta que a elas dirige: 165 166 KAZ, Leonel (Ed). A Revista no Brasil. Op. cit, p. 17. Cá e Lá, n º 16. Manaus, 3 de outubro de 1917. 81 Prevenimos as nossas gentis leitoras de que, no próximo número, começaremos a apresentar vários instantâneos colhidos onde nos aparecer. Estamos certos de que apresentaremos alguns que hão de produzir surpresa e sensação, o que há de tornar mais interessante a nossa revista.167 Imagens nº 14 e 15 Fonte: Cá e Lá, nº 10. Manaus, 09 de abril de 1917. Como conteúdo claramente destinado ao público feminino destacamos apenas a página “A Moda”, que trazia gravura de uma mulher elegantemente vestida, em primeiro plano, e um pequeno detalhes do verso da roupa, apresentado em plano inferior. A gravura era assinada por Marcial Tosca, o mesmo que atuou posteriormente em A Nota. De tosca eram também as fotogravuras que apreciam na Cá e Lá, com imagens de crianças pertencentes as principais famílias que compunham a elite amazonense. É da pena de ninguém menos que João Leda, a interessante crônica “Sem Throno e Sem Deus”, que apresenta ao público da revista os últimos acontecimentos de Revolução Russa, em especial o episódio da derrubada e prisão de Nicolau II, a quem o cronista reputa admiração pelo aspecto “caritativo e benevolente”, atribuindo a isso o fato do Czar 167 Cá e Lá, nº 8. Manaus, 12 de maio de 1917. No número seguinte surge, ao invés das fotografias anunciadas, um pedido de desculpas, novamente ancorado nos já mencionados problemas técnicos: “A nossa boa vontade não conseguiu vencer as dificuldades que surgiram para este número do Cá e Lá. A falta de chapas de papel fotográficos, que não havia na praça, impediram-nos de apresentar os clichês de sensação, os quais sairão no próximo número”. Cá e Lá, nº 9. Manaus, 26 de maio de 1917. Com efeito, o número seguinte da revista (10) trouxe em uma de suas páginas um desses instantâneos, flagrando uma senhora acompanhada de uma criança andando numa das ruas da cidade. (Imagens nº 14 e 15). 82 não ter sido (naquele momento – hoje sabemos!) morto pelos rebeldes. O título é já uma clara alusão aos lemas anarquistas, cujos seguidores no Brasil já faziam ações de impacto nas principais cidades brasileiras.168 Leda manifesta, contudo, uma posição de certa simpatia ao movimento, sem o condenar efetivamente, mas não o identifica ainda com muita clareza do ponto de vista da orientação político-ideológica. Como ele mesmo registra: “não se pode garantir a autenticidade da notícia, porque ninguém sabe, com absoluta certeza, o que ocorre nos dias presentes no ex-império moscovita”.169 Assim, pelas crônicas de João Leda170 e de outros intelectuais e jornalistas atentos às mudanças vertiginosas que ocorriam nos quatro cantos do planeta, Ca e Lá realizava um dos sonhos dourados da modernidade, a comunicação “instantânea” de eventos que, em poucos dias ou mesmo em poucas horas, percorriam o globo através do telégrafo e das recentes agências internacionais de notícias. Tanto quanto nas vitrines das lojas sofisticadas da capital amazonense, Cá e Lá anunciava as novidades do mundo. As outras revistas de variedades que sucedem Cá e Lá e que chegaram a produzir dezenas de números e mesmo a adquirir notoriedade na História da Imprensa amazonense, surgem já na década de 1920, momento singularizado pela historiografia regional como sendo caracterizado pela grande crise e profunda depressão econômica, causado diretamente pela perda do monopólio amazônico na produção e no comércio mundial da borracha. Como temos salientado, o modelo econômico que contribuiu para a transformação da cidade de Manaus – a economia de exportação da borracha – foi extremamente efêmero, declinando após duas décadas de expansão. Assim, se os anos de 1908 e 1909, foram marcados pela maior alta que produto teve no mercado internacional, os anos posteriores foram marcados por irreversível período de crise, cujo início já se anunciava com clareza 168 Para uma abordagem acerca da trajetória das idéias e ações anarquistas no Brasil, cabe conferir: HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, Nem Patrão!. 3ª ed. São Paulo: Unesp, 2002. 169 Cá e Lá, nº 9. Manaus, 26 de maio de 1917. 170 O próprio João Leda seria homenageado na revista, que o distinguia “por ser o jornalista enérgico e inteligente, que nós já temos visto, com pulso de ferro, traçar o artigo doutrinário e de combate, ou de escrever em estilo, em que a singeleza artística se casa com o encanto da frase, aquelas crônicas de verdadeiro mestre, tão elogiadas, há muitos anos, por todos os que apreciam as boas letras”. Cá e Lá, n º 16. Manaus, 3 de outubro de 1917. 83 em 1910, momento em que a cotação da borracha despencou.171 Paul Singer, avaliando o impacto dessa retração e explicando a origem da crise, argumenta: Basta dizer que o Brasil, no auge da sua produção entre 1901 e 1910, exportava em média não mais que 34.508 toneladas de borracha ao ano. Uma demanda de cerca de 70.000 toneladas jamais poderia ser satisfeita pela mera exportação dos seringais selvagens [...] . É por isso que não se tentou o plantio na Amazônia [...] só interessava que o novo modo de se produzir borracha fosse estabelecido dentro das fronteiras do Império Britânico. 172 Essa situação se depressão se manteve inalterada até o início da década de 1940, quando a Amazônia passou novamente a ser encarada como reserva viável e disponível para abastecer o mercado internacional do produto, sobretudo para atender a demanda exigida pela II Guerra Mundial, gerando no contexto local uma mobilização de trabalhadores e nova onda migratória que depois se consagrou como um importante episódio da chamada “Batalha da Borracha”. 173 Como não poderia deixar de ser, para a Imprensa este período que se abre com a crise da borracha é também um momento de forte retração. Pinheiro afirma em sua tese que a imprensa amazonense mostrou claros sinais que evidenciam o impacto da nova conjuntura, o que provocou “uma retração brutal do número de títulos [de periódicos] veiculados no Estado”.174 3. UM FAZEDOR DE REVISTAS E SUA REDEMPÇÃO De qualquer forma, mesmo bastante retraída a atividade jornalística se manteve, embora agora ancorada apenas em poucos títulos mais bem estruturamos do ponto de vista empresarial e financeiro. Redempção, uma das mais importantes revistas de variedades no 171 SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia (1800-1920). Op. cit., p. 208. Cabe também conferir: CAPELATO, Maria Helena e PRADO, Maria Lígia. A Borracha na Economia Brasileira da Primeira República. In: FAUSTO, Boris (Org). História Geral da Civilização Brasileira. Vol. 8. São Paulo: Difel, 1975, p. 300-302. 172 SINGER, Paul. O Brasil no Contexto do capitalismo Mundial. In: FAUSTO, Boris (Org). História Geral da Civilização Brasileira. Vol. 8. São Paulo: Difel, 1975, p. 361. 173 Veja-se o recente e importante livro: GONÇALVES, Adelaide e COSTA, Pedro Eymar Barbosa (Orgs). Mais Borracha para a Vitória. Fortaleza: Mauac/Nudoc; Brasília: Ideal gráfica, 2008. Importante também é o livro de: CORRÊA, Luiz de Miranda. A Borracha da Amazônia e a II Guerra Mundial. Manaus: Edições Governo do Estado, 1987. 174 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Op. cit., p. 63 84 Amazonas, foi fruto desta época, e exatamente por isso não deixava de registrar e denunciar, a todo o momento, este contexto de dificuldades quase infindáveis. Por outro lado, a marca maior da revista esteja talvez na crença de que o Amazonas, sendo potencialmente rico, poderia recuperar novamente seu desenvolvimento. O momento era, portanto, de superação, de redenção, enfim, do Estado do Amazonas. O editorial do primeiro número da revista externa esta inquietação: Redempção – O próprio nome da revista explica os motivos de seu aparecimento, quando o Amazonas se apossa das chaves misteriosas que hão de abrir as portas de bronze de seu grande povir, até agora trancadas por fatores sob vários pontos removíveis. Na luta hercúlea, cristalizando as forças palpitantes do Estado, não poderia ficar em olvido o elemento intelectual, que as movimenta e se esconde, que as ilumina e se oculta na sombra, ao guante de preconceitos absurdos. Além dessa promessa em si respeitável, assume esta publicação de responsabilidade para esta magnífica terra, - a elevada responsabilidade de fazer-lhe a propaganda no país e no estrangeiro. Será também um repositório fiel do nosso movimento, mostrando aos interessados, como um espelho nítido, os vários prismas em que se reparte a nossa vida econômica e financeira. Não temos um programa restrito: as nossas paginas estão abertas às múltiplas manifestações do pensamento. Mas julgamos ser de máximo proveito para um Estado novo a explicação de suas riquezas, de suas reservas: daremos preferência a assuntos puramente regionais. E não vemos nessa forma de agir uma estreiteza de métodos. Antes de compreensão do nosso tempo e do papel que nos compete na defesa do nosso lugar ao sol. A hora, que atravessamos nervosamente, é rara: a História não a reproduz muitas vezes. Estamos no dever de aproveitá-la com amor, defendê-la com sangue, segui-la com entusiasmo: é o que pretendemos fazer nestas colunas, abertas à exaltação de nossas cousas. Dizemos assim conscientemente, sem desvio de sentido, de falar no Amazonas, após tanta amargura, é uma divina e sagrada exaltação, bastante para se redimir todas as audácias e desculpar todos os sacrifícios. O aparecimento de REDEMPÇÃO, com tantos os empecilhos a vencer, sem faltar mesmo a indiferença do meio é, por certo, um sacrifício e uma audácia. Mas a vida só é bela com esses arrojos, que a dignificam, e nós queremos viver...175 Redempção, na verdade, veio à luz no dia 24 de novembro de 1924, num período conturbado no Amazonas, em que o Estado acabava de enfrentar um dos mais importantes movimentos de agitação popular ocorridos nos anos vinte em todo o país: uma rebelião tenentista, que igualmente anunciara um tempo novo de remissão para o Amazonas.176 Anos depois, a revista faria uma homenagem aos combatentes da rebelião, por ela chamados de “heróis”. (Imagem nº 16). 175 Redempção, nº 1. Manaus, 24 de novembro de 1924. SANTOS, Eloína Monteiro. A Rebelião de 1924 em Manaus. Manaus: Editora Calderaro/Suframa, 1985. O ápice do movimento, como salienta a autora, ocorreu entre os meses de julho e agosto, justamente durante a administração do tenente Ribeiro Júnior (p. 83). 176 85 Diferente das primeiras publicações do gênero que surgiram em Manaus, como Pontos nos ii, A Nota, e mesmo Cá e Lá, Redempção surge num cenário altamente competitivo e onde os espaços para improvisação se mostraram mais limitados pela crise. Clóvis Barbosa, figura emblemática no interior da história da Imprensa no Amazonas exatamente por ter se idealizado e publicado revistas importantes ao longo de sua vida, sabia muito bem que o sucesso de um empreendimento desse gênero ia muito além da estratégia de vendagem por assinaturas, precisava também de boa dose de ousadia. Por essa razão, Clovis Barbosa pensou Redempção, talvez sua mais importante revista, como um empreendimento que podia galgar espaços mais amplos que o contexto regional, embora dele a revista falasse com exclusividade. Imagem nº 16 Fonte: Redempção, nº 29. Manaus, 23 de julho de 1931. Assim, a revista Redempção já surge com a proposta de atender não apenas ao público local e interiorano do Estado, mas acima de tudo, focava também o leitor nacional e mesmo estrangeiro, apresentando-se como uma porta por onde uma Amazônia ainda repleta de mistérios e fascínios se abria à curiosidade do mundo. Com efeito, ela foi, por 86 muito tempo, veiculada nas outras capitais do Brasil e até mesmo em algumas cidades do exterior. Imagem nº 17 Fonte: Redempção. Manaus, 1924-1932. A leitura de seus editoriais permite perceber seus objetivos centrais da revista partem do necessário restabelecimento de um diálogo entre nação e região177, apartado, contudo, das névoas de desconhecimento acerca da Amazônia que tanto haviam dificultado e que ainda dificultavam as ações do Governo Federal no contexto regional e em especial no Amazonas. Redempção traz assim, a marca do profundo ressentimento que tanto marcou a elite amazonense associada à produção e exportação da borracha em relação à uma (suposta ou efetiva) omissão do governo central em não buscar a adoção de medidas efetivas – como as empregadas para retardar e atenuar a crise do café178 – que impedissem a derrocada do produto no mercado mundial, limitando-se tardiamente à adoção de 177 Tais tensões são, de fato, antigas, e remontam mesmo ao processo de constituição do Estado Nacional brasileiro, conforme se percebe em: PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. De Vice-Reino à Província: tensões regionalistas no Grão-Pará no contexto da emancipação política brasileira. Somanlu – Revista de estudos Amazônicos, v. 1, n º 1, 2000, p. 83-107. 178 Cf: FAUSTO, Boris. Expansão do Café e Política Cafeeira. In: FAUSTO, Boris (Org). História Geral da Civilização Brasileira. Vol. 8. São Paulo: Difel, 1975, p.193-248. 87 medidas extemporâneas e inócuas, como foi a criação do Plano de Defesa da Borracha, em 1912, já no governo de Hermes da Fonseca.179 Por tais motivos Redempção busca denunciar os preconceitos e absurdos relacionados ao Amazonas e que ainda se viam presentes fora do Estado. Na contramão de tais ideários, buscava exaltar as qualidades e potencialidades econômicas da região amazônica. No plano mais direcionado ao ambiente regional e local, a revista procurou fazer a crônica dos acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais que tinham por palco não apenas o Amazonas, mas o conjunto da região. Esse projeto multifacetado parece fazer parte de um novo momento da Imprensa brasileira percebido por Nelson Werneck Sodré, para quem, à medida que as relações capitalistas tendiam a se consolidar, na imprensa o espaço que antes era destinado à divulgação literária vai perdendo espaço para que uma Imprensa de Informação, ou noticiosa, se estabeleça: Tais alterações serão introduzidas lentamente, mas acentuam-se sempre: a tendência ao declínio do folhetim, substituindo pelo colunismo e, pouco a pouco, pela reportagem; a tendência para a entrevista, substituindo o simples artigo político; a tendência para o predomínio da informação sobre a doutrinação; o aparecimento de temas antes tratados como secundários, avultando agora, e que ocupam o espaço cada vez maior, os policiais como destaque, mas também os esportivos e até os mundanos. 