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RETRATO DO BRASIL | nO 9
DEPENDÊNCIA 1
RetratodoBRASIL
nO 9 R$ 6,00
As nossas multinacionais
PARA ONDE ELAS VÃO?
2 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
AFLIÇOES DE UM
AFLIÇÕES
NACIONALISTA
DEPENDÊNCIA 3
RETRATO DO BRASIL | nO 9
Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
Nas páginas seguintes
A Vale e o interesse nacional O que mais faz a companhia, além
de escavar o território nacional e mandar montanhas de minério
para fora do País? p.5
As múltis do Estado brasileiro Sim, a Petrobras é, apesar de ter
grande participação de acionistas estrangeiros. A Eletrobrás,
embora Lula diga que sim, não é p.8
Empreendedores e financistas Steinbruch e Ermírio de Moraes
pertencem às duas categorias de articuladores das múltis brasileiras
junto ao Palácio do Planalto p.11
Real quebra, palácio muda A era dos juros estratosféricos levou o
Brasil ao FMI em 1998. E mudou o câmbio, a política para a
internacionalização e até os palacianos p.13
Gerdau chega ao topo Ele vem de longe. Comprou pechinchas
estatais já no início da privatização, no governo Sarney. Com a
Açominas, deu um salto p.14
Os caubois verde-amarelos As multinacionais brasileiras do agronegócio representam a grande vantagem comparativa global do
País? p.18
Porque reinventar a roda Apesar do sucesso comercial da
Embraer, sua história mostra uma atuação limitada com relação
a um campo crítico, o da defesa p.21
A emenda e o soneto A Telebrás poderia ter sido uma múlti das
telecomunicações. A tele verde-amarela parece um remendo no plano
de privatização do setor p.24
Para onde elas vão? O Brasil não tem norte na política que diz
respeito às multinacionais. Sem norte, como dizia Sêneca, não há
vento que ajude p.27
Nossa história começa com considerações do
ex-presidente do BNDES Carlos Lessa
relacionadas com os destinos da Vale do Rio Doce
IMAGEM DA CAPA: Presidente Lula em vagão do trem que liga
Mariana a Ouro Preto, MG (5/5/2006) Ricardo Stuckert / PR
Abril de 2008
Expediente
Redação
Mino Carta [ supervisão editorial ]
Raimundo Rodrigues Pereira [ coordenação ]
Armando Sartori [ edição ]
Carlos Azevedo • Lia Imanishi • Rafael Hernandes
• Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Verônica
Bercht [ redação ]
Ana Castro • Pedro Ivo Sartori [ edição de arte ]
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E
le já foi comparado por um jornal americano ao caubói solitário das velhas publicidades dos cigarros Malboro. A razão é sua
postura nacionalista, considerada retrógrada,
em particular no caso das empresas Vale do
Rio Doce e Petrobras, às quais ele atribui importância estratégica. Como primeiro presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) do
governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, Carlos Lessa evitou que a Vale saísse
do controle acionário brasileiro. Foi o suficiente para que o diário The Wall Street Journal,
porta voz do mundo financeiro, o considerasse como uma espécie de rebelde antiquado, em luta contra a tendência inexorável da
internacionalização dos capitais.
No final de fevereiro, em sua casa incrustada num paredão de pedra do bairro do
Cosme Velho, na cidade do Rio de Janeiro,
Lessa (na foto acima) explica o episódio a
Retrato do Brasil. “Quando assumi o BNDES
[começo de 2003] fui surpreendido com a informação de que a Bradespar [empresa de participações do banco Bradesco] ia vender um
lote de ações ordinárias da Vale para o banco
[japonês] Mitsui. Pensei imediatamente em
determinar que o BNDES comprasse essas
ações, visto que existia um acordo de acionistas que nos dava direito de preferência na compra. Fui consultar meus escalões superiores.”
Superiores de Lessa, durante sua permanência à frente do BNDES, eram os ministros Luiz Furlan, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; José Dirceu, da
Casa Civil; e o presidente Lula. “Eles me disseram o seguinte: não faça nada, porque essa
é uma negociação que se arrasta há dois
anos”, diz Lessa. Ele ouviu também a argumentação de que o Mitsui, que já tinha ações
da Vale, não tinha ambições de controlar
nada. E que a interferência do BNDES na
venda de ações pela Bradespar seria muito
prejudicial à Vale, porque o banco japonês
estaria empenhado na amarração dos crescentes negócios da companhia com a China.
E o que propunha poderia até mesmo azedar as relações entre Brasil e Japão.
Sem maior convicção, Lessa acatou a
decisão. “Pensava: por que esse banco vai
comprar ações ordinárias [que dão direito a
voto] se não quer mandar? Se quer aplicar,
por que não compra ações mais baratas na
bolsa de Nova York?”, diz a RB.
No lance seguinte, porém, o caubói sacou primeiro. “Em 2003, os funcionários da
4 DEPENDÊNCIA LADEIRA ABAIXO
Entre 1995 e 2002, o Brasil teve um enorme
déficit nas transações correntes com o exterior.
A partir de 2005 começa outro
15
10
2005
2000
-10
1995
0
1990
No começo de abril, no entanto, a avaliação já era outra. No encerramento do
ano passado, o Banco Central estimava que
a conta de transações correntes, uma das
principais do balanço de pagamentos do
País, teria um déficit de 3 bilhões de dólares
no ano, o primeiro resultado negativo desde que Lula chegou ao governo, em 2003.
Findo o primeiro bimestre, entretanto,
o déficit estava em mais de 6 bilhões de
dólares. No início de abril, o BC reavaliou a
situação e elevou a estimativa de déficit para
12 bilhões. Valor que, tudo indica, terá de
ser alterado, uma vez que é bastante provável que o saldo negativo das transações correntes supere 9 bilhões de dólares no primeiro trimestre.
Na edição anterior de RB (“Deus é brasileiro?”, nº 8, março de 2008), sobre as contas
do País, já tínhamos destacado que o Brasil
estava amarrado a um esquema de especulação financeira global ameaçador, que
desautorizava qualquer otimismo acerca do
futuro. Outras vozes, mais recentemente,
confirmaram essa avaliação. O alemão Heiner
Flassbeck, economista-chefe da Conferência
das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), em entrevista
publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em
março, disse que a valorização das commodities,
que elevou o preço das ações da Vale e da
Petrobras, faz parte de um jogo financeiro
1985
Esquema ameaçador
pesado, uma espécie de “cassino internacional”, do qual o Brasil é uma das vítimas.
“Investidores, temendo a fraqueza do dólar, estão buscando as commodities e também
moedas de países com certa estabilidade, mas
ainda com taxas de juros altas”. O Brasil está
nesse caso, diz ele.
Flassbeck explica o mecanismo da mesma forma como fizemos na edição passada. A compra de commodities pelos grandes
fundos financeiros eleva o valor da Vale e
Petrobras na Bolsa de Valores de São Paulo. O que incha o próprio Ibovespa, o índice que mede o desempenho da bolsa
paulista, composto pela cotação de 54 papéis e no qual as ações de empresas que
operam na cadeia de commodities têm peso
de mais de 47% (Vale e Petrobras, juntas,
têm um peso de quase 30%). A combinação da especulação com as commodities e com
a das ações na Bovespa aumenta a sangria
de recursos do País.
O argumento contrário é o de que o
jogo é pesado, mas igual. Ao passo que os
estrangeiros remetem cada vez mais lucros
para fora do País, o Brasil tem progressivamente mais empresas no exterior que
enviam mais lucros para cá. No final das
contas, uma coisa compensa a outra e, ao
mesmo tempo, a economia nacional vai
crescendo. É como se, pela atuação das grandes empresas multinacionais brasileiras, o
País tivesse descoberto um atalho para livrar-se da dependência do grande capital
internacional.
1980
mular a internacionalização das grandes
empresas de capital nacional, mas não parecem demonstrar a mesma preocupação de
Lessa quanto à natureza do papel a ser desempenhado por essas empresas e a seu
controle acionário. Petrobrás e Vale, por
exemplo, foram, em boa parte, vendidas
ao capital internacional. Seus lucros vão para
onde? Ajudam ou não o sempre difícil equilíbrio das contas externas do País?
Até o início deste ano, o governo Lula
dava mostras de acreditar que o País estaria
“blindado” contra os efeitos mais preocupantes da crise financeira global desencadeada pelo
estouro da bolha imobiliária americana no
primeiro semestre do ano passado. Essa avaliação apoiava-se nos resultados econômicos
obtidos pelo Brasil no ano passado. A economia cresceu mais de 5%; nossa balança comercial, assim como o ingresso de investimentos estrangeiros, teve bons resultados;
além dos níveis de nossas reservas em moeda estrangeira baterem recordes.
1975
Vale reunidos na Investvale, felizes da vida
com a valorização das ações da companhia,
quiseram vender seu lote. E o BNDES tinha o direito de preferência para a compra”.
As ações da Investvale eram, originalmente,
do banco estatal e, diz Lessa, foram vendidas aos funcionários pelo governo Fernando
Henrique Cardoso “a preço de banana”,
como uma espécie de cala-boca, para que engolissem a privatização da empresa.
“Dessa vez, eu não consultei ninguém”,
diz o economista. O BNDES adquiriu os
8,5% da Investvale. “Comprei para impedir que o Mitsui ficasse com elas e passasse
a ter direito de veto na Valepar [a sociedade
que detém o controle acionário da Vale e
onde está o BNDES, Bradespar, Mitsui e
fundos de pensão das estatais].”
Se comprasse o lote da Investvale, o
Mitsui passaria a ter direito a veto nas grandes decisões. “Se eles tivessem direito de
veto, a companhia passaria a ser nipo-brasileira. Não seria mais brasileira”, diz Lessa.
As reações contrárias foram imediatas.
O presidente Lula, em viagem à África, foi
avisado. “O Lula me telefonou pedindo
uma reunião assim que voltasse ao Brasil.
Eu fui. Estavam lá quatro ministros, que
me criticaram muito. O presidente disse:
‘Lessa, se eu estivesse na África e um jornalista me perguntasse se o governo brasileiro queria reestatizar a Vale, eu diria que não.
Mas parece que estávamos comprando a
Vale justamente naquele momento’.”
Lessa argumentou que havia aumentado o lote de ações do BNDES por duas
razões: uma, porque era um bom negócio
pela lógica do banco; e porque “na lógica
nacional também era extremamente correto, para manter a companhia em mãos brasileiras”. “Expliquei o jogo das ações e o
Lula, que é extremamente inteligente, entendeu na hora e ficou do meu lado”.
Lessa diz que a Vale do Rio Doce é
“uma empresa estratégica para o desenvolvimento brasileiro”. Os embates que teve
com outros membros do governo durante sua permanência à frente do BNDES,
que não se resumiram ao episódio da Vale,
refletem a dissonância de suas posições em
relação ao pensamento predominante no
Palácio do Planalto, tanto no que se refere
ao que é “empresa estratégica” quanto ao
que é “desenvolvimento”.
Altos representantes do governo, como
a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef,
têm dito também que o governo quer esti-
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-20
-30
EVOLUÇÃO DO SALDO DAS
TRANSAÇÕES CORRENTES,
EM US$ BILHÕES (1970-2008*)
-35
* estimativa do BC em março
1
FONTE: Banco Central
DEPENDÊNCIA 5
Divulgação/ Vale
RETRATO DO BRASIL | nO 9
Vista aérea de Carajás (PA): para o
presidente da Vale, não é um buraco
Esta edição de RB argumentará que
não é assim. Os fatos atuais mostram o
contrário: existe uma imensa disparidade
entre nossas multinacionais e as grandes empresas estrangeiras instaladas no
País. Não há um plano geral de fortalecimento dos interesses nacionais no movimento de internacionalização das empresas brasileiras. Há casos específicos
que podem ser vistos, no geral, como
positivos, a despeito de uma ou outra
limitação mais séria, como mostraremos
nas histórias da Petrobras, da Embraer,
da Votorantim.
Mas há também casos como o da própria Vale do Rio Doce, no qual, agora que
está entregue a um operador privado, parece-nos difícil dizer que ela atende efetivamente aos interesses nacionais, se eles forem vistos de modo mais amplo.
A VALE E O INTERESSE NACIONAL
O que mais faz a companhia, além de escavar o território
nacional e mandar montanhas de minério para fora do País?
É
final de fevereiro. Mais de 50 jornalistas se espremem no modesto auditório
do edifício-sede da Vale, no centro do Rio
de Janeiro. São profissionais dos principais
veículos de comunicação do País e correspondentes dos grandes jornais e agências
internacionais de notícias: The Wall Street
Journal, Reuters, Associated Press, Bloomberg.
Todos mandaram representantes. Eles foram convocados para uma entrevista coletiva dos dirigentes da empresa.
A pergunta na cabeça de cada um deles
é: a Vale vai ou não comprar a Xstrata,
mineradora anglo-suíça, a sexta maior do
mundo, com grandes reservas de carvão,
níquel e cobre?
Fábio Barbosa, o diretor da Vale que
abre a coletiva, ignora essa ansiedade, no
entanto. Fala sobre programas de responsabilidade social e ambiental da empresa e,
sobretudo, da formação de profissionais no
Brasil, Moçambique, Peru, Indonésia e
6 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
Eny Miranda/ Cia da Foto/ Divulgação/ Vale
Barbosa e Agnelli: a Vale lucrou US$ 11,8
bilhões em 2007. Custou só R$ 3,4 bilhões
Nova Caledônia. Explica que há escassez
de mão-de-obra qualificada para atender as
demandas da Vale.
É a deixa para a cena seguinte. Quatro
jovens empregados da companhia, de diferentes partes do País, falam sobre o
quanto estão satisfeitos de aprenderem
seus ofícios na mineradora. E encerram
seus depoimentos prometendo tudo fazer para tornar a Vale, hoje, a terceira no
ranking, a primeira mineradora do mundo. Roger Agnelli, diretor-presidente da
empresa, que se mostra inquieto, parece
vibrar com o entusiasmo demonstrado
pelos funcionários.
Buraco é com garimpeiro
Barbosa passa a apresentar os resultados da Vale em 2007, todos muito impressionantes. A receita da companhia atingiu
33,1 bilhões de dólares de dólares, a mais
elevada da história. Foi também inusitado
o lucro líquido, de 11,8 bilhões, correspondente a US$ 2,42 por ação. O que fez o valor
de mercado da companhia, calculado em função do preço das ações, atingir, em fevereiro, incríveis 171 bilhões de dólares. Nada
mau para uma empresa que, na privatização,
foi vendida pelo governo Fernando Henrique por pouco mais de 3 bilhões de reais.
Depois de muitos números, sempre
positivos, Agnelli assume a palavra. Seu
foco é a promoção institucional da empre-
sa. Fala sobre a importância da Vale na geração de oportunidades no Brasil e em outros países onde atua, formando e contratando profissionais qualificados. Ressalta
o fato de que outras empresas brasileiras,
como as construtoras Camargo Corrêa e
Odebrecht, acabam se incorporando às ações
da Vale no exterior e se beneficiam com isso.
Agnelli também aponta como benefícios da atuação da Vale o aumento da
demanda por produtos, como pneus e
navios (cinco novos cargueiros estão sendo construídos no Rio de Janeiro para a
empresa). E não deixa de mencionar investimentos feitos em obras de saneamento e na construção de escolas, como
em Canaã dos Carajás, “a região que mais
cresce no Brasil, uma ilha de prosperidade”. Agnelli ataca a tese de que a Vale apenas faz buracos para extrair minério e
busca bons resultados financeiros para
seus acionistas. “Quem faz buraco é garimpeiro”, diz. “Mineração não. Mineração é indústria, processa”.
