Coletivo canal*MOTOBOY

Transcrição

Coletivo canal*MOTOBOY
Coletivo canal*MOTOBOY
O nascimento de uma categoria
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Coletivo canal*MOTOBOY
Org. Eliezer Muniz dos Santos
Autores
Andréa Sadocco, Augusto Astiel
Bruna Bo, Eliezer Muniz (Neka)
Fábio Ascempcion, Marcelo Veronez
Ronaldo Simão da Costa
Programa Petrobras Cultural
Apoio
Copyright © 2009 MARCUS VINICIUS FAUSTINI
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)
curadoria
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
produção editorial
CAMILLA SAVOIA
projeto gráfico
CUBICULO
No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas
procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências
sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias
assume contornos biográficos de um sujeito ou de um
grupo mobilizados em torno da sua periferia, suas condições socioeconômicas e a afirmação cultural de suas
comunidades.
GUIA AFETIVO DA PERIFERIA
produtor gráfico
SIDNEI BALBINO
revisão
CAMILLA SAVOIA
REBECA BOLITE
revisão tipográfica
CAMILLA SAVOIA
F271g
Faustini, Vinícius
Guia afetivo da periferia / Vinícius Faustini.
- Rio de Janeiro : Aeroplano, 2009.
il.-(Tramas urbanas ; 11)
ISBN 978-85-7820-026-8
1. Faustini, Marcus - Ficção. 2. Diretores e produtores
de teatro - Brasil - Ficção. 3. Subúrbios - Rio de Janeiro
(RJ) - Ficção. 4. Romance brasileiro. I. Programa Petrobras
Cultural. II. Título. III. Série.
09-5169.
CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81)-3
30.09.09
A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre
esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou
autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte dessa percepção de que a cultura da
periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de
ter sua voz.
05.10.09
015517
Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais,
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros
tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase
desta coleção.
Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar
não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas
experiências novas formas de responder a questões
culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como
diz a curadora do projeto, “mais do que a Internet,
a periferia é a grande novidade do século XXI”.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA
AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401
LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ
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TEL: 21 2529-6974
TELEFAX: 21 2239-7399
[email protected]
www.aeroplanoeditora.com.br
Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de
ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social.
Esses são apenas alguns dos traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de
nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje
a ser reconhecida como uma das tendências criativas
mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua
história ainda está para ser contada.
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como
seu objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas
deste novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.
Heloisa Buarque de Hollanda
Sumário
Prefácio
Antoni Abad
Introdução
São Paulo, a cidade dos motoboys
– Eliezer Muniz dos Santos
Parte I
O NASCIMENTO DE UMA CATEGORIA
000
Uma breve história da categoria
– Coletivo Canal*Motoboy
000
No espelho retro1sor – Augusto Astiel
000
Cultura motoboy – Eliezer Muniz dos
Santos
Dedico este livro a minha família e a todos os
profissionais motociclistas brasileiros.
Parte II
000
Um agradecimento àqueles que possibilitaram a realização deste
livro, e em especial, àqueles que lutaram comigo ao escrevê-lo.
Eleilson Leite, Alessandro Buzo, Heloisa Buarque, Júlio César,
Keila Muniz, Andréa Sadocco, Antoni Abad, Augusto Astiel,
Bruna Bo, Ronaldo Simão da Costa, Marcelo Veronez, Jordana Peretti,
Roberto Ito, Fábio Ascempcion e ao meu filho Lucas.
OS MOTOBOYS E AS MOTOGIRLS
Meu nome é Ronaldo
000
Andrea Motogirl: Desafio contemporâneo
000
Poeta dos Motoboys
000
Fábio Motoboy
000
Jordana, Motogirl de Iomerê
000
Neka
000
Índice de Imagens
000
Sobre o autor
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Prefácio
Há aproximadamente sete anos chegaram ao mercado
os telefones celulares com câmera integrada. Este dispositivo despontava como um instrumento excepcional,
pois tinha duas características nunca antes reunidas em
um aparelho tão pequeno: de um lado, a possibilidade de
registro multimídia de fragmentos da realidade em formato áudio, vídeo, foto e texto; de outro, a capacidade
de publicação quase imediata na Internet. O celular com
câmera integrada estreita ao máximo, portanto, a distância entre uma ideia e sua disseminação. E a publicação a partir de celulares alcança um ambiente global,
como a Internet, e não um ambiente local. A publicação
na Internet é barata, além de praticamente imediata.
Desde as minhas primeiras visitas a São Paulo, também
há sete anos, o universo de motoboys chamou fortemente minha atenção. Segundo o censo de 2000 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), a cidade de São Paulo contava naquele ano com
cerca de dez milhões e meio de habitantes. Dentre
eles, e de acordo com a tese de doutorado “Percepção
e avaliação da conduta dos motoristas e pedestres no
trânsito: um estudo sobre espaço público e civilidade
na metrópole paulista”, de Alessandra Olivato, havia
374.588 motociclistas, dos quais cerca de 160 mil eram
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motoboys. O congestionamento do tráfego e as enormes
distâncias fazem do motoboy um personagem imprescindível para o funcionamento da cidade, onipresente
em cada semáforo e cada esquina.
A utilização dos seus serviços é profusa e generalizada.
Transportam de tudo: documentos, dinheiro, pizzas...
Dizem que até mesmo órgãos humanos entre hospitais.
Arriscam a vida diariamente circulando a toda velocidade entre os corredores formados pelas intermináveis
filas de carros. Entretanto, esses cavaleiros do apocalipse do asfalto paulista são vítimas de graves preconceitos. Nas notícias sobre eles, a imprensa sensacionalista destaca as vertiginosas corridas contra o tempo
ou os casos em que assaltantes se fizeram passar por
mensageiros para perpetrar seus delitos. Os motoboys
aparecem nos meios de comunicação paulistas quase
sempre em histórias truculentas que potencializam os
piores preconceitos na percepção social da categoria.
Em contrapartida, poucas vezes se enfatiza o lado mais
positivo desse coletivo, que demonstra um sentimento
de solidariedade muito particular, uma consciência corporativa que antepõe o socorro a um companheiro acidentado à urgência de uma entrega. O citado estudo de
Olivato comenta: “Observamos a existência de um sutil
código de ética e solidariedade entre eles no trânsito,
fato esse de que nem os próprios motoboys tinham se
apercebido”.
Diante disso, indaguei-me o que ocorreria se uma
rede móvel celular, com publicação em tempo real na
Internet, fosse gerada a partir de uma rede humana preexistente como a que formam os motoboys. Ou, o que
vem a ser o mesmo: o que aconteceria se um grupo de
motoboys recebesse celulares com câmera com o objetivo de criar seus próprios canais multimídia na Internet.
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Os motoboys poderiam, dessa maneira, transformar-se
em cronistas de sua própria realidade, autorrepresentando-se e corrigindo a imagem distorcida que os meios
de comunicação projetam deles.
Assim, em 2003, em estreita colaboração com o programador Eugenio Tisselli, realizamos um primeiro esboço
operacional do dispositivo de telefonia móvel para
publicar um conteúdo na Internet. Quando ficou pronto,
o esboço foi “testado” em um workshop com um grupo
de estudantes na Casa Encendida, de Madri. Eugenio
ficou programando ao vivo, corrigindo as falhas e implementando os recursos de narrativa multimídia que se
mostravam necessários com a prática. A experiência se
chamou ensaio* GERAL e serviu para assentar as bases
tecnológicas, organizacionais e logísticas desse dispositivo de comunicação social baseado em tecnologia
móvel audiovisual que funcionou como um alto-falante
para todos os coletivos com que eu trabalharia nos anos
seguintes: taxistas na Cidade do México (2004), jovens
ciganos em Lleida e León (2005), prostitutas em Madri
(2005), imigrantes nicaraguenses em San José da Costa
Rica (2006), pessoas desalojadas e desmobilizadas na
Colômbia e jovens dos acampamentos de refugiados
saarianos próximos a Tinduf, na Argélia (2009). Dois desses projetos foram realizados por pessoas com mobilidade reduzida – em Barcelona (2006) e Genebra (2008).
Os participantes utilizaram telefones GPS com câmera
integrada para fotografar os obstáculos e barreiras
arquitetônicas que encontravam diariamente nas ruas,
desenhando em tempo real na Web o plano de acessibilidade de suas cidades.
O projeto canal*MOTOBOY – que me inspirou, sete anos
atrás, a começar o trabalho que desde então desenvolvi
na Internet com o uso de aparelhos de telefonia móvel
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em diferentes coletivos – teria de esperar até 2007
para ser realizado, devido às enormes dificuldades para
obter os recursos necessários, pois poucas instituições
dispõem-se a apoiar um universo como o dos motoboys,
que padece de enorme estigma social.
Finalmente, com o apoio do Centro Cultural São Paulo, o
Centro Cultural de España e a Sociedad Estatal para la
Acción Cultural Exterior de España, conseguimos iniciar,
em 2007, as transmissões por celular de um grupo de 12
motoqueiros de São Paulo. Três anos depois, as transmissões continuam a ser feitas e o canal* MOTOBOY é o
que tem o percurso mais longo entre todos os projetos
mencionados neste texto.
Os motoboys estão propondo um mapa distinto, uma
interpretação particular da enorme cidade de São Paulo,
e já não apenas mediante seus vídeos, fotografias e
arquivos de áudio e texto, mas através de um sistema
de geolocalização implantado no dispositivo, e também de um mapa lexicográfico. Nos projetos anteriores ao canal* MOTOBOY, os emissores colocavam seus
envios em canais personalizados, ou ambientes comuns
propostos nas reuniões semanais dos participantes.
Quando o trabalho com cada coletivo terminava, toda
essa informação era organizada segundo um sistema de
descritores concebido por um grupo de sociólogos. Mas
no caso dos motoboys – e pela primeira vez – são eles
mesmos que categorizam seus envios. Hoje, observamos os cruzamentos que se produzem no léxico entre a
descrição da realidade imposta e antropológica e outra
mais íntima e local.
Os motoboys foram também os primeiros a experimentar
o conceito de “megafone”: um telefone móvel comunitário dotado de GPS e que integra as capacidades de registro audiovisual geolocalizado e de publicação imediata
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na Web do software desenvolvido em www.megafone.
net. O megafone muda de mãos toda semana entre os
participantes, que decidem democraticamente em suas
reuniões editoriais qual deles será o emissor durante a
semana seguinte.
Em suma, os participantes do canal* MOTOBOY vêm
desenvolvendo durante três anos seu próprio dispositivo de comunicação móvel audiovisual na Internet. Mas
também contribuíram generosamente com sua experiência para o desenvolvimento do megafone, um dispositivo
útil como meio de comunicação alternativo para grupos,
coletivos, associações e comunidades que desejem se
organizar para projetar sua própria visão da realidade e
combater os estereótipos que os meios de comunicação
difundem, incluindo entre suas possibilidades a geolocalização, que permite realizar projetos de cartografia
pública digital.
Obrigado, amigos motoqueiros, por estes anos de entrega
ao projeto e pelas expectativas de futuro, pelas quais
continuaremos a trabalhar em www. megafone.net. Vida
longa ao Canal* MOTOBOY!
Antoni Abad, Barcelona, janeiro de 2010
Introdução
São Paulo, a cidade dos motoboys
Todos os dias, milhares de motoboys saem pelas ruas
e avenidas da cidade. À noite, de dia, no frio da madrugada. Eles vão, vêm, cruzam o asfalto.
Passam pelas vielas e avenidas: é a cidade dos motoboys.
Aceleram suas motos, cruzam para todos os lados, nunca
param. Ditam o ritmo da metrópole e fazem de sua rotina
diária a paisagem urbana. São Paulo sem motoboy para.
Saberemos um dia quantos são? Mensageiros, motoqueiros, deliverys e couriers. Motoboys e motogirls.
Homens e mulheres, manos e minas. Todos profissionais
motociclistas, enfim, guerreiros do asfalto.
Cidade em que não se sabe onde começa uma quebrada
e termina outra (aonde os mais ricos só sabem que elas
existem de uma poltrona de avião), onde estão as suas
margens e suas periferias? O motoboy é a rua da quebrada, o beco e a viela na grande avenida. É a adrenalina
com responsabilidade. O vento na cara é o passaporte
para uma outra urbanidade. Eles vieram para ficar. Ocupar
o espaço reservado e exclusivista dos automóveis.
O motoboy é a cara da cidade, uma das suas identidades mais subterrâneas. É a velocidade com que se
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descobre que entre civilizados de ternos e gravatas e
os caras de botas e capa de chuva, pode ocorrer tanto
o maior respeito, como a maior falta de respeito pela
vida humana. Que o mesmo cidadão, que pede ali o serviço urgente, pode às vezes, num piscar de olhos, te dá
uma fechada no trânsito. O que mostra também que a
cidade não tem limites: às vezes, na correria do dia a
dia, a carcaça de um carro pode ser a última parada de
um motoboy.
sua sobrevivência no caos do trânsito. Suas vidas não
se reduzem à mera particularidade de serem tomados
como mais uma tribo urbana: eles têm seus códigos,
seus gestos e sua bravura. Mas também seus valores,
versos e prosas. Assim, a cultura motoboy nasce pela
via da autonomia a partir da expressão criativa. Da liberdade dos profissionais motociclistas em contar suas
próprias experiências, fazerem de sua história, no cotidiano da metrópole, uma grande narrativa.
Pra ser motoboy é preciso estar atento. Estar além do
tempo.
Nesse sentido, este livro realiza sua intenção quando,
motivados pela negação de uma visão de categoria
marginalizada, eles se tornam os protagonistas de
sua própria história e se põem a narrá-la, saindo em
defesa da criação, do surgimento de uma nova cultura
urbana e transformando o cotidiano de toda uma cidade.
Abrem-se à vida cultural a que têm direto. Quando este
ato de narrar, como num gesto simbólico, significa
aquele momento em que eles tiram os capacetes, deixando então revelar em sua realidade a fisionomia cansada de pessoas comuns, mas por isto mesmo heroicas.
A ideia de um livro assim só poderia nascer quando um
grupo de profissionais motociclistas, reunidos em torno
de um projeto cultural como o canal*MOTOBOY, percebe
que suas vivências nada mais são do que a própria história do surgimento de sua categoria profissional.
Ao descobrirmos que os motoboys são a cara da cidade,
a cidade pode parar, eles não. Pode chover e alagar
que eles chegam. Se cair a ponte, eles atravessam.
São insubstituíveis. Impossível narrar o cotidiano de
um único motoboy. Imagina de todos! A vida na cidade
é cheia de aventuras e mazelas. Comandas e ordens
de serviços convivem com o inusitado. É uma profissão
marcada pelo alto risco de acidentes e pela informalidade de seus serviços. Mas é também na rua, habitat
natural do motoboy, que podemos ouvir seu último grito
de liberdade. A buzina que toca no corredor quando um
motoqueiro passa é mais do que um aviso de passagem.
A capa de chuva, o capacete colorido e a moto adesivada
são suas marcas, mas o que os une é a solidariedade
entre eles. Seu olhar percorre toda a cidade. Seus movimentos rápidos entre os carros deslocam os olhares da
cidade. É onde notamos, quando estes motoqueiros se
propõem a narrar seu dia a dia e criam seu próprio modo
de se expressar, pela música, pelos gestos, pela linguagem, que vemos surgir a força de seu imaginário, um
outro fazer, uma parte de sua cultura.
Portanto, este livro é um protesto organizado por vozes
de resistência. Um manifesto dos motoboys e motogirls
que não pode ser visto apenas pela singularidade de
Dessa forma, longe de se adotar outras experiências
como modelo de organização cultural e política, essa
categoria vive hoje um dos mais interessantes processos coletivos de organização social. Quando ela inventa
os seus próprios meios e a partir de seus espaços e tempos mostra sua capacidade de criar o inusitado, nunca se
rendendo as soluções fáceis, podemos compreender a
sua especificidade e autonomia e, finalmente agora, por
revelar nesta coletânea de textos uma nova perspectiva
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sobre os motoboys, escritores do amanhã, que podemos
compreender a sua especificidade e autonomia. Então,
ao entrarmos em contato com suas narrativas, aos poucos conhecemos suas histórias, trajetórias e preocupações. Passamos a conviver com personagens que apontam para uma nova relação com a cidade. Portanto, mais
que uma nova classe de trabalhadores, vemos surgir
uma nova cidadania, ainda em formação.
Como tão bem definiu a motociclista Andrea, que faz
parte desta coletânea e nos faz compreender o papel
deste novo personagem urbano: “O motoboy é protagonista participante contribuinte do novo século, desta
nova sociedade que surge cheia de tecnologias e desafios ambientais. Fundamentalmente, contribui com a
sociedade, fazendo desenrolar com rapidez (as muitas)
burocracias civis, abrindo um novo horizonte para uma
nova cidadania. ”
Eliezer Muniz dos Santos (Organizador)
PARTE
01
Cap.01
Uma breve história da categoria
.01
a breve história da categoria
Uma breve história da categoria
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em 1999, quando pela primeira vez a prefeitura de São
Paulo tenta regulamentar a profissão de motoboy. Entre
1999 e 2006 haveria ainda mais duas tentativas frustradas, de regulamentar e enquadrar os profissionais
motociclistas, em seguidos decretos-lei criados pelos
gabinetes dos prefeitos Celso Pitta – que assinou o primeiro decreto – Marta Suplicy, em 2004, e José Serra, em
2006. Todos partindo de um mesmo objeto de lei copiados, ipsum literis, de um antigo projeto de Lei de 1968, que
regulamentara o serviço de táxi na capital paulistana.
Se fizermos aqui um breve relato da história da categoria
dos motoboys, descobriremos que esta é uma profissão
relativamente nova no Brasil. As primeiras empresas
que contratavam office-boys motorizados começaram a
operar no início da década de 1980, com pouco mais de
meia dúzia de motoqueiros. Em menos de duas décadas,
por conta da crescente demanda por este tipo de serviço, eles se tornaram uma das maiores categorias de
rua do país.
A profissão de motociclista – atividade remunerada que
faz uso da motocicleta para execução de diversas tarefas, como entregas e retiradas, que prescindam de certa
urgência, de documentos, cheques, malotes, medicamentos, alimentos e todo tipo de pequenos volumes e
componentes, – surgiu na onda da globalização e do fortalecimento do setor de serviços. Entrou definitivamente
na cadeia produtiva da economia a partir 1988, quando a
nova Constituição legitimou a terceirização dessas atividades no setor de serviços. No final daquela década já
havia dezenas de empresas e mais de 5 mil motoqueiros
rodando por dia nas ruas da cidade de São Paulo.
A partir de 1994, com o Plano Real, a economia se estabiliza e a demanda por estes motociclistas cresce exponencialmente, chegando a mais de 80 mil profissionais
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No início de 2007, é apontada a espetacular produção de
1.2 milhão de motos fabricadas no Brasil. A categoria já
superava a marca de 120 mil profissionais motociclistas
apenas na capital de São Paulo. No país inteiro os mototaxistas se tornavam uma realidade.
Em maio daquele ano é inaugurado no Centro Cultural
São Paulo (CCSP) o canal*MOTOBOY, projeto que reúne
um grupo de motoboys utilizando celulares a partir de um
site da internet, que permite criar um canal de comunicação com a categoria. Em junho, depois deste coletivo
de motoboys solicitar à presidência da Câmara Municipal
uma audiência pública, a fim de voltar à discussão de uma
regulamentação da categoria que atendesse suas reivindicações, o prefeito Gilberto Kassab envia à Câmara dos
Vereadores o malfadado “Decreto do motofrete”, recusado durante anos pelos motoboys. A Câmara aprova, em
regime de urgência, o projeto de lei 14.491/07, de “autoria” do vereador Adolfo Quintas e, trinta dias depois, o
prefeito recebe de volta o projeto na prefeitura e o sanciona. Em agosto, após a eleição de uma nova diretoria,
o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas do Estado de
São Paulo volta para as mãos da categoria.
Após inúmeros projetos de lei tramitarem no Congresso
Nacional, no dia 29 de julho de 2009 o Presidente da
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Coletivo canal*MOTOBOY
República Luiz Inácio Lula da Silva assina a lei que regulamenta definitivamente a profissão de motoboy e mototaxista. Os profissionais passam a ter regras claras para
a atividade, que serão definidas pelo Conselho Nacional
de Trânsito, passando às prefeituras municipais a responsabilidade de regularizar os serviços de acordo com
a necessidade de cada região. A sanção põe fim à polêmica em torno da legitimidade do serviço de motoboy e
mototaxista, já que havia um grande preconceito em relação a estes serviços. O senador Expedito Júnior, relator
do projeto de lei do Senado 203/2001, que propôs a regulamentação das profissões, comenta, em tom de comemoração, durante o ato que criou a classe dos profissionais motociclistas: “Esses profissionais esperam por
esse momento há mais de dez anos. É justo que agora
consigam ver sua atividade regulamentada. São mais de
2,5 milhões de pais de família que agora podem bater no
peito e dizer que têm uma profissão.”
