Ecolinguística: uma prática de intervenção

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Ecolinguística: uma prática de intervenção
A letra miúda-nº3 – Revista de sociolingüística da CGENDL
Santiago de Compostela- ISSN 2255-0976
Teresa Moure
Ecolingüística: uma prática de intervenção
1. O NASCIMENTO DO NOVO CAMPO DA
ECOLINGUÍSTICA
As pessoas que nos dedicamos à docência temos a obriga de explicarnos, de fazer que as nossas palavras deitem luz sobre a matéria que
instruímos.
Essa
necessidade
de
transparência
condiciona-nos.
Acabamos por apresentar, ao falar, tantos exemplos como um
Sancho Pança. E os exemplos em aulas de língua, de qualquer língua,
versam sobre semelhanças e diferenças. Explicamos o artigo partitivo
em
francês,
o
genitivo
saxão
em
inglês
ou,
em
geral,
as
peculiaridades gramaticais dum idioma recorrendo ao contraste com
a língua veicular em que nos estamos a expressar. Estamos a
difundir, involuntariamente, que as línguas são todas diferentes.
Estamos a projetar no alunado a ideia de as línguas se regerem por
normas caprichosas, que não podem ser conculcadas. Essa óptica
comparatista que tendemos a adotar nas aulas predica: "Na língua A
diz-se assim, na língua B diz-se dessoutro jeito". E, sem o nós
querermos, estamos a transmitir a ideia de as línguas serem puros
códigos, como o rodoviário, que funcionam arbitrariamente. Alguém
decidiu que todo o mundo devia ir pela direita e assim nos
comportamos porque, no caso de irmos pela esquerda, ou de irmos
por onde melhor nos pareça, teríamos contínuos acidentes. Porém,
quando reflito sobre os nossos procedimentos na aula, faço todo
menos criticá-los. Não há tarefa mais dura que a de introduzirmos as
ideias novas, que pulam por aí fora, dentro dos cérebros alheios
porque para isso as ideias devem atravessar crânios protegidos por
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ossos bem duros... Todos os procedimentos, todas as formas da
sedução e da captação podem ser empregadas legitimamente: a
altura da tarefa exige-os. O que pretendo com esta argumentação é
simplesmente revistar as ideias a respeito da linguagem que se
depreendem desses procedimentos.
A partir dos trabalhos de Noam Chosmky, na linguística difundiu-se o
pressuposto, contrário a esta prática docente, de que todas as línguas
humanas são em definitivo uma e a mesma língua. Obviamente, cada
código tem umas unidades diferentes (palavras, fonemas, estruturas,
etc.), mas, de alguma maneira essencial, todas as línguas respondem
a um mesmo patrão. Se um marciano, um ser consideravelmente
distinto, visse para a Terra, as diferenças entre as línguas humanas
parecer-lhe-iam
uma
pura
questão
de
matiz.
Esta
tendência
aglutinadora ou universalista está a considerar que as diferenças, por
mais visíveis que sejam para os falantes, são pouco importantes
comparadas com um tipo de unidade essencial e recôndita. As
consequências desta ideia notam-se nessa nossa prática docente:
ing.: Do you want any sugar?
fr.:
Voulez-vous du sucre?
gal.: Queres açúcar?
Nas aulas de línguas, o professorado exprimirá que, perante um
nome-massa,
como
açúcar,
muitas
línguas
precisam
utilizar
partículas de valor partitivo para indicar assim que se toma uma
parte
dessa
substância,
em
quantidade
inespecífica,
enquanto
noutras línguas, como galego ou espanhol, basta mencionar o
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substantivo a jeito de etiqueta. Num sentido profundo, fortemente
semântico, temos um nome-massa; num sentido mais superficial,
umas línguas tratam os nomes massa antepondo-lhe uma partícula,
outras marcam a sua raridade ao usá-lo sem artigo, e haveria, aliás,
outros tratamentos, todos superficiais, todos dependentes da história
particular de cada língua.
A gramática chomskyana estava a abrir os métodos de fazer
gramática. Já nunca mais se entenderia que um/uma especialista
nesta disciplina apenas teria que conhecer bem essa língua em
particular, os seus textos escritos, a sua lógica interna, mas era
possível e necessário elaborar hipóteses de caráter universalista: era
preciso entender a linguagem humana no seu conjunto. As línguas
não
se
limitavam
a
simples
códigos
de
circulação,
eram
manifestações duma faculdade geral da espécie.
Enquanto se instalava esta nova óptica, a sociolinguística também
medrava. Ao abrigo de movimentos sociais variados −a luta
feminista,
os
movimentos
de
liberação
da
raça
negra,
a
multiculturalidade− fortalecia-se a concepção de que as línguas
reproduziam nas sociedades fortes relações de poder. No nosso caso,
a
sociolinguística
galega
tomava
da
tradição
catalã
fundamentalmente alguns conceitos que permitiam explicar por que a
língua
própria
ficava
reduzida
à
espontaneidade,
aos
usos
quotidianos, sendo substituída para as situações de prestígio pela
variedade que o poder apoiava. Reparando noutras realidades, para
outros contornos e territórios, o processo repetia-se insidiosamente.
Não fazia sentido, portanto, uma sociolinguística galega −a não ser
para fornecer dados concretos−, mas uma sociolinguística universal,
que atenderia por igual, e com semelhantes parâmetros ao jeito em
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que desaparecem as línguas australianas aborígenes, ao jeito em que
se erradicam as línguas africanas do ensino meio e superior, ou ao
jeito em que as formas "femininas" de fala são consideradas afetadas
ou ridículas em não importa qual língua.
Assim chega-se ao ano 1992, quando Michael Krauss publica um
artigo revelador que faz um chamamento crítico: se não mudarmos o
devir das situações que postergam as línguas situando-as nas
margens, para finais do século XXI terão desaparecido o 90% das
línguas
faladas
pela
humanidade.