O executivo não diz nada de relevante
sobre as negociações para a compra da
Xstrata. Inquerido sobre o jantar que tivera
com o presidente Lula em sua casa, no Rio
de Janeiro, na época das negociações, diz
que foi “uma delícia de jantar” e que o assunto Xstrata não esteve no menu.
Difícil acreditar nessa versão. Os jornais divulgaram nos dias que se seguiram
detalhes do que teria sido o encontro. O
diário Valor Econômico, por exemplo, disse
que, apesar de ter sido realizado a pretexto
de outros temas, “sem perder um minuto
daquela oportunidade, o executivo
[Agnelli] chamou o presidente [Lula]
num canto, expôs os ‘conceitos básicos’
da aquisição da Xstrata e lhe fez um pedido: ‘não emitir nenhuma opinião pública
sobre o negócio até que ele fosse concluído’”. Segundo o jornal, Lula teria aceitado
o pedido, “colocando-o em prática imediatamente”.
Agnelli nega essas versões. “O governo não precisa se preocupar com isso, porque essa é, antes de mais nada, uma preocupação da Vale”, disse aos jornalistas,
depois de afirmar que sabia o quanto era
importante a Vale continuar a ser brasileira. Àquela altura, especulava-se que a Vale
compraria a Xstrata a um preço estimado
pelo mercado, entre 80 e 90 bilhões de dólares. Com isso, se tornaria a maior empresa diversificada do setor de mineração e
metais do mundo. Passaria a ter minas de
cobre, níquel e carvão, além de produção
de alumínio. Teria negócios estruturados
em 18 países.
Empréstimo especial
Para realizar a aquisição, porém, a Vale
teria que tomar emprestados no exterior
cerca de 50 bilhões de dólares. Quando comprou a canadense Inco, em 2006, a companhia fez uma dívida de 14,6 bilhões na
moeda americana.
A compra da Xstrata, entretanto fracassou. Mesmo assim, a Vale tomou um empréstimo de 7,3 bilhões de reais junto ao
BNDES. O presidente do banco, Luciano
Coutinho, disse que a operação foi excepcional. Segundo ele, o BNDES teve de alterar seus estatutos, pois só podia emprestar
a empresas e empreendimentos, não a grupos econômicos. “A determinação era que
as negociações fossem empresa por empresa. Agora, podemos tratar com grupos econômicos”, disse Coutinho aos jornais. Segundo ele, o empréstimo excepcional à Vale
prevê o desenvolvimento de 18 projetos,
todos eles no Brasil.
Um jornalista perguntou a Coutinho
se o negócio já atendia aos requisitos da
nova política industrial a ser anunciada pelo
DEPENDÊNCIA 7
RETRATO DO BRASIL | nO 9
pletou a extração de 1 bilhão de toneladas,
teve 95,5% desse minério exportado.
O minério vai para fora. E para onde
vão os lucros? Isso é muito importante,
porque, ao contrário da Petrobras, que paga
muito lucro, mas muito mais imposto e
royalties, a Vale é praticamente isenta de pagamento do Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS), por exemplo, por ser basicamente uma empresa exportadora. E um dos estados mais prejudicados por isso é o do Pará. Sua atual
governadora, a petista Ana Julia Carepa,
insiste que é preciso mudar a legislação
porque, com a isenção, a companhia deixa
de pagar ao Pará cerca de meio bilhão de
reais por ano.
Desvantagem comparativa
A empresa não tem um balanço que
esclareça bem a questão de seus lucros e dividendos. Nas informações dadas aos jornalistas na entrevista coletiva da diretoria, a
empresa destacou o desempenho de suas
ações negociadas na Bolsa de Valores de
Nova York. O balanço cita a pesquisa “The
2007 value creators report”, feita pelo
Boston Consulting Group, segundo o qual,
a Vale foi a empresa que mais gerou valor
para seus acionistas no mundo entre os
anos de 2002 e 2006. Nesse período, ofereceu um retorno médio de 54,6% ao ano
sobre os valores investidos. A mesma pesquisa afirma que a Vale foi a empresa estrangeira a ter as ações de maior giro médio
na bolsa novaiorquina em 2007: foram mais
de 725 milhões de dólares diários. Em seguida, veio a Petrobras, cujos papéis geraram negócios da ordem de quase 627 milhões de dólares ao dia. Em terceiro, ficou a
finlandesa Nokia, maior produtora mundial de celulares, com 360 milhões.
A Vale destacou que recebeu de suas
filiais no exterior 2,3 bilhões de dólares,
dos quais 2,2 bilhões da Inco. Contudo,
quanto mandou para fora? A questão é
relevante, considerando que a empresa não
só tem grande parte de seu capital social
no exterior, como tem de amortizar a dívida e pagar juros do empréstimo feito
para comprar a Inco.
A Vale enfrenta grande competição. À
sua frente no ranking do setor, estão a BHPBillinton e a Rio Tinto, ambas australianas.
Essas empresas têm suas bases operacionais
muito mais próximas do grande mercado
mundial, que é hoje o asiático, onde está o
principal motor da siderurgia e o grande consumidor de minérios do mundo, a China.
Assim, a Vale tem na distância (muito maior) que a separa do mercado asiáti-
Ana Julia (dir.), Agnelli, Dilma e Lula: falta
meio bilhão de reais por ano para o Pará
Antônio Cruz/ ABR
governo. Ele disse que sim. Agnelli reforçou a idéia, repetindo o que dissera aos jornalistas no encontro já citado. “A atividade
de mineração, especialmente de nãoferrosos, é uma atividade industrial. Às vezes, você precisa minerar uma grande quantidade de material para extrair apenas 1% a
2% de minério”, justificou.
As jazidas de minério do País são definidas por lei como patrimônio nacional.
A Vale é uma concessionária, com direito a
explorá-las. A empresa foi criada, nos anos
1940, como uma estatal, e com o objetivo
de ser um instrumento para alavancar o
desenvolvimento nacional, especificamente, a industrialização do País, ainda incipiente. A idéia não era, basicamente, exportar
minério. Era também, e principalmente,
produzir aço e criar indústrias, desenvolver o País.
Durante a ditadura militar, o projeto
da Ferrovia do Aço pretendia levar o minério extraído das montanhas de Minas Gerais para os complexos siderúrgicos localizados no próprio estado, em São Paulo e
no Rio de Janeiro. Esse projeto fracassou e
a ferrovia é hoje, como várias outras, canal
para exportação de minério e produtos siderúrgicos semi-elaborados.
A mina da Serra dos Carajás, no estado do Pará, descoberta na fase dos governos militares, que no ano passado com-
8 DEPENDÊNCIA ABR
Bush e Lula: quem disse “não acho
que o Estado deva dirigir empresas”?
RETRATO DO BRASIL | nO 9
co o que David Ricardo, um dos três grandes nomes da economia clássica, junto
com Adam Smith e Karl Marx, chamaria
de uma “desvantagem comparativa”. No
caso, é o contrário do que dizem os adeptos da proposição de que o futuro do
Brasil está na exploração das commodities,
agrícolas ou minerais. Essa é, possivelmente, a explicação para o grande empenho da empresa em tirar o minério do
subsolo brasileiro praticamente sem pagar impostos aos estados brasileiros nos
quais opera.
Existe um plano?
Nos dois últimos anos, a Vale se empenhou na construção de acordos para industrializar o minério no País. Tem um projeto
de 4,2 bilhões de dólares com a alemã
Thyssen-Krupp, outro de 2,0 bilhões de
dólares com a coreana Dongkuk e mais um
com a chinesa Baosteel, na qual colocará 3,2
bilhões de dólares. Está envolvida ainda com
uma expansão da Usiminas, em que estão
os japoneses da Nippon Steel, e anunciou
que construirá uma siderúrgica no Pará, com
sócios ainda não definidos, eventualmente
indianos.
De que forma os negócios siderúrgicos
da Vale alterarão o seu status de exportadora da commodities? Quase todos são projetos para produção de placas de aço, insumo
básico da indústria. Do ponto de vista da
Vale, é um avanço. Não se pode dizer, todavia, que isso faça parte de um grande projeto de industrialização e desenvolvimento
técnico do País.
Ao desmantelar o conjunto de empresas nacionais estatais com a privatização, o
governo Fernando Henrique abandonou
a idéia de um plano para enfrentar o problema da inserção industrial do Brasil no
processo de globalização a partir da ação
ativa do Estado. De que forma isso se alterou no governo Lula é o que veremos
nas páginas seguintes. Primeiramente, trataremos de uma retomada de conceitos
sobre o interesse nacional a partir de uma
entrevista da ministra Dilma Roussef. Passaremos, então, para a Petrobras e à
Eletrobrás, empresas chaves para a história das multinacionais brasileiras e para a
compreensão do processo de industrialização do País.
AS MÚLTIS DO ESTADO BRASILEIRO
Sim, a Petrobras é, apesar de ter grande participação de acionistas
estrangeiros. A Eletrobrás, embora Lula diga que sim, não é
A
ministra da Casa Civil, Dilma
Roussef, foi chamada pelo presidente
Lula de “mãe” do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a grande iniciativa do governo para desenvolver o
País. Em entrevista publicada pelo jornal Valor Econômico em setembro do ano
passado, ela teorizou sobre a questão do
interesse nacional no que diz respeito às
grandes empresas instaladas no Brasil.
Explicou que a atuação do governo Lula
tem por objetivo apoiar “os processos
de concentração que estão ocorrendo no
mundo, porque o que se quer é ter grandes players”. Players, de jogadores, em inglês, no jargão econômico da moda, são
as grandes empresas com capacidade de
atuação global. “O governo acha isso
perfeitamente natural, bem-vindo, sem
problema algum”, disse a ministra.
Ela foi além. Explicou que é importante que, como já ocorre em outros países, exista no Brasil “uma relação ínti-
ma entre setor público e setor privado”.
“Íntima no bom sentido”, ressalvou.
Seria uma “relação de parceria, de cooperação, de apoio do governo às suas
empresas, sejam privadas nacionais ou
estrangeiras”.
A última afirmação é estranha. É certo falar em “suas empresas [do governo]”, referindo-se à relação entre o governo brasileiro e as empresas privadas,
as nacionais e, especialmente, as estrangeiras? Outras duas observações a respeito do sentido amplo dessas declarações da ministra são necessárias. Uma: a
formação dos grandes players, que se dá
no processo de concentração de capitais
a partir do qual gigantescas empresas se
formam e expandem suas atividades para
fora das fronteiras nacionais de origem
não é, em linhas gerais, novidade. Foi
descrito há mais de um século por diversos autores. Outra: se há algo novo
na era em que vivemos é que esse fenô-
DEPENDÊNCIA 9
RETRATO DO BRASIL | nO 9
meno, originalmente ocorrido no centro capitalista, está acontecendo com
empresas de países de industrialização
tardia, da periferia capitalista, como Brasil, China, Coréia do Sul, Índia, México
e outros.
O novo, portanto, está na origem dos
capitais. Exatamente o aspecto que a ministra minimiza. “Vamos apoiar muito
os empresários de capital externo que estão aqui”, disse ela a Valor Econômico.
“Não nos interessa deixar o capital estrangeiro, que do ponto de vista da Constituição é brasileiro, sem cobertura”.
Ela, entretanto, aponta – e critica –
casos recentes envolvendo grandes empresas, em que os governos de França
e Itália pressionaram com o objetivo
de fortalecer os capitais nacionais. O
que mostra que nos países do centro
capitalista, em momentos críticos, prevalece a distinção do capital segundo
sua origem.
Tendência, aliás, explicitada numa
declaração de 1995 do então presidente
americano Bill Clinton. Ele disse, na
ocasião, que “o papel do governo é o de
um sócio do setor privado, agindo
como um defensor dos interesses econômicos nacionais”. Mais ou menos o
mesmo disse James Woolsey, diretor da
Agência Central de Inteligência dos
EUA, a CIA, no final de 2000. Ele afirmou que “muitos bilhões de dólares
dos contratos para as empresas americanas” foram obtidos com o uso de
dados coletados pelos serviços de informação de seu país.
A MÚLTI QUE NÃO FOI As três histórias do
que deixou de ser feito no governo Lula para
fortalecer a Eletrobrás
A PRIMEIRA É “A ESCOLHA DE DILMA” (Reportagem nº 54, março de 2004). Conta
como o governo Lula, já antes de sua posse, decidiu manter o projeto liberal de
descontratação das geradoras de energia elétrica do País, basicamente estatais,
programado para 1º de janeiro de 2003. Conta também como a Eletrobrás, comandada então por Luiz Pinguelli Rosa, há anos o principal porta-voz do presidente
para a área de energia, foi afastada da definição do novo modelo para o setor.
A segunda é “Contratos Imorais” (Reportagem nº 59, agosto de 2004). Investiga os contratos que o governo FHC fez na tentativa praticamente desesperada
de fazer funcionar um sistema de geração de energia à base de termelétricas
a gás natural, para evitar um apagão. O apagão não foi evitado. Os contratos
foram qualificados de imorais, mesmo por autoridades do governo que disseram ter de mantê-los. Prejudicaram principalmente o sistema Eletrobrás e a
Petrobras. Termelétricas privadas assinaram contratos com distribuidoras de
seus próprios grupos econômicos para vender energia elétrica a preços, de um
modo geral, duas vezes superiores aos das geradoras estatais. Esses contratos
foram mantidos. A Petrobras, por sua vez, bancava os lucros de sócios privados
em termelétricas que sabidamente não tinham condições de funcionar. No
entanto, renegociou esses contratos.
A terceira é “Energia, o espectro liberal” (Retrato do Brasil-CartaCapital, agosto
de 2007), e conta o que se qualificou como “a farra dos livres”, o enorme crescimento das vendas no “mercado livre”, em que grandes consumidores chegaram a
comprar 50% do consumo industrial de eletricidade do País a preços até 44%
menores que os do mercado cativo, de consumidores residenciais e pequenos e
médios empresários.
Reestatizar a Vale, nem pensar
Embora as declarações da ministra
brasileira tenham sentido nítido, isso não
quer dizer que, na prática, o governo Lula
não veja problemas quanto à origem dos
capitais. O governo, contudo, não dá sinais de querer transformar tais preocupações numa política mais clara e atuante. Talvez, para manter-se em paz com o
grande capital, tanto nacional quanto estrangeiro, que têm boa parte de seus interesses entrelaçados.
Na entrevista citada, a ministra
Roussef também opina sobre a proposta,
referendada pelo último Congresso do
Partido dos Trabalhadores, ao qual é
filiada, de reestatizar a Vale. Ela se diz contra: “Não faz mais sentido fazer isso”. O
motivo, depreende-se do que diz, é administrativo, não econômico ou político: “A
Vale é uma empresa consolidada, uma
empresa mineradora muito bem gerida”.
Curiosamente, mais ou menos na mesma
época da entrevista a Valor Econômico, quando das descobertas do campo petrolífero
de Tupi, em outra fala, a ministra se disse
a favor de uma revisão da lei do petróleo
para aumentar o controle nacional sobre
as reservas brasileiras.
O presidente Lula também é contraditório com relação ao assunto. Numa
famosa entrevista ao jornal americano
The Washington Post, divulgada pouco
depois de ter sido eleito em 2002, ele
disse, explicitamente: “Não acho que o
Estado tenha de dirigir empresas. O pa-
10 DEPENDÊNCIA pel do Estado é planejar, estimular o desenvolvimento com incentivos e, se necessário, procurar a iniciativa privada para
fazer parcerias em financiamentos”. Nos
últimos tempos, no entanto, tem dito
que o Brasil deve ter duas multinacionais estatais: a Petrobras e a Eletrobrás.