Coletivo canal*MOTOBOY
Uma breve história da categoria
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Cap.02
No espelho retrovisor
No espelho retrovisor
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arriscam a vida diariamente carregando documentos,
valores, ofícios, correspondências e outras parafernálias
de nosso cotidiano burocratizado, são, desse modo, agrupados à revelia em uma categoria, como sempre acontece nessa construção cotidiana chamada sociedade. O
que foge à categorização transforma-se em caricatura. E
a caricatura é uma imagem sensibilizada pelo personagem criado apesar da pessoa.
Um espectro ronda o trânsito — o espectro do motoboy.
Há anos ele vem desaparecendo em meio aos carros, os
donos por direito do espaço não tão público das ruas e
avenidas da cidade. O espelho retrovisor dos automóveis
revela a imagem fugaz de um personagem cada vez mais
presente. Invasor de um espaço restrito, o motoboy burla
códigos e normas para suprir uma demanda de mercado.
Desobediente, mostra como a falta de regulamentação
acarreta problemas a um país que se pensa pacífico,
mas não enxerga seus mortos diários. O motoboy devolve
a imagem que se faz dele, pois é sua única maneira de
ser visto: personagem que não se enxerga nem se escuta,
mas se quer disciplinar, o Leviatã das relações de trabalho
tenta seduzi-lo com a oportunidade de ser “autônomo”. E
transforma-o em “autômato”. Por ser uma relação, mas
com apenas uma via de visibilidade, ao motoboy é dado
um papel que alguns abraçam com prazer: o delinquente
sobre rodas que a nada obedece ou respeita. Da natureza
simbólica da moto nasce o mito do fora da lei que chuta
sua própria imagem no espelho. A invisibilidade do motoboy pode se transformar quando este invade o espaço
do outro. Alguns sabem disso e invadem com vontade.
De aparecer. De conflitar. Não obedecem as regras, pois
não fazem parte do jogo. Os demais profissionais que
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Hoje são milhares de motoboys em meio ao tráfego
pesado da cidade. Os corredores de ônibus espremeram
os automóveis, mas garantem o transporte dos periferizados até os centros de trabalho, otimizando o tempo de
quem tem que chegar antes e sair depois. Os tempos distintos dos mais diversos trabalhadores assim se cristalizam. O espaço também: corredores segregados imitam
a separação metafísica entre quem pega ônibus e quem
usa carro, ao mesmo tempo em que sedimenta a opção
da cidade por sua geografia excludente. Dos depósitos
de mão de obra barata, entretanto, surge um rebelde por
natureza: a moto, que penetra o espaço que não lhe é de
direito, ágil que é, rebolando entre os automóveis habitados por quem precisa que determinadas coisas sejam feitas em determinado tempo. Ou mais rápido, de preferência. Os eternos trabalhadores invisíveis, que constroem
sem aparecer, pois seu espaço restringe-se ao lugar da
produção e não da fruição, sobre a moto tornam-se incômodos ao desafiar o olhar atento do motorista — atento
com o outro no carro e não com seu empregado na moto,
pois ver o outro significa, primeiro, encaixá-lo dentro de
um discurso. A invisibilidade de alguém pressupõe a inexistência desse alguém dentro do ordenamento social.
Mas a invisibilidade muda historicamente: do escravo
aos trabalhadores miseráveis de Engels na Manchester
do século XIX, o motoboy tem sua existência condicionada à posição social. E esse olhar condicionado, regra
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No espelho retrovisor
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Coletivo canal*MOTOBOY
No espelho retrovisor
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Coletivo canal*MOTOBOY
na sociedade desigual, é forçado a enxergar quem nunca
viu: primeiro como incômodo, depois como estatística.
Inverte-se então o dito de Marx: assim como o serviçal
submisso vira marginal para depois morrer, o motoboy é
primeiro farsa para depois tornar-se tragédia. Entretanto,
ao contrário do enredo cotidiano dos romances policiais
dos tabloides televisivos diários, o motoboy é um trabalhador. No imaginário nacional, isso significa ser o oposto
do “bandido” — que é nosso “vagabundo”.
O motoboy trabalha e morre, ou trabalha e se acidenta,
pois, como numa guerra, para cada morto aparecem três
feridos: clavículas quebradas, joelhos torcidos e pernas
amputadas são outras estatísticas além das 365 mortes
anuais — ou 366, se o ano for bissexto. Daí a equação
simbólica que não fecha: não é bandido, é trabalhador.
Mas morre. Fica o incômodo de algo que não se explica.
Algo que não se entende. Como uma sociedade pode conviver com um espectro desses lhe rondando a civilidade?
Apesar de a morte ser o destino humano, o convívio diário
com sua real possibilidade pode revelar a falta de capacidade da sociedade em gerir bem-estar. As categorias
profissionais cujo discurso é perpassado pela fatalidade
mostram valores diversos para a vida humana: parece
que, tal a geografia “política” da cidade que circunscreve em um “centro expandido” seu gueto de civilidade,
o acesso ao conforto e às oportunidades é demasiado
restrito. Quem se percebe excluído dessa parcela de civilização pode optar por não partilhar de seus princípios,
resignando-se frente à fatalidade ou rebelando-se: a
morte na fila de um posto de saúde ou na esquina de uma
avenida torna-se um fato da vida ou um slogan que fala
da opção por ser outsider: “vida loka”.
No espelho retrovisor
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A civilização do trabalho intelectual tem tradição de
rejeitar as tarefas musculares, braçais. Tais tipos de atividade foram continuamente rebaixados à medida que o
processo histórico foi tomando o rumo do intelecto, que
domava a natureza e a sobrepujava — colocando-a a seu
serviço —, distanciando-se da sujeira e do suor, separando-se cada vez mais de sua origem e, assim, manifestando o orgulho do caminho percorrido. E com a história,
segue o rumo do olhar. O motoboy, nesse ponto, é o final de
uma complexa cadeia produtiva: ele é o responsável pelo
último parafuso de uma grande máquina. Seu trabalho o
obriga a relacionar-se com as ruas e avenidas continuamente, exposto à fumaça e à fuligem, ao suor e à sujeira
— que não penetra nos automóveis, essas carapaças herméticas de conforto regulado, fetiche do homem moderno.
A natureza da motocicleta é outra — daí seu apelo nãoconformista. Mas como sujeito do ordenamento social,
a moto enquanto veículo para o lazer é diversa da moto
para o trabalho: a sociedade não aceita o conformismo
em seu seio tão facilmente. Ela restringe ao lazer — o
período do não-trabalho merecido após as horas regulamentares —, ou outro tipo qualquer de regulação, seus
rompantes de originalidade. A moto também está mais
próxima do risco que o carro: os dispositivos de segurança desenvolvidos ao longo de anos — e que tornam
os automóveis cada vez mais seguros e caros — trouxe
ao homem a possibilidade de viver cada vez mais próximo do limite. Se os carros mudaram muito, as motos,
no entanto, mudaram pouco, devido aos limites de sua
própria concepção. O risco físico fica então ao encargo
de quem a ele se sujeita, como no caso de inúmeros
outros trabalhos essenciais à sociedade que, por lidarem com o que se considera “degradante” — pois contrário à norma que valoriza a distância dos subprodutos
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Coletivo canal*MOTOBOY
ou da infraestrutura da máquina social —, são reservados às classes mais abaixo da pirâmide. A sociedade,
em suma, deve operar como “por encanto”, magicamente
funcionando sem produzir detritos de qualquer espécie.
O “encanto” é assegurado pelo olhar que ignora quem
lida com o indesejável — ato agravado em uma sociedade historicamente segregada cujo ideal de igualdade
de direitos é apenas retórica, uma ideia “fora do lugar”: é
o que fica aparente no trato da valoração da vida humana,
que possui índices diferentes conforme se aproximam do
centro geográfico da metrópole. Aqui, igualdade e autoconsciência unem-se para dizer que consciência e democracia não se separam.
No “centro expandido”, a morte ganha destaque, mesmo
que seja pela força dos números. O motoboy acidentado aparece nos noticiários graças ao agravamento do
trânsito de uma cidade cujas veias não suportam mais a
seiva que transportam. O motoboy, que agiliza serviços e
encurta prazos, atrasa a rotina da cidade quando sai de
sua rota invisível. Nesse ponto, ele passa a ser visto. Vira
assunto no jornal. Leis são feitas para ele. Umas “pegam”,
outras viram moeda de troca entre os representantes do
poder e quem a ele deve se submeter. Outras simplesmente somem. Leis em um país de apenas alguns cidadãos carecem de eficácia. Leis são elementos públicos,
em um país em que as calçadas são mosaicos desarranjados da privacidade de cada imóvel a invadir o espaço
público das ruas. A falta de normatização é a carência
de um projeto unitário. Isso incentiva a criação de mais
leis, para tentar normatizar o caótico, o que provoca a
ingerência nas coisas mais básicas. Chega-se, então,
às normas que impõem roupas padronizadas, com fitas
luminescentes, para que o motoboy seja visto. Acessório
indispensável por ser mundialmente aceito como eficaz, ele esbarra na questão de que a invisibilidade do
motoboy não é um problema de regras de trânsito, mas
No espelho retrovisor
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de organização social. O olhar é educado para não ver. O
olhar cria. Sobre o motoboy incide o olhar que vigia. Esse
olhar não dá oportunidade ao observado de se pronunciar, pois vigia segundo suas próprias normas. Ele visa ao
encaixe em um sistema, em um discurso que viabiliza e
reforça ordenamentos já previamente estabelecidos.
Cabe então ao olhar deseducado a tarefa de observar
e se surpreender. O olhar estrangeiro é aquele que não
participa do conjunto de normas específicas em que
passeia momentaneamente os olhos. O turista descobre o que o nativo não vê, pois encaixa em outro sistema
simbólico de valores — ou não encontra lugar definido para encaixar, e aí fica a surpresa do inusitado. A
curiosidade do estrangeiro devolve imagens que muitas
vezes não vemos. Por isso o estrangeiro pode ser perigoso, pois com seu olhar desestabiliza toda uma construção social. Nesse ponto, o motoboy é o estrangeiro
eternamente presente no trânsito da cidade. É o indivíduo que não deveria aparecer ali, mas, invisível, deveria cumprir sua missão civilizatória e retornar ao gueto,
como outros milhões, diariamente, mundo afora. Resta
saber em que mundo vive esse estrangeiro, ou em que
mundo ele pensa viver.
Da união de estrangeiros surge a oportunidade de dar
ao “motoboy” o controle de seu discurso. Capturando as
imagens de seu cotidiano, o “profissional do motofrete”
pode mostrar o que vê da maneira como sente, tornandose visível além da mera estatística. O indivíduo sob o
capacete de “motociclista” pode mostrar quem é, o que
vê e o que quer nas imagens que produz. Para além do
herdeiro do antigo office-boy, o novo personagem cotidiano que ronda o trânsito em sua moto pode, finalmente,
começar a produzir sua própria caricatura.
Augusto Stiel Neto
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Coletivo canal*MOTOBOY
No espelho retrovisor
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Cap.03
Cultura Motoboy
Cap.03
Cultura Motoboy
Cultura Motoboy
Em um excelente artigo publicado no site Caderno Brasil do
Le Monde Diplomatique, em 2008, intitulado “A Revolução
Cultural dos Motoboys”, o historiador e ativista social
Eleilson Leite revelou uma surpreendente visão do universo dos motoboys paulistanos que participavam da 1ª
Semana de Cultura Motoboy, realizada em maio daquele
ano no Centro Cultural Popular da Consolação. Sempre
tendo em mente o contexto em que surge a figura do
motoboy, segue este material em versão impressa:
A revolução cultural dos motoboys
Um evento em São Paulo, um site inusitado e dois filmes
ajudam a revelar a vida e a cultura destes personagens de
nossas metrópoles. Sempre oprimidos, por vezes violentos,
eles vivem quase todos na periferia, são a própria metáfora do
caos urbano e estão construindo uma cultura peculiar.
“Termina neste sábado, 17 de maio, a 1ª Semana de Cultura
Motoboy. O evento começou na última segunda-feira, no CCPC
— Centro Cultural Popular da Consolação — e a programação
conta com muita música, intervenções, mostra de filmes e
oficinas, entre outras atrações. Durante a semana, as atividades rolaram sempre à noite. No sábado, tudo começará à
tarde, com workshops e show de encerramento a partir das
20h, varando a noite.
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A realização desse evento é tão surpreendente quanto oportuna. Fomos habituados a ver os motoboys apenas como um
bando de malucos que desafiam as leis da física e os limites
do próprio corpo nos estreitos corredores das avenidas da
metrópole. E a maioria da população, sobretudo os motoristas, nutre uma antipatia em relação a esses mensageiros
de moto. Para muitos, é difícil ver o ser humano por trás do
capacete. Por outro lado, é um fenômeno tão recente que os
estereótipos são compreensíveis em função da falta de informação e reflexão sobre o perfil desse tipo de profissional. É
chegada a hora de darmos atenção a o que eles pensam e
desejam. Eles, que arriscam a vida diariamente para atender
à pressa que temos para entregar documentos, comer pizza,
tomar remédios, entregar flores, receber o jornal — ou seja,
socorrer-nos na maluquice que virou a vida nos centros urbanos, em especial São Paulo.
O aumento exponencial dos motoboys causa perplexidade.
Nos últimos dez anos, saltaram de cerca de 50 mil para um
número estimado de 300 mil, só em Sampa. Embora não haja
estatísticas seguras, estimativas apontam um número que
pode chegar a 500 mil em toda a região metropolitana. Quanto
mais inviável o trânsito, maior a demanda pelo tipo de serviço
que esse profissional realiza. É uma categoria que surge em
função do caos provocado pelos congestionamentos. No ritmo
em que a indústria automobilística vem produzindo, a perspectiva é de que tenhamos mais e mais motoboys pela cidade.
Sem que percebamos, estamos cada vez mais reféns desses
mensageiros. Há quem diga que uma greve de motoboys causaria mais prejuízo a São Paulo do que uma greve de ônibus.
Vivendo nos corredores das grandes cidades, os motoboys
são a tradução explícita da alegoria de Brecht: um rio cuja
violência das águas é produto da opressão das margens que
o comprimem.
Mas existe uma cultura motoboy? Pensando na cultura como
a construção simbólica de uma coletividade, cuja expressão
revela sua identidade, comecei a refletir sobre essa questão.
E é intrigante analisar o que é afirmação de identidade para
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Coletivo canal*MOTOBOY
Cultura Motoboy
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Coletivo canal*MOTOBOY
este grupo. Conversando com alguns deles, sobretudo os mais
antigos, percebi que há uma rejeição ao próprio nome. A definição motoboy popularizou-se em virtude do caso do Maníaco
do Parque, um bandido que, em meados da década de 1990,
passando-se por um fotógrafo de agência de modelos, atraía
jovens garotas para a densa mata do Parque do Estado, onde
estuprava e matava suas vítimas. Esse caso causou uma
indignação maior do que essa a que assistimos hoje no caso
Isabella Nardone. O nome motoboy, portanto, surgiu estigmatizado. E para piorar a situação, nos últimos anos estatísticas
policiais revelaram um grande aumento do número de assaltos praticados por ladrões com uso de motos..
Não é fácil a vida de motoboy e motogirl. Ralam em condições
de trabalho para lá de precárias, insalubres e periculosas, para
obter uma remuneração que vai de R$ 250,00 a, no máximo,
R$ 1.200,00 (casos raros). Ainda têm que aguentar o preconceito. Os caras e minas têm uma jornada de trabalho que pode
chegar a 16 horas, em três serviços diferentes. Alguns deles
começam às quatro da madrugada, entregando jornal até as
sete da manhã. Depois, vem o expediente básico na agência de
motoboys ou numa firma qualquer, até seis da tarde. Cruzam a
cidade e na periferia, onde a maioria mora, ainda complementam a renda entregando pizza, ali mesmo pelo pedaço.
Esse trampo noturno é dos mais ingratos. Normalmente,
ganham uma diária de R$ 15,00 e mais R$ 1,00 por pizza entregue. Ou seja, se fizer 15 entregas em uma noite, receberá R$
30,00. Essa realidade e muitos outros dramas (e delícias, também) da vida desses profissionais estão no brilhante documentário Motoboys Vida Loca, de Caito Ortiz, uma produção de
2003, que foi premiada na Mostra Internacional de Cinema de
São Paulo naquele ano. O belo filme 12 Trabalhos, do cineasta
Ricardo Elias (De Passagem), ajuda também a entender o coração que bate em baixo da jaqueta do motoboy. O filme conta a
história do jovem Heracles que, saído da antiga Febem, tenta
recomeçar sua vida trabalhando com moto-frete. Embora ficcional, a produção, de 2006, revela o perfil de um motoboy com
enorme sensibilidade.
Cultura Motoboy
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A cultura motoboy é um produto do contexto social em que
vive esse profissional. Sendo esse contexto caótico, urgente
e tenso por natureza, não há como essa cultura não expressar a paisagem urbana que lhe serve de cenário. O motoboy
e a motogirl são a própria metáfora do caos urbano. São, ao
mesmo tempo, heróis e bandidos em uma cena onde o protagonista não é o ser humano, mas o veículo motorizado —carro,
moto, ônibus ou caminhão. São a expressão de um dos lados
da luta fratricida pelo espaço público. Cada metro quadrado
de asfalto é defendido por motoqueiros e motoristas como se
dele dependesse sua vida, seu destino. Vivendo nessas artérias que são os corredores das grandes avenidas, os motoboys
acabam sendo a tradução explícita da alegoria de Brecht: um
rio cuja violência das águas é produto da opressão das margens que o comprimem.
Roupa, moto adesivada, solidariedade entre si e procedência
periférica são elementos da cultura motoboy. Mas há algo
menos evidente: a semântica. Eles e elas construíram uma linguagem própria. Contracenado nesse caos, o motoboy é parte
dessa confusão, e sua afirmação enquanto grupo é carregada
de contradições. Quem ele é fora do front? Ele leva para sua
casa e sua comunidade toda essa adrenalina do dia a dia do
trampo? O filme de Caito Ortiz é muito feliz ao desconstruir
estereótipos. Há uma motogirl de 44 anos que pede para que
o destino lhe reserve um acidente fatal. Assim, ela se livraria
da dor que foi a perda do filho morto aos 18, a separação do
marido e o afastamento da filha que resolveu casar e sumir.
Ronaldo, outro personagem real do filme, contradiz a percepção que temos do motoboy. Empregado com carteira assinada
e salário de R$ 1.200,00, ele tem 34 anos e não tem pressa. Faz
o trampo na boa e no final do dia chega em sua quebrada e é
recebido em casa pela mulher e o casal de filhos. Já o Gavião,
garoto de 20 e poucos anos, é “cachorro loco” – denominação
usada na periferia para aquele motoqueiro arrojado, ousado e
que atrai a atenção das minas com suas loucuras ensaiadas.
Ele adora ser motoboy porque gosta da adrenalina do trânsito. Parece um “sem destino”, um sujeito que não responde
a ninguém que não seja ele próprio, ostentando a máxima
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Coletivo canal*MOTOBOY
Cultura Motoboy
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segundo a qual, se morrer em cima da moto, “morre feliz”. Que
nada. Mora com a mãe, que lhe prepara o café da manhã com
carinho, reclama da roupa suja e das unhas malcuidadas do
filhinho e todos os dias reza para que ele possa “arrumar um
emprego decente”.
A diversidade revelada pelo documentário Vida loca nos
coloca a indagação. Teriam os motoboys, enquanto categoria,
um sentimento de pertencimento que desse um conteúdo
cultural a sua afirmação? Fiz essa pergunta a Eliezer Muniz,
o Neka, um dos fundadores do canal*Motoboy, coletivo que
organiza a Semana de Cultura Motoboy. Segundo ele, há vários
elementos comuns que criam uma identidade. A roupa, a moto
adesivada, a solidariedade entre eles, a procedência periférica e a classe social são alguns desses elementos. Mas Neka
destaca outro aspecto muito interessante e talvez menos evidente: a semântica. O motoboy e a motogirl construíram uma
linguagem própria.
