XVI Jornadas sobre Alternativas Religiosas en América

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XVI Jornadas sobre Alternativas Religiosas en América
XVI Jornadas sobre Alternativas Religiosas en América Latina
GT 7- Musulmanes en América Latina: identidades, conversiones y práticas religiosas
Islã, gênero e a construção de autoridades religiosas femininas: uma abordagem
comparativa entre Brasil e Síria
Gisele Fonseca Chagas
(Universidade Federal Fluminense, [email protected])
Esta comunicação objetiva analisar comparativamente os dinâmicos processos de
construção
de
autoridades
religiosas
entre
mulheres
muçulmanas,
levando
em
consideração os diversos elementos teológicos, doutrinais e práticos que são mobilizados
por elas em dois diferentes contextos etnográficos: Damasco, na Síria, e Rio de Janeiro,
Brasil. Em Damasco, a noção de conhecimento religioso inspirada no Sufismo, vertente
mística do Islã, exerce um papel fundamental neste processo, permitindo com que líderes
religiosas construam suas redes de atuação e de seguidoras, cujo efeito social mais visível
é a islamização da esfera pública síria. Já no Rio de Janeiro, a construção de lideranças
religiosas femininas é pautada nas múltiplas interseções entre os aspectos locais e globais
do Islã, bem como a partir das formas que lidam com tensões entre etnicidade e
conversão, por exemplo.
Desse modo, esta apresentação pretende contribuir para o
debate acerca das várias nuances que envolvem os mecanismos locais e globais de
produção e transmissão de conhecimento religioso islâmico, bem como os espaços que são
abertos para atuação de mulheres muçulmanas como agentes neste processo, seja em
comunidades muçulmanas no Brasil, seja em sociedades muçulmanas do Oriente Médio. Os
dados etnográficos apresentados foram recolhidos por mim durante 14 meses de trabalho
de campo em Damasco, entre 2009 e 2010; bem como o trabalho feito na comunidade
muçulmana do Rio de Janeiro, nos anos de 2005 a 2006.
Introdução
Nas últimas décadas, uma renovada atenção acadêmica tem sido dada à pluralidade
de formas nas quais identidades e experiências religiosas de “mulheres muçulmanas” são
construídas em diferentes universos geográficos e culturais, para além da dicotomia
“opressão”/ “resistência”1. Tais estudos têm nos fornecido análises mais nuançadas a
respeito da complexidade de elementos históricos, políticos e sociológicos envolvidos neste
processo, indicando a necessidade de pensarmos as diferentes arenas sociais criadas pela
combinação e confrontação entre as identidades religiosas de muçulmanas e outros fatores
como gênero, etnicidade, nacionalismo, acesso à educação e ao mercado de trabalho, por
exemplo. (KEDDIE & BARON, 1991; AHMED, 1992; ABU-LUGHOD, 1996; MOGHADDAM, 2003)
No entanto, pouca atenção acadêmica tem sido dada às questões que envolvem as
vidas religiosas de mulheres muçulmanas a partir de suas próprias perspectivas
(BOTTCHER, 1998; RAUDVERE, 2002; MAHMOOD, 2005; CHAGAS, 2011). Quais rituais e
espaços sagrados (mesquitas e santuários) muçulmanas participam? Como elas contribuem
para produção de entendimentos sobre o Islã? Quais relações de poder são construídas a
partir da mobilização pública de conhecimento religioso? Que posições de autoridade
religiosa são abertas à participação de mulheres no islã?
Um sistema religioso transnacional como o Islã deve ser apreendido a partir dos
processos de re-imaginação e ressignificação dos elementos constitutivos de sua tradição
normativa que são elaborados por seus adeptos a partir das condições locais de vivência
religiosa. Nestes processos estão em jogo a grande variedade de interpretações teológicas
e práticas rituais que atravessam o Islã como um todo e que influenciam localmente nos
caminhos pelos quais as identidades e formas de autoridades religiosas são construídas e
vivenciadas pelos agentes sociais.
Apesar do Islã não possuir uma organização institucionalizada de sacerdotes tal
como ocorre no Cristianismo; sua organização em torno de uma revelação codificada
discursivamente em textos sagrados atribui às autoridades religiosas papéis de guardiãs da
tradição, sendo responsáveis para que os ideais formativos da religião sejam
permanentemente transmitidos. Neste aspecto, o conhecimento religioso publicamente
demonstrado é fundamental para a consagração e manutenção do status de uma
autoridade religiosa.
1
Para uma discussão sobre abordagens que ora localizam muçulmanas como “oprimidas”, ora como
“resistentes” ao poder patriarcal, ver Mahmood (2005).
2
Nesta linha, Talal Asad (1986), ao considerar o Islã uma tradição discursiva que
“(...) consiste essencialmente de discursos que procuram instruir especialistas com
respeito às formas e propósitos corretos de uma dada prática que, precisamente porque
está estabelecida, tem uma história” (ASAD, 1986, p.14), evidencia o papel da ortodoxia
nos processos de ensinamento doutrinal e ritual da religião. A noção de ortodoxia, por sua
vez, demanda especialistas do texto, que criam interpretações canônicas e têm seu
conhecimento religioso legitimado publicamente como autoridade.
Mais do que discursos instrutivos sobre as práticas religiosas, a ortodoxia é
estruturada a partir de relações de poder que legitimam a força normativa da tradição
religiosa através da aplicação de práticas disciplinares, definidas como “os múltiplos
caminhos nos quais discursos religiosos regulam, informam e constroem o ‘self’ dos agentes
religiosos” (ASAD, 1993, p.125). As práticas disciplinares aplicadas pelas tradições
religiosas são capazes de construir, moldar e dirigir as condutas dos seus adeptos através
de mecanismos (regras e punições) que induzem o seu estar no mundo, isto é, suas
disposições espirituais, morais e físicas, permitindo a construção de um habitus2 religioso a
partir da internalização dos valores religiosos normativos.