O propósito do governo Lula de
transformar a Eletrobrás numa das multinacionais brasileiras, porém, tem sido
uma palavra vazia. Retrato do Brasil e a
extinta revista Reportagem, publicações da
Editora Manifesto, dedicaram, em três
edições, um total de quarenta páginas nas
quais há uma espécie de demonstração
de que este governo nada fez nessa direção. Ao contrário: manteve o grande plano de desmantelamento dos contratos
de concessão de energia das geradoras
estatais e desenvolveu um “mercado livre” de energia, no qual os grandes grupos econômicos compraram por muito
tempo eletricidade a preços incrivelmente baixos, em detrimento dos investimentos dessas geradoras.
Petrobrás, Petrobras e Petrobrax
A Petrobras é a grande multinacional brasileira. Sua marca original era
“Petrobrás”, com acento agudo no último “a”. No governo Collor, quando teve
início uma campanha em defesa da
privatização da empresa, o sinal gráfico
foi retirado. No governo Fernando
Henrique, a Petrobras perdeu o monopólio da exploração e distribuição do petróleo no País. E sua marca quase mudou para “Petrobrax”.
Na época, em nota aos funcionários
da empresa, explicando a mudança, seu
então presidente, Philippe Reichstul, disse: “Agora, não somos apenas uma empresa nacional de petróleo com a imagem vinculada a postos de gasolina. Somos uma corporação transnacional de
energia”. Além de se livrar da imagem
de estatal, com a marca “Petrobrax”, a
empresa se livraria também da pecha de
ser brasileira. A mudança, entretanto,
parou em “Petrobras”, sem acento.
A atuação do governo Lula com relação à nossa maior estatal foi menos espetaculosa que a de seu antecessor. Basicamente, não foi revertido o processo de
privatização da companhia, realizado
parcialmente. Hoje 39,1% do capital total da empresa estão com estrangeiros.
RETRATO DO BRASIL | nO 9
E 50,6% de suas ações preferenciais, com
prioridade na distribuição dos lucros,
também pertencem a investidores com
domicílio legal fora do País.
O Conselho de Administração da
empresa, supostamente o órgão supremo da companhia, também reflete essa
preocupação com o capital privado. Embora o Estado seja o detentor da maioria das ações com direito a voto e tenha
nomeado José Sérgio Gabrielli como
presidente da empresa , e a ministra
Roussef como presidente do conselho,
grandes empresários, como Jorge
Gerdau Johannpeter e Arthur Sendas,
têm assento nesse fórum.
A Petrobras tem enorme peso financeiro, como suas assemelhadas do exterior. Tem, segundo seu balanço do ano
passado, um enorme capital de curto prazo. Somando o caixa e o que tinha em
bancos no curtíssimo prazo, mais as disponibilidades no País e no exterior, rubrica que se refere a dinheiro aplicado no
prazo de menos de um ano, tinha 13
bilhões de reais no fim de 2007. É esse
tipo de disponibilidade que faz que uma
multinacional possa pressionar governos
em vários cantos do mundo por concessões, enquanto estuda onde vai fazer investimentos.
O balanço da Petrobras é bastante claro, quando comparado com o de outras
O BOLO DA PETROBRAS
A maior fatia do valor adicionado à produção
pela empresa foi a dos impostos e royalties
pagos a entidades governamentais.
A menor, a destinada aos trabalhadores
VALOR ADICIONADO NA PRODUÇÃO EM
R$ MILHÕES (2007)
ENTIDADES
GOVERNAMENTAIS
70,6
13,4
12,8
23,2
INSTITUIÇÕES
FINANCEIRAS E
FORNECEDORES
PESSOAL
ACIONISTAS
FONTE: Petrobras
2
empresas. No de 2007, a empresa mostra
que gerou uma riqueza equivalente a 120
bilhões de reais. Desse bolo, a parte menor foi para seus trabalhadores, 12,8 bilhões de reais, mais ou menos metade da
parte que coube aos acionistas, 23,2 bilhões
de reais e menos que o pago de juros para
instituições financeiras e em aluguéis e
afretamentos para fornecedores, 13,5 bilhões de reais. Mas a parte maior, 70,6 bilhões de reais, paga a título de impostos e
royalties, foi para os governos, federal, estaduais e municipais.
Política liberal em discussão
Em certa medida, a empresa se reorientou em direção a uma política voltada
mais diretamente para os interesses internos do País no governo Lula. O efetivo fixo da companhia mais que dobrou
depois de anos consecutivos de incentivo à terceirização, quando parte dos trabalhadores que atuavam na companhia
eram empregados de outras empresas
que prestavam serviços para a estatal. O
quadro funcional da Petrobras foi de
32,8 mil para 68,9 mil funcionários entre 2001 e 2007.
No setor de gás e de energia, a Petrobras completou a construção, nacionalizou e reorganizou um expressivo
patrimônio, que havia sido parcialmente
construído sob as regras da liberação do
setor elétrico e que, agora, sob seu comando, poderá ser de enorme utilidade
para o País numa eventual crise nessa área.
Seu grande feito mais recente foi a
descoberta de gigantescas reservas de petróleo e gás nos campos de Tupi e
Saturno, na Bacia de Santos, litoral do
Sudeste brasileiro. Elas levantaram,
como se viu pelas declarações da ministra Roussef, a questão da política liberal
de concessões para a exploração do petróleo no subsolo brasileiro. No mundo, as grandes multinacionais do petróleo detêm cada vez menos reservas, e os
Estados nacionais cada vez mais. Seria
razoável, portanto, que o governo tomasse posição clara quanto à mudança
da lei aprovada no governo Fernando
Henrique. O próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega, declarou, privadamente, ser favorável ao uso de parte das
reservas brasileiras em moeda estrangeira para recomprar ações da Petrobras. Entretanto, nada disso ocorreu.
DEPENDÊNCIA 11
Felipe Vieira/Folha Imagem
RETRATO DO BRASIL | nO 9
EMPREENDEDORES E FINANCISTAS
Steinbruch e Ermírio de Moraes pertencem às duas categorias de
articuladores das múltis brasileiras junto ao Palácio do Planalto
N
Almeida Rocha/Folha Imagem
a entrevista já citada, a ministra Dilma
Rousseff afirma, a certa altura, quando
explicita a “relação íntima” entre os setores
público e privado, que considera “fundamental que se tenha o capitalista”, “o empresário
schumpeteriano”. Ela se referia a Joseph
Schumpeter (1883-1950), o economista americano que destacava a importância dos capitalistas empreendedores e da “destruição criativa” que eles promoviam. O Palácio do Planalto sempre foi aberto a essas criaturas.
A partir das reformas liberais promovidas pelos americanos no final dos anos
1970 e da hiperinflação brasileira dos anos
1980, entre os empreendedores com grande influência no núcleo do poder, destacou-se uma categoria especial, a dos financistas. Gente como Daniel Dantas,
Armínio Fraga, Francisco Gros, Pérsio
Arida, André Lara Resende, Luiz Carlos
Mendonça de Barros.
O Brasil não tem, no entanto, nenhuma
grande multinacional financeira. Aqui, os financistas basicamente criaram os esquemas
da privatização das grandes estatais. No começo dos anos 1980, as maiores empresas
no País eram quase só multinacionais estrangeiras ou empresas estatais. E as estatais
dominavam os setores do petróleo e gás,
mineração, siderurgia, energia elétrica e telecomunicações.
Dois grandes empreendedores, cujos
nomes devem ser associados às multinacionais privadas brasileiras formadas nesse período, são Benjamin Steinbruch e Antônio
Ermírio de Moraes. Eles disputaram a Vale
do Rio Doce, hoje a maior multinacional
privada do País. E no desfecho da história,
acabam se misturando os empreendimentos industriais e financeiros.
Ermírio de Moraes podia ser visto como
um empresário antigo (não pode mais, como
logo adiante se verá). Seu pai, José Ermírio
de Moraes, era um dos raros exemplares de
uma burguesia local verdadeiramente nacional. Foi derrotado com o golpe militar de
1964, quando o processo de monopolização no capitalismo brasileiro ainda não havia
dado o salto para além do mercado nacional.
Ermírio de Moraes, “o estrangeiro”
Antes do golpe, José era senador pelo
PTB. Elegeu-se por Pernambuco em 1962,
na chapa do governador Miguel Arraes. Não
apoiou os golpistas que derrubaram o presidente João Goulart e praticamente desapareceu da cena política nos governos dos
generais pós-1964. Vinha de uma família
de senhores de engenho pernambucanos
decadentes. Havia ajudado o sogro, Antonio Pereira Inácio, a consolidar a Votorantim, uma das maiores fábricas de tecidos do
Steinbruch: um
financista pré-1998
empreendedor-
País na primeira metade do século passado.
Coube a José assumir a empresa após a
morte do sogro. Sob sua direção, a empresa
expandiu-se para várias áreas. O destaque foi
a fundação, em 1955, da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) que cresceu espetacularmente a despeito de atuar num setor
dominado pelas multinacionais estrangeiras.
Em 1997, Antônio Ermírio de Moraes,
já então no comando do grupo Votorantim, liderou o consórcio Valecom, para disputar a Vale do Rio Doce no leilão de
privatização. Juntou-se à mineradora AngloAmerican, de capital sul-africano, à Mitsui,
trading japonesa de minério de ferro, à Japão-Brasil Participação (formada por 12
corporações) e aos fundos de pensão Centrus
(dos funcionários do Banco Central) e Sistel
(dos funcionários da Telebrás).
Antônio Ermírio teve como adversário Benjamin Steinbruch, um dos três filhos do empresário Mendel Steinbruch, o
principal sócio do grupo têxtil Vicunha, à
época o maior do ramo no País. Benjamin
liderou o consórcio Brasil, tendo à frente a
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN),
Ermírio de Moraes: um empreendedorfinancista pós-1998
12 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
AINDA É POUCO A participação das múltis
estrangeiras nos financiamentos do BNDES é um
quarto do total. E deveria ser maior, diz economista
DESDE A REFORMA LIBERAL da Constituição de 1995, que eliminou a distinção
entre empresa nacional e estrangeira, o financiamento do BNDES às empresas sob
controle de capital estrangeiro é crescente. No fim de 2006, já representava
praticamente um quarto do
total, cerca de 12 bilhões em 650
50 bilhões de reais. O econo- 600
mista Antônio Correa de 550
VARIAÇÃO DOS DESEMBOLSOS
DO BNDES A EMPRESAS, TOTAL E
Lacerda, da PUC-SP, ainda 500
450
SOB CONTROLE DE CAPITAIS
acha pouco. Ele argumenta: as 400
ESTRANGEIROS, EM % (1996-2006)
multinacionais estrangeiras re- 350
300
Estrangeiros
presentavam 45% das 500
250
maiores empresas do País em 200
2006. Deveriam ter direito a 150
Total
uma porcentagem próxima 100
50
desse índice nos investimentos
0
do BNDES.
1996
1998
2000
2002
2004
2006
Do ponto de vista da lógica libeFonte: BNDES
ral, a conta está certa.
empresa criada por Getúlio Vargas, que adquiriu num processo que será descrito posteriormente, quando falarmos das multinacionais brasileiras da siderurgia.
Com base no patrimônio da CSN,
Steinbruch tomou um empréstimo de 1,2
bilhão de dólares do Nations Bank, banco
americano que depois compraria o Bank of
America. E conseguiu mais uns 2 bilhões
de fundos de pensão das estatais liderados
pelo Previ (dos funcionários do Banco do
Brasil); de um fundo financeiro organizado pelo banco Opportunity, que tinha por
trás o Bradesco; e de um grupo de investidores do exterior, entre os quais George
Soros, agrupados na Sweet River.
Curiosamente, Steinbruch acabou sendo
a parte nacional na compra da Vale, embora
os dois lados em disputa tivessem a participação de capitais estrangeiros. O PT mobilizou-se contra a venda. Entretanto, setores do
partido adotaram uma postura pragmática.
Argumentando que o leilão era inevitável, atuaram para favorecer o consórcio de Steinbruch,
considerado mais “nacionalista”. Políticos e
sindicalistas do partido tinham influência na
gestão dos fundos de pensão das estatais.
Aloysio Mercadante, uma das estrelas
petistas, muito ligado a Lula, era na ocasião
assessor do Sindicato dos Bancários de São
Paulo. Ex-parlamentar, não tinha concorrido à reeleição para a Câmara dos Deputados
por ter sido candidato a vice na chapa em que
Lula perdeu a eleição presidencial de 1994.
Mercadante orientou o Previ a apoiar o consórcio de Steinbruch. O hoje senador diz a
RB que “não fazia sentido privatizar a Vale,
uma empresa estratégica, rentável”. “Quando percebemos que o leilão era inevitável, no
entanto, achamos que era importante que os
trabalhadores participassem de alguma forma desse processo”, explica.
Os maiores capitalistas
Mercadante considera que a compra da
Vale foi um excelente negócio para a Previ.
“Os maiores beneficiados são os trabalhadores do Banco do Brasil. Hoje, sobram
muito poucas empresas de capital nacional no País, mas as que sobraram têm a
participação dos fundos de pensão de trabalhadores”, diz. “Os maiores capitalistas
brasileiros são hoje os trabalhadores organizados nos fundos de pensão”. Hoje, a
Vale é comandada por um financista.
Roger Agnelli foi nomeado pelo Bradespar,
o fundo de participações do banco
Bradesco, que estava por trás do Opportu-
nity (não podia aparecer no leilão porque
participara da avaliação da Vale).
O grupo Votorantim cresceu e se ampliou por novas áreas. Foi com o cimento,
um setor menor da economia global, que
se internacionalizou a partir de 2001. O cimento representa um setor importantíssimo no grupo, responsável por 19% de sua
receita líquida. Naquele momento, a estratégia da empresa era compensar no exterior
a falta de crescimento do mercado interno
de construção civil.
Segundo estudo da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais
da Globalização Econômica (Sobeet), a empresa foi também em busca de dólares,
moeda forte na época, tendo estabelecido
como meta ter 50% de sua receita em moeda forte, tanto em operações no exterior
como com exportações, até 2010. Consultores e estudos feitos pelo grupo apontaram que o rumo era a América do Norte, e
a forma de investimentos seria a compra de
unidades já existentes.
O Votorantim se estabeleceu, afinal, em
Ontário, no Canadá, e na região dos Grandes Lagos e Flórida, nos Estados Unidos.
Os empreendimentos envolveram fábricas
de cimento, usinas de concreto, terminais de
distribuição, navios para transporte.
Antônio Ermírio, que tem o costume
de fazer ruminações filosóficas sobre o valor
do trabalho, o mal dos juros e a felicidade
nacional, há poucos anos declarou que “a
internacionalização da companhia é um mal
necessário”. E que preferia aplicar todos os
recursos no Brasil.
A despeito de sua persistente pregação
contra os juros, o grupo, no seu balanço do
ano passado, registrou que 26% de suas receitas líquidas foram provenientes dos negócios financeiros, a segunda maior fonte de
renda. O Banco Votorantim é, segundo o
balanço, o quarto maior banco privado brasileiro, com ativos de 66 bilhões de reais.
Também fazem parte do braço financeiro
do Votorantim a BV Corretora de Títulos e
Valores Mobiliários, a BV Leasing e a BV
Financeira, que concede financiamentos de
veículos, material de construção e crédito
pessoal e crédito consignado público e privado. Está também no ramo de administração de grandes fortunas.
Ao comentar em 2004 o fato de que o
lucro líquido do banco foi maior que o da
CBA, Antônio Ermírio disse: “Infelizmente, tomamos gosto pela coisa”.