Expresso quase totalmente pela oralidade, esse vocabulário
agora pode ser lido pelas narrativas dos motoqueiros que
integram o canal*Motoboy na página (www.zexe.net/saopaulo) que mantém na internet . São dez motoqueiros que
se juntaram por iniciativa do artista plástico catalão Antoni
Abad no projeto artístico Motoboys Transmitem de Celulares, realizado durante três meses, no primeiro semestre de
2007, no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Cada um deles
recebeu um celular de alto padrão tecnológico com conexão
à internet. Enviaram fotos e textos para o site, revelando sua
percepção sobre a vida na cidade. Antoni desenvolveu experiências semelhantes com prostitutas em Madri, imigrantes
nicaraguenses na Costa Rica e taxistas na Cidade do México.
Está tudo lá, no mesmo site.
Lendo as narrativas, no site, nos surpreendemos com relatos
do drama vivido pelos motoboys, mas também nos divertimos
com a comunicação entre eles. São repórteres privilegiados.
A realização desse trabalho teve o apoio do Centro Cultural
da Espanha. Durante e após o término da exposição no CCSP,
o grupo atraiu diversos parceiros, entre eles a Cidade do
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Coletivo canal*MOTOBOY
Conhecimento, da USP, o Instituto Socioambiental (ISA) e a
Ação Educativa. Vale a pena navegar pelo site. Lendo as narrativas, nos surpreendemos com relatos do drama vivido pelos
motoboys, mas também nos divertimos com a comunicação
entre eles. Percebemos uma preocupação com a cidade e nos
chocamos com os acidentes que às vezes são noticiados. O
motoboy é um repórter privilegiado. E essa produção rápida
de notícia, feita por quem sabe bem o que é urgência, tendo
um veículo midiático ao alcance, certamente está produzindo
um indicador muito interessante e revelador do que pode ser
a cultura motoboy.
A Semana de Cultura Motoboy e o canal*Motoboy estão dando
uma contribuição enorme ao entendimento acerca da vida
dessa gente tão batalhadora quanto estigmatizada. A capacidade de articulação do grupo tem produzido parcerias muito
interessantes. A aproximação com o ISA vem possibilitando
o engajamento do motoboy em questões ambientais urbanas das mais relevantes. Você sabia que um motoboy utiliza,
em média, 3 litros de óleo por mês e que esse resíduo vai, na
maioria dos casos, para o esgoto? Segundo o ISA, cada litro de
óleo contamina 1 milhão de litros de água. Você pode imaginar
900 mil litros de óleo contaminando a água? Por outro lado,
o contato com a Ação Educativa está pautando a questão do
letramento entre os motoboys e suas dificuldades de leitura
e escrita. A Cidade do Conhecimento está proporcionando
capacitações em mídia digital. Ou seja, há um movimento em
torno de um pequeno grupo de motoboys que pode produzir
uma grande revolução na categoria.
Muitas outras iniciativas estão rolando e ainda dá tempo de
entrar em contato com o canal*Motoboy e participar de seu
evento. Apareça nesse sábado no CCPC e você mudará seu
conceito em relação ao motoboy.
Eleilson Leite, “Caderno Brasil” de Le Monde Diplomatique em
17/05/2008.
Cultura Motoboy
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Coletivo canal*MOTOBOY
Para este reconhecido programador cultural e coordenador do Espaço de Cultura e Mobilização Social da
ONG Ação Educativa, a partir de agora não é mais possível olharmos para os motoboys de uma forma limitada,
mesmo que possamos considerá-los entre mais uma
tribo urbana, sua presença e seus modos de sentir estão
atravessados por uma trama de significados que nos leva
a nos perguntar: como podem ser pensadas suas manifestações culturais?
Figura urbana por excelência, morador da periferia e com
presença diária nos veículos de comunicação, Eleilson
me indagou sobre o que são os motoboys. “Existe uma
cultura motoboy?”
O que pensam estes caras, o que é ser motoboy?
No início de 2008, no pavilhão do Centro de Convenções
Imigrantes, durante um evento voltado para o segmento
de motoboys e mototaxistas chamado Motoboy Festival ,
tivemos a oportunidade de conhecer o grupo musical CR
13 MC’s que naquele momento estava em alta com seu
refrão “Ei, cachorro louco”, que vinha no CD 125 motivos
de correria, lançado por eles naquele ano.
O líder e cantor do grupo, Junior 13, nos procurou.
Conversando com os motoboys do canal*MOTOBOY, pediu
para que cedêssemos uma parte do pequeno estande
que ganhamos naquele evento para que expusesse ali o
CD do grupo.
Durante aqueles quatro dias, tivemos o prazer de compartilhar com os músicos e outros motoboys que participavam do evento uma fraterna parceria de ideias e trocas
de experiências. Nosso estande transformou-se, assim,
em um caldeirão cultural, com distribuição de catálogos
do canal*MOTOBOY e adesivos, muitas fotos e vídeos produzidos ali e expostos no site do nosso projeto. Além, é
claro, de brindes e vendas do CD do grupo.
Cultura Motoboy
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Entre estas conversas e discussões surgiu a ideia de realizarmos um evento exclusivamente voltado à cultura
motoboy. Encabecei o projeto imediatamente, colocando
o canal*MOTOBOY à disposição, como o realizador do
evento, e passamos a chamar aquele evento que organizaríamos de Semana de Cultura Motoboy.
Como já tínhamos em mente organizar uma festa para
comemorar o primeiro ano do projeto canal*MOTOBOY,
em maio daquele ano, e como estávamos confiantes que
teríamos uma boa programação, estipulamos que cada
banda que conhecíamos na categoria dos motoboys daria
um show por dia – dia não – noite, porque a ideia era que
ao realizarmos uma pequena atração durante a semana,
à noite haveria a possibilidade de que muitos motoboys
que trabalham de dia pudessem ao menos participar em
um dos shows.
Assim, nos próximos meses que se seguiram, tivemos
um contato direto com diversos artistas motoboys que
começaram a aparecer e que passaram a se reunir em
torno do projeto canal*MOTOBOY. Era o início de um trabalho coletivo onde os motoboys que faziam música e
falavam da vida sobre duas rodas podiam se reunir e
discutir sobre nossa atuação cultural junto à categoria
dos motoboys. Conhecemos o Poeta dos Motoboys, que
já estava na estrada há pelo menos uma década, com
seu rap cheio de melodias. Fomos apresentados a um
dedicado grupo de rappers de Guarulhos, que também
viria a se apresentar na Semana de Cultura, liderada
pelo Carlos, ou como o chamamos, o Cal, do grupo Q.I.
do Queto. E convidamos para uma apresentação o grupo
Núcleo, que tem um trabalho bem desenvolvido, com
canções gravadas durante os útimos anos e duas faixas
inéditas: “Na Contramão” e “Trânsito”.
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Coletivo canal*MOTOBOY
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Coletivo canal*MOTOBOY
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Fechamos então com estes artistas e começamos a procurar apoio para a realização do nosso evento cultural.
Porém, como todos sabem, é muito difícil hoje em dia as
empresas vincularem suas marcas ao nome motoboy por
conta do preconceito.
Tinha sido assim, durante os mais de quatro anos em que
o artista plástico espanhol Antoni Abad, sem sucesso,
tentou realizar no Brasil seu projeto de arte usando celulares com os motoboys. Mas com a experiência que acumulei durante os anos em que me envolvi com nossa categoria profissional, sabia que não seria possível encontrar
patrocinadores dentro do mercado de moto. Então, preparamos um projeto de captação de outras fontes de apoio
e começamos a levá-lo às instituições que nos apoiavam.
Só depois fomos buscar apoio junto às empresas do setor
de motocicletas.
Antes disso, para que o leitor tenha uma visão mais próxima de como o canal*MOTOBOY funcionava, seria interessante deixar clara a importância que algumas parcerias desempenharam nessa história.
Desde que o projeto do Canal foi lançado, em maio de
2007, no Centro Cultural São Paulo, com o apoio da
Agência Espanhola de Cooperação (AECID) e do Centro
Cultural da Espanha em São Paulo (CCE-SP), tínhamos
desenvolvido uma estratégia de sustentabilidade para o
canal*MOTOBOY.
O CCE-SP, no caso, foi uma grande parceria para nós.
Estabelecemos contato com o pessoal desta instituição
logo que ela foi inaugurada, e o canal*MOTOBOY ainda
tinha pouco tempo de existência. Solicitamos apoio ao
canal*MOTOBOY em suas ações, além de suporte, uma
vez que o projeto era basicamente uma experiência que
agregava um grupo de motoboys e alguns pesquisadores,
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Coletivo canal*MOTOBOY
que desde o início do projeto vinham acompanhando o
grupo e orientando estas ações.
Mas para isto era também necessário apoio financeiro,
sem o qual seria impossível prosseguirmos. Desde que
não nos faltassem créditos nos celulares para que fizéssemos os envios ao site www.zexe.net/SAOPAULO, poderíamos desenvolver nossos projetos e manter o site e,
mais importante, o grupo de motoboys unidos.
Assim, o projeto da Semana de Cultura Motoboy começava a nascer. E para isto voltamos a buscar o apoio do
CCE-SP, que foi fundamental para a realização do evento.
No início tínhamos apenas uma ideia do que queríamos.
A nossa esperança sempre foi que uma categoria grande
como esta tivesse muitos motoboys-artistas a revelar.
Ainda há, todos sabemos disso.
Quando apresentamos nosso projeto, a Sra. Ana Tomé,
diretora do CCE-SP, percebeu que estávamos indo na
direção certa. Além da parceria com este centro cultural, o canal*MOTOBOY tinha criado uma rede de contatos com outras instituições parceiras. E naquele primeiro
ano o canal já era um grande sucesso, pela quantidade
de mídia que vínhamos fazendo. Uma das parcerias mais
sólidas, que mantemos até hoje, era com a ONG Ação
Educativa. Esta ONG, muito conhecida pelo seu trabalho com a cultura jovem de periferia, imediatamente deu
apoio ao Coletivo canal*MOTOBOY.
O primeiro contato com a Ação Educativa foi realizado
pelo antropólogo Augusto Astiel, que nos apresentou
ao Sr. Eleilson, coordenador daquela ONG, em uma de
nossas reuniões do canal*MOTOBOY, ainda quando o
canal era apenas uma exposição de arte contemporânea no Centro Cultural São Paulo. A Ação Educativa caiu
do céu. Digo isto por que foi em boa hora, e por força
Cultura Motoboy
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da necessidade, que surgiu esta parceria. O Astiel, meu
amigo desde nossa formatura na USP, foi uma das pessoas que ajudou o artista a fundar o canal*MOTOBOY e
participava de todas as reuniões do canal desde o início.
Em uma destas reuniões, quando o prazo da exposição
no CCSP já estava quase se esgotando, e que deveríamos
cair fora, ele sugeriu que buscássemos uma parceria de
alguma outra instituição para acomodar nossas reuniões
com os motoqueiros aos sábados à tarde. Acredito fielmente que, se não fosse o contato com o Eleilson naquele
dia, quando os motoboys e motogirls aceitaram o convite
dele, para fazermos nossas reuniões de pauta na sede da
Ação Educativa, o canal*MOTOBOY teria acabado.
A parceria com a Ação Educativa nos possibilitou muitas outras coisas além do espaço para as reuniões.
Passamos então a nos encontrar todos os sábados pela
manhã e a utilizar o centro de multimídia para a edição
dos canais dos motoboys do projeto, no canal*MOTOBOY.
Também passamos a receber nossas correspondências
em um endereço fixo e a ter uma estrutura básica para
trabalharmos, como telefone, internet etc. Foi ali na Ação,
também, que gravamos inúmeras entrevistas para as
redes de TV, revista e jornais.
Outra grande parceria que concretizamos e com quem
fizemos muitas ações foi o Instituto Socioambiental (ISA).
Esta é uma das maiores ONGs de meio ambiente do país,
e que tem um extenso projeto de preservação dos mananciais em São Paulo. À primeira vista, até pareceria estranho termos um contato com eles, já que motoboys e meio
ambiente, aparentemente, não têm nada a ver. No entanto,
não é esta a realidade, principalmente para nós do projeto
canal*MOTOBOY. Esta parceria aconteceu e cresceu justamente por conta da preocupação dos motoboys com a
poluição causada pela moto. Esta preocupação apareceu
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Coletivo canal*MOTOBOY
em uma das inúmeras e incansáveis reuniões semanais
que realizamos desde que constituímos o projeto.
Nesse cenário, a Semana de Cultura estava basicamente
certa. Ou seja, tínhamos muito conteúdo. Mas faltava
ainda um local.
Assim, quando sentamos com a diretora do CCE-SP para
apresentar nossa proposta de parceria e apoio para a
1ª Semana de Cultura Motoboy, já tínhamos fechado
com um espaço que era a nossa cara. O espaço era o
Centro Cultural Popular da Consolação (CCPC), na Rua da
Consolação 1.901, quase em frente ao cemitério.
O lugar, como o nome já diz, tem uma pegada com projetos culturais populares, além de ser um centro de treinamento para que jovens da periferia se especializem em
iluminação teatral. Em um projeto subsidiado pela prefeitura no piso superior, há um dos principais cursinhos
pré-vestibulares populares, voltado para alunos sem
condições de pagar as altas taxas cobradas pelos cursinhos privados.
Assim, quando fechamos com o Tiago e o Bahia, indicados pelo pessoal da Ação Educativa, sabíamos que
aquele espaço tinha todas as condições para abrigar o
primeiro evento cultural da nossa categoria profissional.
Era pôr as mãos à obra. E o Centro Cultural da Espanha
em São Paulo topou apoiar nossa Semana de Cultura.
Assim, recebemos um adiantamento de R$ 6 mil para a
curadoria e as despesas do canal*MOTOBOY pelos próximos cinco meses. Ainda receberíamos outros recursos a
partir de mais parcerias de peso no projeto.
Como já dissemos, a base do canal*MOTOBOY, apesar de
ser um projeto de rede social na internet, é a presença
das pessoas nestas reuniões semanais. Ao contrário da
Cultura Motoboy
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web, das redes de relacionamento e das comunidades,
os projetos organizados pelo artista Antoni Abad, em
geral, são todos presenciais. Isto implica que, ao se dispor a participar desses encontros, as pessoas realmente
se envolvem nos projetos, já que eles são criados para
que elas possam, frente a frente, discutir as questões
que mais afetam sua vida comunitária. No caso, as complicadas relações dos profissionais motociclistas com a
cidade de São Paulo.
Foi assim, por exemplo, quando o artista esteve no Brasil
para organizar o projeto canal*MOTOBOY e apresentou
a mostra “MOTOBOYS TRANSMITEM DE CELULARES”,
no Centro Cultural São Paulo, em maio de 2007, e fui contratado para ser o curador-adjunto da exposição. Lembro
que, logo nas primeiras discussões sobre este projeto,
eu propus que deveríamos aproveitar a oportunidade da
exposição e, já que o momento também era de comemorações dos 25 anos do CCSP, organizarmos paralelamente à exposição um ciclo de debates e filmes sobre
a temática motoboy. O que, no entanto, dependeria de
enormes esforços por parte do pessoal do CCSP para buscar todos os filmes que foram realizados sobre motoboys
e ainda convidar diversas personalidades públicas para
comparecer aos debates, uma vez que eles não tinham
apenas a nossa exposição, mas precisavam cuidar de
toda a comemoração que aconteceria junto à nossa abertura, com dezenas de artistas e eventos simultâneos por
todo o CCSP. É preciso lembrar também que a Prefeitura
havia liberado uma verba para para as estas comemorações, o que possibilitou ao CCSP trazer o artista ao
Brasil e montar o canal*MOTOBOY. Ao dar este suporte,
e somados os esforços da equipe do CCSP, meu trabalho
de curadoria foi buscaros diretores que haviam filmado
com os motoboys e ainda montar as mesas para o Ciclo
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de debates e filmes – os profissionais motociclistas e a
cidade de São Paulo.
Meu argumento naquele momento era de que precisávamos resgatar o debate público em torno das condições de vida dos motoboys, uma vez que havia um hiato
criado a partir das sucessivas tentativas de regulamentação, pelo poder público, justamente a favor da criação
de uma política pública voltada à categoria, mostrando
aos cidadãos que nossa categoria mantinha uma relação quase umbilical com a cidade.
Após a abertura da exposição, ficou claro durante as reuniões que os motoboys tinham uma poderosa ferramenta
de comunicação em mãos. E que deveriam se apropriar
dela, como forma de suscitar uma mudança na opinião
pública acerca da categoria.
Voltando à importância das parcerias na realização da
Semana de Cultura, lembro que o formato do projeto –
com reuniões abertas – possibilitou que tivéssemos contato com diversos atores sociais. Por exemplo, o professor Gilson Schwartz, diretor da Cidade do Conhecimento,
da USP, que naquele momento iniciava uma série de pesquisas sobre o uso de celulares em comunidades.
No início do projeto canal*MOTOBOY convidamos o professor a participar de uma das mesas de debate, em que
estariam presentes o diretor de cinema Caito Ortiz, o crítico e teórico de arte Alberto Lopez Cuenca - que veio do
México/DC -, o professor de artes e comunicação Martin
Grossmamm. Desde então, Gilson se propôs a fazer
com que nossas contribuições, em termos de experiências com nossos celulares, se transformassem em pesquisa para a academia. De fato, criou em nós uma grande
expectativa. E passamos a colaborar com as iniciativas
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da Cidade do Conhecimento, uma vez que acreditávamos
que os benefícios que poderiam resultar das pesquisas
seriam direcionados a uma mudança radical - que ainda
não se concretizou, apesar de nossa intensa colaboração
- da forma de organização do trabalho dos profissionais
motociclistas.
Desse modo, nos meses que se seguiram entre a exposição “Motoboys transmitem de celulares” e a idealização da Semana de Cultura Motoboy, contribuímos continuamente para as pesquisas da USP. Um exemplo disso
ocorreu alguns meses após aquele primeiro debate: a
Cidade do Conhecimento havia recebido uma proposta
da Fundação Telefônica da Espanha para participar de
uma pesquisa de campo na America Latina, juntamente
com outras instituições, mas aqui, no Brasil, seria a USP
a responsável pela realização da pesquisa. Graças ao
Coletivo canal*MOTOBOY, que promoveu um debate sobre
a importância do celular na comunidade dos motoboys
como uma ferramenta imprescindível para o desenvolvimento do trabalho, a comunidade escolhida entre tantas
para ser pesquisada seria a dos motoboys paulistanos.
Podíamos estar comemorando. Tínhamos bons motivos.
Após um ano de trabalho duro, um grupo de motoboys
cruzara diversas fronteiras. Fomos acolhidos por duas
das maiores ONGs do Brasil, uma voltada à educação e
outra ao meio ambiente. Tínhamos apoios que vinham dos
centros culturais e ainda estávamos caminhando com a
mais importante universidade pública do país, que agora,
por meio da pesquisa que ela estava realizando para a
Fundação Telefônica, apoiaria a Semana de Cultura, e foi
assim que conseguimos que eles se responsabilizassem
pelo pagamento da locação do espaço do evento.
Nossa agenda era extremamente corrida. Mas ainda
tivemos tempo de fazer alguns contatos com empresas
Cultura Motoboy
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especializadas na venda de produtos para motoboys.
Íamos não só atrás do patrocínio deles, mas de apoio e
parcerias, buscando levar uma nova proposta de trabalho
e procurando mostrar ao empresariado uma nova visão
dos profissionais motociclistas. Afinal, tudo aquilo que
estávamos desenvolvendo dentro do canal*MOTOBOY não
tinha parâmetro em lugar algum, nem em associações ou
sindicatos de motoboys: era totalmente inusitado e permitia mostrar uma nova face destes cidadãos. E como
ainda temos esperança de um dia ver o que estava sendo
pensado por nossos pesquisadores dentro das universidades, buscando uma compreensão das dinâmicas dos
motoboys a partir de um novo modelo de negócio, então,
para nós, era hora de demarcar um território. Para essa
finalidade, a Semana de Cultura seria um palco. Dessa
forma, recebemos muitos brindes de diversas empresas
do ramo de autopeças motociclísticas, e os distribuímos
aos motoboys e motogirls que foram apreciar o evento. Da
Alba Industrial, de Campinas, recebemos capas de chuvas. Da Pneus Levorin, em Guarulhos, dezenas de pneus.
A Filtros MANN, da cidade de Indaiatuba, nos enviou
diversos kits com brindes. E o mais legal foi a distribuição nas ruas, nas semanas que antecederam o evento, os
20 mil folhetos que recebemos como apoio e incentivo da
empresa AM3 – Feiras e Eventos, organizadora do Moto
Festival. Este apoio da AM3, em especial, veio de uma
parceria do canal*MOTOBOY com esta empresa, para que
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Coletivo canal*MOTOBOY
a Semana de Cultura Motoboy entrasse definitivamente
no calendário oficial do setor das duas rodas.