Ainda
mais:
a
soma
das
sociolinguísticas particulares feitas sobre cada língua coincidia com
essa arrepiante conclusão. A voz de alarma estava dada e a
linguística profissional começou a considerar a sério o tema da morte
das línguas.
Neste ponto houve também notável disparidade. Uma parte da
linguística, mais acomodada, desconsiderou essas possibilidades
"militantes" que estavam a agir. Insistia em que as línguas morreram
sempre, em que se tratava dum processo tão operativo como a
seleção natural da biologia e conducente, como aquele, à resistência
dos melhores exemplares. Porém, outro
sector
da linguística,
proveniente das especulações teóricas da gramática, ou dos dados
esclarecedores da sociolinguística extremou o parentesco entre esta
situação de ameaça que viviam algumas línguas e a desaparição de
espécies biológicas. Dois projetos originalmente diferentes confluem e
este grupo, mais comprometido no ativismo, alistava-se a lutar na
defesa das línguas em perigo de morte. Estava a nascer a
ecolinguistica.
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2. MAS SERÁ QUE SE PRECISA UMA ÓPTICA
ECOLÓGICA QUANDO SE FALA DE LÍNGUAS?
Durante séculos o povo galego distinguiu com clareza muitas das
espécies vegetais que o rodeavam. As pessoas, especialmente as
mulheres idosas, sabiam quando floresciam as ervas e também que
males podiam curar, quer como compressa, quer bebidas em infusão.
Para manejá-las comodamente puseram-lhes nomes, muitos deles
com correlato no mundo, autênticas metáforas, como estes:
agulha-de-pastor / erva-agulheira (scandix pecten-Veneris)
castinheiro-das-bruxas (aesculus hippocastanum)
cebola-das-gaivotas (pancratium maritimum)
erva-da-fome (vicia angustifolia)
erva-dos-burros (oenothera glazioviana)
figueira-do-demo / figueira do diabo (datura stramonium)
escornabois (sorbus aucuparia)
língua-de-boi (echium plantaginium)
língua-de-cervo (phyllites scolopendrium)
língua-de-vaca (plantago major)
mata-lobos (aconitum vulparia)
mel-de-raposo (cytinus hypocistis)
mexação (heracleum sphondylium)
pão do cuco (oxalis pes capreae)
pé-de-lobo / amenta de lobo (lycopus europaeus)
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pé-de-galinha / pombinha (fumaria reuteri)
pirixel-das-bruxas (conium maculatum)
rascacú (ruscus aculeatus)
tolhe-merendas (merendera pyrenaica)
uvas-de-can (tamus communis)
uvas-de-raposo (sedum hirsutum)
A maioria dos/as falantes atuais desconhecemos estas palavras. A
menos que nos especializemos em estudos de botânica, nem sequer
ouvimos nunca tais etiquetas. Esta perda não é um simples problema
léxico; também não reconhecemos os exemplares correspondentes.
Pessoalmente apenas distingo duas ou três destas variedades. Dessa
ignorância nascem algumas reflexões que quisera expor a seguir.
A primeira reflexão passa por reconhecermos que ninguém protege o
que não conhece. As mudanças sociais surgidas ao abrigo da
globalização capitalista explicam por que deixamos de conhecer estas
ervas. Num processo lento mais decidido, certos saberes foram
caindo em desuso, quando não considerados pura superstição. A casa
que se abastece no seu contorno de substancias que sanam males
menores, as dores habituais e conhecidas, já não existe. A indústria
farmacêutica fez bem o seu trabalho; varreu com a concorrência. Não
se trata de que as pessoas trabalhem noutros labores ou de que
permaneçam menos tempo na sua morada particular, quando menos
não só disso. Trata-se de que ninguém acredita já no valor do saber
tradicional: em troca da infusão do fiuncho que o sol madurou nas
beiras dos caminhos, compramos umas cápsulas na farmácia, com a
segurança de que serão mais efetivas como remédio. Isso significa
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que um tipo de conhecimento do contorno imediato que estava ao
nosso alcance há duas gerações, deixou de operar como tal. Para nós
todo o que nos rodeia fica indiferenciado como ervas ou, melhor,
como ervalhada, algo que brota espontaneamente e fora de controlo.
Erva apenas é isso que há que cortar com uma máquina segadora
nos fins de semana. Em simultâneo, essas máquinas cortadoras, que
eram um aparelho apenas presente nos filmes americanos da infância
de quem hoje é adulto/a, estão agora nas nossas casas. Para
cortarmos a relva, mais nada. E voltamos ao começo: ninguém
protege o que não conhece. Ninguém o ama. Nem o valora.
As pessoas nascidas na costa sabem que décadas atrás o peixe-sapo
voltava para o mar quando casualmente entrava nas redes. Só
quando alguma mudança social determinou o seu consumo, pôde
passar a ser bem cotizado. A comunidade que não o valorava não o
via como um peixe específico, não lhe prestava a atenção mínima de
nomeá-lo. Esta nova forma de fazermos linguística, com perspectiva
ecológica
vem
ocupando-se
de
olhar
para
as
línguas
como
fornecedoras dum determinado conhecimento do mundo. Assim,
Mühlhäusler (2003) indica que os animais australianos com aparência
de rata devem receber com urgência novos nomes para se salvarem
da extinção. Ao serem chamados ratos e ratas, estes mamíferos
padecem certos problemas "de imagem". Embora não pertençam à
família destes roedores que os europeus introduziram com os seus
barcos nos últimos centos de anos, semelham-se muito a eles. O uso
dum mesmo nome serve na prática para desacreditar os animais
autóctones, que a povoação pretende exterminar como se fossem
autênticas pestes. Mühlhäusler, a partir da ecologia e da linguística,
sugeriu uma listagem de duas mil palavras em línguas australianas
para
distingui-los.
