SEIN UND ZEIT: SOBRE UMA METAFÍSICA DA MORTE SEIN UND
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SEIN UND ZEIT: SOBRE UMA METAFÍSICA DA MORTE SEIN UND
72 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. SEIN UND ZEIT: SOBRE UMA METAFÍSICA DA MORTE SEIN UND ZEIT: ABOUT AN METAPHYSICS OF DEATH ANTUNES, Paulo Fernando Rocha 1 RESUMO O presente artigo propõe como objetivo a disquisição de uma metafísica da morte em Sein und Zeit de Martin Heidegger, mais precisamente nos seus célebres parágrafos 46-53. O artigo assume a perspetiva de que uma “metafísica da morte” não assoma apenas em sentido teológico, principalmente no que se refere enquanto sobrevivência pós-morte. Assim, perscruta a possibilidade de uma particular metafísica da morte na obra referida e lança a discussão sobre certos tipos de repercussões que podem ser retiradas desta. Palavras-chave: Dasein. Metafísica. Morte. ABSTRACT This paper proposes as its objective the disquisition from metaphysics of death in Sein und Zeit of Martin Heidegger, more precisely in his well-known paragraphs 46-53. The paper takes the perspective that “metaphysics of death” looms not only in the theological sense, especially with regard of postmortem survival. In this way scrutinizes the possibility of metaphysics of death in that particular work and launches the discussion about certain types of repercussions that can be drawn from this. Keywords: Dasein. Metaphysics. Death. 1 Doutorando no Programa de Pós-graduação de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). E-mail: [email protected]. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/8132492792420496. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 73 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 «Para compreender a significação da morte, tudo depende da medida em que nos liberarmos da ideia das “Parcas” que exprime o aspeto sob o qual a vemos habitualmente: como se, num momento dado, o fio da vida fosse bruscamente “cortado”, como se a morte impusesse um limite à vida no mesmo sentido em que o corpo não-orgânico para no espaço porque um outro corpo, com o qual em si nada tem a ver, o empurra e determina a sua nova forma – quer dizer, a própria cessação do seu ser. Assim a maior parte das pessoas visualiza a morte como uma profecia sombria que sobrevoa a vida, mas que só tem a ver com ela no instante da sua realização, assim como sobrevoou a vida de Édipo a profecia de que num dado momento haveria de matar seu pai. Na realidade, no entanto, a morte está, de saída, intimamente ligada à vida.» Georg Simmel (1909) Nótulas preambulares O presente artigo tratará de uma disquisição sobre uma particular metafísica, que cremos manifestar-se em Sein und Zeit (1927) de Martin Heidegger. Por um lado, não caberá aqui discutir a validade ou invalidade de uma Metafísica ou de uma anti-Metafísica tomada em senso lato, tãopouco as suas diversas manifestações. Por outro lado, caberá perscrutar a possibilidade de uma particular metafísica da morte na obra referida e lançar a discussão sobre certo tipo de repercussões que podem ser retiradas desta 2. 2 Também não caberá aqui estabelecer qualquer comparação de tal metafísica com os compromissos posteriormente assumidos pelo autor, tal, se assim entender, ficará a cargo do leitor. E ainda que tais compromissos não nos sejam indiferentes, para efeito do objetivo a que nos propomos, devemos economizar espaço, tal como evitar qualquer desvio que nos abrisse portas a um outro estudo que não cabe aqui. Por isso, também não caberá qualquer proposta alternativa acerca de um posicionamento do ser humano face à morte. Posto isto, certamente não encetaremos alguma tanatologia – “estudo científico da morte” –, pelo menos em strictu sensu. Segundo Michael Simpson a tanatologia teve as suas Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. Por conseguinte, recusamos a ideia transmitida por Paul-Louis Landsberg um decénio mais tarde (1937): «[…] estamos longe de ter uma metafísica da morte, como temos da vida.» (1966, p.197); ou a completa mudez acerca de uma metafísica da morte em Sein und Zeit a cargo da edição de James Stacey Taylor – The Metaphysics and Ethics of Death (2013) – Heidegger não foi referido uma única vez 3; bem como recusamos a própria demissão deste: Tudo o que se possa discutir sob a rubrica de uma “metafísica da morte” [Metaphysik des Todes] extrapola o origens por volta de 1795 (cf. SIMPSON, 1979, p.vii). Daí por diante a investigação sobre a morte recrudesceu, este mesmo autor coletou uma impressionante bibliografia a respeito desta temática nas mais variegadas disciplinas (cf. SIMPSON, 1979). Mas o interesse na temática não se ficou apenas pelo final dos anos 70, desde então por várias vezes a morte tem suscitado o interesse de várias áreas. A título de exemplo, remete-se para estudos mais recentes, particularmente em filosofia, desde logo com John Martin Fischer, The Metaphysics of Death (1993); com Fred Feldman, Confrontations with the Reaper. A Philosophical Study of the Nature and Value of Death (1994); com Jeff Malpas e Robert C. Solomon (Eds.), Death and Philosophy (1998); e um pouco mais recentemente, com Steven Luper, em The Philosophy of Death (2009), que buscou uma sistematização filosófica acerca dos assuntos particulares considerados mais concernentes à morte; remete-se ainda para uma panorâmica geral de algumas ilustres passagens acerca da temática, coletada por Patrick Dupouey em La Mort (2004). 