No entanto, as formas pelas quais as práticas disciplinares são aplicadas e
organizadas pedagogicamente por tais especialistas não são homogêneas e variam tanto de
acordo com os veículos pelos quais a tradição religiosa é codificada e transmitida quanto
com sua recepção pelos agentes religiosos. No caso das autoridades religiosas femininas
que serão abordadas neste estudo, veremos que as formas pelas quais elas se legitimam
perante suas audiências são pautadas em interpretações doutrinais específicas e locais da
tradição islâmica, o que permite a criação de diferentes imaginários e expectativas em
torno de suas “personas,de suas ações e ensinamentos. Contudo, em ambos os casos, os
ensinamentos por elas proferidos são centrados na relação entre adab/akhlaq
(etiqueta/moralidade islâmica), visando a criação de um self virtuoso.
O objetivo deste artigo, então, é o de explorar as questões acima analisando
comparativamente os dinâmicos processos de construção de autoridades religiosas entre
mulheres muçulmanas, levando em consideração os diversos elementos teológicos,
doutrinais e práticos que são mobilizados por elas em dois diferentes contextos
etnográficos: Damasco, na Síria, e Rio de Janeiro, Brasil. Em Damasco, a noção de
conhecimento religioso inspirada no Sufismo, vertente mística do Islã, exerce um papel
fundamental neste processo, permitindo com que líderes religiosas construam suas redes
de atuação e de seguidoras, cujo efeito social mais visível é a islamização da esfera
2
Sigo a definição de habitus dada por Pierre Bourdieu: “(...) um sistema de disposições duráveis e transponíveis que,
integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apropriações
e ações”. (ORTIZ, [s.d] p.65).
3
pública síria. Já no Rio de Janeiro, a construção de lideranças religiosas femininas é
pautada nas múltiplas interseções entre os aspectos locais e globais do Islã, bem como a
partir das formas que lidam com tensões entre etnicidade e conversão, por exemplo.
Deste modo, este artigo pretende contribuir para o debate acerca das várias
nuances que envolvem os mecanismos locais e globais de produção e transmissão de
conhecimento religioso islâmico, bem como os espaços que são abertos para atuação de
mulheres muçulmanas como agentes neste processo, seja em comunidades muçulmanas no
Brasil, seja em sociedades muçulmanas do Oriente Médio. Os dados etnográficos
apresentados foram recolhidos por mim durante 14 meses de trabalho de campo em
Damasco, entre 2009 e 2010; bem como o trabalho realizado na comunidade muçulmana
do Rio de Janeiro, nos anos de 2005 a 2006.
1. Autoridade como iluminação divina: Anisa Amal e sua rede feminina em
Damasco
“Vamos, Gisele, vamos depressa!”, me disse Faiza3 (60 anos, professora de inglês
aposentada), enquanto se apoiava em um de meus braços para subirmos as escadas
internas da Fundação Shaykh Ahmed Kuftaru4. “Precisamos chegar cedo para conseguirmos
um bom lugar! Anisa5 Amal têm muitas alunas e, se demoramos muito a chegar,
sentaremos no final da sala e mal poderemos vê-la”, continuou Faiza.
Quando finalmente subimos os quatro lances de escada, chegamos à entrada de uma
grande sala: tiramos nossos sapatos e entramos. As luzes da sala estavam apagadas, mas
havia grande movimentação de mulheres no seu interior: algumas conversavam em tom
baixo, outras rezavam sozinhas e um grande grupo de mulheres estava cantando anashid6.
Sentamos em nossas cadeiras e, enquanto o intenso movimento de mulheres entrando
apressadas na sala continuava, Faiza e eu ficamos em silêncio, ouvindo um pouco às
canções. Faiza, então, me disse que as mulheres cantavam para que, em suas palavras,
3
Usarei nomes fictícios para indicar minhas interlocutoras. Todas as mulheres sírias que serão citadas no texto
fazem parte, direta ou indiretamente, da Kuftariyya. A Kuftariyya é uma rede sufi transnacional que possui
milhares de homens e mulheres vinculados a ela. Seu fundador, Shaykh Ahmed Kuftaru ocupou o cargo de
grande Mufti da Síria de 1964 até sua morte, em 2004. Ele foi um dos principais “parceiros” do governo
Ba’thista na gestão do campo religioso sírio.
4
A Fundação Shaykh Ahmed Kuftaru é uma das maiores instituições de ensino religioso na Síria e foi organizada
a partir da Kuftariyya. Como instituição, oferece uma ampla gama de cursos para sírios e estrangeiros, tais
como curso de língua árabe, de formação de imams, abriga três faculdades de ensino religioso, além de cursos
de pós-graduação nesta área.
5
Anisa: O termo Anisa se aproxima do pronome de tratamento “senhorita” em Português . Este termo é
bastante empregado no cotidiano damasceno como forma de tratamento para mulheres, em diversos
contextos. As mulheres com as quais trabalhei empregavam o termo Anisa no sentido de “professora”, tanto
para designar as mulheres que trabalhavam na divulgação do Islã em mesquitas quanto para profissionais que
lecionavam na Fundação Shaykh Ahmed Kuftaru.
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Músicas com teor religioso. Em geral, as canções versam sobre o amor/poder de Deus e do profeta
Muhammad.
4
“Deus as ajudasse a preparar seus corações e suas mentes para a lição que iriam receber
de Anisa Amal, e também para que pudessem se concentrar, livrando os pensamentos de
tudo o que não fosse relacionado ao islã”.
Momentos depois, as luzes da sala foram acesas, criando um efeito metafórico: era
Anisa Amal que havia chegado - ela era a “luz” que iria “iluminar” as mulheres presentes
com seu conhecimento, com sua presença, conforme me disse Faiza. Neste momento,
havia cerca de 200 mulheres presentes. Algumas delas se levantaram para recebê-la,
outras permaneceram sentadas, olhando e sorrindo para a “professora”, num clima de
euforia e emoção (algumas mulheres choravam ao ver a professora). Anisa Amal, então, se
encaminhou para sua mesa - localizada em frente ao mirahb (nicho que indica a direção
das orações); sentou-se; fechou os olhos e recitou a Fatiha (capítulo de abertura do
Alcorão). Em seguida, fez preces pedindo a Deus que abençoasse o encontro e começou a
proferir a lição do dia; se tornando, então, o foco daquele ritual.