DEPENDÊNCIA 13
RETRATO DO BRASIL | nO 9
REAL QUEBRA, PALÁCIO MUDA
A TROCA DE PAPÉIS
Quando o Brasil quebrou, em 1998, o Estado voltou a
se endividar, para socorrer os grandes grupos
endividados
A era dos juros estratosféricos levou o Brasil ao FMI em 1998. E mudou
o câmbio, a política para a internacionalização e até os palacianos
Dívida externa
pública
140
130
120
B
enjamin Steinbruch mantém relações
importantes. É amigo dos tempos de juventude do senador Mercadante. E, segundo o diário Correio Braziliense, também de
Josué Gomes da Silva, filho do vice-presidente da República, José Alencar. Josué é
presidente da Coteminas, a maior empresa
têxtil do País, também multinacional, associada com a americana Springs.
A família Steinbruch continua muito rica,
mesmo depois de ter vendido sua parte na
Vale para acertar as contas da CSN. A revista
americana Forbes incluiu em sua lista de
bilionários de 2006 dois Steinbruchs: Dorothea,
com 6,1 bilhões de dólares; e Eliezer, com 4
bilhões, mãe e tio de Benjamin.
Hoje, a estrela de Steinbruch não brilha
tanto no Palácio do Planalto quanto em
meados dos anos 1990, quando Paulo
Henrique Cardoso, filho do então presidente da República, estava na folha de pagamentos da CSN.
O Brasil mudou. A década de 1990 foi
o período dourado do neoliberalismo no
País. O leilão da Vale do Rio Doce em maio
de 1997 foi talvez o início do fim desse
período. A Telebrás foi vendida no final
de julho de 1997 já com o País assolado
por um processo de fuga de capitais, que
levaria à sua quebra no final do ano seguinte e a uma mudança radical na sua
política cambial, que afetaria, essencialmente, os empréstimos externos, como o que
Sergio Lima / Folha Imagem
fora conseguido por Steinbruch para comprar a Vale.
A privatização dos anos anteriores fora,
no fundo, um processo de concentração de
capitais, no qual o Estado transferiu para
capitalistas privados boa parte do
patrimônio público acumulado na Era
Vargas. Foi desenvolvida com apoio nos
capitais estrangeiros e nos financiamentos
do BNDES e dos fundos de pensão dos
funcionários das estatais. Baseou-se na criação do real, uma moeda aparentemente
forte, mas, de fato, apoiada em juros descomunais – de mais de 20% reais nos primeiros meses de implantação do Plano Real
–, e deixou um gigantesco passivo na forma de uma dívida interna galopante.
110
100
90
80
70
Dívida externa
privada
60
50
40
EVOLUÇÃO DAS DÍVIDAS
EXTERNAS PÚBLICA E PRIVADA,
EM US$ BILHÕES (1992-2007)
30
20
10
0
1992
1995
1998
2001
2004
2007*
Trinca financista
A quebra do País em 1998 foi o final desse
ciclo de concentração. Os capitais externos pararam de financiar o processo e começaram a cobrar a conta. Isso trouxe mudanças radicais na
área financeira. Até 1998, o Estado ainda estava
completando a renegociação da dívida externa
da época dos governos militares. A dívida externa pública havia até decrescido levemente depois da disparada pós-golpe militar. Foi de mais
de 100 bilhões de dólares, em 1992, para pouco mais de 90 bilhões, mas o endividamento
externo privado disparara. No mesmo período, saltou de cerca de 20 bilhões de dólares,
naquele ano, para perto de 130 bilhões.
Almeida Rocha/Folha Imagem
Sergio Lima / Folha Imagem
* dados estimados (até setembro)
FONTE: Banco Central e elaboração própria
3
O presidente Collor colocara na presidência do Banco Central, na área externa do
banco e no Ministério da Fazenda, respectivamente, a trinca Francisco Gros-Armínio
Fraga-Marcílio Marques Moreira. Em maio
de 1992, os juros reais brasileiros foram elevados para os níveis mais altos do mundo,
lá se encontram até hoje. Isso levou, primeiramente, a uma enorme especulação na
arbitragem de juros: o financista-empreendedor pegava dinheiro a juros baixos no
exterior, convertia em reais, aplicava em títulos da dívida pública brasileira a juros
monumentais e multiplicava seu dinheiro
em pouco tempo.
A quebra do real, a moeda artificialmente forte criada pelo governo Fernando
Henrique, levou ao desmantelamento desse
esquema de ação do Estado brasileiro. A partir
daí, o processo mudou. O movimento dos
empréstimos se inverteu. Os financistasempreendedores pararam de tomar emprés-
A trinca dos juros estratosféricos:
Gros-Fraga-Marques Moreira
14 DEPENDÊNCIA timos no exterior e passaram a pagá-los, ou
a prorrogá-los. O governo brasileiro foi buscar os dólares junto aos patronos do sistema: Fundo Monetário Internacional (FMI),
Banco Mundial, Tesouro americano. Tomou
três grandes empréstimos entre 1998 e 2002.
Em termos líquidos, ou seja, descontadas
as amortizações pagas, tiradas dos empréstimos novos para pagar os velhos, recebeu
dessas instituições oficiais cerca de 45 bilhões
de dólares.
Uma lei para a nova dívida
Para ajudar os grandes devedores privados a pagar suas dívidas externas, o Estado
reavivou os títulos da dívida pública com
correção cambial, a antiga fórmula jurídica
da moeda do Banco Central, a qual tem duplo comportamento. O devedor compra
esses títulos pagando em reais, mas, juridicamente, eles valem dólares. No fundo, o
Estado brasileiro ficou responsável pelo
chamado risco cambial, pelo problema decorrente das eventuais desvalorizações da
moeda nacional. Se o real passasse a valer
menos, o Estado teria que despender mais
reais, quando o financista-empreendedor
precisasse converter os títulos em dólar para
pagar suas dívidas lá fora. Por esse motivo,
no final de 1998, Fernando Henrique pronunciou o famoso discurso no Palácio do
Itamaraty, a sede do Ministério das Relações Exteriores, que daria origem à Lei de
Responsabilidade Fiscal. Nele, comprometeu o Estado a realizar uma política de arrocho nos salários dos funcionários, no custeio da máquina pública e nos investimentos estatais. E a se empenhar num furor
arrecadatório. Tudo para garantir os reais
necessários para sustentar o novo sistema
de dívida pública.
O período de 1999 a 2004 foi de transição no processo da formação das grandes
multinacionais brasileiras. Nesse intervalo,
o grupo Votorantim, que, ao fracassar na batalha pela Vale, perdeu a chance de tornar-se
uma multinacional de minério, tornou-se
multinacional no setor de cimento e concreto, como já visto. É desse período também a
sugestiva história da formação da multinacional Gerdau.
Jorge Gerdau Johanpeter faria parte,
hoje, de uma seleta turma com “acesso fácil”
ao presidente Lula, diz o Correio Braziliense.
O grupo, segundo o jornal, é pequeno. Além
de Gerdau, inclui Roger Agnelli, Davi Feffer
(do grupo Suzano), Emílio Odebrecht (do
RETRATO DO BRASIL | nO 9
Odebrecht). Sérgio Andrade (do Andrade
Gutierrez) e Paulo Godoy (presidente da
Associação Brasileira de Infra-estrutura e Indústria de Base).
A história contada pelo CB parece plausível. Na entrevista da ministra Dilma
Rousseff a Valor Econômico, várias vezes citada nesta edição, ela diz que “a Suzano chegou e disse que agora quer concentrar seu
negócio em papel e celulose”. “E insistiu
bastante com a Petrobras”.
A ministra estava contando a história da
compra da Suzano, de Davi Feffer, pela
Petrobras, que é parte do movimento que
teve o aval do Palácio do Planalto e com o
qual a estatal e a Odebrecht, outro grande
player nos negócios multinacionais brasileiros, reorganizaram o setor petroquímico
do País.
Gerdau, de acordo com o CB, é “de longe o mais influente” do grupo de empreendedores consultados amiúde pelo Planalto.
Ele foi convidado e recusou assumir um
posto no Ministério quando Lula iniciou seu
segundo mandato. No final de 2006, seu
grupo era o décimo quarto do mundo em
volume de produção de aço, com 15,6 milhões de toneladas.
GERDAU CHEGA AO TOPO
Ele vem de longe. Comprou pechinchas estatais já no início da
privatização, no governo Sarney. Com a Açominas, deu um salto
A
aquisição no Brasil da gigantesca Aço
Minas Gerais (Açominas), uma das empresas do sistema Siderbrás, a holding estatal da
siderurgia, contribuiu para a consolidação do
grupo Gerdau como player na produção
mundial de aço.
O grupo tem mais de um século. João
Gerdau, avô de Jorge, começou com uma
fábrica de pregos em 1901. Em 1940, época
em que Getúlio Vargas estava articulando a
CSN, comprou a Siderúrgica Riograndense.
A entrada em operação da CSN em 1946
foi o grande marco da siderurgia nacional.
Com a criação do BNDES no segundo governo Vargas, a siderurgia passou a contar
então com um agente financiador e o banco
tornou-se sócio das empresas. Em 1956,
nasceu a Companhia Siderúrgica Paulista
(Cosipa), com recursos do BNDES e do
governo paulista. No mesmo ano, foi criada
a Usina Siderúrgica de Minas Gerais
(Usiminas), com capitais privados nacionais,
japoneses, do governo mineiro e do banco.
Nos anos 1970, como parte do plano dos
governos militares para desenvolver o País,
o setor estatal siderúrgico foi reorganizado.
Em 1974, surgiu a Siderbrás, que comprou
a preço simbólico a participação que o
BNDES tinha nas diversas empresas.
A Açominas é da época da Siderbrás. Foi
inaugurada nos anos 1980, quando também
se completou o quadro das grandes estatais
do setor, com a Companhia Siderúrgica de
Tubarão (CST), no Espírito Santo. A essa
altura, no entanto, o sistema Siderbrás estava amplamente endividado e praticamente
não investia. O governo federal, enrolado na
crise da dívida externa, utilizara suas empresas para gerar projetos que captassem recursos externos. A maioria desses projetos
encalacrou; não tinham sido feitos levando
em conta todas as condições para sua realização efetiva.
Em 1990, após a posse de Fernando
Collor, a Siderbrás foi extinta e o BNDES
assumiu papel oposto ao que desempenhara anteriormente. Foi designado como gestor
do programa de privatização. Todas as grandes estatais foram vendidas nos anos 1990.
A Gerdau adquiriu a Açominas num longo
processo de falência, não apenas do projeto
siderúrgico dos militares, mas de seu próprio projeto nacional.
O objetivo dos banqueiros que emprestavam dinheiro ao País era conseguir rolar a
dívida externa brasileira com novos empréstimos. Os grandes projetos dos governos
dos presidentes militares dessa época, os
generais Ernesto Geisel e João Figueiredo,
envolviam sempre grandes compras de equipamentos no exterior. E os empréstimos
tomados para esses projetos sempre incluíam
DEPENDÊNCIA 15
RETRATO DO BRASIL | nO 9
Caio Guatelli/Folha Imagem
O presidente e Gerdau: o empresário
não foi ministro porque não quis
créditos para comprar os equipamentos dos
grandes fabricantes internacionais e dólares
chamados “livres”, que eram usados para a
rolagem da dívida.
Com isso, os governos militares tocavam o País e os fornecedores de equipamentos e banqueiros ganhavam algum enquanto o sistema agüentava. O sistema se manteve precariamente até 1982. Nesse ano, o
Brasil quebrou. As estatais, a essa altura, estavam também quebradas.
Açominas, trampolim do Gerdau
Fez-se, então, um novo esquema. Por força
de acordos com o FMI, o Estado brasileiro
parou de financiar as estatais. E começou a
discutir a venda dessas empresas. No ramo
siderúrgico, a privatização começou já no primeiro governo após os militares, na Nova
República. Em 1988, ainda durante a administração do presidente José Sarney, foram
privatizadas siderúrgicas de menor porte. O
grupo Gerdau começou sua ampliação por ai.
Foi um dos principais compradores dessas
usinas, junto com o Villares, outro dos grandes grupos siderúrgicos do setor privado,
depois vendido a estrangeiros. No entanto,
foi a aquisição da Açominas que parece ter
sido a operação que impulsionou o grupo
Gerdau para ser uma multinacional.
A Açominas era um dos megaprojetos
do governo Geisel. Junto com a Ferrovia
do Aço se voltaria para atender os setores
envolvidos em processos industriais mais
avançados. Fabricaria aços especiais para a
construção civil. A Ferrovia deveria unir os
três grandes centros industriais do País,
Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Por ela, circulariam o minério de ferro e
os aços elaborados para os diversos tipos
de indústria pelas usinas siderúrgicas estatais dos três locais, CSN, Açominas,
Usiminas e Cosipa.
Empenhado em manter o crescimento
da economia no ritmo acelerado do período
do “milagre brasileiro” (1968-1973), quando a economia brasileira cresceu em média a
10% ao ano, o general Geisel, que procurava
afastar-se da órbita americana, fechou acordos de financiamento para a compra de equipamentos com governos da Europa e do
Japão. No caso da construção da Açominas,
esses financiamentos externos somaram cerca
de 1 bilhão de dólares.
O orçamento completo para a construção
da Açominas, entretanto, pulou de 1,8 bilhão
de dólares em 1976 para mais de 3 bilhões de
dólares em 1997 e cerca de 7 bilhões de dólares em 1986, quando ela afinal começou a
operar com seis anos de atraso em relação ao
cronograma original. Os equipamentos mais
sofisticados da siderúrgica haviam sido adquiridos no exterior. Parte fora instalada, embora nem tudo funcionasse.
Antes de levá-la a leilão, em 1993, o governo fez com a Açominas o que se tornaria
regra das privatizações – assumiu a maior
parte de suas dívidas. Vendeu a empresa por
muito menos do que investiu, cerca de 800
milhões de dólares, 600 milhões em dinheiro e títulos, mais um pedaço pequeno da
dívida deixada com a companhia, de 200
milhões de dólares.
O comprador principal, que assumiu o
controle da companhia, foi o grupo organizado em torno da empreiteira mineira Mendes Júnior. Hoje, depois de mais de 20 anos
de crise, que incluíram 300 pedidos de falên- >>
16 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
RETRATO DO BRASIL | nO 9
DEPENDÊNCIA 17
18 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
Tadeu Bianconni/ Divulgação / Vale
Agnelli com os chineses da Baosteel:
a Vale se arma contra a Gerdau
>>cia num só ano, o grupo mineiro é uma sombra do que foi no período dos governos
militares quando, junto com a Petrobras e
outros grupos, foi para o Iraque, onde realizou grandes obras. Em 1995, o Mendes
Júnior deixou o controle da Açominas.
O passo decisivo da Gerdau
A Gerdau entrou como acionista da siderúrgica num acordo com o grupo
NatSteel (de Cingapura), em 1997. Investiu 75 milhões de dólares (o sócio cingapurense colocou 70 milhões). A direção do
projeto ficou com uma espécie de fundo
público (o Fundo de Participação Acionária
dos Empregados da Açominas) financiado
pelo BNDES, que fez parte do consórcio
liderado pelo Mendes Junior na época da
privatização.
Em 1998, o Brasil quebrou de novo e
a Açominas entrou em nova crise. Foi quando a Gerdau deu o passo decisivo para sua
aquisição. Com mais 135 milhões de dólares, ficou com 36% do capital da empresa.
No final de 2000, quando o Banco Econômico, que também tinha parte da empresa, fechou após intervenção federal, o Banco Central vendeu os 17% da Açominas
que possuía para a Gerdau, que, conseqüentemente, assumiu seu controle.
Em entrevista publicada pela revista semanal CartaCapital em janeiro deste ano,
Jorge Gerdau explica que o baixo crescimento da economia brasileira é um dos
principais fatores que levaram à internacionalização da produção do grupo. De acordo com o ex-presidente do Instituto Bra-
sileiro de Siderurgia, Luís Vicente, o consumo per capita de aço no Brasil mantémse em torno de 100 kg desde o início da
década de 1980.