Assim, entre os dia 12 e 17 de maio de 2008, realizamos a 1ª Semana de Cultura Motoboy, com a seguinte
programação:
12/05
Festa de Abertura/Exposição
Fotográfica1/DJ San
13/05
Apresentação de Q.I. do Gueto e
Poeta dos Motoboys
(transferido p/ sábado)
14/05
Sessões de curta-metragens:
Meu nome é Ronaldo, de Antoni Abad
e Glória Marti
FLUXUS Kynemas, de Pedro Paulo Rocha
15/05
Apresentação NUCLEO - com os rappers
Zaro e Rogério
16/05
Apresentação CR 13 MC’s
17/05
Oficinas: Teatro – Cia Kiwii;
Grafitti – IZU 100% Favela;
Meio ambiente com Cezinha do ISA
– Instituto Socioambiental
Eliezer Muniz dos Santos
1 O painel fotográfico apresentado foi uma doação do Estúdio Madalena e teve
a curadoria do fotógrafo Iatã Cannabrava.
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Cap.01
Meu nome é Ronaldo.
Cap.01
Meu nome é Ronaldo.
Meu nome é Ronaldo
Meu nome é Ronaldo, tenho 36 anos e trabalho de moto
nas ruas de São Paulo todos os dias desde 1992. Tinha
apenas 17 anos quando comecei, e como qualquer moleque nesta idade, também era apaixonado por motocicletas. Naquela época, não existia esta facilidade de hoje
para adquirir uma motocicleta, e para quem nunca teve
nem uma bicicleta, ter uma moto era um grande sonho a
ser realizado. Nunca desisti de sonhar.
Aos 12 anos perdi meu pai. Foi um grande baque para
mim, e passei a contar apenas com minha mãe, que
sempre me ajudou em tudo. Então, fui trabalhar em um
bar próximo à minha casa, onde separava os vasilhames
para entregar às distribuidoras. Aos 14 anos comecei
a trabalhar de office-boy. Nesse momento, aconteceu
meu primeiro contato com a cidade de São Paulo. Aos 17,
com o dinheiro da rescisão da empresa onde trabalhei de
boy, comprei minha primeira motocicleta.
Lembro como se fosse hoje. Eu estava deitado no sofá em
minha casa quando Marké, um de meus melhores amigos de infância, chegou gritando: “Meu, achei uma motinha pra você comprar.” Era uma Yamaha RX 125 c. Ele me
dizia, todo eufórico: “Vamos lá Ronaldo, dá uma olhada
na moto.” Quando chegamos lá, era uma motocicleta
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vermelho-cereja, estava parada há muito tempo e não
funcionava. Fiquei todo empolgado com a ideia de
ter minha primeira moto. Nesta mesma noite quase
nem dormi pensando nela. Na manha seguinte, fui ao
banco e retirei o dinheiro combinado. Na época, eram
setecentos contos. Quando finalmente tive a moto na
mão, eu nem acreditava. Neste mesmo dia, subi lá nas
bocas2 para comprar algumas peças e outras coisinhas
que ainda faltavam para fazê-la funcionar. Voltando à
casa do Marké, no dia seguinte, começamos a desmontagem. Tiramos desde o banco até o tanque de gasolina. Foi uma lavagem completa! Ao final da tarde, estávamos desanimados por por não termos consertado a
moto depois de um dia inteiro de esforço. Um grande
amigo chamado Marivaldo, que estava passando em
frente a casa do Marké, perguntou:
— Vocês já viram o platinado?
Um olhou para a cara do outro, e como nos dias de hoje,
ninguém ali sabia o que era isto. Naquela época, a maioria das motos era a platinado, uma peça que foi posteriormente substituída pela ignição. Graças a Deus,
pois, se chovesse e o platinado ficasse molhado, a moto
morria e não funcionava. Empurramos minha moto
várias vezes para fazê-la pegar — sem sucesso. Então,
o Marivaldo, que tinha uma manha que faltava a todos
nós, pediu licença e fez a moto funcionar. Marivaldo
era daqueles motoqueiros cachorro louco, mas não era
bobo. Depois de uns minutos de conversa com ela, a moto
cantou o hino! Uma alegria para todos, principalmente
para mim. Vrummmmmmmmm... Vrummmmmmmmm.
Todo mundo queria dar uma volta na moto. Quando chegou minha vez — o dono da moto — eu não quis ir, pois
2 Região central da cidade onde estão localizadas lojas de motopeças.
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Coletivo canal*MOTOBOY
ainda não tinha as manhas de andar... Eu dizia, dando
de ombros: “Depois eu ando.” No final da tarde, fui pra
casa tomar um banho e, lá pelas oito horas, passei de
novo na casa do Marké. Só então a gente saiu para dar
meu primeiro rolé com a moto. O Marké tinha um irmão
muito loko que já tinha motocicleta. Ele empinava e barbarizava com a motoca, e como ele tinha alguma base da
tocada, saímos à noite pra dar uma volta. Para mim, era
um sonho se concretizando. Na garupa, ele me explicava
as marchas certas, o que e quando eu devia trocar, e,
logo depois, eu já estava pilotando sozinho... Mas ainda
era daquele jeito, porque eu ainda não tinha confiança. Se
parasse em um semáforo, e a moto morresse, tinha medo
de ficar na mão. Não sabia ainda respeitar as leis de trânsito. E o pior, não tinha habilitação.
Naquele tempo, não era obrigatório o uso de capacete
nem de espelho. Era uma sensação de liberdade que eu
queria experimentar, mas tive grandes problemas com a
polícia. Na primeira vez em que os policiais do meu bairro
me pararam sem dó, levaram minha motinha paro o pátio
da Marques de São Vicente. Depois ele ainda me perguntou: “Por que você num fugiu com esta merda?” Daí
pra frente foi só balão, não parava mais nas blitze, arriscando minha vida e a de outras pessoas. Estava naquela
idade em que pensamos que somos os melhores. E até
hoje é assim na periferia, onde a rapaziada quando junta
uma grana e compra sua primeira moto.
Para recuperar a moto, comecei a trabalhar em uma oficina de motocicletas, onde tive a oportunidade de aprender algumas coisas básicas sobre mecânica de motos.
No mundo das duas rodas, existem vários problemas que
podem ser evitados na motocicleta, como tomar cuidado
com o óleo, a relação e os freios. O óleo é como o sangue
da moto: sem o devido cuidado, as peças se desgastam
mais rápido. Para quem não sabia nada sobre esse tipo
Meu nome é Ronaldo
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Coletivo canal*MOTOBOY
de coisa, tive a oportunidade de aprender muito, desde
esticar a corrente atá abrir o próprio motor.
Um dos anos mais felizes da minha vida seria 1990.
Porém, quase no fim, acabou sendo um dos mais tristes,
pois perdi Marké, mais que um grande amigo, um irmão.
Sofremos um acidente pelo qual ele veio a falecer.
Na manhã desse dia fatídico, chamei Marké pra ir comigo
à 24 de maio para comprar uns discos. Era o aniversário de 15 anos da minha sobrinha, Luciane, e estávamos muito felizes. Por volta de uma dez da noite, o pai
de uma amiga de minha sobrinha, que estava na festa,
veio procurá-la. Disseram a ele que ela estava em uma
casa noturna. O velho ficou indignado e falou que ia
buscá-la pelos cabelos. Como todo moleque, a gente
quis ver o circo pegar fogo. O Marké ficou insistindo pra
gente ir lá ver, e eu dizendo que era melhor não irmos.
Como a gente era muito colado e ele insistiu muito, acabamos indo. Naquela noite, a gente estava com a moto
do Jean, outro grande amigo. Pegamos a moto a partimos. Uma esquina antes da casa do Marké, onde viraria à direita, ele me falou: “Passa na minha casa que vou
pegar uma blusa.” No mesmo instante, quando voltei a
acelerar a moto, recebi um impacto lateral na motocicleta. Fomos arremessados para longe. Tive mais sortepor estar usando capacete e jaqueta. Além disso, caí no
meio da rua e fui deslizando. O Marké, no entanto, colidiu com um poste. O carro, um Fusca vermelho, descia a
rua após sair de uma festa na casa de outro conhecido
do bairro. No momento da correria, ninguém se tocou,
mas o motorista, por estar alcoolizado, teria passado o
volante à mulher, e ela desceu uma rua em que obrigatoriamente teria que parar e passar com atenção, porque
a preferência era nossa. Na mesma hora, conseguimos
parar um carro que o levou ao hospital do Mandaqui. O
quadro dele se agravou e a família resolveu transferi-lo
Meu nome é Ronaldo
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para o hospital Osvaldo Cruz, cuja diária era caríssima.
O irmão do Marké teve que trabalhar alguns dias para
pagar a conta. Mesmo assim, ele não tinha condições
de permanecer neste hospital, então, foi transferido
mais uma vez para outro hospital público, onde veio
falecer. Meu melhor amigo partira. Fiquei sem chão.
Desde os tempos em que andávamos de bicicleta, que
ele mesmo me emprestava para andar, eu nunca tinha
apertado um parafuso, pois ele sempre dava uma mão.
Mas a vida é assim: nós a amamos e aos amigos, mas a
morte nos namora!
E até hoje tenho um laço enorme com sua família, todos
me tratam como se fizesse parte dela. Para toda coisa
ruim, Deus sempre reserva uma coisa boa pra gente.
Nesta mesma época, conheci aquela que seria minha
esposa, Patrícia, a melhor amiga da Mônica, namorada
do Marké. Sofremos muito nos primeiros anos com a
morte do meu melhor amigo, mas a vida continua.
Patrícia foi uma peça fundamental em minha vida.
Começamos a namorar de verdade. Estou com ela há 18
anos e temos duas filhas maravilhosas, a Fefe e a Júlia,
que me fazem feliz. Ela também era motoqueira e por
alguns anos teve uma Yamaha TT 125 cc, que ela usava
para ir ao trabalho e ir à escola. Com o passar dos anos ela,
tirou sua carteira de motorista e compramos o primeiro
carro. Foi uma alegria. Hoje ela trabalha em uma indústria
de tecidos ocupando o cargo de gerente de estoque.
Aos 18 anos, comecei a trabalhar na oficina de motos de
um grande amigo, o Renatão, e lá aprendi o básico. Trocar
o óleo, verificar válvula... Um pouquinho de cada coisa.
Algum tempo depois, comecei a trabalhar como motoboy
em uma empresa, mas era fácil. A cidade é muito grande.
A experiência adquirida na época de office-boy, me ajudou bastante. Esta é a função que exerço até hoje.
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Fiquei nesta empresa por uns dois anos. Naquela época,
eu não tinha muitas responsabilidades. Após algum
tempo comecei a trabalhar na contabilidade, e todos os
dias tinha um roteiro diferente. Foi lá que pude conhecer outras regiões da cidade. Como todo motoboy, eu
só queria andar de moto. Mas com o passar do tempo
a gente vê que não é só isso. É preciso estar atento aos
ladrões e à polícia.
Fiquei na contabilidade uns oito anos. Quando os filhos
do dono começaram a administrar, ela durou um ano apenas. A contabilidade chamava-se Roma Contabilidade
Ltda. Novamente fiquei sem saber o que fazer, afinal,
foram oito anos naquele contrato. Então resolvi fazer
alguns cartões e trabalhar por conta própria. No começo
não foi fácil. Alguns dias eu não tinha nenhum serviço.
Cheguei a pensar em parar. Mas como todo brasileiro
sofredor, lutar sempre, desistir jamais. Depois de alguns
dias consegui dois clientes muitos bons. Eles me davam
trabalho todos os dias. A minha sorte é morar desde que
nasci no bairro do Bom Retiro, que além de ser próximo
ao centro de São Paulo, é onde se localizam muitas das
empresas para as quais distribuía os cartões.
Graças as Deus hoje tenho alguns clientes que são grandes amigos como o pessoal da Araguaia e alguns clientes especiais como a Sra. Regina Silveira, a Sra. Márcia
Veek entre outras, que me oferecem trabalho todos os
dias. Tenho duas paixões: as duas rodas e o Corinthians,
meu time do coração. Nos finais de semana, vou à quadra da Gaviões da Fiel, onde encontro meus amigos e
levo minha família para passear. O bairro do Bom Retiro
é um dos mais antigos de São Paulo. Aqui vieram morar
italianos, judeus, gregos, sírio-libaneses, coreanos,
bolivianos. Além deles, temos, é claro, os nordestinos
e os paulistanos, que sempre estiveram aqui. Por isto é
um dos motivos que tenho para não mudar deste bairro
Meu nome é Ronaldo
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que além de ser aonde alguns amigos de infância moram
é onde se concentram muitas das empresas que estes
imigrantes constituíram aqui. Foi onde conheci minha
mulher e vi minhas filhas nascerem aqui e espero que
cresçam como eu cresci.
A vantagem de trabalhar por conta própria é que você
não tem só um cliente e nunca falta serviço. Muitos desses clientes viraram grandes amigos e sempre passam
serviço.
Quando recebo uma chamada, vejo meu roteiro para
poder atendê-las rápido. No começo era mais difícil trabalhar como motoboy em São Paulo, pois dependíamos
de uma mensagem que viria por bip, ou se estivesse na
própria empresa, quando estava passando em frente.
Mas tudo se modernizou - e o motoboy também mudou.
Ganhei meu primeiro telefone celular de uma grande
amiga e patroa, que era a mãe do Tutu, outro amigo meu
que faleceu em um acidente de motocicleta três meses
depois de ter me convidado para trabalhar na firma que
ele montara em sua casa. Na época, foi um choque para
todos os amigos e, principalmente, sua mãe, Maristela,
que além de mãe era uma grande amiga para ele. Mas
não desanimamos e seguimos em frente com um dos
seus sonhos: demos continuidade à Speed Express
firma de motoboys , na Alameda Barão de Limeira. Lá
éramos uma grande família. A tia fazia tudo pela gente.
Até moto ela já financiou para dois motoqueiros que não
tinham condições de comprar as suas. Comigo não foi
diferente: ela me deu meu primeiro celular. Antes eu era
pequeno, agora me transformara em um gigante, atendendo toda a freguesia da região.
Em 2004, tive o prazer de conhecer o Antoni Abad por
meio de uma cliente minha, artista plástica, chamada
Regina Silveira. Ela me falou que em breve um amigo
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Coletivo canal*MOTOBOY
dela, também artista plástico, viria ao Brasil com o
desejo de realizar um projeto que mostrasse a realidade dos motoboys em São Paulo usando celulares. Na
época achei que não era verdade, pois se um celular sem
câmera já era muito caro, um com câmera era uma fortuna. Por isso, não acreditei. Mas resolvi apostar. Em
outra ocasião, ela me ligou para fazer uma entrega e perguntei sobre o projeto. Ela me disse que seu amigo espanhol viria com uma proposta de entregar vinte celulares
para alguns motoboys para registrarem fatos do nosso
cotidiano. Neste momento, fiquei mais empolgado ainda
e saí falando para todos os meus amigos que tinham
motos. Com o passar do tempo – é um bom tempo –
meus amigos me perguntavam:
— E aí Ronaldo? Quando vai começar aquele projeto...
Eu sem saber o que dizer:
— ... Em breve!
Mas só depois de três anos e muitos contatos tive a
notícia que daria certo! Voltei a comentar com meus
camaradas e desta vez tínhamos a esperança de que
o projeto seria realizado. Naquela época eram poucos
aparelhos que tinham a tecnologia que têm hoje, com
câmeras, MP3, internet, GPS etc. Quando comentei com
meus amigos motoqueiros sobre este projeto, ninguém
botou fé, pois ninguém dá nada a ninguém, e se tratando
de motoboys, as coisas eram muito mais difíceis, um
camarada até comentou:
– De novo?
Fiquei com cara de mentiroso.
Estávamos em 2005 e toquei minha vida. Então, um
belo dia recebi um grande presente: minha primeira
filha, Fernanda, que seria uma das primeiras palavraschave (TAG) que um dia eu criaria naquele projeto.
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Ao final de 2006 tivemos finalmente uma boa notícia:
Antoni ligou dizendo que algumas instituições resolveram apoiar o projeto, o que não fora fácil, pois nenhuma
empresa queria vincular sua marca aos motoboys. Ou
seja, faltavam o patrocínio o projeto e os vinte celulares!
Quando esteve no Brasil, em 2004, este grande amigo
ficara impressionado com o grande número de motoboys
que trafegavam pela cidade e perguntara ao taxista, ao
passar pela Marginal vindo do aeroporto de Cumbica:
— Quem são este caras?
E o taxista respondeu:
— Esses são os donos da rua.
E ele falou:
— Como assim?
Então o taxista disse que aqueles motociclistas que
passavam pelos corredores eram os motoboys.
Naquele mesmo dia, ele comentou aquele seu espanto
em relação aos motoboys com Regina Silveira, sua amiga.
Então, desde aquele momento até agora, quando íamos
começar a construir o projeto havia sido uma grande luta
para conseguir trazer o projeto ao Brasil, além do que
ainda não tínhamos os celulares para começar o projeto.
Mas isto foi resolvido na última hora, pois anteriormente,
o Antoni Abad havia realizado um projeto com celulares
com a comunidade de cadeirantes em Barcelona e por
conta disso, sobraram 10 celulares daquele projeto e foi
graças a eles que nosso projeto pôde ser realizado. Já
era um grande começo. Para quem já estava esperando
há três anos, foi uma maravilha! Tinham aí a oportunidade de realizar um sonho. O melhor é que não passaria mais por mentiroso entre meus amigos e ainda seria
um dos coordenadores do projeto. No final de 2006, tive
finalmente a oportunidade de conhecê-lo, e fizemos
os primeiros testes pela internet. Antoni Abad mudou
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minha vida, pois passei a transmitir para uma página na
internet, que até então era um bicho-de-sete-cabeças,
meu dia a dia. Com o passar dos meses, a cada dia me
empolgava mais com aquela experiência de poder enviar
fotos, vídeos e comentários que até então eu não podia
compartilhar com ninguém.
No primeiro momento em que vi esse cara já gostei
dele. Como todos sabem, a vida do motoboy não é fácil,
e aquele dia estava cheio de trampo. Mas consegui um
tempo para passar na casa da dona Regina, onde ele
estava hospedado. Ele me parecia ser uma pessoa muito
sincera e preocupada com a realidade de pessoas que
muitas vezes não são valorizadas pela sociedade. Como
os motoboys, aqui em São Paulo, os taxistas na Cidade
do México, as prostitutas e os cadeirantes na Europa.
Por isso, este projeto com os motoqueiros era muito
importante, pois iríamos participar de algo que envolvia comunidades no mundo todo, além de fazer parte de
uma grande família, que seria a ZEXE.NET na internet.
Nesse dia ele me perguntou se eu tinha um aparelho
celular com câmera. Eu disse que não, pois, naquela
época, ter um celular já era uma grande conquista para
os motoboys. Após três meses, minha operadora mandou
uma carta dizendo que tinha um bônus que poderia ser
revertido em um aparelho com câmera. Rapidamente,
fui saber como poderia adquiri-lo. Teria um período a
permanecer naquela operadora. Mesmo assim, adquiri
o aparelho e comecei a fazer fotos da minha família, dos
meus amigos e algumas coisas mais.
Nessa oportunidade tivemos um segundo encontro com
o Antoni, em 2006, e eu já tinha o aparelho compatível
com o projeto. No mesmo ano, fizemos alguns testes de
envio e achei legal essa possibilidade de mostrar coisas que até então eu apenas via pela cidade. Ficamos
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uma tarde inteira fazendo alguns testes na casa da dona
Regina Silveira. No final da tarde, eu já estava me empolgando com a situação. Pois, no mesmo momento que
tirava uma foto, a mesma já estava no computador. Uma
coisa maravilhosa!
Luis, Deton, Tadeu, Edison, Alexandre e uma mina que eu
havia conhecido no dia a dia louco da cidade guardando
motos no estacionamento da avenida Paulista, que tinha
o sonho de ser motogirl. Por sorte, quando começamos o
projeto, ela já era motogirl e convidei-a imediatamente.
Até esse momento eu nunca tivera contato com um computador. Achei aquilo maravilhoso e sai fotografando
tudo o que via pela cidade. Mas tínhamos um grande problema: naquela época, ninguém ninguém queria patrocinar este projeto. A razão era o nome “motoboy”, uma
profissão indispensável, mas muito discriminada. Esse
foi um dos motivos pelos quais passei por mentiroso
com os motoboys com quem eu já tinha comentado esse
projeto, que eu acreditava que podia ser realizado, mas
os caras não.
Quando o conheci Antoni, ele me perguntou:
Fiquei impressionado com a dimensão que o projeto
tomou. O que era um simples projeto para mim poderia
alcançar tamanha repercussão nos meios de comunicação. Da noite para o dia, começamos receber convites
para TV, para o rádio e para revistas e jornais, aquilo era
muito louco. Pela primeira vez, o motoboy era visto com
outros olhos. Poderíamos mostrar a verdadeira realidade e também o nosso dia a dia.