Anisa Amal tem 60 anos, é casada e mãe de dois filhos, sua família é de classe
média-alta. Ela é graduada em História e iniciou suas atividades de divulgação do Islã
(da’wa) quando tinha 18 anos. A narrativa a respeito de sua trajetória como divulgadora
aponta para a percepção que ela tem de suas qualidades espirituais, definidas pelo
sufismo7, e que teriam possibilitado com que suas atividades de divulgação do Islã
prosperassem. Em suas palavras:
“professores são muito importantes desde os primeiros tempos do islã, mas Deus
seleciona as pessoas para representarem seus profetas. Tem professores que ensinam
tajweed (regras de recitação do Corão), sira (biografia do Profeta), Corão, mas nem todos
podem purificar o nafs (self) das pessoas e ensiná-las a se conectarem com Deus. É Deus
que escolhe quem pode fazer isso. Deus os treina para isso. As pessoas seguem estes
professores que podem purificar o nafs, querem ficar perto deles, porque há benefícios
nisso. Eu comecei aos pouco, ensinando crianças, e Deus foi me guiando.”
Além de suas aulas na Fundação Shaykh Ahmed Kuftaru8, Anisa Amal também ensina
tafsir (interpretação do Corão) em outras duas mesquitas em Damasco. Ela foi iniciada no
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Sufismo é a via mística do Islã. É entendido como uma longa jornada espiritual, cuja etapa final é a
experiência com a realidade divina (haqiqa). Tal jornada é construída a partir de um processo de iniciação no
qual o neófito é submetido a diferentes métodos de educação espiritual e a práticas disciplinares pelo seu líder
espiritual (shaykh). Neste processo, o sufi adquire e expressa publicamente, os saberes exotéricos (zahiri) e
esotéricos (batini), os quais permitiriam seu avanço no caminho sufi. A partir do século XII, diferentes tradições
místicas foram organizadas em tariqas, traduzidas na literatura especializada como “confrarias”, “ordens” ou
“irmandades” sufis.
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Anisa Amal não é a única autoridade religiosa feminina na Fundação Shaykh Ahmed Kuftaru. Ela comanda uma
das sub-redes que compõem a rede maior da Kuftariyya.
5
Sufismo por Shaykh Ramadan Dīb, o qual depois a “promoveu” para continuar seu
treinamento espiritual com Shaykh Ahmed Kuftaru.
A rede feminina de Anisa Amal é bastante extensa: são centenas de mulheres, entre
16 a 60 anos, em média, e de todas as classes sociais que freqüentam suas aulas públicas.
Parte delas é iniciada no sufismo por Anisa Amal. Em geral, as mulheres que ocupam
posições destaque na hierarquia interna da rede comandada por Anisa Amal têm suas
próprias alunas. Estas, por sua vez, também podem ter suas próprias alunas; e, deste
modo, a rede de Anisa Amal se expande.
As alunas de Amal a vêem como um modelo a ser seguido. Sua presença causa
euforia nas mulheres: elas querem tocá-la, se tumultuam em frente à sua mesa para
cumprimentá-la quando a aula termina. Algumas das mulheres choram ao se aproximar
dela; já outras disputam seu copo de água, que sempre fica sobre sua mesa depois que ela
vai embora. A primeira mulher a pegar o copo bebia um pouco da água e depois a
compartilhava com as demais mulheres que quisessem bebê-la. Acredita-se que esta água,
por ter sido bebida por alguém tão espiritualizada como Amal, possua baraka (bênção
divina). Um dia, após beber um pouco de água, Anisa Amal me deu o copo, para que eu
bebesse também. As mulheres próximas sorriram para mim e, depois que bebi um pouco da
água, pegaram o copo de minha mão e beberam o que sobrou em seguida. Baraka, desta
forma, também é compartilhada.
As aulas públicas de Anisa Amal são de tafsir (interpretação dos capítulos do
Alcorão). Às vezes, um único versículo corânico era assunto para duas ou mais aulas. Como
metodologia, Anisa Amal intercalava pedagogicamente suas explicações do Alcorão com
exemplos de situações cotidianas, ressaltando a necessidade das mulheres permanecerem
fiéis à sua rede e a se empenharem em fazer atividades de divulgação do Islã.
Os ensinamentos de Anisa Amal são estruturados em torno dos conceitos de
adab/akhlaq (comportamento/moralidade islâmicos). Eles versam sobre a conduta correta
que uma muçulmana deve ter, sobre o empenho que cada uma precisa fazer para obter
conhecimento religioso e ser capaz de discernir entre o certo e o errado, segundo a
perspectiva islâmica. Esta característica encontra respaldo no discurso reformista da
Kuftariyya, que pensa a educação espiritual a partir da idéia da criação de um (a) “novo(a)
muçulmano(a)”, capaz de conduzir sua vida de forma moralmente correta mesmo em um
ambiente que possa fornecer outras possibilidades destoantes, como no seguinte exemplo.
Em uma das aulas, Anisa Amal criticou a comemoração do dia dos namorados. Em
2009, várias lojas na cidade antiga de Damasco vendiam produtos escritos “Feliz dia dos
namorados” e um grande letreiro numeroso no centro da cidade também reproduzia a
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frase. Segundo Anisa Amal, esta não é uma prática islâmica e, portanto, não deveria ser
feita por muçulmanos. Em suas palavras:
“os inimigos do Islã espalham essas coisas no mundo. Isto é adultério, é imoral. Vi
na TV como os americanos gastam dinheiro com celebrações assim, preparando ocasiões
para homens e mulheres se encontrarem. Os gananciosos daqui querem fazer o mesmo,
espalhar imoralidade. Tem lojas que estão vendendo presentes para namorados, não está
certo. Não adianta aprender sobre Islã e permitir que o diabo te mande fazer coisa
errada. Você não pode ser hipócrita”.