A compra de empresas no exterior foi
esporádica até que o grupo completasse a digestão da gigante mineira – foram apenas três
usinas adquiridas entre 1980 e 2002, no Uruguai, Chile e Canadá. As compras dispararam
nos anos recentes, especialmente nos EUA.
Hoje, o grupo Gerdau tem mais de 50
usinas, acima de um quarto delas em território nacional. As demais estão espalhadas por
12 países das Américas e da Europa. Emprega mais de 35 mil funcionários, 40% deles no
Brasil. Obteve em 2006 uma receita de 12,6
bilhões de dólares. Do total produzido, quase 75% são dirigidos ao mercado externo, incluindo os 30% que são exportados da produção realizada em território nacional.
As estatais chinesas, no conjunto, são
hoje os grandes produtores mundiais de aço.
A China está produzindo a um ritmo que
chegará a 480 milhões de toneladas de aço
até o fim do ano, em amplíssima medida
para seu mercado interno. Na sua busca por
negócios fora do País, o grupo Gerdau almeja agora o mercado chinês. De acordo com
o Jorge Gerdau, a dificuldade maior está na
política de Pequim, que não permite que as
usinas siderúrgicas locais sejam compradas
por estrangeiros. “É da própria natureza do
setor siderúrgico na China trabalhar em associação”, explicou Gerdau em entrevista
publicada em O Estado de S. Paulo.
A principal estatal chinesa é a Baosteel,
que produz 22,5 milhões de toneladas anuais
e que, como vimos, associou-se à Vale para
construir uma siderúrgica no estado do Espírito Santo. A multinacional estatal chinesa,
portanto, está ligada a uma multinacional brasileira, disputando com a concorrente
Gerdau, outra multinacional brasileira.
OS CAUBÓIS VERDE-AMARELOS
As multinacionais brasileiras do agronegócio representam a
grande vantagem comparativa global do País?
A
mais recente e espetacular de nossas multinacionais é a Friboi, que atua no mercado de
carnes bovinas, um ramo do agronegócio. É
nesse setor que alguns localizam nossa grande vantagem comparativa global, porque temos terra, matas, pastos, sol, uma taxa de
fotossíntese insuperável e coisas do gênero.
A doutrina de que os países devem se especializar naquilo que produzem melhor é do
inglês David Ricardo (1762-1823) e foi chamada de “teoria das vantagens comparativas”. O
próprio Ricardo usou como exemplo o relaci-
onamento que havia no começo do século
XVIII entre seu país, a Inglaterra, e Portugal.
Essa relação era disciplinada por uma série de
acordos dos quais o mais famoso foi o Tratado de Methuen, de 1703.
Segundo Ricardo, os dois países eram parceiros comerciais. Cada um, segundo sua teoria, deveria produzir o que fazia de forma mais
eficiente. Portugal, dizia ele, era um produtor
de vinhos relativamente mais eficiente do que
de tecidos. E a Inglaterra era mais eficiente na
produção de tecidos do que na de vinhos.
DEPENDÊNCIA 19
EM BRUTO Ao contrário da Argentina, que elevou a
exportação de soja industrializada, o Brasil, cada vez
mais, manda para fora o produto na forma de grão
2008*
2006
2007
2005
2004
2003
2002
2001
2000
O AGRONEGÓCIO BRASILEIRO pode contribuir com cerca de 40 bilhões de dólares para
minorar o desequilíbrio das transações correntes do País neste ano. Esse volume de
dólares é fruto de uma projeção do saldo da balança comercial do agronegócio feita a
partir do resultado do primeiro trimestre de 2008. Boa parte desse saldo, no entanto,
é de exportações de produtos não elaborados. Na carne bovina, por exemplo, as
exportações de carne bruta são mais de 80%. No caso da soja, a situação parece
piorar. O complexo da soja – em grão, farelo e óleo – é o terceiro item da pauta de
exportações do agronegócio em valor exportado, e as vendas externas também são
crescentes. A exportação
da soja em grão, cujo pre11
ço alcançou máximas his10
tóricas na bolsa de ChicaGrão
9
go, cresceram mais de 10
8
vezes desde 1996. Mas
7
EXPORTAÇÃO DE SOJA E
6
farelo e óleo, produtos
DERIVADOS NO BRASIL,
EM US$ BILHÕES (1996-2008)
5
com maior valor agrega4
do, tiveram sua produção
Farelo
3
e comércio quase estag2
Óleo
nados, com modesto cres1
cimento. Na Argentina,
0
ocorreu o movimento
contrário, com o forte
crescimento das vendas
* estimativa / Fonte: Valor Econômico
de farelo e óleo.
1999
No livro Imperialismo, da era colonial ao presente (Zahar Editores, 1979), o economista
americano Harry Magdoff critica a teoria de
Ricardo. Ele diz que o Tratado de Methuen é
o quarto de uma série, celebrada entre os dois
países, que começou em 1642, logo após Portugal livrar-se de um período de 60 anos sob
domínio espanhol, e que Methuen é apenas
o coroamento de um processo de divisão
internacional do trabalho que ele qualifica ironicamente de “ideal”, “festejado até hoje
como exemplo ímpar das virtudes de leis
econômicas independentes e objetivas”.
Magdoff explica que, para manter seu
império, que se espalhava por América, África
e Ásia, e, tendo a Espanha como ameaça,
Portugal fez sucessivas e cada vez mais amplas concessões econômicas e militares aos
ingleses. Antes do Tratado de Methuen, por
exemplo, Portugal ainda tinha uma indústria
têxtil, com incentivos locais e protegida da
concorrência inglesa por leis internas que proibiam a utilização de tecidos estrangeiros.
Após Methuen, foram eliminadas as restrições legais aos tecidos e aos produtos de lã ingleses. Em troca, a Inglaterra reduziu as tarifas aduaneiras dos vinhos portugueses em comparação
com os franceses, a despeito de esses serem os
vinhos dominantes no mercado inglês.
“Como decorrência do tratado, a economia de Portugal, com sua concentração no
vinho e ausência de indústria manufatureira
que lhe teria dado maior flexibilidade econômica, tornou-se crescentemente dependente
da economia britânica.” Portugal pagou a conta dessa dependência com o ouro que extraiu
do Brasil, diz Magdoff. Ele cita o historiador
inglês Christopher Hill: “Especialmente após
a assinatura do Tratado [de] Methuen em
1703, o comércio português, em especial do
ouro do Brasil, contribuiu para transformar
Londres no mercado mundial de ouro em
barra.” Magdoff conclui: “Esse fato se cons-
1998
O Brasil pagou a conta
tituiu em um estímulo valioso para a conquista, pela Inglaterra, da situação de banqueiro
mundial e de principal nação capitalista.”
É como se Portugal fosse uma empresa
mineradora que extraía ouro do Brasil e tentasse, com esse ouro, pagar sua dependência
da Inglaterra. O resultado é que o Brasil ficou
sem ouro. E Portugal nem sequer quitou a
conta com a Inglaterra. Como se sabe, fez
parte do acordo da independência do Brasil,
em 1822, uma negociação tripartite, pela qual
nosso país assumiu a dívida de Portugal com
a Inglaterra.
A JBS-Friboi, a nova multinacional brasileira, apareceu em grande estilo para o público
em meados do ano passado, quando anunciou a compra da Swift por 1,4 bilhão de dólares. O negócio, de fato, tem mais a ver com o
surto de especulação financeira dos anos pós2005 no Brasil do que com nossas supostas
vantagens comparativas. A Swift chegara ao
Brasil na época da Primeira Guerra Mundial.
Era americana e foi criada por caubóis empre-
do BNDES e dos fundos
1996
De acordo com Ricardo, cada um dos países deveria usar seus recursos de modo a obter
a maior produção de tecidos e de vinhos. Se
Portugal pudesse obter vinho e tecidos investindo tudo na produção de vinhos e importando tecidos, esse seria o melhor caminho
para o país. No caso da Inglaterra, o oposto:
ela obteria tecidos e vinhos investindo na produção de tecidos e importando vinhos. Num
sistema de livre comércio, concluía Ricardo,
ambos tirariam o máximo proveito de suas
vantagens comparativas.
José e um dos filhos: a Friboi tem apoio
1997
Tininho Júnior / O Diário de Barretos
RETRATO DO BRASIL | nO 9
20 DEPENDÊNCIA Ometto (centro, de óculos ): o
impulsivo empreendedor criticou a ministra
mente os movimentos de capitais a que o
País está submetido.
Que vantagens o BNDES e fundos públicos vêem ao incentivar o processo de fusão de empresas que implica um aumento
do endividamento nacional? Ainda apoiado pelo BNDESPar e pelos fundos de pensão, o grupo JBS fez novas aquisições no
exterior em março deste ano. Comprou a
National Beef, a Smithfield Beef, americanas, e o Tasman Group, da Austrália, por
1,7 bilhão de dólares. Com isso, tornou-se
a maior empresa abatedora e de vendas de
carne bovina do mundo.
Por que este e não outro?
Mas e daí? A JBS enfrenta visíveis dificuldades no momento. No fim de fevereiro, rolou a dívida, de 750 milhões de dólares, que
contraiu com os bancos para financiar a compra da Swift. Por que o BNDES e os fundos
apoiaram seu novo endividamento?
Um dos argumentos para emprestar ao
JBS é o de que se trata de grupo do agronegócio e o Brasil tem vantagens comparativas
excepcionais nesse setor. Como vimos, essa
é uma conversa antiga. E, a nosso ver, equivocada. Vem dos tempos em que a Holanda
financiava os portugueses que exploravam
cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro à base
de trabalho escravo dos negros africanos. E,
já na época, embora os termos fossem outros, não havia interesse nacional brasileiro
nessa história.
Além do mais, o agronegócio tem inúmeros setores que poderiam ser incentivados
de inúmeras formas. Por que incentivar este
grupo e não aquele outro? O presidente do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea), o economista Marcio Pochmann, por
exemplo, defende que o governo crie uma
estatal para produzir biocombustíveis e aproveite os altos preços do petróleo e da energia
em geral. Nesse setor, está em curso um extraordinário movimento de fusões e incorporações comandado, de um modo geral, pelo
capital privado internacional. A ação mais espetacular nesse campo, no entanto, é de um
empresário brasileiro, Rubens Ometto, dono
da Cosan, a maior empresa de produção de
açúcar e álcool do País.
Ometto é de uma família tradicional de
usineiros paulistas. É um financista, no entanto. Já foi, por exemplo, diretor do
Unibanco. E ergueu a Cosan ao primeiro
posto do setor com uma agressiva política
de endividamento. No fim de 2005, como
muitos outros empresários, ele viu a perspectiva de obter dinheiro mais barato na
Bolsa. Abriu o capital da empresa na Bovespa
vendendo 26,7% da companhia em dezembro daquele ano, com o que conseguiu 740
milhões de reais.
Com isso, no entanto, admitiu na sua
própria empresa minoritários que podiam
querer tomar o seu lugar de controlador num
novo movimento de expansão que fosse executado por ela. Com certeza, havia gente na
praça com essa idéia. Os quatro grandes grupos mundiais do agronegócio, Archer Daniels
Middland (ADM), Bunge, Cargill e Dreyfus,
têm todos posições no agronegócio brasileiro e manifestaram interesse concreto no setor
de biocombustíveis. O americano ADM, por
Divulgação
endedores da região de Chicago em meados
do século XIX. Em 2002, já era comandada
por financistas: passara ao controle de um
fundo de investimentos, o HMTF (Hicks,
Muse, Tate & Furst), com sede em Dallas, no
Texas, conhecido no Brasil por seus negócios
no futebol. Investiu no Corinthians, de São
Paulo, e no Cruzeiro, de Belo Horizonte.
Os que adquiriram a companhia, José
Batista Sobrinho (JBS) e seus três filhos,
são de Anápolis. Caubóis goianos, como
os chamou a revista de negócios Exame. O
pai fundou a Friboi em 1953. No período
de 1982 a 2002, de estagnação da economia
do País, comprou aqui diversas empresas
nacionais e estrangeiras em crise. E, em 2005,
já reestruturada como JBS S.A., a companhia deu seu primeiro grande passo para
fora. Comprou por 225 milhões de dólares
a Swift Armour argentina. A Armour junto com a Swift, a Anglo e a Wilson eram
empresas de capitais americanos e ingleses
que participaram da primeira grande incursão dos capitais internacionais no setor de
carnes na América do Sul, no Brasil e, especialmente, na Argentina.
A JBS foi um dos personagens do extraordinário movimento na Bolsa de Valores de São Paulo no primeiro semestre do
ano passado. Em maio, realizou uma oferta
pública de ações, concertada com o
BNDESPar e com os grandes fundos de
pensão das estatais, com os quais conseguiu
cerca de metade do dinheiro para comprar,
logo depois, a Swift americana. A outra metade veio de uma operação de curto prazo
com quatro grandes bancos.
O que a JBS e seus apoiadores fizeram a
seguir deve ser visto com algum detalhe para
entender a questão das chamadas multinacionais brasileiras dentro da economia nacional. Como se sabe, o cenário internacional
se deteriorou a partir do segundo semestre
de 2007. Ainda no início deste ano, no entanto, tanto o Banco Central como a Presidência da República, como mostramos em
nossa edição do mês passado, difundiram
a idéia de que a situação das contas nacionais era maravilhosa e que tinha sido encerrado o capítulo da dependência externa.
Como os fatos logo demonstraram, isso
não era verdade. Está em curso um grande
movimento de desequilíbrio nas contas externas e o governo deveria analisar detida-
RETRATO DO BRASIL | nO 9
DEPENDÊNCIA 21
RETRATO DO BRASIL | nO 9
exemplo, anunciou explicitamente seu interesse em comprar a Cosan.
Ometto tentou fazer a Cosan dar um
novo salto no segundo semestre de 2007, já
em meio à profunda crise financeira internacional. Criou uma empresa, a Cosan Limited,
com sede nas Bermudas, um paraíso fiscal.
Mudou as regras da captação para garantir que
ficasse com o controle, criando um tipo de
ação especial para si mesmo, a exemplo do
mecanismo que garante aos empresários que
criaram a Google o controle da empresa, mesmo tendo menos de 20% do total das ações
da companhia. E tentou captar 2 bilhões de
dólares na Bolsa de Nova York.
Ometto parece ser um cidadão impulsivo. A revista Época narra o que disse durante
reunião no Palácio do Planalto na qual ele criticou a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff,
por sua falta de interesse em apoiar a geração
de energia elétrica pelas usinas de açúcar e álcool
a partir do bagaço da cana, para evitar a ameaça
de apagão, também no segundo semestre de
2007. “Dilma, eu não vim aqui dizer o que a
senhora quer ouvir, mas para falar o que deve
ser dito. A senhora está pisando no lodo e
não sabe o que tem debaixo dos pés”, teria
dito ele.
não ter muitas ilusões. Dos três irmãos que
controlam a empresa com mais de 60% das
ações, dois vivem no Colorado (EUA).
Há uma enorme disputa pelo agronegócio brasileiro. O setor de carne bovina não é
nem o maior, nem o mais importante. De
cada 100 kg que exporta, 80 kg são de carne in
natura. A Perdigão, sob controle de fundos
de pensão, e a Sadia, controlada pela família
do ex-ministro Luiz Furlan, são as duas grandes empresas do setor de carnes em geral, com
destaque para a carne de frango, da qual o Brasil é o maior exportador mundial. As duas
empresas são basicamente industriais e exportam uma variedade muito grande de produtos. Nesse sentido, são mais importantes.
E para o setor de biocombustíveis em
particular? Por que não criar uma estatal,
por meio da Petrobras? A petroleira tem
em andamento alguns projetos de produção de álcool em associação com cooperativas agrícolas, que favoreceriam os pequenos produtores. Para a produção de
biodiesel, uma estatal pode ser a principal
esperança de que se desenvolva a cultura da
mamona, tanto defendida pelo presidente
Lula e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário há pouco tempo e até agora praticamente esquecida. A safra de mamona
caiu de 2006 para 2007.