— O que você gostaria de ser se não fosse motoboy?
Respondi:
— Eu gostaria de ser o Ronaldinho, mas não tive a chance de
ser jogador de futebol. Então prefiro ser um pessoa feliz, que
pode realizar seus sonhos.
Assim, em 12 de maio de 2007, tivemos a oportunidade
de realizar este sonho com a inauguração da exposição
do projeto canal*MOTOBOY, no Centro Cultural de São
Paulo, onde tive a oportunidade de conhecer pessoas
maravilhosas, filósofos, antropólogos, sociólogos, artistas de várias categorias e muitas outras que compareceram para prestigiar o evento que mudaria definitivamente minha vida.
Como coordenador do projeto, junto com o Neka, eu tinha
a missão de organizar os motoboys que convidara para
participar. Cada um recebeu um celular e uma página no
Canal. Eram 12 motoboys, alguns convidados por artistas amigos do Antoni, outros eram meus amigos, Cleyton,
Aos sábados a gente se reunia em volta de uma grande
mesa redonda que ficava ao centro da biblioteca do
CCSP. A exposição deveria durar apenas dois meses.
Mas tivemos a ideia de continuar este projeto ao término. No entanto, logo na primeira semana após a inauguração, liguei minha televisão pela manhã e escutei que
havia caído um balão no CCSP. Logo imaginei: “O Centro
Cultural é grande!” Meia hora depois de ter escutado
esta notícia, o artista me ligou, muito triste, dizendo que
o balão que tinha caído justamente em cima da nossa
exposição! Eu nem acreditei...
No mesmo momento, liguei para o meu amigo Luis e
comentei com ele:
— Meu! A nossa exposição acabou!
E ele me perguntou:
— Por quê?
E eu lhe disse que tinha caído um balão sobre o telhado
e causado um incêndio que destruiu nossa exposição,
computadores, banners, mesas e até as TVs de plasma!
No mesmo momento, larguei tudo e fomos para lá.
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Chegando lá, vimos a dimensão do estrago. Eu nem
acreditei...
Levamos a mão à cabeça. Depois de tantos anos, de
tantos sacrifícios e de tudo que passamos, parecia que
o projeto tinha acabado ali. Mas nossa história estava
apenas começando.
O que era para ser uma exposição de dois meses acabou
durando quase quatro meses, pois o Centro Cultural São
Paulo reservou uma grande espaço em outro local, onde
foram refeitas todas as instalações do canal*MOTOBOY.
Mas não era mais a mesma coisa. Aquele incêndio ficou
marcado para sempre em nossa memória. Nosso amigo
Antoni Abad tinha ido embora do Brasil logo depois
aqueles fatos totalmente desolado, mas com a promessa da reinauguração, dali a umas semanas, depois
que tudo tivesse pronto novamente, ele ficou aliviado.
Então, quando retomamos o projeto, todos já estavam enviando para o canal*MOTOBOY e editando seus
canais com muito profissionalismo.
O projeto cresceu. Estas reuniões de sábados com os
motoboys emissores eram uma grande confraternização em que muitas vezes aconteciam discussões sobre
a realidade do motoboy, o dia a dia.
Eu era o encarregado de combinar os horários, ligando
para cada um dos motoboys, enquanto o Neka, o outro
coordenador, cuidava das relações institucionais. Eu
também fazia toda a logística para que pudéssemos
atender todos os jornalistas. E eram muitos, às vezes
até mais de dois repórteres por dia, e terminávamos faltando ao serviço para dar entrevistas. Por fim, solucionamos o problema revesando as entrevistas com cada
um dos motoboys participantes, afinal, todos tinham
que ganhar o dia! Mas melhor de tudo isso, além do reconhecimento da mídia, era saber que muitas pessoas
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também descobririam que poderiam utilizar seu próprio celular para e enviar pra qualquer meio de comunicação. Nesse sentido, o inovador e muito interessante
poderia sim dar voz à sua comunidade. Demos entrevistas para todos os grandes jornais e telejornais, e até
para o programa da Ana Maria Braga fomos convidados.
Estávamos bastante empolgados. Todo dia encontrava
algum motoboy na rua e falava:
— Você não é o motoboy daquele site, não foram vocês que
apareceram na televisão (ou jornal)?
Mas não era somente a vida no trânsito que a gente
enviava para o site. Também fizemos vários TAGs (palavras-chave) que mandávamos com as fotos e vídeos da
família, amigos, lazer etc. Ou seja, motoboy também tem
família! Mas como tudo na vida, nem todos acreditaram
no projeto, e tivemos alguns que simplesmente desistiram, após algum tempo, de enviar para seus canais. Ali
no CCSP também tivemos a oportunidade de conhecer
muitas pessoas que visitavam o canal*MOTOBOY, pesquisadores, artistas e personalidades, que vinham aos
debates que realizávamos para discutir os problemas
da categoria dos motoboys. Coisas assim estão registradas no site, mostrando a preocupação dos órgãos públicos com os motociclistas, que expunham no site o descaso que as autoridades tinham em relação à rotina do
motoboy em uma cidade tão grande como São Paulo. O
projeto canal*MOTOBOY vinha pra ficar, agora os meios
de comunicação tinham bastante cuidado ao falar do
motoboy. Eles estavam acostumados com aqueles motoboys que só falavam besteiras, se achavam os melhores
e não respeitavam ninguém. Pela primeira vez, tínhamos
a oportunidade de mudar esta imagem negativa com
diversos projetos relacionados à cultura motoboy e ao
meio ambiente, que nasceram ali nas reuniões dos motoboys e motogirls. Como todos os TAGs, o mais importante,
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naquele momento, para nós, era o TAG “FALA”, que criamos
para ouvirmos a voz do próprio motoboy. Isto representou
uma grande vitória para nós. Um ano depois, durante a 1ª
Semana de Cultura Motoboy, recebemos a notícia de que
o canal*MOTOBOY receberia o Prêmio Orilaxé 2008, como
veículo de comunicação do ano, do Grupo Afroreggae, no
Rio de Janeiro.
No final dos quatro meses em que o projeto canal*MOTOBOY
ficou no CCSP, muitas pessoas vieram nos visitar. Uma
dessas pessoas se tornaria um grande amigo e parceiro,
o Eleilson, e que nos convidaria para continuarmos a nos
reunir em uma sala cedida pela ONG Ação Educativa, de
que ele é diretor, e também onde estamos até hoje. Sempre
fui motoboy em São Paulo. No meu dia a dia, sempre tive
contato com muitas pessoas, mas não imaginava ter contato com antropólogos, sociólogos e ambientalistas, que
se tornariam grandes amigos e parceiros em um projeto
que elaboramos sobre o descarte de óleo das motocicletas no meio ambiente. A maior parte da população desconhece que 1 litro do óleo de moto - que tem que ser trocado em mil e mil quilômetros -, quando lançado no meio
ambiente, pode contaminar 1 milhão de litros de água?
Calcule-se, assim, o estrago causado por 300 mil motoboys! Se 20% deles fizerem de maneira errada a troca
de óleo , qual será o impacto no meio ambiente? Esta
preocupação levou a uma parceria com o Instituto
Socioambiental, que cuida dos mananciais há anos em
São Paulo.
Ohando agora para trás, apesar de todas as dificuldades que passamos, vejo que o projeto está vivo e já anda
com suas próprias pernas, graças ao esforço daqueles
que sempre acreditaram nele. Com o conhecimento que
acumulamos e as parcerias que realizamos, o próximo
passo é a criação de uma associação que se chamará
canal*MOTOBOY.
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Hoje tenho 36 anos, tenho duas filhas e até já fui chamado de motoboy repórter:
“Estou aqui na avenida Pacaembu, trânsito bom. Um
dos únicos problemas é grande quantidade de lixo,
devido à falta de fiscalização. Então, quando chove, a
gente perde tudo por causa dessas pessoas que, em
vez de pedir uma caçamba pra limpar seu estabelecimento, arrumam um carroceiro e pedem que ele remova
o material. Os carroceiros têm seus filhos, mas acho
isso errado. Então, se não tiver fiscalização, a cidade
vai ficar desse jeito: um lixo.”
Palavra-chave: cidade limpa
Ronaldo Simão da Costa
Cap.02
Andréa Motogirl
Cap.02
Andréa Motogirl
Andréa Motogirl
Desafio
contemporâneo,
aventura e
novidades!
Maio de 2006. Minha situação financeira estava péssima,
então resolvi procurar um trabalho. Minha mãe viu um
anúncio de emprego de motoboy. Criei coragem e fui procurar agências. Fui primeiro a uma agência de motoboys
na rua Guiará. O rapaz me deu uma ficha para preencher e
pediu que eu esperasse, se precisasse ele ligaria.
Depois fui até outra agência, preenchi mais uma ficha e
fui contratada na hora.
“Esteja aqui pra começar amanhã às oito horas”, disse
o Sr. Antônio, dono da agência. Fiquei muito contente,
quase sem acreditar que isso seria possível. Estava
finalmente empregada, poderia resolver meu problema
financeiro e conhecer melhor a cidade onde moro. Então,
no outro dia eu estava lá, no horário marcado. Começara
então minha vida de esporádica, devagar aprendi as
regras do jogo. A rotina profissional de um esporádico
funciona assim: o pedido do motofrete é feita por telefone, há uma fila de motoboys esporádicos formada por
ordem de chegada – sai primeiro para buscar a entrega
quem chega primeiro na fila. Após o término de cada
entrega, o esporádico volta e entra na fila de novo.
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Dia após dia, fui conhecendo a rotina do trabalho, o
endereço dos clientes, a fiscalização de trânsito, as ruas
desconhecidas de uma grande cidade como São Paulo.
Os vários tipos de entregas, de documentos a peças de
automóveis, e seus preços variados conforme cada tipo
de serviço. Cada motoboy na empresa recebe uma folha
de controle de entregas em que são anotadas todas as
saídas e cada entrega feita durante o dia de trabalho.
Na época, os motoboys recebiam vale-gasolina e também convênio com uma loja de peças para manutenção das motocicletas, que era descontado no dia de
pagamento, importante para os motoboys poderem
continuar a trabalhar. O café da manhã era fornecido
pela empresa e todos os motoboys tomavam café juntos. Todo dia eu fazia o café, e cada dia um ia buscar o
pão e complementos como mortadela e suco, que a
gente comprava fazendo vaquinha. Era uma festa! Na
nossa sala de espera tinha forno de microondas, mesa,
cadeira e televisão. Durante essas esperas, a conversa
rolava solta e todos contavam vantagem. Foi nesses
papos que descobri o mundo dos homens e a Casa Azul,
local de prostituição que havia perto da agência, que
era assunto constante entre os motoboys. No decorrer
deste ano, alguns motoboys saíram da empresa, foram
tentar outras sortes. Alguns se acidentaram e quebraram os ossos, outros foram roubados e ficaram sem
suas motos, outros ainda trocaram de moto. Outro disse
que lhe roubaram o dinheiro do cliente. Graças a Deus,
não presenciei nenhuma morte dentro de nosso grupo,
mas presenciei meu próprio acidente. A caminho de
uma entrega, ao fazer uma curva, a moto derrapou porque havia óleo na pista e caí rodopiando no chão. Ralei
os joelhos e o braço. Que susto! Tudo porque eu queria
aumentar meu salário, mas partir de então, passei a ter
muito medo de cair e comecei a trafegar mais devagar.
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Coletivo canal*MOTOBOY
Andréa Motogirl
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Coletivo canal*MOTOBOY
O bom de ser esporádico é fazer muitos trabalhos ao
mesmo tempo e escolher o horário de trabalho. Tinha um
rapaz chamado Alberto que conseguia fazer 400 horas no
mês: o normal era a metade disto. Ele ganhou dinheiro,
mas quase morreu. O ruim de ser esporádico é não ter
registro na carteira – consequentemente, nenhum dos
benefícios garantidos pela CLT. Trabalhei um ano de esporádica e valeu a experiência!
Em 2007, o Sr. Antônio me ofereceu um contrato de carteira assinada com uma outra empresa, cujo piso salarial seria de R$ 450,00 na carteira, mas eu receberia
líquidos R$ 900,00, com a gasolina custeada por mim,
me sobrando R$ 700,00. Só o condomínio do apartamento
era R$ 500,00. Muito pouco, mas pelo menos tinha décimo
terceiro e registro em carteira, assim como férias, que
vendo todo ano.
Comecei por baixo mesmo, trabalhei muito e foi assim
que muito aprendi. Eu rodava muito toda São Paulo,
conheci todas as filiais do Carrefour na cidade, até a
Campinas fui fazer entrega. Mas eu fazia de tudo, desde
entrega de documentos e peças de alarme, pagamentos em bancos, troca de aparelhos de manutenção,
venda de pilhas e tudo que se pode imaginar de exploração durante meu horário de trabalho. Eu saía com o
baú lotado, de manhã e à tarde. Deus é pai! Trabalhando
com contrato, eu já não ficava mais na sala de espera
dos esporádicos, raramente encontrava com o pessoal,
no máximo quando ia assinar os papéis de pagamento.
Neste mesmo ano, no dia do motociclista , fui abordada
no Conjunto Nacional pelo Eliezer, que perguntou se
podia fazer uma reportagem para o canal*MOTOBOY,
me parabenizando pelo dia, me deixando adesivo, telefone e convite para uma reunião no Centro Cultural
São Paulo, na rua Vergueiro. Essa primeira reunião era
Andréa Motogirl
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uma palestra do Eleilson da Ação Educativa, e também
estavam lá alguns motoboys fundadores do projeto,
como Ronaldo, Luis, Adriana, Beiço, Eliezer, Djalma e o
Cleyton. O projeto foi concebido por Antoni Abad, que
criou este espaço no mundo virtual para dar “voz aos
sem voz”, possibilitando a expressão de grupos específicos, como taxistas no México, prostitutas em Madri,
motoboys em São Paulo e cadeirantes em Barcelona.
As reuniões posteriores passaram a acontecer na Ação
Educativa, agora sede do canal*MOTOBOY. Nessas
ocasiões ganhei a página no site ZEXE.NET, um celular e créditos para envios pela operadora TIM. Nessas
reuniões, aprendíamos a editar a página, configurar e
realizar os envios, pautar os assuntos pertinentes ao
grupo, organizar semanas de cultura e participação em
eventos, tais como Duas Rodas (2007), Campus Party
(2008/9), Motoboy Festival (2008) e Mobilefest (2008).
O projeto tornou-se conhecido e participamos de vários
programas de televisão de canais abertos, entre eles o
programa de Ana Maria Braga, na Rede Globo.
O principal objetivo do projeto era retratar o dia a dia
de um profissional motociclista durante seu período de
trabalho ou mesmo registro de sua vida pessoal, fotografias registradas por celular e depois enviadas para a
internet. Para mim é encantador quando consigo fazer
uma boa foto. É importante perceber o caráter informativo das situações em geral, e destes fatos, em pequenas histórias visuais, produzir o máximo de informação
com menor custo possível de envios, retratando nossa
contemporaneidade.
Há duas intenções muito presentes no canal*MOTOBOY:
criar um arquivo da atualidade, um acervo para a posteridade, e promover a inclusão digital entre os motoboys.
É incrível como somos protagonistas deste tempo. Esta
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Coletivo canal*MOTOBOY
ideia de arte como memória humana. Dou muito valor à
arte e tento traduzir isto nas fotografias. Por meio do trabalho com fotos, descobrimos também o uso de áudio e
vídeo. Tirar fotografias, pra mim, se tornou um canal de
expressão total. Tirar foto é fascinante!
Depois de um ano na empresa, não quiseram aumentar meu salário e desistiram do contrato. Chegou o ano
de 2008, e voltei a trabalhar como esporádica, porém
com carteira assinada. Minha principal cliente era uma
editora e o salário do mês era garantido, mas era roça
demais. Com esta empresa, conheci todos os Centros
Educacionados Unificados (CEUs) de São Paulo: entregava os pacotes de livros didáticos, que eram bastante
pesados, às bibliotecas. Eram locais distantes e eu ia
devagar para não cair da motocicleta. Então, apareceu o
contrato com uma firma grande do ramo de elevadores,
em meados de maio ou junho, para entrega de malotes e
de peças de elevadores.
O Sr. Antônio tinha me dito que era trabalho de escritório,
mas quando fomos nos candidatar, soubemos que se tratava de entregas de peças. Quando fomos dividir as áreas
de entrega, iam me entregar a zona leste, região que eu
não queria por ser osso e roça, então perguntei ao outro
rapaz onde ele morava, e ele me respondeu que era na
zona leste e ficaria feliz em fazer a zona leste. Assim, acabei ficando com a zona sul, o que foi um alívio para mim.
No início, fazíamos apenas duas saídas, uma às nove e
meia e outra à uma e meia. Quando acabavam as entregas
podíamos ir embora, o que me ajudava, pois me sobrava
tempo para outras atividades. Depois de um ano, mudaram para três saídas diárias: uma às oito e meia, outra
às dez e meia e a terceira àsduas e meia. As regiões que
cubro são divididas em quatro setores: g7 – Moema e
Vila Olímpia, g8 – Aeroporto, Santo Amaro e Interlagos,
Andréa Motogirl
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Coletivo canal*MOTOBOY
g9 – Jabaquara, Ipiranga e Anchieta e g22 – extensão
da avenida Nações Unidas, do Morumbi a Pinheiros. Tem
dia que é bem light, mas tem dia que é fogo. Os técnicos
são legais, com a nossa comunicação por celular discutimos cada caso de atendimento e sempre entramos em
acordo. Assim não fica pesado para ninguém.
Neste mesmo ano, participei de uma entrevista para o
programa Profissão Repórter, da Globo, e cheguei à conclusão que trabalhar dá trabalho, e que as outras pessoas desta empresa também trabalham muito. Em consideração a todos, faço meu trabalho da melhor forma
possível. Em 2008, o piso salarial subiu de R$ 450,00
para R$ 690,00 e, em 2009, o piso foi para R$ 730,00,
porque ocorreu uma fiscalização sindical que obrigou
este mínino, junto com carteira assinada, a todos os
motoboys. Comparado com o salário de um porteiro ou
de um segurança, este piso salarial é muito baixo para
os riscos que corremos. O importante é estar sendo útil
para si e para os outros. Se colocarmos o dinheiro em
primeiro plano, poderemos nos corromper e a consequência pode não ser tão boa. O melhor é fazer o que se
gosta, começar por baixo e ir subindo. Dentro da sociedade, apesar de tantas dificuldades para saber qual profissão escolher e questões de rentabilidade, vocação,
tempo e necessidade, prefiro a profissão de motogirl,
sempre com meu bordão: “Ganho pouco, mas trabalho
pouco.” Sigo trabalhando porque acredito que esta é
minha tábua de salvação e a solução para todos meus
problemas, servindo até como terapia. Na minha vida,
tenho meus valores, Deus e a Igreja, meus familiares,
estudos, companheiros de trabalho, o bem. Dou graças
a Deus, porque por intermédio dele, passei a vida de uma
forma que eu desconhecia, me livrando das drogas e vaidades mundanas.
Andréa Motogirl
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Nestes três anos como motogirl vivi algumas experiências bizarras, por exemplo, aceitar transportar um rolo
bem grande de mangueira, tão pesado que quase não
cabia no baú da moto. Tive que levar da Barra Funda até
Interlagos. Outra situação, uma encomenda que recebi
às seis horas da noite de uma sexta-feira chuvosa: uma
firma de material elétrico pedindo entrega de material do centro de São Paulo para Santana do Parnaíba,
endereço que nem sequer constava no guia da cidade.
A entrega foi realizada no dia seguinte. Também recebi
um pedido de retirada em uma empresa de aparelhos de
telefonia, mas a caixa era tão grande – do tamanho da
moto –, que a empresa teve que pedir uma Kombi. Havia
também uma boleira chique que sempre me solicitava
serviços e me pediu para retirar uma caixa que estava
longe. Chegando lá, eram duas caixas, só sendo possível transportar uma, sinto muito! Certa vez, durante
meu trabalho, fui picada por uma maribondo, e imaginando não haver problema, comecei a ficar toda inchada
e empolada por choque anafilático, uma reação alérgica que me fez correr para o pronto-socorro. Como
meu caso era grave, fui atendida prontamente, e fiquei
internada em observação por doze horas. Já levei uns
vasos de vidro com plantinhas enrolados em papel celofane. Eram lembranças de fim de ano e a maioria chegou
inteira, mas outras rasgaram um pouquinho. Na hora me
perguntei: isso é coisa que se mande por uma motogirl?
Foram tantas histórias que nem posso numerá-las.