Desta forma, Anisa Amal associou a “hipocrisia” daqueles que aceitavam participar
de celebrações do dia dos namorados com a falta de auto-controle. Assim, se o “diabo”
influencia nas escolhas individuais é porque as pessoas não estão “verdadeiramente”
comprometidas o Islã, uma vez que até podem aprender o que devem fazer para serem
muçulmanos de “fato”, porém não fazem, ou se fazem,é só na aparência. Desta forma,
Anisa Amal elaborou uma oposição entre o “verdadeiro” conhecimento (batini) que conduz
a uma vida equilibrada e moralmente correta através de um comportamento (adab)
coerente com as doutrinas islâmicas e o conhecimento “aparente”, “externo” (zahiri) que,
por ser praticado só na aparência, conduz os muçulmanos a agirem com hipocrisia e a
desejarem o que é proibido (haram). Os ensinamentos de Anisa Amal, em geral, tinham um
apelo mais emotivo ao enfatizar as punições e a ira divina para aqueles que
permanecessem na “hipocrisia”.
Uma de minhas interlocutoras, Affra, 32 anos, me disse que era aluna de Amal
desde os 12 anos. Ela costumava freqüentar as aulas de Amal com sua mãe e irmã. A mãe
faleceu há cinco anos e a irmã se casou há dois, então Affra continuava freqüentando as
aulas de Amal, mas desta vez, sozinha. Ela trabalha em uma firma de representação
comercial que pertence ao seu irmão. Segundo ela, o trabalho que faz é muito estressante
e que várias vezes ela pensou em desistir de trabalhar. No entanto, de acordo com ela, os
conselhos de Anisa Amal para que ela seja uma muçulmana ocupada e produtiva sempre
pesa mais em sua decisão. Em suas palavras:
“o problema é que nunca estamos satisfeitas. Quem trabalha quer parar, quem não
trabalha, quer trabalhar. Quem é solteira quer casar, quem é casada reclama da vida de
casada. Somos muito ingratas. Minha irmã deixou de vir para as aulas depois que se casou,
só fica em casa, dorme quase o dia todo. Que vida é essa? Eu quero ser produtiva, mas às
vezes sinto vontade de gritar com as pessoas do trabalho. Então fico em silêncio, abaixo
7
minha cabeça e penso em Anisa Amal e nos seus conselhos. Isto me acalma. Venho para
mesquita, para as aulas e esqueço de tudo. Hoje consigo me controlar mais sou mais
tranqüila, faço dhikr9 mais vezes”.
Já outra aluna de Anisa Amal, uma estudante de odontologia na Universidade de
Damasco, em seus 23 anos, me relatou o porquê que ela freqüenta as aulas de Amal:
“Eu mudei completamente meu modo de viver depois de ter conhecido Anisa Amal.
Eu a conheci quando tinha 12 anos e até hoje sou sua discípula (murida). Ela me conhece
melhor que minha mãe, conto absolutamente tudo para ela. Ela sabe meus pensamentos,
meus sentimentos, conhece meu coração e me aconselha. Ela me ensina o caminho para
Deus.”
Em uma ocasião, houve uma festa para Anisa Amal em uma casa em Zabadani,
região afastada de Damasco. A festa, embora fosse um encontro informal, fora
rigorosamente organizada por um pequeno grupo de suas alunas: com indicações de Anisa
Amal, elas selecionaram as convidadas, combinaram as refeições e doces para serem
servidos, além da programação (sessões de música, poesia e dança, peça teatral, conversas
com Amal, e, para finalizar, uma sessão de dhikr, tudo intercalado com as pausas para as
orações rituais do dia, que eram lideradas pela Anisa).
Era uma festa em que só havia mulheres, a maioria usando véus e manteaus no
estilo da Kuftariyya. Nenhuma delas havia levado filhos pequenos para a festividade. Como
também era uma festa para as alunas classe média-alta de Amal, a maioria delas chegava
em seus próprios carros importados, e quem tinha filhos pequenos havia deixado-os com
babás. Embora Anisa Amal tenha seguidoras de todas as classes sociais, suas principais
discípulas pertencem a famílias ricas.
Fui convidada para ir à festa com Anisa Amal, ela própria foi dirigindo seu carro. Ao
chegarmos, a anfitriã, uma mulher em seus 40 anos, uma pediatra, foi recepcioná-la no
portão da casa, dizendo, bastante emocionada, que gostaria de ter jogado pétalas de rosas
pela estrada, para que Amal só encontrasse suavidade durante o caminho. Quando
entramos no pátio interno da casa, as mulheres estavam sentadas em mesas dispostas em
torno de uma grande piscina. Elas se levantaram e aplaudiram a entrada de Anisa Amal,
algumas delas choravam. Amal foi conduzida pela anfitriã até uma poltrona, localizada em
lugar de destaque, com buquês de flores ao seu redor. Anisa Amal saudou as mulheres e,
em seguida, disse que a festa deveria ser feita de forma organizada, sem “excessos”.
9
Evocação mística dos nomes de Deus.
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Lembrou às mulheres que estavam ali pela graça de Deus e não por motivos como festa
comemorativa do dia das mães ou das professoras (motivo pelo qual eu fui informada da
festa). Em seguida, Amal organizou hierarquicamente o espaço e as mulheres presentes,
dizendo que ela gostaria que suas da’iyat (suas discípulas que lideravam halaqas) se
sentassem próximas a ela. Com isso, as mulheres trocaram de lugar. Em seguida, a
programação começou.
Inicialmente, músicas foram cantadas e tocadas através do uso de pequenos
tambores e pandeiros. Há um grupo formado por oito alunas de Anisa Amal que canta
exclusivamente em momentos festivos da rede. Os temas das canções versavam sobre o
Profeta e sobre o amor que liga Deus, o Profeta e a criação divina. As músicas eram
intercaladas com poesias que também falavam sobre o amor divino e sobre o amor que
envolve a relação entre Anisa/discípula, criando uma esfera emocional e cognitiva que
articulava Deus, o profeta, Anisa Amal, e suas discípulas em uma ligação contínua e única.
Em uma das poesias, por exemplo, uma aluna disse para Amal: “queria ter controle da TV
para que em todos os canais só pudesse passar você” e, em outra fala, “você é a mais linda
de todas as flores, a mais brilhante de todas as estrelas”; “se você vir em meu coração
algo que não seja Deus, por favor, me devolva e me ajude a corrigi-lo”.
