O OUTRO LADO DA DOENÇA UM RELATO DE

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O OUTRO LADO DA DOENÇA UM RELATO DE
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HANSENÍASE: O OUTRO LADO DA DOENÇA
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Mauro Afonso da Silva 1
Resumo
Este artigo mostrará, a partir de experiências vividas, o relato de um ex-portador de
Hanseníase, enfatizando assuntos a respeito da descoberta da doença, tratamento,
dentre outros que fazem parte do cotidiano de quem sem ao menos saber quando,
onde e por que, adquiriu a doença, que por vez, vitimou milhares de pessoas nos
séculos passados e que hoje, continua vitimando, não pela doença em si, mas sim
pelo preconceito.
Palavras-chave: Hanseníase; tratamento; preconceito.
Abstract
This article will show, from experiences, the story of a former leprosy patient,
emphasizing issues about the discovery of the disease, treatment, discrimination,
and others that are part of everyday life for those without even knowing when, where
and that acquired the disease, which in turn killed thousands of people in past
centuries and today, still killing, not the disease itself, but by prejudice.
Keywords: Leprosy; treatment; bias.
Introdução
Quatro anos depois de ter adquirido hanseníase, me veio à vontade de
escrever um artigo sobre o assunto. Não sabia bem ao certo como delimitar o tema
e tão pouco como demonstrar a cientificidade do mesmo. Tinha em mente somente
o desejo de “gritar ao mundo” a importância das pessoas saberem o que é ser um
hansênico. Mas isso não parecia uma tarefa simples, afinal “gritar” seria fácil, o
difícil mesmo seria aplicar esse desejo através das palavras.
Durante todo o meu tratamento, fui percebendo as dificuldades encontradas
por mim e pelas outras pessoas portadoras quanto ao distanciamento entre o que se
fala e o que se vive quando se tem hanseníase. O Ministério da Saúde em todos os
seus informativos diz que “Hanseníase tem cura”, mas em momento algum diz ou
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Mauro Afonso da Silva é graduado em Biologia /UFMT/Pontal do Araguaia/2001; Pós-Graduando em Saúde
Coletiva com Ênfase em Saúde da Família pelas Faculdades Unidas do Vale do Araguaia/Barra do Garças/2010;
Professor de Dependência da disciplina de Citologia / Histologia / Embriologia dos cursos de Fisioterapia e
Nutrição e Professor do curso de Pedagogia na disciplina de Fundamentos Teóricos e Metodológicos das
Ciências Naturais e Responsável Técnico dos Laboratórios da Área da Saúde das Faculdades Unidas do Vale do
Araguaia, em Barra do Garças, MT. E-mail: [email protected].
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cita como o problema é enfrentado pelos seus portadores. E foi justamente esse
distanciamento que me fez escrever este artigo.
Meu objetivo é mostrar aspectos da doença, desde o diagnostico até a “cura”,
ou seja, o antes, o agora e o depois do tratamento. Três fases que supõe chegar a
um denominador comum: a Hanseníase tem cura, mas o que não é falado é que ao
longo destas etapas os portadores se vêem num mundo de medo, insegurança,
desafios e preconceitos a serem vencidos. Eu não poderia ser diferente, tive a
oportunidade de vivenciar tudo isso. E essa vontade de revelar minha experiência é
muito forte, quero que meus leitores apreciem a leitura desse artigo e tentam
incorporar para si o dissabor de ser hansênico.
Talvez eu não saiba como fazer caber em palavras o que eu aqui preciso
escrever, mas estou certo que a descrição do antes, do agora e do depois, embora
traduzam simplesmente emoção, seja útil na representação do meu discurso. Não
tenho dúvidas no que irei escrever, afinal tenho conhecimento do assunto e o vivi
diariamente durante um ano de minha vida, o que poderia evidenciar o caráter
subjetivo desse artigo. Entretanto, se esse aprendizado servir para suscitar uma
reflexão acerca do tema e dar ânimo e vigor para aqueles que enfrentam a mesma
situação, já terá valido a intenção de escrever.
O Medo
Por volta do mês de outubro do ano de 2005, uma leve ferida, muito parecida
como uma picada de inseto surgiu em meu braço direito. Aparentemente, era só
mais uma “feridinha” que havia eclodido. Aos poucos, dia após dia, ela foi se
modificando, se tornando assim, cada vez maior, passando a adquirir o aspecto de
uma mancha. Na parte interna, era toda esbranquiçada e nas suas bordas
apresentava o aspecto avermelhado, acompanhado de muita coceira.