Gosto mais da viagem quando o pacote é leve, mas não
faço manha e entrego tudo, sempre que possível. Só não
levo peças que possam ser avariadas pelo trasnporte
na moto. Faz parte da segurança conhecer o limite da
motocicleta, pois as entregas não podem cair nem ser
avariadas, tudo deve estar bem seguro e amarrado,
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Coletivo canal*MOTOBOY
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para não correr o risco de cometer um fiasco, que pode
custar o emprego. Todo cuidado é sempre pouco, e a
responsabilidade pesa muito. Graças a Deus, nunca
danifiquei muito o material a mim confiado. Outro dia,
no elevado Costa e Silva, de uma Kombi de carreto caiu
uma gaveta de um dos móveis. Na hora meu coração
gelou...Ainda bem que não veio pro meu lado. Outra
experiência: um pedaço de madeira saiu voando de
outra Kombi, batendo direto na minha viseira, que por
sorte estava fechada - ou eu poderia ter ficado cega.
Outra bem engraçada foi quando eu passava por cima
a ponte da Casa Verde e os papéis amarrados com aranha no tanque da minha moto foram levados pelo vento.
Parei a moto e saí correndo atrás. Consegui resgatálos, mas levei um baita susto!
Sei que existem muitos lugares para trabalhar como
motoboy, a demanda é muito grande. Alguns lugares
pagam mais, outros menos, alguns trabalham mais,
outros menos, encomendas pesadas ou mais leves, e trabalho não falta a quem entra na profissão. Seja qual for
a encomenda, responsabilidades como pontualidade,
disciplina e asseio são fundamentais. Também é essencial estar com a documentação em dia, fazer a manutenção da moto, ter vestimenta e acessórios adequados
e, principalmente, respeitar às leis de trânsito. Há quem
diga que é fácil ser motoboy. Convido a experimentar...
Estive observando a dificuldade que as pessoas têm
em lidar umas com as outras. Durante meu trabalho,
encontro pichações em muros com frases como “mais
amor, por favor,”, “o amor é importante, porra!”, “odeie
seu ódio, ame seu amor”, frases que me inspiram, e sem
perceber fico remoendo o significado destas palavras,
assim como também outras que fazem parte do nosso
dia a dia sem que percebemos, como a relação com o
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Coletivo canal*MOTOBOY
nome das ruas. Ser motogirl é um privilégio? Além de
motofretista, sou mãe, filha, tia, catequista, musicista,
dançarina e fotógrafa. Como aprendiz da vida, sei que
é preciso perder para ganhar, faz parte do processo
de amadurecimento individual. Ganhei experiência na
vida ao mesmo tempo em que perdi muitas outras coisas. A vida é um conjunto de práticas diversas: quanto
mais praticamos, melhor executamos - até o momento
da velhice, que nos impossibilita de praticar muitas coisas. Executar o que se almeja é o desejo de todos desde
criança. Tenho muita experiência com a dança, fiz turnê
por todo o Japão entre as décadas de 1980 e 1990, e muitas vezes me perguntei: Por quê? Sempre questionei a
razão de viver e qual a missão a seguir. No Japão, procurando uma resposta para minha pergunta, fui trabalhar
em fábricas de máquinas de bebidas, pachinko, toldos
de alumínio e fundição. Descobri então um mundo diferente, pessoas que ganham pouco e trabalham muito.
O trabalho como dançarina era muito importante para
mim, mas o assédio, a inveja, a especulação e a perseguição dos papparazi me incomodavam. Por isso eu
sabia que um dia, para que pudesse ser livre, teria que
deixar de dançar. Eu me sentia, na época, um bibelô
manipulado, mas creio que valeu a experiência e percebo que ter dançado esse tempo foi uma preparação
física para andar de moto. Dançar é meu dom de nascimento, mas um dia resolvi depositar minhas energia em
outras atividades, como o exaustivo exercício de dirigir
moto, ter controle e resistência para aguentar a direção. Esta é uma coisa que sempre desejei fazer, tenho
carteira de motorista desde os 18 anos de idade, incentivada pelo meu pai, e ele sempre foi modelo, porque
tinha lambreta.
Andréa Motogirl
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Sinto liberdade, o movimento de dirigir é como o de
dançar. Podemos reconhecer o sincronismo da dança
na natureza e nas ruas, a liberdade está em ver outros
lugares e pessoas. Dediquei muitas horas em três anos
trabalhando como motogirl, na dança também dedicava
muitas horas de ensaio até a exaustão completa.
Pelo caminho, encontrei muitas pessoas de boa vontade, que me deram as informações corretas e facilitaram meu trabalho. A maior motivação para concluir o
trabalho sempre foi a responsabilidade de ser eficaz, e
algumas vezes, ao fracassar por um motivo qualquer, a
frustração me fez chorar.
As aventuras foram inúmeras, e os riscos também. Um
passo de cada vez, arquitetei meus atos com fé nas pessoas que me cercam e sempre me inspirando nelas, que
com amor e carinho, me auxiliaram a sobreviver a muito
frio, vento, tempestades, poluição e barbeiragens.
Foram dias em que cheguei em casa com a cara preta
de tanta poeira. Descobri muitos lugares bonitos, diferentes, distantes, de muitos tipos. Observei igrejas, rios
e vales, cavalos, feiras, mercados, hospitais, estradas,
ruas e casas. Enfim, vi esta cidade imensa por cima de
seus arranha-céus.
Sempre tive muito trabalho e aprendi a dividi-lo por
área ao esquematizar os melhores itinerários. Com este
trabalho, desenvolvi minha memória e consigo decorar
rapidamente as coisas. Consigo entregar várias encomendas muito rapidamente.
Hoje em dia, posso dizer que tenho experiência como
motogirl e que conheço muito bem a cidade de São
Paulo, da qual muito me orgulho. Gosto de ser útil e
ajudar as pessoas. No trânsito, é necessário ter muita
paciência. Com ela longe se vai...
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Coletivo canal*MOTOBOY
Adoro minha moto. Ela é como uma filha ou uma extensão do meu corpo, sinto vontade de beijá-la e agradecêla por me ajudar tanto, minha querida companheira
inseparável. Fico sempre atenta à manutenção e faço
de tudo para conservá-la. Não deixo ninguém guiá-la,
só dou carona na garupa e olhe lá... No meu baú - meu
porta-tudo -, levo todos os tipos de bagagens, desde
envelopes e peças grandes até minhas compras pessoais. É muito prático e útil.
Sempre faço os trabalhos o mais rápido possível para
ter logo meu tempo livre.
Nunca tiro os olhos da minha querida. Sempre que a
deixo, tranco direintinho, faço rápido o que preciso
e volto ansiosa por revê-la no lugar onde a deixei. Às
vezes, quando a deixei sozinha, encontrei surpresas
que me deram prejuízo, como um pneu furado, lacre
arrebentado, pisca-alerta quebrado, a moto tombada
por terem feito uma ré de mau jeito, multas, um espelho
rachado, batida na traseira por um taxista embriagado
etc. Muitas coisas que me aconteceram tive que relevar
e recomeçar, dando Graças a Deus por ter sobrevivido,
poder voltar para casa e ver meus filhos.
Porque eu andava devagar, pelos meus cuidados de
segurança, vários motoristas buzinaram e zombaram de
mim. Tenho esse direito, também pago imposto e a rua é
pública. A velocidade da moto não pode ser motivo para
outros quererem me derrubar. Certa vez, um louco jogou
o carro para cima de mim e me xingou; acho que pensou
que eu era um homem. Nossa, que susto! Deixei que ele
passasse e saí fugindo, afinal, no trânsito nunca se sabe
o que um insano pode fazer. Sempre fujo das confusões
e brigas, só quero viver e mais nada.
Andréa Motogirl
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Procuro sempre ter os documentos em ordem, porque
prezo muito andar de moto, e não quero não ter problema nenhum. Ser motogirl, é meu ganha-pão, minha
independência, meu compromisso, minha labuta, meu
estilo de vida, minha observância, meu sincronismo
neste balé das estradas. É, afinal, meu jeito de fazer
parte de um todo.
Andréa Sadocco Giannini de Oliveira
Cap.03
Cap.0
Poeta dos motoboys
Poeta dos motoboy
Poeta dos motoboys
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A trajetória
Semanas se passaram, e eu já havia feito muitos amigos e perdido alguns também para o trânsito assassino de São Paulo. Consegui meu primeiro contrato na
Embratel: trabalhava seis horas por dia e não ganhava
mal. Retirava as fitas de telefonemas na TELESP da rua
7 de Abril, na Embratel da Cerro Corá e da Amador Bueno
da Veiga, na Penha, e levava para a rua dos Ingleses, para
que efetuassem a leitura. Uma vez por mês eu entregava
faturas nas rádios de São Paulo, como a Rádio Globo, a
Boa Nova de Guarulhos etc.
Chovia bastante. Era uma manhã de julho de 1990. Dando
uma olhadinha nos classificados de emprego, um anúncio chamou minha atenção: “Precisa-se de rapazes com
moto própria para início imediato.” Eu nem imaginava que
ali começaria uma história de lutas, tristezas e alegrias.
No início dos anos 1990, a profissão de courrier, ou motoboy, como é popularmente conhecida hoje, era quase
novidade. Apesar de ter começado nos primórdios dos
anos 80, o número de profissionais era muito pequeno
(tanto que a profissão passou despercebida durante
quase uma década).
Chegando ao endereço indicado, no bairro do Tatuapé,
dezenas de motos estavam paradas na porta da casa
e rapazes conversavam, riam alto e contavam com
tom heroico suas aventuras do dia anterior. Consegui o
emprego e, no dia seguinte, começaria. Eu tinha uma CG
ano 77 frente de mola (canelão).
No dia seguinte, às sete da manhã, estava eu lá, um dos
primeiros a chegar. Não demorou muito, foram chegando
os motoboys. Em questão de meia hora, já eram dezenas. Logo chegou o Sr. André, que passava o trampo para
os motocas, e chamou meu nome. A primeira entrega
deve ser como a história do primeiro sutiã: a gente nunca
esquece. Era para retirar um documento em uma conhecida editora, na Ponte do Piqueri, reconhecer firma no
cartório e devolvê-lo. Lá fui eu. Achava aquilo o máximo,
agora eu era motoboy (Yes!), em uma época em que a
profissão não era tão concorrida e era possível ganhar
um dinheirinho.
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Naquela época, havia algumas empresas em que nós,
motoboys autônomos, até tínhamos vontade de trabalhar. Por causa da fama de loucos que tinham os motoboys, consegui, depois de um tempo, trabalhar em algumas delas, como a Protege, RRJ, Mototurbo etc. Meu
contrato com a Embratel terminou em 1993 e fui trabalhar na Tip Top, próxima à Ponte do Limão. Certa vez, uma
senhora do escritório me pediu para que eu fosse a uma
conhecida livraria comprar um livro sobre economia.
Deu o dinheiro contadinho, preso com um clip. Coloquei
no bolso da calça e acabei perdendo o dinheiro. Eu não
tinha como repor, e o jeito foi encarar a fera. A mulher
ficou furiosa achando que eu havia gasto o dinheiro dela.
Começamos uma discussão que minutos depois resultou na minha demissão. Saí de lá de alma lavada, pois as
pessoas que ali estavam sabiam que eu não teria coragem de me sujar por uma porcaria de dinheiro que mal
dava para pagar meu almoço.
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Poeta dos motoboys
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Coletivo canal*MOTOBOY
Depois de trabalhar em mais três ou quatro empresas,
fui trabalhar na Mototurbo, na Vila Guilherme. Ali, sim,
comecei a entender alguma coisa sobre a profissão.
Éramos trezentos motoboys e trabalhávamos para a
Caixa Econômica Federal e para o Banco do Brasil. Eu já
estava com 24 anos, mas o espírito louco, aventureiro - e
muitas vezes inconseqüente -estava bem presente.
Comecei a presenciar a morte de pelo menos um amigo
por semana, devido ao nosso capacete, que éramos obrigados a usar, de cor verde (padrão da empresa) e semelhante a uma casca de ovo. Então, resolvi acionar uma
equipe de reportagem para fazer uma matéria sobre o
que estava acontecendo e, na época, a matéria foi veiculada pelo SBT, no extinto programa Aqui Agora (o que
também resultou na minha demissão).
Na Mototurbo, comecei a escrever músicas e poesias
que contavam o nosso dia a dia nas ruas de São Paulo.
Um amigo meu, o Fernandão, ouvia e gostava muito, até
que ele pediu para cantar comigo. Montamos, então, o
grupo Fator Surpresa. Passamos quatro anos cantando
e fazendo apresentações por empresas e locais públicos, assim como em eventos etc.
A profissão de motoboy sempre foi muito discriminada, devido aos 30 ou 40% de envolvidos na profissão que desrespeitam pedestres, leis de trânsito etc.
que chutam espelho, arrumam confusão e mancham a
imagem dos 70% ou 60% formados por pais de família, gente séria que é profissional de verdade. A mídia
também contribui bastante para esta discriminação:
por exemplo, quando bandidos usam motocicletas (um
meio de fuga rápida) para cometer delitos, a mídia logo
diz “motoboy bandido”, entendeu? Taxam o profissional
motoboy. Motoboy é trabalhador, bandido é bandido e
ponto final. Quando alguém mata uma pessoa com uma
faca ninguém diz que o cara é açougueiro, não é? Por
Poeta dos motoboys
127
favor, parem de hipocrisia e de jogar a culpa no motoboy. Que sejam punidos os que desrespeitam pessoas,
assim como os motoristas que também o fizerem.
Depois de ter socorrido um amigo motociclista que teve
a perna decepada e morte quase instantânea na ligação
Leste-Oeste no ano de 1999, resolvi que não queria mais
ser motoboy. Decidi que poderia exercer uma profissão que
ajudasse, de fato, meus colegas de profissão. Consegui
um emprego como motorista de ambulância. Finalmente,
em 2004, consegui entrar no “SAMU 192” (serviço de resgate do governo federal) e hoje em dia contribuo para que
vidas sejam salvas na cidade de São Paulo.
Hoje, uma das minhas músicas, “O Rap dos Motoboys”,
está com centenas de milhares de acessos no Youtube,
o que me deixa feliz, porque ela transmite a realidade
nua e crua do motoboy paulistano. Após encerrarmos
o grupo Fator Surpresa, desenvolvi uma carreira solo
como poeta dos motoboys. Hoje somos três (DJ, Nando e
Kiko Melodia) e defendemos com unhas e dentes a causa
justa dos motoboys, por meio de músicas e desta poesia:
A poesia dos motoboys
Eu rodo por aí para lá e para cá.
De manhã, no sol, na chuva, eu saio para trampar.
Eu não nasci em berço de ouro, se liga, bacana.
Eu atuo na profissão que tritura carne humana.
Não arrisco minha vida para chegar primeiro.
Para ganhar o pão eu conto com a sorte.
Sou um sobrevivente que desliza pelo corredor da morte.
Hei, Joe, preste atenção, você que discrimina e me tira de
ladrão.
Eu rezo todo dia pedindo proteção.
Capote violento, homem e máquina no chão.
É cena normal ver um mano em coma na UTI de um hospital.
Mas eu não quero ver esta cena nunca mais, vocês e o poeta
dos motoboys nesta luta pela paz, chegue
mais, dê a mão, são 200.00 para formar este cordão,
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Poeta dos motoboys
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Eu luto pela vida e vai ter que ser assim.
Vou deixando um recado para os muleques das dream.
Fiquem atentos, ligeiros, aprendam um velho macete.
Ao invés de drogas na cabeça usem sempre o capacete.
Porque o perigo não dá trégua nem sequer um momento e
pode
te encontrar em qualquer cruzamento.
Variante de feirante quase me matou, deu pane no sistema e
o cara não freou.
A motocicleta driblando o trânsito absurdo e desordenado das grandes cidades é como a cadeira elétrica: muitos sentam e morrem. Já perdi dezenas de amigos que
trabalhavam como motoboys, na maioria das vezes, com
uma idade entre 18 e 25 anos, em que imperam o espírito
de aventura e a adrenalina. Quando eu tinha esta idade,
acreditava que jamais morreria. Abusei muito, e, graças
a Deus, sobrevivi, por isso tenho propriedade no que falo.
Saí voando, você tinha que ver, para Steven Spielberg eu seria
o dublê. Levantei rapidinho, nenhum arranhão, tá pensando
que é milagre.
Mas tem explicação, tô com Deus, sou herói.
Eu diria que as piores recordações foram os velórios de
amigos jovens que se foram, vítimas de um sistema capitalista que massacra estes profissionais. Via suas famílias destruídas, filhos e mães chorando e sabia que não
demoraria muito pra que esta cena horrível se repetisse.
Rezava todas as noites para que eu não fosse o próximo.
Sem carteira assinada, profissão motoboy, tudo de ruim
já sumiu da minha lista, chamo no grau, detono na pista,
também sou artista, versão brasileira do motoboy paulista.
Quando vejo um comando me mando, volto amanhã, cansei
de deixar moto lá no pátio do Detran.
Daelim, RDZ, e até uma Titan
Terça-feira passada um tremendo sufoco, carrocinha amarela
para pegar cachorro louco.
O guarda olhou para minha motoca e começou a dar risada,
ele achou a magrela um tanto encorpada
— Eu nunca vi turuna 80 com motor de estrada
— Então você não viu nada, tá tudo normal, comprei lá nas
bocas tenho nota fiscal, na general
— Você é cara de pau, olha esse painel, olha o escapamento,
olha o pneu careca, e o licenciamento, a casa caiu vou
prender seu documento
— Pode prender que eu tiro depois, enquanto isso
vou rodando porque tenho 2, o meu cabrito não berra, eu
quero a paz não a guerra
Eu levo sua pizza, entrego sua mensagem, percorro em
um segundo os quatro cantos da cidade.
Observe com atenção que você vai perceber, sou cenário da
cidade que não para de crescer.
Posso dizer que as melhores lembranças foram as amizades, que duram até hoje, e o trabalho que desenvolvo
como “poeta dos motoboys”, pois transformo minha
realidade como motoboy em cultura e orientação, e,
graças a Deus, sou muito querido e respeitado entre
meus antigos colegas de profissão.
Na verdade, não é uma profissão muito mal-remunerada, mas é de alto risco e bastante discriminada. Peço
a Deus para nunca mais precisar subir em cima de uma
moto para ganhar a vida. Se não houver outro jeito, eu
vou pra cima, mas… Saudades dos amigos e das viagens
que fazíamos juntos - acredito que era uma das poucas
diversões, pois a realidade é cruel, este é meu ponto de
vista. Sei que uma minoria deve pensar assim. Que Deus
abençoe os motoboys de todo o Brasil.
Marcelo Veronez
130
Coletivo canal*MOTOBOY
Poeta dos motoboys
131
Cap.04
Fábio, motoboy
Cap.04
Fábio, motoboy
Fábio, motoboy
Opção ou profissão?
135
ia no distribuidor retirar umas caixas de O.S. . Lá eles me
dariam outros endereços para fazer que não eram mais
um endereço que ia ser na TV Cultura no bairro da Água
Branca:
Pensei: “Olha, vai dar para fechar legal o dia.” Em
dinheiro, tinha feito mais ou menos R$ 90,00 até aquele
momento. Queria fechar o dia com mais um pouco.
Ainda ia fazer mais alguma ordem de serviço antes de
ir embora, pois sempre fui de chegar cedo e sair tarde.
Eram umas quatro da tarde do dia 02 de outubro de 2008,
uma quinta-feira quente, sem previsão de chuva. O dia
tinha começado bem...
Na empresa onde trabalho há 15 motoboys, todos antigos na firma. O mais novo tem seis meses e o mais velho,
não de idade, tem oito anos de firma - mas ele é mais
velho que o dono da empresa.
A primeira saída fora de Guarulhos a Jardim Cumbica,
trampo rápido, só retirar e levar para o cliente. Já conhecia
e tinha amizade com a pessoa em Guarulhos, então, era
chegar lá e retirar rapidinho e se jogar para Eugenópolis.
Somos um pessoal unido, claro que sempre há quem
tenha mais amizades. Em relação às outras firmas de
motoboy, pelo que escuto por aí, é bem melhor que muitas no mercado.
Quando retornei à base, fiquei parado umas duas
horas. Aproveitei para almoçar e já tinha saído uma O.S.
(ordem de serviço) da prefeitura de São Bernardo dos
Campos para uma entrega de documentos e depois dei
um retorno na Av. Angélica. Dei risada pois o dia estava
fraco e já tinha feito umas horas, e com trampo fácil – e
a pessoa que pede o trampo – ela é muito gente fina –
onde trabalho são poucos clientes que são chatos e que
pegam no pé do motoca.