As canções eram animadas por palmas e danças. As mais jovens foram incentivadas
a dançar no centro do círculo, inclusive a filha de Amal, uma estudante de decoração de
interiores, 20 anos. O clima de alegria prevalecia e Anisa Amal sorria e conversava com as
mulheres de forma mais descontraída do que como fazia no espaço da mesquita. A casa,
neste sentido, contribuía para dar uma maior sensação de proximidade, uma vez que o
grupo que ali estava fora convidado. Uma das mulheres me disse que era a primeira vez
que ela participava de uma festa privada da rede e que estava muito feliz pela Anisa ter se
lembrado dela. Como nas falas ressaltadas acima e nas poesias, as manifestações de amor
pela líder carismática (LINDHOLM, 1993) puderam ser feitas publicamente e diretamente
nesta ocasião.
Finalizada a primeira parte, seguiu-se o almoço. Enquanto nos servíamos, Anisa
Amal não precisou se levantar: algumas de suas alunas fizeram seu prato da forma como
ela solicitou e deram-lhe em suas mãos. Anisa Amal comeu pouco, deixando partes da
comida intocada. A discípula que recolheu seu prato compartilhou o que havia sobrado
com duas de suas amigas. Neste sentido, como ocorrido com o copo com água ressaltado
anteriormente, a baraka da Anisa estava na comida, e ingeri-la traria benefícios, de
acordo com a concepção nativa. Após o almoço, as alunas de Amal se reuniram com ela
para falar sobre suas atividades como divulgadoras da religião e sobre as formas de se
manterem conectadas a ela e à rede por ela comandada. Falou-se sobre a necessidade, de
9
acordo com Amal e suas alunas, de se estar conectada com uma só professora, de se nutrir
de uma só fonte. Nas palavras de Anisa Amal:
“Seu coração só pode ser purificado desta maneira, quando você o entrega a uma
só professora. É como uma mulher que não pode estar dividida para dar seu coração a dois
maridos, o amor verdadeiro só pode ser para uma única pessoa. Quando você tem uma
planta, o que você faz? Planta em um só lugar ou fica trocando de lugar, sempre? Quando
é em um só, suas raízes se estabelecem, a planta se nutre da terra e cresce forte e
bonita, mas se você troca toda hora de lugar o que acontecerá? Ela morrerá. O mesmo é
com o coração, para que o amor continue nele é preciso cultivá-lo, deixá-lo sempre aceso;
se você não cuidar, ele morrerá. É preciso ficar em um só grupo, com uma só professora”.
O exemplo etnográfico acima indica o esforço de Anisa Amal em tentar estabilizar a
relação Anisa/murida (discípula). Para tanto, os aspectos emocionais (amor) que
sustentam a relação é mobilizado juntamente com a idéia de “fidelidade” que este tipo de
compromisso demanda. A Anisa, neste sentido, é quem “nutre” a discípula, que precisa
dela para “crescer” e se tornar “forte”. Assim, os laços afetivos são mobilizados como
parte dos mecanismos disciplinares que inscrevem o sufismo nas subjetividades religiosas
das mulheres da Kuftariyya, em seu processo de iniciação mística.
Em seguida, Amal solicitou às suas alunas para que estas lhes dissessem o que
fortalecia o amor pela Anisa (por ela) e o que o enfraquecia. As discípulas, sentadas em
cadeiras em torno de Amal, responderam que o que fortalecia o amor era a prática de
dhikr (invocação mística dos nomes de Deus), era a freqüência às suas aulas na mesquita,
era a leitura do Corão e a pratica seus ensinamentos, além do empenho em agir
corretamente em todas as esferas da vida.
As alunas responderam que o que enfraquecia a ligação delas com Anisa Amal era
dar ouvidos a fofocas, principalmente se envolvessem a Anisa, e ficarem preocupadas com
seus problemas pessoais, não dedicando tempo à religião e ao dhikr. Uma delas disse, com
lágrimas nos olhos, que gostaria de ficar mais próxima de Amal, que gostaria de conversar
mais com ela, mas que ficava envergonhada de ocupar o tempo da professora com seus
problemas pessoais e, por isso, ficava distante, mas que ainda assim a amava, que pensava
na Anisa todos os dias e em seus ensinamentos. Anisa Amal, então, disse em tom de
brincadeira e fazendo gestos com a mão:
“conhece telefone? Me liga, que eu agendarei uma conversa com você, não tenha
vergonha, esse é meu trabalho, minha obrigação. Deus me enviou para isso, para eu cuidar
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de você, do seu coração. Vocês me dão os corações de vocês para eu cuidar, sou como uma
médica que vai saber suas doenças e te ajudar a curá-las, guiando-as até Deus”.
Ainda com relação às condições que enfraqueceriam o amor entre Anisa e discípula,
outra aluna pediu a palavra e disse que era preciso sair de ambientes em que há pessoas
que não respeitam o Islã e que dizem que é melhor viver bem essa vida, se preocupar
enquanto estão aqui e não com a vida após a morte. Estas pessoas atrapalhariam e
enfraqueceriam o amor pela professora e pela religião, de acordo com tal aluna. Amal
completou dizendo que o amor pela Anisa deve ser maior que o amor pelos pais, pois a
primeira se preocupa com o coração, com a alma, já os últimos com o corpo, com essa
vida, com o que é passageiro.
Deste modo, as perguntas e respostas sobre o que “fortalece” e o que “enfraquece”
o amor pela Anisa podem ser localizadas num quadro mais amplo de mecanismos
disciplinares (ASAD, 1993) através dos quais a auto-reflexão e o auto-julgamento são
mobilizados. A fala de Anisa Amal enfatizando sua disponibilidade para “cuidar” de suas
discípulas e que estas não precisam ter “vergonha” pode ser conectada à questão da
confiança, elemento central neste tipo de relação.
Outra questão a ser abordada de acordo com os exemplos acima é com relação às
formas pelas quais as construções da persona carismática de Anisa Amal foram elaboradas
por suas discípulas. Os elementos que “fortalecem” o compromisso com a Anisa são todos
elaborados a partir do comprometimento com o Islã, como fazer dhikr e ler o Corão, por
exemplo. Assim, Amal corporifica para suas discípulas o princípio básico de obediência às
ordens divinas, condição localmente entendida para se ter comportamento e moralidade
islâmica (adab/akhlaq) que conduzem ao auto-controle (muraqabat) e à verdade divina
(haqiqa).