Essa situação começou a me preocupar, pois até então, todo procedimento,
que eu havia tomado para que a lesão se curasse, foi em vão. Utilizei vários
medicamentos para fungos, e nenhum deles houve respaldo. Foi então, que um
colega de trabalho – na época lecionava na Escola “Gaspar Dutra” - me deu um
“toque” quanto à aparência daquela mancha, dizendo-me que poderia ser
Hanseníase. No momento, repudiei o comentário em tom de preconceito. Imagine
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logo eu, um professor, estar com Hanseníase! Mas, de fato, estava concretizado, eu
estava mesmo com o mal de Hansen.
O medo é um sentimento que aparece espontaneamente quando estamos
diante de algo que nos assusta. E foi esse sentimento que senti quando estava
diante de uma situação inaceitável. Ele me fez adiar por várias vezes a ida ao
consultório médico, fez-me buscar alternativas, que me fizessem fugir da realidade,
a aceitar que poderia estar doente. Mas a cada dia, olhar para aquela mancha era
uma tortura, pois todo medicamento que usava estava sendo em vão, e ela ali,
aumentando cada vez mais. Muitas vezes eu pedi a opinião de várias pessoas a
respeito daquela mancha, a respeito da doença, e após cada conversa, cada bate
papo, o meu desespero crescia mais, pois todos diziam a mesma frase: “Vá procurar
um médico, pois isto está com cara de ser Hanseníase”. Era tudo o que eu não
queria ouvir, mas enfim, quem procura, acha. Foi muito bom ter ouvido diversas
opiniões a respeito do assunto, pois, só assim, pude aos poucos ir me
conscientizando de que eu poderia estar ou não com a doença e que, se por ventura
estivesse, iria me tratar e ser curado, embora o que me diziam sobre a doença era
assustador: “Olha, essa doença, mata; ela faz cair as orelhas, os dedos, o nariz;
você não vai dar conta de trabalhar; os medicamentos são muito fortes; vai ficar com
seqüelas depois do tratamento; vai ficar limitado a fazer certas coisas”.
Confesso, o meu medo só foi crescendo. Mas ao mesmo tempo tinha que
tomar uma atitude, não podia me acomodar e viver aquele momento de terror todos
os dias. Foi quando decidi depois de um mês de sofrimento, ir à procura de um
especialista.
A Notícia
A princípio, procurei meu tio, Natal Carboni, que trabalhava na época, no
Centro de Referência de Barra do Garças. Um tanto receoso, mostrei a ele a minha
tão perturbada mancha. Seu olhar foi de espanto, e meio duvidoso disse que iria me
encaminhar no dia seguinte para a enfermeira responsável pelo programa de
Hanseníase em Barra do Garças. Meu coração, nesse momento, acelerou como um
aviso de que eu estava cada vez mais perto daquilo que tanto me assustava. Sai
daquele lugar com uma enorme vontade de chorar, mas me contive, pois estava
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rodeado de pessoas que estavam à espera de atendimento. Daquele momento em
diante fiquei enfraquecido. No período vespertino, tinha de lecionar, mas me faltou
coragem. Só pensava como iria ser o dia seguinte e nada mais. Pedia a Deus por
tudo que era mais sagrado que não me deixasse estar com aquela doença. A noite
chegou e eu não conseguia dormir, rolava de um lado para o outro, até que o dia
amanheceu.
Levantei com uma olheira danada, mas enfim, era o grande dia. No meio do
caminho o desejo de voltar, de sumir era intenso, afinal, não tinha noção do que me
esperava, mas sabia que era necessário o encontro.
Ao chegar ao Centro de Referência, fui procurar meu tio, que prontamente me
levou até a porta do consultório da enfermeira. Numa pequena placa fixada na porta
estava escrito os dizeres: Hanseníase – Alice Medeiros. Acho que nunca suspirei tão
forte em toda minha vida. Não tinha mais para onde correr. Lembrei-me do ditado
que diz: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.