O presidente – compareceu a três lançamentos das unidades de produção da Brasil
Ecodiesel, que anunciava com grande estardalhaço a produção de biodiesel a partir de
óleo de mamona, mas demitiu Ildo Sauer, o
diretor da Petrobras que criou os dois programas da estatal citados.
Não por acaso, Sauer foi o principal teórico do PT na formulação de um plano para
aproveitar as vantagens comparativas do País
na geração de energia elétrica em benefício da
grande maioria da população. E foi afastado
da direção da Petrobras também por sua política de crítica ao mercado livre de energia, no
qual os grandes empresários se apropriaram,
a preços baixos, do excesso de energia das
estatais criado com a redução do consumo
após o racionamento de 2001-2002.
PORQUE REINVENTAR A RODA
Uma estatal de biocombustíveis?
Parece claro que Ometto é um empresário empreendedor e corajoso. O lançamento
da Cosan Limited na Bolsa de Nova York é
uma prova disso. Ele conseguiu praticamente a metade do que pretendia, 1,05 bilhão de
dólares. É preciso entender, entretanto, que o
lançamento foi feito, como conta a revista
Época, num momento tão ruim que o órgão
regulador do mercado americano, a SEC, poderia impedi-lo. Ometto tinha de esperar três
minutos após o início das operações da Bolsa
“para receber sinal verde” para a operação. Teria sido a primeira vez que uma empresa lançou ações após a abertura do pregão. Todo
mundo achou que ele abortaria a operação,
diz a revista semanal brasileira.
Por que o governo apoiou a JBS e não a
Cosan Limited? A JBS Friboi pode encher de
orgulho os que acham importante dizer que
“o Brasil tem a maior empresa de abate e venda de carne bovina do mundo”. No momento, o custo concreto dessa afirmação é um
aumento do endividamento externo do País.
No ano passado, a empresa deu prejuízo.
Quanto à remessa de lucros futuros, que em
tese viriam das filiais no exterior para os seus
donos – para o Brasil, portanto –, é preciso
Apesar do sucesso comercial da Embraer, sua história mostra uma
atuação limitada com relação a um campo crítico, o da defesa
O
presidente da General Motors no Brasil, Ray Young, disse no início do ano passado ao jornal Valor Econômico , em nosso País,
“a prioridade são as commodities” e, na China,
“a prioridade é proteger a indústria”. “A China briga por contratos de transferência de
tecnologia”, disse.
Seguramente, o executivo da multinacional americana estava se referindo à necessidade
de proteger mais a indústria automobilística
estrangeira instalada no Brasil, da qual é um
dos dirigentes. E, possivelmente, não estava
sugerindo que aqui se adote uma política de
transferência de tecnologia como a da China –
que levou aquele país a ter uma poderosa indústria automobilística nacional, ao contrário
daqui, onde, atualmente, não há sequer uma
pequena montadora de automóveis brasileira.
A relação da tecnologia com o modelo
de desenvolvimento e com uma política de
incentivo à formação de multinacionais nos
vários setores da economia é complexa. Há
quem defenda que o Brasil se especialize no
agronegócio, em que teria atualmente um
altíssimo nível de desenvolvimento
tecnológico. Embora consideremos essa formulação questionável, por ora pretendemos
destacar o problema da tecnologia apenas
com relação a duas das grandes empresas
verde-amarelas (nossa edição de número
onze tratará especificamente da dependência
tecnológica do País): à Embraer, considerada a nossa mais bem-sucedida multinacional tecnológica, e à das telecomunicações, que
se anuncia.
Começamos pela Embraer. Seus aviões
representam cerca de um terço dos produtos
de alta tecnologica exportados pelo Brasil. E
a empresa tem um papel potencial relativo a
um aspecto que não pode deixar de ser levado em conta quando se fala em multinacionais do País: a defesa nacional.
22 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
Divulgação/ Embraer
Yokota, da Embraer: aviões executivos
para os ricos e muito ricos
Embora a Embraer seja privada e mais
de 55% de suas ações sejam negociadas na
Bolsa de Valores de Nova York, trata-se de
uma empresa construída como uma estatal
federal, dentro de um plano de defesa nacional. Ela foi fundada no Centro Tecnológico
da Aeronáutica (CTA), em São José dos
Campos. O CTA foi criado no governo
Vargas, em 1946, pelo brigadeiro Casimiro
Montenegro. Com o golpe militar de 1964,
Montenegro foi afastado. Seu superior, o brigadeiro Eduardo Gomes, ministro da Aeronáutica do primeiro governo militar, era
um liberal. Achava as idéias nacionalistas de
Montenegro atrasadas. O CTA deveria ser
um centro de reparo de aviões e não tentar
reinventar a roda, produzindo aviões.
Mudar para fugir da sobretaxa
Bagageiro ideal para tacos de golfe
Em 1969, no governo militar seguinte,
mais repressivo e mais nacionalista, a
Embraer foi criada, e o CTA se envolveu
num grande esforço de pesquisa avançada
sobre materiais e processos relacionados com
a defesa nacional.
Em meados de março, Retrato do Brasil foi
à sede da companhia, em São José dos Campos. A empresa, que tinha apenas 400 funcionários nos anos 1970, hoje emprega mais de
23 mil. Na sede, são 14 mil, 70% com segundo grau técnico, 25% universitários, 5% pósgraduados, mestres ou doutores.
Durante a visita, a repórter de RB circula por três enormes hangares. Em um,
vê a fuselagem de dois ERJ 145, para transporte de 37 a 50 passageiros, sendo pintadas de branco. Noutro, seis aviões da família de jatos 170/190, para entre 70 e 122
assentos, já devidamente pintados, com
os logotipos de companhias aéreas de vários cantos do mundo e a barriga carregada de cabos elétricos, motores e sistemas.
Num terceiro, quatro jatos executivos recebem os últimos retoques de funcionários de touca, botas e luvas de pano.
Um deles explica: a indumentária é necessária para preservar o ambiente, porque
os clientes, que pagam entre 3 milhões e 27
milhões de dólares pelos jatinhos, devem
ter a impressão de serem os primeiros a tocar neles. Ele mostra à repórter uma maquete
em tamanho natural do Phenom 300, um
dos últimos lançamentos da empresa, que
foi apresentado no 1º Athina Onassis
de ações ordinárias. Seus principais sócios
são atualmente o Previ, com 13,9% do capital, o Grupo Bozano, Simonsen, com 8,7%,
o BNDESPar, com 5%, e a União, com 0,3%.
Em 2006, a partir de um lucro líquido
consolidado de quase 622 milhões de reais,
a Embraer distribuiu a seus acionistas, sob a
forma de juros sobre o capital próprio e dividendos, mais de 327 milhões de reais, equivalentes a R$ 0,44 por ação ordinária. Os acionistas estrangeiros ficaram com a maior
parte, aproximadamente 55,10% do total (o
valor é aproximado, porque são descontados impostos).
International Horse Show, em agosto de
2007, na Sociedade Hípica Paulista. Seu interior foi desenhado pelo BMW Group Design
Works. “O bagageiro é ideal para pôr os tacos de golfe e os esquis. Foi feito na medida
para este tipo de cliente”, explica.
“A privatização foi a tábua de salvação da
empresa”, diz Satoshi Yokota, vice-presidente-executivo de Planejamento Estratégico e
Desenvolvimento Tecnológico da Embraer.
Ele ingressou na empresa em 1970. Diz que,
antes da privatização, “a Embraer estava afundada em dívidas e seus produtos estavam
ficando obsoletos”.
Com a privatização, passou a ser controlada pelo Bozano, Simonsen, um grupo financeiro associado aos fundos de pensão
Previ e Sistel. O BNDES, como é hábito,
apoiou ativamente o processo: após a
privatização, emprestou cerca de 100 milhões
de dólares à empresa para ajudá-la no desenvolvimento de novos jatos.
Em 2003, o Bozano, Simonsen vendeu
20% das ações ordinárias da companhia a
um consórcio formado pela Dassault
Aviation, Aérospatiale Matra, Thompson
CFS e Snecma, empresas do setor de defesa
francês. Teve enorme lucro: no leilão de
privatização tinha pago R$ 2,14 por ação.
Vendeu por R$ 8,27.
Os franceses venderam sua parte em
2006. A Embraer foi então reestruturada. Seu
capital social passou a ser composto apenas
Graças ao lançamento da família de aviões entre 70 e 120 lugares, a Embraer é hoje
a terceira maior fabricante de aeronaves comerciais do mundo, atrás da americana
Boeing e da européia Airbus. Yokota diz,
no entanto, que essa posição pode não se
manter. Empresas chinesas, japonesas e russas também já desenvolvem aviões para mais
ou menos a mesma faixa de mercado.
A Embraer tem uma joint venture com a
estatal chinesa Harbin Aviation Industry para
fabricar e reparar aviões na China. A sede da
joint venture é a cidade de Harbin. Lá, fica a
única unidade fabril da Embraer fora do Brasil. Foi inaugurada em 2003. A Embraer tinha feito uma primeira grande venda de aeronaves prontas para a China. O governo
chinês passou a sobretaxar a importação de
aviões com até 100 assentos. E a produção
no local, em associação com os chineses, foi
a saída para continuar no mercado de lá.
Exceto 18 aviões já produzidos na China,
todos os outros são montados no Brasil.
Nos últimos dez anos, a Embraer cresceu entre 10% a 15% ao ano. “Em 1996 vendemos perto de 500 milhões de dólares. Em
2007, foram 5,2 bilhões, quer dizer, crescemos dez vezes em onze anos”, diz Yokota.
Das receitas da empresa, 99,4% vêm das vendas externas. A aviação para o transporte de
passageiros respondeu por 64,4% do total
faturado. Só a aviação executiva, inaugurada
apenas em 1999, foi responsável por 16%.
“No Oriente Média, na Rússia, na China e
também no Brasil, tem havido um crescimento significativo dos ricos e dos muito
ricos, ou das empresas que, por dificuldades
do transporte aéreo regular precisam de jatos executivos”, explica Yokota.
O primeiro avião produzido pela
Embraer foi comercial, o Bandeirante, utili-
DEPENDÊNCIA 23
RETRATO DO BRASIL | nO 9
EUA vetaram venda a Chávez
“Como todos os fabricantes de avião, a
Embraer é uma montadora, uma integradora”, explica Yokota. “É uma tendência
quase universal. Veja os fabricantes de tênis.
Praticamente, nenhum faz seus próprios tênis. Eles contratam. As empresas têm de se
concentrar naquilo em que são fortes. E qual
é o forte da Embraer? É concepção, entendimento de mercado, marketing, engenharia,
gestão”, argumenta.
O fato de depender de tecnologias originárias de outros países traz problemas para
VINTE EM QUATRO Um exemplo de concentração de
capital nas empresas multinacionais, o das que
atuam na área de defesa nos EUA
(GD Space)
Lockheed Martin
Northrop Grumman
Boeing
Boeing
Rocwell
McDonnell Douglas
Magnavox
Hughes
(Hughes Space)
(Hughes Eletronics)
E-Sistems
Raytheon
Texas Instruments
Raytheon
1990
1995
2000
2002
Fonte:The Economist (20/6/2002)
General Dynamics
(GD Fort Worth)
GE Aerospace
Martyin Marietta
Lockhead
Loral
LTV
Grumman
Northorp
Westinghouse
Litton
TRW
Nos anos 1990, sob a orientação do Departamento de Defesa do país, diz a revista
The Economist, fez-se a consolidação do já reduzido grupo de 20 empresas do setor:
quatro empresas mais fortes engoliram as menores
os negócios da multinacional brasileira. Em
2006, o governo americano proibiu a
Embraer de vender 36 aviões para a
Venezuela. O governo de Hugo Chávez
compraria 12 AMX-T, última geração da família Tucano, por 300 milhões de dólares, e
24 patrulheiros Super Tucano, por 170 milhões. Segundo a revista IstoÉ Dinheiro relatou na época, uma autoridade do Departamento de Estado americano comunicou à
diplomacia brasileira, em Washington, que
seu país havia decidido vetar essa venda.
Caso a Embraer insistisse, os EUA obrigariam empresas americanas a interromper o fornecimento de componentes para seus aviões, inclusive civis.
Vários itens importantes do Tucano são
produzidos por empresas americanas ou de
países muito próximos dos EUA. O motor
Super Tucano e Phenom: avião de
defesa é problema. O de luxo, sucesso
Divulgação/Embraer
zado em rotas regionais. Depois, veio o
Xavante, produzido sob licença da Aermacchi
italiana, para missões militares de treinamento e ataque. Hoje, a empresa fabrica, além
dos jatos comerciais e dos executivos, os aviões de defesa Tucano, para treinamento e ataque leve, o EMB 145 AEW&C, de alerta aéreo antecipado e controle, o EMB 145 RS/
AGS, para sensoreamento remoto e vigilância ar-terra e o PP-99, de patrulha marítima e
guerra anti-submarina. As vendas das aeronaves de defesa respondem por 6,6% das
receitas da empresa.
Considerando as receitas em todos os
segmentos, os americanos podem ser vistos
como clientes especiais. Em 2007, a Embraer
vendeu 103 aeronaves para os EUA e 103 para
todos os outros destinos somados. Os americanos também são especiais quando se trata
do fornecimento de peças. Dependendo da
aeronave, entre 60% e 70% dos componentes são importados. Turbinas, asas, computadores de bordo, sistemas de controle de
combustível, de iluminação, hidráulicos e de
visão noturna são fabricados na Bélgica, Inglaterra, França, Estados Unidos e Israel.
24 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
zônia colombiana. E, quase um ano depois,
na madrugada de 1º de março deste ano, aeronaves Super Tucano da Força Aérea Colombiana invadiram o espaço aéreo do Equador e atacaram um acampamento das Farc
situado cerca de dois quilômetros dentro
daquele país, num dos mais graves incidentes diplomáticos recentes no continente.
Como se vê, as questões relacionadas
com a defesa nacional são muito sérias e
ajudam a entender porque a Embraer parece conformada a explorar um campo
menos explosivo. O País quer ter uma
empresa multinacional no campo da defesa militar? Desde que os índios perderam para Portugal o território que é hoje
o Brasil, por conta de seus canhões e
caravelas, sabe-se que uma independência nacional efetiva não se constrói apenas com boas intenções.
A EMENDA E O SONETO
A Telebrás poderia ter sido uma múlti das telecomunicações. A tele
verde-amarela parece um remendo no plano de privatização do setor
A
tele verde-amarela que está sendo
gestada nos últimos meses pode ser enxergada
como um esforço do governo Lula no sentido de reorganizar amplamente o setor depois da grande privatização do final dos anos
1990. Antes desse processo, as estatais representavam pouco menos de 100% do
faturamento geral nas telecomunicações brasileiras, aí incluídas as contas da telefonia celular. Essa inclusão é importante quando se quer
debater corretamente a privatização do setor:
as estatais também já desenvolviam a telefonia móvel em ritmo espetacular. Entre 1994 e
a privatização, as linhas de celulares cresceram
a taxas entre 50% a 100% ao ano, pulando de
800 mil para 7,4 milhões.
O sistema Telebrás incluía o Centro
de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CpqD), considerado o
maior núcleo de pesquisas da América
Latina e um dos maiores pólos tecnológicos do mundo nas áreas de telecomunicações e informação, também privatizado e hoje transformado numa fundação sem fins lucrativos.