Resuscitar
essas
palavras
quiçá
sirva
para
conservar animais inocentes, que não comprometem a saúde nem
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concorrem com os interesses dos humanos. Reparo nisto e em que na
Galiza o pobre peixe sapo, raramente recebe a bonita etiqueta que
lhe põem no sul: tamboril. A gente, frequentemente, chama-o pelo
seu nome de monstro, de peixe-que-tem-cara-de-sapo. Ainda não
está na nossa cultura plenamente.
A conexão de cada língua com o seu contorno é um dos eidos menos
estudados pela linguística tradicional, e por tanto, dos menos
atendidos
nas
aulas.
Porém,
esta
óptica
antropológica
e
comprometida com a preservação duma riqueza que esmorece,
demanda atenção. Se quisermos modificar as nossas relações com o
planeta,
todas
as
mudanças
começarão
por
aí,
por
práticas
depurativas semelhantes às que pretendem erradicar o racismo ou o
sexismo na linguagem. Vejamos um exemplo.
Na nossa língua, igual que as mulheres são injuriadas com nomes de
animais −cotorras, raposas, víboras−, a natureza descreve-se em
termos
claramente
descobrem-se,
controla-se,
sexuais
conquistam-se
desbrava-se
ou
de
ou
domínio:
as
tomam-se;
doma-se,
os
reservas
a
seus
fera
naturais
selvagem
segredos
são
penetrados e o seu seio está ao serviço do homem. Do mesmo jeito,
no galego tradicional as fragas virgens pincham-se, cimbram-se ou,
mui eloquentemente, vergam-se para se converterem em terras
férteis, descartando as estéreis. Esta linguagem está a refletir uma
lógica de dominação de onde sai fortalecido um poder patriarcal
eminentemente avassalador, uma violência que se exerce sobre a
natureza por considerá-la inferior (Moure 2008). Neste sentido e em
relação ao exemplo inicial, nada há mais significativo que a expressão
má erva que transluz uma visão interesseira e produtivista. São más
ervas as que proliferam, embora não sejam cuidadas nem desejadas,
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especialmente num campo semeado. São más, não por envenenarem
o ambiente, como faz a contaminação humana, nem por estragarem
um contorno maravilhoso, como o lixo: são más porque lhe disputam
água e alimentos a uma erva que nos vai dar de comer. A erva-dafome é uma planta leguminosa (vicia sativa) de caule trepador e
flores de cor violeta que abunda entre os cereais e que se torna
prejudicial para as sementeiras. Na nossa língua também se chama
ervelhaca, veza ou nichela. O nome é uma imagem tendenciosa.
Obviamente a etiqueta com que a denominamos poderia evocar a
ideia de que os seus frutos leguminosos dão alimento as aves e
chamar-se, por exemplo, pão dos pássaros. Com efeito, enquanto os
humanos ficam sem nomes para as suas ervas, enquanto as cortam
para urbanizar, os pássaros desaparecem da paisagem. Os nomes
levam consigo uma visão do mundo, o que os filósofos idealistas
chamaram uma Weltanschauung, uma cosmo-visão.
A segunda reflexão que surge ao lermos esta listagem de ervas já
desconhecidas passa por nos perguntarmos se essa cosmovisão está
completamente perdida ou se compensa perdê-la. Na fronteira entre
o Canadá e os Estados Unidos, sete mil pessoas ainda falam kalispel.
Em kalispel não se pode dizer lago; tampouco montanha. Não há
substantivos que denominem estes acidentes geográficos; cumpre
usar verbos e dizer algo assim como montanhea ou laguea. Ao
carecerem
duma
etiqueta
com
que
designar
estas
entidades
conjuntamente, as pessoas que falam kalispel consideram cada lago
ou cada montanha por separado; não podem pensar neles como mais
um entre tantos. Também eu não considero as montanhas nem os
lagos simples acidentes da paisagem; mais tenho que aceitar a óptica
da minha tribo para poder exprimir-me. Contudo, sinto ás vezes que
o meu dever é alertar de que o nome não é inócuo: as montanhas,
vistas como anedotas insubstanciais, podem ser perfuradas pela
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minaria, podem assolar-se e dinamitar-se, porque as suas entranhas,
se
contiverem
metais,
deverão
pôr-se
ao
serviço
do
capital.
Igualmente, os lagos poderão dessecar-se e os rios trabalhar para as
centrais elétricas movendo turbinas, se forem acidentes. No kalispel
esta visão instrumental da natureza seria impensável.
A realidade não se apresenta perante os nossos olhos objetiva e
pura. Cada vez que julgamos analisá-la, atuamos constrinxidos/as
por um acervo comum: no meu exemplo esse acervo é linguístico,
mas a realidade também se vê mediada pela história. Estou a primar
a língua entre as forças coletivas que nos modelam porque merece
ser reivindicada como nunca quando impera o desapego para com
ela; finalmente, como dizia Castelao, se ainda somos galegos/as é
por obra do idioma. Em todo o caso, quer nos refiramos à língua,
quer à história partilhada, cada qual tem alojado na sua mente todo
um coletivo. Numa época de máximo individualismo como a que nos
toca viver, cumpre salientar este dado. Mesmo quando uma pessoa
permanece sozinha num quarto, matinando num problema, a
concatenação dos seus pensamentos realiza-se por via linguística e,
nesse sentido, cabo do individuo pensador, estão sentando-se a
pensar os demais falantes da sua comunidade linguística e cultural,
as distinções e as noções comuns na sua época, a bagagem científica,
artística e ideológica que o coletivo amassou ao longo de anos e,
mesmo, a moreia de superstições, prejuízos e conceitos tortos que
poda arrastar. Para bem ou para mal, o pensador sozinho apenas
existe. Avançamos lenta e penosamente, mais em coletivo.