Quando comecei a trabalhar como esporádico na rua em agosto de 2005 - na pizzaria do meu tio na Saúde,
tinha saído da área de manutenção de computadores
porque o salário estava meio ruim. Além disso, meu tio
tinha sofrido um infarte e pediu para que eu e uma irmã
dele tocássemos o negocio dele .
Fiz o serviço e voltei à base rápido. O dia estava rendendo, farol ajudando, a sorte estava a meu favor. Tive
a sorte de sair com dois de uma vez. A primeira era um
mamão, para retirar ali perto da FMU e levar até um local
próximo ao viaduto 9 de julho. Depois eu ia fazer a outra,
que era pegar uns cartuchos de impressora na avenida
Imirim e depois levar para uma produtora na Lapa. Antes
134
Aí comecei a trabalhar quando tinha aperto de entregas
e tal, fiquei lá até meados de janeiro de 2007. Trabalhava
lá à noite e durante o dia fazia uns bicos para pessoas
que precisavam pagar contas, comprar alguma coisa,
serviços de autônomo mesmo. Não tinha intenção de
trabalhar em empresa de motoboy.
Aí meu tio resolveu vender a pizzaria e os novos donos
só ficaram com o pizzaiolo. Pensei: “Caramba, fiquei
desempregado. Mas beleza, vou procurar outro serviço
136
Coletivo canal*MOTOBOY
Fábio, motoboy
137
para fazer.” Foi quando fui num amigo meu que conhecia o dono da empresa onde trabalho; ele me levou até
lá e acabei ficando já no mesmo dia. Fiz um serviço, pois
estava com falta de motoca e o trabalho estava pendente. Era na mesma empresa que estava com o serviço
na quinta-feira. Foi quando recebi o aval de bem-vindo
à vida de motoboy - ou “cachorro loko” - em São Paulo.
Saí da produtora umas três e meia para levar uma fita até
a Fundação Padre Anchieta. Depois ia retornar à base...
Saí da emissora e peguei a marginal Tietê sentido Penha.
Pretendia ir até a ponte da Casa Verde e pegar a avenida
Rudge sentido Centro. Como sempre, no meio dos carros, mas com o cuidado de não sofrer uma fechada, ou
o pior, uma batida. Na altura de uma loja de material
de construção tinha um ônibus na faixa da esquerda,
ao meu lado, e ele simplesmente veio com tudo para a
faixa central, e percebi e desviei dele, só que ele voltou, porque o carro da faixa da esquerda deixou a traseira do veiculo todinha para mim. Na hora tentei frear
e desviar do carro. Consegui jogar a moto entre o carro e
o ônibus, e bati na ponta lateral do carro da frente. Não
tive como evitar o acidente. Caí na marginal. Na hora,
já por instinto, olhei para trás deitado para ver se vinha
carro. Como a moto caiu antes de mim, fez uma barreira
e ninguém passou por cima. Mexi os dedos dos pés e das
mãos. Não tinha quebrado nada. Então fui rastejando
até a moto para desligá-la. Tirei os óculos e o capacete.
Sentei e me examinei: não tinha feito nenhum arranhão
nos braços. Nada. Foi quando fui me levantar que notei
que, para minha surpresa, meu pé estava para o lado,
aberto. Tive fratura exposta da perna – que mais tarde
soube ser fratura da tíbia e da tíbula. Na hora entrei em
choque: não pela dor, pois na hora não senti a dor, mas
desespero pela situação em que me encontrava – o que
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Coletivo canal*MOTOBOY
Fábio, motoboy
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aconteceria comigo e tal. Fim de ano, na hora você entra
em desespero. Nisso, o motorista do ônibus foi embora
sem prestar socorro nem olhar o que ele tinha causado.
O cara do carro em que colidi, coitado, estava com os
documentos atrasados. Ele não tinha sido culpado e me
socorreu. Ficou comigo no local e foi embora antes de a
polícia chegar...
O tempo que fiquei no chão pareceu uma eternidade. Cada
minuto que o resgate demorava eu ia piorando. Quando
você sofre o acidente, começa a pensar em tudo ao seu
redor: sua vida, seus familiares, filhos tudo o que acontece
a sua volta.
Fábio Ascempcion
Cap.05
Jordana
Jordana
Motogirl de Iomerê,
Santa Catarina
143
Sentamos na grama amassada e ficamos ali por alguns
minutos. Os poucos carros que passavam levantavam
uma poeira engraçada, que formava desenhos de areia e
sujava as roupas de um varal. Era exatamente do que eu
precisava. Um cenário, um ouvinte e a vontade de refletir
sobre o futuro-presente que se apresentava para mim.
— Já sei! – falei.
— O que você sabe?
— O que quero ser quando crescer...
Nada é mais clichê do que começar uma história pelo
começo. Antes de rabiscar as primeiras palavras, até me
perguntei se teria outra forma de mostrar ao mundo (ou
só a você mesmo, leitor) um pedaço dessa minha vida.
Pedaço, porque costumo resumir tudo. Baseio-me em
fases, e nas melhores delas. Porém, como não encontro
outra solução, começo pelo começo mesmo, e deixo o
meio e o final em seus devidos lugares.
Uma vez li que planejar é o primeiro passo depois de uma
boa ideia. Mas na minha vida, os planos sempre foram
coadjuvantes, enquanto as surpresas e os imprevistos
davam ainda mais velocidade ao meu dia a dia.
Eu me lembro de um dia ter estacionado a bicicleta em
uma guia pintada de branco, perto da divisa entre Videira
e Iomerê. O dia parecia noite. Céu escuro, as luzes já
começavam a se acender nas casas e o comércio estava
quieto. Beretta estava comigo. O nome dele é Fernando
da Silva Beretta, daí o apelido. Somos amigos desde os
tempos dos dentes de leite, mas ele nunca me acompanhava nos passeios de bicicleta. Naquele dia, Beretta
estava na garupa.
142
Beretta virou o pescoço e me fitou de frente. Foi o que
bastou para que eu concluísse.
— Quero ser livre!
Iomerê nasceu depois de mim. Foi fundada em 20 de
julho de 1995. A principal atividade econômica é a agropecuária. E era dela, e de minhas duas rodas preferidas,
que eu dependia para sobreviver. Mas antes de renderme a confidências e amores, deixo escapar, como quem
não quer aparecer, meu nome: Jordana.
Agora sim, posso deixar o coração falar por mim e pelos
sentimentos que tenho pela vida. É tudo muito simples.
Nasci em uma família humilde, que cresceu e se tornou
forte. Devo tudo o que tenho e tudo o que sou à união e à
perseverança. Parece até conversa mole, mas não é. Meu
pai, desde muito cedo, sempre me induziu às melhores
sensações, fruto das escolhas mais sábias que alguém
pode ter.
Em julho de 1999, meu pai abriu, com um dinheiro que
ganhou na Loteria, uma loja agropecuária. Não foi MegaSena, aviso antes das precipitações. Mas foi um dinheiro
que, na época, jamais conseguiríamos juntar em poupança. No início era algo pequeno. Não tínhamos funcionários e quase não havia clientes. Meu pai pensou em
144
Coletivo canal*MOTOBOY
fechar, mas Beretta e eu não deixamos. O que fazia com
que ele não desistisse e voltasse à fazenda que trabalhava anteriormente era o sonho que, em uma conversa
e outra, eu e Beretta confidenciávamos. Meu pai não
queria nos decepcionar. E não o fez.
Três meses bastaram para que o negócio começasse a
dar certo. Eu, com a bicicleta, ia ajudando no que era
possível. Batia nos sítios, pulava porteiras, conversava
com fazendeiros, e arriscava levar desaforo quando
insistia demais na propaganda. Beretta ia comigo às
vezes, mas eu gostava de estar sozinha para correr
com a bicicleta o máximo que eu conseguisse. Nada era
melhor do que a sensação de dever cumprido e o vento
batendo nos olhos em um final de tarde.
Mas eu queria mais. Meu aniversário de 18 anos estava
chegando e eu sabia que podia pedir o que quisesse.
Eu sabia o que queria, mas tinha medo de me frustrar.
Sempre fui assim. Ilusões demais, sonhos além da conta,
e uma mania tremenda de idealizar meus presentes.
Nunca ganhava o que queria, mas aquele ano seria diferente. A loja estava dando certo, havia dois veterinários e
vários clientes. Meu pai não ia me negar nada.
Decidi que seria ela. A que o vizinho precisava despachar
para outra garagem em troca de dinheiro. Vermelha e
preta, com alguns arranhões que davam a ela um ar
de aventura e adrenalina. Já tinha um nome, mas eu a
batizaria novamente, com um apelido carinhoso à sua
altura. Era aquele o presente que, no fundo, eu sempre
quis. Uma Suzuki Bandit 400, do ano de 1993.
— Eu compro! – consentia meu pai.
— Pois eu não deixo! É perigoso demais... – contestava
minha mãe.
Jordana
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146
Coletivo canal*MOTOBOY
E eu ali, no meio dos dois, com 17 anos de idade, olhos
cheios de lágrimas e com medo de nunca conseguir a
liberdade que tanto buscava. Algo me dizia que eu teria
a moto. Se não fosse no aniversário, seria mais tarde,
anos depois. Mas eu a teria. Era um sentimento de certeza que meu coração alimentava em silêncio.
— Vou tomar cuidado! – Eu argumentava.
— Mas Jordana, se você já corre com a bicicleta, imagine
com isso!
— Deixa, mulher, ela vai fazer 18 anos...
— Tudo bem! Não adianta discutir mesmo. Mas depois não
quero saber de reclamações.
Nunca eu havia sentido tamanha alegria. Nem quando a
moto foi entregue ao meu pai, no dia do meu aniversário. Estava feito. Era aquilo. Em poucos dias, eu estaria
experimentando a liberdade, o vento mais ríspido, o corpo
mais solto. Não tenho dúvidas. Foi o melhor presente de
aniversário que já ganhei na vida.
Na primeira semana, senti como se todo mundo na
cidade me olhasse diferente. Ninguém acreditava que
uma garota, filha dos donos da loja agropecuária, estava
pilotando a tal moto vermelha. O próprio vizinho me deu
as primeiras aulas. Andávamos devagar, íamos para
Videira e voltávamos no fim do dia para Iomerê. Ele me
contava algumas aventuras que tivera com a Madalena
(era como ele chamava a moto) e eu me imaginava em
cada situação. Era como se eu já tivesse vivido tudo
aquilo que ele me dizia. Como se já conhecesse cada
pedaço de terra ou asfalto de Santa Catarina, montada,
é claro, na Suzuki Bandit 400. Era uma loucura!
Com a carta nas mãos, e com o guidom também, a única
certeza que eu tinha era a de ter feito a escolha certa.
Mas ainda faltava algo. Minha moto precisava de um
novo nome.
Jordana
147
Já havia pensado em alguns, mas nada que me agradasse. Pensei em Lurdes, para homenagear minha mãe.
Desisti. Depois me veio a ideia de continuar mesmo como
Madalena. Mas não seria original. Cheguei a pedir ajuda
de Beretta, que disse só gostar de um nome no mundo:
o meu. Passaram alguns dias e quando eu estava quase
me esquecendo do assunto, encontro dentro de uma
gaveta uma folha com a letra de Piece Of My Heart.
“Você está fora, nas ruas, parecendo bem,
E baby, bem dentro do seu coração,
eu acho que você sabe que isso não é correto.
Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca me ouve
quando eu choro à noite,
Baby, eu choro o tempo todo!
E a cada vez digo a mim mesma que eu,
bem, não consigo suportar a dor.
Mas quando você me segurar em seus braços,
vou cantar mais uma vez.”
Como eu não havia pensado nela? Será que a euforia do
presente, os olhares nas ruas da cidade e a movimentação da loja haviam me cegado completamente? E aquela
folha de papel? Ainda tinha algum significado na minha
vida? Era minha música favorita. Minha cantora favorita.
Eu jamais vou me perdoar por ter me esquecido de Janis
Joplin.
Foi assim que batizei a moto.
Janis e eu passamos a nos entender bem. A harmonia
existia, todos percebiam. Claro que quando eu estava
nas ruas a concentração aumentava devido aos pedestres de Iomerê e aos outros veículos. Mas nas estradinhas de terra, só existia nós duas. Janis e eu. O resto do
cenário era a plateia avulsa, que batia palmas, às vezes,
quando eu levantava uma poeira maior, ou deixava escapar um grito de euforia.
148
Coletivo canal*MOTOBOY
Um dia, depois de ter deixado algumas vacinas na loja
do meu pai, peguei Beretta pelo caminho e levei até meu
lugar preferido. Não conto onde fica porque é um segredo
meu e de Janis. Mas sempre confiei em Beretta, queria
compartilhar com ele os mesmos sentimentos que eu
tinha quando estava lá. No caminho, despistamos algumas crianças que corriam atrás de nós e entramos em
uma estradinha cujo destino eu já conhecia. O caminho era cheio de pequenos buracos. Beretta reclamou
no começo, mas desistiu de falar. Eu não dava ouvidos
a ninguém quando estava pilotando. Isso talvez possa
ser chamado de sintonia, não sei. Mas sempre foi assim,
desde que ganhei a Janis.
Estacionei a moto embaixo de uma árvore com folhas
secas. Mas até a carência dos galhos tinha beleza ali.
Pelo menos eu enxergava. Tiramos o capacete, penduramos no guidom e juntos respiramos o ar que pairava
na montanha. A visão que tínhamos era basicamente a
de um quadro desses que encontramos na sala da vovó.
E sempre fui apaixonada por pincéis. Era o lugar perfeito para rir, chorar, dormir, acordar ou apenas observar ao redor.
— É lindo mesmo! Nunca tinha vindo aqui... – dizia Beretta.
— Eu imaginei, por isso o trouxe.
Foram as únicas frases que conseguimos trocar. Janis
Joplin é testemunha de que tentei balbuciar mais algumas palavras, mas não as encontrei em lugar algum.
Era como se todo meu vocabulário tivesse escapado no
vento e ido embora para sempre. Não sei se você, leitor,
já teve a mesma sensação. Naquele dia não entendi, mas
hoje até poderia arriscar uma conclusão. Porém, fiquemos apenas com o desfecho em si.
Jordana
149
Nunca meus olhos haviam enxergado Beretta além de um
bom amigo. O coração também não via nada de mais. O
corpo, talvez, até sentisse alguma atração. Mas ela era
tão fraca até então que a razão ganhava todas as batalhas
com o instinto. Eu disse até então? Pois foi até que ele
também tivesse a mesma sensação que eu. Mais tarde,
Beretta me disse que procurou palavras para justificar o
que viria a fazer, ou simplesmente para não tornar tudo
tão confuso. Mas também não as encontrou. Nem preciso
narrar aqui que lábios se encontraram naquele pôr do sol.
Acho que a maioria das pessoas já esteve em situação
parecida. Ter que decidir entre um amor e uma amizade.
Mas o que me difere da maioria é que o amor e o amigo
eram a mesma pessoa: Beretta. Às vezes, eu sentia que
não tinha pilotado bem, que havia me arriscado e descuidado de Janis. Sentia que meu pai percebia minha cabeça
longe, mas não perguntava nada. Minha mãe chegou a
fazer algum comentário, mas eu não queria falar. Não precisava, ainda. A única hora em que eu não estava pensando
em Beretta era quando ele estava ali, diante de mim, trazendo algum doce da padaria ou apenas passando em
frente à loja e me cumprimentando com carinho.
Um dia a conversa foi inevitável. Não que eu não quisesse.
Mas tinha medo do que ele pudesse me dizer. Como isso
era possível? Eu nunca tive medo de nada. Sempre enfrentei meus pais, as pessoas na rua que desrespeitavam o
trânsito, o próprio trânsito. Não tinha medo de cair, me
machucar ou morrer nas idas e vindas para a loja do meu
pai. Não tinha medo de que me roubassem a Janis. Se
isso acontecesse, eu moveria as montanhas de Iomerê
pra encontrá-la. Eu sabia que era corajosa. Então, por
que eu estava naquele estado deprimente? Parecia uma
criança quando já espera pela bronca dos pais. Aquilo
não estava acontecendo...
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Coletivo canal*MOTOBOY
Jordana
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Coletivo canal*MOTOBOY
Foi no dia em que precisei ir a Treze Tílias, cidade próxima a Iomerê, em Santa Catarina. Na verdade, eu tinha
vários lugares para ir, entre sítios, bancos e empresas.
Mas foi em Treze Tílias que me encontrei com ele. Quis
correr dali, ir embora sem olhar para trás, subir na Janis
e voar. Mas fiquei. Existem duas Jordanas. A Jordana
de antes daquela conversa e a que veio depois daquela
tarde em Treze Tílias. Dizem que mudar é importante, que faz parte da vida e do crescimento humano.
Concordo. Mas só agora, depois de todo esse tempo,
consigo enxergar as mudanças de maneira positiva.
Como disse no começo dessa história, gosto de resumos. Então, prefiro simplificar nesse mesmo parágrafo
tudo o que Beretta me disse naquele dia a perder mais
tempo relembrando frase por frase do que foi nosso diálogo. Não gaguejou, não pigarreou. Não tossiu nem tentou voltar atrás. Foi direto, seco e cheio de certezas. Não
queria nada comigo, a não ser nossa amizade de tempos
de criança. Disse que tinha seus medos, seus sonhos e
talvez tudo aquilo não fizesse sentido. Desistiu antes
mesmo de começar. Eu apenas consenti.
Saí de lá entregue ao desespero. Não consegui chorar,
mas não sorri para que não acontecesse. Apenas subi na
moto, acelerei o máximo que consegui e desapareci das
vistas dos habitantes da cidade.
Os dias que se seguiram foram angustiantes. Como uma
bola de neve, todos os problemas possíveis resolveram
misturar-se. Meu pai acidentou-se na escada da loja e
minha mãe também teve problemas de saúde. Comprei
o chão de Iomerê em duas quedas que me custou um
empréstimo no banco para fazer uma reforma em Janis. A
loja estava indo bem, mas os gastos aumentaram demais.
Faltou dinheiro.
Jordana
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Foi aí que decidi arriscar. Mudei-me para Florianópolis em
outubro de 2002 à procura de um emprego novo, um aluguel barato e a esperança que estava em falta. Não sei se
todo começo é necessariamente difícil, mas aquele foi. E
muito. Não queria recomeçar nada, apenas apagar uma
vida e acender outra. Era minha forma de ao menos tentar
voltar a ser feliz.
Em Florianópolis, tudo parecia o inverso de Iomerê. Era
minha vida de cabeça para baixo, quase literalmente.
Só Janis Joplin era conhecida. Meu primeiro emprego
na capital foi em uma pizzaria. Trabalho duro, penoso.
Exigia mais do que apenas meu esforço físico, mas psicológico também. Achei que não ia aguentar um mês.
Mas passei dois anos inteiros entregando pizzas na
tele-entrega.
A rotina era puxada. O cansaço que se apossava de mim
durante as noites trazia o sono, os sonhos, alguns pesadelos e um ânimo novo a cada manhã que acordava.
Era uma onda de sentimentos distintos que embalava
minha nova vida, longe de meus pais, amigos e estranho
amor, que deixei em Iomerê. Aquilo estava começando
a gerar efeitos confusos. Ao mesmo tempo em que eu
pensava em desistir de tudo e correr para o colo da mãe,
eu tinha imensa vontade de prender meus pés no asfalto
e não arredar dali até poder afirmar a felicidade que eu
estava procurando.
Mas ela também teve sua vez.
Datas à parte, ela chegou quando eu menos esperava.
Embora muito desejasse, a surpresa foi inevitável. Em um
sábado desses que chovem sem parar e estragam planos
alheios, bateram no apartamento onde eu morava. Abri
a porta e ali estava minha libertação, minha felicidade,
meu estranho amor: Beretta. O susto paralisou os meus
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Coletivo canal*MOTOBOY
sentidos. Ele também parecia imóvel por algum motivo
que nem eu, nem ele podíamos enxergar. Já havia se passado dois anos. Dois longos anos sem olhar dentro dos
olhos de açúcar do meu amigo de infância. Aquele da
garupa, das confidências, dos sonhos em comum. E agora
ele estava na minha porta. Parado.
— Eu senti saudades! – disse ele depois de longos segundos.
— Eu também senti. Senti muitas saudades... Pensei em te
ligar, pelos anos de amizade...
— E por que não ligou?
— Por que você não ligou?
Beretta baixou os olhos para o tapete. Outra pausa.
— Entra! – convidei, abrindo mais a porta.
Ele entrou. Olhou a sala, acomodou-se no sofá e voltou a falar.
— Eu vim porque eu precisava te ver, olhar pra você de novo e
ter absoluta certeza do que quero!
— E o que você quer?
— Eu quero você, Jordana!