3 Em “introdução”, Taylor refere: «“A verdadeira dedicação da filosofia”, escreveu Sócrates no “Fédon”, “é buscar sempre a morte”. Embora seja improvável que alguém ainda concorde com Sócrates, é certamente verdade que muitas pessoas acreditam que filosofar sobre a morte é útil na abordagem de numerosos problemas que ocorrem na vida. Isso reflete-se no facto de que nos últimos anos tem havido um aumento significativo de atenção em quantidade filosófica dedicada a ambos – a metafísica da morte [metaphysics of death] e as muitas e variadas questões éticas que estão relacionados com ela», (TAYLOR, 2013, p.1). Pleiteamos, se calhar está enganado acerca de ninguém mais concordar com Sócrates… Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 74 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 âmbito de uma análise existencial da morte [existenzialen Analyse des Todes]. […] Numa ordem metodológica, a análise existencial precede as questões da biologia, psicologia, teodiceia e teologia da morte (HEIDEGGER, 2006, §49, [p.248], p.323 4). Quer dizer, recusamos a ideia de que não possa existir uma metafísica da morte estatuída e asseverada tal como podemos encontrar uma metafísica da vida; tal como recusamos a ideia de que uma metafísica da morte apenas possa ser entendida num sentido “psicologizante”, “teológico”, essencialmente “especulativo”, ou pelo “habitual” anseio de uma “sobrevivência da vida pós-morte” 5. Conquanto, o nosso estudo ficará sempre incompleto devido ao profuso desfiar conceptual presente em Sein und Zeit, constando um entrelaçado de conceitos que nos seria de impossível abordagem sistemática devido ao espaço que temos reservado. Assim, focaremos a nossa atenção essencialmente nos parágrafos 46-53, onde se encontra um “esboço preliminar de uma filosofia da morte” (preliminary sketch of a philosophy of death; cf. ZORN, 1991), onde o autor procura explicitar o seu conceito-chave – ser-para-a-morte (Sein zum Tode) 6. 4 Para todas as citações de Sein und Zeit procurou-se remeter sempre para o respetivo parágrafo da obra, bem como colocar entre parênteses retos as páginas da edição alemã (veja-se a “observação preliminar à 7.ª edição” 2006, p.33). Sempre que um conceito aparece procura acompanhar-se do seu respetivo termo original, apenas Dasein aparece sempre como tal, bem como será repetido no início de cada citação que o refira, isto acontece por não ser do nosso agrado a sua tradução para “presença” como aparece na meritória tradução de que nos servimos. 5 Ainda que um outro aspeto, heuristicamente fecundo, pudesse ser abordado no âmbito da presente investigação – a relação do autor com a tradição cristã. Veja-se Clark Buchner que acusa Heidegger de usar “categorias explicitamente religiosas” (explicitly religious categories; cf. 2005, p.55), contudo, essa dimensão poderia abrir caminhos que por agora não procuramos. 6 Para outras perspectivas acerca do que esta Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. Com efeito, propõem-se os seguintes passos: “Da questão sobre o sentido do ser à cura”, onde se procurará, muito sucintamente, avançar uma perspectiva geral sobre o percurso heideggeriano em Sein und Zeit até aos aludidos parágrafos fundamentais para o efeito anunciado; “O ser-para-a-morte como propriedade e sentido de ser”, onde se procurará perscrutar a explicitação do significado da morte, e de se ser para a morte, como propriedade e sentido de ser; e, “Sobre uma Metafísica da Morte e as suas repercussões”, onde se procurará lançar a discussão sobre certos tipos de repercussões consideradas conjungirem-se a uma metafísica da morte tal como se manifesta na obra em estudo. Da questão sobre o sentido do ser à cura Assoma como tarefa indispensável avivar a memória do leitor em relação às teses mais pertinentes pelas quais Heidegger percorre, em Sein und Zeit, até à “morte” enquanto constituição fundamental ontológico-existencial. Como desiderato substancial, encontramos o delineamento de uma chamada “ontologia fundamental” conceptualização heideggeriana representa, veja-se: Paul Edwards em Heidegger on Death. A Critical Evaluation para quem o ser-para-a-morte seria “claramente falso” (clearly false) e uma “banalidade” (platitude), uma vez que a consciência da morte que diferiria o ser humano dos animais é naturalmente alguma coisa que influencia a sua conduta, seria isto que se encontrava por detrás do “jargão pesado” (ponderous jargon) de Heidegger (1979, pp.50-60); Hermann Philipse em Heidegger’s Philosophy of Being. A Critical Interpretation onde aponta o conceito ser-para-a-morte como uma “magistral peça de retórica” (masterly piece of rhetoric; 1998, p.354); e, para uma crítica mais célebre – Emmanuel Levinas, Totalité et Infini: essai sur l'extériorité (1961). Por fim, para um autor que considera que aqueles três autores não entenderam o conceito de morte em Heidegger, veja-se Havi Carel em Life and Death in Freud and Heidegger (cf. 2006, p.68); e, para um estudo mais sistematizado do que pode significar a finitude em Heidegger – Carol J. White em Time and Death. Heidegger’s Analysis of Finitude (2005). Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 75 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 (Fundamentalontologie), a qual, por analogia poderia ser considerada a “revolução copernicana” em escopo heideggeriano, salvaguardando todas as diferenças com Nicolau Copérnico… mas mais precisamente com Immanuel Kant (cf. 2001, B XVI-B XVII; PHILIPSE, 1998, pp.137-139). Contudo, aqui não se trataria de um problema de toada epistemológica, isto é, de (re)centrar a matéria (ser) de conhecimento num “sujeito de conhecimento” munido a priori com as suas categorias. Antes, tratar-se-ia de uma recolocação do sentido do ser em foro ontológico-existencial. A “ontologia fundamental” recolocaria a ontologia, a metafísica, tradicional – que “universalizara” o ser e, quase sempre, o tornara sede de onde se guarnecia a “essência” humana –, nos eixos de onde teria caído em esquecimento, como o autor nos apela nas primeiras páginas: […] a questão [do ser] aqui evocada caiu no esquecimento [Vergessenheit]. […] A questão referida não é, na verdade, uma questão qualquer. Foi ela que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles para depois emudecer como questão temática de uma real investigação (HEIDEGGER, 2006, [p.2], p.37). Subsequentemente o autor apontou o “caráter dogmático” que um tal esquecimento fez ressoar na história do pensamento. Para invertê-lo, Heidegger exorta à “destruição” de toda a “ontologia tradicional” (cf. HEIDEGGER, 2006, §§36, pp.47-65). Para o efeito, o sujeito