Quiçá muitas das noções que manejamos cada dia, e com que
modelamos o nosso conhecimento sobre o mundo nas nossas
concepções
científicas
ou
artísticas
estejam
impregnadas
de
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gramática. Pensamos, por exemplo, que existem o passado, o
presente e o futuro porque esta divisão tripartite, relativamente rara
nas línguas do mundo, é a forma de contemplar a realidade da nossa
língua ou, em geral das línguas europeias, que têm paradigmas de
passado,
presente
e
futuro,
os
quais
devem
ser
utilizados
obrigatoriamente. Por muito que a ciência atual teime em assegurar
que esse vetor temporal não existe, que se trata duma metáfora
humana, nós não damos acreditado na teoria da relatividade porque
a gramática que se coce no nosso cérebro perpetua a mesma visão
do mundo que tinha Aristóteles. Mais, com toda probabilidade, as
ideias que diariamente empregamos –e talvez mesmo as teorias
científicas que elaboramos– seriam distintas se Aristóteles, em vez de
grego ático falasse uma língua ameríndia ou uma língua dravídica.
A gramática não deve apresentar-se já, por tanto, como uma
instituição que regula os usos corretos e incorretos, o que se deve ou
não dizer. Nem sequer tem nada a ver com a listagem de todas as
formas duma língua, com esse afã de exaustividade que alberga o
dicionário. Desde esta perspectiva, a gramática passa a ver-se como
um conjunto de instrumentos para captarmos a realidade, sem os
quais não se pode obter da linguagem um conhecimento que
ultrapasse o anedótico, a pura erudição. Como não uso já esses
nomes de ervas, não percebo até o final, a cosmovisão que trazem.
Posso imaginar as cativas procurando a erva chamada mel-de-raposo
para lhe chucharem o mel, posso supor que a erva-das-feridas tem
propriedades antissépticas, que o mata-lobos é tóxico, que a ervados-pobres faz referencia ao uso pelos mendigos para se fazerem
feridas com que induzir à compaixão e que a língua-de-cervo, como a
língua-de-boi e a língua-de-vaca, terá folhas dessa formas. Mais não
sei como é a língua dum cervo. Não sei em que se distingue da língua
dum boi. As nossas avós berram desde o dicionário significados que
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não nos resultam já inteligíveis. E isso, como falante, preocupa-me.
Cada vez o mundo inteiro é mais igual. Perdemos diversidade. Pior do
que isso: essa diversidade não é substituída por outro tipo de
riqueza. A globalização mata mundos prévios e esses mundos prévios
coincidem
com
o
que
chamamos
normalmente
cultura.
Peter
Mühlhäusler conta-o com palavras bem sugestivas (2003: 120-1):
O discurso da linguística até há pouco tempo não se diferenciava
muito do discurso dos partidários do desenvolvimento. A redução
da diversidade linguística tendeu a ver-se como um processo
“natural”, um modo de sobrevivência dos melhores. Os linguistas
sustentavam a hipótese da independência, que nega a
possibilidade de interdependência entre gramática e ambiente.
Salientando a base universal de todas as línguas humanas, em
geral subestimaram o efeito da perda de línguas: se todas as
línguas são traduzíveis, a sua perda é pouco mais do que a perda
das estruturas superficiais que intercambiam os seus usuários.
[...] Cada língua está funcionalmente integrada dentro dum
conjunto de parâmetros externos à gramática e [...] cada
gramática pode ver-se como um depósito da experiência
passada, como resultado dum largo processo de adaptação a
condições ambientais específicas. O feito de que diferentes
línguas ofertem diferentes perspectivas do mundo significa que
esta diversidade procede, precisamente, de que são necessárias
diferentes palavras para viver em diferentes ambientes.
3. ECOLINGUISTAS, NÃO COLECIONADORES/AS
Até aqui as minhas palavras quiçá fossem esperáveis: há um ativismo
implícito na recuperação das línguas. Agora vou imprimir-lhes uma
viragem deliberada. A menção da ecologia tende a produzir nas
mentes a imagem da coleção, de quem recolhe a variedade para
inventariá-la, fazendo elenco, por exemplo, da flora ou da fauna
duma determinada zona. No ativismo ecológico esta atitude é
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frequente e, não por acaso, apoia-se em material linguístico. Quando
queremos saber os nomes das ervas em galego, não deitamos mão
dum manual de filologia, mas de botânica. Observemos que estas
duas disciplinas ficam irmanadas. A atitude da conservadora de
espécies em biologia vai parelha à atitude da conservadora de
variações em filologia. E a botânica com os seus herbolários atua
como a dialetologia com os seus mapas onde se fixam espécies como
a gheada ou a metátese de o tônico. Como não podemos conservar o
que não conhecemos nem amamos, esta atitude é historicamente
básica para trabalharmos contra a extinção, de espécies animais ou
de
línguas.
O
problema
está
em
delimitarmos
agora
o
que
entendemos por ativismo.
Skutnabb-Kangas (2000) publicava a listagem das línguas que
superam o milhão de falantes, algo mais de duzentas, perguntando a
seguir, num exercício acadêmico, quantas delas podiam ser situadas
geograficamente num mapa. Aliás, esta autora, que prefere falar de
assassinato das línguas em vez de simples morte, convidava a quem
estivesse a ler, a procurar num atlas linguístico o número de falantes
de cada uma delas, a fim de avaliar se o próprio conhecimento é
eurocêntrico. Quando uma pessoa estudante de Filologia se enfrenta
a este exercício, percebe rapidamente que não é capaz de colocar no
mapa a maioria das línguas que se lhe ofertam. Embora se trate das
línguas mais faladas do mundo, muitas delas são absolutamente
desconhecidas, mesmo para uma pessoa interessada pelas línguas.