Assim, com base nos exemplo acima, pode-se afirmar que a autoridade religiosa de
Anisa Amal é legitimada por suas seguidoras através de sua performance moral e dos
poderes espirituais que elas lhe atribuem. A baraka atribuída a Anisa por suas discípulas é
vista a partir da perspectiva que a líder carismática produz mudanças significativas em
suas vidas.
2. Autoridade como empenho intelectual: uma convertida ensinando Islã no Rio
de Janeiro
Conheci Márcia no ano de 2005, quando comecei meu trabalho de campo na
comunidade sunita do Rio de Janeiro. Brasileira, sem ascendência árabe, 37 anos, Márcia
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era convertida ao islã há seis anos. Ela fora convidada para lecionar no curso sobre islã
organizado pela Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro (SBMRJ), instituição
que se marca como foco da vida ritual e social da comunidade sunita local.
A SBMRJ, criada em 1951 por um grupo de árabes (palestinos e libaneses), vem se
afirmando nos últimos anos como uma instituição para a divulgação do islã no Rio de
Janeiro. Atualmente, 85% de seus membros são de brasileiros convertidos ao islã. Embora
as posições de poder internas à comunidade sejam ocupadas por árabes e seus
descendentes falantes da Língua Árabe, a presença majoritária de brasileiros convertidos
na comunidade a diferencia das demais comunidades muçulmanas no Brasil, as quais
conservam um caráter étnico (árabe) na construção de suas identidades religiosas
(MONTENEGRO, 2000; CHAGAS, 2006; PINTO, 2010).
O principal curso que acontece na SBMRJ é o “Curso de introdução ao Islã e à Língua
Árabe” que ocorre todos os anos, com o início das aulas no mês de março. Este curso foi
implementado na instituição há pouco mais de uma década e tem como público alvo,
principalmente, não-muçulmanos, embora haja muitos muçulmanos convertidos que
também participam desta atividade. A duração deste curso é de seis meses, estando
dividido em dois módulos, com duração de três meses cada. O valor de cada módulo a ser
pago pelos participantes era, em 2005, de R$ 210, 00, que podia ser pago em três parcelas.
Os muçulmanos têm gratuidade. Geralmente, as turmas começam com, no máximo, 30
pessoas (tanto muçulmanas quanto não-muçulmanas) e terminam,em média, com 18
pessoas ou menos.
Dentre o público não-muçulmano, o perfil é bastante variado tanto em relação à
faixa etária quanto às atividades profissionais e interesses no curso, há, por exemplo,
profissionais liberais aposentados, estudantes de várias áreas (Engenharia, Jornalismo,
História etc), donas de casa etc. Já com relação aos muçulmanos freqüentadores destes
cursos, todos são convertidos ao Islã e a maioria, na turma que freqüentei, era de
mulheres. Para os convertidos, esse curso é indicado pelo Imam (líder religioso local) ou
pelo responsável do departamento educacional da instituição, como forma de aprendizado
das bases da religião.
Nessas aulas, há a predominância da oralidade na transmissão do conhecimento
religioso. A utilização da técnica pedagógica de aulas expositivas segue os padrões do
ensino escolar brasileiro e também do ensino islâmico tradicional. Além disso, a
metodologia seguida nesse curso também se assemelha muito às práticas educacionais
brasileiras, pois se permitia que durante as aulas fossem feitas perguntas para o
“professor”, possibilitando interações entre este e os “alunos”. Os professores de religião
fazem parte do grupo de “intelectuais” da mesquita, grupo formado por árabes e seus
12
descendentes que são os que ocupam funções de “relações públicas” da instituição e que
produzem textos e interpretações locais sobre Islã (MONTEGRO, 2000). Segundo Márcia, o
convite para ela lecionar no curso surgiu de um dos professores, que teria que se afastar
do mesmo por motivos de trabalho.
As aulas do curso de religião aconteciam nos sábados à tarde e estavam divididas
em duas partes: a primeira sobre o Islã e a segunda voltada para o estudo introdutório à
Língua Árabe. Nas aulas de religião, não era usado material didático, como apostilas, por
exemplo, pelos alunos. Na turma que freqüentei, a professora (Márcia) costumava levar
suas próprias anotações em cadernos e anotava os tópicos a serem ensinados no quadro.
Algumas vezes, para citar versículos do Alcorão ou Ditos do Profeta, ou para falar sobre
algum tópico da aula, era comum que ela utilizasse o livro “Islã: sua crença e sua prática”,
de autoria de um dos membros da comunidade, marcando a centralidade deste livro para o
ensino dos preceitos religiosos na SBMRJ, ou utilizasse o próprio Alcorão (na versão em
português).
Em uma conversa, Márcia me relatou sobre sua decisão em se tornar muçulmana.
Em suas palavras:
“Eu comecei a pesquisar sobre a religião [Islã], minha família sempre foi católica,
como todo mundo no Brasil geralmente é, mas eu nunca fui praticante, não me sentia à
vontade com muitos ensinamentos do cristianismo. Cheguei à SBMRJ pelo site da
instituição, em que obtive muitas informações sobre o islã. Então resolvi ir até lá e fiquei
extasiada com o que vi, com o que aprendi, foi uma espécie de identificação automática,
foi tudo muito simples (...) e então me converti. Muda tudo depois da conversão, hoje não
me reconheço mais no que eu era antes de abraçar o Islã, mudei sob todos os pontos de
vista, emocionalmente, fisicamente, foi como um renascer”.
Já sobre a adoção do véu no cotidiano, Márcia me relatou da seguinte forma:
“Decidi usar o hijab depois de dois anos de convertida. Mas, a partir do momento
que eu o coloquei, houve uma nova guinada na minha vida, na construção da religião
dentro de mim. Com o hijab, eu assumi uma outra responsabilidade em relação à religião
(...), porque ele te obriga a se relacionar de um modo diferente com as pessoas, porque
tudo que você fizer não vai ser você, mas a muçulmana. Então o uso do hijab me fez
melhor como pessoa, porque ele é um comportamento, e não só uma roupa, também diz
respeito à divulgação do Islã”.