Ele bateu à porta, aqueles três soquinhos soaram em eco nas minhas
orelhas, como algo tenebroso, e em seguida a porta se abriu, eclodindo por detrás
dela uma mulher de baixa estatura, com cabelos encaracolados e amarrados por
uma “liguinha”, como dizem, com um largo sorriso no rosto - que a princípio repudiei
-, dando os cumprimentos ao meu tio, e num simples girar de corpo me estendeu as
mãos se apresentando como Alice. Meio desconfiado lhe estendi as mãos dizendo
meu nome. Ela, toda brincalhona, retornou o olhar ao meu tio dizendo a ele que
agora eu estava em boas mãos. Em pensamento eu pronunciei que os anjos dos
céus disessem amém.
Gentilmente me convidou que eu entrasse em sua sala para termos uma
conversa. Imediatamente me prontifiquei. Ficamos sentados frente a frente e o
interrogatório começou. Quis saber de tudo, como apareceu a mancha, quando eu a
descobri, quanto tempo demorou em procurar um especialista, no caso, ela, o que
eu sabia a respeito da doença, o que eu estava pensando. Aos poucos comecei a
me soltar e fui falando tudo e um pouco mais. Conversa vai, conversa vem, ela me
confessou que também foi uma portadora de Hanseníase, me explicou sobre a
doença, o tratamento e a cura. Isso me aliviou bastante, pois afinal de contas eu
estava na frente de uma pessoa que teve a doença e, no entanto estava ali, como se
nunca tivesse sido uma leprosa, como se dizia na época de Cristo.
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Embora a conversa tivesse sido bastante proveitosa, o que eu queria mesmo
era ouvir que não era um portador. Para isso se tornar uma verdade, foi necessário
fazer os testes e exames. Numa singela sugestão me propôs que os testes fossem
feitos naquele momento. Engoli como se estivesse passando um ovo pela minha
garganta. “- Agora?!”- eu perguntei meio que exclamando. Ela me respondeu: “- Sim,
agora, quanto mais cedo você ficar sabendo, melhor.”
Nesse instante, ela se retirou da sala e pediu que eu a esperasse. Meu
coração, como sempre, saindo pela boca. Quando retornou a sala, trouxe consigo
alguns objetos para a realização dos testes. Fiquei assustado, tinha algodão, agulha
– aquelas usadas para aplicação de insulina - e tubos com líquidos. Ela me explicou
como iria proceder. Esse teste é o de provas clínicas complementares. (Bechelli e
Curban, 1988).
Pesquisa da sensibilidade: Ocorre em primeiro lugar a perda da
sensibilidade térmica, em seguida da dolorosa e finalmente da tátil,
podendo-se proceder a pesquisa de todas elas com tubos contendo líquidos
com temperaturas diferentes, agulhas para picadas nas máculas e algodão
para testar o tato.
Prova da histamina: Sobre a mácula suspeita e na pele circunvizinha
coloca-se uma gota de cloridrato de histamina. Através da gota faz-se com
agulha picada superficial, intradérmica sem determinar hemorragia. Após
alguns segundos a pele começa reagir. A pele normal reage formando a
tríade reacional de Lewis com eritema inicial, eritema secundário e pápula
edematosa, nas máculas acrômicas ou hipocrômicas da hanseníase
aparecem o eritema inicial e a pápula, faltando o eritema secundário (prova
da histamina incompleta).
Prova da pilocarpina: Sendo a anidrose comum nas lesões hansenóticas,
procurou-se diagnosticá-la mediante provas de sudorese. Injeta-se 0,2 ml
de nitrato ou cloridrato de pilocarpina por via intradérmica, na lesão suspeita
e sua vizinhança. Pode-se passar tintura de iodo na pele antes da injeção e,
depois desta, polvilhá-la com amido. Havendo sudorese observa-se
característica cor azulada ao fim de 5 minutos, o que não ocorre nas lesões
hansenóticas.
Teste de Mitsuda: Utiliza-se suspensão de bacilos mortos, injetada em área
de pele normal na face anterior do braço. A primeira leitura faz-se após 48
horas (reação de Fernandez) e a segunda após 21-30 dias quando
desenvolve-se a chamada reação tardia. O teste é dito Mitsuda positivo
quando forma-se infiltração nodular maior que 5 mm de diâmetro ou quando
o infiltrado ulcera. Isso indica certo grau de resistência à hanseníase, tanto
mais pronunciado quanto mais intensa a resposta. O teste é Mitsuda
negativo quando há ausência de reação, indicando resistência deficiente.
Este teste pode indicar o prognóstico da doença uma vez que pessoas com
Mitsuda positivo tendem a desenvolver as formas benignas da doença e
pessoas com Mitsuda negativo têm maior probabilidade de desenvolver a
hanseníase virchowiana.