As que remetemos para um território são frequentemente europeias.
Não se trata necessariamente das mais faladas; são línguas oficiais
de países pequenos e se as conhecemos não é porque em linguística
seja habitual citá-las, mas porque o seu nome coincide com o nome
do país correspondente e, ao ser este europeu, sabemos onde se
acha. Tal exercício tira à luz o nosso eurocentrismo. Em primeiro
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lugar, o da disciplina linguística, que quase nunca exemplifica com
línguas africanas ou ameríndias. Em segundo lugar o eurocentrismo
dos sistemas educativos, que perseveraram em que devíamos
aprender os países da Europa e as suas capitais, mais não viram tão
interessante preocupar-se com o resto do mundo. Finalmente,
qualquer um percebe a medida do seu próprio eurocentrismo, do que
está inscrito nas nossas mentes e que nos manipula para pensar que
o dinamarquês ou o sérvio são línguas que poderemos aprender e, no
entanto, o hausa ou o suahili, superiores em número de falantes, não
serão um objetivo interessante para a nossa formação. Estamos
perante um exercício destinado a fomentar a intervenção. Mais do
que nos convidar a uma reflexão em abstrato, provoca o sentimento
de sermos seres com um papel efetivo na transformação do mundo.
Contrariamente a um atlas dialetal, que consistiria num puro
inventário, este estilo de materiais propicia uma reflexão acerca do
poder.
Quando, no início da década de '90, apareceu a revista Linguistic
Typology, o tipólogo Bernard Comrie, no seu número 1 exortava as
pessoas
que
trabalham
na
linguística,
a
abandonarem
a
via
especulativa ou puramente teórica que caracterizara durante décadas
as
discussões
entre
partidári@s
e
detractor@s
da
Gramática
Generativa. No editorial desta publicação, Comrie solicitava com toda
a urgência possível que a linguística se dedicasse a documentar
línguas para tê-las descritas antes da sua desaparição, que julgava
iminente. Mais o afã de inventariar primou sobre a necessidade de
transformarmos a realidade. É completamente certo que as línguas
estão a esmorecer no mundo a um ritmo vertiginoso. É certo que
seremos cúmplices dessa ruína se nos refugiamos em universos
conceptuais
realidade.
mui
complexos,
Contudo,
evitando
durante
os
o
compromisso
quinze
anos
com
a
seguintes,
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acrescentaram-se as descrições de línguas exóticas, sem por isso
invertermos na maioria dos casos as forças que atuavam na sua
contra. Acho que o caso galego é bem representativo desta
tendência. Nas últimas décadas o galego tornou-se um objeto de
investigação de primeira magnitude. Contamos com detalhadas
descrições das suas variantes fonéticas, morfológicas e lexicais, às
quais diferentes instituições dedicaram mimos de colecionador/a. O
inventário tem todo o rigor e o detalhe dum herbolário, ademais de
rebordar de princípios da investigação antropológica. Porém, esta
energia parece destinada à pura erudição −a formar especialistas que
conheçam essa variação−, enquanto as duas linhas de ativismo
"ecológico" ficam bastante desatendidas:
a) Por uma parte, falta investigação sobre a linguagem, não sobre a
língua galega, feita desde esta língua. Para quando teses, não sobre
um autor e os seus textos literários, mas sobre a aquisição infantil da
linguagem feita desde o galego, ou feita desde o contexto de
comunidades com línguas em conflito? Para quando trabalhos sobre
sintaxe teórica −que regras atuam para produzirmos determinados
enunciados− abordados desde o galego e não desde o inglês que
tristemente ocupa todo o espaço da investigação "generalista", ou
seja, não referida a dados de línguas particulares?
b) Uma segunda linha de ativismo ecológico seria a da planificação
linguística, destinada a elaborar medidas para estimular o uso da
língua, para pôr em prática todo o conhecimento acumulado pela
sociolinguística. De certo esta linha não é inédita, mas, em geral,
tendemos a ver esse trabalho como parte duma reivindicação política
ou administrativa, dum "temos direito a...", e não como uma prática
ecológica −e por tanto ética−, a verdadeira prática ecológica porque
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o conservacionismo de variantes em si mesmo não é mais que puro
ambientalismo.
4. SOBRE ECOLOGIA (VERDADEIRA) E
AMBIENTALISMO (OU ECOLOGIA FALSA)
No
campo
da ecologia pratica-se
uma distinção
básica entre
ambientalismo e ecologismo que agora quiçá cumpra desenvolver.
Ainda que às vezes se confundam os termos, o primeiro surgiu como
uma aproximação, administrativa e pouco sistemática para enfrentar
os problemas da natureza; não é uma ideologia, nem um corpo de
conhecimento, apenas um remendo. Num sentido bem diferente, a
ecologia
é
uma
forma
de
pensamento
que
faz
referencia
à
necessidade de se empreenderem mudanças profundas e de maneira
urgente tanto no âmbito da organização social como nas atitudes
respeito do mundo natural não humano (Moure 2008). Igual que o
feminismo e que o pacifismo, o ecologismo esteve nas bases da
contracultura para ir-se depois adaptando às peculiaridades de cada
situação. Ocasionalmente aspira a vir a ser num eixo articulador da
vida social, além das organizações políticas convencionais que
procuram fagocitá-lo; noutras ocasiões aspira a transformar a partir
de dentro estas organizações. Aliás, enquanto o pacifismo e o
feminismo podiam trazer raízes de antigo, o ecologismo, como crítica
do produtivismo industrialista das nossas sociedades opulentas, era
uma total novidade, aqui como em toda a Europa e a América.
