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A L F A B E T O S A História da Caligrafia, da Tipografia e da produção de tipos. Contada e ilustrada por Paulo Heitlinger. 2014. tipografos.net ALFABETOS A História da Caligrafia, da Tipografia e da produção de tipos. Contada e ilustrada por Paulo Heitlinger. 2014. tipografos.net Autor e paginação: Paulo Heitlinger. Copyright 2011, 2012, 2013, 2014 by Paulo Heitlinger. Uma publicação da série de e-books da tipografos.net. Todos os direitos reservados para a língua portuguesa e para todas as outras línguas. O exemplar pessoal não pode ser vendido ou oferecido a outras pessoas que o proprietário deste exemplar. Este exemplar pertence a Maria Joana Leitora. Intro Venda do formato e-book: termos e condições Este livro é vendido por Paulo Heitlinger em forma de exemplar personalizado, que identifica digitalmente o seu proprietário. O livro/PDF pode ser impresso pelo proprietário e partes escolhidas também poderão ser projectado em sala de aula, por exemplo, se for esclarecida qual a origem deste documento e o seu autor. O proprietário deste exemplar também poderá copiar curtos trechos de texto, para simplificar o processo de citações. Contudo, o exemplar comprado não poderá ser transferido a outras pessoas! A «transferência» deste exemplar a outra pessoa que não o seu comprador é facilmente detectável e servirá para o autor optar imediatamente pelos procedimentos jurídicos que considere necessários, para salvaguardar os seus interesses comerciais e os seus direitos de autor. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Intro / página 3 Temas Temas Intro2 Epígrafes110 Árabe53 Capitalis Monumentalis...................................................111 Miliários........................................................................ 140 Capitalis geométrica.......................................................143 Capitalis condensada...................................................... 156 Rustica lapidar................................................................ 175 Letras sem-serifa romanas...............................................194 Letras pintadas a pincel...................................................197 Letras ornamentadas......................................................205 Letras pixelizadas.......................................................... 209 A Cursiva romana...........................................................216 Quadrata librária............................................................223 Rustica librária...............................................................230 Letras árabes.................................................................... 54 Lápide dupla de Évora.......................................................55 Decadência235 Roma67 Letras tardo-romanas.....................................................237 Versais orientais..............................................................241 Bem-vindo!....................................................................... 8 Prólogo10 A pedra que tudo explicou................................................. 11 O Fenício, primeiro alfabeto fonético...............................14 A Escrita do Sudoeste Peninsular..................................... 20 As primeiras escritas fonéticas em território português e espanhol........................................................................23 Letras sefarditas, 1............................................................ 43 A primeira letra global..................................................... 68 As formas das letras romanas............................................73 Os glifos........................................................................... 78 Composição de texto........................................................ 89 Os suportes...................................................................... 92 Do barro ao chumbo.........................................................93 Letras de vidro................................................................. 98 Poder e status.................................................................. 101 Gravar a pedra................................................................107 Os lapicidas....................................................................108 Romanas Visigóticas 243 Os Visigodos em terras hispânicas.................................. 245 Evolução da versal visigótica.......................................... 247 Escrita visigótica librária.................................................262 Unciais, as redondas 270 A fase arcaica.................................................................. 271 Codex Sinaiticus.............................................................275 A segunda vida da Uncialis............................................. 284 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Intro / página 4 Unciais em pedra........................................................... 290 Versais insulares............................................................. 300 A primeira Renascença 307 A Escrita Carolina............................................................311 A Carolina na Península Ibérica......................................314 Letras no princípio de Portugal....................................... 318 Códices, actas, cartas 320 O scriptorium monástico................................................322 Os tabeliões medievais....................................................327 Góticas329 Da Itália: a Beneventana................................................. 332 Gótica de Bolonha (1300-1400)...................................... 333 Textura manuscrita......................................................... 335 Góticas na Peninsula Ibérica 337 A «Góticho-quadrada», epigráfica................................ 338 Letras góticas manuelinas...............................................376 A chancelaria régia ......................................................... 381 Gótica Rotunda, manuscrita........................................... 391 Fraktur398 A Fraktur histórica.........................................................400 O cisma tipográfico........................................................404 Deutsche Schrift, a escrita alemã....................................406 Albrecht Dürer, co-autor da Fraktur..............................407 Modisten, os expoentes da caligrafia alemã .................... 410 O delírio da ornamentação maneirista............................415 A Fraktur americana...................................................... 420 Rudolf Koch e os irmãos Klingspor................................424 A Fraktur de Hitler......................................................... 430 Jornais conservadores.....................................................433 Góticas romanizadas, e outros híbridos.......................... 438 Behrens-Schrift............................................................. 439 A Fraktur geométrica..................................................... 442 Romanas Humanistas 445 Segunda Renascença......................................................447 Romanas humanistas em Portugal.................................464 Gutenberg477 Tipografia mecânica...................................................... 478 Do manuscrito ao impresso............................................ 480 Punção, matriz, fundição, caractéres............................. 482 B-42: o primeiro livro produzido em série...................... 486 O Homem do Milénio.................................................... 488 Tipos móveis................................................................. 489 O valor dos tipos! ..........................................................490 Manufactura de tipos......................................................491 O puncionista................................................................ 493 A puncionista Nelly Gable..............................................494 Matrizes......................................................................... 498 Tipómetros e outros instrumentos................................. 506 Paicas e pontos............................................................... 508 A composição manual.....................................................510 Ligaduras........................................................................527 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Intro / página 5 Oficinas539 A célere expansão da Prototipografia............................. 540 Disseminação pela Europa............................................. 544 Identificação dos tipos metálicos....................................545 Caligrafia e Tipografia sefardita 547 Manuscritos hebraicos na Península Ibérica................... 548 Bíblia de Cervera............................................................552 Prototipógrafos judeus em Portugal................................568 Uma oficina tipográfica em Amsterdão...........................576 Prototipografia em Portugal 578 Manuel i, venturoso merceeiro....................................... 580 Valentim Fernandes........................................................ 581 Germão Galharde, na senda de Fernandes.......................595 António Gonçalves........................................................ 599 António de Mariz, em Coimbra......................................600 As oficinas tipográficas mais famosas602 Os ex-sócios de Gutenberg............................................. 603 A quebra do sigilo..........................................................604 Anton Koberger, em Nuremberga.................................. 606 William Caxton, Inglaterra ............................................610 Erhard Ratdolt, Veneza e Augsburgo...............................612 Nicolas Jenson................................................................617 Aldus Manutius e Francesco Griffo................................. 620 A Idade de Ouro da Tipografia de França........................625 Le Bé i............................................................................ 627 Antoine Augereau, a primeira vítima da Censura........... 629 Geoffroy Tory................................................................. 631 Claude Garamond..........................................................635 Jacques Sabon................................................................640 Simon de Colines........................................................... 642 Robert Granjon e as Civilités .......................................... 645 Robert Estienne, teólogo impressor............................... 647 François Guyot...............................................................652 A Censura...................................................................... 654 A greve dos griffarins em Lyon..........................................656 Evolução na Holanda e Flandres..................................... 659 Nicolaes Biestkens......................................................... 666 Os Elzevier em Leyden e Amsterdam.............................. 668 A dinastia Enschedé de Haarlem.................................... 669 Johann Michael Fleischmann......................................... 670 Os holandeses portugueses.............................................671 Os Deslandes..................................................................673 A Real Imprensa de Paris, 1640...................................... 674 A Inglaterra lidera.......................................................... 680 Mechanik Exercises, de Moxon........................................681 Caslon, puncionista britânico.........................................683 John Baskerville of Birmingham.................................... 686 O Manuel Typographique de Fournier.............................. 689 Les Didot........................................................................693 Tipografia espanhola..................................................... 699 Josep Pradell, em Barcelona............................................701 Bodoni, em Parma......................................................... 705 A British Letter Foundry de Bell........................................ 713 Vincent Figgins............................................................... 715 J.E. Walbaum: Fraktur e Romanas...................................716 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Intro / página 6 Breitkopf: partituras famosas.........................................718 Benjamin Franklin, editor e tipógrafo............................ 720 A American Type Founders Company.............................722 Máquinas de fundição de tipos ...................................... 727 A Kelmscoot Press, de William Morris............................728 Theodore Low DeVinne................................................. 734 Goudy, o excêntrico........................................................736 Schriftgießerei Gebr. Klingspor..................................... 740 Berthold Schriftgießerei, Berlin......................................743 Portugal e Brasil 745 Fundição de tipos em Portugal....................................... 746 O primeiro impressor no Brasil e o despotismo joanino...752 Impressão Régia no Brasil...............................................756 Impressão759 O prelo de madeira......................................................... 760 Albion e Columbia..........................................................763 O prelo de Lord Stanhope, 1795...................................... 766 Washington Press, 1821.................................................. 770 A Estereotipia, 1727........................................................773 Impressoras industriais 776 As impressoras de König, 1811........................................ 777 As rotativas.................................................................... 779 As minervas....................................................................781 Plano a plano................................................................. 784 Imprimir madeira.......................................................... 787 Hippolyte Marioni!........................................................791 Litografia797 Revolução a cores........................................................... 798 Alois Senefelder..............................................................801 Jules Chéret.................................................................... 813 Toulouse-Lautrec........................................................... 815 Cassandre.......................................................................816 A primeira etapa da Litografia em Portugal, 1823............. 818 Rafael Bordallo Pinheiro, mestre da «Lythographia»... 824 Offset828 Gravura832 Gravura com madeira..................................................... 833 Gravura com metal.........................................................836 Água-forte......................................................................839 Serigrafia842 Fototipia844 Fototipia a cores..............................................................850 Fotogravura, Autotipia................................................... 853 Máquinas de escrever 854 Mecanografar e dactilografar.......................................... 855 Letras monoespaçadas....................................................863 Os mimeógrafos............................................................. 870 Procurar no texto: CTRL+F Composição mecânica Alfabetos / «Temas» / Intro / página 7 873 Typograph..................................................................... 874 A Linotype de Mergenthaler...........................................875 A Monotype de Tolbert Lanston..................................... 892 Fotocomposição.............................................................901 Analógica e digital......................................................... 903 Diatype e Diatronic........................................................ 