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A ênfase de Márcia nas mudanças que ocorreram no seu self após a conversão ao
Islã e o seu empenho individual em obter conhecimento religioso fizeram com que ela fosse
citada por algumas muçulmanas convertidas que tive contato durante o trabalho de campo
como uma referência feminina a qual elas recorriam para obterem explicações a respeito
do Islã, o que indica as várias modalidades de poder, a partir do conhecimento religioso,
que circulam na SBMRJ.
Em suas aulas, Márcia organizava didaticamente os pontos a serem ensinados no
dia. Em um dia, explicava sobre os pilares do Islã (testemunho de fé, orações, zakat, jejum
e peregrinação), sobre os pilares da crença, a biografia do Profeta, alguns dados históricos
sobre a expansão do islã etc., indicando também alguns versos corânicos em que baseava
os ensinamentos transmitidos.
Este curso, em seu objetivo de socializar os participantes nos princípios islâmicos,
funcionam como arenas pedagógicas em que práticas disciplinares, tais como as aulas
sobre a religião e o ensinamento de uma “etiqueta islâmica”, são aplicadas visando a
criação de uma nova matriz de percepções, um habitus (BOURDIEU, [s.d],p.60 –81)
religioso, nos seus participantes, principalmente nos muçulmanos convertidos.
Os membros da comunidade que são nascidos muçulmanos raramente freqüentam
esse curso, por considerarem-no “fraco”.Aicha, uma nascida muçulmana de 16 anos que
veio para o Brasil ainda bebê com seus pais, palestinos, me disse que chegou a assistir
algumas aulas na SBMRJ, mas que foi aprender de fato sobre o Islã na Escola Islâmica de
São Bernardo do Campo, onde estudou durante um ano, tendo aulas de língua árabe e
memorização do Alcorão. Ela ressaltou que domina o conteúdo que é ensinado nos cursos
de religião na SBMRJ e isso é um dos motivos para que ela não freqüente essa atividade.
Sua mãe, Hafissa, uma palestina muçulmana que morava com a família nos Emirados
Árabes, mas que resolveu vir para o Brasil após a primeira Guerra do Golfo (1991), disse
que tanto Aicha quanto sua outra filha, por terem estudado na escola de São Paulo,
poderiam dar aulas de religião na SBMRJ, uma vez que o conteúdo ensinado nas aulas não é
“profundo”.
Hafissa, comparando a SBMRJ com as comunidades de São Paulo, disse que nestas,
pelo fato das comunidades serem mais numerosas, há mais pessoas para ensinar e
promover cursos “mais específicos sobre o Islã”, diferente do que ocorre na comunidade do
Rio de Janeiro. Hafissa disse que na SBMRJ há muitos convertidos que são como “filhos
pequenos que precisam ser cuidados”, e que por isso, as atividades que acontecem na
instituição são voltadas prioritariamente para eles, não sendo muito “proveitosas” para os
nascidos muçulmanos, que já dominam aquele conteúdo.
14
No entanto, para os muçulmanos convertidos com quem tive contato durante meu
trabalho de campo, o curso de religião era sempre referido como uma fonte para obtenção
de conhecimento religioso, pois nele eram tratados assuntos “sobre o Islã e sobre como nós
(muçulmanos) devemos agir”, conforme me disse Ana, uma muçulmana convertida.
Entre as muçulmanas convertidas com as quais tive contato ao longo da pesquisa,
Márcia era percebida como autoridade religiosa. Sua autoridade, neste caso, era pautada
tanto no exemplo de sua conduta moral, quanto no seu empenho intelectual de buscar
conhecimento religioso e, também, de transmiti-lo pedagogicamente. Segundo as
convertidas da comunidade, Márcia era quem lhes ensinava a fazer abluções, explicava
sobre os cuidados que deveriam ter para as orações com relação ao impuro (menstruação e
relações sexuais), era a quem elas recorriam em casos de dúvidas sobre questões mais
pessoais, como opiniões a respeito de questões matrimoniais e aconselhamentos em torno
do uso do véu, por exemplo. Neste sentido, os ensinamentos que Márcia proporcionava às
demais convertidas com relação aos princípios e práticas islâmicos eram percebidos por
elas como revestidos de autoridade, uma vez que Márcia pautava suas opiniões com base
em conhecimento adquirido a partir de leituras e estudos dos textos normativos da
tradição islâmica.
3. Islã e a construção de autoridades religiosas femininas
A participação de mulheres muçulmanas como autoridades religiosas em diferentes
contextos culturais no mundo contemporâneo vem sendo interpretada, em grande parte da
literatura acadêmica, como um desdobramento dos avanços do Islã político; o qual seria o
responsável pelo aumento do conservadorismo religioso que se percebe nas sociedades do
Oriente Médio e em comunidades muçulmanas diaspóricas. Nesta perspectiva, as
autoridades religiosas femininas surgidas neste processo estariam limitadas a “um código
moral que situa as mulheres socialmente e religiosamente em uma posição inferior”
(KALMABACH, 2008, p.56), fator que tornaria seus ensinamentos como meras vias de
reprodução da moral religiosa “opressora” que estrutura as diferentes sociedades.
Ao contrário desta perspectiva, este artigo procurou chamar atenção para o fato de
que as várias formas e níveis de participação, envolvimento e motivações de mulheres
muçulmanas para se engajarem em atividades religiosas, como as aulas de religião aqui
apresentadas, estão conectados a fatores sociais e culturais que são contextualmente
construídos. Autoridades religiosas femininas, como vimos, podem ser encontradas no Islã
de diferentes modos, se não assumirmos que a posição de “autoridade” deva ser uma
posição institucionalizada e pensada, comparativamente, com as posições de autoridade
15
masculina. Considero que seja pouco produtivo, em termos antropológicos, um estudo que
limite suas reflexões em torno de debates teológicos sobre “autoridade feminina” ou que
procure momentos de “resistência”/ “desafios” aos padrões religiosos, como no caso da
oração mista liderada por Amina Wadud. Há outras importantes arenas cotidianas nas quais
a relação entre Islã, gênero e conhecimento religioso se atualizam de forma criativa.