Foi assim que começamos o teste, passo a passo, de olhos fechados para
que meu cérebro não processasse informações de sensibilidade térmica, de dor e
tátil. No decorrer dos testes, ia me fazendo perguntas para que eu respondesse sim
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ou não. São de praxe essas perguntas, pois, por meio delas, o médico ou enfermeiro
responsável pode perceber o grau de sensibilidade na área.
Por fim, a prova da histamina, que, por sinal, surpreendeu-me muito, porque
não esperava que fosse daquela maneira. Em determinado momento, pediu que
abrisse os olhos, e para minha surpresa estava fincado na pele do meu braço uma
pequena agulha, como disse anteriormente, agulha de insulina. Levei um susto, pois
não senti dor quando ela introduziu a agulha, e naquele instante percebi estava bem
próximo da verdade. Com um olhar nada surpreso ela me perguntou se eu estava
sentindo dor, respondi que muito pouco. Esse muito pouco se deu porque eu estava
vendo a agulha na minha pele, e por isso meu cérebro processou uma sensação de
dor. Explicou-me que isso é comum, e que muitas pessoas fazem o teste da brasa
do cigarro, mas como estão vendo o local que aplicam a brasa o processo da dor
acontece. Isso implica que muitos indivíduos são portadores e não sabem por
fazerem o teste sem orientação médica.
Ela fez um diagnóstico com base nas provas clínicas complementares e me
deu a notícia tão esperada: “Mauro, baseado nos testes que acabamos de realizar,
pude constatar que você é um portador de hanseníase. Esses testes são
praticamente 99,9% seguros, mas ainda temos que fazer o exame de baciloscopia.”
Embora algumas vezes você já esteja quase conformado com uma situação
indesejada, sempre resta alguma fagulha de esperança. Naquele momento, as
minhas desapareceram. Fiquei sem palavras. Mudo, calado. Ela percebendo a
minha estagnação, tentou me acalentar, mas foi em vão. Marcou o exame para o dia
seguinte às 7h. Entregou-me o pedido, e disse para eu retornar com o resultado dois
dias depois.
Naquele dia, o medo, a insegurança, a ansiedade, a raiva tomaram conta de
mim. Fechei-me para o mundo, assim como um caranguejo se fecha em sua concha.
O mundo havia desabado. Como encarar tudo de uma única vez, a morte da minha
mãe, tão recente, e uma doença até então, desconhecida para mim?
Mais uma noite praticamente sem dormir. As 6h da manhã, o despertador do
celular começou a tocar, e eu, mais que depressa, arrumei-me para ir ao laboratório
fazer os exames.
Quando lá cheguei, havia muitas pessoas à espera. Peguei uma senha para
aguardar o atendimento. Sentado ali, naquela cadeira, a aguardar que chamassem o
meu nome, eu ouvia a todo instante o nome das pessoas a serem chamadas, e o
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meu, nada. Que espera interminável. Quase um dos últimos, sou chamado, levanteime e fui em direção a uma pequena sala, onde me sentei novamente enquanto o
profissional responsável preparava a seringa e agulha para coleta de sangue. Até ai,
tudo bem, nada me assustou, pois tirar sangue é um procedimento de rotina das
pessoas, o que realmente me assustava era o exame de baciloscopia, até então
nunca havia ouvido falar nesse nome.
A baciloscopia é um exame de auxilio diagnóstico na Hanseníase e o
profissional que o realiza deve ter treinamento especializado.
O
exame
de
baciloscopia,
segundo
o
MORHAN
(http://www.morhan.org.br/hans_tratamento.htm.), utilizando raspado dérmico de
pacientes com suspeita clínica de hanseníase é um procedimento laboratorial
rápido, de baixo custo, menos invasivo e que não necessita de tecnologia avançada.
Apresenta uma especificidade de 100% quando um resultado positivo for analisado
em conjunto com outros sinais da doença. A sensibilidade é baixa, pois menos de
50% dos esfregaços de indivíduos doentes são positivos.
Novamente fui chamado, indo para uma outra sala, diferente da qual eu havia
ido pela primeira vez. A profissional responsável pediu que eu me sentasse e
começou a me explicar como seria o procedimento. Disse que iria fazer a coleta do
material da seguinte maneira: “Vou fazer um pequeno corte com um bisturi na sua
mancha, no seu cotovelo direito e em suas orelhas. Após a incisão, vou fazer uma
raspagem para coleta do material. Não vai doer nada.”