907 DTP, 1985.......................................................................910 Adobe, os produtos......................................................... 911 Sinaléticas913 Uma introdução nostálgica.............................................914 Londres, para exemplo....................................................917 O mapa do Tube..............................................................918 Legible London.............................................................. 920 Pictogramas....................................................................923 Metro de Bilbao com a fonte Rotis.................................. 927 A Metrolis em Lisboa..................................................... 930 Quebrar dogmas: a Capitolium de Unger........................932 Estilos de letras 934 Famílias tipográficas?.....................................................935 Gótica Rotunda..............................................................937 Fraktur histórica ............................................................939 Venezianas......................................................................941 Garaldes........................................................................ 942 Transição....................................................................... 943 As Didones....................................................................944 Sem-serifas, modernas................................................... 949 Sem-serifas humanistas................................................. 950 As Egípcias..................................................................... 951 Italiennes........................................................................952 As Modernas...................................................................953 Scripts........................................................................... 954 Arte Nova.......................................................................955 Art-Déco glamour.......................................................... 956 Caligrafias no estilo Art-Déco........................................ 968 As Latinas.......................................................................973 Brush, a letra pincelada.................................................. 974 alfabetos elementares..................................................... 975 Papel978 O Moinho do Papel em Leiria......................................... 980 O Museu Papeleiro em Paços de Brandão........................982 Molí Paperer de Capellades............................................ 986 Pontusais, corondéis, marcas d’água.............................. 987 Marcas de papeleiro........................................................991 Brevíssima história do papel.......................................... 993 30 tipos de papel...........................................................1002 Bibliografias1012 Livros sobre Tipografia, publicados em português.........1013 Bibliografia geral..........................................................1020 Museus1028 Glossário1032 Índice remissivo 1066 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Intro / página 8 Bem-vinda! Q uando se tornou claro que o meu livro Alfabetos não iria ser vendido fora de Portugal, quis dar melhor divulgação e continuação a esta publicação. A solução foi divulgá-la em formato digital. Mas actualizada, e mais abrangente. Senti a necessidade de alargar o âmbito do livro, para poder integrar cinco anos de investigação em muitos domínios. Além disso, as experiências feitas no Typeface Design e no meio universitário reforçavam a ideia que o livro deveria de ser alargado, para conter a abrangência de temas que o título sugere. Deste modo, esta edição digital contêm os melhores textos do livro Tipografia e do livro Alfabetos, assim com vários artigos publicados nos Cadernos. O novo formato, DIN A4 ao largo, leva uma representação gráfica adequada à leitura on-screen, e tira proveito dos mecanismo de navegação do formato PDF. Dei muita atenção ao facto de que cada vez mais documentação está acessível pela Internet. O leitor encontrará dezenas de links que lhe facilitarão o acesso a extraordinários sites. A Tipografia demorou 550 anos a evoluir – regista-se para cerca de 1455 a produção do primeiro livro impresso com tipos móveis de metal – mas hoje assistimos a uma grande mudança: cada vez mais o impresso é substituído pelo livro digital. Convenções e modos de escrever s termos tipográficos portugueses foram frequentemente completados com os respectivos termos ingleses e alemães, tornado esta publicação (também) num glossário ilustrado. Os termos já bem conhecidos pela maioria dos leitores deste livro, que ocorrem constantemente no universo das letras, do desenho de fontes digitais e do Design editorial, não foram assinalad0s com itálicas: font, type, typeface, designer, graphic design, layout, display, print, download, newsletter, online, software, web-site, etc. Expressões menos comuns, por exemplo, on screen ou autohinting, essas sim vão assinaladas com itálicas. Ao leitor que tiver dúvidas sobre o significado destes termos, pede-se que consulte o Glossário, no fim do livro. Para mais fácil identificação, as épocas, as escolas, os movimentos culturais e artísticos, as correntes ideológicas e também todos os «ismos» foram escritos com letra maiúscula no princípio das palavras: Art-Déco, Arte Nova, Art Nouveau, Barroco, Calvinismo, Construtivismo, Dadaísmo, Estilo Internacional, Escola Suíça, Humanismo, Idade Média, Idealismo, Império Romano, Fun cio nalismo, Renascença, Roman- O Como usar este e-book Este documento digital proporciona um elevado grau de interactividade. O Índice de Temas permite saltar directamente para a página assinalada. O Índice Remissivo, no fim do livro, também. Um clique em «Temas» leva o leitor de volta à página 3. Clique em «Índice Remissivo» para saltar até lá. Os links internos – as referências cruzadas – também são interactivos. Os hyperlinks exteriores (URLs) activam o seu browser e abrem a página web em questão. Boa navegação! Procurar no texto: CTRL+F tismo, Maneirismo, Marxismo, Modernismo, Neo-Classicismo, Protestantismo, Rocócó, Surrealismo, Verismo, etc. As únicas excepções são aquelas doutrinas ou instituições que optaram conscientemente por uma grafia só com minúsculas: neue typographie, hfg (abreviatura para hochschule für gestaltung, uma famosa escola em Ulm). ambém as disciplinas do saber mereceram sempre letra maiúscula: Matemática, Arquitectura, Geometria, Ciências Naturais, Física, etc. De igual modo se assinalam os processos de produção e as tecnologias descritas neste livro, por exemplo: Banda Desenhada, Branding, Caligrafia, Composição, Cromolitografia, Design, Estereotipia, Fotocomposição, Fotografia, Fotomontagem, Ilustração, Imprensa, Infografia, Linótipia, Marketing, Publicidade, Tipografia, etc. T Alfabetos / «Temas» / Intro / página 9 Seguindo a mesma linha, optei por grafar todos os nomes de letras, fontes, sistemas de escrita, caractéres tipográficos (assim como todos os nomes de estilos de letra), com letra maiúscula no princípio das palavras: Antiqua, Blackletter, Bastarda, Capitalis Monumentalis, Carolina, Chanceleresca, Civilité, Didone, Egípcia, Escrita Direita, Escrita Vertical, Fraktur, Garalde, Gótica, Gótica Rotunda, Grotesca, Itálica, Kurrent, Latine, Letra Inglesa, Letra Francesa, Moderna, Minúscula, Romana, Scotch, Sem-serifa, Serifa-grossa, Script, Transicional, etc. Esta forma de grafar simplificará a identificação dos temas deste livro, assim como estará em sintonia, sempre que possível, com designações semelhantes, usadas noutras línguas: Transicionais (Transitionals), Sem-serifas (sans-serif, inglês, seriflos, alemão). Também foi considerado importante que esta terminologia não esteja em contradição com as designações usadas em centenas de web-sites, devotados ao Typeface Design comercial. esta-me expressar um sincero «Muito obrigado!» aos amigos que me ajudaram a dar melhores conteúdos às seguintes páginas: Peter Karow, Birgit Wegemann, Sofia Bernardes, José Gameiro, Isabel Medeiros, Dino dos Santos, Miguel Sousa, M.M. Malaquias, Nick Shinn, Mark Jamra e o já falecido Kurt Weidemann. R Porto, 25 de Fevereiro de 2014 Paulo Heilinger Procurar no texto: CTRL+F Prólogo Glifos de crua beleza. Escrita do Sudoeste. Museu Arqueológico Provincial de Badajóz. Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 10 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 11 A pedra que tudo explicou A Escrita hieroglífica egípcia, usada na primeira banda da pedra gravada mostrada ao lado, ocupa uma posição singular na evolução das escritas ideográficas em transição para os alfabetos. A Escrita hieroglífica também dispunha duma variante de escrita rápida, mais prática: a escrita hierática cursiva, utilizada nos textos religiosos sobre papiro. Mais tarde apareceu a Escrita Demótica, mais popular e muito divulgada; é esta forma de escrita que forma a parte central da famosa Pedra de Roseta. o Egipto, por volta de 1.500 a.n.e., foi estabelecido um alfabeto fonético com 22 ou 23 glifos, representando letras consoantes; as vogais não eram registadas. Contudo, os Egíp cios, mais interessados no aspecto mágico que no funcional da sua escrita, nunca substituíram os hieróglifos pelos glifos fonéticos que tinham desen volvido e aperfeiçoado; preferiram usar uma escrita com forte redundância, que combinava aspectos alfabéticos e fonéticos com os hieróglifos. N A pedra com inscrições encontrada em Roseta (Raschid), mostra o mesmo conteúdo em três sistemas de escrita: Hieróglifos, Demótico e Grego. Jean-François Champollion decifrou as formas escritas egípcias comparando os três textos da Pedra de Roseta. Ilustração: Wallis Budge, Books on Egypt and Chaldaea – Volume XVII, The Rosetta Stone. Londres, 1904. Procurar no texto: CTRL+F A Pedra de Roseta foi crucial para a compreensão dos hieróglifos egípcios. Esta estela regista um decreto promulgado em 196 a.n.E., na cidade de Memfis, em nome do rei Ptolomeu V, registado em três formas: o superior está na forma hieroglífica, o do meio em Demótico e o inferior em Grego. Exibida dentro dum templo, a estela foi removida a acabou por ser usada como material na construção de um forte na cidade de Roseta (Rashid), no delta do Nilo. Foi descoberta aí em 1799 por um soldado da expedição francesa ao Egipto. A Pedra de Roseta despertou logo enorme interesse, pois poderia conter uma tradução do idioma egípcio, até então por decifrar. As tropas britânicas derrotaram os Franceses no Egipto em 1801, e a Pedra passou para o Reino Unido. Transportada para Londres, está em exibição no Museu Britânico desde 1802, onde é o objecto mais visitado. primeira tradução completa do texto grego surgiu em 1803; a decifração dos textos egípcios foi anunciada por Jean-François Champollion em 1822. Os principais factores para esta decodificação foram a descoberta de que a Pedra oferecia três variantes do mesmo texto (1799); que o texto em Demótico utilizava caracteres fonéticos para os nomes estrangeiros (1802); que o texto em hieróglifos não só também o fazia, como tinha semelhanças profundas com o Demótico (Thomas Young, 1814); e que, além de serem utilizados para soletrar estes nomes, os caractéres fonéticos também eram utilizados para palavras nativas do Egípcio (Champollion, 1822–1824). A Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 12 Procurar no texto: CTRL+F Fenícios no Alentejo «Tesouro do Gaio», datavél para o século vii a.n.E., é um conjunto de pequenas peças em ouro, prata, marfim e em materiais menos nobres. Foram encontradas em 1966 na Herdade do Gaio, próximo de Sines, e constituem uma das provas empíricas que os Fenícios/Púnicos frequentavam as costas do território hoje português. Neste tesouro púnico de simbologia egípcia está figurada, nas arrecadas, a deusa Hathor (uma deusa muito venerada no Egipto ligada ao amor, ao erotismo, à fecundidade, à maternidade) e gravado em relevo, no sinete em marfim, o escaravelho de Tutmosis III, com o olho de Horus – deus-sol, que protegia o nascimento das crianças. Trata-se de um conjunto de jóias de mulher. A partir das afinidades com o Tesouro de Aliseda, classifica-se o conjunto do Gaio na matriz tartéssico-púnica e estabelece-se o século vii como datação provável. A impressão do luxo é dada pela quantidade das contas e pingentes e pela filigrana das arrecadas e da gargantilha de ouro (na foto), peças centrais do espólio. O «Tesouro do Gaio» constitui um valioso testemunho arqueológico e patrimonial, característico do chamado «Período Orientalizante», um dos mais expressivos aspectos da I Idade do Ferro no Sul de Portugal; considerando que este período se caracteriza pela presença de objectos típicos do comér- Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 13 O cio fenício, como os anforiscos e os colares de contas de pasta vítrea e de âmbar e as jóias em ouro, de que sobressaem as arrecadas e o colar de placas articuladas, que integram o mesmo «Tesouro do Gaio» temas aqui clara evidencia da presença fenícia/púnica na costa do Alentejo e, deste modo, uma bela introdução ao seguinte artigo. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 14 O Fenício, primeiro alfabeto fonético O berço da maior parte das formas de escrita modernas foi, uns 3.500 anos atrás, o Próximo Oriente. Além da escrita hieroglífica egípcia, apareceram nesta zona a Escrita cuneiforme suméria e a primeira Escrita alfabética semita – ambas baseadas em ideogramas. Finalmente foram os Fenícios, povo semita de navegadores e comerciantes, que criaram o primeiro alfabeto, composto por 22 consoantes, e que se escrevia da direita para a esquerda. Era uma escrita consoantica, que associava a cada consoante uma vogal correspondente. Os diligentes Fenicios espalharam a sua escrita pela Grécia e pelo resto do Mediterrâneo. Foram portanto os Fenícios os primeiros a escrever com um alfabeto. No próprio termo encontramos as duas primeiras consoantes fenícias: alef e beth. Por volta de 1000 a.n.e, os Fenícios, marinhei ros e comerciantes com forte sentido prático, rece beram a Escrita Proto-sinaítica e adoptaram-na gra dualmente até formularem aquele que seria a base de todos os alfabetos usados actualmente no Ocidente e por todas (!) as línguas indo-europeias. Das 22 letras fenícias derivaram importantes sistemas de escrita, como o Hebraico, o Grego, o Aramaico e o Latino. Também a Escrita do Sudoeste é um derivado directo do alfabeto fenício. Os sistemas de escrita árabe e hebraico ainda conservam uma característica obtida do Fenício: escrevem-se da direita para a esquerda. Inscrição bilingue, em latim (no topo) e púnico (em baixo). O latim lê-se da esquerda para a direita; o púnico, que é um derivado do fenício, da direita para a esquerda. O registo relata que o edifício foi pago e dedicado ao novo-rico local Annobal Rufus. Teatro romano de Lepcis Magna, Líbia. Foto: Sebastià Giralt. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 15 A s letras fenícias são descendentes directas do sistema proto-sinaítico. A palavra sinaítico é um adjectivo que significa relativo ao monte Sinai; contudo, o Proto-sinaítico não é semelhante ao Sinaítico. Até ao século xviii a.n.e., a Península do Sinai esteve sob o domínio egípcio e o seus habitantes semitas tomaram um certo número de signos hieroglíficos para anotarem a sua língua. Assim como o Proto-sinaítico, também o Fenício é um alfabeto fonético de consoantes, um abjad. (Um abjad é um sistema alfabético contendo um glifo por consoante; as vogais foram omitidas nesta fase arcaica dos sistemas de escrita fonética.) A maior diferença entre o Proto-sinaítico e o Fenício é de natureza gráfica. As formas dos glifos fenícios são nitidamente mais abstractas e lineares, quando as comparamos com os signos mais pictográficos do Proto-Sinaítico. Fenícia foi o nome que os Gregos deram, no primeiro milénio a.n.e., à franja costeira do actual Líbano e Norte de Israel, desde a região de Tripoli, no norte, até Akko (Acre), no sul. Os diligentes Fenícios tinham reconhecido a superioridade de um alfabeto fonético sobre os complexos sistemas de escrita baseados em pictogramas. E preferiram não aderir aos sistemas de escrita cuneiformes. alfabeto fenício foi decifrado em 1758, pelo abade francês Barthélémy d’Andlau (1447 – 1476), um letrado do Século das O Moeda com inscrições gregas e fenícias. Duas estatuetas de argila, uma deusa grávida e um cavaleiro montando um cavalo alado, interessantes testemunhos do sincretismo na cultura fenícia, fotografados por J.P. Dalbéra, do Musée des Civilisations de l'Europe et de la Méditerranée http://www.mucem.eu Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 16 Luzes, que se apoiou em textos bilíngues (inscrições greco-fenícias da Ilha de Malta), assim como nas legendas de moedas de Tiro. Primeiro identificou nomes próprios (Tiro, Melqart, etc.), a seguir identificou palavras simples, e finalmente fez a comparação com as versões gregas. A maior dificuldade no decifrar residia na falta de textos longos, já que os textos conhecidos se reduziam a dedicatórias aos deuses e textos em monumentos funerários. Pouco a pouco, os arqueólogos desenterraram manifestações do mesmo alfabeto ao longo das rotas das expedições marítimas, nos empórios e colónias fenícias fundados no Mediterrâneo. expansão comercial e cultural fenícia pelo mundo da Antiguidade foi o principal motor de propagação do alfabeto que foi o «pai» de dúzias de outros alfabetos. O comércio com os Fenícios levou à introdução da Escrita do Sudoeste no território hoje português e espanhol. O motivo que animou os Fenícios a utilizar um alfabeto fonético foi o aspecto prático e utilitário. Os produtores de bens e os comerciantes terão achado este sistema de escrita apropriado para fazer registos, relatórios e contas. Um alfabeto simples, com poucos glifos, mas extremamente funcional, pois servia para anotar eficientemente os fonemas de diferentes idiomas. Para nós, o alfabeto fenício é o mais importante tronco na árvore genealógica dos alfabetos. O alfa- «Desde as idades mais remotas, diversos sistemas de registo do pensamento, abstractos ou figurativos, antecederam aquilo que chamamos <Escrita>. A invenção do sistema alfabético pelos povos do Médio-Oriente, cerca de 1200 anos a.C., foi uma etapa decisiva na história da Humanidade. Ao decompor a linguagem falada num determinado número de símbolos fonéticos (ou letras), o alfabeto permitiu que se registassem com uma mesma escrita todas as línguas daquela região, estabelecendo assim vínculos muito fortes de comunicação entre os povos. O alfabeto pode ser considerado o primeiro acto de um certo humanismo mediterrâneo, nascimento e fundamento da nossa cultura e das nossas sociedades modernas.» Ladislas Mandel, 1998. A Inscrições em rochas na Península do Sinai. Procurar no texto: CTRL+F beto árabe, o hebraico, o grego e o romano, todos têm um ascendente comum: o alfabeto fenício. Deste modo, não admira que o primeiro alfabeto usado em território português (Escrita do Sudoeste) também seja um derivado directo do sistema de escrita dos Fenícios, visitantes assíduos das costas marítimas da Península Ibérica, onde estabeleceram empórios para fazerem comércio com as populações locais. Os Fenícios criaram entrepostos comerciais ao longo das costas do Mediterrâneo, também em Cádiz, Adra, Almuñécar, Málaga (Espanha), chegando até às costas atlânticas: Castro Marim, Tavira, Rocha Branca, Faro, Lagos, Lisboa, etc. o Norte de África fundaram uma das suas principais colónias: Cartago (= Nova Cidade). Cartago, situada perto do centro da cidade de Túnis, na Tunísia, foi uma das grandes potências da Antiguidade, disputando com Roma o controlo comercial e militar do Mediterrâneo. Nessa disputa tiveram origem as três Guerras Púnicas, após as quais Cartago foi destruída. O sistema de escrita fenício continuou em uso, em forma do Púnico (uma escrita mais cursiva), até 200 – 300 n.e. Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 17 N Escrita de prestígio No início do primeiro milénio a.n.e., o sistema de escrita fenício gozava de prestígio além-fronteiras. Os Hebreus e os Arameus, que se instalaram na E scrita fenícia. Museu ao ar livre de descoberto lajes de pedra com cenas de caça, Karatepe-Arslantas, Turquia. Karatepe, navegação e também religiosas, e forneceram uma fortaleza dos Hititas, é uma estação inscrições bilingues (fenício e hieróglifos arqueológica perto do rio Jeihan, na hititas) — o que facilitou muito a tarefa de Turquia meridional, escavada entre 1946 e decifrar a escrita hitita. Mais imagens em 1949. As escavações de Karatepe, puseram a www.hittitemonuments.com/karatepe. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 18 zona do Sinai dois séculos antes, adoptaram várias padrões culturais dos Fenícios – entre eles, o alfabeto. E começaram a escrever textos no seu idioma, usando glifos fenícios. A partir da primeira metade do século ix a.n.e., a escrita hebraica tomou um rumo próprio; a escrita aramaica fê-lo a partir da primeira metade do século viii a.n.e. A partir do século viii a.n.e., o sistema fenício deixou de ser «internacional», converten do-se num sistema de escrita «nacional», tal como o Aramaico e o Hebraico. ¶ Bibliografia comentada Aubet, M. E. Tiro y las colonias fenicias de Occidente. Consejo Sup. de Invest. Cientificas. Belaterra. 2009. Calvet, L.-J. Histoire de l’écriture. Plon. Paris. 1996. Coulmas, Florian. The Writing Systems of the World. Blackwell Publishers Ltd. 1989. Cross, F. M. The Invention and Development of the Alphabet. In: Senner, Wayne M (editores). The Origins of Writing. Lincoln. 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E ntre os textos mais importantes para a história Photograph Collection da Library of Congress, EUA. dos alfabetos, avulta a inscrição em memória Por baixo da fotografia nesta página, a famosa inscrição de Ahiram, rei de Biblos, mandada gravar por fenícia. volta de 1.000 a.n.e. pelo seu filho, sobre um Outras inscrições, igualmente de cariz real, remontam à sarcófago reutilizado. Esta inscrição, considerada a época persa, quando a cidade-estado de Sidon alcançou primeira verdadeiramente fenícia, integra 19 das 22 uma posição dominante na costa marítima fenícia. letras do alfabeto e já mostra elementos de separação Os seus reis fizeram gravar grandes dedicatórias aos entre as palavras. O sarcófago foi descoberto pelo deuses da cidade e cunhar sobre as suas tumbas avisos arqueólogo francês Pierre Montet em 1923, no sítio aos ladrões que ousassem pilhar os sepulcros. O uso de de Jbeil, no Líbano (a Biblos histórica), e pertence ao cunhar moedas, que apareceu nesta época, ocasionou a Museu Nacional de Beirute. Foto: G. Eric and Edith Matson legendagem de moedas com nomes de reis. Procurar no texto: CTRL+F Frankenstein, Susan. Arqueología del colonialismo: el impacto fenicio y griego en el sur. Barcelona. Grijalbo-Mondadori. 1997. Földes-Papp, Károly. Vom Felsbild zum Alphabet: Die Geschichte der Schrift von ihren frühesten Vorstufen bis zur lateinischen Schreibschrift. Belser Verlag. Stuttgart. 1984. Günther, H; Ludwig, O. Schrift und Schriftlichkeit. Ein interdisziplinäres Handbuch. Berlim e Nova Iorque. 1994. Haarmann, Harald. Geschichte der Schrift. Verlag C.H.Beck. München. 2002. Uma História da escrita. Hans J. Nissen, P. Damerow, R. Englund. Archaic Bookkeeping. University of Chicago Press. 1993. Healey, John. The Early Alphabet. London. British Museum. 1990. Jensen, Hans. Die Schrift in Vergangenheit und Gegenwart. Berlim. 1958. 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Muitas das estelas com Escrita do Sudoeste provêm do Baixo Alentejo e puderam ser datadas – aproximadamente –, a partir das necrópoles a elas associadas. Estas necrópoles tinham inicialmente túmulos circulares e depois túmulos elaborados em forma rectangular. As datas assinaladas para as pedras funerárias oscilam entre os séculos VII e V a.n.e. Procurar no texto: CTRL+F Fragmento de uma estela exposta no Museu Arqueológico de Faro, Portugal. Escrita do Sudoeste. Os glifos são muito semelhantes aos do alfabeto fenício. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 21 Procurar no texto: CTRL+F Fragmento de uma estela inscrita exposta no Museu Arqueológico de Badajóz, Espanha. Escrita do Sudoeste. Os glifos são semelhantes aos do alfabeto fenício. Bibliografia: La estela inscrita de Siruela, Badajoz, José M. Otero, José L. Melena, Universidad de Salamanca. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 22 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 23 As primeiras escritas fonéticas em território português e espanhol É para o século vi a.n.e. que se data a primeira escrita com base fonética na Península Ibérica. Em muitas etapas da evolução da Pré-História para a História, o uso da escrita acompanhou o desenvolvimento do urbanismo, da economia mercantil e da plena evolução das classes dirigentes e elitistas. Em território ibérico, estes processos já tinham sido iniciados nos povoados fortificados do Calcolítico – mas sem o aparecimento de uma escrita. P ovoados fortificados, centros de poder, foram iniciados já no Calcolítico (3.000 – 2.000 a.n.e.), mas não foram acompa nhados pelo aparecimento de um sistema de escrita. Esta escrita foi importada, muito mais tarde, do Mediterrâneo. Foi trazida pelos Fenícios e representa a mais antiga grafia fonética detectada não só em solo português e espanhol, como em toda a Europa Ocidental. Fragmento de uma estela, Museu Arqueológico de Beja. Valores fonéticos dos glifos da Escrita do Sudoeste, segundo o Museu Arqueológico Provincial de Badajoz, Extremadura, Espanha. AE HI BKL M N OR ST U Z À Ç Ì ÈÍÎ Ô Û Ùé Escrita do Sudoeste, fonte digital. Procurar no texto: CTRL+F A chamada Escrita do Sudoeste ou Tartéssica ou Sudlusitana, da Idade do Ferro i no Sul de Espanha e Portugal, foi desenvolvida pelos Tartessos, nome pelo qual os Gregos conheciam os habitantes das actuais regiões da Andaluzia, da Extremadura espanhola, do Baixo Alentejo e do Algarve. As inscrições que hoje conhecemos foram maioritariamente achadas nas áreas mais aciden tadas entre o Alentejo e o Algarve (em especial, na Serra do Caldeirão), no território das nascentes dos cursos de água desta região (Sado, Mira, Arade) e dos três subsidiários do rio Guadiana (ribeiras de Oeiras, Vascão e Foupana). A zona estende-se até Badajoz, na Extremadura espanhola. Contudo, há que salientar que desde as prospecções do casal de arqueólogos alemães Georg e Vera Leisner (de 1940 a 1960), nunca mais se fez alguma prospecção e inventariação arqueológica sistemática em Portugal. s glifos do alfabeto da Escrita do Sudoeste (veja tabela na primeira página do artigo) são claramente derivados do alfabeto feníci0. A escrita teria 27 signos, o número que se regista numa estela aparecida em Espanca (Castro Verde, Beja); esta inscrição mostra um abecedário gravado por alguém que possuía destreza, e outro imitado, por baixo, por um aprendiz. Nos glifos do Alfabeto de Espanca, os primeiros catorze têm formas e valores fonéticos idênti O Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 24 As estelas, sejam de carácter funerário, ou votivo ou cumprindo outras funções, são elementos frequentes nos espólios datáveis para a Idade do Ferro europeia. As imagens de espadas e achas de ferro, gravadas em relevo nestas estelas expostas no Museu Regional de Beja (www.museuregionaldebeja.net) não nos deixam dúvidas sobre o carácter bélico e agressivo das sociedades que usavam a Escrita do Sudoeste. Em território hoje português e espanhol, na Idade do Ferro verificou-se a ocupação dos territórios celtas, lusitanos e tartéssios pelas legiões do Império Romano. A divisão do período em Idade do Ferro I e Idade do Ferro II, como o fez Armando Coelho na sua obra Cultura Castreja, permite diferenciar com maior precisão as dinâmicas sociais e culturais. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 25 cos. Os cinco glifos que se seguem, embora apresentem um traçado semelhante, podem corresponder a fonemas diferenciados. Os últimos oito consideram-se relativamente independentes, adoptados para suprir a falta de glifos que completassem o sistema. Sem contar com as variantes de algumas letras, conhecemos hoje cerca de 40 glifos diferentes. O que é que nos transmitem? A escrita foi considerada «complexa» e «indecifrável», mas o facto é que tem sido decifrada, pouco a pouco; a sua leitura começa a ser possível. Conhecemos mais de oitenta textos, muitos que são fragmentos, quase todos gravados em estelas feitas com a pedra de xisto que abunda na área da sua difusão. Alguns textos parecem não ter qualquer contexto funerário. odemos ler – foneticamente – uma boa parte das sequências gravadas nas inscri ções, mas ainda não decifrámos os conteúdos. O que significam? Pouco sabemos sobre a(s) língua(s) em que estão escritas. Sendo a linguagem desconhecida, as dificuldades de interpretação dos textos são grandes, agravadas pela dificuldade de isolar palavras, pois quase sempre faltam separadores. Contudo, já temos um primeiro repertório de sequências de glifos, que podem corresponder a «palavras». Existem correspondências com nomes de origem indo-europeia. Estela de Siruela, Badajoz. Desenho exposto no Museo Arqueológico Provincial de Badajoz. Os glifos são muito semelhantes aos do alfabeto fenício. P O conjunto de glifos de Espanca. Procurar no texto: CTRL+F Um conjunto de inscrições funerárias apresenta no final uma sequência de glifos, com ligeiras variantes – uma fórmula do tipo «aqui jaz». A comparação com línguas conhecidas permite incluir o idioma representado nas línguas indo-europeias. Admitiu-se a ligação com vestígios toponímicos da região. Neste contexto integram-se, por exemplo, os nomes de lugares terminados em -ipo (aos quais pertence a cidade andaluza de Ventipo, mas também Olisipo, Lisboa) e em -oba e -uba (onde se inclui Ossonoba, Faro, bem como Corduba, Córdova). As características da Escrita do Sudoeste o ponto de vista da classificação de sistemas de escrita, a Escrita do Sudoeste não é nem propriamente um alfabeto, nem um silabário, mas sim uma escritura mista, um semi-silabário. À semelhança das outras escritas paleo-hispânicas, apresenta glifos com valor silábico para as oclusivas, e glifos com valor alfabético para o resto das consoantes e vogais. A característica distintiva desta escrita é a sistemática redundância vocálica dos signos silábicos, um fenómeno que nas outras escritas paleo-hispânicas é apenas residual. Este aspecto, descoberto por Ulrich Schmoll, permite classificar a maior parte dos glifos desta escrita em silábicos, vocálicos e consonânticos. Jesús Rodríguez Ramos, num artigo derivado da sua tese de doutoramento, explica o carácter da D Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 26 Estela da Herdade do Pêgo I, Rio Mira, Ourique, Alentejo. Museu Arqueológico de Beja. Era sobretudo em estelas funerárias – pedras tumulares talhadas em xisto ou grés – que as sociedades do Sudoeste ibérico faziam inscrições; as estelas eram colocadas ao alto sobre as sepulturas dos defuntos da classe dirigente. A Necrópole da Herdade do Pêgo ocupa um pequeno cabeço de xisto de vertentes suaves. Nas suas imediações está o habitat com o mesmo nome, relacionado com esta necrópole. A necrópole, que apresentava o aspecto de uma calçada compacta de xisto, ocupava uma área de 830 m2. Era composta por 38 monumentos funerários, de que se conservavam, no momento da escavação, 35, todos justapostos. Escrita do Sudoeste aplicada a uma lápide funerária. Museu de Beja. Procurar no texto: CTRL+F Escrita do Sudoeste: «De las escrituras paleohispânicas de las cuales tenemos un mínimo de datos para poder trabajar, sólo nos podemos plantear la sudlusitana como la más próxima al modelo fenicio. La forma de sus signos es la más similar al fenicio (más apartada está la íbera meridional y mucho más la levantina) y es la más antigua documentada (al menos desde los siglos vi – v a.C.).» «El funcionamiento de la escritura sudlusitana no se conoce a la perfección, pero hay algunos aspectos claros. Se trata de un alfabeto redundante, no algún signario prefenicio. Un