180 Sodré percebia esta tendência como já ocorrendo no início do século XX, quando, como argumentou, o espaço editorial reservado à produção literária nos jornais foi progressivamente diminuindo na imprensa das mais importantes capitais do País. Mas como em Manaus o percurso da imprensa foi diferenciado e tardio, frente ao que acorria no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, é possível argumentar que ainda na década de 30 o periodismo com forte atenção à literatura ainda dividisse teimosamente espaços com outras modalidades mais informativas, até mesmo por que, de acordo com Maria Luiza Ugarte Pinheiro, a imprensa periódica em Manaus tornou-se um canal privilegiado por onde os homens de letras passaram a ganhar visibilidade e reconhecimento e, além do mais, são esses homens que vão dominar por muito tempo a imprensa amazonense. 181 179 OLIVEIRA, Adélia Engrácio de. Ocupação Humana. In: SALATI, Eneas et al. Amazônia: desenvolvimento, integração, ecologia. São Paulo: Brasiliense/CNPq, 1983, p. 248. 180 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Op. cit., p. 207. 181 PINHEIRO. Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Op. cit., p. 57-90. 88 Dessa forma, a revista Redempção abriu grande espaço ao campo literário, passando a divulgar as múltiplas manifestações do pensamento criativo da intelectualidade constituída não apenas por amazonenses, mas também por intelectuais de fora residentes em Manaus. Em seu segundo número, a revista reafirmava o desejo de “publicar trabalhos firmados pelos nomes já consagrados de Péricles Moraes, Álvaro Maia, Adriano Jorge, Raymundo Monteiro, Aloysio de Carvalho Filho, João Leda e Lincoln Prates”.182 Com efeito, esse espaço destinado à literatura foi uma de suas principais temáticas, principalmente na primeira fase. Embora não se tenha fechado na discussão literária, a revista tornou-se em Manaus um ambiente dileto dessa discussão e externou que a grande efervescência literária da época não estava circunscrita à Capital do País e à meia dúzia de outras grandes cidades. Redempção possibilitou, contudo, que a intelectualidade local reproduzisse minimamente em Manaus um ambiente literário que se não era semelhante ao do Rio de Janeiro, nele se espelhava vigorosamente. Pinheiro argumenta: Não é difícil entender a paixão quase obsessiva pela “metrópole”... o termo foi usado por Péricles para se referir aos espaços de produção e difusão literária que fluía em seu máximo vigor. Na impossibilidade de Paris, era o Rio de Janeiro que acalentava o sonho da intelectualidade regional. Sendo o foco das atenções, foi nesses espaços centrais que o talento e o brilho intelectual alcançaram maior probabilidade de ser reconhecido. 183 Clóvis Barbosa, proprietário e editor da revista Redempção assumia a projeção da literatura em geral e da amazonense em particular como missão, mostrando um engajamento muito forte no meio literário amazonense que, como se vê pela tese de Pinheiro, estava antenada com as principais tendências literárias mais gerais de sua época. É o próprio Clovis Barbosa quem defende o campo literário ao argumentar a pouca atenção que a ela ainda se dava não apenas no Amazonas, mas em todo o Brasil: “a literatura é uma flor exótica no nosso meio. O Brasil, que ainda não teve tempo de pensar, não pode ter uma literatura, porque esta vem depois do seu pensamento – é o requinte, o êxtase, o caráter formado, as idéias formuladas, o espírito em caminho da perfeição e, portanto, da decadência da morte”.184 182 Redenção, nº 2. Manaus, dezembro de 1924. Não apenas à capital federal, mas ainda também à Paris, que por todo início do século XX continuaria uma espécie de Meca da literatura. Cf: PINHEIRO. Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Op. cit., p. 104. 184 Redempção, nº 2. Manaus, 7de janeiro de 1931. 183 89 Clovis Barbosa foi escritor, professor, jornalista, funcionário público e sócio correspondente da Academia de Brasileira de Letras. Nasceu na Paraíba em dia 18 de julho de 1904, sendo filho de João Alves Barbosa e de Severina da Silva Barbosa. À ele coube também a criação e direção de outras revistas, de feição literária, como Equador e A Selva185. Esse engajamento e dinamismo de Clovis Barbosa, que encantou gerações, encontra na pena de padre Nonato Pinheiro um reconhecimento de valor pelo muito que fez à produção literária amazonense: Cultor e benemérito das letras, não só pelo que produzia, da melhor cepa literária, vigor do estilo e beleza de sua expressão, em artigos de vivos planejamentos, mas ainda pelo incentivo que dava aos novos e a aberta acolhida que propiciava, em suas lindas revistas. 186 Durante os anos que viveu em Manaus, Clóvis Barbosa se envolveu de forma intensa no meio literário amazonense, fomentando-o sempre que pode. Segundo Abguar Basto, Barbosa era um homem de sólidos conhecimentos literários que se irmanara com o movimento modernista de 22, mantendo forte contato com Mário de Andrade através de visitas e correspondências. Da relação com Clovis Barbosa, Abguar Bastos ressalta: 187 Nossa afinidade estava, assim, ditada pela fraternidade das posições modernistas. Entrei a colaborar em suas revistas. E passamos a aliciar os que estavam começando a lidar com as letras, porém, com talentos incontestes. A geração que florescia a partir de 1924 tinha em Clóvis o pioneiro, o que rompia caminhos, o que abria as suas revistas em leque para todas as formas de pensamento e, assim, forçando o debate e acionando grandes discussões literárias.188 O talento intelectual e a ousadia empreendedora de Clóvis Barbosa não foram, contudo, suficientes para impedir a ocorrência de crises e interrupções em seus projetos editoriais. Assim, como Cá e Lá, Redempção conheceu também duas fases distintas, sendo que a primeira começou em 24 de novembro de 1924 e se estendeu até o final de novembro de 1927. Embora externasse a pretensão de ser mensal, apresentou periodicidade bastante irregular e nesses quatro anos que marcaram a primeira fase, a revista tirou apenas quatorze números. O número de páginas mostrou-se igualmente variável, girando em torno 185 ROCQUE, Carlos. Grande Enciclopédia da Amazônia. Op. cit., p. 248. A Crítica. Manaus, 27 de fevereiro de 1985. 187 O Escritor. Junho/Julho de1934. 188 Idem. 186 90 de trina a quarenta páginas em cada exemplar. Portanto, nessa fase foi comum existir interrupções prolongadas, uma delas chegando a alcançar seis meses. Este aparecimento da revista em duas fases mostrou-se, na verdade, uma tendência, já que ocorreu nas quatro principais revistas de variedades que circularam em Manaus na primeira metade do século XX – Cá e Lá, Redempção, Rionegrino e Sintonia – e demonstra cabalmente as dificuldades que tais empreendimentos enfrentavam para cumprir o planejamento e a periodicidade inicial anunciada. Interrompida em 1927, Redempção volta a circular em uma segunda fase, em janeiro de 1931, encerrando sua trajetória no final do ano seguinte, novembro de 1932. Nesta fase, já bem mais estruturada, foi semanal, embora voltasse a ocorrer intervalos longos, como o que aconteceu entre a publicação do número 30 para o 31, que alcançou nada menos que cinco meses. Em que pese os percalços frequentes, a revista voltara, de fato, mais ligeira e modesta, com os exemplares desta fase contando com um número de páginas bem menor (12 páginas) que os da fase anterior. Durante a pesquisa surgiu para nós a questão do por que a revista teria sofrido esta interrupção. O seu esclarecimento nos chegou, todavia, pela própria fala de seu proprietário e diretor, que dá a entender que os motivos da interrupção da revista não havia sido apenas financeiro, como suspeitávamos, mas também político. Assim, em matéria esclarecedora intitulada “Adeus, São Luiz”, Clóvis Barbosa justifica seu afastamento não apenas do jornalismo Baré, mas da própria cidade de Manaus: Quando a política do Sr. Ephigenio Sales me fechou todas as portas para a subsistência da minha vida modesta, em virtude das criticas minhas contra as imoralidades administrativas do seu sobrinho o pobrediabo José Victor, saí pelas cidades do Norte, feito caixeiro-viajante das letras amazônicas. Fiz conferências com entradas pagas. Nesse tempo os medalhões e os jornais de Manaus bayattonom (sic) minha sensibilidade rebelde. Nunca hei de esquecer-me o convívio com que o coração e o espírito de Belém e de São Luiz me dignificaram. Esta página, divulgada carinhosamente pela imprensa maranhense, é reproduzida aqui pela insistência indiscreta duma imensa saudade.189 Em sua primeira fase, a revista teve como primeiro Diretor-Gerente Agesilau de Araújo, cuja família atuou na cidade de Manaus à frente de uma importante casa aviadora, 189 Redempção, nº 3. Manaus, 15 de janeiro de 1931. 91 fazendo invejável fortuna, mesmo após a crise da borracha. Essa colaboração deixa de existir a partir do número quatro, quando o cargo passa a ser ocupado também por Clóvis Barbosa, que já aparecia como Proprietário da revista. Posteriormente, a gerência da revista foi ocupada por outros colaboradores, como Ernesto Viana, H. Silveira e Satyro Barbosa, enquanto uma sub-gerência foi ocupada por Manuel Barbosa. Se na primeira fase da revista Redempção há intensa colaboração de outros intelectuais, na segunda, Clóvis Barbosa parece ter assumido integralmente a organização da revista. Segundo seus amigos e admiradores, Barbosa era dono de uma personalidade marcante, sendo capaz, como comenta Machado Coelho, de adotar posturas dualistas: “Tira a camisa do corpo e o dinheiro do bolso para servir o companheiro. No segundo [seguinte] a bengala e o florete para combater o adversário”. 190 A dedicação que Barbosa depositava nas letras contribuiu para que ele conseguisse atuar em outras áreas como professor de português no colégio Dom Bosco e como jornalista no Diário Oficial e no Jornal do Comércio, profissão que exerceu, como muito de sua época, à margem do emprego formal. Foi funcionário do Ministério da Justiça, trabalhando como representante deste órgão na Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e, como afirma Ulysses Bittencourt, “raros sabem de sua silenciosa e eficaz participação nos trabalhos preliminares à criação da Zona Franca de Manaus, como representante da SPVEA”.191 Mas mesmo naquele órgão (SPEVEA), não descuidou do cultivo das letras e, segundo relato de João Malato, chegou a organizar ali uma série de estudos importantes sobre a Amazônia: Reuniu um material a altura dos seus propósitos, indo buscá-los nos arquivos mais requintados recatados do Itamarati, de onde recolheu o monumental relatório de Euclides da Cunha sobre sua missão delimitadora no Peru. Estudos regionais, monografias, relatórios científicos, bosquejos históricos. Impressões naturalistas, diários de exploradores (...) [Organizou] a chamada “Coleção Araújo Lima” que compreende uma série de 12 trabalhos primorosamente editados. Pertencem a essa série os magistrais estudos “A Bacia do Mar Doce”, de Alberto Rangel; “A Conquista Acreana”, de Abguar Bastos; “Os Intérpretes da Amazônia” de Péricles Morais; “Navegação e Portos da Amazônia” de Agnelo Bittencourt. 190 191 Pará Ilustrado. Belém, 24 de julho de 1960. A Crítica. Manaus, 13 de setembro de 1984. 92 A série denominada “Coleção Pedro Teixeira”, é outro escrínio de boas obras, como “Rio Purus” de Euclides da Cunha; “A Expansão Portuguesa na Amazônia” de Arthur Reis; “A Estrada de Ferro Madeira Mamoré” de Julio Nogeira; a “Expedição ao Rio Branco” de Hamilton Rice; e “Aspectos Econômicos da Dominação Portuguesa na Amazônia” de Arthur Reis. Há ainda a “Coleção dos Clássicos Amazônicos” na qual configura o nosso conterrâneo Edolfre Moreira, com um estudo sobre Alfredo Ladislau; e Sócrates Bonfim com um “Esboço da Vida Amazônica”. Independentemente dessas edições de grande envergadura, imprimiu-se ainda uma “Coleção de Grandes Cadernos Belém-Brasília”, contendo as mais famosas reportagens que a imprensa brasileira publicou sobre os trabalhos da grande rodovia nacional. E de par com a importância intrínseca dos trabalhos, respira-se deles a originalidade e feitura, o carinho da montagem gráfica, o esmero da distribuição da matéria, o fascínio e a leveza da apresentação de cada uma das obras, e que dizem o esforço e da luta pessoal que Clóvis Barbosa teve de enfrentar para conseguir, com tão pouco o que ninguém conseguiria.192 Este espírito articulador é um dos traços mais marcantes da personalidade de Clóvis Barbosa e também foram decisivos para manutenção da Redempção e de outras suas revistas. Buscava apoio governamental, do comércio, dos intelectuais e a elite manauara, sempre por ele representada em Redempção. Imagem nº 18 Fonte: Redempção, nº 5/6. Manaus, março/abril de 1925. 192 A Crítica. Manaus, abril de 1961. 93 Com efeito, essa elite regional era constantemente cortejada na revista, que mostrava seus espaços de sociabilidade, os principais salões de festas da cidade, as datas natalícias, as homenagens aos nomes fortes da burocracia do Estado. Aqui também os indícios nos levam a pensar em que parte substancial da revista Redempção era, de fato, dedicada a uma espécie de notícia que configura hoje o que se chama mais vulgarmente de colunismo social. Além de exímio angariador de recursos, Barbosa lançou mão de outras estratégias ao longo da publicação com intuito de aumentar sua vendagem e amplificar suas finanças. Os concursos, já anteriormente utilizados na imprensa como estratégia de vendagens, voltam a carga em Redempção. Em Manaus, fazia-se concurso de tudo: da jovem mais bela, da mais elegante, a criança mais bonita, da melhor fantasia ou do melhor figurino, do melhor poeta da cidade, etc. Para votar nos candidatos de sua preferência os leitores tinham que comprar um exemplar, uma vez que as fichas de votação (cupons) vinham encartadas na revista. Imagens nº 19 e 20 Fonte: Redempção, nº 8. Manaus, 21 de fevereiro de 1931. Fonte: A Nota, nº 2. Manaus, 2 de setembro de 1917. Em 1917, A Nota já havia satirizado essa estratégia, muito utilizada pelo jornal O Tempo, em uma de suas charges. A estratégia, embora voltada para todo o público leitor, encontrava nas famílias abastadas um filão promissor, já que tais famílias mostravam-se frequentemente desejosas de reconhecimento e prestígio social. 