Na realidade foi bem o contrário. Nunca senti tanta dor num único dia. Minha
vontade foi de sair correndo dali, só de imaginar que iria me cortar sem anestesia.
Mas não teve jeito, tive de suportar a dor até o fim. Quando já estava no fim, só
faltava a mancha, minha pressão ”caiu”, e comecei a ficar pálido e a suar frio, foi
quando disse à ela que não estava me sentindo bem. Ela com bastante agilidade fez
o último corte terminando assim minha tortura. Ah, que alívio saber que tinha
terminado. Fiquei ali, respirando fundo e logo me levantei para ir embora. Engraçado
que sai dali dando risadas, pois estava parecendo uma múmia com gaze nas
orelhas, e no braço.
O resultado, ah! O resultado... Esse eu tive de esperar mais um dia.
No dia seguinte, seria mesmo o grande dia, pois eu iria ter a certeza, assim
como 1+1 são 2 na matemática, se eu era ou não portador de hanseníase, embora
ainda não era o dia de levar para Alice ler, mas na minha inocência eu saberia
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interpretar a leitura do exame. Levantei até com uma certa euforia, afinal não era um
resultado qualquer, era um resultado de longos dias de espera, dúvida e sofrimento.
Até então eu “pintava” a hanseníase como um bicho de sete cabeças.
Pois bem, e assim eu fui pegar o resultado no laboratório. De praxe os
resultados vêm em envelope lacrado, aquele lacrado que qualquer um com jeitinho
sabe abrir sem o médico ou responsável perceber. Saindo dali fui direto pra casa e
abri o envelope. Que sensação ruim, pensei que estaria escrito em letras garrafais
positivo ou negativo. Engano em partes. Não entendi “patavinas”, mas em alguns
pontos do exame estava escrito, com letras garrafais, a palavra negativo. Um monte
de “zerinhos” e o negativo na frente. Aquilo me alegrou. Disse a todos em casa que
não entendia muito bem aquilo não, mas que aqueles negativos significavam algo de
bom, como disse, sob o meu ponto de vista. Fiquei todo alegrinho, achando que tudo
acabara bem. Aquela mancha era apenas uma mancha, eu não tinha hanseníase, e
tudo estava maravilhoso. Mas como diz o ditado “alegria de pobre dura pouco”
mesmo. A minha durou somente o restante daquele dia.
No dia 10/11/2005, me lembro como se fosse hoje, lá estava eu novamente,
com a Alice em minha frente, esperando me dar o resultado, que previamente
determinei ser negativo. Mas a surpresa estava por vir. Quando ela abriu o
envelope, olhou, analisou e na maior tranqüilidade me disse que eu tinha mesmo
hanseníase. Que desespero, confesso. A primeira reação que tive foi questionar o
resultado. Disse a ela: “ Se o resultado foi positivo, por que aquele monte de
zerinhos com um negativo na frente”. Chamou-me a atenção por ter percebido que
eu havia aberto o envelope, mas me explicou o resultado do “monte de zerinhos”.
Pediu que eu retornasse no dia seguinte para começar a tomar o medicamento. Sai
dali me faltando o chão para pisar, não sabia distinguir meus sentimentos, se era de
raiva, ódio, medo, revolta. Que vontade de sumir, desaparecer, sair correndo sem
rumo. Fui para casa. Quando lá cheguei, não sabia como contar para meus
familiares, mas minha reação que era de choro já dizia tudo, não foi preciso contar
muita coisa. O mais importante foi que tive o total apoio principalmente da minha
irmã e do meu pai, que me ajudaram a encarar, de frente, a doença e o tratamento.
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O Tratamento
No início da década de 80, a Organização Mundial de Saúde recomendou a
introdução da POLIQUIMIOTERAPIA (PQT) para o tratamento de 100% dos
pacientes em todo o mundo, por meio da associação de drogas que propicia maior
eficácia, maior rapidez e menor risco de resistência ao medicamento. Nos últimos
dez anos, foram curados mais de 12 milhões de pacientes em todo o mundo, e mais
de 300.000 brasileiros.
A hanseníase apresenta-se basicamente, de duas formas. É importante
ressaltar que os casos contagiosos deixam de ser transmissíveis quando o
tratamento
é
iniciado.
Conforme
MORHAN:
(http://www.morhan.org.br/hans_tratamento.htm).