assumia-se como o “lugar” privilegiado para se colocar a questão sobre o sentido do ser (Frage Nach dem Sinn von Sein; cf. HEIDEGGER, 2006, §4, [p.12], p.48). Eis os eixos de onde teria caído em esquecimento – o sujeito como abertura (Erschlossenheit) seria o Dasein, isto é, o ser aí, ou o aí do ser. Assim, colocavam-se as ferramentas metodológicas do autor enquanto Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. fenomenológicas e hermenêuticas. Pela primeira, estudar-se-iam os fenómenos e como estes se davam, tal como se desvelavam ao Dasein. Na verdade, podemos entender o “ser-para” como tributário direto da “intencionalidade” fenomenológica 7, ou seja, “ser-se para” é já ter sempre consciência de alguma coisa e “ser-se para” a mesma. Pela segunda, privilegiar-se-ia a interpretação dos fenómenos. Confirmava-se o encalce “existencialista” – não seria uma essência dada a priori, ou anterior de alguma outra maneira, a determinar a existência –, a existência ao compreender as suas possibilidades (Mӧglichkeiten) de ser determinar-se-ia a si mesma (cf. HEIDEGGER, 2006, §7, pp.75-78). Já não seria, como até então, o ser como fator determinante, mas o sujeito, como sujeito de compreensão (Verstӓndnis), a interpretar (Auslegung) abertamente o ser. Como o autor refere: À medida, porém, que a existência determina a presença [Dasein], a analítica ontológica desse ente [Seienden] sempre necessita de uma visualização prévia da existencialidade [Existentialität]. Entendemos a existencialidade como a constituição de ser de um ente que existe. Na ideia dessa constituição de ser já se encontra, pois, a ideia de ser em geral. Desse modo, a possibilidade de se realizar uma analítica da presença sempre depende de uma elaboração prévia da questão sobre o 7 Para uma sistematização do que a “intencionalidade” significa mais precisamente na esteira fenomenológica veja-se, por exemplo, o seu fundador Edmund Husserl, Cartesianische Meditationen (1931): «[…] traço essencial da intencionalidade [Intentionalität]. Cada estado de consciência possui um “horizonte” que varia conforme a modificação de suas conexões com outros estados e com as próprias fases de seu decorrer. É um horizonte intencional [intentionalen Horizont], cuja caraterística é remeter as potencialidades da consciência que pertencem a esse mesmo horizonte.», (2001, p.62). Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 76 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 sentido de ser em geral. […] Em consequência, a presença possui um primado múltiplo frequente a todos os outros entes. O primeiro é um primado ôntico: a presença é um ente determinado em seu ser pela existência. O segundo é um primado ontológico: com base em sua determinação de existência, a presença é em si mesma “ontológica”. […] A presença tem, por conseguinte, um terceiro primado, que é a condição ôntica-ontológica da possibilidade de todas as ontologias. Desse modo, a presença se mostra como o ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro (HEIDEGGER, 2006, §4, [p.13], p.49). Esta é a “analítica existencial” (existenzialen Analytik) do Dasein! A este, compete interrogar, pré-compreender, as suas possibilidades de ser. Diz o autor: «A questão do ser não é senão a radicalização de uma tendência ontológica essencial, própria da presença [Dasein], a saber, da compreensão pré-ontológica de ser.» (HEIDEGGER, 2006, §4, [p.15], p.51). O caráter determinante que o Dasein assume ante a sua “essência” é-lhe possibilitado pela sua abertura ao ser enquanto ente diferente de todos os outros entes, aquele já sempre pôde précompreender e assim “preencher” o sentido do ser. E o sentido desse ente a que Heidegger chama Dasein não é senão demonstrado pela temporalidade, ora, […] o tempo é de onde a presença [Dasein] em geral compreende e interpreta implicitamente o ser. Por isso, deve-se conceber e esclarecer, de modo genuíno, o tempo como horizonte de toda compreensão e interpretação de ser (HEIDEGGER, 2006, §5, [p.17], p.55). Mas o autor não se fica apenas por considerar como suficiente aquela “radicalização de uma tendência ontológica essencial”. Ora, para que o Dasein exerça a sua determinação ontológica tem de pautar Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. a sua decisão (Entschlossenheit) pela propriedade de ser, ou seja, haveria uma maneira própria – propriedade (Eigentlichkeit) –, e outra imprópria – impropriedade (Uneigentlichkeit) –, de se relacionar temporalmente com as suas possibilidades de ser. Não obstante, as determinações próprias e impróprias devem ser compreendidas apenas a partir daquilo que Heidegger vai chamar de ser-no-mundo (in der Welt sein): Estas determinações [própria e imprópria] do ser da presença [Dasein], todavia, devem agora ser vistas e compreendidas a priori, com base na constituição de ser que designamos de ser-no-mundo. O ponto de partida adequado para a analítica da presença consiste em se interpretar esta constituição (HEIDEGGER, 2006, §12, [p.53], p.98). Porém, para efeitos de comedimento face ao proposto não explanaremos o que o autor descreve enquanto a “mundanidade do mundo” (Weltlichkeit der Welt) e o “serem” (In-sein) como tal. No entanto, não podemos deixar de referir desde já que o modo de ser impróprio vai consistir no impessoal (das Man) – trata o modo de ser do Dasein quando este se despersonaliza em angústia (Angst) perante a “falta de sentido da vida” (no seguimento da herança de uma “morte de Deus”) e pela “consciência da sua própria morte” 8. Portanto, para o autor, a morte constituiria uma determinação essencial para uma conduta própria, assim, assomando como essencial a cura (Sorge). Nas suas palavras: Do ponto de vista ontológico, porém, ser 8 Por aqui poderia abrir-se uma outra linha de investigação quanto a uma reflexão acerca da morte – após a “morte de Deus”, após aquilo que alguns dos seus epígonos consideraram ser o sentido de uma “pós-modernidade” –, mas tal excederia o mote da presente investigação. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 77 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 para o poder-ser [Seinkӧnnen] mais próprio significa: em seu ser, a presença [Dasein] já sempre antecedeu a si mesma. A presença já está sempre “além de si mesma”, não como atitude frente aos outros entes que ela mesma não é, mas como ser para o poder-ser que ela mesma é. Designamos a estrutura ontológica essencial do “estar em jogo” como o anteceder-a-si-mesma [sichvorweg-sein] da presença (HEIDEGGER, 2006, §41, [pp.191-192], pp.258-259). No anteceder-se-a-si-mesmo o Dasein projeta compreensivamente o que ainda não é, mas pode vir a ser, e neste vir a ser encontra-se a morte. Isto é, ao précompreender o horizonte temporal das suas possibilidades, e decidir com base nestas o seu projeto (Entwurf), o Dasein pode agir propriamente, e, nesse mesmo horizonte, a morte aparece como irremissível (unbezüglich), garantia de finitude (Endlichkeit). Vejamos como o ser-para-amorte assoma enquanto constituição fundamental ontológico-existencial. O ser-para-a-morte como propriedade e sentido de ser Na irremissibilidade da morte «Ninguém pode assumir a morte do outro. […] Cada presença [Dasein] deve, ela mesma e a cada vez, assumir a sua própria morte.» (HEIDEGGER, 2006, §47, [p.240], p.314). Para o autor, não nos devemos ater a um sentido imediatamente vulgar, pois pretende destacar o caráter existencial da morte – apenas num quadro de constituição de sentido, assumindo a sua própria morte, cada Dasein pode ser próprio. A morte aparece à guisa de uma crítica da totalidade (um adversário de certa forma sempre presente), aquela torna-se fator de singularização (Vereinzelung), confirmação existencial 9. Deve-se, pois, 9 Este sentido de uma crítica da totalidade pode ser cotejado com o mesmo sentido que o existencialista judeu Franz Rosenzweig já vinha delineando acusatoriamente no seu Der Stern der Erlösung em Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. distinguir entre a morte de um sujeito e a morte existencial deste. Ser e estar no fim constituir-se-á peculiaridade do ser simplesmente dado (Vorhandenheit); e serpara-o-fim (Sein zum Ende) constituir-se-á conceito existencial de morte, o ser-para-amorte já será ontológico-existencial. O Dasein existe de uma outra maneira em relação às outras “coisas”, ou seja, somente o Dasein pode ser próprio ou impróprio: Levando-se ao extremo, o não-mais-serno-mundo [Nicht-mehr-in-der-Welt-sein] do morto ainda é também um ser, na ascensão do ser simplesmente dado de uma coisa corpórea. Na morte dos outros, pode-se fazer a experiência do curioso fenómeno ontológico que se pode determinar como a alteração sofrida por um ente ao passar do modo de ser da presença [Dasein] (a vida) para o modo de não ser mais presença. O fim de um ente, enquanto presença é o seu princípio como mero ser simplesmente dado (HEIDEGGER, 2006, §47, [p.238], p.312). É por isso que o autor vai distinguir entre o finar (Verenden) e o findar (Enden), com vista a distinguir um tipo de morte de um tipo de sentido da morte. Não será o mesmo: fim, morte biológica, e o sentido existencial da morte 10. relação ao que considerava como uma diluição da morte no Todo (All), isto como assumido logro da Filosofia (cf. 1921, pp.7-9). 10 Como o autor destaca: «Enquanto fim da presença [Dasein], a morte não se deixa caraterizar adequadamente por nenhum desses modos de findar. Caso se compreendesse o morrer como estar-no-fim [Zu-Ende-sein], no sentido de um findar nos modos discutidos, supor-se-ia a presença, corno ser simplesmente dado ou corno algo à mão [Zuhandenes]. Na morte, a presença nem se completa, nem simplesmente desaparece, nem acaba e nem pode estar disponível à mão.», (HEIDEGGER, 2006, §48, [p.245], p.320). Heidegger paga, em nota de rodapé, o seu tributo de uma morte como “situação-limite” (Grenzsituation) para o fim do Dasein a Karl Jaspers, porém, não podemos aprofundar o quão tributário foi (cf. HEIDEGGER, 2006, §49, [p.249 n], p.324 n). Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 78 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Assumir-se a morte em âmbito estritamente natural, biológico, será assumir-se a morte como ser simplesmente dado, o que será uma fuga (Flucht) ao sentido existencial que a morte deve comportar a cada Dasein. Tal fuga também se reflete ao se assumir a morte como própria de terceiros, mesmo que se tenha plena consciência de que também ao próprio chegará. No âmbito público o “pensar” da morte será tido como cobarde e uma fuga sinistra ao mundo. Tudo isto serão manifestações do impessoal, este impede a coragem (den Mut) da assunção da angústia perante a morte, é uma forma imprópria de se estar perante esta (cf. HEIDEGGER, 2006, §51, [254], p.330). Para o autor, não somente não se pode escapar à morte como o Dasein deve procurar compreender que tipo de impacto tem na sua consciência, porquanto, «a morte é, em última instância, a possibilidade da impossibilidade pura e simples de presença.» (HEIDEGGER, 2006, §50, [p.250], p.326) 11. Quer dizer, a morte será muito mais do que simplesmente desaparecer, do que deixar de ter existência física. A morte será essencialmente a compreensão do Dasein de que não é imortal, infinito, de que não vai poder ter todo o tempo do mundo para Enquanto situação-limite a morte limita a capacidade do Dasein para ser. (Na mesma nota de rodapé, Heidegger também faz referência a Georg Simmel...). 11 Contra as teses heideggerianas situa-se Jean-Paul Sartre, para quem a morte não poderia ser uma possibilidade, pois apenas poderia significar não haver mais projeto. Sartre dizia: «[…] a morte jamais é aquilo que dá à vida ao seu sentido: pelo contrário, é aquilo que, por princípio, suprime da vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem qualquer solução e a própria significação dos problemas permanece indeterminada. […] Assim, devemos concluir, contra Heidegger, que a morte, longe de ser minha possibilidade própria, é um facto contingente [fait contingent] que, enquanto tal, escapa-me por princípio e pertence originariamente à minha facticidade.», (2008, pp.661; 668). Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. poder realizar os seus anseios. A morte é a possibilidade que muda as outras. Esquecer a morte será vaidade e fazer de conta de que não se é finito. A interpretação completa da fala cotidiana do impessoal sobre a morte e de seu modo de estar dentro da presença [Dasein] conduziu aos caracteres de certeza e indeterminação [Unbestimmtheit]. O pleno conceito ontológico-existencial da morte pode agora delimitar-se da seguinte maneira: Enquanto fim da presença, a morte é a possibilidade mais própria, irremissível, certa e, como tal, indeterminada e insuperável da presença. Enquanto fim da presença, a morte é e está em seu serpara o fim (HEIDEGGER, 2006, §52, [pp.258-259], p.335). O projeto compreensivo deve comportar a morte porque esta faz parte do seu horizonte de possibilidades. A morte não é o fim, mas uma forma de ser Dasein (para o fim). O impróprio será querer manter o presente, fugindo do futuro (ora, para o Dasein se o futuro é essencial, aquilo que o leva ao fim também terá de o ser). O fim do Dasein não é uma possibilidade da qual se deva esperar realização, mas uma condição ontológica que reside na sua estrutura temporal – se não existe nada de originário, de essência a priori, etc., e no horizonte temporal aparece a morte como certa, então, esta assoma como o originário. A morte pode ser uma possibilidade porque é tomada em significado existencial, o que quer dizer, como se dá em sentido de ser para o Dasein. A morte será originária na cura porque no estar-lançado (Geworfenheit) ela já está sempre aí como possibilidade permanente, irremissível e essencialmente singular. Daí que um poder-ser próprio tenha de a ter sempre em projeto, como possibilidade ontológica, ou seja, já sempre tomada na pré-compreensão do sentido do ser: Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 79 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 O ser-para-a-morte funda-se na cura. Enquanto ser-lançado no mundo, a presença [Dasein] já está entregue à responsabilidade de sua morte. […] O escape decadente e cotidiano da morte é um ser-para-a-morte impróprio. Impropriedade tem por fundamento uma possível propriedade. Impropriedade caracteriza um modo de ser, no qual a presença pode desviar-se e, na maior parte das vezes, sempre já se desviou, mas que não deve desviar-se constantemente ou necessariamente. Porque a presença existe, ela se determina como o ente que ela é, a partir de uma possibilidade que ela mesma é e compreende (HEIDEGGER, 2006, §52, [p.259], p.336). Neste sentido, a morte impele à escuta (Hӧren) de uma “voz da consciência” (Stimme des Gewissens) (cf. HEIDEGGER, 2006, §§54-58, [pp.267287], pp.345-369 passim). E daqui lança-se firme a uma decisão (mas não nos resta o espaço suficiente para um devido aprofundamento do caráter “decisório” ou “decisionista”). Adiante, o ser-para-a-morte não será propriamente o fim, mas como o Dasein caminha para um fim tem de o ter em projeto. A morte será, então, um fenómeno da consciência e deve ser interpretada no sentido de como a influencia. A morte é consciência de não mais vir a ser. Se a consciência é sempre consciência de alguma coisa e se a morte é a possibilidade originária da qual não se pode escapar, então, a consciência (própria) deve ter precisamente em projeto a morte. A consciência é sempre, e é de alguma maneira, consciência de morte, consciência de fim (em primeira instância). Ainda que a morte como possível, deva mostrar-se o menos possível, visto que não se deve remoer (Grübeln) sobre ela, porquanto isso significaria para o Dasein permanecer no fim das suas possibilidades (cf. HEIDEGGER, 2006, §53, [p.261], p.338). No fundamental, o Dasein já é Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. lançado “condenado” à morte e a única coisa que interessa será a “dignidade” com que lá chega. A morte é a possibilidade da impossibilidade sendo a possibilidade de se escolher (decidir) como morrer, quer dizer, como levar a vida. Para o Dasein o ser-para-a-morte trata-se fundamentalmente de uma compreensão de sentido que a sua própria morte tem no âmbito da assunção do seu projeto, «[…] consolida-se a compreensão de fim e totalidade nas variações como existenciais, o que haverá de garantir a possibilidade de uma interpretação ontológica da morte.» (HEIDEGGER, 2006, §48, [p.242], p.316). Mas nem por isso o autor pretende tratá-lo em âmbito ético, e ainda menos em âmbito teológico, visto que não se propõe assumir uma ética na sua obra, nem avançar para a certeza de uma sobrevivência além da morte (quando muito seria sempre subreptício). Conquanto, aqui se faz sentir o seu eflúvio agnóstico: Caso se determine a morte como “fim” da presença [Dasein], isto é, do ser-nomundo, ainda não se poderá decidir onticamente se, “depois da morte”, um outro modo de ser, seja superior ou inferior, é ainda possível, se a presença “continua vivendo” ou ainda se ela é “imortal”, sobrevivendo a si mesma. Também nada se poderá decidir onticamente a respeito do “outro mundo” e de sua possibilidade e nem tampouco sobre “este mundo”, no sentido de se propor normas e regras “edificantes” de comportamento frente à morte (HEIDEGGER, 2006, §49, [pp.247-248], p.323). O sentido da morte, ou o sentido para a morte, assoma como a possibilidade de ser “livre” do Dasein – pois apenas decidindo a sua conduta, sem fugir da irremissibilidade ou consciência da morte, pode “preencher” o seu projeto de forma própria, antecipar-se enquanto cura, ser chamado à sua “liberdade” –, esta a Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 80 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 constituição fundamental ontológicoexistencial. Como Heidegger refere: Pode-se resumir a caracterização do ser que, existencialmente, se projeta para a morte em sentido próprio, da seguinte forma: o antecipar desvela para a presença [Dasein] a perdição no impessoalmente-si-mesmo [Man-selbst] e, embora não sustentada primariamente na preocupação das ocupações, a coloca diante da