94 Material e editorialmente a revista contava com colaboradores ilustres que se encarregavam de divulgar assuntos de interesse geral. Mesmo diante dessas características, Clóvis Barbosa desde o início da publicação da revista teve que driblar alguns empecilhos, sendo um deles o valor dos custos com a mão-de-obra, como se percebe em um de seus desabafos: “o nosso destino abismava-se ante o preço exorbitante e quase sempre justificável da mão de obra, a nossa vida dificultava-se ante a pequenez das nossas posses financeiras, o nosso equilíbrio era dubitável como a palavra de um político”. 193 Além do apoio oficial, o comércio local foi um dos maiores financiadores da revista, contribuindo com a compra de assinaturas e anúncios, o que serviu para amenizar os obstáculos que a revista Redempção teve de superar. Em todos os períodos de publicação da revista, as propagandas ganhavam espaços entre as matérias ou mesmo páginas inteiras, além de frequentemente ocuparem também a frente e o verso das capas traseiras da revista. Utilizando-se dos meios de visualização gráfica, em especial da fotografia, a revista passou a desde cedo divulgar imagens de estabelecimentos comerciais também em suas matérias, quase sempre dos principais financiadores. Em 1927, nada menos que quarenta por cento das páginas de Redempção destinavam-se à publicidade paga. Essa dependência financeira foi sempre tão acentuada, que em uma de suas edições, Barbosa decidiu homenagear o comércio local, estampando em sua capa a fotografia do Coronel Joaquim Carneiro da Motta, então o presidente da Associação Comercial do Amazonas e, ali mesmo fazendo a seguinte saudação: “Resolvemos homenagear o operoso Comércio de Manaus, esse Comércio que nos tem amparado, protecionando-nos com anúncios, com assinaturas, com exemplos de labor, e dando-nos provas eloqüentes de sua simpatia”.194 Como fizeram outros periódicos, Redempção publicou em suas próprias páginas comentários veiculados por outros órgãos da imprensa local, em sua quase totalidade, elogiosos à edição e à seu editor. Mas o sucesso da revista também incomodou, em geral aqueles empreendimentos do gênero que se viam como concorrentes, sem contudo terem adquirido o prestígio dos magazines de Clóvis Barbosa. Este é o caso de outra revista de variedade por nós adiante analisada: O Rionegrino. Nela emerge um tom ressentido e depreciativo diante das potenciais rivais: “Tomamos a deliberação de convidar essa briosa 193 194 Redempção, nº 5/6. Manaus, março/abril de 1925. Redempção, nº 3. Manaus, janeiro de 1925. 95 falange de moços futuristas, em virtude dos boatos propalados por certa imprensa enxerida e besta de que as únicas revistas de Manaus são uma tal de ‘Amazonida’ e outra tal de ‘Redempção’”. 195 Ressentimentos a parte, o sucesso da publicação de Clóvis Barbosa não estava garantido apenas pelo apoio e adesão dos intelectuais da época e foi necessário que a revista caísse no gosto popular. De acordo com a publicação, a comercialização inicial da revista foi bem sucedida, já que os primeiros exemplares tiveram tiragem de três mil cópias – um número bastante significativo para aquele contexto! – que rapidamente se esgotaram, a se levar em consideração o que registraram seus editores: REDEMPÇÃO ufana-se de ter sido carinhosamente recebida nas rodas cultas do Amazonas, e pela imprensa brasileira. E a presteza com que vimos esgotada a grande edição do seu primeiro numero, diz, com eloqüência, do interesse da nossa gente vem tomando pelas iniciativas elevadas, honestas, e úteis à terra querida em que vivemos. 196 Corroboramos essa boa acolhida com a notícia veiculada no Jornal A Liberdade, editado e dirigido por Júlio Benevides Uchoa, que traz o seguinte depoimento: Temos sobre nossa banca de trabalhos a elegante revista Redempção. Tudo nesta revista patenteia o bom gosto e a elegância. Ilustrada com inúmeras gravuras, no seu texto se lêem artigos escritos pelas penas mais fulgurantes do nosso meio intelectual, constituindo a Redempção um orgulho para a nossa terra. Agradecemos o exemplar que nos foi oferecido. 197 Na época em que o mercado exigia da produção periódica a inserção das novas tecnologias, a revista Redempção impressionava o público e a própria imprensa local por suas qualidades gráficas e editoriais, apresentando layout moderno e profusamente ancorado em belíssimas gravuras e fotografias. Na grande maioria das vezes a utilização da fotografia em Redempção privilegiou três grandes assuntos, sendo o primeiro constituído pelas belezas da cidade, nelas enfatizando seus recantos e principais pontos turísticos, como a Estação de Bonds na Praça Oswaldo Cruz, o Seringal Miry, a Praça São Sebastião, o Teatro Amazonas e a Avenida Eduardo Ribeiro. O segundo alvo das lentes de Redempção foram as festas, os banquetes e 195 O Rionegrino, nº 4. Manaus, 20 de fevereiro de 1928. Redempção, nº 2. Manaus, dezembro de 1924. 197 A Liberdade. Manaus, 28 de novembro de 1924. 196 96 as celebrações, bem como seus salões e espaços, quase sempre elitizados. O terceiro foco, profusamente difundidos pelas páginas de seus números, fazia uma espécie de crônica fotográfica dos membros da elite amazonense e/ou dos notórios residentes em Manaus, fossem empresários, comerciantes, políticos e/ou funcionários de alto escalão do estado, além de suas esposas, filhos e agregados. Neste último rol podemos incluir ainda o perfil de diversos jornalistas e literatos que animavam o circuito das letras na capital amazonense. Em 1925 a revista chega a fazer um concurso dedicado a eles, solicitando que o público indicasse qual seria o “Príncipe dos Poetas Amazonenses”, “aquele que, brandido os dedos pela lira heróica, Interpreta as nossas belezas e os nossos anseios neste dealbar de vida.198 Embora tenha professado autonomia, imparcialidade e independência diante do campo político199, a revista colocou-se também a serviço da propaganda política, não escondendo simpatias pelas autoridades políticas do Estado, fossem governadores, interventores ou chefes de polícia. Redempção não tinha um programa restrito e nem muito bem definido como a grande maioria das revistas de variedades em Manaus, talvez por isso mesmo ela tenha se consagrado como a mais importante surgida neste gênero em Manaus, pela profusão de assuntos que buscou discutir. Sua única clara priorização eram os assuntos regionais, com destaque à recuperação da economia amazonense e à proposição de caminhos para o desenvolvimento, a defesa da revitalização da economia da borracha, além da comercialização de novos produtos, em especial fruto de um fomento necessário à agricultura de gêneros. Assim, em muitos de seus números há artigos técnicos de agrônomos e economistas discutindo essa pauta, notadamente a agricultura de subsistência, a melhoria nos meios de transporte e o plantio racional da hevea: Voltando às possibilidades agrícolas das nossas terras o desvelo que nos merecem os empreendimentos de tal natureza, temos sido ao mesmo tempo propugnadores da cultura e exploração racionais da seringueira, assim como já nos tornamos arauto da grande cultura do algodão e do aproveitamento regular das nossas exuberantes florestas... Qualquer que seja a conseqüência dos nossos erros e o resultado falível das nossas esperanças, somos de opinião que ao Amazonas ainda 198 Redempção, nº 4. Manaus, fevereiro de 1925. Diz ela em um de seus primeiros números: “O nosso programa repeliu, desde as primeiras palavras de apresentação qualquer comentário que redundasse em politicalha, a chaga tremenda que desnerva e cancera os povos fortes equilibrados”. Redempção, nº 3. Manaus, janeiro de 1925. 199 97 restam recursos que não devem ser menosprezados, e que muito nos cumpre ainda fazer para reabilitação do nosso nome à face dos nossos irmãos federados... O ouro negro, o ouro branco e o ouro verde, tríplice conjunto de nossas riquezas, poderão um dia fazer ressurgir entre nós, em plena florescência do século, o antigo país do El Dorado, hoje esquecido da memória dos poetas.200 Os animadores de Redempção viam no contexto da grande crise a oportunidade de retomar as atenções do capital internacional, desde que se fizesse um trabalho sério de divulgação das potencialidades das reservas naturais (onde incluíam ainda a borracha como principal produto), para assim subsidiar um novo desenvolvimento regional. Mas não escondem um forte saudosismo e a esperança da revitalização da economia da borracha: É bem justificada a ansiosa expectativa do comércio local pelo rumo que venham a tomar as grandes transações de borracha nos dois principais mercados consumidores. Às portas de uma safra, que promete ser opulentíssima, pela entrada de considerável número de trabalhadores novos e pela circunstância de haver a seca represado nos altos rios apreciável quantidade de produtos, não é sem imenso receio, cimentado ainda em maior esperança, que o comércio aviador aguarda, nervosamente, a marcha ascendente ou depressiva dos preços. De uma procura que ultrapasse as reservas, ou da readoção do plano Stevenson, cujos efeitos tanto alarmaram os mercados norte-americanos, virá sem duvida, a cotação salvadora. Um caso e outro, porém, constituem dois grandes pontos de duvida. Apesar dos mais recentes cálculos estatísticos e das previsões ultimamente divulgadas, ainda é cedo para acreditar-se na vigência da primeira hipótese. Por certo, mais tarde, ela se produzirá com inevitável fragor. Para isto basta que consideremos o panorama da industria gomífera, de há vinte e cinco anos a esta data. Em começo, nossa produção de 30.000 toneladas supria todas as necessidades mundiais e hoje, pouco mais de vinte anos após, requerem os industriais da borracha 500.000 toneladas! Pode-se mesmo dizer que a aplicação da fibra elástica se universalizou como do algodão, devendo, pelo montante de seu consumo e variedade de sua utilização, colocar-se à ilharga deste, como um dos fatores primordiais da economia humana. Resta-nos a segunda aplicação do método restritivo de Steveson. Será ela viável? A imensa celeuma e as intermináveis ameaças, que essa medida provocou da parte dos fabricantes e do governo americanos não aconselharão, desta vez, o seu afastamento definitivo? A interrogação permanece, e com ela, a ansiedade da praça, até em que se transforme em decepção ou vitoria.201 200 Redempção, nº 2. Manaus, dezembro de 1924. Redempção, nº especial. Manaus, 1926. O Plano Stevenson, citado na matéria, foi posto em prática entre 1922 e 1928 e visava “regulamentar a exportação de maior ou menor quantidade de borracha, intervindo indiretamente na produção”. CAPELATO, Maria Helena e PRADO, Maria Lígia. A Borracha na Economia Brasileira da Primeira República. Op. cit., p. 306. 201 98 A imagem que a revista elaborou para mostrar ao público foi a de um Amazonas que, depois de dez anos de amargura, ressurgia. Quando ela se refere à palavra crise é para apresentá-la como uma etapa superada. Para ela o ano de 1925 era esperado como aquele que marcaria o início da revitalização da economia local, embora não pudesse indicar que resultados efetivos essa revitalização traria: Esta hora suavíssima, que os dedos do tempo vão desfiando em surdina, a alma jovem da terra amazônica vibra num alto resplandecimento, saudando uma era de paz e de trabalho, em que se reconfortam as energias perdidas e se remodelam os processos de luta pela felicidade coletiva. Bendita, divina hora! Amargos foram os sofrimentos passados, afim de que ela chegasse um dia, como um bálsamo, e viesse, por um só ato humanitário, enxugar a lagrima e provocar riso. Já os humildes respiram o ar puro das regiões saneadas, onde a tirania pantanal exuda miasmas asfixiantes de miséria e morte. A terra estremece, à maneira de uma noiva ansiosa, para receber o beijo da Liberdade, que lhe fugia há muito, e é tão acariciante esse beijo, que desabrocha em perfume e tudo perturba, derramando-se em ondas sonoras por homens e coisas. REDEMPÇÃO saúda o povo pela conquista de tantos direitos e pede aos Céus – estamos em Natal! – pelos que, mesmo no silêncio e na obscuridade, sonham o Amazonas verdadeiro de amanhã – grande e fecundo, sem ódios e sem paixões estéreis, marchando para os destinos que lhe asseguram suas imensas riquezas.202 Não precisamos lembrar que entre o discurso e a realização dessas propostas havia um abismo muito grande que se mostrou, enfim, insuperável. Mas á época da circulação da revista de Clóvis Barbosa essa clareza parecia não existir, uma vez que grande parte dos intelectuais amazonense, principalmente aqueles que vivenciaram este lapso de prosperidade, continuaram alimentando a esperança de que o Amazonas um dia, o mais breve possível, iria recuperar o monopólio do produto, e mesmo diante do investimento do capital industrial internacional outros domínios coloniais, ainda julgavam a borracha indispensável à economia industrial. Era esse também o pensamento disseminado nas páginas da revista Redempção: Está provado, e é notório, que a nossa borracha continua a ser melhor, pelas condições excepcionais do nosso solo e do nosso clima, incomparavelmente superiores às terras de outros continentes, em que se cultiva a seringueira. Está provado, também, que em determinados 202 Redempção, nº 2. Manaus, dezembro de 1924. 