semisilabario, en el que de forma paralela al íbero se dispone de cinco signos para cada uno de los tres órdenes de consonantes oclusivas (verosímilmente velar, dental y labial); correspondiéndose en principio cada uno al uso exclusivo ante un signo vocálico específico. La apariencia formal de la escritura es como si a cada silabograma del íbero se le añadiera sistemáticamente el signo de la vocal ya incluida en dicho silabograma (ba + a, be + e, etc.) pero, desde un punto de vista estructural y funcional, corresponde a un alfabeto.» «Con todo, las inscripciones que han llegado hasta nosotros no siempre se atienen ortodoxamente a la regla general, sino que se aprecian lo que parecen ser simplificaciones y evoluciones diversas en un grupo minoritario; además de unas pocas inscripciones que utilizan formas de signos atípicas y Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 27 que deben corresponder a tradiciones epicóricas, por lo que son de difícil clasificación y complican sobremanera el establecimiento de regularidades a la hora de analizar el material.» Fim da citação. A s estelas apresentam uma escrita sinistrorsa (escrita que se lê da direita para a esquerda), de estrutura semi-silábica, datável para os séculos vii e vi a.n.e., derivada do alfabeto fenício. O abundante uso de vogais abre a hipótese de estarmos perante uma língua falada num limitado espaço geográfico. Estela fotografada no Museu de Almodôvar. Procurar no texto: CTRL+F E ntretanto, embora a lentíssimo conta-gotas, os quase inertes administradores da Arqueologia portuguesa permitem algum acesso à realidade das sociedades da época. Uma necrópole da Idade do Ferro (descoberta há 37 anos!) abriu em 2008 ao público: a Necrópole do Pardieiro, no concelho alentejano de Odemira. Podemos agora visitar dez sepulturas num sítio arqueológico onde foram achadas três lápides epigrafadas com Escrita do Sudoeste e duas estelas decoradas com marcas de pés, no Monte do Pardieiro, a cerca de três quilómetros de Corte Malhão, na freguesia de São Martinho das Amoreiras. as sepulturas do Pardieiro também foram achadas prendas funerárias, como colares de contas de pasta vítrea e de âmbar, pingentes de cornalina (ágata, pedra preciosa), peças de cerâmica e algumas armas de ferro, como facas e pontas de lança. Outro sítio visitável, Fernão Vaz, está integrado no Circuito Arqueológico da Cola, situado a cerca de 15 km da vila de Ourique, e ao qual se tem acesso pela estrada IC1, que liga Lisboa ao Algarve. A partir de 1970, os arqueólogos conseguiram localizar em Fernão Vaz vários monumentos funerários, onde foram recolhidas inscrições com Escrita do Sudoeste, juntamente com armas de ferro, cerâmicas de origem mediterrânea, jóias fenícias, anéis com escaravelhos egípcios – objectos provenientes do Mediterrâneo Central e Oriental. N Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 28 Estela da Fonte Velha, Bensafrim. Como se verifica em boa parte das estelas grafadas com a Escrita do Sudoeste, o texto é enquadrado por duas linhas paralelas, que definem o alinhamento dos glifos. A distribuição e a organização do texto são quase sempre parecidas. No modelo mais frequente, vemos uma única sequência contínua, em forma de U invertido, iniciada na parte inferior direita e terminada no lado oposto. A orientação sinistrorsa é a mais frequente: da direita para a esquerda. A posição dos caractéres é extroversa: o topo dos glifos está dirigido para o exterior da estela; a linha de base está orientada para o centro. Apesar de se tratar de um fenómeno geográfica e cronologicamente limitado, a existência de muitas particularidades atípicas do padrão mediano faz crer que não se praticou uma grande uniformização, pois as inscrições conhecidas mostram diversos particularismos. Procurar no texto: CTRL+F Estas descobertas permitiram identificar uma civilização entre os finais do século viii e o século v a.n.e.; agora faltava perceber a dinâmica social dos habitantes desta zona e a forma como se relacionavam com os empórios fenícios e as importações de elementos culturais trazidos por estes comerciantes. ouco nos interessa conhecer um sistema de comunicação social – como é o caso da Escrita do Sudoeste – se não o conseguimos relacionar com a organização social e política das sociedades que o usaram. Para além de várias descrições fenomenológicas, parece ser Virgílio-Hipólito Correia o único cientista que tentou perceber a dinâmica da sociedade que «honrava» os seus elementos de elite (que controlavam os centros de poder da região) com estelas funerárias escritas, entre os séculos viii e v a.n.e. Refere este autor «uma situação conjuntural em que esses centros de poder não estavam verdadeiramente nucleados, ou seja: em certa medida, que cremos ser correlativa à falta de nucleação de população e à sua incompleta urbanização, vários tipos de núcleos concentravam em si distintos tipos de poder. Esta situação, que não tem sido suficientemente compreendida, nem conceptualmente, nem em termos de restituições históricas produzidas pela historiografia, é, quanto a nós, fulcral em toda a envolvência arqueológica do fenómeno da escrita (…) e dos problemas do período orientalizante, em que a escrita se integra». Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 29 P Necrópole de Fonte Velha de Bensafrim (Lagos): lápides com António dos Santos Rocha (1853 – 1910) bisbilhotar o local. Sobre Escrita do Sudoeste. Segundo Caetano de Mello Beirão, 1986. as estelas com escrita do Sudoeste presentes nesta necrópole, (Beirão é um dos especialistas desta área.) Nas proximidades Virgílio Hipólito Correia (1997) procedeu à sua sistematização. As da Fonte Velha de Bensafrim (Lagos, Algarve) descobriu-se um duas primeiras estelas – Fonte Velha I (J.1.3) e II (J.1.4) – haviam local habitado durante a I. Idade do Ferro, cujos habitantes sido oferecidas a Estácio da Veiga em 1878 pelo prior de São implantaram estelas nas sepulturas dos seus membros de elite, Sebastião de Lagos. A estas somou-se-lhe uma terceira estela usando a Escrita do Sudoeste. A variadade das inscrições nas – Fonte Velha V (J.1.5) – fruto das escavações no local e que estelas de Bensafrim é ampla e a distribuição geográfica dos estaria reutilizada numa sepultura (Hübner, 1893). Igualmente vários grupos também se revelou bastante complexa. reaproveitada na construção de uma outra sepultura estaria a A paleografia que distingue estes grupos mostra tendências estela recolhida por António dos Santos Rocha – Fonte Velha VI sistemáticas, que podem eventualmente corresponder a (J.1.1) –, hoje albergada no Museu Municipal da Figueira da Foz. distintas estruturas de ensino e aprendizagem; estruturas A estas quatro estelas, somar-se-ia ainda uma outra – Fonte dotadas de alguma solidez e durabilidade. Estes grupos (clãs?) Velha III (J.1.2) – adquirida por José Leite de Vasconcellos para distinguem-se no terreno por uma linha divisória que atravessa o Museu Nacional de Arqueologia. Nesta instituição encontram- as serras algarvias. se, desde então, as estelas I, II, III e V. Virgílio Correia (1996) No âmbito do projecto da Carta Arqueológica do Algarve (1877- considera que estas epígrafes reportam-se à 3ª fase da evolução 1878), a Necrópole de Fonte Velha de Bensafrim foi alvo das da Escrita do Sudoeste, atribuindo-lhes uma cronologia do atenções de Estácio da Veiga em 1878. Em 1897, foi a vez de século VI a.n.E. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 30 E stela com Escrita do Sudoeste, achada na Herdade do Monte Gordo, freguesia de Rosário (Almodôvar), em plena planície alentejana, entre o conjunto de Ourique e de Neves/ Corvo, fora da área serrana onde tem ocorrido estelas em maior número. Encontrava-se reaproveitada como umbreira de um Monte junto da estela pré- histórica do Monte Gordo e numa zona onde devem ter aparecido 8 espetos de bronze (Vasconcellos, 1933). A estela encontra-se mal conservada, mantendo-se em mau estado parte do campo epigráfico. Nele se inscreveu um texto relativamente extenso, que constituirá contributo relevante para o corpus textual associado a esta Escrita. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 31 Cerâmica de engobe vermelho com Escrita do Sudoeste. Um fragmento recolhido numa escavação no castelo de Moura, no âmbito de trabalhos dirigidos pelo arqueólogo José Gonçalo Valente, Estela de Capote, Higuera e inserido num conjunto material e estratigráfico do século IV a.n.E. Neste mesmo tipo de cerâmica, la Real (Badajóz). Foto: cronologias mais recuadas haviam sido indicadas Vicente Novillo. 2005. por um fragmento proveniente do Castillo de Doña Catálogo de Estelas Decoradas del Museo Arqueológico Provincial Blanca – século VIII/VII –, e indiciadas ainda pelos grafemas que encontramos nas peças de Medellín e no Castro da Azougada, com cronologias dos séculos VI e V a.n.E. O fragmento de Moura é importante de Badajoz, Consejería pelo contexto arqueológico onde surge, com uma de Cultura, Junta de cronologia segura. De acordo com a leitura de Extremadura, Espanha. Amílcar Guerra, à parte conservada deve ler-se: *nabaor*, podendo provavelmente a primeira letra de que se conserva o pequeno sector ser um a, pelo que teríamos – com a peculiaridade de não haver redundância – ]anabaor[. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 32 Estela da Cerca do Curralão. No âmbito das relocalizações efectuadas em 2008 pelo Projecto Estela foi possível determinar o local da descoberta acidental, no decorrer de trabalhos agrícolas à mais de 30 anos, da estela da Cerca do Curralão (Santos, 1980; Beirão, Gomes, 1980: 25; Beirão, 1986: 134, Inscrição nº63; Correia, 1996: 133, 165 e Untermann, 1997: 264, 265; inscrição J.11.3). O local é situado na Ribeira de Odelouca, importante linha de água que articula a distribuição e a passagem entre as pequenas povoações, naquela que coincide hoje na delimitação administrativa concelhia e regional entre o Alentejo (Ourique e Almodôvar) e o Algarve (Silves). Nesta área já era conhecido um núcleo de estelas, nomeadamente as estelas da Corte do Freixo e de São Martinho (Cortes, 1999). A este conjunto pode-se agora associar com segurança Descoberta em 1979, a estela funerária procedente da Cerca a localização exacta da já conhecida estela da do Curralão em Almodôvar, apresenta texto dextrorso embora Cerca do Curralão, cuja proveniência do achado disposto em boustrophedon, onde se reconhecem 17 letras era incerta e referida a “local impreciso” e de completas e 8 incompletas, constituindo fórmula funerária, “cartografia impossível” (Correia, 1996: 133 e 165). possivelmente formada por seis palavras. Estas corresponderão A estela da Cerca do Curralão pode ser vista no a nome próprio, etnónimo menor, patronímico, cognome ou Museu de Arqueologia e Etnografia do distrito de gamonímico e a etnónimo maior, usado como origónomo. Setúbal, na exposição permanente aí patente. O estudo das epígrafes permite concluir que a Escrita do Sudoeste Peninsular é alfabética e expressa uma língua indo-europeia, que usou sete vogais e apresenta bom número de características fonéticas e gráficas, permitindo integrá-la na grande família das escritas arcaicas. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 33 Achados com Escrita do Sudoeste no contexto geográfico dos outros sistemas de escrita praticados na Península Ibérica antes da invasão romana. Mapa exposto no Museo Arqueológico Provincial de Badajoz, Extremadura, Espanha. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 34 F ace A do chumbo da Bastida de les Alcuses paleohispânicas (à excepção do alfabeto greco- (Moixent, Valência). A Escrita Ibérica Meridional ibérico), esta escrita tem glifos para consoantes e (ou Suroriental) é uma escrita similar à Escrita vogais, e signos que representam sílabas, como os do Sudoeste. Contudo, esta expressa algo como silabários. a «língua tartéssica», enquanto que a Escrita Ibérica A sua utilização é datada entre os séculos iv e ii a.n.e. Meridional expressa a «língua ibérica», como o fazem no Sudeste da Península Ibérica (Andaluzia Oriental, também a Escrita ibérica Nororiental e o alfabeto Murcia, Albacete, Alicante e Valência). Escrevia-se da greco-ibérico. Como a maior parte das outras escritas direita para a esquerda, como a Escrita do Sudoeste. Procurar no texto: CTRL+F B ronze de Cortono. Proveniência desconhecida. Sistema de escrita: Signário ocidental. Esta escrita exprime a língua celtibérica. É uma adaptação directa da Escrita Ibérica Nororiental. Como a maior parte das outras escritas páleo-hispânicas, integra glifos que representam consoantes e vogais, como os alfabetos, e signos que representam sílabas, como os silabários. Foi utilizada nos séculos II e I a.n.E., no interior da Península Ibérica (Guadalajara, Soria, Zaragoza). Escrevia-se quase sempre da esquerda para a direita. Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 35 Procurar no texto: CTRL+F N a Idade do Ferro peninsular, os contactos e o comércio a média e a longa distância, com comerciantes fenícios, por exemplo, eram controlados pelas elites. Já Maria Eugenia Aubet salientara em 1982 que a interacção com as regiões orientais do Mediterrâneo era controlada pelo estrato dominante da sociedade. A «penetração orientalizante» foi um processo de afirmação de uma elite, e a sua difusão na sociedade peninsular foi um instrumento para garantir essa dominância. Virgílio-Hipólito Correia disse a este propósito: «É indispensável abordar os fenómenos políticos se se quer compreender os fenómenos orientalizantes, entre eles a escrita.» ntre os vários tipos de povoamento pratica dos nos séculos viii a v, foram importantes alguns povoados não-urbanos, mas locais centrais de extensões territoriais significativas, que incorporaram funções económicas e rituais. Um sítio deste tipo é Fernão Vaz – um edifício de planta regular, composto por quatro longos compartimentos, de planta semelhante à dos Armazéns de Toscanos. O acesso é feito por outro grande compartimento rectangular, que forma um dos lados de um grande pátio, onde se entra por um vestíbulo monumental com uma lareira proeminente. Ao lado desta entrada, abrindo para o lado oposto, existem duas outras salas; a do lado sul terá funcionado como santuário ou como depósito de objectos rituais. Um raro conjunto de objectos, E Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 36 Sítio arqueológico de Fernão Vaz. Ruínas do edifício rectangular descrito no texto. Fernão Vaz designa os restos de um povoamento da Idade do Ferro, com uma ocupação posterior medieval-islâmica. Este pequeno sítio faz parte do Circuito arqueológico do Castro da Cola, um percurso que surgiu como aproveitamento de trabalhos de arqueologia realizados no concelho de Ourique, no Alentejo. A selecção dos locais foi orientada pela visibilidade dos sítios, mas também de modo a contribuir para desvendar uma paisagem organizada em torno do rio Mira, que funcionou como elemento aglutinante das populações deste território. Dos cerca de 30 sítios conhecidos, foi seleccionado um conjunto de 15 que, pelo seu estado de conservação, reuniam condições para uma apresentação ao público: os monumentos megalíticos de Fernão Vaz 1, Fernão Vaz 2 e Nora Velha, o povoado calcolítico do Cortadouro, as necrópoles da Idade do Bronze de Alcaria 1, Alcaria 2 e Atalaia, os povoados da Idade do Ferro Porto das Lages e Fernão Vaz, as necrópoles e monumentos funerários da Idade do Ferro de Fernão Vaz, Nora Velha 2, Vaga da Cascalheira, Casarão e Pego da Sobreira e o povoado fortificado medieval (islâmico e cristão) da Cola. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 37 incluindo um obelos, dois kiathoi e um vaso, tornam provável a hipótese de que algum tipo de libação ou ritual tivesse tido lugar nesta sala, ou noutra sala do edifício a que esta serviria de depósito. Neste edifício terão sido centralizadas várias actividades de exploração de recursos naturais: a cerca de 300 metros situava-se uma jazida mineira, explorada no Calcolítico e de novo na Idade do Ferro; da exploração agrícola dependente de Fernão Vaz conhece-se o pequeno habitat de Porto das Lages. ernão Vaz parece ser um paradigma, pois este padrão reproduz-se por outros povoados dispersos pela planície do Baixo Alentejo. Também existiram povoados fortificados; na zona de Fernão Vaz tal povoado terá existido sobre uma elevação próxima. Vários grandes monu mentos funerários rodeiam a área de Fernão Vaz. À ocupação antiga de Cola pertenceram uma espada do Bronze Final, elementos de foice de sílex, uma fíbula de cotovelo e várias mós. À volta deste povoado encontram-se várias necrópoles (Azinhal, Mamoa do Marchicão, Nora Velha II e a reutilização do Tholos da Nora Velha). esume Virgílio-Hipólito Correia: «Com os dados disponíveis, é sustentável que os habitats não fortificados se distribuíam de maneira semelhante à epigrafia, um factor pri- mordial na identificação de sepulturas de prestígio. Quer as inscrições, quer os grandes monumentos funerários têm uma larga distribuição por muitas necrópoles que, na maioria dos casos, estão associadas a pequenos povoados e não a centros urbanos.» «O padrão de distribuição das inscrições e dos sítios associados parece ser função da dispersão de recursos naturais. Assim, se as inscrições são indicador de um alto estatuto social na sociedade da época, esse estatuto estava directamente ligado a unidades demográficas organizadas em pequenos grupos, dispersos, que exploravam directamente áreas localizadas de recursos naturais particularmente ricos.» F A Estela de Mesas do Castelinho sítio arqueológico de Mesas do Castelinho foi um povoado fortificado com quase três hectares e há nele vários vestígios da Idade do Ferro. O povoado terá sido fundado no século iv ou v a.n.e. As campanhas arqueológicas aí realizadas desde 1987 permitiram descobrir várias fortificações, construídas na Idade do Ferro. A Estela de Mesas do Castelinho (imagem), achada em Setembro de 2008 em bom estado de conservação, é notável pela quantidade dos glifos presentes. Com 86 signos, é a estela com a inscrição mais extensa de Escrita do Sudoeste. Contudo, O R Estela de Mesas do Castelinho Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 38 a bela peça não se encontrava numa necrópole; foi descoberta por mero acaso numa zona já prospectada pelos arqueólogos, com a inscrição virada para baixo. O mais recente achado de uma estela com Escrita do Sudoeste deu-se no ano de 2008, durante prospecções na povoação de Corte Pinheiro, na zona de Loulé. A Estela de Corte Pinheiro foi recolhida pelos arqueólogos Samuel Melro e Pedro Barros, protagonistas do Projecto Estela. ¶ Bibliografia Escrita do Sudoeste, Escritas ibéricas Antunes, A. S. Testemunhos de literacia na margem esquerda do Baixo Guadiana: os grafitos. In: Um conjunto cerâmico da Azougada. Em torno da Idade do Ferro Pós-Orientalizante da margem esquerda do Baixo Guadiana, MNA, Lisboa, 2010. Barros, P., Melro, S. E Santos, P. J. Projecto Estela: primeiros resultados dos trabalhos nas serras de Mú e Caldeirão. Revista Xelb, 10, Silves, 2010. Correa, J. A. R. 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Aqui foram assinaladas dois conjuntos, um a Sul, na transição da Serra com o Barrocal, entre Benafim e Salir, onde foram encontradas as estelas da Fazenda das Alagoas, Viameiro e Barradas e que com as estelas encontradas em Bensafrim (Lagos) e São Bartolomeu de Messines (Silves) traçam o limite Sul da concentração de estelas com escrita do Sudoeste. O outro, a Norte, em torno das Ribeiras do Vascãozinho, Vascanito e do Vascão, revela uma das três principais concentrações deste tipo de vestígios epigráficos, que engloba sítios arqueológicos localizados em Loulé e em Almodôvar. Procurar no texto: CTRL+F Aubet, M.E. Zur Problematik des orientalisierenden Horizontes auf der Iberischen Halbinsel. In: Niemeyer, H.G. (ed.) Phönizier im Westen. Mainz. Madrider Beiträge 8, pp. 309-31. 1982. Beirão, Caetano de Melo. Cinco aspectos da Idade do Bronze e da sua transição para a Idade do Ferro no Sul do país. Actas das II Jornadas Arqueológicas da Associação dos Arqueólogos Portug. Lisboa. 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Os Lusitanos viviam unidos entre si por laços de sangue ou parentesco e não pelo território ocupado. O tipo de governo era a chefia militar, na qual o líder era eleito em assembleia popular, escolhido os que se distinguiam pela coragem, valor, capacidade de liderança e vitórias obtidas em guerra. Os autores gregos referiam-se a estes chefes militares como hegoumenos, isto é, líder, chefe, e os Romanos, dux. No entanto, o nome de regnator (rei), e príncipe, também foram referidos. O hospitium, em que se adoptavam estranhos na comunidade, seria também um costume dos Lusitanos. Apiano (95 — 165, autor da História Romana) revela-nos a existência de uma propriedade comunitária. G uerreiros. Século I n.E. As esculturas de guerreiros lusitano-galaicos constituem uma das manifestações plásticas mais destacadas do mundo castrejo do Noroeste peninsular. Dos 30 exemplares documentados, apenas quatro se reconhecem epigrafados: as estátuas de Meixedo (Viana do Castelo ‑ na imagem à esquerda); de Santa Comba (Cabeceiras de Basto), de São Julião (Vila Verde) e de Rubiás (Ourense). A estátua de guerreiro mostrada à direita vem de Boticas, Vila Real. No Guerreiro de Meixedo, o texto encontra-se dividido por três áreas: a primeira na parte frontal, sobre o saio e sob o escudo; a segunda desenvolve-se sobre o saio e sobre a perna direita; a terceira, sobre a perna esquerda. Em cima: a leitura do texto, fortemente abreviado, é da autoria de Armando Redentor. P(ublio)·Clodameo / Corocaudi / f(ilio)·Seaueo[n]i L(ucius)·Sest/ ius·L(ucii)·l(ibertus)·Coroc/audius / contu(bernalis) / frater et Tubene(n) s(es)·f(aciendum)·c(urauerunt)· Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 43 Letras sefarditas, 1 A rqueólogos da Universidade de Jena (Alemanha), encontraram em 2012 uma das mais antigas evidências da presença judaica na Península Ibérica, durante escavações perto de Silves, no Algarve. Numa placa de mámore, com 40 x 60 cm, podemos ler o nome Yehiel, seguido de letras ainda não decifradas. Os arqueólogos pensam ser uma lápide funerária (imagem em baixo). A datação do achado tem como base os restos zoológicos que estavam junto da inscrição. A matéria orgânica, datada por radiocarbono, aponta para cerca de 390 n.E. A mais antiga evidência arqueológica associada à cultura judaica no actual território português é também uma lápide com inscrição em latim e uma gravura de um menorá (candelabro com sete braços) datado de 482 n.E. E m cima: Epitáfio da judia Isidora, escrito em versais romanas, em latim. Tarracona. Texto: (lulab) (menora) Hi(lulab)c est (menora) (lulab) / memoria bone(!) re/cordationis Isid/ora filia bene me/morii(!) Ionati et Ax/iaes(!) pauset ani/ma eius in pace cu/m omne(!) Israel(!) / [a]men amen amen. Século IV-V. Tarragona. Foto: ph. Os testemunhos mais antigos são já de época romana avançada: uma lápide funerária encontrada em Adra e hoje perdida, provavelmente do século III, que procedia do enterro de uma garota judia, certamente escrava; e a famosa lápide de Tarragona, na qual se combinam inscrições em latim com símbolos judaicos. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 44 N a descoberta de Silves não se trata apenas de uma data excepcional, mas também de um contexto invulgar. Nunca antes se detectaram evidências judaicas numa villa romana. Durante o Império romano, por volta da data da inscrição, os Judeus escreviam habitualmente em Latim, por receio de represálias. O Hebraico, tal como se encontra na laje, só passou a ser utilizado após o declínio da supremacia romana, respectivamente durante o período de migrações populacionais ocorridas durante o século VI ou VII. eralmente a informação relativa às comunidades judaicas na região do Sul de Portugal provem na sua maioria de escrituras. Durante o Concílio de Elvira, cerca de 300 n.E., foram decretadas regras repressivas da conduta dos Judeus. Na Península Ibérica, a população judaica já seria bastante numerosa – mas as evidências arqueológicas no território português continuam omissas. Já em Tarragona, por exemplo, foram encontrados vários testemunhos de uma comunidade judaica em época tardo-romana. alfabeto hebraico é utilizado para escrever o Hebraico, língua semítica pertencente à família das línguas afro-asiáticas. Este alfabeto, um dos mais antigos, é escrito da direita para a esquerda, assim como o alfabeto árabe. O alfabeto hebraico só utiliza glifos para consoantes, pois as vogais são representadas por sinais diacríticos, chamados nikud ou sinais massoréticos. G O Epitáfio hebraico, Museo Sefardi, Toledo. Século xi. Inscrição hebraica, Tarragona. Foto: ph. Procurar no texto: CTRL+F Por estas características, torna-se óbvia a sua descendência dos sistemas de escrita arcaicos que também deram origem ao alfabeto fenício. Depois da conquista da Judeia pelos Romanos ( Jerusalém foi destruída em 70 n.E. pelo general Tito, pondo fim à Revolta Judaica), o Hebraico foi pouco usado como língua falada. Contudo, na diáspora, os Judeus que continuaram religiosos dedicaram muito esforço à alfabetização, com o propósito de fazer os fiéis lerem os textos originais da Bíblia hebraica e das múltiplas obras religiosas e filosóficas que a acompanham. s línguas/dialectos que os Judeus desenvolveram e adoptaram na diáspora, nomeadamente o ladino e o jidisch, não estão relacionadas com o hebraico. O Jidisch (falado na Europa Central e nos países do Leste) é um dialecto do alemão medieval que é expressão da cultura asquenazi (a dos Judeus da Europa Central e Oriental). A palavra asquenazi vem do termo hebraico medieval para designar a Alemanha: Ashkenaz. Sefarditas (em hebraico sefardi; plural, sefardim) é o termo genérico que designa os Judeus que viveram em Portugal e Espanha. (Sefarad é a palavra hebraica que designa a Península Ibérica.) O Ladino, falado na Península Ibérica, baseado no Castelhano e no Português, com empréstimos do Árabe, foi o idioma dos Judeus sefarditas; ainda é falado por cerca de 150.000 pessoas em comunidades sefarditas em Israel, nos Balcãs, na Grécia, no Próximo Oriente e em Marrocos. Orientada por um estilo próprio de ritual litúrgico, a cultura sefardita criou costumes e tradições culinárias, poéticas, musicais, da arte do livro, etc. Depois das seguinte páginas, com ilustrações, esta temática continua na (página 42). Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 45 A Em cima: Inscrição hebraica, Tarragona, Espanha. Foto: ph. E pitáfio do rabi Abraham Satabi, fragmento de lápida de arenisca do século XIII, procedente da necrópole da Aljama de Soria. Pode tratar-se apenas da metade da lápide original. Os caractéres foram incisos muito profundamente, incluiu-se elementos decorativos curviformes, distintos em cada um dos lados; uma raridade entre os modelos conhecidos da epigrafia hebraica hispânica. Texto: «Naquele momento a visão cessou […] / ao morrer um sábio, um homem […] / […] um rabi cheio de […] / […] Abraham Satabi». Procede do cemitério judeu de Soria, Espanha. Procurar no texto: CTRL+F Epígrafe hebraica. Museu de León. León, Espanha. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 46 Procurar no texto: CTRL+F F ragmento de epitáfio em pedra caliça. (Puente Castro). Princípios do século XII. Museu de León. León. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 47 Procurar no texto: CTRL+F F ragmento de epígrafe hebraica. Tarragona, Espanha. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 48 Procurar no texto: CTRL+F I nscrição. Antiga sinagoga de Belmonte. Belmonte está localizado entre a Covilhã e a Guarda, aos pés da Serra da Estrela. No bairro da Judiaria, a primeira Sinagoga data de 1297, dela hoje resta apenas uma inscrição. A Comunidade Judaica de Belmonte é a única comunidade peninsular herdeira da antiga presença histórica dos Judeus sefarditas. Durante toda a época da Inquisição, conseguiu preservar muitos dos ritos, orações e relações sociais. Apesar da pressão para a diluição na sociedade católica portuguesa, muitos dos belmontenses cristãos-novos continuaram a casar-se apenas entre si durante séculos. Em 1989 a Comunidade foi reconhecida oficialmente e em 1996 inaugura a sinagoga “Beit Eliahu” (Filho de Elias) precisamente numa das ruas da antiga judiaria. Também o cemitério judaico foi aberto em 2001. Desde 2005 está igualmente aberto ao público o Museu Judaico, que retrata a história da presença sefardita em Portugal, usos, costumes e que integra um memorial sobre as vítimas da Inquisição. Sinagoga de Belmonte, Rua Fonte Rosa, 6250-041 Belmonte, Portugal Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 49 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 50 D evia ser sumptuosa – em termos da época medieval em que foi construída, a sinagoga situada na então Judiaria Grande de Lisboa, no ponto mais próximo da igreja da Madalena, que ficava então frente à cerca da Judiaria. Talvez tivesse sido intencional a presença de um templo cristão, dedicado à judia arrependida Miriam de Migdal, junto ao bairro dos Judeus lisboetas. A única descrição que temos da Sinagoga grande de Lisboa foi deixada pelo médico alemão Jeronimus Muenzer, que visitou a Espanha e Portugal em 1494, num itinerário em latim. A tradução em espanhol, de Júlio Puyol (Boletim da Biblioteca da Real Academia de la Historia): «El sábado, vigilia de San Andrés, visité su sinagoga. No había estado nunca en uno de estos templos. En un patio que hay delante de ella, crece una parra gigantesca, cuyo tronco mide cuatro palmos de circunferencia. El interior, arreglado con extremada pulcritud, tiene una cátedra o púlpito para predicar, por el estilo del de las mezquitas; ardían diez enormes candelabros con cincuenta o sesenta luces cada uno, además de otras muchas lámparas, y las mujeres colócanse en lugar separado del de los hombres, alumbrado, de igual modo, con profusión de luces.» ue a sinagoga tinha pelo menos três naves, sabemos pelo inventário dos bens apreendidos a Isaac Abrabanel, quando este fugiu para Castela, por ter sido acusado de implicação na tentativa de subversão do Duque de Bragança: «hum lugar de sseda [cadeira, na interpretação de Q Elias Lipiner] na esnoga grande de Lisboa, na nave do meo em que see assentava Yuda Abrabanel seu padre”. s Judeus pagavam à Comuna uma pensão anual pelos lugares reservados que mantinham na sinagoga. Mas tinham o direito de os transmitir por venda, ou por herança. Assim se explica que João II se tenha apropriado dos três lugares pertencentes a Isaac Abrabanel, de um dos quais fez doação, em 1486, a Mousem Zarco, seu alfaiate. Em 1497, quando da conversão forçada dos O Judeus de Portugal, todas as sinagogas do reino passaram para a posse do rei. ais tarde, Manuel I fez doação do edifício da Sinagoga grande de Lisboa aos frades da Ordem de Cristo, em troca do convento que estes mantinham no Restelo, onde viria a ser construído o Mosteiro dos Jerónimos. O edifício da sinagoga foi transformado pelos frades, devidamente autorizados pelo Papa, na Igreja da Conceição (Velha), que o Terramoto de 1755 destruiu totalmente. M Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 51 Lápide da Grande Sinagoga de Lisboa, século XIV. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Prólogo / página 52 Lápide comemorativa da Sinagoga de Girona, século XIV, encontrada em 1888. (MAC, Girona). Foto: Olybrius. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 53 Árabe Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 54 Letras árabes C onsiderando o longo tempo que durou o domínio islâmico do território que é hoje Portugal, é lastimável que se tenham conservado tão poucos testemunhos dessa cultura. Uma razão deve-se, sem dúvida, ao facto que os grandes centros de poder se encontram em Córdova, Medina al-Zahra, Granada, Toledo, Badajóz, Sevilha e outras cidades andaluzes. Em Portugal conhecemos vestígios em Lisboa e no Al-Gharb (Silves, Faro). omo se sabe, os Árabes tinham grande apreço pela Caligrafia. Copiar um texto alcorânico era considerado um acto meritório de um Muçulmano pio. Os epitáfios que conhecemos continham frequentemente ao lado de dados pessoais do defunto, tais como o nome, filiação etc, data do falecimento, também trechos do Alcorão. Entre os monumentos de epigrafia árabe conhecidos em Portugal, existe no Museu de Faro uma lápide que serviu de pedra de ensaio a uma inscrição proveniente de Silves. A reforçar a hipótese apresentada pelo arabista americano A. R. Nykl, é o facto de ambas as lápides, tanto a lápide funerária E-6562 como a que lhe serviu de pedra de ensaio, nomeadamente E-7417, são feitos em mármore do mesmo tipo, isto é, em mármore cinzento da região de Mértola. C Lápide com inscrição árabe, Mértola. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 55 Lápide dupla de Évora Lápide de forma rectangular, As características da lápide, o tipo de escrita e a referência à reconstrução da cidade, permitem ligar esta inscrição à restauração de Évora e datá-la do ano de 914-915 n.E., corroborando as informações do cronistae Ibn Hayyán, factos que a tornam notável. E m 1968, quando se procedia às obras de desaterro da cave do Museu de Évora, (o antigo Paço Arquiepiscopal) foi encontrado um fragmento de lápide com inscrições árabes nas duas faces. Servia de cabeceira a uma sepultura. O fragmento é constituído por uma peça única de mármore com 40 cm de altura, por 63 de largura e 6 de espessura. Calculando o seu tamanho original a partir do texto e tendo em conta as formas mais comuns na Espanha Árabe, é de admitir que a lápide deveria ser quadrangular. quase totalidade da lápide é ocupada pelo campo epigráfico, com as letras em relevo, delimitado por uma moldura lisa. O texto: «Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. (Dou testemunho que) não há outro deus senão Deus, Ele só, - que não tem associado e que Muhammad é o seu servo eleito e o seu pro- A incompleta. Seis linhas de texto árabe em cúfico arcaico e, originariamente, tendo em conta as prováveis dimensões, deveria possuir pelo menos nove linhas. Cronologia: 302 H. (914-915 n.E.) Suporte: mármore. Proveniência: subsolo do edifício do Museu de Évora, 1968. feta, merecedor de toda a sua complacência – que Deus nos guie através dele pelo bom caminho. Esta cidade foi reconstruída…» É uma peça importante hispano-árabe, não só por ser das raras inscrições em cúfico arcaico encontradas em Portugal, mas sobretudo pela notícia da reconstrução da cidade. Infelizmente, por falta das linhas finais, não dá outras informações quanto a datas ou personalidades ligadas à reconstrução. Apesar disso, o sítio em que foi encontrada, a própria lápide em si (face B) e as notícias que possuímos de cronistas árabes e cristãos, permitem concluir que se refere à reconstrução de Évora no princípio do século X, após o saque da cidade por Ordonho II, pouco tempo antes deste ocupar o trono da Galiza. Foi no início deste século, precisamente a 13 de Muhárram de 301 H (18 de Agosto de 913 n.E.) que, segundo os cronistas, Ordonho, ao tempo rei vassalo da Galiza, cercou Évora com um grande exército. Devido ao mau estado das muralhas, a cidade foi rapidamente tomada. O governador Marwán Ibn Abd al-Málik ibn Ahmad foi morto na mesquita, enquanto a cidade era teatro de grande chacina. No dia seguinte, Ordonho partiu vitorioso levando em cativeiro quatro mil mulheres e crianças. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 56 U m texto árabe, o volume V do Al-Múqtabas do cronista cordovês Ibn Hayyán, veio trazer elementos inéditos e importantes sobre a sorte de Évora após a vitória de Ordonho. Ao descrever os acontecimentos do ano 301 H, acrescenta que, tendo Évora ficado deserta, o senhor de Badajoz, Abd Alláh Ibn Muhâmmad al-Jilliqi, temendo que alguns dos bérberes das imediações lá se metessem e lhe viessem a causar preo cupações, destruiu as suas torres e as muralhas. Ficou Évora abandonada até que o mesmo senhor a reconstruiu no ano seguinte, 302 H. (27.7.914 a 16.7.915 n.E.) para o seu aliado Mas’úd Ibn Sa’dún as-Shurunbaqui. reverso da lápide (imagem) recebeu, cerca de dois séculos depois, outra inscrição com a escrita em posição inversa à primeira. O campo epigráfico, rebaixado, é delimitado pelo que resta de uma moldura lisa estreita e que, tal como o relevo das letras, quase desapareceu em virtude de um desgaste profundo. radução: (…) (em) quinhentos e (….) Ordenou a sua construção o imãm al-Mansur bi—Llah Abu Muhâmmad Sidray Ibn Wai’r al-Qaysi. E terminou sob a direcção do Vizir (…) Abu Abd Alláh Muhâmmad. É uma inscrição comemorativa de fundação, mas não sabemos a que construção se refere. Sabemos sim que foi man- O T entre o final da dominação Almorávida e o início da Almóada, vulgarmente chamado de Segundas Taifas. esde 539, ano da revolta em Évora contra os almorávidas, até 552, Ibn Wazir está em dependência ou de Ibn Qasi ou de Ibn Hamdín ou dos almóadas, à excepção de um curto período que vai dos finais de 542 (meados de 1148) — expulsão dos almóadas de Sevilha — ao início de 546 (2.° quartel de 1151) data da homenagem a Abd al-Mumiin, em Salé. É neste período que parece lógica a sua proclamação como rei e será, portanto, dessa data a presente inscrição. uanto à construção em causa, nada se sabe. Onde hoje está a Catedral de Évora, pode ter existido a mesquita principal e, nas proximidades, a alcáçova. O facto da construção ter merecido ser assinalada com uma inscrição, faz supor tratar-se de uma obra de relevância. A inscrição é testemunho de uma época conturbada e reconfirmar em Évora a soberania de Abu Muhâmmad Sidray Ibn Wazir, Rei de Taifa. D dada fazer por Abu Muhâmmad Sidray Ibn Wazir al-Qaysi, figura conhecida no Andaluz nos meados do século XII n.E. Os títulos que lhe são atribuídos al-Imám, al-Mansur bi-Llah, já conhecidos de inscrições numismáticas, levam-nos a concluir que, ao tempo, seria rei de Taifa. a data apenas resta a indicação da centúria de quinhentos (século xii), pois, devido à estrutura da datação árabe em que as centenas são colocadas após as unidades e as dezenas, estas estariam nas linhas anteriores desaparecidas. Todavia, o que se conhece da vida de Ibn Wazir permitirá uma hipótese de datação mais precisa ao tentar identificar a altura em que, como senhor independente, se teria proclamado rei. São poucas, e por vezes um tanto confusas, as informações que possuímos do acidentado período que se situa D Q Bibliografia Borges, Artur Goulart de Melo. Duas inscrições árabes inéditas no Museu de Évora. In: A Cidade de Évora, n.ºs 67-68, 1984-1985. Procurar no texto: CTRL+F L Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 57 ápide epigrafada. XIII d.C. Período Islâmico. Dimensões (cm): A: 20; L: 16,5; espessura: 4,3. O fragmento tem forma triangular. Leva uma inscrição em árabe, incompleta, disposta em cinco linhas, da primeira subsistindo apenas a parte inferior, em escrita Nashhi em relevo. Do lado esquerdo tem uma espécie de moldura em cordão e em baixo existe uma margem sem inscrição. A lápide é executada em mármore granolamelar cinzento da região de Mértola. Lápide proveniente de Mértola, sendo desconhecidos outros pormenores. Lápide epigrafada incompleta, subsistindo apenas cinco linhas de escrita em caracteres nashhi em relevo, de execução pouco cuidada e sem pontos diacríticos. A análise do texto não permite nenhuma conclusão quanto a seu conteudo dado que apenas a segunda linha faz sentido, lendo-se:» noventa e quinhentos», sendo o resto do texto composto por junção de letras. A. R. Nykl, arabista americano, que a examinou nos anos quarenta no âmbito do levantamento da epigrafia árabe em Portugal por ele empreendida, avançou a hipótese de que a lápide em apreço constituir uma espécie de pedra de ensaio, reconhecendo nela a mão do mesmo aritífice que teria executado a lápide E 6562, proveniente também de Mértola, no acervo do MNA, coincidindo a segunda linha da pedra de ensaio com a nona linha do texto da lápide acabada E 6562. Lápide com inscrição árabe,em caractéres cúficos. Mértola: Campo Arqueológico de Mértola. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 58 Fragmento de lápide funerária Tradução: “Em nome de Deus, o [Clemente, o Misericordioso.] Este é o sepulcro de […] Ibn Khãlis […] Muhammad Ibn al-[…]” Séc. XI-XII. Museu de Mértola – Núcleo Islâmico. Bibliografia: Macias, Santiago. Mértola: o último porto do Mediterrâneo. Mértola: Campo Arqueológico de Mértola, vol 3, pp.46. 2005. Lápide tumular. Inscrição em letras cúficas. Museu Arqueológico de Badajóz. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 59 Texto do epitáfio: «Só Deus é eterno! Tenha Deus piedade (de quem está aqui sepultado); por favor, tu que me estás vendo, contempla este lugar um momento. Para ele (este lugar) teve de passar.» E stela comemorativa da construção dum alminar. Alto relevo talhado, 419 x 394 x 46 mm. 969 n.E. Procedência: Córdova. Oito linhas de caractéres cúficos floridos em relevo de 7 mm. Esta peça foi estudada, entre outros autores, por Lévi-Provençal, que a considerou única, tratando-se da comemoração da edificação dum edifício religioso por um particular. Proveniência: Frielas, Loures. Período Islâmico. Século XII. Lápide funerária em mármore. Dimensão: altura 33,5 cm, largura 51,5 cm, espessura 4,5 cm. Museu Nacional de Arqueologia. O fragmento de forma rectangular, é a parte superior de uma lápide funerária decorada com uma moldura em relevo no interior da qual está inscrito um arco, também em relevo, que contém a inscrição em árabe insculpida, em caractéres cúficos. Nas extremidades da parte superior do espaço entre a moldura e o arco situa-se a primeira linha da inscrição que constitui um epitáfio. As restantes 5 linhas encontram-se no interior do arco. O campo epigráfico delimitado pelo arco ogival mede: A: 26cm e L: 36 cm. Um aspecto estético a realçar é a presença de um arco, elemento de ornamentação bastante frequente nas lápides peninsulares. Em Portugal são conhecidas outras lápides que empregam o arco como elemento ornamental, nomeadamente uma da Madragoa e outra da Praça da Figueira (Liosboa), ambas no Museu da Cidade (Lisboa) e uma outra, no Museu de Évora. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 60 Lápide funerária de Abu Bakr Yaḥyã ‘Abd Allâh Ibn al - Huwãrī Pertenceu à colecção de Estácio da Veiga, que a encontrou em 1877 encravada “no revestimento do lado nordeste” da torre do Castelo de Mértola. Museu de Mértola. Museu de Arte Islâmica. Lápide rectangular, mais larga na parte superior, quase totalmente preenchida pelo campo epigráfico com treze linhas, em relevo, num cursivo compacto e sem diacríticos, numa paginação pouco cuidada e muito irregular. Dimensões: 445 x 260 x 70 mm Cronologia: 598 H./1202 n.E. Bibliografia: Torres, Cláudio; Macias, Santiago (coord.) (2003): Museu de Mértola: arte islâmica: guia do museu. Mértola: Campo Arqueológico de Mértola. Procurar no texto: CTRL+F Inscrição funerária árabe, em letras cúficas. Mértola. Núcleo de Arte Islamica. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 61 Procurar no texto: CTRL+F Estela Funerária E ste placa epigráfica foi encontrada embutida numas antigas paredes postas a descoberto, quando se abriam as fundações para a construção do edifício nº 19 da Rua das Madres, na Madragoa, Lisboa. A estela tem o topo quadrangular rodeado por uma moldura, definindo o campo epigráfico, ocupado pelo texto e por motivos decorativos: o arco simbólico e dois discos com folha lanceolada. O texto, gravado em relevo, está relativamente bem conservado, excepto na primeira linha onde apenas se consegue ler “Allah”. O restante texto é uma citação do Corão (Sura LV, 26-27): “Tudo o que se encontra sobre a Terra desaparecerá. Só a face do teu Senhor permanecerá aureolada de majestade e nobreza”. A citação corânica, os motivos decorativos da estela e o tipo de letra, um cúfico arcaizante, permitem atribuir uma data do final do século XII ou dos inícios do século XIII. Esta estela testemunha a importância da comunidade islâmica a residir em Lisboa, tendo pertencido a um dos cemitérios muçulmanos (almocavares) da cidade. Desactivados na época de Manuel I e por determinação régia, foi permitida a reutilização de todos os elementos pétreos aí existentes, nas obras públicas. Que triste. Calcário. Séc. XII – Séc. XIII. Proveniência: Rua das Madres, 19, Lisboa, Portugal. Dim.: 545 mm X 479 X 94mm.Nº Inventário: MC.ARQ.RM.65. EP.0001. Museu da Cidade de Lisboa. Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 62 Procurar no texto: CTRL+F L ápide comemorativa da construção de uma torre. Mármore. Silves, Faro. 624 Hégira (1.227 n.E.) Escrita em cursivo nasrida, muito floreado e decorativo. Na terceira linha o nome de quem a mandou construir foi deliberadamente apagado. Museu Arqueológico de Faro, Algarve, Portugal. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 63 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 64 L ápide funerária. Museu Arqueológico de Faro, Algarve, Portugal. Foto: ph. Procurar no texto: CTRL+F I nscrição comemorativa árabe, em letras cúficas. Al-Andalus, período dos Reinos Taifas, cerca de 1085. Transcrição para a lingua castelhana: (´Basmala. Tasliyya. Ha ordenado la gran señora Umm Rasid Abu-l-Husayn Ubayd Allah, hijo de al-Mu´tamid `alá Allah, al-Mu`ayyad bi-nasri-llah, Abu-lQasim Muhammad b. ´Abbad (que Dios le ayude asistiéndole y apoyándole, e ilumine a ambos), la erección de este alminar en su mezquita (Dios le guarde), buscando una generosa recompensa. Se terminó, con la ayuda de Dios, bajo la dirección del visir y secretario Abu-lQasim b. Hayyay (Dios le favorezca) en el mes de sa`ban del 478´) [Fonte: Oliva e outros, 1985]. Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 65 Procurar no texto: CTRL+F Alcorão E ste manuscrito está entre os poucos Alcorões datados sobreviventes da Peninsula Ibérica islâmica. Foi concluído em Sevilha, em 1226 n.E. (624 A.H.), tendo sido resgatado da destruição feita pela Reconquista cristã por Muçulmanos que fugiram da Espanha para o Norte da África. Em 1535, quando o imperador Carlos V (1500 –1558) conquistou Túnis numa expedição contra os piratas bárbaros, as suas tropas confiscaram o Alcorão e levaram-lo de volta para a Europa. Posteriormente, o precioso manuscrito passou para Johann Albrecht Widmanstetter (1506 –1557, diplomata e orientalista), cuja biblioteca mais tarde se tornou a base para a Biblioteca da corte de Munique. O texto foi posto em pergaminho na escrita andaluza condensada. O dourado predomina na coloração da página dupla de abertura, nos títulos das suras (capítulos), nos marcadores dos versículos e nos ornamentos nas margens que se referem às prostrações e à divisão do Alcorão em secções. A página final com o colofão foi adornada com uma roseta rodeada por uma moldura quadrada. O manuscrito encontra-se na Biblioteca Estatal da Baviera, em Munique, Alemanha. Data: 1226. Sevilha. Idioma árabe. Alfabetos / «Temas» / Árabe / página 66 Roma Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 68 A primeira letra global N o século i a.n.E, finalizando uma lenta evolução percorrida ao longo de 700 anos, os Romanos usavam um alfabeto versal muito semelhante ao nosso, no qual faltavam apenas as letras J, V, W e Z. Os Romanos não só desenvolveram o «nosso» alfabeto, com os seus valores fonéticos, mas também a forma das letras, a sua estética e até as suas relações recíprocas – os espaçamentos entre as letras que hoje se chamam tracking e kerning, assim como os melhoramentos ópticos e contracções designados por ligaduras (página 136). No decorrer do século i a.n.E., as formas das letras em inscrições romanas alteraram-se radical e permanentemente. Substituindo as letras monolineares (hastes de grossura constante) começam a aparecer cada vez mais frequentemente formas com modulação, ou seja, com nítidas diferenças entre traços fortes e finos. Surgem letras serifadas, surge a Capitalis. Esta mudança de padrão estético tem sido justificada com mudanças nos suportes, pois passou a usar-se mármore em vez de pedras mais brandas. Mas também os Gregos, já quatro séculos antes, gravavam as suas letras sobre mármore, e faziam belas letras pequenas, geométricas, sem serifas e monolineares. O que provocou a grande mudança foi que a tradição caligráfica romana existente – arte de alta sofisticação e qualidade –, penetrou no universo das letras gravadas em pedra. William Richard Lethaby (retrato ao lado), o fundador da Central School of Arts and Crafts, formulou em 1912: «Os caractéres romanos que hoje são as nossas letras – embora as suas primeiras formas nos tenham chegado apenas em versões gravadas em pedra – devem ter sido escritas com um pincel largo e duro, ou ferramenta comparável (flat, stiff brush, or some such tool). disposição de traços fortes e finos, e também o feitio exacto das formas curvas, foram produzidos por uma ferra menta A manejada com gestos rápidos. Penso que as grandes inscrições monumentais foram desenhadas in situ por um mestre calígrafo, e em seguida cortadas na pedra por um gravador, sendo a gravação apenas a fixação do escrito.» Poucos anos depois de Lethaby ter formulado estes significativos comentários, foram descobertas as pinturas murais de Pompeia, que as cinzas do vulcão Vesúvio tinham conservado intactas (página 181). Aí se pôde confirmar a excelente escrita rápida (rapid writing) da qual Lethaby falára. Mais tarde, o epigrafista norte-americano Edward M. Catish iría novamente confirmar o comentado por Lethaby (página 62). Mas será importante fixar que o estudioso britânico falava das «grandes inscrições monumentais». AbCDEFGHIKL M NOpQrst vx Y Z Alfabeto latim arcaico, com letras de grossura constante e de traçado simples. Digitalização do autor. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 69 A expansão à escala mundial Neste livro falaremos destas, mas também de muitas outros estilos de letras romanas, que terão sido desenhados de outro modo, seguindo outros padrões estéticos e beneficiando de outros processos de execução, adaptados a outros suportes. N O s Romanos usaram, quase sempre em paralelo, sete diferentes tipos de letra. I. A Capitalis Monumentalis era eleita para figurar em epígrafes de pompa e circunstância, para celebrar datas importantes, conquistas, feitos militares, chefes políticos e divindades. II. A Capitalis Quadrata, variante manuscrita da Capitalis lapidar, era usada para todos os documentos importantes, escritos com um cálamo sobre papiro (página 208). A poesia e a prosa literária escreviam-se com a Quadrata. III. A Capitalis Quadrata condensada, que proporcionava economia de espaço. IV. A Rustica, letra de ducto muito caligráfico, quase sempre condensada, também proporcionava economia de espaço; pintava-se em paredes, esculpia-se em pedra, gravava-se em metal (por exemplo, para escrever diplomæ militaris) e escrevia-se em documentos de papiro. V. Para a grafia de documentos menos importantes, muitas vezes feitos à pressa, riscava-se a Cursiva em tabuinhas de cera ou de madeira, usando um estilete (stilus). Esta tinha as características de uma minúscula, com hastes ascendentes e descendentes. Imagem e texto: saliente-se que em muitas lápides se conjugavam elementos escultóricos ou pictóricos com as letras. VI.Para cunhar marcas e logótipos, usaram letras de formas simplificadas, geométricas, com pouca modulação na grossura das hastes, muitas vezes sem serifas, ou com serifas muito pequenas. VII. Além disso, desenvolveram uma anotação taquigráfica. o sistema político e colonial que foi o maior, o mais potente e o mais duradouro império da Antiguidade, os Romanos impuseram a primeira letra global. Nos vastos territórios ocupados durante séculos, as letras romanas substituíram quase todos os outros sistemas de escrita autóctones (só o grego foi tolerado). Conhecemos, por exemplo, lápides em língua lusitana, mas grafada com letras latinas. O alfabeto latino é utilizado para escrever a língua portuguesa, as línguas da Europa Ocidental e Central. Através do latim falado pelos invasores, o alfabeto latino expandiu-se com o Império romano. Na metade oriental do Império, incluindo a Grécia, a Ásia Menor, o Ponto e o Egipto, continuou-se a usar o grego como língua franca, mas o latim foi falado na metade ocidental do Império. As linguas românicas – castelhano, francês, provençal, catalão, português, galego e italiano – evoluíram do latim e continuaram a usar o alfabeto latino. O alfabeto latino disseminou-se entre os povos germânicos do Norte da Europa durante a propagação do Cristianismo. Na Idade Média, entrou em uso entre os polacos, checos, croatas, eslovenos e eslovacos, assim que estes adoptaram o Catolicismo; os eslavos orientais adoptaram em geral o Cristianismo Ortodoxo e o alfabeto cirílico. Procurar no texto: CTRL+F As línguas bálticas (lituano e letão), assim como o finlandês, o estoniano e o húngaro, também usam o alfabeto latino. Com a colo ni zação ultramarina, os idiomas castelhano, português, inglês, francês e holandês disseminaram o alfabeto latino pelas Américas, Aus trália, partes da Ásia, África e Pacífico. M uitos linguistas consideram o uso de glifos fonéticos (com ou sem diacríticos) o sistema mais funcional de escrita. No entanto, a maioria das línguas ocidentais que adoptaram o alfabeto latino não são «foneticamente correctas», já que o mesmo som pode ser representado por caractéres diferentes (C, Q e K, por exemplo) ou dois sons diferentes pelo mesmo caractére (i de ministro e i de ideia). Uma experiência frustrante para qualquer criança portuguesa que aprende inglês (ou vice-versa) é constatar que até às simples vogais são associadas sons diferentes. Estas ambiguidades diluem o aspecto racional do alfabeto latino. Para atenuar este efeito, introduziram-se mais diacríticos, acentos fonéticos que servem para alterar a pronúncia de certas letras, consoante o idioma para o qual são empregues. • São muito escassas as representações do alfabeto grego na região hoje portuguesa – autênticas raridades. Placa funerária patente em Mértola. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Roma / página 70 Procurar no texto: CTRL+F Lápide funerária, gravada com letras gregas. Mértola, Baixo Guadiana, Portugal. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Roma / página 71 Procurar no texto: CTRL+F B asicamente, as formas e as proporções das letras romanas «clássicas», concretamente, as da Capitalis Monumentalis, inserem-se em formas simples. A a sua tipometria orienta-se pelas formas geométricas quadrado, tri ân gulo e circulo. Num quadrado, ou no triângulo que cabe nesse quadrado, cabem o V, A, X, O, N, H, C, G, D e T. Outras letras ocupam metade desse quadrado; são essas o E, F, S e L. Algumas letras são mais largas que esse quadrado – o M – e uma é mais estreita que metade do quadrado: o I. P, B e R ocupam posições intercalares. O Q tem um valor próprio, devido à sua cauda. Todas estas indicações são valores aproximados. A criatividade dos artesãos produziu numerosas variações, de modo que é inútil fixar «cânones absolutos». • Alfabetos / «Temas» / Roma / página 72 AOH N VGD X ES FL I M R P B Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 73 As formas das letras romanas O carácter geral das letras versais romanas lapidares (Kapitalschrift, alemão; capitals, inglês) deve-se ao facto de que estas letras ditas maiúsculas se formam pela conjugação de linhas direitas, horizontais, verticais e diagonais – com a excepção de algumas letras de origem mais antiga, de formas curvas. Dentro deste quadro geral, as diversas épocas, as diferentes formas de monumentos epigráficos e os diferentes suportes deram origem a uma apreciável gama de variações. Dentro desta enorme panóplia de formas, poderão ser distinguidos os seguintes grupos: A. Letras versais de formas irregulares e toscas, sem alinhamento preciso dos traços horizontais e verticais; as distâncias entre as letras também não são cuidadas. De modo geral, aqui os traços são de grossura constante; ou seja, as formas não apresentam modulação. Os terminais não são cortados, nem apresentam os acabamentos próprios das letras serifadas. Este grupo poderá ser subdividido em: A. 1. Letras versais arcaicas, da época em que a letra não mostrava origens caligráficas. ...letras versais arcaicas, da época em que a letra não mostrava origens caligráficas. Lapidário do Museo de León, Espanha. Foto: ph. Procurar no texto: CTRL+F A. 2. Uma letra de características semelhantes, mas já praticada nas épocas depois da influência caligráfica nos padrões das letras. Estas letras mostram formas detorieadas pelo desleixo, pressa e incompetência na execução dos lapicidas, assim como pela escolha inapropriada dos suportes, e demais condicionantes. B. Uma letra versal de formas regulares e de evidentes qualidades estéticas. De modo geral, as inscrições são feitas num único padrão de letra, ou, por vezes, numa equilibarada construção incluindo, por exemplo, uma Capitalis Monumentalis e uma Capitalis Condensada. Não faltam exemplos, também na presente documentação, de combinações desse género. Estes magníficos exemplos são típicos dos últimos séculos da Républica romana. Durante os reinados de Trajano e Adriano, encontramos as mais cuidadas e brilhantes execuções lapidares da letra formada caligráficamente, de formas quadradas – as litterae quadratae. ntes e depois da Era dos Antoninos (Nerva, Trajano e Adriano), observamos uma letra mais alongada (condensada); na primeira fase cavada mais profundamente na pedra, na segunda mais superifical. Com a degeneração do gosto e das qulificações dos artistas e artesão, a qualidade caligráfica da escrita lapidar piora. No que toca as inscrições em monumentos públicos, a letra é, de modo geral, de melhor qualidade. É óbvio que, também nas fase de excelência, se detectam suficientes exemplos de má qualidade; alguns quisemos incluir na escolha feita para a presente documentação. A Alfabetos / «Temas» / Roma / página 74 Lápide funerária exposta no Museu de Évora. O facto de esta inscrição ter sido realizada sobre um lápide de xisto dificultou seriamente o trabalho do lapicida. Mais do que gravadas, as letras foram riscadas neste material pouco adequado ao propósito. Foto: ph. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 75 As características das letras de alta estética distinguem-se pela uniformidade e regularidade das linhas direitas e curvas; assim como nas distâncias observadas entre elas (o que hoje ze traduz no conceito de kerning) e nas justas proporções da largura e da altura. Na modulação, é importante as relações do contrastes entre traços finos e grossos... Nesta categoria das letras versais mais conseguidas, mais bem proporcionadas e bem formadas ainda podemos diferenciar: 1) Letras quadradas; 2) Letras oblongas, condensadas (página 71); 3) largas (página 153); 4) inclinadas. Dentro deste quadro – discutível, sem dúvida – existem uma quantidade de aberrações: letras invertidas, da esquerda para a direita, ou mesmo de cima para baixo. Letras com hastes alongadas, na tentativa «pós-modernista» de embelezá-las. Ou simplesmente letras mal-feitas, conforme estão documentadas na publicação «Cultura Visigótica», do mesmo autor. Lápide funerária de Públio Júlio Tangino. Século I n.E. Achada em São Pedro do Corval (Reguengos de Monsaraz, Alentejo, Portugal), exposta no Museu de Évora. ME 1812. p(ubli) iuli g(ai!) f(ilii) / gal(eria) tang/ini an(norum) l h(ic) s(itus) e(st) s(it) t(ibi) t(erra) l(evis) O facto de esta inscrição ter sido realizada sobre um lápide de xisto dificultou seriamente o trabalho do lapicida. Mais do que gravadas, as letras foram riscadas neste material pouco adequado ao propósito. Fotos: P.H. Nesta página: inscrições pautadas por linhas auxiliares. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 76 E xemplo de letras romanas mal concebidas e mal executadas. Nesta pedra, acumulam-se erros de alinhamento, de kerning e de orientação do eixo das letras. Execução grosseira do «Y». Lápide funerária romana para Galla, em exposição no Museu Arqueológico Nacional, Lisboa. Fotos: P.H. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 77 O decalque de inscrições latinas e gregas (latin squeeze, rubbing, paper impression, inglês; cliché, estampage en papier mouillé, francês; Abklatsch, alemão) tem sido uma técnica amplamente usada para reproduzir inscrições da Antiguidade. Quando ainda não era comum (ou difícil) fazer a fotografia de uma dada inscrição, os epigrafistas recorriam a esta técnica de decalque sobre papel húmido para obterem reproduções em negativo. Infelizmente, esta variante da técnica foi feita sem coloração do papel (ink rubbing, como o faziam os Chineses), de modo que resulta difícil obter os contornos exactos de cada uma das letras de um texto. O que resulta útil para um epigrafista, é pouco proveitoso para um desenhador de letras... Decalque de uma inscrição latina. A s letras das inscrições romanas gravadas em pedra eram pintadas? Preenchidas com côr, para melhorar contrastar com as pedras alvas? Existe pouco evidência que nos mostre resíduos de pigmentos nas formas cavadas pelos lapicidas. Tudo indica para que as letras pintadas a vermelho (a cor que se observa mais frequentemente) tenha sido adicionada por antiquários e epígrafistas zelosos. Aliás, o facto que as letras gravadas eram formadas em três dimensões (largura, altura, profundidade) não aponta para que esse efeito fosse aplanado pela pintura, que, necessariamente, reduz as formas das letras a duas dimensões... • Procurar no texto: CTRL+F Os glifos O alfabeto latino foi tomado dos Gregos e dos Etruscos. A primeira alteração que o alfabeto sofreu, foi a introdução do G para diferenciar os sons G e K – uma iniciativa de Spurius Carvilius Ruga, um liberto que abriu a primeira escola de Gramática em Roma. Nesta época terá sido abandonado o Z dos Etruscos. Quando a Républica Romana terminou, depois da conquista da Grécia (146 a.n.E.) as letras gregas Ypsilon e Zeta foram adicionadas ao fim do alfabeto, em forma do Y e do Z – para que os Romanos pudessem escrever adequadamente nomes e palavras gregas. o século ii a.n.E. ficou fixado o alfabeto latino de 23 letras, que se manteve sem grandes alterações durante todo o Império. A, B, C, D, E, F, G, H, I, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, V, X, Y, Z. O glifo V corresponde tanto ao som vocálico /u/ como ao consonântico /v/, do mesmo modo que o I representa os sons /i/ e /j/. Em nenhuma inscrição romana vemos as grafias U e J. Estas foram introduzidas no Renascimento para distinguir os valores vocálicos dos consonânticos. A única tentativa séria de alargar o espectro fonético do alfabeto latino foi a iniciativa do imperador Claudio de introduzir três novas letras: o C invertido (antisigma) para o som /PS/, um F invertido N Q Alfabetos / «Temas» / Roma / página 78 (digamma inversum) para representar o /Ü/, e meio H (sonus medius), para representar o /W/. Estas chamadas letras claudianas não sobreviveram o seu inventor. Assim como os Gregos, os Romanos usaram letras para representar os números. Uma barra horizontal sobre a cifra servia para multiplicar por mil, e uma caixa para multiplicar por cem mil. N O eixo de inclinação do Q e do O é uma característica das letras romanas derivadas directamente do modo como eram desenhadas: com um pincel largo. as inscrições também identificamos sinais diacríticos. No latim escrito, o diacrítico denominado apex (plural: apices) era um acento fonético com a forma semelhante ao nosso acento agudo ( ´ ); era colocado sobre as vogais que deviam ser pronunciadas longas. A forma deste acento pode variar, mesmo no contexto de uma só inscrição. O sicilicus, com forma parecida ao nosso acento circumflexo, indica que a letra sobre a qual vai posto deve ser lida duas vezes. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 79 Os Romanos usaram a pontuação para separar as palavras – e para fins decorativos, no princípio ou fim da linha. Esta pontuação era colocada a meia altura da linha • A forma de pontuação mais frequentemente empregue era o triângulo com o vértice para baixo; com menos frequência aparecem os quadrados. No século i n.E. aparece a forma de folha • (hedera distinguens), e no século ii também se usa o círculo. s formas das letras romanas seguem sim a ortodoxia dum padrão praticado em todo o Império, mas também mostram particularidades regionais e expressão individual, variando A segundo o ordinator encarregado de traçar as letras sobre a lápide, para depois ser gravada a cinzel. As letras eram primeiro pintadas sobre a pedra com um pincel mais ou menos largo, segurado diagonalmente. Este método de pré-traçar as formas antes de aplicar o cinzel explica as variações de grossura de traço das letras latinas, a partir da Era Imperial – como no «A» mostrado em baixo. Se também explica a existência, assim como as formas específicas e os alinhamentos das serifas, tem sido um tema muito discutido, mas os especialistas não chegaram a conclusões definitivas. A C aracterizada por três tipos de inscrições – funerárias, votivas e honoríficas – a epígrafia latina do período imperial obedecia a formulários pré-definidos, que constituem indicadores da tipologia das inscrições. Por exemplo: a presença de fórmulas como D.M.S. (consagrado aos deuses Manes), H.S. E. (aqui está) e S. T. T. L. (que a terra te seja leve) não deixa dúvidas quanto ao carácter funerário da inscrição. • Ligaduras romanas. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 80 Luz e sombra Note que as letras das inscrições lapidares apresentavam um belo efeito tridimensional, obtido pela gravura na pedra, um corte que tinha necessariamente alguma profundidade. Assim, o aspecto das letras gravadas variava consoante o ângulo de incidência da luz do dia. Porém, quando se transportavam as letras para o gesso liso de uma parede ou para um pergaminho (e mais tarde para o papel), perdia-se este maravilhoso efeito... Foto: ph. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 81 Um ângulo de iluminação pouco comum põe em evidência o esmerado cuidado Serifas posto no traçado das finíssimas serifas. Estas formas terminais tornáram-se um elemento distintivo das mais elegantes letras elaboradas por lapicidas romanos. Museo de la Romanización, Calahorra. Foto: Manuel Ramirez Sanchez. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 82 Edward M. Catich N ascido em 1906 (Stevensville, Montana) e falecido em 1979 (Davenport, Iowa), o padre norte-americano tornou-se uma das mais consideradas personalidades no mundo da Epigrafia e do Typeface Design. Docente, calígrafo, ilustrador e lapicida, Catich é especialmente lembrado pela análise das letras romanas inscritas no pedestal da Coluna de Trajano, em Roma. A sua principal tese é que a Capitalis Monumentalis da época augustina foi sempre pré-desenhada com um pincel largo, daí originando as formas características, a modulação do traço e as serifas. Começou como aprendiz do letrista (sign-writer) Walter Heberling. Catich formou-se no St. Ambrose College (1931 – 1934) e recebeu o seu Masters em Arte na University of Iowa. Partiu para Roma em 1935 para estudar na Pontifical Gregorian University for Holy Orders, onde também estudou Arqueologia e Paleografia. Aí descobriu a sua vocação para estudar as letras romanas. Fundou o Departamento de Arte da St. Ambrose University e aí fez docência durante 40 anos, até à sua morte em 1979. Dos apontamentos de Catich: a letra M, pré-desenhada com uma trincha (em verde), pelo ordinator e depois esculpida na pedra pelo lapicida (em vermelho). Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 83 Planeamento e cooperação A produção de um texto epigráfico na época romana foi um processo mais ou menos complexo, que constava, na maior parte dos casos, das seguintes fases: •• Redacção prévia do texto sobre papiro ou outro material. Provavelmente elaborado com a caligrafia cursiva, a que os romanos chamavam forma. •• Ordinatio, ou seja, o traçado das linhas auxiliares horizontais, e o traçado das letras da inscrição com um pincel (brocha), uma ponta de metal, ou um carvão. Este trabalho de esquisso era feito pelo ordinator, que também era responsável pela paginação, a disposição das letras, seus tamanhos, etc. •• incisão definitiva da inscrição pelo lapicida, que gravava na pedra (mármore, grauvaque, granito, xisto) com um cinzel ou uma goiva. Esta descrição, demasiado sumária, não precisa um factor importante: que entendimento e que sintonia havia, de caso a caso, entre o ordinator e o lapicida? Que conhecimentos e que experiência tinha o ordinator de caligrafia, para saber passar adequadamente o ductus caligráfico à incisão da pedra? Em muitos casos observamos um gravado muito fiel aos padrões caligráfico; noutros casos, o lapicida parece recusar deliberadamente o traçado do pincel e impôr um desenho muito linear, geométrico e com letras de exagerada simetria. • Capitalis Rustica: desenho de letras muito próximo das formas caligráficas. Desenho de letras muito linear, geométrico e com glifos de exagerada simetria. Procurar no texto: CTRL+F L inhas auxiliares são essenciais para garantir um conjunto de letras de tamanho homogéneo. Já os artifices romanos o sabiam, e para tal, riscavam na pedra dois traços auxiliares para cada linha de texto: a linha de base (baseline, na Tipografia moderna), e a altura das maiúsculas. Em trabalhos de gravado realizados mais apressadamente, esses traços não eram apagados. Tarragona. Foto: ph. • U]lpiae fil[iae] / [---]A mater. Roman Museum em Butchery Lane, Canterbury, Kent. Foto: Linda Spashett. Alfabetos / «Temas» / Roma / página 84 Procurar no texto: CTRL+F Capitalis quadrata. Em trabalhos mais toscos, como este mostrado no Museu Monográfico de Conímbriga, o lapicida exagerou na grossura dos traços auxiliares – o que de pouco lhe valeu, porque o desenho das suas letras não mostra qualidade. Não é exacto, nem belo, nem homogéneo. Lápide funerária procedente da cidade romana Conímbriga, Condeixa-a-Velha, Coimbra, Portugal. scaevinus et / silo scaevae / dautonis f(ilio) / patri suo / f(aciendum) c(uraverunt) Fotos: P.H. Alfabetos / «Temas» / Roma / página 85 Procurar no texto: CTRL+F Diferentes tamanhos C ertas letras, por exemplo o T, I e L, eram ocasionalmente gravadas em tamanhos aumentados. Observe a forma do T, entre o N e o U. A letra foi ligeiramente aumentada em altura (para permitir melhor espaçamento entre as letras?) Museu de Conímbriga. AVGVStO, Alfabetos / «Temas» / Roma / página 86 Procurar no texto: CTRL+F Na inscrição ao lado, observa-se o mesmo aumento da altura do T. gato cabiri / f(ilio) civi viroman/duo demioncae / coniugi eius / athamae et atrecto / gati fili(i)s / bienus gati f(ilius) pie / de suo f(aciendum) c(uravit) Refer.: CIL 13, 08342 = RSK 00313 = IKoeln 00417 = AE 1891, 00144 Foto: Elena Alfabetos / «Temas» / Roma / página 87 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 88 Capitalis quadrada, elegante. Epitáfio a Licinia. Campo epigráfico: 43,5 × 43 cm. Módulo letras: 4,5-5,5. Nas linhas 1, 2, 4 e 5, I longae; acentos nas linhas 3 e 5; na linha 6, as duas letras finais em nexo e apenas com 2 cm de altura. Proveniente de Asturica Augusta (Astorga). Liciniae / Sparsi fi(liae) / Procillae / Luci / Lusi / Asturicae [-------] Museu Romano, Astorga, León, Espanha. Fotos: P.H. Procurar no texto: CTRL+F Composição de texto A organização de conteúdos complexos A composição de textos longos, com uma organização complexa de conteúdos, deixou-nos admiráveis exemplos. Os Romanos surpreendem-nos com a qualidade da organização de textos complexos. As lápides mostradas nesta e nas seguintes páginas são bons exemplos de escrita lapidar, que nos compensam da quase inexistência de textos librários deste género. Outros documentos complexos foram as placas de bronze inscritas com leis municipais. (página 175) Fragmento de um calendário romano. A K(alendae) Ian(uariae) [f(astus)]/ Aesc(ulapio)/ B f(astus)/ C c(omitialis)/ [ // ]/ E f(astus) feriae/ Imp(eratoris) Caesar(is)/ F f(astus)/ G c(omitialis)/ XXXI/ [ // ]/ B Eq(uirria) [n(efas) p(iaculum)]/ C c(omitialis)/ XXIIX/ [ // ]/ B c(omitialis)/ XXXI / [ // ] / XXX / [ // ] / [G Tu]bil(ustrium) / [H] q(uando) r(ex) c(omitiavit) f(as) / [A c(omitialis)] Fortunae P(ublicae) p(opuli) R(omani). Museo Epigrafico, Roma. Foto: Kleuske Alfabetos / «Temas» / Roma / página 89 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 90 Fasti Praenestini E sta lápide exemplifica uma organização complexa do texto, alcançada com uma hierarquia de tamanhos de letra que distingue quatro distintos corpos de letra. O «texto corrido», o tamanho mais pequeno, é representado por uma Capitalis Rustica de nítido cariz caligráfico, escrita em versaletes. As letras grandes, usados para o alfabeto, têm uma estética parecida à da Capitalis Quadrata. Os Fasti Praenestini são um calendário composto pelo pontifex maximus para regular o calendário público da cidade. Descreve os dies fasti e os dies nefasti que dictávam se era ou não possível exercer actividades como as de litigar em tribunal. Este calendário terá sido composto entre o ano 6 e 10 a.n.E. pelo gramático Verrius Flaccus, tutor dos netos do imperador Augusto. Era exibido no forum de Praeneste (Palestrina), situado a sul de Roma, um monumento em hemiciclo. Museo Nacional de Roma, Palazzo Massimo. Foto: Ian W. Scott Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 91 Hierarquia de conteúdos, suportada por três diferentes corpos de letra. Texto corrido a duas colunas, em Capitalis Rustica. Octavia L et ) L Arbuscula V A XXIII et Mensens X Tuccia ) L. Urbana, Mater Eius terminus est vitae nostrae tertius et vicensimus annus cum me florentem mei combussere parentes / vixi ego, dum licuit, superis acceptior una quoi nemo potuit verbis maledicero acerbo / crudele, pater, funus nati vidisse videris / et pia complexu mater spoliata senescens / at tu, dulcis soror extstincto me solare parentes / crudelis pluton, nimio saevite rapinae parce, precor, nostram iam lacerare domum / te, lapis, optestor: leviter super ossa residas / ne nostro doleat conditus officio desine iam frustra, mater mea, desine fletu / te miseram totos exagitare dies / namque dolor talis non nunc tibi contigit uni / haec eadem et magnis regibus acciderunt cil vi. 7872(?) Procurar no texto: CTRL+F Os suportes No Museu de Braga encontramos uma série de telhas de cerâmica, assinaladas com a marca dos seus fabricantes. Trata-se de um precoce manifestação do que mais tarde será «marca» e «logótipo», no contexto do Marketing dos nossos dias. Foto: ph. Alfabetos / «Temas» / Roma / página 92 Procurar no texto: CTRL+F Do barro ao chumbo O facto de os italianos que construíram produção, a oficina... Os domini, proprietários a catedral de Pisa terem usado lápides das lojas e oficinas onde se fabricavam os romanas com belas inscrições (imagem tijolos, eram frequentemente pessoas de alto ao lado) é deplorável – e, ao mesmo tempo, comnível social. preensível. Em muitos casos, os Romanos pre- •Nas ânforas aparecem os tituli picti e o selos feriam materiais nobres, como o mármore, para (marcas, logótipos). Os tituli picti são escritos servir de suporte às inscrições comemorativas, com tinta indelével e contêm informação honoríficas ou fúnebres. Não admira que tantas sobre a capacidade da ânfora, o nome do lápides romanas tenham sido reaproveitadas... comerciante, o lugar de origem. Os selos Quando o mármore era demasiado caro, ou mostram nomes de pessoas, cuja identidade difícil de obter, optava-se por granito, calcáainda não foi esclarecida (proprietários rio ou até xisto, se não houvesse outras opções. do material que se transportava dentro da A opção por pedras duras e resistentes, como o ânfora, ou talvez antes o dono da oficina de mármore, garantiu a conservação de muitas insfabricação?) crições durante séculos – não só de lápides soter- •Copos ou vasos, com inscrições geralmente radas, como também daquelas colocadas ao ar festivas. livre, expostas às intempéries. •Menção especial merecem os Copos de Vicarello, em cujas paredes cilíndricas estão Outros suportes, outros estilos de letra gravados os nomes e as distâncias das estações Sob a denominação de instrumenta agrupam(mansiones) de Gades a Roma. -se todas as inscrições feitas sobre um suporte •Mosaicos, compostos por tesserae. móvel, de fácil transporte (cerâmicas de cozinha, •Pequenas peças de metal, marfim ou madeira, pratos e vasos, lucernas, vidros, etc.). Vejamos para fins como tesserae hospitales, entradas alguns exemplos: para banquetes ou espectáculos... •Lateres signati são selos impostos sobre •Glandes: projécteis pequenos. Os textos tijolos ou telhas, nos quais figura o dominus aludem ou aos inimigos, ou aos comandantes praediorum (ou dominus figlinae) no do próprio exército. genitivo, e o officinator no nominativo. •Tabellae defixionum. Chapas de chumbo com Complementarmente podia ser incluída inscrições destinadas a amaldiçoar uma pessoa. mais qualquer informação sobre o lugar de Alfabetos / «Temas» / Roma / página 93 Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 94 Versais geométricas sem serifas. Tijolos cunhados da Legio XXII Primigenia. Saalburgmuseum. Foto: Hartmann Linge. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 95 A Cursiva era a grafia do dia-a-dia romano. Escrevia-se com o stilus em tabuinhas de cera ou com o cálamo sobre pergaminho. Ou até num pedaço de barro fresco, como neste fragmento da cidade romana de Conímbriga, descoberto na oficina de cerâmica de um certo Maelus. Achado datável do século I n.E. Ex officin(a) / Maelonis / diarias / rogata/s solvi Imagem pequena: outros fragmentos de barro, com letras inscritas. Museu Monográfico de Conímbriga. Fotos: P.H. Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 96 Letras em relevo. Marca de origem cunhada num lingote de chumbo. Museo Arqueológico Municipal de Cartagena. Selo da família consignatária da exploração mineira. C. Aquini. Século I a.n.E. Os selos ou marcas sobre lingotes de chumbo levavam, na maioria dos casos, o nome do propietário das minas, embora também apareçam nomes de indivíduos associados à exploração da mina – ou nomes de sociedades. L ingote de chumbo. Britânia telhados. O chumbo era um produto datar o lingote para o ano 76 n.E. romana, 76 n.E. Proveniência: secundário da prospecção do minério As letras DECEANG, no lado do lingote, Hints Common, Staffordshire. galénio. Isto significava que, até ao mostram que o chumbo foi prospectado O chumbo foi extensivamente século II n.E., a produção de chumbo no território dos Deceangli, uma tribo usado pelos Romanos, tanto como foi frequentemente controlada pelo que vivia no norte da Valisia. O lingote, componente do bronze, como pelas imperador. achado em 1771 na estrada romana características do próprio metal. A sua A inscrição reza IMP.VESP.VII.T.IMP.V.COS, chamada Watling Street, deve ter caído da densidade e maleabilidade indicavam- que se traduz «[fundido] quando o carroça que o transportava. no como excelente opção para fabricar imperador Vespasiano foi cônsul pela Foto: British Museum. medidas de pesos e tubos para condutas sétima vez, e Titus, imperador, foi cônsul de água, assim como para revestir pela quinta vez.» Deste modo, é possível Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 98 Letras de vidro A s letras trabalhadas em taças de vidro de luxo são exemplos impressionantes da qualidade do artesanato praticado na época romana. Destes preciosos copos (cage cup, inglês, Diatretglas, alemão, coppa diatreta, italiano, diatreta, português), revestidos de redes vítreas, conhecemos apenas cerca de cinquenta, quase todos fragmentados. O belo exemplar do Museu de Colónia exibe a letragem em relevo bebe e vive muitos anos. Data do século iv. ¶ Procurar no texto: CTRL+F Alfabetos / «Temas» / Roma / página 99 Copo de vidro com gladiadores, com figuras e com letras, produzido por soflagem em molde. Artista: Diceus, M. Licinius. Provavelmente elaborado no Norte da Itália, ou na Gália. Data: 50-100 n.E. Procurar no texto: CTRL+F Copo com gladiadores, ca. 50–80 a.n.E. Época de Nero Flávio. Vidro transparente com figuras e com letras, produzido por molde. Achado em Montagnole, Sul da França. Alfabetos / «Temas» / Roma / página 100 Dado de jogos, formado em vidro, com letras e símbolos gravados. Século ii n.E.