Para nossa história, por enquanto, basta ver que o processo de privatização não
equacionou o problema representado pelo
acelerado desenvolvimento técnico do setor. Em 1997, realizaram-se os leilões da
tecnologia antiga, fixa. Foram vendidas as
concessões das três grandes áreas de telefonia fixa local em que o País foi dividido
com o reagrupamento das operadoras estaduais. E houve também o leilão da Embratel, a operadora federal da telefonia fixa
de longa distância. Depois, foram realizados sucessivos leilões da tecnologia nova,
do celular. Esses leilões também ocorreram
por áreas, mas diferentes das anteriores. E,
para as sucessivas tecnologias de celular que
foram surgindo. Os últimos leilões, por
exemplo, do final de 2007, referem-se às
concessões dos chamados celulares de terceira geração, que permitem comunicação em
banda larga, com maior capacidade de transmissão de dados.
Hoje, as regras do setor criam barreiras
entre áreas e tecnologias. As empresas concessionárias criticam também o fato de a chama-
da Lei do Cabo, que rege a transmissão de
comunicações para a tevê a cabo, criar uma
barreira a mais para as grandes operadoras da
telefonia fixa, por impedi-las de entrar nesse
setor. Há certo consenso sobre a existência de
uma “convergência de tecnologias” e de que
as diversas leis de concessão acabam impedindo o progresso técnico.
Só “sete ou oito”
E nesse ponto se misturam diversos
interesses na criação da tele verde-amarela.
As multinacionais que compraram pedaços
da Telebrás, como a espanhola Telefonica
por exemplo, apóiam a criação da nova
empresa porque isso implicará a mudança
das leis do setor que lhe permitirá, acredita
a empresa, capitanear o processo que chama de “consolidação do setor”. Seu presidente disse aos jornais que a Telefonica
pode vir a ser uma entre “sete ou oito” teles
destinadas a dominar o mercado global.
“Uma chinesa, uma americana, algumas
européias. O que a gente espera, como
Telefonica, é que a gente seja uma dessas
empresas”, disse.
Difícil é vislumbrar no processso um
interesse nacional, brasileiro, claro. A tele
verde-amarela deve nascer de um acordo
que envolve o Citibank, um banco americano. O Citibank tem um objetivo cristaliEugenio Savio/ Folha Imagem
é feito no Canadá por uma subsidiária da
americana Pratt-Whittney. A hélice e o sistema de visão noturna também usam tecnologia americana. Os assentos ejetáveis são da
britânica Martin Baker. O sistema de aviônica
é da israelense Elbit.
Chávez denunciou publicamente a pressão. Pretendia, com a ajuda da Embraer, criar
uma indústria aeronáutica local, com aeronaves não apenas militares. Estava sendo negociada a transferência de tecnologia dos modelos Brasília e Ipanema.
Apesar de não ter conseguido efetivar o
negócio com a Venezuela, no mesmo ano, a
Embraer vendeu 25 Super Tucano à Colômbia, aliada dos EUA no continente. Em janeiro de 2007, uma esquadrilha de Super
Tucano da Força Aérea Colombiana atacou
bases do grupo rebelde Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), na Ama-
DEPENDÊNCIA 25
Julia Moraes / Folha Imagem
RETRATO DO BRASIL | nO 9
no. Enfrenta perdas brutais no mercado
global, a despeito dos excelentes lucros do
banco no Brasil no ano passado. E quer
mandar o maior volume possível de divisas para auxiliar sua matriz. Por isso quer
vender sua participação numa das empresas que formariam a tele verde-amarela, a
Brasil Telecom (BrT).
O Citi está, até o momento de fechamento desta edição, no comando da BrT.
Desbancou desse posto outra instituição
financeira, local, o banco Opportunity, de
Daniel Dantas. Isso foi feito, tudo indica,
por orientação do governo Lula, que desmantelou o esquema montado no governo Fernando Henrique.
Quem ganha, quem perde?
O Oportunity funcionou como uma
espécie de pivô no esquema básico de
privatização. De um lado, o governo mobilizou recursos oriundos dos fundos de
pensão dos trabalhadores das estatais e do
BNDES para financiar os chamados “sócios estratégicos”, empresas geralmente estrangeiras encarregadas de assumir o negócio privatizado. No meio disso ficava o
gestor do fundo de financiamento (papel
assumido pelo Opportunity), que era encarregado de definir o sócio estratégico.
Uma lei aprovada na época impediu que,
mesmo sendo financiadores destacados
dos negócios, os fundos de pensão de serem eles mesmo os gestores dos recursos.
No arranjo que se propõe para a tele
verde-amarela, o comando sairia do Citi para
uma dupla, os grupos de Carlos Jereissati,
grande empresário cearense, e de Sérgio
Andrade, da Andrade Gutierrez, conhecida
empreiteira de Minas Gerais. Os dois são
os principais acionistas do grupo Oi.
Jereissati e Andrade (p. anterior): eles
devem ficar com a tele verde-amarela
Opportunity, de um lado, Citi e fundos
de outro, fariam um acordo para zerar brigas jurídicas envolvendo o controle da BrT
por algumas centenas de milhões de dólares. Os dois bancos cairiam fora do negócio
com suas partes em dinheiro. Os fundos
ficariam. O BNDESPar poria mais uma
meia dúzia de bilhão de reais. Com isso,
surgiria uma nova empresa, resultado da
fusão da BrT com a Oi. E, de sua parte, o
governo reformularia (já propôs, em parte)
as leis do setor, satisfazendo as multinacionais que estão fora do negócio e viram nele
uma chance de as leis serem mudadas.
Frigidos os ovos, quem ganha, se o
negócio der certo? Em relação às demissões de trabalhadores, há uma negociação
para minimizá-las, o que é um ponto positivo. Evidentemente, não se pode garantir que, aberta a porta para um grande
rearranjo do setor, a economia nas demis-
ALÉM DO TRILHÃO Os fundos de pensão das estatais,
Previ à frente, são os maiores sócios do grande capital.
Com os privados, podem chegar a 50% do PIB em 2020
O PREVI – CAIXA DE Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil – é o maior
fundo de pensão brasileiro. No fim de 2007, tinha 140 bilhões de reais em ativos –
ações de empresa, imóveis, títulos e empréstimos. Esse valor equivalia a cerca de um
quarto de todos os ativos pertencentes aos mais de 400 fundos de pensão do país.
A partir do processo de privatização das estatais nos anos 1990, em que foi peça
chave, o Previ se tornou um dos grandes investidores do País. Em 2006, re150
cebeu cerca de 180 milhões de reais
EVOLUÇÃO DO PATRIMÔNIO DO
de lucros da Vale do Rio Doce, 230
FUNDO PREVI, EM R$ BILHÕES
milhões da Petrobras, 415 milhões do
(2003-2007)
Banco do Brasil, 75 milhões do Itaú e
100
assim por diante.
Segundo a Associação Brasileira das
Entidades Fechadas de Previdência
50
Complementar (Abrapp), os fundos no
Brasil reúnem cerca de 2,6 milhões de
associados e pagam benefícios a 650
mil trabalhadores. O valor dos ativos
0
2003 2004 2005 2006 2007
reunidos por esses fundos chega a 416,4
bilhões de reais, o que representa 17%
Fonte: Previ
do PIB nacional (70% pertencem aos
fundos de empresas estatais e 30%, ao das instituições do setor privado). Segundo
estimativas da Abrapp, em 2020 os ativos administrados pelos fundos de pensão
podem chegar a 1,8 trilhão de reais, o que representará 50% do PIB.
26 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
MÚLTIS À CHINESA Para internacionalizar empresas,
os chineses dizem que é preciso o “três-três” e
“primeiro, o difícil, e, depois, o fácil”
O PRIMEIRO PASSO DA estratégia chinesa batizada de “três-três” é a busca de
padrões internacionais de qualidade pela obtenção de três certificações-chave: a de
qualidade garantida, a internacional dos produtos e a internacional dos padrões de
testes. O segundo passo determina que o uso da tecnologia pela empresa deverá se
dar em três etapas: importação e assimilação da tecnologia, absorção e imitação e
aquisição de conhecimento e inovação. A importância
desse passo é manter a pesquisa e o desenvolvimento
tecnológico chinês acima dos padrões internacionais. O
terceiro passo do “três-três” também se dá em três partes e trata da internacionalização do mercado da empresa: um terço dos produtos será produzido e vendido
no mercado interno, outro terço será feito na China e
destinado ao mercado externo e o terço restante produzido e vendido fora da China.
De acordo com o o folheto Chinese enterprise groups –
briming with vitality (New Star Publishers, 1998), a estratégia “primeiro, o difícil, e, depois, o fácil” para a conquista do mercado internacional prevê que os produtos
da empresa entrem primeiro nos países desenvolvidos,
de mercados mais competitivos, consolidem ali sua marca e ganhem fama mundial. E, depois, na parte fácil,
avancem sobre os mercados dos países em desenvolvimento. Por esses caminhos, a
Haier, produtora de geladeiras, condicionadores de ar, freezers, máquinas de lavar,
aquecedores, televisores e outros eletrodomésticos, chegou lá. Tem de 20% a 30%
do mercado interno, 124 subsidiárias na China e 26 no exterior, produzindo 7 mil
tipos de eletrodomésticos.
sões na “nossa” tele compensaria as que
ocorreriam no processo de monopolização como um todo.
Há ainda em negociação a questão da
produção local de conteúdo para tevê, que
seria incentivada. Se tal ocorrer, haverá um
benefício também claro: nas contas externas do País, o custo da importação de
audiovisuais é cada vez maior. Mas não se
pode deixar de lado também a questão do
conteúdo político e ideológico da programação. Se a tele verde-amarela só tem essas
cores no que se refere à nacionalidade dos
patrões que a controlam, mas não contribui para a formação de uma verdadeira cultura nacional, democrática e popular, não
haverá grande ganho, a despeito da economia de divisas.
O caminho brasileiro para a formação
de uma empresa nacional expressiva nesse
campo de vanguarda, que é o das teleco-
municações, deve ser comparado com o
de outros países. Em 1997, como no Brasil, a China também alterou seu sistema
estatal do setor. Separou também a telefonia fixa e a celular. Na telefonia fixa também dividiu o país por áreas, mas não
desmontou suas estatais.
Na telefonia celular, por exemplo,
criou a China Mobile Communications
Corporation (CMCC), ou simplificadamente, China Mobile, o nome em inglês. A empresa foi desmembrada da
China Telecom, o monopólio inicial.
Hoje a CMCC, com sede em Hong
Kong, tem 67,5% do mercado continental de telefonia móvel da China. Em
número de assinantes é a maior do mundo, com cerca de 380 milhões no início
deste ano. Em termos de faturamento,
fica em segundo lugar no planeta, perde
apenas para a Vodafone, que tem sede
na Inglaterra, valor de mercado de cerca
de 150 bilhões de dólares e opera em
duas dúzias de países.
A CMCC está em processo de internacionalização. O governo chinês abriu o mercado do país à concorrência. A Vodafone, por
exemplo, comprou 3,3% da CMCC. E a
CMCC comprou, no início de 2007, por
cerca de 250 milhões de dólares, a Paktel,
empresa de telefonia móvel do Paquistão,
criada no país pela inglesa Cable&Wireless.
Nem China, nem Espanha
O desenvolvimento tecnológico da
China nessa área é enorme. O país completou sua rede nacional de telecomunicações de alta capacidade e alta velocidade,
baseada principalmente em fibra ótica e,
secundariamente, em satélites e micro-ondas digitais. O setor cresceu a taxas de 20%
ao ano e chegou ao nível dos países desenvolvidos, com digitalização, banda larga e
controle de programas.
O roaming da CMCC, a tecnologia que
permite aos usuários utilizarem seus aparelhos fora da área em que estão cadastrados, é um dos mais modernos. O sistema
utilizado é o GSM (global system for mobile
communications) e cobre 219 países e regiões.
A empresa oferece também o serviço de
transferência de dados GPRS, mais avançado, para 138 países e regiões.
O caminho brasileiro pode ser comparado também com o da Espanha. A economista Marina Szapiro defendeu uma tese
de doutorado no Instituto de Economia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
na qual avalia os desenvolvimentos
tecnológicos obtidos com a privatização da
telefonia naquele país e no Brasil.
A Telefonica espanhola adquiriu o serviço público existente por inteiro, não houve um desmembramento como no Brasil,
o que talvez se explique pela diferença de
tamanho entre os dois países. Mas, ao contrário daqui, não seguiu basicamente um
plano definido pelo mercado, mas a política industrial do governo espanhol. Ela
comprou equipamentos e ajudou, com
capital, a criar e manter 29 empresas de desenvolvimento de tecnologia, por meio de
sua subsidiária, a Telefonica Investigação e
Desenvolvimento.
A economista disse ao jornal Valor
Econômico que isso levou a um fortalecimento do sistema de inovação de telecomunicações no País. Além disso, a
DEPENDÊNCIA 27
RETRATO DO BRASIL | nO 9
Telefonica atuou com a finalidade de levar fabricantes de equipamentos espanhóis a se tornarem fornecedores nas subsidiárias que comprou com a privatização
na América Latina.
No Brasil, afirma a pesquisadora, tentou implantar aparelhos de telefones públicos fabricados na Espanha. Mas, desistiu, porque o Brasil desenvolveu no CPqD
tecnologia mais avançada, que utiliza cartões magnéticos.
Até o ano passado, o governo espanhol
tinha a chamada golden share na operação da
ex-estatal privatizada, o que lhe permitia
participar de decisões estratégicas da
Telefonica, especialmente no caso de compras de empresas de outros países ou ameaça de desnacionalização da tele espanhola.
de assumir o controle da Vale. Empresa que
nem sequer é dirigida por um “sócio estratégico”, como se exigia, em tese, nas
privatizações liberais. Ela é comandada por
um financista, da Bradespar, cuja entrada no
bloco de controle da Vale é, inclusive, discutível do ponto de vista legal. Tendo participado
da operação de avaliação da Vale, o Bradesco,
dono da Bradespar, estava legalmente impedido até mesmo de participar do leilão de venda da companhia.
Somente agora, depois de quase cinco anos
e meio de mandato, Lula parece ter liberado a
Eletrobrás, holding estatal do setor elétrico, que
diz pretender transformar numa multinacional, a tomar a iniciativa em projetos de geração de energia. A empresa é o gigante da geração e transmissão de eletricidade. Tem 50%
de Itaipu. E quase 100% da Chesf, de Furnas
e da Eletronorte, empresas que operam no
Nordeste, Centro e Norte do Brasil, com usinas gigantescas.
PARA ONDE ELAS VÃO?
O Brasil não tem norte na política que diz respeito às multinacionais.
Sem norte, como dizia Sêneca, não há vento que ajude
fusão que também serve para justificar ações
em defesa, por exemplo, da multinacional verde-amarela nas telecomunicações. Se não pode
haver distinção legal entre empresas estrangeiras e nacionais, não existe base legal para se
incentivar a existência de empresas nacionais.
O governo Lula não fez nenhum movimento no sentido de mudar a Constituição
nesse ponto. Com relação às empresas estatais, particularmente, também não fez nenhuma grande alteração do quadro. Não mudou
a orientação política do BNDES e a dos fundos de pensão das estatais, sobre as quais tem
grande influência, no sentido, por exemplo,
Mudança complexa
Reprodução
A
política liberal brasileira, praticada efetivamente entre 1990 e 1998, aprovou as bases
legais para se descartar o sentido nacional da
ação estatal. Em 1995, por iniciativa do governo Fernando Henrique, foi eliminada a cláusula da Constituição da redemocratização do
País, de 1988, que permitia a distinção entre as
empresas instaladas no Brasil com capital sob
o controle de nacionais e as instaladas no País
sob o controle de estrangeiros. Do ponto de
vista legal, portanto, compreende-se a confusão da ministra Dilma Rousseff, que se refere
a “nossas empresas” quando fala tanto das
nacionais quanto das estrangeiras. Uma con-
O País teve, entre 2001 e 2002, um racionamento de energia espetacular, que durou oito meses. Hoje, ainda tem de torcer
para que as chuvas de verão sejam boas,
para que a ameaça de apagão não volte. A
despeito desse cenário, somente no início
deste ano o governo federal tomou a iniciativa de apoiar a lei que reforma os procedimentos adotados no período liberal e permite que a estatal seja majoritária em consórcios que disputam obras no setor.