99 produtos cuja matéria prima é a borracha, não pode ser dispensada a borracha uma porcentagem da de melhor origem, que é da Amazônia. Mas o certo é que a nossa produção diminui cada ano, pelo depauperamento dos nossos seringais e por lamentáveis condições outras, assim como sua cotação se desvaloriza e nos põe na difícil emergência do sacrifício da nossa única indústria.203 Como era de se esperar, este encantamento e expectativa já não se mostra mais sustentável no período de vigência da segunda fase da revista, em 1931, a revista faz um claro mea-culpa e passa gradualmente a sinalizar outras possibilidades, como a produção extrativa da castanha, uma vez consolidada a superioridade das plantações orientais: Dizia-se antigamente da borracha que era o ouro negro, prodigioso e benéfico, a fonte primordial das alucinações da fartura amiga e benemérita, onde se mitigavam as sedes insfridas e se alimentavam as ambições esparsas dos aventureiros do El Dorado. Quando se falava na árvore milagrosa, que chorava torrentes de dinheiro das suas feridas, a imaginação se alongava, na cupidez de olhares investigadores pelas matas, a descobrir a romaria característica das seringueiras cinzentas, saudando-as com o sorriso amável da gratidão[...] Mas, decorridos os tempos depois que a Índia absorveu os esplendores seringueiros e a árvore nativa se despiu completamente das galas imperiais de sua ascendência, todas as ansiedades se acumularam sobre as capas floridas das castanheiras, fazendo-lhe em torno o ambiente da admiração e do respeito... Quando a seringueira era para nós a arvore do ouro, não tínhamos olhos para ver o papel que à castanheira havia sido imposto pela natureza, que era grande e soberba entre as maiores e não compreendíamos, grande árvore amiga, frondosa e florida, a acenar com seus frutos magníficos, embalados pelas brisas e pelas aspirações futurosas de todos os trabalhadores dessas terras desventuradas.204 Imagem nº 21 Fonte: Redempção, nº 18. Manaus, 2 de maio de 1931. 203 204 Redempção, nº 2. Manaus, dezembro de 1924. Redempção, nº 8. Manaus, 21 de fevereiro de 1931. 100 Na segunda fase é Manaus e seu diversificado cenário arquitetônico e cultural que ganha centralidade na revista, dela sendo divulgada uma imagem de cidade moderna, limpa e, claro, em processo retomada de econômica. Para Manaus, a revista desfolhará mimos e floreios, como no poema de Abguar Bastos que ela faz imprimir: Manaus: Porta do Eldorado Cidade missanga e prata, luciforme e pequena, assim como corola-bogari, leve e lavada, minha! Minha porque plantei, voluptuoso jardineiro, Sem jeito de ritmo floral, o amor e o destino. Cidade da alegria.... Alegria um tanto indecisa, aqui, além, pelo ar, mainte lá-vae, toda azul, toda arco-íris, toda eu mesmo. Cidade que tem um dono: Deus! e tem um herdeiro: O Rio Negro. Cidade das mulheres que beberam essência de hidromel com espírito de rosas. Das que sorriem, excepcionalmente, (e como é bom vê-las assim...) até deixar na gente a luminosa impressão de que sempre andam mastigando estrelas. Cidade do sorriso viçoso e do sorriso triste, mas inesquecível... Do sorriso que vem devagar e devagar se expressa Como um cravo que murcha sobre a renda de um seio: Sorriso de Eça: - com um pedaço de soluço pelo meio! Cidade Porta do Eldorado! Feita de ouro mais divino: Recebe-me e mostra-me onde fica essa terra do amor e do destino! 205 Queixumes à parte, como os externados pelos editores da revista O Rionegrino, não há como deixar de perceber que Redempção, por algum tempo encarnou a alma da cidade que a vira nascer e a acolhera, mantendo-a ativa nas ruas e, posteriormente na memória dos amazonenses. Foi seguramente a revista de variedades ilustrada mais importantes de 205 Redempção, nº 19. Manaus, 9 de maio de 1931. Exaltação da cidade como essa já apareciam até mesmo, números antes, em anúncios comerciais veiculados pela revista, como no caso do anúncio da Cervejaria Amazonense: “Manaus – cidade encantada das mulheres bonitas, dos poetas, dos palácios e fábricas majestosas. Manaus, cidade querida até do sol que só se despede dela, colorindo uma saudade maravilhosamente bizarra. Redempção, nº 7. Manaus, 14 de fevereiro de 1931. 101 Manaus, e soube gerar um vínculo de empatia com a cidade e seus habitantes. Quase como uma despedida, em um de seus últimos números, a revista se reconhece como um empreendimento já consagrado e latente no imaginário da população manauara: Ninguém mais suporta um domingo sem Redempção na rua. Ninguém mais sabe viver sem Redempção. Se o menino é bonito, vae ganhar o concurso de Redempção. Se a moça é formosa olha o retrato pra Redempção!... E, assim, a querida revista manauense passou a ser um pedaço da vida elegante da cidade, porque todos os domingos, entre a missa das dez e as reuniões do Ideal, temos à rua Redempção, com uma porção de maravilhas da cidade. 206 Se o surgimento da revista parece ter sido meticulosamente planejado por Clóvis Barbosa, seu desaparecimento ocorre como que inesperadamente, sem avisos ou indícios prévios a indicar seu fechamento. Teria seu idealizador sucumbido ante os altos custos de produção, dos quais ele sempre reclamou? Teria o servidor público, ante os afazeres de sua profissão, exaurido as forças e retirado o tempo precioso e, ao que sabemos, prazeroso do jornalista? Teria, enfim, sucumbido novamente às pressões de um contexto político novo com o qual não se afinasse à época? Lamentavelmente, as hipóteses para o desaparecimento de Redempção permanecerão em aberto até que novas pesquisas iluminem com mais clareza a questão. 4. DO CARNAVAL AO TORNEIO DAS LETRAS: A REVISTA O RIONEGRINO. A revista O Rionegrino editada em Manaus surgiu em 27 de fevereiro de 1922, com uma singular característica: era uma publicação restrita, de circulação interna e destinada aos sócios de um dos maiores e mais tradicionais clube social e esportivo da cidade, o Atlético Rio Negro Clube. Como foi bastante comum com os empreendimentos do gênero, também enfrentou teve dificuldades para manter uma regularidade das edições, embora inicialmente não fosse sua pretensão desenvolver uma periodicidade previamente definida. Como visava uma circulação restrita aos sócios e freqüentadores do clube social, planejava “circular toda vez que houver uma festa promovida pelo Rio Negro”. 206 Redempção, nº 27. Manaus, 4 de julho de 1931. 102 Tratava-se, inicialmente, de uma revista carnavalesca, comum em todo o Brasil daquele período207, o que fazia dessas edições empreendimentos muito mais esporádicos que propriamente periódicos. Seus quatro primeiros números saíram exatamente assim, na época do Carnaval, em 1926, 1927 e 1928, e foi talvez com esse veio carnavalesco que a revista tenha se mantido até 1978, data da publicação de seu último número. Ao contrário do que ocorreu em outras revistas de variedades, como Redempção e Sintonia, como de verá adiante, O Rionegrino nunca atraio grandes expoentes da literatura amazonense, por mais que buscasse apresentar-se como portadora de requinte e sofisticação. A esse respeito, é interessante notar a observação de Tinhorão acerca de uma das características dos periódicos carnavalescos: A linguagem dos jornais carnavalescos brasileiros viria a revelar, em sua tradição de mais de um século, um curioso exemplo de conciliação literária entre a desbragada liberdade da fala popular das ruas e o sentido de boa moral das camadas burguesas urbanas.208 Apenas com o decorrer do tempo é que a iniciativa foi se modificando e se configurando como uma verdadeira revista de variedades, passando a ter periodicidade mensal. A iniciativa chegou a sobreviver por mais de cinco décadas, embora sua produção mais efetiva e periódica tenha se concentrado entre os anos de 1929 a 1935. A partir de 1929, a revista se tornou mensal e chegou a tirar dez números no ano. É também com o novo perfil que a revista se abre ao público em geral. Se nos primeiros anos de circulação a distribuição foi gratuita, a partir do sexto número ela passa a ser comercializada e as receitas geradas com a sua venda passam a ser aplicadas nos gastos com a manutenção do Clube. 209 À época de seu primeiro número, seus primeiros diretores e fundadores foram Francisco Plínio Coelho Filho e Osman Duarte de Mendnça, aparecendo Antonio José Augusto de Castro na condição de Secretário. Já em seu sexto número, quando a revista aparece reestruturada como “Magazine Mensal”, sua responsabilidade é transferida para a Diretoria do Clube, que passa a contar no expediente da revista. Dessa diretoria 207 José ramos Tinhorão chegou a registrar nada menos de 166 títulos de periódicos carnavalescos no Brasil, e isso em uma pesquisa que avançou pouco para o norte e o nordeste do país. TINHORÃO, José Ramos. A Imprensa Carnavalesca no Brasil. São Paulo: Hedra, 2000, p. 169-200. 208 Ibidem, p. 15. 209 É o que se deduz do depoimento de Manoel Bastos Lira citado em: BARAÚNA, Silvia Maria Quintino. Representações da Sociedade Manauara a Partir da Revista O Rionegrino (1922-1940). Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em História. Manaus: LHIA/UFAM, 2005. 103 responsável pelo O Rionegrino, fazem parte o Desembargador Hamilton Mourão, na condição de presidente; Américo Rebelo, na de Vice-Presidente; Raimundo Y. Storry, como 1º Secretário e Arlindo Azevedo, como 2º Secretário. Oswaldo Viana é o Orador e Oscar Maia, o Tesoureiro, enquanto Henrique Archer Pinto aparecia como Tesoureiro Adjunto. Completam o quadro como diretores, Aluisio Freire Ramos, Francisco Barnabé Gomes, Hilton Santos, João Rodrigues de Melo, Manoel Augusto Pinto e Manoel Nunes Thomaz.210 O Atlético Rio Negro Clube, à época de publicação da revista já fizera fama e se consagrara na cidade tanto pela sua dimensão de espaço festivo destinado ao lazer e à sociabilidade de membros da elite amazonense, quanto pelo fomento aos esportes que, junto com as atividades físicas, passaram a ser cada vez mais valorizados desde as últimas décadas do século XIX, consagrando o retorno das Olimpíadas (doravante chamadas de Olimpíadas Modernas) e da larga difusão, com patrocínio oficial, da prática da educação física, que desde logo passa a integrar o conteúdo escolar. No bojo desse mesmo processo está a invenção e rápida difusão do Futebol e de outros esportes coletivos como o Voleibol. 211 Tanto o fomento às atividades físicas, quanto a proliferação de modalidades e agremiações esportivas mundo afora no último quartel do século XIX, resultaram de um novo momento da história da humanidade, marcado pela dinâmica e pela velocidade imposta à sociedade ocidental através dos processos da produção capitalista e de suas inovações tecnológicas, como o trem, o automóvel ou mesmo a bicicleta que tal como o telégrafo, encurtavam as distâncias e aproximavam o mundo212. Assim, um mundo novo repleto de oportunidades e desafios se abria com o fenômeno da modernidade, e nesse novo ambiente, de rápidas mutações que vão cotidianamente impondo às tradições perdas irreparáveis213, necessita-se igualmente de um homem novo, dotado da sua mesma agilidade e dinamismo. As mudanças no mundo passam, mais uma vez, a se exprimir e se 210 O Rionegrino, nº 6. Manaus, 30 de março de 1929. TUBINO, Manoel José Gomes. Dimensões Sociais do Esporte. São Paulo: Cortez, 2001. 212 “Como nós sabemos, foi nessa época [da revolução tecnológica] que o telefone e o telégrafo sem fio, o fonógrafo e o cinema, o automóvel e o avião passaram a fazer parte da vida moderna, sem falar da familiarização das pessoas com a ciência por meio de produtos como o aspirador de pó (1908), e o único medicamento universal jamais inventado, a aspirina (1899). Tampouco devemos esquece a mais benéfica de todas as máquinas do período, cuja contribuição para a emancipação humana foi imediatamente reconhecida: a bicicleta”. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios, 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 81. 213 BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A aventura da Modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1986, p. 15-16. 211 104 expressar nos corpos214, num movimento que é, todavia, como demonstra Richard Sennet, uma via de mão dupla. 215 Encontrando na figura do dandi e do smart seu arquétipo, no contexto da belle époque, a forte penetração desse ideário do homem novo em Manaus pode ser percebida, como chamou a atenção Maria Luiza Ugarte Pinheiro, na proliferação de periódicos voltados ao Sport ou que apenas do termo se utilizavam, querendo traduzir com isso, esse espírito de modernidade.216 O Atlético Rio Negro Clube, assim como outras agremiações locais destinadas ao esporte e ao lazer, encarnou e expressou essa ambiência, atraindo as famílias mais prósperas e em especial a juventude manauara para suas festas sociais e atividades. A agremiação foi criada em novembro de 1913, tendo como idealizador Schinda Uchoa, juntamente com Manoel Affonso do Nascimento (o Carranza), Edgar Garcia Lobão, Raymundo Vieira e João França Marinho. Como sustenta Sílvia Baraúna, os fundadores do clube eram jovens descendentes das famílias endinheirada da cidade que influenciados pelos modismos europeus passavam então a relacionar o esporte com qualidade de vida e com elemento de distinção social, já que, à época, a prática de quase todos os esportes coletivos estava restrita aos grupos abastados da sociedade.217 Das atividades propriamente esportivas, foi exatamente o futebol – recém importado da Inglaterra – aquele logo caiu no gosto popular, atraindo considerável número de espectadores, embora sua prática se mantivesse mais restrita á elite ainda por um bom tempo218. Em Manaus, equipes de futebol, como O Nacional Futebol Clube e o Atlético Rio Negro Clube, surgiram logo no início do século XX e se consagraram quase que 214 SANT’ANNA, Denise Bernuzzi (Org). Políticas do Corpo: Elementos para uma História das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. 215 SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2006. 216 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Op. cit., p. 125. 217 BARAÚNA, Silvia Maria Quintino. Representações da Sociedade Manauara a Partir da Revista O Rionegrino (1922-1940). Op. cit., p. 7-8. 218 O fenômeno dessa popularização parece ter sido universal. Eric Hobsbawm lembra que no início do século XX “os novos esportes abriram caminho até a classe operária e, mesmo antes de 1914, alguns deles eram entusiasticamente praticados por operários – havia, na Inglaterra, talvez um milhão de jogadores de futebol – que eram observados e seguidos com paixão por grandes multidões”. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios, 1875-1914. Op. cit., p. 256. 