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Fronte a este calado profundo do ecologismo, pode julgar-se
ambientalista uma praxe política que se ocupe da natureza sem
provocar uma mudança fundamental nos atuais valores de produção
e consumo. Porque o ecologismo mantém que uma existência
sustentável e satisfatória precisa transformações radicais na nossa
relação com o mundo natural não humano e na nossa forma de vida
social e política. Usando o exemplo de Dobson (1995), a rainha de
Inglaterra não se torna ecologista por adaptar as suas limousines à
gasolina sem chumbo. Esta decisão seria ambientalista, destinada a
contemporizar com a época que vivemos porque, se fosse ecologista,
a rainha de Inglaterra teria de deitar fora as limousines.
Neste sentido, pode pensar-se que o ecologismo é um ambientalismo
mais radical. Decerto, é mais radical, mas não se trata só duma
diferença de grau. Se fosse um problema de grau, o ambientalismo e
o ecologismo não concordariam, simplesmente, na quantidade de
CO2 que pode admitir-se circulando pela atmosfera ou remediariam
este problema usando filtros diferentes. Mas as diferenças entre as
duas opções surgem de contemplarem a realidade a partir de duas
ópticas. No caso do ambientalismo trata-se de ver quanto podemos
puxar da corda sem que parta e, pontualmente, evitar as situações
que põem em risco o difícil equilíbrio da biosfera. No caso do
ecologismo trata-se de por em causa o domínio que os humanos
vimos exercendo sobre a biosfera. É possível que estas duas noções
produzam políticas diferentes em grau, mas essa diferença de grau
gera um salto qualitativo. As medidas verdes que todos os partidos
políticos desenham nas suas campanhas eleitorais formam parte
duma sociedade de serviços opulenta e tecnológica: na realidade os
filtros de dióxido de carbono em chaminés industriais, os aerossóis
sem CFC e os tubos de escape com catalizadores não desafiam o
consenso do que resulta desejável para a sociedade do século XXI; ao
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A letra miúda-nº3 – Revista de sociolingüística da CGENDL
contrário, acabam por reforçar a opulência e a tecnologia em vez de
as porem em causa. No entanto, o ecologismo pretende uma
revolução não violenta que derrube a atual sociedade poluente,
saqueadora e materialista e, no seu lugar, implante uma nova ordem
social que permita os seres humanos viverem em perfeita harmonia
com o planeta. Nesta perspectiva o movimento verde pretende ser
uma força cultural e política realmente transformadora.
O ecologismo tenta explicitamente trasladar o ser humano como
centro do mundo, questionar a ciência mecanicista e as suas
consequências tecnológicas, recusar-se a acreditar em que o mundo
esteja feito em exclusiva para os seres humanos e todo isto
matinando se o projeto de opulência material dominante é desejável
ou se pode continuar mantendo-se. Todas estas componentes de
procura e análise omitem-se se decidimos restringir a política verde a
um ambientalismo que persiga uma economia mais limpa, sustentada
por uma tecnologia mais limpa e produtora duma opulência mais
limpa. Além disso, muitos dos artigos que consumimos respondem a
carências que convertemos em necessidades pelas poderosas forças
persuasivas que nos rodeiam. Se uma sociedade ecológica pode
substituir
o
atual
modelo
de
consumo
será
por
proporcionar
satisfações mais fundas que possuir ou esgotar objetos materiais. A
propaganda duma vida frugal e a exortação a conectar com a Terra
combinam-se no ecologismo para produzir esse ascetismo espiritual
que constitui uma parte tão importante do perfil do ecologista. A
diferença entre ambientalismo e ecologismo tem, pois, correlato
ético. Na primeira opção os seres humanos devem cuidar a natureza
porque isso redunda nos seus próprios interesses; na segunda
afirma-se que a natureza tem um valor intrínseco, que ultrapassa os
fins humanos e continua a ter importância além da nossa existência.
Que as florestas tropicais se devam conservar porque proporcionam
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oxigênio, ou matérias primas para medicinas ou porque impedem a
terra
de
erodir
não
é
uma
razão
ecológica
radical;
é
uma
preocupação por nós e pelo nosso futuro. Que algumas pessoas
clamem pela necessidade de preservarmos a natureza como fosse
uma reserva de diversidade genética, para fins agrícolas ou médicos,
como matéria de estudo científico, ou pelas oportunidades que nos
fornece de prazer estético e inspiração espiritual não tem nada de
estranho. O que se nota a faltar neste estilo de argumentações é uma
óptica imparcial, que não olhe pelo “nossinho”, uma ética menos
antropocêntrica e mais biocêntrica ou, melhor ecocêntrica, que
contemple os valores intrínsecos ao mundo não humano.
5. OS RISCOS DUMA LINGUÍSTICA AMBIENTALISTA
Com o passar dos anos, o ambientalismo foi aceite na política,
usurpando o nome à ecologia e, a partir de aí, foram introduzindo-se
argumentos práticos sob o nome de políticas "verdes". Deste jeito,
chegado um momento viu-se que para deter os abates massivos na
floresta amazônica, não chegava com tornar públicos os dados sobre
a desflorestação ou a morte dos animais porque a opinião pública não
se mostrava sensível a estas questões. Começaram por tanto a
elaborar-se argumentos para a captação: com a perda dessas
florestas vão-se muitas substâncias que a medicina tradicional dessas
comunidades amazônicas usa para a cura de enfermidades e vão-se
antes de a farmacopeia as analisar. Aliás, entre as espécies
desaparecidas podem estar os antídotos para as enfermidades que
nos podam invadir no futuro, quiçá o segredo para acabar com a
SIDA, por exemplo. O medo coletivo acabou por desembocar em
políticas ligeiramente verdes. Este estilo de argumentos ruins,
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orientados a gerar soluções práticas em troca de soluções éticas,
também se apresenta na ecolinguística. Como a sociedade é pouco
propicia
a
interessar-se
pela
morte
das
línguas,
revirasse
o
argumento: Provavelmente a ideia de linguagem não possa ser
abordada se não contarmos com suficiente base empírica. Como é
que poderemos saber se o conhecimento que elaboramos, sobre
fonemas, sobre o tempo verbal ou sobre o gênero neutro, não está
determinado por termos abordado umas poucas línguas procedentes
todas da mesma área geográfica?