Neste sentido, embora mulheres muçulmanas possam se referir às hadiths (ditos e
atos) do Profeta Muhammad e às mulheres de sua família para legitimarem suas posições
de autoridade e suas obrigações na “busca” por conhecimento religioso; o argumento aqui
proposto é o de que diferentes entendimentos acerca do que é “conhecimento religioso” e
das formas nas quais tal conhecimento é localmente mobilizado e interpretado produzem
diferentes imaginários e formas de autoridades religiosas femininas.
O papel de autoridade religiosa ocupado por Márcia junto às muçulmanas
convertidas da SBMRJ, por exemplo, era construído à luz de entendimentos locais sobre
islã e sobre quem poderia falar em nome de tal tradição religiosa. Em termos doutrinais, a
Salafiyya10 é a principal tradição islâmica que informa os líderes da comunidade
muçulmana do Rio de Janeiro. Sua interpretação “ortodoxa” pautada na idéia de um “Islã
verdadeiro e universal”, “purificado” de influências culturais e sociais que pode ser
vivenciado em qualquer tempo e lugar; inspira os sermões, textos e cursos de religião que
são oferecidos na SBMRJ.
Neste sentido, a opção em se colocar uma mulher convertida para dar aulas sobre
os princípios básicos do Islã é bastante significativa, uma vez que o curso é aberto a um
público não-muçulmano que, muitas vezes, chega a SBMRJ com visões estereotipadas a
respeito da “mulher muçulmana” e, segundo Márcia, é uma oportunidade para
“desconstruir” tais idéias. Além disso, a presença de maioria de mulheres no curso,
sobretudo de convertidas, faz com que além de divulgação, o curso funcione também como
uma atividade de socialização feminina no espaço da mesquita.
O caráter missionário que organiza o curso de divulgação do Islã realizado pela
SBMRJ permite que o público não-muçulmano e de muçulmanos convertidos que freqüenta
a SBMRJ entre em contato com o corpus doutrinal e prático da religião através de uma
mulher brasileira convertida, o que reforça a idéia pregada pelos membros da comunidade
de que o Islã é um sistema religioso universal, podendo ser vivenciado em qualquer
contexto cultural, inclusive no Brasil. Conhecimento religioso, neste caso, é entendido
como a apreensão intelectual das doutrinas e práticas islâmicas, a partir de estudos dos
textos islâmicos normativos. Desta forma, a combinação de aspectos sociológicos como o
10
Movimento reformista islâmico surgido no século XIX que preconizava que todas as condutas de um
muçulmano deveriam estar baseadas nos textos religiosos (Alcorão e Sunna), como na época de seus
antecedentes, “época áurea” em que se vivenciava um Islã “verdadeiro, original”.
16
fato de ser mulher, brasileira e muçulmana convertida que se veste de acordo com trajes
islâmicos no cotidiano local fazem de Márcia uma liderança feminina na comunidade do Rio
de Janeiro.
Já a autoridade religiosa desempenhada por Anisa Amal se aproxima do que
podemos chamar de autoridade carismática, tal como formulado na tipologia Weberiana
(1968). Como autoridade carismática, a Anisa desperta um fascínio e amor profundo em
suas seguidoras. Estas desejam a proximidade com sua líder espiritual, desejam agradarlhe em tudo, querem segui-la em tudo. À Anisa é atribuído o poder espiritual de “nutrir” e
de “consertar” os corações de suas alunas; ela tem o poder, nesta concepção, de
conhecer-lhes os pensamentos e as doenças do nafs (self), como “impaciência” e
“orgulho”, por exemplo.
A autoridade religiosa de Amal perante suas seguidoras é pautada em transações
locais do Sufismo. A Anisa, aos olhos de suas alunas, corporifica o islã: ela é o canal, a
mediação, entre elas e Deus. Ao contrário de Márcia, que tem sua autoridade legitimada a
partir de sua capacidade de conhecer intelectualmente os textos da religião, Anisa Amal é
entendida como detentora dos conhecimentos exotéricos (zahiri) e esotéricos (batini);
como quem já atingiu o profundo conhecimento da realidade divina (haqiqa). Tal
conhecimento tem diversos níveis de expressão e de significados de acordo com a
perspectiva sufi.
O vínculo afetivo que é estabelecido na relação entre Anisa e suas discípulas é a
base que estrutura uma rede religiosa exclusivamente feminina, como a de Anisa Amal,
aqui abordada. A permanência e a estabilidade dessas redes dependem da capacidade da
Anisa em fornecer para suas discípulas não só conhecimento religioso, mas também ajudálas, em uma perspectiva sufi, a “purificarem os seus corações”. Esta purificação é, em
termos práticos, construída a partir de mecanismos disciplinares e é percebida através de
atitudes e comportamentos que as discípulas têm em suas vidas cotidianas, que são
expressos a partir dos conceitos de adab (regras de etiqueta) e akhlaq (moralidade), que,
apropriados pelo sufismo, fornecem um conjunto de disposições práticas e morais que
devem orientar a vida dos sufis.
Assim, um entendimento a respeito da construção de autoridades religiosas
femininas no Islã deve ser buscado a partir de entendimentos locais a respeito do que é
entendido por “conhecimento” e as formas pelas quais este conhecimento é transformado
e legitimado publicamente como “autoridade” (GAFFNEY, 1994; BARTH, 2000). Em sua
dimensão de gênero, este artigo procurou articular como, em diferentes contextos
culturais (Damasco e Rio de Janeiro), mulheres muçulmanas criam arenas próprias de
produção e transmissão de conhecimento religioso que, acionados de diversos modos,
17
criam posições de autoridade e de poder entre elas. Assim, mais do que pensar e reduzir os
processos de construção de autoridades religiosas femininas como algo ligado a um “poder
feminino” coeso conquistado como um contraponto às autoridades masculinas, é preciso
pensar tais processos em uma perspectiva mais ampla e dinâmica, que englobe, sobretudo,
as motivações e os significados pessoais que muçulmanas atribuem à sua participação em
atividades religiosas cotidianas lideradas por outras mulheres.
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