105 instantaneamente entre o publico amazonense,219 iniciando uma rivalidade que chegaria forte até fins do século XX. Desse movimento, que impactava diretamente o corpo social, a imprensa não descuidou, gerando desde logo inúmeros registros e lhe dedicando títulos especiais. Em 1917, A Nota já registrara a rivalidade entre os dois times manauaras e lhes consagrara algumas charges, além da capa de seu nono número. Imagem nº 22 Fonte: A Nota, nº 1. Manaus, 26 de agosto de 1917. Mais impactante ainda são as fotografias das duas associações de futebolistas amadores que já se enfrentavam na cidade em 1913, uma delas composta por ingleses residentes em Manaus – em geral diretores e altos funcionários das firmas inglesas que atuavam na cidade – e outra por brasileiros, portanto, nacionais. É possível pensar a formação dos dois maiores clubes de futebol do Amazonas como decorrentes dessas duas agremiações amadoras, deles copiando inclusive as cores e padrões do uniforme. 219 NORMANDO, Tarcísio Serpa. Jogos de Bola, Projetos de Sociedade: O surgimento do Futebol em Manaus. Mestrado em Sociedade e Cultura no Amazonas. Manaus: UFAM, 2003. 106 Imagens nº 23 e 24 Fonte: Annuário e Manáos. Lisboa, 1913-1914. Se, todavia, o time de futebol já chegava consagrado à segunda década do século XX, embora ainda com poucos anos de criação, ele era tão somente a parte mais destacada e visível para o conjunto da sociedade manauara de um empreendimento muito maior, que era o próprio clube social, com seus salões e festas requintadas e restritas a sócios de notoriedade e cabedais, já que seus títulos de sociedade eram adquiridos por compra e tradicionalmente foram elevados, mantendo a sociedade no ambiente mais restrito (e desejado) da elite. Já em 1913 o clube social do Rio Negro fazia concorrência a outros salões e espaços festivos mais aristocratizados da cidade, como os do Ideal Clube e o fechadíssimo Clube campestre dos ingleses, situado num bosque afastado do centro da cidade, mantendo-se refratário até mesmo a entrada de autoridades brasileiras.220 Em trabalho inicial, Silvia Baraúna atribui a fragilidade inicial da publicação de O Rionegrino ao fato de o próprio clube social ainda também se encontrar em estruturação e consolidação. Um exemplo trazido pela autora é o da própria transitoriedade de sua sede social, que muda três vezes de endereço até se fixar definitivamente na Avenida Epaminondas. Com efeito, em fins da década de 1920 e início da de 1930 a sede do clube funcionou em prédio situado na Rua Barroso, próximo ao Teatro Amazonas, onde atualmente funciona a Casa do Estudante da Universidade Federal do Amazonas. Só com melhores acomodações, sustenta a pesquisadora, foi possível dar vida ao Departamento de 220 Essa postura de isolamento dos ingleses de Manaus, contrastada com a franca capilaridade da colônia portuguesa, foi anotada por: PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A Cidade Sobre os Ombros. Op. cit., p. 123. 107 Imprensa, o qual inicialmente servia para divulgar e promover o Atlético Rio Negro Clube e seus bailes festivos, dentre os quais se notabilizou desde logo o dos festejos de Carnaval. Pensamos que a revista surge muito mais como suporte das ações do clube social e de seus bailes, servindo ainda como um espaço extra de sociabilidades, por onde os associados podiam reforçar os laços de convívio. Isso nos parece claro exatamente porque neste momento inicial a revista não busca o grande público, mas quer, ao contrário, difundir-se restritamente pelas mãos dos associados. Se, como sustenta Baraúna, a revista nesse primeiro momento tinha como meta principal alimentar a superioridade do Clube Atlético Rio Negro diante dos outros congêneres que existiam na cidade, essa ação visava muito mais reforçar nos sócios um comprometimento com o clube, ao mesmo tempo em que os animava com a idéia de pertencerem à um ambiente sofisticado e seleto, de cuja imagem a revista nunca abril mão. Imagem nº 25 Fonte: O Rionegrino, nº [22]. Manaus, novembro de 1936. Mesmo que as imagens fortemente carregadas de requinte e glamour trazidas pela revista não deixem margem para dúvidas, os textos que as acompanham reforçam o sentido e a força da comunicação visual. Assim, ancorando a fotografia de uma de suas edições (Imagem nº 25), os editores registram: “O cliché acima apresenta um grupo de associadas do Rio Negro, figuras de alta representação social no Amazonas. Pertencentes, todas, ao 108 quadro feminino do nosso Clube, que elas animam com a sua alegria esfuziante e prestigiam com a sua elegância e beleza”.221 Mesmo que o rio Negro pudesse ser enquadrado como o clube da nata, como então se dizia 222, manter uma publicação apenas com o pagamento das mensalidades dos associados poderia inviabilizar a publicação, o que supomos ter efetivamente ocorrido. O desejo de ampliar a experiência editorial, que como vimos era esporádica, em um empreendimento duradouro, passava pelo enfrentamento de diversas questões, sendo uma delas os custos de composição e impressão, já que se utilizava para esses serviços uma empresa comercial, a Tipografia Phênix. Dessa forma que surge a idéia de comercializá-la para o grande público da cidade, como faziam com algum sucesso outros empreendimentos do gênero. Imagem nº 26 Fonte: Acervo Digital do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas E é assim que O Rionegrino ressurge em fevereiro de 1929, dessa vez para manterse como mensário, circulando nessa periodicidade ao longo de todo aquele ano. Nesta nova 221 222 O Rionegrino, nº [22]. Manaus, novembro de 1936. MELLO, Thiago de. Manaus, amor e Memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984. 109 fase, apresentava uma reestruturação gráfica mais moderna, com sofisticação visível nas ilustrações e fotografias, além de impressão de suas capas em cores. Nela o número de páginas foi sempre variável, oscilando de 15 a 40. Parece desnecessário dizer que dificilmente uma revista conseguia sobreviver financeiramente apenas através da vendagem de seus exemplares. Era necessário recorrer frequentemente à outras fontes de receita, e, por esse motivo, O Rionegrino buscou, como diversos periódicos do Amazonas o fizeram, o amparo do comércio local, para quem vendiam espaços de propaganda que por vezes consumiam parcela significativa dos impressos. Cabe lembrar que se os custos de edição de um periódico em Manaus sempre foram altos, o foram também, e, principalmente, no contexto da crise e depressão causada pela perda do mercado mundial da borracha. Outra questão importante a ser enfrentada pelos editores da revista em 1929, foi sua reestruturação interna, assumindo uma linha editorial nova que perdia a acentuada marca de edição carnavalesca e minimizava os conteúdos esportivos – embora a revista sempre os tenha mantido! – para ampliar o leque de referencias de seus temas. É essa inflexão em direção à um público mais amplo e atento às revistas da moda, que levam O Rionegrino a assumir, ao menos entre os anos de 1929 a 1939, essa característica de um periódico de variedades. Nesse alargar de temas, a revista flerta fortemente com o público feminino. Embora O Rionegrino não possa se enquadrar no modelo de uma revista feminina, seu foco claramente se desloca para alcançá-las. Não é à toa que a grade maioria das capas da revista tragam estampadas figuras femininas, em geral senhoras e jovens de famílias tradicionais da elite manauara. A opção da revista se explica pelo fato de que o termo “variedades” entra na história do periodismo não apenas para significar o que efetivamente diz (a profusão de assuntos), mas acima de tudo algo que não diz: a amenidade dos conteúdos enfocados. Assim, assiste-se a uma diversificação não tanto dos impressos, mas das práticas de leitura por gênero, neste particular significando que, grosso modo, homens e mulheres consumiam, enquanto leitores, gêneros jornalísticos distintos223. Ao homem o jornal 223 Cf.: CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996; BATISTA, Antonio Augusto e GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Leitura: práticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 110 opinativo, serio e mesmo sisudo, a analisar, mas do que informar, os grandes temas nacionais e mundiais, em especial desse espaço da vida social pública, praticamente vedado às mulheres: a política. Às mulheres destinam-se os romances açucarados dos folhetins, por vezes encartados nos grandes jornais diários, por vezes, ocupando um de seus rodapés. Dessa leitura feminina diferenciada é que fala Michelle Perrot, lembrando que o público da Imprensa vai lentamente diversificando, já que em seu início É um mundo maculino, de que as mulheres vão lentamente se apropriando, não sem dificuldade. Os cafés, círculos e clubes, as salas de leitura, onde se lêem principalmente os jornais, são reservados aos homens. Todavia, as mulheres insinuam-se no jornal pelos rodapés – a parte de baixo das páginas dos jornais – que lhes eram progressivamente reservados, sob a forma de crônicas de viagens ou mundanas e sobretudo de romances-folhetins, cada vez mais femininos por suas intrigas, suas heroínas e até por sua moral. 224 É principalmente para as mulheres que se destinam também as revistas de entretenimento e de informação amena, em geral das coisas frívolas e mundanas. Quando Redempção, já nos anos trinta, começa a buscar o público feminino, é pela incorporação de uma nova sessão, de página inteira, que faz essa ligação e, assim, surge naquele momento, a página “Jornal Fútil”, toda ela dedicada às mulheres, já que falava de moda, receitas culinárias e normas comportamentais ditas femininas, que ali se apresentavam como modelares. Organizadores da revista O Rionegrino tiveram a necessidade de empregar colunistas sociais, um tema que ganha forte presença no periódico desde então. Contudo, apesar de neste momento as mulheres serem um dos focos privilegiados, as temáticas discutidas nas páginas da revista e à elas dirigidas ainda vão privilegiar a preservação de uma moral tradicionalista, com reforça aos perfis femininos de filha atenciosa, mãe dedicada e, sobretudo, esposa submissa. Ao mesmo tempo O Rionegrino passa a combater as novas tendências emancipadoras vigentes e fazendo troça do movimento sufragista. 225 224 PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 77-79. Veja-se, em especial, a matéria “O 9º. Mandamento... Feminista”. O Rionegrino, nº 8. Manaus, maio de 1929. 225 111 Apesar da visão mais conservadora da revista, os organizadores de O Rionegrino, com objetivo de aperfeiçoar as colunas direcionadas para as mulheres, conseguem firmar a colaboração de Rosália Beatriz. Diga-se de passagem, que esta tendência conservadora em relação a mulher não estava restrita à revista O Rionegrino, sendo, na verdade, a postura comum nas três revistas de variedades que mais tiveram repercussão em Manaus, todas elas reforçando imagens da mulher como uma figura frágil e frívola e frágil, e mesmo bastante presente em outros periódicos amazonenses.226 Por outro lado, a contratação de uma mulher (Rosália Beatriz) para a composição e produção de conteúdos para a revista não deixa de ser reveladora de um processo que, negado muitas vezes pela revista, parecia irrefreável: o avanço da mulher para espaços públicos tradicionalmente masculinos. A nova cronista, que alegava ser rionegrina desde criança, já atuara também como cronista em vários jornais e revista na Capital carioca227. Em seu regresso a Manaus acompanhada do marido (o Tenente Plínio de Abreu), passou a colaborar na parte editorial de O Rionegrino, escrevendo, em sua estréia, sobe a visita da Miss Pará à Manaus, em retribuição a igual empreendimento da Miss Amazonas à capital paraense. A partir dessa data, os concursos de Miss Amazonas e de Miss Brasil, aparecerão com freqüência nas páginas da revista sua entusiasta, em especial porque o próprio evento foi, durante muitos anos, realizado nos salões do atlético rio Negro Club. Tradicionalismos à parte, a contratação de Rosália Beatriz introduz inegavelmente um tom mais moderno – e até mesmo ousado! – diante das mulheres. Com sua colaboração, Beatriz visava estabelecer maior interação com o público feminino, o que era feito através do comentário de cartas que relatavam, sobretudo, dilemas emocionais e afetivos das leitoras, como se vê num desses comentários de Rosália Beatriz em sua coluna “Conselhos”: 226 A própria imprensa operária, tradicionalmente caracterizada por sua prática emancipadora e até mesmo libertária (no caso dos periódicos anarquistas), via frequentemente a emergência da mulher no espaço público como um problema sério, criticando-o sem rodeios, como fez em “A Proletária e o Feminismo”, que exorta as mulheres trabalhadoras a se manterem fiéis à sua “natureza”: “Resistindo aos embates de todas as revoluções, ela afirma-se cada vez mais no seu natural determinismo de filha, esposa e mãe”. O Constructor Civil, nº 1. Manaus, 5 de janeiro de 1920. Apud: PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto e PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte (Orgs). Imprensa Operária no Amazonas. Manaus: Edua/Cnpq, 2004, p. 119. 227 No âmbito da História da Imprensa, a passagem das mulheres, da condição de simples leitoras à condição de escritoras e produtoras de jornais e revistas é mais tardia e bastante complexa. A cerca dessa trajetória, cabe conferir: TELLES, Norma. “Escritoras, Escritas Escrituras” In. PRIORI, Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001, p. 401-442. Em Manaus, Maria Luiza Ugarte Pinheiro registra o jornal “O Grêmio”, de 1909, como um periódico eminentemente constituído por mulheres, mas não necessariamente feminista. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Op. cit., p. 242. 