Quando se fala de extinção massiva das línguas, uma opinião mui
estendida aceita que, mesmo se o problema é real, dista muito de ser
catastrófico. Com um exagerado otimismo supõe-se que poderemos
acomodar-nos paulatinamente a esta redução da variedade cultural:
perderemos o anedótico mais permanecerá o essencial. Esta atitude
apresenta
um
grau
de
colonialismo
porquanto
trata
como
insignificante a perda de pequenas línguas face à riqueza conceptual
e formal de inglês, árabe ou espanhol. Ademais do racismo linguístico
implícito nessa proposta, o argumento continuaria carecendo de
validade ainda que se recorresse na comparação ao japonês, o suaíli
ou o euskera. A defensa das línguas que se pratica desde a linguística
profissional
não
é
precisamente
desinteressada:
advoga-se
a
conservação para manter o campo profissional, o qual é tanto como
pôr em causa o futuro e o interesse da conservação. Nos últimos
vinte anos apareceram diferentes iniciativas para trabalhar a meio
caminho entre princípios ecológicos e linguísticos −como a Fundação
para as línguas ameaçadas (www.ogmios.org), o grupo Terralingua, o
arquivo multimedia sobre línguas do Instituto Max Planck e tantos
outros−. O problema é que em todos estes casos parece que a
linguística profissional pretende dar uma lavadela e sacudir-se a mala
reputação com uma ação empreendida tardiamente e de escassa
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efetividade, que tenha como resultado uma magnífica coleção de
línguas... mortas.
Levando este assunto ao âmbito da língua galega, que é a que nos
importa neste lugar do mundo, seria pouco apropriado propormos
uma
sobredocumentação
como
a
que
temos
que
não
fosse
acompanhada de medidas efetivas de introdução da língua na
investigação sobre a linguagem e de normalização para todos os
efeitos na sociedade. Não trabalhamos para conservar documentada
esta língua, mas para mantermo-la viva. E com isso questionamos
todo um sistema de valores. Questionamos, por um lado, a
globalização
que
nos
homogeiniza
e
nos
reduz
a
simples
consumidores/as, em lugar de ver-nos como seres que pensam e
sentem dum jeito em parte universal, no sentido de partilhado por
todos/as, e em parte modelado culturalmente. Mas questionamos
também, a partir do galego, protegendo-o e amparando-o, a
conversão da língua num eido profissional alienado e afastado da
realidade histórica, uma tecnocracia carente de ideologia.
Obviamente, se quisermos fazer ativismo linguístico com base
ecológica, quereremos salvar o galego da substituição pelo espanhol
que o ameaça na Galiza. E quereremos salvá-lo porque é nosso,
porque se o não fizermos nós, quem o há de fazer? Mas o nosso fim
não é a pura erudição, o afã de apanhar um nutrido inventário, mas o
de nos reconhecermos como cultura diferenciada e, nesse sentido,
poder escutar as vozes que desde o dicionário ainda berram: tolhemerendas,
mata-lobos,
rabo-de-raposa,
trevo-das-pozas,
erva-
moura.
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Num sentido parcialmente diferente, a ecolinguística atende à perda
de línguas no mundo. Poderíamos argumentar sobre o direito dos/as
falantes de qualquer tribo a manterem a sua riqueza cultural e o seu
jeito habitual de interação. Mas, depois de estudarmos a hipótese de
relatividade linguística, sabemos que cada língua leva implícita uma
cosmovisão, de forma que a morte de línguas significa a morte
doutras tantas formas de ver o mundo. Ademais de perdermos os
conhecimentos que cada comunidade tenha acumulado, deixamos de
aceder a ideias que, talvez, não estejam na visão própria, de jeito
que a morte duma língua não é só uma catástrofe para a comunidade
que a fala, mas para toda a humanidade.
Olhemos para nós. Um indício de morte duma língua é a perda da sua
riqueza expressiva, que se vai limitando a certos usos. O galego,
ninguém o negará, está melhor assentado em usos coloquiais e
irrelevantes
que
em
registos
cultos.
A
qualidade
do
galego
reconhece-se em traços concretos: o uso do futuro do conjuntivo, do
infinitivo flexionado, das interpolações pronominais, entre outros
aspectos que não detalharei agora, serve para recuperarmos um
potencial idiossincrático do idioma hoje esmorecente (Freixeiro Mato
2009). Muitas destas formas são reconhecíveis na fala das pessoas
idosas; não são algo inventado, ou alheio, ou exclusivo das gentes da
escrita, mas o seu uso é tão escasso por parte da maioria que
devemos renaturalizar estas formas diferenciais, para não passarmos
a falar um galego que, curiosamente, coincide na sua gramática
ponto por ponto com o espanhol.
Para insuflar-lhe vida à língua temos que ser conscientes de tanto
como a história nos roubou e afrontarmos com um esforço deliberado
todos os problemas duma transmissão entre gerações interrompida.
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Porque a língua não nos vem dada de graça como o ar que
respiramos, nem requer pedigree rural. Temos que aprender a
chuchá-la dos que a conservam, a amassá-la como sarilho com que
nos nutrir cada dia, a expurgá-la. Lutarmos pela língua com que a
nossa tribo enxergou desde antigo o mundo é tanto como nos
assegurarmos
a
dignidade,
como
reconstruirmos
a
identidade
coletiva, em nome de quem vier atrás. Lutarmos pela língua é
lutarmos pela liberdade.