Paucibacilar
PB
(com
poucos
bacilos
–
forma
não
contagiosa)
É o tratamento mais rápido, são seis (06) doses mensais de remédios em até 9 meses,
além da ingestão de um comprimido diário, e alta por cura.
Medicamentos/dosagem – Esquema PB: • Rifampicina: 01 dose mensal de 600mg (02
cápsulas
de
300mg),
com
administração
supervisionada;
• Dapsona: uma dose mensal de 100mg supervisionada e uma dose diária auto
administrada.
Multibacilar MB (com muitos bacilos – forma contagiosa). Para o para a forma MB, o
tratamento consiste em doze (12) doses mensais de remédios em até 18 meses e alta
por cura. Além da ingestão de um comprimido diário.
Medicamentos/dosagem – Esquema MB: • Rifampicina: uma dose mensal de 600mg
(2
cápsulas
de
300mg),
com
administração
supervisionada;
• Clofazimina: uma dose mensal de 300mg (3 cápsulas de 100mg), com administração
supervisionada
e
uma
dose
diária
de
50mg
auto
administrada;
• Dapsona: uma dose mensal de 100mg supervisionada e uma dose diária auto
administrada.
De acordo com a quantidade de bacilos, a hanseníase pode se apresentar nas
formas citadas anteriormente: Paucibacilar e Multibacilar. Vale ressaltar também que de
acordo com o quadro dermatológico a hanseníase se apresenta sob quatro formas clínicas
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diferentes: Hanseníase indeterminada; Hanseníase tuberculóide; Hanseníase dimorfa;
Hanseníase virchowiana.
Minha forma clínica foi MHD (Mal de Hansen Dimorfa) e esquema terapêutico
Multibacilar MB – 24 doses, esquema PQT – 12 doses. Abaixo, mostro as fases da
doença Mal de Hansen.
Caso clínico MHI
Caso clínico MHT
Caso Clínico MHD
Caso clínico MHV
Na tarde do dia 11/11/2005, fui tomar a primeira dose mensal supervisionada
de Rifampicina (600mg), Clofazimina (300mg) e Dapsona (100mg) no Centro de
Referência de Barra do Garças. Minha irmã me acompanhou, haja vista que, além
de ser a primeira dose mensal do tratamento, alguns efeitos colaterais poderiam
surgir.
Encontrava-me num estado de muita ansiedade, o que resultou em
nervosismo. Eu, que sempre recusei a tomar comprimidos - somente em último
caso, - tive de submeter a tomar 6 (seis) de uma só vez. E segundo as “más
línguas”, essa dose mensal supervisionada era de “derrubar até cavalo”, ou seja, era
muito forte, o que de fato não deixou de ser verdade. Algumas horas após ter
tomado a medicação, a reação que tive foi de muito sono, dormi o resto do dia e fui
acordar à noitinha. O sono era algo incontrolável, não tinha como ficar acordado.
Recomendaram-me que, ao tomar a dose mensal supervisionada, não deveria
comer alimentos derivados do leite, ovos e carnes, ou seja, meu cardápio nesses
dias não era lá muito apetitoso. Servia-me de arroz, feijão, salada e legumes.
Digamos um tanto saudável, mas...
No dia seguinte ao da dose mensal supervisionada, fiquei sem tomar
medicamento, pois é norma do tratamento “pular” um dia, voltando a administrar o
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remédio somente no terceiro dia. Esse esquema era regra para todos os meses do
tratamento.
E assim comecei meu tratamento, uma dose diária de clofazimina – 50mg –
auto-administrada e uma dose de dapsona – 100mg, também auto-administrada
durante um ano, lembrando que, ao final de cada cartela, que durava 27 dias, eu
precisava tomar a dose mensal supervisionada.
Durante os seis primeiros meses de tratamento, não senti nenhuma reação
adversa, meu organismo parecia ter aceitado muito bem a medicação. Estava
exercendo minhas atividades profissionais normalmente, não precisei me ausentar
do trabalho, convencendo-me de tudo o que eu havia lido sobre a doença. Segundo
o Movimento de Reintegração de Pessoas Atingidas pela Hanseníase - MORHAN,
( http://www.morhan.org.br/hans_tratamento.htm), diz que:
Os doentes em tratamento podem continuar suas atividades normais, Devem
conviver normalmente com sua família, seus colegas de trabalho e amigos, enfim
permanecer na sociedade sem nenhuma restrição, no caso de dificuldades no
convívio social, os usuários deverão ser acompanhados pelo profissional responsável
fornecendo-lhes apoio e conforto para suas dificuldades psíquicas e sociais.