112 Por muito inexperiente, uma mulher, não creio que desconheça, de um modo absoluto, os sentimentos que aspira. Desse rapaz que você me fala, pode-se concluir muitas suposições. Se você ignora que seja amor o sentimento que faz o seu jovem poeta entreter-se com você, pelo menos a minha amiga sabe que ele a corteja. Se quer bem a esse rapaz, seja um pouquinho astuciosa. Não suspire. Não olhe tanto as estrelas. O romântico cortejar de outras eras, é hoje substituído por uma boa camaradagem, alguém o disse e disse bem. Não pense que o seu poeta é um príncipe encantado, senão um homem, simplesmente um homem, com as qualidades e todos os defeitos do sexo. Uma mulher romântica, nos dias atuais, torna-se enfadonha. Não resta dúvidas que o “flerte” existe entre você e seu amigo. Ele, talvez, esteja achando delicioso só isso. Há homens assim. Alguns por timidez, outros por mero prazer espiritual, ainda outros para fugirem de responsabilidades e outros ainda por verdadeira mania. Mas, se aos tímidos, aos espirituais, aos prudentes, e aos maníacos, uma mulher astuciosa souber prendê-los seriamente nos seus encantos, o tímido falará, eloqüentemente, o espiritual dirá que “um lar..., uma mulher..., um choro de criança... e... uma sogra...”, não são, afinal de contas, coisas muito burguesas. Dos prudentes, conhecemos casos de verdadeiros triunfos, e os maníacos serão os primeiros a declarar o “flerte” é nocivo a sociedade...228 A revista O Rionegrino conseguiu se manter no mercado até o final da década de setenta (1978), porém, como argumentamos, não houve uma regularidade da publicação. Se é de variedades que tratará principalmente entre 1929 e 1935, no final dos anos trinta quase e por todo o período da década de quarenta a revista retorna à temática esportiva e à seu veio de periódico carnavalesco. É muito mais neste último aspecto que ela será veiculada, esporadicamente, até 1978, quando então encerra sua participação no periodismo amazonense. 5. UMA REVISTA EM SINTONIA COM O PODER Se o Brasil que se abre em 1930, com o movimento que põe Getúlio Vargas no poder é um Brasil novo, desejoso por deixar para trás as marcas do conservadorismo e arcaísmo de uma sociedade rural e ancorada prioritariamente na agro-exportação, o é, na verdade, pelo avanço incontestável da produção fabril, dos segmentos médios urbanos e do 228 O Rionegrino, nº 8. Manaus, maio de 1929. 113 próprio urbanismo 229. Essa nova fase revela igualmente uma nova ambiência cultural230, impactando fortemente o cenário da História da Imprensa, onde jornais e revistas, com pequenas exceções, assumiram o ideário varguista, em especial após a decretação do Estado Novo (1937), quando, inclusive vêem à tona fortes mecanismos de controle ideológico.231 Na Manaus do Estado Novo, o periódico que parece ter melhor representado este engajamento ideológico com Vargas foi exatamente uma revista, Sintonia, que surgiu no final da década de trinta sob direção do telegrafista e estudante de odontologia Rigoberto Costa. A revista circulou em Manaus e nas principais capitais do país, como Belém, Rio de Janeiro, Recife e São Paulo, durante o período compreendido entre setembro/outubro de 1939 a dezembro de 1943, editando a marca 41 números nestes 5 anos.232 Como mencionado, o momento é marcado por grandes tensões internacionais, dentre os quais o advento da Segunda Guerra Mundial e a implementação do Estado Novo, em 1937, sob comando de Getúlio Vargas. Após o golpe, que buscou se legitimar num suposto e eminente atentado comunista, Vargas consegue se manter no poder com apoio das massas e de vários setores da sociedade brasileira, indo desde membros das tradicionais oligarquias, até intelectuais, artistas, de profissionais liberais e, inclusive, de jornalistas, muitos dos quais levaram para o seu metier a luta política e ideológica patrocinada por Vargas. Ao observar o subtítulo de Sintonia, percebemos que a publicação se auto-intitulava como “Revista dos Telegrafistas do Amazonas”, portanto, um órgão classista e voltada para os temas e interesses dessa categoria, então em expansão. Sua inclusão aqui no rol das revistas de variedade se dá, tal como ocorreu com O Rionegrino, por força de uma mutação interna havida logo nos primeiros momentos de sua existência. Já no sexto número, a 229 MONTEIRO, Hamilton de Mattos. O Aprofundamento do Regionalismo e a Crise do Modelo Liberal. In: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 211-228. 230 SEVCENKO, Nicolau. Técnica, Ritmos e Ritos do Rio. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da Vida Privada no Brasil. Vol. 3. (República: da Belle Époque à Era do Rádio). São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 513-620. 231 CAPELATO, Maria Helena. Os Arautos do Liberalismo: Imprensa Paulista, 1920-1945. São Paulo: Brasiliense, 1989. Para o contexto amazonense, cabe conferir a recente contribuição de: ALVES, Hosenildo Gato. Imprensa e Poder. Op. cit. 232 Recorremos em nossa pesquisa à recente reedição produzida pela Biblioteca Pública e da Secretaria de Cultura em CD-Rom, contendo os números da revista em formato digital. Não fazem parte dessa edição, contudo, os números: 6, 8, 12, 18 e 24. 114 revista abandona essa vinculação classista e passa a ostentar apenas seu título “Sintonia”, permanecendo com essa identificação ao longo de toda essa fase. Imagem nº 27 Fonte: Sintonia. Manaus, 1939-1942 Com efeito, os números iniciais da revista trazem artigos sobre o telégrafo e a função do telegrafista, com intuito de incentivar e propagar o ofício, profissão que surgiu no Brasil no final do período Imperial e estava inserida naquele contexto modernizador das grandes invenções e transformações cientificas de meados do século XIX.233 Desde o Império o telégrafo foi se caracterizando como um instrumento inestimável para solução de problemas de administração pública e segurança nacional, além de ser idealizado como um poderoso promotor de desenvolvimento material nas regiões atravessadas pelas linhas telegráficas. Com o passar tempo a seleção de funcionários para trabalhar nessa área passou a ser mais rigorosa, exigindo do candidato uma formação elevada, como saber ler, escrever, domínio da aritmética, história e geografia. Assim, a 233 De acordo com Laura Antunes Maciel, a primeira instalação telegráfica no Brasil data de 1852 e foi usada pioneiramente como justificativa combater o contrabando de escravos. Os presos da casa de Correção foram os que trabalharam, num regime compulsório, para a instalação dessa primeira linha telegráfica no Brasil. Somente depois de cinco anos é que a iniciativa privada franqueou alguns serviços, mas o serviço era ainda imperfeito, principalmente pela falta de pessoal qualificado. Os primeiros telegrafistas em geral não tinham a mínima formação e muitos desses trabalhadores conseguiam vagas por meio de apadrinhamentos. MACIEL, Laura Antunes. A Nação Por Um Fio: caminhos, práticas e imagens da Comissão Rondon. São Paulo: Educ/Fapesp, 1998, p. 68. 115 revista de Rigoberto Costa parecia ter um público capaz de consumir as informações noticiosas e técnicas que ele fazia divulgar nos primeiros números da revista. É valido lembrar que a chamada Era Vargas foi um período em que o Estado buscou se articular diretamente com várias categorias de trabalho e com os trabalhadores de um modo geral, anteriormente percebidos como agitadores em potencial e, enquanto tais, configurando um caso de polícia.234 Com intuito de ter maior controle sobre o proletariado – pois as décadas anteriores foram marcadas por diversas convulsões sociais que ameaçavam a ordem vigente com protestos e reivindicações por melhores salários e condições de trabalho – Vargas formula e propõe uma nova ideologia de valorização do trabalho (o trabalhismo) que, enquanto incutia valores de solidariedade interclassista, condenava às tradicionais lutas operárias e as idéias anarquistas, socialistas e comunistas que estavam difundidas no seio do operariado brasileiro desde o final do século XIX. Foi mediante a um atrelamento com o trabalhismo, inclusive, que a classe dos telegrafistas se organizou no Amazonas, já em pleno ao Estado Novo e, assim, era natural que sua revista, Sintonia, estivesse predisposta à aderir ao propagandismo que o governo Vargas fazia por meio dos meios de comunicação de massa. 235 Outro elemento importante de ser aqui ressaltado é de que o Estado Novo foi um momento de profundo fechamento político, de cerceamento das liberdades e de suspensão de direitos constitucionais. Foi um golpe de estado articulado pela cúpula do próprio governo de Getúlio Vargas, que ainda exercia a chefia do estado dentro de um Governo Provisório e pressionado por diversos setores a realizar a volta à constitucionalidade, em especial com a realização de eleições.236 Os discursos efetuados por Vargas à nação brasileira identificavam as turbulências políticas – principalmente os conflitos emanados das diversas facções da aristocracia rural – e as sociais – notadamente as agitações operárias e o movimento sindical – como elementos perigosos à sobrevivência da nação, sendo os grandes entraves para o desenvolvimento econômico brasileiro. É o próprio Rigoberto Costa quem defende essas idéias nas páginas de Sintonia: 234 MATTOS, Marcelo Badaró. O Sindicalismo Brasileiro Após 1930. Rio de Janero: Jorge Zahar Editor, 2003. 235 ALVES, Hosenildo Gato. Imprensa e Poder. Op. cit., p. 89-95. 236 TOTA, Antonio Pedro. O Estado Novo. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 36-37. 116 No Brasil de hoje não há mais lugar para os homens que ficaram com a mentalidade de trinta, em regra rotineiros e retrógrados. O Brasil de hoje é movimento, dinamismo, é ação construtiva. Não se pode deixar de andar. Quem pára, sucumbe... O presidente Vargas não condena ninguém. Deixa que os homens se revelem nos cargos confiados ao seu patriotismo e inteligência. Quem se adaptou aos novos quadros morais da vida brasileira, permanece. Quem não evoluiu e se obstina em contrariar os ensinamentos da nova doutrina, feita para salvar o Brasil da negação de si próprio, será sacrificado.237 Mas Estado Novo não se legitimava apenas com um texto constitucional que restringia as liberdades individuais e coletivas, era necessário ir mais além e como a imprensa periódica neste momento já havia se vulgarizado entre as massas, ela foi um instrumento importante para a consolidação desse novo regime, que utilizou de forma ímpar na História brasileira os meios de comunicação como instrumentos de dominação de um governo.238 Ao contrário de outras publicações discutidas anteriormente (Cá e Lá, Redempção, Rionegrino, Pontos nos ii e A Nota) que afirmavam não possuir laços com as questões políticas, Sintonia aparece num cenário em que assumir essa postura era, na verdade, uma necessidade de sobrevivência. O Governo Getúlio Vargas, que mantinha fortes influências de regimes totalitários, notadamente o Fascismo, criou mecanismos de controle da imprensa, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em dezembro de 1939, que tinha por finalidade orientar e coordenar a propaganda nacional interna e externa, atuar no controle direto da informação veiculada na imprensa (censura), além de ser uma agência de informações para auxiliar os ministérios e o próprio Presidente. Segundo Maria Helena Rolim Capelato, mais que uma agência estatal de informação, “o DIP atuou na difusão sistemática do projeto político ideológico do Estado Novo, auxiliando na criação de uma base social que procurou legitimar as propostas de unidade nacional, de harmonia social, de intervencionismo econômico e de centralização política”. 239 De acordo com Antonio Pedro Tota, apesar da oficialização do DIP ter sido feita em 1939, esse departamento já funcionava extra-oficialmente há algum tempo e além de 237 Sintonia, nº 37. Manaus, junho de 1943. PARANHOS, Adalberto. O Roubo da Fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1999, p. 21. 239 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em Cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas, SP: Papirus, 1998. 238 117 funcionar como uma agência de informação e propaganda nacional, também controlava as atividades ligadas ao campo no campo artístico e cultural, exercendo diretamente a censura. 240 Assim, a imprensa periódica sofreu violenta intervenção do DIP, órgão governamental que era ligado diretamente ao gabinete presidencial. Jornais e revistas não tinham autonomia e, dessa forma, não podiam ser veiculados nesses meios de comunicação, nenhuma mensagem ou imagem que se mostrasse contrária ao Governo. Caso viesse a acontecer, jornais e revistas poderiam ter seus registros cassados e seus proprietários punidos legalmente segundo as determinações da Constituição de 1937, a qual legitimava o Estado autoritário. De acordo com Maria Helena Rolim Capelato a adesão de jornalistas não se deu apenas pela utilização da força, já que o governo Getúlio Vargas estabeleceu outras estratégias de cooptação para conseguir o apoio da imprensa. Dentre estas estratégias despontava, por exemplo, o acolhimento de parte das demandas e reivindicações das categorias organizadas, a regulamentação profissional que garantia direitos aos trabalhadores, e o patrocínio oficial, esta mais fortemente acolhida entre o setor da comunicação jornalística. 241 Neste particular, se destaca os subsídios do governo sobre as transações comerciais de importação do papel, problema que a imprensa brasileira vinha enfrentando desde o período Imperial sem que os diversos governos até então desenvolvessem uma política eficaz para solucionar o problema. Desde cedo Sintonia despertou o interesse do propagandismo varguista e seu proprietário, não tardaria em buscar esse apoio estatal. Interessava sobremaneira que a revista estabelecesse, inclusive, uma ampla rede de difusão e, talvez por essa razão, a revista Sintonia parece não ter encontrado grandes dificuldades para circular mesmo fora de Manaus e do estado do Amazonas. Essa foi uma das metas prioritárias de Rigoberto Costa, pois muito além das aspirações mercadológicas, Sintonia adotara o lema e a bandeira de “integrar a Amazônia para o Brasil inteiro”, sendo, portanto, um forte instrumento de propaganda nacional acionada no Amazonas por Vargas. 240 241 TOTA, Antonio Pedro. O Estado Novo. Op. cit., p. 37. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em Cena. Op. cit., p. 76. 