possibilidade de ser ela própria: mas isso na liberdade para a morte [Freiheit zum Tode] que, apaixonada, fática, certa de si mesma e desembaraçada das ilusões do impessoal, se angustia (HEIDEGGER, 2006, §53, [p.266], p.343). Como se referia numa passagem anterior, o ser impróprio tem por fundamento a possibilidade de se ser próprio, a morte assoma como a consciência, o despertar, dessa liberdade 12. Sobre uma Metafísica da Morte e as suas repercussões Sein und Zeit não constitui, pelo menos de uma forma declarada, uma “metafísica da morte” em sentido tradicional – teológico – ou sequer em sentido que se faça corresponder diretamente a uma metafísica tradicional. Todavia, a recondução (a “revolução copernicana” em escopo heideggeriano) de uma “essência” a um sentido para o sujeito não o torna menos metafísico, antes, tratarse-á de uma recolocação do foco metafísico tradicional (que o autor não esconde) – 12 Como reforça David Johnson: «Uma tradição filosófica forte afirma que se as pessoas encararem a realidade da sua morte futura, elas serão capazes de viver uma vida mais autêntica [authentic]. [...] Para Heidegger, enfrentar a morte dá-nos uma sensação de falta de fundamento [groundlessness], o que nos liberta de convenções antiquadas, permitindo-nos viver espontaneamente.», (2004, p.89). Como Heidegger destacaria mais tarde em Vom Wesen des Grundes (1929): «A essência da finitude do estar-aí [Dasein] desvela-se, porém, na transcendência enquanto liberdade para o fundamento [Freiheit zum Grunde].», (1988, p.109). Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. incidindo numa suposta abertura ao ser. Podemos encontrar o estatuir de uma metafísica da morte através da sua constante “insinuação” dualista. Aliás, sem grande enleio, cremos mesmo que seja a partir daqui, como questão de fundo ontológico, que certos tipos de repercussões podem ser retiradas. Vejamos, o autor refere sempre uma condição enquanto abertura ao ser e outra de ser simplesmente dado, isto é, afirma uma possibilidade que transcenda um plano considerado como simplesmente ôntico. Daí, é levado a distinguir um findar de um finar e uma propriedade de ser (angústia e cura) de uma impropriedade de ser (despersonalização, mais precisamente, dessingularização no impessoal). Deste modo, podem mesmo ser encontrados sianis de uma metafísica da morte em esteira socrática, ou seja, (con)firma-se uma tendência para se destacar uma certa “autenticidade” humana distante de uma suposta “materialidade”, sempre tida em sentido “coisal”, determinando-se numa certa postura de “correção” em relação à morte. Evoquemos Sócrates: Enfim, aqueles que os juízes consideram terem levado uma vida excecionalmente santa, esses, emancipando-se destas regiões terrenas, e como que se libertando de uma prisão, ascendem lá ao cimo, às regiões puras da Terra, e aí estabelecem a sua morada. Ainda dentre estes, os que, através da filosofia, chegaram a um estado suficiente de purificação, passam a viver para todo o sempre livres do corpo, indo habitar moradas ainda mais esplendorosas, que não seria fácil, nem o tempo que nos resta seria suficiente para descrever (PLATÃO, 2004, 114 b-c). Platão coloca na boca de Sócrates a filosofia como lançada corajosamente perante a morte, o resto que lhe fuja será da ordem da “doxa” (δόξα), e no caso heideggeriano, da ordem do falatório Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 81 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 (Gerede) – no fundo, este reconduz a “fala pública” a uma “tagarelice”, a mais uma manifestação do impessoal (cf. HEIDEGGER, 2006, §35). Outro sinal de uma metafísica da morte, que de uma “insinuação” dualista se segue, pode ser encontrado na “demanda” de um sentido para a morte, de uma “justificação ontológica” para esta. Porquanto da morte não há como se livrar, então tem de se aceitar e compreender como fundamental na tomada da decisão serve-lhe o propósito de propriedade de ser. De certa forma como se de uma “teodiceia” da morte se tratasse – a morte não pode ser simplesmente, tem de ter/fazer sentido. Há sempre uma recusa da morte como “fenómeno” puramente biológico. Por conseguinte, a metafísica da morte em Sein und Zeit pode aparecer, em traços gerais, como uma secularização das filosofias-teologias da morte (um pouco como a chamada “filosofia da história” apareceu para a “teodiceia”). Podemos ainda entender a metafísica heideggeriana da morte como descendente da metafísica (da morte) de Arthur Schopenhauer, também esta em esteira socrática: «A morte é propriamente o génio inspirador, ou a musa da filosofia, pelo que Sócrates a definiu como preparação para a morte. Dificilmente se teria filosofado sem a morte.», (2000, p.59). Embora Schopenhauer fale de uma “sobrevivência” pós-morte, da vida como “ilusão” (Wahn) e de uma “vontade” (Wille) instituinte, quase sempre em inspiração oriental, ou seja, a ser realmente uma laicização, seria mais do Oriente… Mas, podemos encontrar mais próximo a Heidegger um outro autor – Max Scheler – que admitia uma intuição (Anschauung) da morte, uma “précompreensão”, não apenas no sentido que veio a defender – o de uma sobrevivência pós-morte (Fortleben) (cf. 1993, pp.53-74 passim) –, mas já como sintoma envergonhado de uma laicização que aí se desenvolvia (sem um Céu, propriamente Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. dito). Nesta metafísica heideggeriana também se coloca a orfandade sentida com a chamada “morte de Deus” que conferia uma certeza, mas agora: como é que alguma coisa pode fazer sentido sem Ele? Heidegger mantém a dúvida em relação à possibilidade de uma vida pós-morte, mantém um caráter agnóstico, o que indicia por sua vez que pode haver lugar a algo mais para essa abertura ao ser que o Dasein é, porém, não há como prová-lo. Contudo, como último sinal essencial para a explicitação de uma metafísica da morte em Sein und Zeit, uma constituição essencial como à angústia da morte (expressão inalienável da abertura do Dasein) terá de ser vista como incompreensível se a estrutura fundamental