O problema começou a surgir depois dos seis primeiros meses de tratamento,
quando as reações se manifestaram. Foi nesse momento também que passei a
acreditar nas informações que havia buscado a respeito, mas que até então não
tinham se manifestado em mim. O mesmo MORHAN – Movimento de Reintegração
de Pessoas Atingidas pela Hanseníase afirma que
Qualquer doente de hanseníase, mesmo em tratamento, pode apresentar reações,
caroços vermelhos com febre alta, dor nos nervos e outras manifestações. Todos
esses casos devem ser encaminhados ao médico, porque existem outros
medicamentos para controlar reações (prednisona e talidomida). Além do médico o
paciente deverá ser consultado pelo profissional responsável pela prevenção de
incapacidades para avaliar a condição dos nervos periféricos, seguir as suas
orientações, evitando assim complicações e deformidades futuras.
Dor nos nervos periféricos foi o que eu mais senti, em alguns dias eu chorava
de dor, sem saber que atitude tomar, e era inviável faltar no trabalho. E o trabalho,
infelizmente era o que mais me irritava, pois tinha de tolerar a paciência em sala de
aula, uma virtude que eu, naquele momento da minha vida, não tinha. A falta de
paciência, as reações, a morte de minha mãe, que, até aquele momento, pensei que
havia me conformado, tudo isso foi se acumulando, tornando meu estado clínico
mais crítico. Emagreci 8 (oito) quilos em um mês. Aquilo me deixou “maluco”. Passei
por todos os profissionais envolvidos no meu tratamento – a enfermeira Alice, a Dra.
Edila, a psicóloga Noemi, a nutricionista Ana Tereza, e nada tinha resultado. Fui
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“obrigado” a administrar prednisona para melhorar a dor. Segundo o Ministério da
Saúde,
a prednisona é uma droga corticóide sintética que normalmente é tomada
oralmente mas pode ser tomada também através de injeção intra-muscular
e pode ser usada para um grande número de doenças diferentes. Tem um
efeito de glucocorticóide. É uma droga que é convertida pelo fígado em
prednisolona que é a droga ativa e também um esteróide. É particularmente
efetiva como uma imunossupressante e afeta tudo do sistema imune.
Esse corticóide foi receitado pela Dra. Edila na dosagem de 30mg, sendo a
dosagem diminuída até chegar 5mg. Com a administração desse corticóide, as
dores foram sendo amenizadas. O único problema desse medicamento é que ele
causa dependência, por isso fiz uso dele somente duas vezes, recusando-me a
administrá-lo outras vezes, sendo assim, tive de suportar as dores que surgiam.
Fui submetido também a um teste com o nome popular de “teste de PI”, mas
cientificamente chama-se monofilamentos de Semmes – Weinstein (SW). São fios
de nylon de 38 milímetros de comprimento e diâmetros diferentes. Foram
introduzidos em 1962 para avaliar a sensação cutânea. Segundo Bell (apud
DUERKEN F.; VIRMOND M., 1997), o monofilamento de nylon é utilizado para
auxiliar o diagnóstico precoce e monitorar a solução da lesão nervosa periférica.
Permite identificar melhora, piora ou estabilidade do quadro, alterações de
sensibilidade antes da perda da sensibilidade protetora e indicar a conduta
terapêutica. Na hanseníase, o uso dos monofilamentos substitui com vantagem os
demais testes. É um teste quantitativo, de fácil aplicação, seguro e de baixo custo,
que permite identificar e monitorar a sensibilidade, e por isso, é considerado um dos
melhores para uso no trabalho de campo, nas unidades de saúde e nos centros de
referências para hanseníase. Cada um deles está relacionado com uma força
específica para curvá-lo, que varia de 0,05g a 300,0g no conjunto de seis
monofilamentos. Quanto maior o diâmetro do fio, maior será a força necessária para
curvá-lo no momento que é aplicado sobre a pele. A aplicação de estímulos com
forças progressivas permite avaliar e quantificar o limiar de percepção do tato e
pressão, estabelecendo correspondência com os níveis funcionais. Abaixo um
modelo do monofilamentos de Semmes-Weinstein:
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Quadro 1 - Monofilamentos de Semmes-Weinstein
Fonte: Andeazzi, Mota, Villarino, Leite, 2007.