118 Vivendo num ambiente de extremo fechamento político e de forte cerceamento das liberdades Sintonia, em nenhum momento ela demonstrou sentir-se acuada. Pelo contrário, demonstrava muita satisfação em servir a quem ele se referia como “Grande Chefe da Nação”, além de apoiar os programas nacionais de assistência e desenvolvimento para a Amazônia, uma das características das revistas de variedades da época, a preocupação com os assuntos socioeconômicos. Em um dos seus últimos números, tais propósitos são explicitados: Esta é a palavra de ordem, o nosso pensamento único: sempre pra frente, trabalhando para o Brasil e pelo Brasil de amanhã. O nosso programa tem sido fielmente cumprido e temos vivido combatendo pelo mais nobre ideal, difundindo as opulências deste recanto maravilhoso e cooperando para a obra de renascimento nacional, dentro do espírito do regime criado pelo eminente estadista que tão bem tem sabido conduzir nossos destinos – o Presidente Getúlio Vargas, o maior condutor dos povos de todas as Américas. Na trilha honrosa a que nos pousemos de início, sem divergir um só instante, prestando a nossa colaboração modestíssima, embora, porém resoluta, na imprensa do país, a prol dos nobres ideais e bem da coletividade, por mais sombria que seja a perspectiva dos lucros materiais que não são a nossa ambição, continuaremos nos serviços que vimos prestando ao Brasil, olhos fitos na bússola, seguiremos para frente, conformados sempre pela confiança do povo e animados pela fé companheira e inseparável dos que lutam por um ideal. Sempre para frente.242 Sintonia tinha como redator Moacyr de Miranda e como redator comercial, Hidelbrando da Costa, com a importante função de angariar recursos por meio da vendagem de espaços de propaganda. Como seu secretário atuou Kideniro Teixeira. A revista era editada em Manaus utilizando-se da contratação dos serviços da Papelaria Velho Lino. A revista mudou de endereço três vezes: o primeiro foi a Rua Duque de Caxias, nº 48, na Praça 14; o segundo, na Av. Sete de Setembro, nº 961 e o último, na Rua Joaquim Sarmento, nº 38. Sintonia desenvolve, como mencionado, uma ampla rede de distribuição, designando colaboradores para as mais diversas localidades, onde tais colaboradores passavam a exercer também a função de correspondentes. Por tais representantes/correspondentes, percebe-se o foco de interesse da publicação: Porto Velho: Antonio Alves da Rocha; Itacoatiara: Souza Filho; Fonte Boa: Oséas Martins; 242 Sintonia, nº 40. Manaus, outubro de1943. 119 Manacapuru: Francisco Carvalho e Manuel Batista; Mato Grosso: Manuel Sobrinho; Pará (Belém): Tito Livi de Castro; Território do Acre: Archeiau Ribeiro da Silva; Rio Grande do Norte: José de Castro. Sintonia estava subordinada às agências de informações nacionais, então sob a tutela do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e conveniada com agências de notícias, principalmente as norte americanas e inglesas, como Bristish New Service; UBI; DPDI da NBC. Nada imparciais, tais agências também se mostravam mais propagandistas que noticiosas e, dessa forma, sempre divulgavam a superioridade dos Aliados no cenário de combates da Segunda Guerra. Ancorado nessas agências internacionais, sintonia trazia reportagens que mostravam o arsenal de Guerra, a rotina dos soldados nos campos de batalha, chegando, inclusive, a manter uma coluna fixa, ao longo do ano de 1942, que se intitulava “acontecimentos na Grã-Bretanha”. Diga-se de passagem, que a revista teve ainda uma segunda fase, ressurgindo após 1950, depois de quase uma década do seu desaparecimento. Na segunda fase, contudo, a revista, embora volte com o mesmo título e dê seqüência a numeração encerrada em 1943, volta com um perfil bastante diferente da fase inicial, como afirmamos, enquadrada no arcabouço das revistas de variedades. Quando a revista ressurge em 1950, assume uma inequívoca inflexão em direção ao conteúdo mais específico de uma revista feminina, passando a ser, inclusive, dirigida por uma mulher: Denise Cabral dos Anjos. Em pesquisa inicial, embora relevante, Kamila Araújo da Silva estudou esta segunda fase, destacando as linhas gerais apontadas pelo periódico: Através da leitura da revista Sintonia [na Segunda Fase, de 1950 a 1955], vimos que a mesma era inteiramente direcionada à mulher, contendo colunas fixas, como: “Exaltação à Mulher”, “Sua Página Madame”, “Atenção Mamãe”, “Ave!Eva!”, “A Moda”, além de poesias, receitas e até mesmo discussões sobre o divórcio. A revista Sintonia tinha na direção uma mulher [Denise Cabral dos Anjos], que tinha uma visão bastante tradicional da mulher. Podemos identificar na revista a preocupação com a criação de criar uma mulher voltada à modernidade, porém conservando os valores tradicionalistas. Mais que refletir, a revista projetava e reforçava imagens arquetípicas da mulher, manifestando verdadeiro cunho pedagógico, “moldando” a mulher amazonense. A revista apresentava uma modernidade, onde mulheres tinham a oportunidade de expressar seus sentimentos, mas sem se desviar do caminho que a 120 tornariam uma boa esposa e mãe, conforme as estruturas mentais da época.243 Ao contrário da fase de revista feminina, na primeira fase, Sintonia veiculava artigos de diversas naturezas, como literatura, economia, política (nacional, local e internacional), esporte e lazer, além de (nos cinco primeiros números) divulgar informações relativas ao ofício de telegrafista. Para uma publicação do seu tempo, mostrou-se, por vezes ousada, publicando artigos sobre sexualidade (Ex: n. 26) e sobre o papel da mulher na sociedade moderna, como fez em “A mulher e a educação sexual”244. Tais assuntos parecem preconizar os temas que na segunda fase vão dar tônica ao periódico. Já a partir de seu sexto número, Sintonia assume como sua prioridade, divulgar assuntos de variedade e entretenimento, mas logo após os números iniciais já se percebe um engajamento em outro tema que terá grande espaço na publicação: o propagandismo varguista. Filha do Estado Novo, Sintonia é uma revista que assume e defende claramente o discurso da ordem e do poder constituído. Imagens nº 28, 29 e 30 Fonte: Revista Sintonia. Manaus, 1939-1942. Neste sentido, ela parece fazer parte de um conjunto de publicações, não apenas controladas pelo Estado Novo através do DIP, como também uma daquelas por ele mantidas. De acordo com Adalberto Paranhos, neste período, o Estado apoiava publicações 243 SILVA, Kamila Araújo. Modelando a Mulher Manauara: Perfis femininos na Revista Sintonia (19501955). Monografia de Iniciação Científica. Manaus: UFAM/CNPq, 2005, p. 6. 244 Sintonia, nº 26. Manaus, julho de 1942. 121 abertamente desde que se mostrassem favoráveis aos seus interesses. Na imprensa periódica os espaços destinados ao culto personalista alcançavam na média 60% das páginas. Essa relação de cumplicidade e de troca de favores entre imprensa e poder é, de fato, antiga. Mesmo na virada do século XIX para o XX, quando a grande imprensa já estava se consolidando como empresa, com capitais próprios, isso ocorria, pois, como argumenta Robert Levine, “poucos jornais eram suficientemente fortes do ponto de vista financeiro. Muitos (a maioria) tinham que aceitar subsídios (suborno) dos políticos, dos interesses privados, dos cônsules estrangeiros”. 245 Pela ação e pressão do Estado Novo boa parte da imprensa brasileira passou a construir uma imagem do Estado como bem feitor e voltado para as demandas dos pobres e, em especial, dos trabalhadores. A construção dessa imagem passava também pela valorização personalista do próprio governante, em ações de mídia não apenas direcionadas aos trabalhadores, mas também às classes médias, contando inclusive, com apoio de parte significativa da intelectualidade brasileira. Em uma de suas passagens Sintonia faz referência a essa filosofia: Getúlio Vargas é elite, é classe média, é povo. Não desampara o direito de quem o tenha. Não pergunta a procedência, nem a árvore genealógica de quem o procura. Examina apenas. É um juiz incorruptível. Mas creio que ele é muito mais que povo porque sabe que é aí, neste palco ignorado, que se encerram os grandes dramas do Brasil. O governo que realizou no campo social, foi um trabalho gigantesco, mas é apenas uma face do que ele fez em geral no Brasil, que é obra fundamental com características próprias, capaz pela sua extensão e profundidade, de sagrar qualquer homem do mundo. 246 A estratégia de Getúlio Vargas passava pela existência de um rígido controle dos meios de comunicação, fossem eles jornais, revistas, rádios ou mesmo cinema. Uma vez controlada, a mídia começava a difundir a imagem de um governo pacificador, que em nome do progresso do país estaria disposto a perdoar e esquecer todo passado de lutas e conflitos. Como bem descreve, nas páginas de Sintonia, um dos colaboradores e ideólogos do Estado Novo (Leopoldo Peres), o governo Vargas demonstrava: “bondade, 245 LEVINE, Robert M. O Sertão Prometido: o massacre de Canudos no Nordeste brasileiro, 1893. São Paulo: Edusp, 1995, p. 4. 246 Sintonia, nº 37. Manaus, julho de1943. 122 generosidade, magnanimidade, o dom por excelência de compreender e perdoar – e perdoar até em conjunturas em que a falta de perdão seria escrita da justiça”.247 Como se vê, foi través da imprensa que essa ideologia foi transmitida de forma mais direta. Mas esse controle não se fazia sem mecanismos formais e legais de controle, o que explica o forte poder de atuação do Departamento de Imprensa e propaganda (DIP). Censurando matérias contrárias ao interesse do Estado de um lado, de outro lado o DIP fomentava e promovia a propaganda oficial, plantando notícias favoráveis ao varguismo, inclusive fornecendo apoio financeiro, mantendo interlocução direta com um conjunto de publicações empenhadas neste programa em cada Estado. Sintonia era uma dessas publicações, e sem rebuços assumiu a meta de introduzir e fortalecer a imagem oficial do regime varguista. A revista chegou mesmo a mostrar a existência de certa intimidade entre Rigoberto Costa e o próprio presidente da República, através da informação de que ambos haviam trocado telegramas elogiosos.: O PRESSIDENTE GETÚLIO VARGAS E O NOSSO DIRETOR Por ocasião do aniversário do Exmo. Snr. Presidente Getúlio Vargas, a 19 de Maio último, acontecimento marcante em todo o País comemorou justa e festivamente, a quem hoje homenageamos em nossa capa, o nosso prestigioso diretor Odontolando (sic) Rigoberto Costa, dirigiu àquele mais alto pivô da Nação, o seguinte despacho radiográfico: – Presidente Getúlio Vargas – Palácio do Catete – Rio – Em nome SINTONIA revista dos telegrafistas no meu próprio envio mais afetuosos parabéns data vosso natalício motivo satisfação todo bom brasileiro se orgulha um Brasil novo forte cujo ressurgimento grandeza se deve-vos... Respeitoso abraço – Telegrafista Rigoberto Costa – Diretor. *** Agradecendo, S. Excia. o Chefe da Nação endereçou ao nosso diretor, um expressivo cartão, cujos termos nos deixaram sobremodo sensibilizados e bem revelam a maneira lhana e cordial que caracterizam todos gestos do grande presidente, alem de estreita relação que o supremo chefe procura manter não só com os homens de imprensa senão com todos os cidadãos que sabem compreender a grandeza de sua obra reconstrutora da nossa nacionalidade. Revelando ao nosso público, essa correspondência, embora entrando em choque com a modéstia simplista de quem norteia os destinos desta revista, sentimo-nos satisfeitos em saber que cumpriremos o nosso dever.248 247 248 Sintonia, nº 23. Manaus, 19 de abril de 1942. Sintonia, nº 4. Manaus, junho de 1940. 123 Assim, a revista Sintonia procura mostrar, além de proximidade, fidelidade e apoio ao chefe da nação, não por temor ou medo de represálias, mas por opção e convicção. A revista também veiculou cartas e telegramas do corpo ministerial, ocorrendo um exemplo dessa relação quando o Ministro da Justiça, a quem o DIP se subordinava, agradece a gentileza do diretor em lhe enviar uma remessa de exemplares da revista. Foi o próprio Marcondes Filho quem, utilizando-se do contexto de beligerância internacional, definiu e exemplificou em decreto-lei os assuntos considerados “antipatrióticos” e que não deveriam ser publicados e, de outro lado, aqueles que mereciam difusão. Ações impatrióticas seriam as caracterizadas pelo: Elogio aos regimes diferentes, porque importa em depreciação do nosso... pensar e dizer o que o Estado deveria realizar e não realizou... reclamar a realização e reconhecimento das providencias é trabalho contra o Estado... publicar e divulgar o que dizem os estadistas e os jornais dos países inimigos não será obra de esclarecimento mas de derrotismo...249 Inversamente, Marcondes Filho preconizava também o que se deveria dizer: “Falemos em brasileiros, no patriotismo dos brasileiros, nos deveres dos brasileiros, na congregação dos brasileiros em torno do chefe da nação”.250 No Amazonas a revista Sintonia seguia a risca os ditames oficiais e sequer questionava a censura. Pelo contrário, convivia em harmonia com ela, comentando a indicação dos novos censores e lembrando a seus colaboradores/leitores que desejassem contribuir com a publicação, deveriam se portar segundo os regulamentos do DIP: A fim de satisfazer as exigências que regulam as atividades da imprensa e da profissão de jornalista no país, encarecemos para que todas as colaborações que nos sejam enviadas venham devidamente acompanhadas do nome da residência dos respectivos autores, independentemente do pseudônimo por ventura adaptado. Prevalecerá para afeito da publicação o respectivo pseudônimo se isso aprouver ao colaborador; entendo que a prova da sua identidade é condição essencial e indispensável, para que os trabalhos enviados na devida consideração e conseqüente publicação. 251 249 Apud: CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em Cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas, SP: Papirus, 1998, 187. 250 Ibidem, p. 188. 251 Sintonia, nº 4. Manaus, junho de 1940. 