A gramática é a componente fundamental da língua. A gramática
humanizou a espécie. A gramática exige uma localização cerebral
específica, que não funciona nos parentes símios nem nos seres
humanos afásicos. A gramática é um conjunto de regras que nunca
equivocamos durante o processo de aquisição que percorremos em
solidão; é a ordenação essencial que faz a língua e, se admitirmos
que a língua traz uma forma de ver o mundo, será essa gramática a
que nos dá os tijolos para o construirmos. Por isso, se perdemos o
futuro de conjuntivo, um exemplo, perdemos uma forma acabada de
nomear a realidade que não está na maioria das línguas do mundo;
uma forma de pensar no futuro como algo real: Se fores à praia
verás que grande é o mar, quando fores, que iras. E pensar no futuro
como algo real é dar valor as utopias. Se calhar só por isso o povo
galego não se pode permitir perder o futuro de conjuntivo... Ao
visitar a gramática com este matiz revolucionário, a ecolinguística
vem
demonstrar
que
a
língua,
por
riba
de
instrumento
de
comunicação e mesmo de objeto estético é, sobretudo, uma peneira
da realidade e um projeto coletivo. A dignificação completa desta,
como de qualquer outra, língua passa por reconhecer a sua condição
de instrumento criador da realidade mental e, então, a investigação
sobre a cosmovisão implícita na língua galega é um assunto urgente
e necessário, ecologicamente irrenunciável.
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A letra miúda-nº3 – Revista de sociolingüística da CGENDL
6. COSMOVISÃO E FUTURO
Quiçá possa surpreender esta teima de procurarmos o que é
idiossincrático do galego. Explicarei, para rematar, como chegamos a
esta via. Durante anos um grupo de investigadores da Universidade
de Santiago de Compostela tivemos um projeto para desenharmos
um atlas das línguas do mundo, visto que, contra o que possa
pensar-se, a linguística continua a ser uma disciplina fortemente
eurocêntrica, cujos dados quase não incluem as línguas da nossa
área cultural imediata. Pensávamos que, mesmo um grupo pequeno,
numa universidade afastada dos grandes centros de investigação,
poderia assumir essa tarefa numa época em que os dados podem
publicar-se na internet para serem verificados ou contrastados
rapidamente em qualquer lugar do mundo. Na primeira fase
recolhemos informação das línguas com mais de 100 mil falantes,
comparando todo o que sobre elas aparecia nos manuais e atlas
usuais.
O surpreendente resultado desta primeira etapa revelava que os
principais recursos que a linguística utiliza sobre o seu campo de
saber não coincidem. A nossa hipótese inicial −o desinteresse com
que a linguística trata as línguas da humanidade− verificava-se.
Tentamos a seguir elaborar parâmetros sobre o grau de ameaça que
afeta as línguas e começamos uma procura diferente. Procuramos
nas publicações especializadas as menções que se faziam de línguas
não ocidentais e obtivemos que a linguística faz referência a mui
poucas línguas. Mesmo aquelas que menciona são remetidas sempre
para os mesmos fenômenos: o dyirbal, uma língua australiana
praticamente extinta, por exemplo, aparece mencionado apenas para
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A letra miúda-nº3 – Revista de sociolingüística da CGENDL
ilustrar um fenômeno sintático, a construção ergativa. Não é, pois,
que o dyirbal se tornasse um autêntico objeto de investigação, mas
que vale como exemplo de borboleta rara. Com semelhantes
conclusões, víamo-nos em disposição de provar que o conhecimento
que a linguística tem das línguas humanas é excessivamente curto e
que está trivializado. Se se desse uma situação semelhante em
biologia (para continuarmos com o exemplo ecológico) teríamos que
a diversidade
dos
seres naturais
ficaria resumida
nos textos
especializados da zoologia nas duas ou três espécies mais frequentes
nos ambientes humanos. Em vez de falar de leões, a zoologia diria
"um tipo de gato", em vez de girafas, teríamos "um tipo de ovelha de
pescoço longo"; em vez de condores, os especialistas conformar-seiam com um "tipo de galinha". O nosso plano de trabalho passou na
seguinte
fase
por
dar
forma, coerência e
difusão
para
essa
investigação prévia. Pensávamos estar em disposição de elaborar um
atlas sociolinguístico que não só publicasse dados, mas também
explicasse a situação ecolinguística da humanidade: as divergências
entre
as línguas,
as ameaças
que
estas devem superar, as
possibilidades para resgatar algo dessa diversidade. Tratar-se-ia de
comover a linguística e a opinião pública. Como tantas vezes
acontece no ativismo, nessa fase ficamos sem financiamento. Isso
significa que a investigação se deteve, e que não conseguiremos com
ela chegar aos grandes centros de irradiação do saber. Mas a
semente foi lançada. Ninguém a esta altura permaneceria em calma
se um grupo de pessoas quisesse derrubar a muralha chinesa ou
queimar o museu de Louvre. O compromisso da humanidade com os
bens culturais que tem produzido é alto, como corresponde aos seres
bastante ensoberbecidos que somos −tendemos a dar um valor
superior as nossas produções do que ao trabalho lento da natureza−.
Por isso, no século XXI, parece obvio que uma atitude responsável
passa por evitarmos a perda das línguas, uma vez que estas são
patrimônio
cultural
e
intelectual
da
humanidade.
Mais
esse
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argumento exige ativismo, e deve mover as pessoas que o assumam
para a defensa das línguas em pior situação.
Referências bibliográficas
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esp, Pensamiento político verde, Barcelona, Paidós, 1997.
Freixeiro Mato, X. R. (2009): Língua de calidade, Vigo, Xerais.
Moure, T. (2008): O natural é político, Vigo, Xerais.
___________ (2011): Ecolinguística. Entre a ciencia e a ética, A
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Mühlhäusler, P. (2003): Language of environment. Environment of
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Skutnabb-Kangas, T. (2000): Linguistic genocide in education –or
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