do ser do sujeito não incluir uma espécie de postulado existencial de algo para além, o que nas palavras de Landsberg é componente essencial para evidenciar um caráter metafísico, senão a morte seria um simples facto natural: A angústia da morte, e não apenas a dor da morte, seria incompreensível se a estrutura fundamental do nosso ser não incluísse o postulado existencial de algo para além. Sem isso, a morte seria simplesmente um facto futuro, dolorosa o suficiente, sem dúvida, mas sem qualquer gravidade excecional e sem qualquer perigo de um caráter metafísico (LANDSBERG, 1966, p.206). Embora Heidegger se recuse a postular “algo para além”, está bem visto que a morte não é um simples facto natural, senão, para quê perder tanto tempo com uma discussão em torno do seu sentido ontológico-existencial (para mais, em “insinuação” dualista)? Vejamos, então, qual o tipo de repercussões que se conjungem a tal metafísica da morte, pelo menos neste sentido particular até agora manifesto. Por um lado, parece assomar quase imediatamente certa “arbitrariedade” da Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 82 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 escolha da morte como fator determinante para a tal abertura; há aqui uma absoluta redução da vida e de todos os seus “fenómenos” a um dos seus “fatores” – a morte. Quer dizer, o seu “dualismo” não teria de destacar a morte como fez. Está certo que Heidegger atribui à morte uma originariedade irremissível pelo seu caráter de singularização e de possibilidade que vai influenciar todas as outras desde o primeiro momento, mas aqui caímos num “círculo” – a morte como originária vai determinar a abertura, mas é preciso estar aberto para que a morte determine (contudo, o autor rebate aquilo que apelida de “objeção do círculo”, cf. HEIDEGGER, 2006, § 63). Então, porque não outro fator? Como, por exemplo, acontece (com outro grau de arbitrariedade) em Hannah Arendt que apresenta por seu turno um caráter de similar originariedade ao nascimento (cf. 1961, pp.167-196 passim), aqui, sempre se começa pelo começo…; ou novamente evocando Scheler, porque não se exorta a um ser-para-o-envelhecimento (cf. LANDSBERG, 1966, p.195). Por outro lado, a “arbitrariedade” não se fica somente pela escolha da morte como fator determinante, o próprio caráter niilista que se apresenta por um vazio de “preenchimento” de sentido (pela falta de Deus), apenas ao alcance de uma decisão própria pela parte do Dasein, também vai dar aso a certa arbitrariedade deste (tem mais que ver com a formalidade da propriedade de ser), mesmo que seja sempre a partir de um aí (Da): No antecipar para a morte certa, mas indeterminada, a presença [Dasein] abrese para uma ameaça [Bedrohung] que sempre emerge de seu próprio pre [Da]. […] O projeto existencial do antecipar deteve-se, na verdade, nas estruturas da presença anteriormente conquistadas, permitindo que a própria presença se lançasse para essa possibilidade, sem imposição e pressão de um determinado “conteúdo” como ideal de existência Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. (HEIDEGGER, 2006, §53, [pp.265-266], pp.343-344). E ante tal ameaça, cabe ao Dasein decidir-se própria ou impropriamente, quer dizer, a um momento, apresenta uma coragem para a morte, o que pode ser tomado de certa maneira como uma “glorificação da morte”, e, em outro momento, o impessoal impede qualquer coragem para a morte o que implica que se fuja “cobardemente” desta. O primeiro pode repercutir numa tendência para o confronto (potencialmente belicista) e para atividades arriscadas com vista a provocar amiúde situações face-aface com a morte – um sujeito sem nada a perder é sempre perigoso (se nos for permitida tal simplificação teórica). Uma “glorificação da morte” também pode ser entendida no sentido em que a vida não passará de um percurso balizado por algo “irredutível” e “insuperável”, de certa forma “sedutor”. O segundo pode deixar espaço para certo “estoicismo”, vivendo cada dia como se a morte pudesse ser já amanhã, pois se o Dasein tem de a ter sempre em projeto, se é uma surpresa (um indeterminado) da qual não se pode ter uma previsão certa, como projetar antecipando-a se não for como se esta pudesse ser ao virar da esquina? É como se houvesse uma “doutrina da morte iminente”, à guisa de um estado de permanente “ansiedade da morte”. Isto quando o Dasein não estiver de facto a fazer de conta que a morte não existe como aponta o autor ao estado de impessoalidade. Posto isto, por causa de ao Dasein sempre poder caber alguma propriedade de ser mesmo na sua impropriedade de ser, podemos ainda encontrar como repercussão de tal metafísica da morte uma apologia (indireta ou não) de uma “vontade forte” (ao assumir da angústia, na decisão). O Dasein sempre se determina mesmo quando está em fuga, o que neste caso assomaria como uma “vontade fraca” e a “vontade forte” seria aceitar sempre a sua “liberdade Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 83 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 para a morte”. Encontramo-nos com as mais vivas ressonâncias nietzscheanas: A moral sempre ensinou a odiar e a desprezar o traço fundamental do caráter dos dominantes: a sua vontade de poder [Willen zur Mach]. Suprimir, negar, decompor essa moral: tal seria olhar o mais odiado instinto com um sentimento e estimação contrários. Se o oprimido, aquele que sofre, perdesse a fé no seu direito a desprezar a vontade de poder, a sua situação seria de desespero. Para que assim seja, seria necessário que este gesto fosse essencial à vida e que se pudesse demonstrar que, na vontade moral, a “vontade de poder” fora apenas dissimulada, e que esse ódio e esse desprezo nada mais seriam que manifestações daquela. O oprimido compreenderia que se encontra no mesmo piso [auf gleichem Boden] que o opressor e que não possui privilégio nem categoria superior [höheren Rang] sobre este (NIETZSCHE, 1922, p.184). Estaria, assim, aberta a possibilidade de todo o oprimido poder decidir-se propriamente, mas também, se justificaria a sua opressão pela “fraqueza” da sua “vontade”. A metafísica heideggeriana da morte – não indo tão longe como aquelas que postulam uma vida além da morte ou ao contrário daquelas que a “preenchem” com uma crença em Deus – manifesta-se nos seus fundamentos a partir de uma “insinuação” dualista de tipo secularizada, conferindo à morte o papel “originário” de garantia de uma autenticidade existencial humana face aos restantes entes e ao seu “simples” finar. Em jeito de conclusão Na disquisição de uma metafísica da morte, segundo a nossa perspectiva, manifestada em Sein und Zeit, assomam traços quase sempre ignorados por aqueles que, como o próprio Heidegger, consideram que uma “metafísica da morte” tem sempre um propósito eminentemente teológico (cf. Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. SCHOPENHAUER, 2000, pp.59-60; LANDSBERG, 1966, pp.198-199). Aqui se destacou um sentido de certa forma secular, ainda que motivador de sobeja discussão face à herança cristã do próprio autor, sem, no entanto, tal metafísica, essencialmente agnóstica, a descurar completamente 13. Não é por acaso que é referido em epígrafe, a partir de um texto escrito por Simmel aquando de uma entrada na Logos sobre a “Metaphysik des Todes” (1909): «na realidade, no entanto, a morte está, de saída, intimamente ligada à vida» (SIMMEL, 2001), sem que o autor se deixasse guiar por um sentido teológico, mas, sempre metafísico. As semelhanças, que não cabe aqui aprofundar, ressoam ao ouvido: Pode-se ver claramente a significação da morte como criadora de forma [formgebende]. Ela não se contenta com limitar nossa vida, quer dizer, dar-lhe forma à hora do desenlace; ao contrário, a morte é para a nossa vida um fator de forma, que vai matizar todos os seus conteúdos, fixando-lhe inclusive os limites. A morte exerce a sua ação sobre cada um dos seus conteúdos e dos seus momentos; a qualidade e a forma de cada um deles seriam outras se lhes fosse possível sobrepor-se a esse limite imanente [immanente Grenze] (SIMMEL, 2001). 13 Lembra-se Søren Kierkeggard, um dos filósofos que mais influenciou Heidegger: «Assim, para o cristão, nem sequer a morte é a “doença para a morte” [Sygdommen til Døden], e muito menos tudo o que se dá pelo nome de sofrimento mundano e temporal: necessidade, doença, miséria, dificuldades, adversidades, tormentos, sofrimentos mentais, preocupação, luto. E de tudo isso que coube em sorte aos seres humanos, por muito pesado, por muito duro que lhes seja, pelo menos àqueles que sofrem, fá-los dizer que “tudo isso é pior que a morte”, todas essas coisas, que, também não são doença, e que podem ser comparadas a doença, ainda não são, aos olhos do cristão, doença para a morte.», (KIERKEGAARD, 1980, p.8). Não são “doença”, mas caem sob a possibilidade de ser própria ou impropriamente perante a morte… Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 72-86, jan/dez2015. 84 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Fundamentalmente, uma metafísica da morte manifesta-se em Sein und Zeit a partir de uma “insinuação” dualista muito própria (sem ser simplesmente a da almacorpo ou a da consciência/interioridadeexterioridade), de onde parece que certos tipos de repercussões podem ser retiradas: a montante, encontra-se uma abertura ao ser própria do Dasein, distinguindo-o de uma “coisidade” simplesmente dada própria aos restantes entes (embora ao Dasein também reste uma condição de existente enquanto simplesmente dado, porém, não deve ser essa a determiná-lo); a jusante, encontram-se as repercussões perscrutadas, por um lado, a de uma “arbitrariedade” na escolha da morte como fator determinante para a decisão da conduta – anunciando-se a sua “circularidade” –; por outro lado, a de uma “arbitrariedade” na tomada de decisão, ora, podendo “glorificar” em propriedade a morte (“vontade forte”), ora, podendo em impropriedade ansiá-la, temê-la, fugir-lhe (“vontade fraca”) – anunciando-se o seu “formalismo” de caráter niilista. Posto isto, evoca-se Edgar Morin com a afirmação de que “a morte como sentido é o mesmo que não ter sentido nenhum” (cf. 1994, p.322) e Victor Hugo que descrevia, sem ter que ver com questões propriamente metafísicas, aquilo que era sentido por um condenado à morte, o que aqui quer dizer, o ser-para-a-morte, sem ser sua aparente intenção, assomaria como uma consciência “expetante”, “iminente”, “certa”, no corredor da morte 14. 14 Como Hugo o ilustra: «Lá para o Sul da França, […] em fins do mês de Setembro procuram um homem na sua prisão, onde jogava tranquilamente às cartas; notificam-no de que deve morrer dentro de duas horas, o que o faz tremer como varas verdes, porquanto há já seis meses que estava ali esquecido e deixara de contar com a morte [apenas havia parado de pensar na morte porque houvera uma suspensão não oficial da pena de morte]; barbeiam-no, tosquiam-no, amarram-no, confessamno; depois levam-no num carrinho de mão entre quatro guardas, através da multidão, para o local Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. Em suma, e cremos não cair numa grande afronta, talvez Heidegger “fugisse” da precariedade da vida ante a morte tomada num sentido biológico, ou talvez a sua intenção nos seus célebres parágrafos, aqui genericamente estudados, não fosse muito diferente daquela assumida por Landsberg anos mais tarde: A vida de um homem sem Deus é muito parecida com uma tragédia, se considerarmos a sua estrutura e o seu fim, e não qualquer um dos seus momentos isolados. […] A ideia de morte adquire, por assim dizer, uma tonalidade mais viva, nas almas dos místicos, porque com eles o seu amor à morte continua a partir de uma experiência direta de um estado análogo à morte. Esta experiência é a antecipação, em êxtase, da morte (LANDSBERG, 1966, pp.219; 229). Referências ARENDT, H. Between Past and Future Six exercises in political thought. New York: The Viking Press, 1961. BUCHNER, S. C. Suffering Faith in Philosophy. In: Buchner, S. C.; Statler, M. S. (Eds.). Styles of Piety. 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