124 Tendo a Segunda Guerra Mundial como cenário, Sintonia não deixou de fazer a crônica do impacto desse conflito no contexto Amazônico. Como é sabido, Getúlio Vargas, após entabular no início dos anos 1930, uma política externa pendular, oscilando o foco de atenção e interesse aos países Aliados e do Eixo, por fim optou por uma aproximação maior com o governo norte americano, do presidente Roosevelt.252 Sintonia, em harmonia com todas as políticas estodonovistas, expressou total apoio à entrada do Brasil na Guerra e a adesão do Brasil aos Aliados: “Sintonia, neste momento decisivo para a história das Américas, exprime de júbilo, o seu inteiro aplauso e seu irrestrito apoio à atitude do Chefe da Nação, no gesto brasileiro de solidariedade ao grande país irmão, Estados Unidos da América do Norte, ante a agressão brutal de que foi vítima”.253 Com efeito, os Estados Unidos mostravam-se preocupados com as oscilações de Vargas, pois não “pretendiam, em hipótese alguma, deixar o Atlântico Sul sob influência dos alemães”254. Vargas, contudo, não vendeu barato essa adesão e buscou auferir os máximos benefícios financeiros e comerciais dessa relação. Além do apoio, cabia ao Brasil deveria fornecer aos Estados Unidos matérias-primas necessárias no esforço de Guerra então em desenvolvimento. Entre os principais produtos necessários a esse esforço estava a borracha amazônica. Com efeito, a situação se agravou ainda mais quando as áreas de produção localizadas no Oriente estavam minadas e ocupadas pelos japoneses, fazendo da Amazônia a única área produtora disponível aos Aliados. Graças à intervenção do Governo Vargas, foram estabelecidos subsídios à nova imigração de trabalhadores, principalmente da região do Nordeste para os seringais amazônicos. Esses trabalhadores passariam a ser identificados pelo propagandismo oficial como se fossem verdadeiros soldados, só que numa luta pela ampliação da produção. Eram, como mencionamos, os “soldados da borracha”, por quem Sintonia passou logo a se preocupar. Segundo a revista, o momento também seria oportuno para integrar a Amazônia definitivamente a economia nacional e para promover o desenvolvimento da região, além 252 TOTA, Antonio Pedro. O Estado Novo. Op. cit., p. 51. Sintonia, nº 20. Manaus, 30 de dezembro de 1941. 254 Ibidem, p. 53. 253 125 de viabilizar o povoamento do território com a entrada de imigrantes que neste momento vinham de todas as partes do Brasil. 255 Em relação à Batalha da Borracha a revista reforça uma imagem romântica do seringueiro como um privilegiado, por poder contribuir com a pátria em guerra. Sua forma peculiar de combate “era extraindo o ouro negro da nossa flora, para a salvação da humanidade”256. Nesse movimento em prol do Brasil era preciso o engajamento de toda a sociedade, daí a importância de se mostrar, como fez Sintonia, o próprio governador do Estado, Álvaro Maia, arregaçando as mangas e enfrentando a labuta do seringueiro. Imagem nº 31 Fonte: Sintonia, nº 37. Manaus, junho de 1943. Mas o governo norte americano entendia ser necessário estabelecer com a América Latina outros métodos que legitimassem sua influência econômica e política, passando assim a difundir no Brasil e no continente sul americano os ideais do “american way of 255 256 Sintonia, nº 36. Manaus, maio de 1943. Ibidem. 126 life”, que consistia num amplo programa de exportação de comportamento, gostos artísticos e hábitos de consumo americanos.257 Gerson Moura, que analisou a atuação americana no Brasil, sustenta que essa política de aproximação, foi fundamental para consolidação na influência norte americana, tanto na esfera econômica quanto na esfera cultural, e que os resultados foram mais além do esperado e programado: “A partir de 41, o Brasil foi literalmente invadido por missões de boa vontade americanas, compostas de professores universitários, jornalistas, publicitários, artistas, militares, cientistas, diplomatas, empresários e etc. – todos empenhados em estreitar os laços de cooperação com brasileiros – além das múltiplas iniciativas oficiais”. 258 Imagem nº 32 Fonte: Sintonia, nº 22. Manaus, 10 e março de 1942. De acordo com Gerson Moura um dos métodos estratégicos para aumentar a influência ideológica norte americana na sociedade brasileira foram diversos, mas os filmes hollyoodianos e os desenhos animados da Disney (como os “três amigos”), produzidos para estreitar os laços culturais, tiveram grande influência. Assim, as agencias 257 258 MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 11. Ibidem, p. 11. 127 de notícias norte americanas preocupavam-se em enviar para a imprensa brasileira matérias sobre os filmes que chegavam em todos os cantos do país, inclusive em Manaus ou mesmo em cidades interioranas da Amazônia. No bojo desse movimento, um dos maiores clássicos da indústria cinematográfica norte americana (...E o vento levou), chegou a capa da revista (Imagem nº 32). Esse interesse do público pelo cinema era efetivamente grande e Sintonia mantinha duas colunas especiais sobre os filmes hollywoodianos: “No Mundo do Cinema” e “Últimas Notícias de Hollywood”. Sintonia acolheu essa política de projeção cultural-ideológica americana em suas páginas, já que também era uma forma de aumentar suas vendas, uma vez que os filmes norte americanos eram uma das maiores sensações do entretenimento da época. Assim, informar os leitores sobre os bastidores e os artistas internacionais era uma estratégia que garantia boa tiragem aos exemplares. Sintonia explorou ao extremo a visita de três dias na Cidade de Manaus do astro cawboy George O’brien. 259 Também com muito entusiasmo, Sintonia comentava a “reciprocidade cultural” pretensamente existente entre os dois países, explorando em suas páginas o sucesso de Carmem Miranda, segundo a revista, representando no estrangeiro a “mulata brasileira”. 260 Além do cinema, como era comum nas revistas de variedades, Sintonia também reservava em suas páginas espaços destinados a literatura, visando atender duas finalidades: explorar o interesse já estabelecido e a atenção do público leitor por esse gênero, já que os contos, novelas e folhetins sempre apareciam distribuídos entre este tipo de publicação. A outra era a promoção dos intelectuais e dos poetas que animavam a literatura na sociedade amazonense e que tinham nesses periódicos seus espaços de atuação. Assim, Rigoberto Costa seguia a trajetória iniciada por Clóvis Barbosa, com a sua Redempção. A veiculação de contos e de folhetins funcionava como um mecanismo de atração do público, já que o estimulava a acompanhar o desenrolar das tramas, fazendo-o sempre 259 260 “Um astro do cinema visita Manaus”. Sintonia, nº 3. Manaus, março de 1940. “O Brasil no Estrangeiro”. Sintonia, nº 24. Manaus, 30 de maio de 1942. 128 comprar o próximo número, o que também ampliava as vendagens e a manutenção da revista. 261 Neste particular, Sintonia recorreu a fórmulas clássicas de angariar recursos, como a venda por assinaturas, que chegava a vários Estados através da ação dos representantes que vendiam pacotes semestrais e anuais. O que a diferia Sintonia, neste particular, das revistas que a antecederam, é que mesmo que a revista destinasse grande parte do seu espaço com publicidade paga, estava mostrava-se numericamente em pé de igualdade com a propaganda oficial que a revista veiculava. O Estado, por meio das verbas de fomento repassadas pelo DIP, era uma de suas grandes fontes de financiamento. Entre os outros patrocinadores, destacavam-se os profissionais liberais, como dentista, advogados, farmacêuticos, médicos e mesmo professores. A revista alegava, inclusive, não poder prescindir destes patrocinadores, dado os custos elevados de sua produção, o que a fazia buscar formar e manter uma boa relação com o seguimento comercial local, a quem, em contrapartida, não negaria “apoio no tocante a propaganda da suas atividades, sem as quais, difícil seria fazer face aos excessivos gastos e compromissos que tomamos para ver uma publicação como esta em circulação”. 262 261 262 MAYER, Marlyse. Folhetim: Uma História. São Paulo: Cia das Letras, 1996. Sintonia, nº 3. Manaus, março de 1940. 129 C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A I S 130 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em que pese todos os esforços havidos até aqui (e foram muitos!), a construção de uma História da Imprensa no Amazonas mal começou sua caminhada e desafios diversos ainda se colocam à sua frente. Esta dissertação tentou enfrentar um tema e uma lacuna na escrita historiográfica amazonense (as revistas de variedades), mas de forma alguma fechou questões. Antes, nosso interesse foi fazer exatamente o contrário: abrir questões e o próprio tema, para propiciar um debate que, com o tempo, resultará em sua melhor elucidação. É, portanto, apenas um caminho iniciado, e mesmo este breve e restrito caminhar, esbarrou na fronteira de minha capacidade atual de enfrentá-lo. As “receitas” e os caminhos (metodológicos, teóricos) desenhados à partida, não impediram a emergência de frequentes dúvidas e verdadeiras encruzilhadas conceituais. Se a recuperação da historiografia brasileira sobre os impressos e, em especial, sobre as revistas, contribuiu fortemente, nem por isso deixamos muitas vezes de nos sentir no escuro, pois a História da Imprensa que se desenvolveu no Amazonas – e o mesmo se pode dizer para a História em geral – não foi mera repetição da História da Imprensa carioca ou paulista, frequentemente entendida como sendo a própria História Nacional. A História da Imprensa no Amazonas, como já nos havia alertado Maria Luiza Ugarte Pinheiro, seguiu outra periodização263, outros caminhos e, por vezes, sinalizava para direções contrárias às histórias “nacionais” descritas e analisadas por historiadores da envergadura de um Nelson Werneck Sodré, Maria Helena Capelato, Marco Morel ou Juarez Bahia. Trabalhos primorosos como o de Ana Luiza Martins, lançando mão de centenas e centenas de títulos de revistas produzidas em diversos Estados da Federação, discutiram a trajetória dos mais bem documentados sucessos editoriais da História da Imprensa brasileira. Muito provavelmente sua envergadura “nacional” os afastava dos títulos mais modestos e das trajetórias logo interrompidas. Assim, a revista Cá e Lá manauara sequer encontraria espaço em publicações como essa, como de resto, nenhuma revista amazonense aparece localizada nas listas ali reproduzidas, por maiores que fossem. A própria Cá e Lá paulista, que inspirou os editores manauaras, tem na obra de Ana Luiza 263 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte. Op. cit. p. 58-60. 131 Martins, duas únicas inserções, constando apenas de registros em listagem de periódicos, sem análise ou contextualização.264 Por esse motivo o enfrentamento do tema da História do gênero revista – e de sua sub-especialização, as revistas de variedades –, tal como surgido e desenvolvido no Amazonas é, de fato, outro tema, que não se mede pela mesma escala dos esforços consagrados pela historiografia brasileira. Quase todos os periódicos que serviram de base para a nossa análise na dissertação, sequer surgiram com o perfil já estabelecido como uma “revista de variedades”, projetando-se neles, contudo, ao longo de suas trajetórias e, assim mesmo, sem nunca terem usado o qualificativo de variedades. Embora os títulos amazonenses tenham alcançado uma envergadura claramente menor que a de muitas revistas do gênero no Brasil – ou mesmo insignificantes, a se tomar como modelo a trajetória de revistas como O Malho, Fon-Fon!, O Cruzeiro, ou Manchete – existiram em um meio onde foram recebidas, lidas e admiradas por seu público. Só isso já nos parecia suficiente para delas nos ocuparmos neste trabalho. Como sustenta a epígrafe, tomada de empréstimo de Machado de Assis, as coisas aparentemente pequenas tem também algo de importante a dizer... Nunca é demais argumentar que uma tal confrontação, seja de contextos (Rio de Janeiro/São Paulo e Manaus), seja de impressos neles surgidos (O Cruzeiro ou Sintonia), é, de fato, uma opção metodológica equivocada, tão somente porque é impossível tratar como iguais, fenômenos que se medem por escalas próprias. Que critérios utilizaríamos, por exemplo, para aferir um “contexto cultural”, hierarquizando-o ante os demais? Tentativas grandiosas de hierarquizar, povos, sociedades e culturas – veja-se Arnold Toynbee e sua hierarquia de civilizações265 –, resultaram todos em fracassos retumbantes, logo identificados com abordagens discriminatórias e conservadoras, seja por seu elitismo, eurocentrismo ou mesmo racismo mal disfarçado. A trajetória de surgimento e desenvolvimento de revistas de variedades no Amazonas foi única, dentre outras coisas porque nunca passou de uma fase mais propriamente experimental, tal a dificuldade de consolidação que enfrentou e ainda enfrenta. Afinal, nem mesmo nesta Manaus “moderna” de hoje, de economia dinâmica, movimentada pelo Distrito Industrial da Zona Franca, as revistas de variedades se estabeleceram, embora o público local consuma sofregamente títulos “nacionais” diversos. Seria esta, então, a história de um fracasso? 264 265 MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revistas. Op. cit., p. 173; 400. TOYNBEE, Arnold. Um Estudo de História. 2ª ed. Brasília: editora da UnB, s/d. 132 Se nos ativermos às sucessivas interrupções, as contínuas metamorfoses, a pequenez dos títulos, a ausência de experiências na atualidade, parece ser essa a impressão predominante. Mas é também a história de sucessos demarcados, como o foram os vivenciados por Redempção – em especial nos anos de 1931-1932 – ou por Sintonia, esta última entre os anos de 1939 e 1943. Foi dessas trajetórias conflituosas e densas e ainda não de todo recuperada das poeiras dos arquivos ou das teias de aranhas da memória de uma sociedade que não costuma cultuar seu passado, que quis me ocupar nestas páginas. Como meu próprio objeto de estudo, as dúvidas me acompanham ao final do trabalho, já que o encerro sem saber se consegui realizar o caminho idealizado à partida. Fico com a idéia de que talvez não devesse agora pensar no destino traçado, mas na viagem singular que empreendi. Como sugere o “Cantares” de Antonio Machado, aprendi caminhando o caminho e para mim, ainda não é hora, nem de olhar pra trás, nem de parar. 133 F O NT E S 134 FONTES 1. Periódicos:* A Crítica. Manaus, 1961; 1984 e 1985. A Liberdade. Manaus, 1924. A Nota. Manaus, 1917. Arquivos do Amazonas. Manaus, 1908-1909. Cá e Lá. Manaus, 1915-1917. Jornal do Commércio. Manaus, 1917. O Escritor. Manaus, 1934. O Rionegrino. Manaus, 1923-1978. Pará Ilustrado. Belém, 1960. Pontos nos ii. Manaus, 1906. Redempção. Manaus, 1924-1932. Revista Amazonense. Manaus, 1923. Revista Collegial. Manaus, 1906. Revista da Academia Amazonense de Letras, 1918. Revista da Associação Comercial do Amazonas. Manaus, 1908-1919. Revista de Educação. Manaus, 1931. Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Manaus, 1917. Revista Médica do Amazonas. Manaus, 1899. Sintonia. Manaus, 1939-1943. Vellosia. Manaus, 1885-1888. 2. Outras Fontes: Álbum do Amazonas, 1901-1902. Manaus: Imprensa Oficial, 1902. 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E o Vento Levou Página 41 41 42 43 61 63 64 67 69 70 70 78 80 81 81 85 86 92 93 93 99 105 106 106 107 108 114 120 120 120 125 126