Ainda assim, diz o ministro de Minas
e Energia, Edison Lobão, o governo planeja que a empresa lidere apenas a construção de usinas com os vizinhos Argentina, Uruguai, Bolívia e Peru, em um processo de integração latino-americana.
A adoção da política liberal, que descarta uma ação nacional dos países em desenvolvimento, entendida como uma defesa
de interesses locais próprios em contraposição aos interesses das potências imperialistas e suas empresas, não é uma mudança
simples, que um governo como o do presidente Lula, que chegou ao Palácio do Planalto por meio de amplas negociações e acordos com o grande empresariado, adotaria
de uma hora para outra.
A formação do sistema de empresas internacionais atual nasce do movimento de
Getúlio e Roosevelt: a guerra ajudou
a criar as grandes estatais
28 DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | nO 9
UM PRÁ CÁ, SETE PRÁ LÁ O que as múltis
brasileiras trazem para o País é uma fração do que as
estrangeiras mandam para fora
concentração de capitais do fim do século XIX
nos países centrais do sistema capitalista, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, França
e Japão.
A essa altura, países emergentes de hoje,
como Brasil, Índia e China, eram colônias
abertas ou disfarçadas das principais potências
imperialistas. O Brasil, por exemplo, transitava do Imperio inglês para se colocar sob a
dependência americana.
A primeira fase de formação das multinacionais se encerra com a Segunda Guerra
Mundial. Entre o fim do século XIX e as
primeiras décadas do século passado, houve um intenso processo de aliança e luta
envolvendo os grandes trustes e seus Estados nacionais, na disputa pelos mercados
mundiais.
Inicialmente, as gigantescas empresas dos
diferentes países se uniram para a formação
de cartéis, para ação combinada. Os fabricantes de equipamentos elétricos e as “sete ir-
2007
2000
1990
OS FATOS DESMENTEM a tese de que as multinacionais brasileiras vão compensar
as crescentes remessas de lucros das suas congêneres estrangeiras para fora do País.
No período entre 1980 e 2007, enquanto as remessas de lucros e dividendos do
investimento direto estrangeiro no País evoluem
para perto de 20 bilhões de dólares, as remesRecebida de filiais
sas das grandes empresas brasileiras para o País
3
brasileiras no exterior
não chegam a 3 bilhões de dólares. A razão
para essa desproporção é que as multinacio0
nais brasileiras são poucas, pequenas e estão
concentradas em áreas de matérias-primas e
produtos semi-elaborados.
Entre as cem maiores empresas mundiais por
-5
valor de mercado, 42 são americanas, inclusive
as cinco primeiras. Todas são multinacionais. A
Enviada por filiais
seguir, por origem dos capitais, vem Reino Uniestrangeiras para o
-10
do, com dez empresas, e França e Japão, com
exterior
seis. Depois, Alemanha, China e Suíça, com cinco empresas cada. O Brasil tem duas: a PetroEVOLUÇÃO DAS RECEITAS E
DESPESAS COM RENDAS DE
-15
bras, a 50ª, e a Vale, a 74ª.
INVESTIMENTO DIRETO, EM
Há outras diferenças, de natureza qualitativa, enUS$ BILHÕES (1980-2007)
tre as múltis do Brasil e as das potências capitalistas. Enquanto as brasileiras presentes entre as cem
-20
maiores se destacam em apenas dois ramos, o de
petróleo e gás e o de mineração, as americanas,
Fonte: Banco Central
por exemplo, estão espalhadas por treze.
mãs” do petróleo, por exemplo, tentaram evitar
o conflito com regras para a divisão dos mercados centrais e das colônias. A seguir, prevaleceu o conflito. Os Estados nacionais imperialistas, na defesa dos interesses de suas empresas, promoveram duas guerras mundiais,
intermediadas por outro evento cataclísmico,
de outro tipo, a quebra do sistema financeiro
mundial, em 1929.
Esse período de guerras e ruptura financeira permitiu o nascimento, em 1917, com a
Revolução Russa, e a ampliação, posterior à
paz de 1945, de um sistema econômico dissidente: o do bloco soviético, capitaneado pela
URSS, que incluiu as nações do Leste europeu, a China e a Coréia do Norte.
Do lado onde ficou o Brasil, no bloco
“ocidental”, sob a nova hegemonia, americana, criou-se uma ordem nova, regulada
economicamente. Surgiram o FMI, o Banco Mundial e o antecessor da Organização
Mundial do Comércio (OMC), o Acordo
Geral de Comércio e Tarifas (Gatt, na sigla
em inglês).
Esse acordo atribuiu aos Estados dos
países capitalistas hoje chamados de emergentes, como Brasil e Índia, um papel ativo
no desenvolvimento econômico. Os organismos de crédito internacional ajudaram
com empréstimos em moedas fortes a importação de máquinas e equipamentos industriais necessários a projetos de desenvolvimento da infra-estrutura industrial – siderúrgicas, hidrelétricas, por exemplo, geralmente estatais. Foi nesse período que surgiram
as nossas atuais multinacionais de origem
estatal, a Petrobrás e a Vale, assim como a
Eletrobrás e a CSN. E que se instalaram aqui,
para aproveitarem-se das novas condições,
multinacionais estrangeiras, como as do setor automotivo, que passaram a produzir
dentro do território nacional.
“Anos dourados” e crise terminal
O intervalo de 40 anos, que vai da Segunda Guerra Mundial a meados dos anos 1970,
foi marcado, no lado ocidental, primeiro por
uma grande expansão econômica liderada
pelos EUA. Foram pelo menos duas décadas
de “anos dourados”. Já no fim da década de
1960, esse movimento perdeu sua força, e,
em meados dos anos 1970, ocorreu uma crise
aberta na hegemonia americana. Os EUA romperam de modo unilateral os acordos monetários do pós-guerra.
A crise da hegemonia americana parecia
ser terminal. O país sofreu uma derrota militar espetacular no sudeste asiático. No início
de 1975, seus últimos soldados saíram do
Vietnã, a despeito de os EUA terem colocado
ali meio milhão de homens armados.
Os dez anos de crise americana, entre
meados dos anos 1960 e meados dos anos
1970, foram o período do apogeu dos regimes militares da América Latina. No Brasil,
os governos militares aplastaram – prenderam, desterraram, torturaram, mataram – pessoas de tendências nacionalistas e de esquerda, nas classes dominantes, no movimento
popular, no Congresso, no funcionalismo público, nas estatais. E por algum tempo promoveram um grande desenvolvimento econômico, a taxas iguais às que os chineses se
acostumariam a partir do fim dos anos 1970.
Foram criadas inúmeras estatais. Algumas novas, apoiadas em novas tecnologias,
para além dos setores ligados às grandes mudanças tecnológicas dos séculos anteriores,
que revolucionaram as indústrias têxtil, de
DEPENDÊNCIA 29
RETRATO DO BRASIL | nO 9
Reprodução
mineração, elétrica, petrolífera, siderúrgica e
química. Foi o caso da Telebrás. E das primeiras estatais de computação e informática,
como a Cobra.
Nesse período, entre as grandes empresas
no Brasil, a disputa ocorre principalmente entre
estatais e multinacionais de capital estrangeiro. A partir de meados dos anos 1970, o crescimento da economia brasileira se desacelerou,
embora os governos militares tentassem
manter o ritmo por quase uma década.
No fim dos anos 1970, no entanto, começou no lado ocidental um intenso movimento por reformas liberalizantes na economia. Já no início dos anos 1980, o Estado
americano promoveu uma espetacular elevação dos juros básicos da operação do sistema,
que são pagos nos títulos do Tesouro do
país. Isso fez desmoronar o sistema financeiro dos países emergentes do hemisfério ocidental, que, a partir de meados da década de
1970, apoiara-se num acelerado endividamento externo. O mesmo ocorreu com países do
Leste europeu que se haviam endividado a
taxas de juros flutuantes.
O Brasil quebrou em 1982 e a economia
do País e de suas grandes empresas entrou
em crise profunda. O problema foi mais grave com as estatais, que haviam se tornado
instrumento de combate à inflação, com contenção de seus preços, e de captação de recursos externos, com grandes projetos precários,
como vimos com detalhes no bloco que tratou da siderurgia brasileira.
O retorno de Deng
Do lado oriental aconteceu algo semelhante. Houve uma expansão inicial do sistema.
Em meados dos anos 1960, no entanto, a
expansão se desacelerou e rompeu-se o acordo URSS-China. O país asiático começou a
seguir uma trajetória diferente, crítica do modelo de industrialização seguido a partir da
Revolução Russa. A China foi dividida em
cerca de 15 mil comunas rurais. Com isso,
subordinou-se o desenvolvimento econômico ao desenvolvimento político. Essa transformação foi feita sob intensa agitação político-cultural, dirigida por Mao Zedong. Esse
movimento fracassou.
No final dos anos 1970, Deng Tsiaoping,
que fora afastado do centro do poder chinês,
retornou ao primeiro time do governo e do
Partido Comunista. Em 1978, durante reunião do plenário do Comitê Central do PCC,
Deng apresentou e obteve a aprovação da tese
que desmontou as comunas e estabeleceu o
sistema de posse coletiva das áreas rurais, mas
com arrendamento da terra aos camponeses.
O período de 1991 a 2001, entre o desmoronamento da URSS e os atentados da Al
Qaeda contra os EUA, pode ser resumido
como o de apogeu do Império Americano e
do sistema econômico sobre o qual ele se de-
senvolve. Houve um enorme progresso técnico com a informática e as telecomunicações.
Houve uma expansão financeira sem precedentes na história, tendo como centro as grandes bolsas americanas de Nova York e Chicago. Surgiram novas empresas globais americanas no topo das listas mundiais, em especial
as de novas tecnologias, como a Microsoft, a
Intel, a Google e as que se aproveitam da
financeirização dos negócios, como a Enron,
no setor de gás e energia. O setor de defesa se
agrupou em uma dúzia de gigantes intimamente associados ao Departamento de Defesa americano.
Do outro lado, no antigo campo comunista, caiu o simbólico Muro de Berlim, em
1989, e a URSS desmoronou em 1991. Na
China, o movimento de reforma do setor
estatal aparentemente foi coroado de êxito. O
país pareceu aproveitar o que tinha feito de
bom nos grandes movimentos comandados
por Mao Zedong, que deixara a China, por
exemplo, com mais de 200 empresas produtoras de automóveis. E eliminou o que esse
sistema tinha de idealista e ineficiente: a pequena escala e o baixo nível tecnológico.
Foi realizada uma reforma ampla, pela qual
as grandes empresas do país foram reorganizadas nos atuais 128 grandes grupos. Cada
um deles tem dezenas de empresas, que
disputam mercados, buscam tecnologia, apoiando-se nas idéias da reforma e da abertura para
o exterior.
Há um grande plano de governo para o
desenvolvimento de suas empresas estatais.
Veja-se o caso da defesa. A Embraer está associada à Harbin Aircraft Manufacturing
Corporation (HAMC) porque a China buscou um fabricante internacional com experiência e tecnologia na produção de aeronaves comerciais medias, para as faixas em torno de
100 passageiros. A HAMC foi fundada no
período de Mao, em 1952.
A HAMC é uma das empresas da grande
estatal China Aviation Industry Corporation
II (Avic II), espécie de holding das empresas de
aviões pequenos, de aviões para transporte
comercial de porte médio e helicópteros. A
HAMC é uma empresa grande. Tem 16 mil
empregados. Uma de suas subsidiárias é a
Hafei Motor, um dos maiores fabricantes de
automóveis da China. Na lista de produtos
da Harbin, hoje, está o ERJ 145, produzido
em joint venture com a Embraer.
Geisel na Alemanha: com a crise dos
EUA, grandes projetos para rolar a dívida
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Moacyr Lopes Jr. / Folha Imagem
Clinton e Fernando Henrique, em 1999:
que fazer, depois da quebra de 1998?
Após 2001, um furacão
O Brasil não tem um plano de desenvolvimento independente para suas empresas.
Está paralisado pela indefinição, inclusive, do
significado de empresa nacional. O atual governo parece querer ter empresas nacionais,
mas sustenta a reforma constitucional dos
governos liberais que impede que se distingam empresas nacionais de estrangeiras. O
que parece dominar o desenvolvimento das
empresas multinacionais chamadas de brasileiras são intervenções basicamente do mercado financeiro. Sem um plano claro, sem um
norte, como dizia o filósofo romano Sêneca,
não há vento que ajude.
Nos últimos anos, o mundo foi assolado por um furacão. Em setembro de
2001, terroristas em nome da fé muçulmana atacaram, entre outros alvos, com
uma precisão inacreditável o centro financeiro do império americano, Nova York.
A seguir, o presidente dos EUA, George
W. Bush, que tinha perdido as eleições pelo
voto popular e ganho apenas no Colégio
Eleitoral, unificou o povo americano a
Lula e Agnelli: para onde vão o País e
suas multinacionais?
pretexto do combate ao terrorismo e invadiu dois países, o Afeganistão e o Iraque.
As guerras, inicialmente, tiram os americanos da recessão que chegara após o esgotamento do inacreditável ciclo de expansão
dos anos 1990.
As duas guerras contra países do “Eixo
do Mal” custaram até o momento, estima
o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, 1
trilhão de dólares. Elas deram origem a um
novo ciclo de expansão, mas também aprofundaram os problemas do desenvolvimento americano apoiado no endividamento do Estado. A China desponta no
cenário global exatamente após o início da
crise nas bolsas internacionais do fim dos
anos 1990 e da recessão na economia americana dos anos 2000.
Divulgação / Vale
A Avic II tem 5 subsidiárias, incluída a
Harbin. A Avic I é muito maior. Fabrica aviões
pesados, inclusive militares. Tem projeto de
construir aviões comerciais grandes, como os
da Boeing e Airbus. Agrupa mais de 90 empresas que fabricam turbinas, material elétrico, instrumentos, aviônica, forjaria, fundição.
São empresas de pesquisa, de comercialização
e marketing.
O comércio internacional dos chineses,
que já havia se expandido nos anos 1990,
empina no começo do século XXI. Como
o país está na fase de desenvolvimento de
uma infra-estrutura material básica, é gigantesco o seu consumo de commodities, de minérios, de ferro, de aço.
Essa é uma oportunidade para o Brasil
se acoplar a esse desenvolvimento como fornecedor desses produtos primários ou
semi-elaborados. Será isso que pensam os
comandantes e articuladores das chamadas
multinacionais verde-amarelas, como o presidente Lula e o presidente da Vale, Roger
Agnelli? É para lá que eles vão?
O banqueiro George Soros disse recentemente que a leitura dos escritos de Karl
Marx ajuda a compreender as regras do capitalismo global de nossos dias. Marx foi um
crítico da teorria das vantagens comparativas. Disse que os preços dos produtos da
terra – agrícolas, minerais, hídricos – realizam-se no mercado. Dessa forma, nossos
minérios, nossas placas de aço se transformam em valor no mercado global de hoje,
cujo centro está visivelmente deslocado para
a China, para a Ásia. Nesse sentido, por exemplo, o minério de ferro brasileiro em relação
a produtores como a Austrália tem uma desvantagem comparativa, não uma vantagem.
O Brasil faria melhor se, em vez de se acoplar
de forma subalterna ao desenvolvimento chinês, procurasse, como os chineses, um desenvolvimento com independência.
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