Quadro 2 - Avaliação da sensibilidade
Fonte: Andeazzi, Mota, Villarino, Leite, 2007.
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Esse teste ajudou a identificar o grau de inflamação dos meus nervos
periféricos. A situação foi ficando bastante crítica, a ponto de me afastar do trabalho
pelo INSS. Fui afastado por um período de 6 (seis) meses, tempo necessário para o
final do tratamento.
A Cura
No dia 24 de outubro de 2006, tomei a última dose mensal supervisionada, e
27 dias depois, os últimos comprimidos de clofazimina e dapsona. Que felicidade,
havia terminado meu tratamento, estava curado!
Retornei ao Centro de Referência para receber alta do tratamento com a
enfermeira Alice. Ela me encaminhou a Dra. Edila para fins burocráticos do meu
prontuário. Ela passou um novo pedido de “teste de PI” ou monofilamentos de
Semmes – Weinstein (SW).
Fiz o teste e meus nervos estavam com inflamação num nível muito elevado.
Fui encaminhado para o Centro de Reabilitação de Barra do Garças, para fazer
sessões de fisioterapia. Fui atendido por dois fisioterapeutas, a Dra.Viviane,
especialista em Terapia Ocupacional e Dra. Luciana Morbeck especialista em
eletrotermoterapia.
Durante 6 (seis) meses, 3 (três) vezes por semana, comparecia assiduamente
às sessões. No início, pensei que não iria surtir efeito, mas, ao longo do tratamento,
pude perceber as melhoras que foram surgindo. Aos poucos, fui me readaptando à
vida normal. Voltei a trabalhar, recuperei os “quilinhos” perdidos, a auto-estima, o
desejo de viver feliz novamente.
Quando terminou o tratamento fisioterápico, estava “novinho em folha”, sem
dores, sem estresse, sem depressão, sem mau humor. A única notícia que não me
agradou muito foi saber que eu teria que conviver com algumas sequelas que
ficaram em meus nervos, tais como: não realizar movimentos repetitivos, não pegar
peso, não ficar muito tempo em pé, dentre outros. Isso não me agradou muito, mas
são “ossos do ofício”. Não tinha saída, ou aceitava ou aceitava. Não tinha escolha.
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Considerações finais
A hanseníase ainda continua sendo vista como a doença incurável do
passado, causadora de um grande pânico aos seus portadores. Percebe-se haver
um grande desconhecimento desta enfermidade no que diz respeito entre o que se
fala e o que se vive.
As dificuldades enfrentadas pelos doentes iniciam desde a busca do
diagnóstico, a conscientização deste, a realização do tratamento e após a cura, uma
vez que a trajetória continua para tratar as sequelas deixadas pela doença,
necessitando o portador adaptar-se à sua nova condição.
Os sentimentos relacionados a esta doença milenar, como o medo, a
vergonha, a culpa, a exclusão social, a rejeição e a raiva, estão internalizados no
psiquismo de seus portadores. O estigma e o preconceito permanecem no
imaginário dos indivíduos, pois estão enraizados em nossa cultura causando grande
sofrimento e dor aos portadores de hanseníase.
A hanseníase deixa profundas cicatrizes no ser humano, o estigma
permanece em seu corpo, em sua mente e em sua alma. A vida dos portadores de
hanseníase sofre grandes transformações devido às perdas que vão se efetivando
ao longo dos anos. As mudanças ocorridas no corpo, a rejeição e o abandono da
família, dos amigos, a perda do emprego, do padrão de vida e da sua saúde em
geral, pelos intermináveis tratamentos a que são submetidos, são situações que são
trazidas pela doença e passam a fazer parte do seu cotidiano. O doente de
hanseníase necessita resgatar seus vínculos e valores, recuperar sua auto-estima,
compartilhar sentimentos e relacionar-se para integrar-se ao mundo real. E como
resgatar esses vínculos? Acredita-se ser de fundamental importância oferecer na
rede pública um trabalho com uma equipe de saúde, com abordagem
interdisciplinar, que promova à educação em saúde para a população em geral e
contribua de modo significativo para que estes sujeitos descubram seus valores
como seres integrantes da sociedade, ajudando-os no seu processo de reintegração
e reinserção social.
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Referências Bibliográficas
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exame baciloscópico Hansen. int 2006; 31 (2): 39-41.
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