Pude identificar cada letra daquela frase, uma após a
outra, como se Beretta estivesse ditando as palavras
diante de mim. O olhar que me lançou foi impecável, nitidamente lúcido, completamente azul. Tão azul que enxerguei o que havia atrás daqueles olhos. E a única certeza
que tinha era que eu levantaria de onde havia me sentado
e correria para lhe dar um abraço de amor, seguido de um
beijo, também movido por aquele sentimento que dormia.
Mas o sentimento que dormia não acordou naquela
manhã de sábado chuvosa. Não acordou durante a noite,
nem durante os meses que vieram depois. Já era tarde.
Beretta estava atrasado dois anos. Naquele instante,
entendi que, mesmo sem perceber, estava dando tempo
ao tempo, enquanto vivia longe de Iomerê e das minhas
lembranças mais antigas. Eu não ia me levantar respirando depressa todo o ar da sala. Não ia correr em direção
a Beretta e abraçá-lo antes de tomar-lhe um beijo. O que
Jordana
155
fiz foi ainda mais simples do que isso. Desmenti a falsa
certeza que ele trazia no olhar. Ele apenas consentiu.
Da janela, vi Beretta abrir o guarda-chuva e acenar antes
de ir embora. Não foi à toa que escrevi, parágrafos acima,
que a felicidade também teve sua vez. Beretta se foi e
levou com ele todas as minhas angústias, medos e arrependimentos. A felicidade entrou. Peguei a chave, o capacete, bati a porta e sai de pantufas no meio da chuva. Subi
em Janis Joplin e voei. Mas para não dizer que sai dali
sem rumo, digo apenas que segui na direção contrária a
Beretta. O lado oposto, escolhido pela seta da moto e pelo
meu coração, livre.
Bruna Bo
Cap.06
Neka
Cap.06
Neka
Neka
I
Meu nome é Eliezer Muniz dos Santos, mas quase todos
me chamam de Neka. Entre os motoboys fiquei conhecido como Neka por participar de um coletivo de motoboys e ex-motoboys que desenvolvem atividades culturais junto à categoria.
Esse apelido levo desde criança. Mas só recentemente,
quando fui convidado por Antoni Abad, um artista espanhol, para junto com ele criar um projeto com os motoboys na cidade de São Paulo, ao me apresentar pelo meu
apelido, eles começaram a me chamar de Neka, e então
me dei conta de que era mais que um apelido, mas uma
identidade.
Acho que nunca me acostumei com nome próprio.
Na vida, sempre estamos insatisfeitos e queremos mudar
alguma coisa, mas há também outras, que mesmo pequenas, nos fazem felizes e que não queremos mudar nunca.
Uma destas é a forma carinhosa com que os amigos nos
chamam. Por isto, quando conheci os motoboys e motogirls que vieram participar do projeto canal*MOTOBOY,
não fiz a mínima questão deles me tratarem pelo nome
próprio, e visto que nos tornarmos grandes amigos, mais
uma vez meu apelido substituiu o nome.
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159
Ganhei este apelido quando eu tinha de 3 ou 4 anos de
idade. Nesta época, eu e minha família morávamos no
Rio de Janeiro. Nossa casa ficava nos fundos de um terreno de uma pequena fábrica de picolés, cujo dono era
um português que cuidava da sorveteria com sua família. Foi ele quem me arranjou esse apelido, e na verdade
é uma história bem engraçada. O nome do portuga era
Antonio Mota. Não lembro quase nada dele, pois eu era
muito pequeno, embora sua grande barriga não me saia
da memória, ao passar todos os dias junto às máquinas
fazendo picolés e gritando com suas filhas. Sua esposa
era muito doente e não podia ajudar nas tarefas. Ele
tinha que dar conta de tudo e ainda atender à freguesia, formada principalmente pela molecada das redondezas, que não era pouca e corria de lá pra cá em busca
de um refresco. Com o calor rachando a cuca, a garotada
atrás de um de picolé sob a calha em frente à sorveteria,
e as máquinas não davam conta, e como eu era quase
da família, ficava por lá zanzando, brincando no chão, e
a molecada que ia lá comprar picolés zoando comigo e
mexendo com o papagaio do português.
O papagaio passava o dia empoleirado no batente junto
à porta, dando grunhidos altos e imitando a voz da criançada e os gritos de Antonio Mota. O papagaio imitava
tudo que o português dizia, e a criançada curtia com as
estripulias do bicho.
Meu pai sempre viajou muito por conta do trabalho.
Minha mãe cuidava da casa, e tinha que correr o dia todo
atrás dos meus irmãos mais velhos, que agora já estavam na escola, além de costurar pra fora para ajudar nas
despesas da casa. Nessa época, ela estava grávida de
uma de minhas irmãs e seu Antonio Mota, que além de
ser dono do imóvel, era muito amigo da nossa família,
trouxe um dia do hospital, no seu calhambeque preto,
160
Coletivo canal*MOTOBOY
minha mãe com a pequena Lora no colo. Ela tinha lindos
olhos azuis cor do céu e toda a vizinhança veio admirála. Isso foi logo após a Copa de 1970. São poucas as lembranças de minha primeira infância, mas lembro muito
bem o dia que o povo saiu à rua para comemorar o tricampeonato mundial de futebol - e foi uma festa enorme
nas ruas do Rio de Janeiro. O Brasil viveu um carnaval
fora de época aqueles dias, e felicidade assim a gente
não esquece.
Minha mãe tinha suas preocupações, e eu ficava perambulando pelo quintal da vizinhança, em um ferro-velho
próximo, na casa do portuga e na sorveteria. Seu Antonio
e as filhas passavam as tardes na sorveteria, desenformando e embalando os picolés. Para desenformar era só
puxar os picolés pelo palito, dois de cada vez, e então
passavam para o outro balcão para colocar a embalagem, que depois eram guardados novamente em outro
congelador de prateleiras esfumaçadas. A sorveteria
era um local bastante fresco e limpo, e aqueles sorvetes fariam a alegria da gurizada no dia seguinte. Naquele
calorão, eu que não era bobo, ficava por lá por que sempre sobrava algum pra mim. Algum não. Vários!
Caramba, até vejo a cena.
Eu lá de barriga de fora, pé no chão, e um zóião esperando
ganhar um picolé. Eu chegava assim que eles começavam
a mexer com os picolés. Quando seu Antonio ou as meninas viam que algum sorvete saía meio quebrado, ele se
abaixava e me dava o toco. Eu ficava ali, torcendo pra que
outros mais viessem quebrados. Virei frequentador assíduo do lugar. O problema é que o português tinha mão boa
e nem sempre vinha algum quebrado. Ele sabia a hora
certa de tirar as formas do congelador, na primeira forma
eu já ficava na expectativa, torcendo que algum viesse
quebrado, e assim começávamos aquele jogo.
Neka
161
Toda tarde era a mesma coisa. A cada vez que ele desenformava, tirando os picolés e estes saindo inteirinhos, e
o portuga era habilidoso, ele apontava os picolés intactos pra mim e dizia, em seu jeito de português gozador:
— Neca!
Bom, daí em diante você já podem imaginar. À tarde era
eu correr pra sorveteria pra descolar uns picolés. Rio
40 graus e eu na fita. O calor a mil, a molecada no terreiro, um olho na pipa e outro na varanda do seu Antonio
Mota, onde o papagaio fazia a maior algazarra. Cabelo
espetado, barriga de fora e o suor correndo pela testa. O
papagaio girava e retorcia na arara e fazia aquele barulho danado na gaiola. Ele gritava e os moleques imitavam
pra toda vizinhança ouvir:
— Neca! Neca! Neca!
A meninada toda se divertia com aquilo e fiquei com o
apelido. Recentemente, quando tive que usá-lo para aparecer na minha página pessoal no canal*MOTOBOY, eu
substituí o c pelo k, e definitivamente ficou assim: Neka.
II
Sempre fui uma pessoa interessada em saber como são
as coisas, o porquê delas. Passei por diversos empregos
e em vários momentos da minha vida eu sentia que eles
me enchiam de tédio e revolta. Fui bancário, vendedor,
garçom, programador de computadores e até motoboy.
Em todos tive a sorte de conviver com pessoas muito
boas, mas também com aquelas que não deixam saudades. Sem saber a hora, em todas estas profissões,
simplesmente me desligava quando sentia que não tinha
mais nada pra fazer ali. Independente das razões que
me levavam a mudar, nunca criei uma relação tão forte
162
Coletivo canal*MOTOBOY
ao ponto de transformar e interferir no resto da minha
vida. Mas foi como motoboy que esta vontade de saber
tudo me levou a compreender muitas das coisas que
sei agora, entrar em contato com alguns aspectos da
vida, que antes eu somente ouvira falar. Consciente ou
não, passei a ter uma vida plena, e meus companheiros
eram mais que colegas de trabalho. Fico pensando às
vezes como seria minha vida se não fosse essa minha
paixão por motos. Onde eu estaria agora? O que estaria
fazendo? Quem seriam meus amigos? Teríamos tido a
experiência que tivemos, se não fosse pelo fato de nos
sentirmos tão frágeis - e ao mesmo tempo tão fortes sobre as duas rodas?
A primeira empresa de entregas em que trabalhei ficava
no início da Consolação, antes da rua virar mão única,
uma pequena sala de um prédio de escritórios do lado
direito da rua. No início, a rapaziada curtia com a minha
cara por conta de minha pouca idade - apesar de já estar
casado e ter um filho -, e eu ainda era punk! Para eles,
eu tinha a aparência de alguém que perdera totalmente
o controle, coturno no pé, cabeça raspada e roupas rasgadas. Sempre fui alto, muito magro e espetava o cabelo
dentro do capacete. Aos poucos, conforme os outros
mensageiros iam me conhecendo, viam que a imagem
que eu passava não representava aquilo que eu era. Para
mim, naquele momento, aquele jeito que eu andava nada
mais representava do que os restos de um período da
minha juventude em que eu estivera envolvido com do
movimento punk.
Os motoqueiros da empresa, mais velhos, não eram de
muita conversa, mas logo viram que eu tocava bem a
motinha. Eles davam dicas sobre os serviços e me apoiavam na hora de montar os roteiros. Eu aprendia rápido
como eles trabalhavam. Por isto, creio que, desde o
Neka
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164
Coletivo canal*MOTOBOY
começo, meu trabalho de motoqueiro sempre me parecera mais uma opção, nunca uma obrigação, apesar de
ter que tirar dali meu sustento. Eu queria apenas andar
de moto e encontrei uma forma de unir prazer e trabalho.
Hoje, quando passo por lá na rua da Consolação, não
há mais toda aquela agitação que fazíamos quando nos
reuníamos para almoçar na padaria que havia embaixo
do prédio e ficávamos na calçada aguardando o horário
dos trampos. Antes havia ali em frente, no canteiro central entre as duas faixas de rolamento, um jardim com
um estacionamento de motos. Melhor ainda é descobrir
agora que o que aquele tempo tinha de bom era a união ali todos eram motoqueiros-, e rolava um clima de camaradagem de motoclube entre a gente. No caso, quando
digo motoqueiros me refiro aos motociclistas que, antes
de existir a profissão, já faziam uso da moto. Portanto,
tinham muita habilidade e prática de pilotagem, já que a
utilizavam como transporte e lazer.
Digo francamente, fui bem aceito pela galera por que eu
“não dava milho”, como diz hoje o Poeta dos Motoboys. A
rapaziada toda era da periferia; São Mateus, Guaianazes,
Cidade Tiradentes, São Miguel, Santo Amaro, Capão,
Imirim, Freguesia do Ó, Taboão, Osasco...
Eu também vim da periferia. Ainda assim, me sentia um
estranho no ninho. Eu tinha algum estudo e morava com
minha esposa no bairro da Saúde. Andava de Vespa e
ouvia rock. Pensavam que eu realmente estava ali mais
por curtição.
Mas ninguém conhecia realmente minha história. Não
sabiam de onde eu vinha, o que eu sabia e o que não
sabia. Aos poucos, passaram a confiar em mim e nos tornamos todos grandes amigos, pois trabalhamos juntos
por muitos anos.
Neka
165
Mais do que isto. Aquilo lá fora uma toca de velhas raposas, cobras e lagartos. Era preciso ficar esperto porque
aqueles caras eram rápidos no gatilho. Todos ali já tinham
trabalhado em outros empregos, vinham com alguma
experiência de outro lugar. Havia ali torneiros mecânicos,
balconistas, taxistas, bancários, operário etc.
A moto era a companheira de cada um e os manos não
davam mole, mas rolava uma grande irmandade. Cada
motoqueiro tinha sua história, de longa data, e sabia tudo
de motos. Daí para dominar o trabalho de mensageiro foi
um pulo. Muitos ainda manjavam de mecânica de motos,
então, nunca ficávamos na mão, um ajudava o outro.
Ninguém conhecia a cidade mais do que a gente e sabíamos dar o valor certo aos serviços que fazíamos. Este é um
grande diferencial em relação aos demais motoboys: muitas vezes, eles não têm noção de quanto vale sua corrida.
Além de valorizar nosso trabalho, estipulando o tempo
e o custo, os motoqueiros podiam escolher o serviço.
Naquela época, havia bem poucos motoqueiros trabalhando. Formávamos uma equipe coesa e ninguém atropelava o outro, e por conta disso não faltava serviço.
Cheguei ali sem saber nada, aprendi tudo sobre o mercado e sobre ser motoqueiro.
Um dia, a empresa foi obrigada a mudar de endereço.
Como havíamos crescido muito rápido, enchendo os corredores com tanto motoqueiros, a coisa ficou pequena e
a sócia da empresa, dona Augusta, recebeu reclamações
dos vizinhos, pedindo nossa saída. Fazíamos realmente
uma zoeira danada, descendo e subindo as escadas, elevadores, motoqueiros atravancando a porta principal,
capacete, luva, capa de chuva, mochilão, botas, baús...
Não deu outra! O proprietário do prédio deu um basta
e tivemos que mudar de lá. Foi assim, no meio dessa
galera, que comecei de fato a trabalhar de moto como
um profissional motociclista.
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Coletivo canal*MOTOBOY
Neka
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Antes deste emprego, por uns tempos, cheguei a trabalhar de delivery para uma fotocopiadora perto da avenida Paulista. Foi nesta empresa que fiz a minha estreia
como office-boy de moto. Aquele bate e volta de entrega
e retornos à empresa era ruim pacas, e por pouco quase
desisti deste trabalho. Além de não ter registro em carteira, pagava muito pouco e era um saco ficar parado
esperando a vez, indo e vindo, levando e trazendo fotocópia. Continuei no trampo por gostar de andar de moto.
Na empresa da Consolação, entrei em contato com as
múltiplas possibilidades que o trabalho de um profissional pode ser bem remunerado se exercer bem o trabalho, e inclusive crescer na vida. Ali cada um era dono
de seu próprio nariz, não tinha tempo ruim, e apesar de
todos os acidentes (todo começo é assim, quem é motoqueiro sabe que somente o tempo dá maturidade ao
motociclista), aquele trabalho poderia ser uma verdadeira aventura. A gente começava a trabalhar de moto
de manhã, nas horas em que surgia um monte de entregas, a gente escolhia um trajeto próprio, e depois íamos
mudando nossas estratégias, conforme o dia passava.
Creio que se não tivesse ido trabalhar de mensageiro
motociclista eu não estaria aqui escrevendo este livro
junto com esta rapaziada de agora, que vim a conhecer
quando já tinha vivenciado vinte anos nesta categoria.
Naquela época, eu nunca poderia imaginar que um dia
eu me envolveria com o movimento político que nasceu
junto com a categoria. Nem mesmo poderia imaginar
que um dia se se poderia falar em cultura motoboy e nem
que eu publicaria artigos, daria entrevistas em televisão
e rádio, em jornais e revistas, e muito menos imaginava
que se poderia usar telefone celular para envio de fotos
e vídeos do cotidiano de motoboys para a internet! Outra
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Coletivo canal*MOTOBOY
coisa que eu jamais poderia imaginar era que eu estudaria filosofia e me tornaria professor de uma escola de
ensino médio na periferia.
A liberdade que a motocicleta me proporcionava, tanto
me levando a diferentes lugares como conhecendo pessoas, se tornou um sonho para mim – logo eu, que nunca
havia sonhado. Um desejo realizado por lances inesperados, tanto agradáveis quanto de frustrações, que não
poderia ter acontecido se não fosse esta paixão que
tenho por motocicletas. Assim, me transformei naquilo
que sou. Eu queria estudar, mas estava trabalhando e
sabia das dificuldades que enfrentaria, quase impossível juntar as duas pontas, escola e trabalho, mas corri
atrás e consegui. Criei minhas próprias estratégias para
escapar da lógica do trabalho que condicionava o motoqueiro a exercer outras funções, e tenho certeza que foi
a moto que me possibilitou isto, como também as pessoas que apostaram, acreditaram em meu potencial.
Mas o que, no fundo, sempre me moveu a buscar alguma
coisa, não era um interesse individual, pois eu sempre
quis que nosso trabalho de moto não se transformasse
em martírio, desejando que não houvesse tanta exploração e injustiça, e que não sacrificasse nossa liberdade,
nos tirando o prazer de andar moto. Eu queria que todos
tivessem oportunidades e que acreditassem em seus
sonhos, porque eles podem se realizar.
Mas não foi o que aconteceu. A categoria, ao mesmo
tempo em que crescia, foi ficando cada vez pior, mais
radicalmente explorada pelas empresas. Hoje, quando
vejo no que ela se transformou, pretendo que este livro
possa chegar às mãos dos motoboys, para saberem que
eles também têm história, que há meios de resistir à
exploração. Apesar de toda a violência da vida e do trânsito de São Paulo, criamos uma lógica própria de sobrevivência e resistência.
Neka
169
Para mim, a trama começa quando chego a São Paulo,
e descubro pela primeira vez as alegrias e tristezas de
morar na periferia. Puxando o fio da memória de minha
infância, tentando descobrir como fiz minhas primeiras
escolhas, busco de alguma forma uma explicação para
os porquês dessas escolhas - e como elas influenciaram
minha visão de mundo! O porquê de tudo isto? É justamente desta visão que podemos buscar construir uma
ponte para o futuro. Buscarmos juntos um contraponto
a tudo o que está aí. E não é porque acredito apenas, é
pela experiência que podemos encontrar os argumentos necessários que possam criticar esta realidade, e
que não há outro modo de conhecê-la, senão por meio
da história de nossa vida e de nosso viver coletivo, então
podemos empreender um sentido para nossa história.
III
Numa tarde de muita chuva e calor, deixamos o Rio de
Janeiro. Era nossa despedida dos anos de luz, alegrias,
areia da praia e do brilho do mar, mas também da minha
primeira infância, e logo mais à noite embarcaríamos em
um trem com destino a São Paulo.
Pela manhã, um caminhão levara toda nossa mudança,
e eu não conhecia essa experiência de despedida. Nessa
época morávamos na casa pastoral que era conjugada
a uma igrejinha em um morro no bairro de Coelho Neto.
Esta igrejinha deve existir até hoje, ela foi construída
enquanto minha família morava lá. Naquele dia, passaram por lá algumas pessoas que moravam perto, e que
eram amigos de minha família. Vieram também alguns
fiéis da igreja em que meu pai era o pastor, e que compartilhavam, além da fé, a pobreza. Nós, crianças, passamos o dia todo de pernas pro ar, e sem necessidade
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Coletivo canal*MOTOBOY
de nos despedir, pois mal sabíamos que no dia seguinte
estaríamos longe dos amigos do morro, e como sentiríamos na pele a fria e fina garoa da vida, nas cruas ruas da
grande cidade de São Paulo.
Era dezembro de 1972, e eu tinha cerca de 6 anos de
idade. No trajeto até a estação, meu pai comprou uma
garrafa de Coca-Cola e comemos um lanche preparado
pela minha mãe, enquanto víamos pela janela a tempestade que se aproximava. Choveu até granizo àquela
tarde, e o vento ameaçou destelhar as casas da vizinhança. Lá era muito diferente de Brás de Pina e da
sorveteria do portuga Antonio Motta, de onde viemos.
Vivíamos nos mudando devido à função religiosa do
meu pai. Esta igreja protestante, Igreja Adventista da
Promessa Conservadora, foi fundada por meu pai e um
grupo de pastores dissidentes de outra congregação, a
Igreja Adventista da Promessa, que existia desde o início
do século, criada por meu avô.
Antes de viver no Rio, tínhamos já morado no Mato
Grosso, em um lugar chamado Dourados, hoje Mato
Grosso do Sul, assim como em Votuporanga, no interior
do estado de São Paulo. Desses lugares eu não tenho
qualquer lembrança, mas prestava atenção nas histórias que meu pai contava sobre o chão batido de terra
vermelho e os índios e as andanças dele pregando a
“palavra de Deus” por este Brasil afora. Ele viajou muito
e até conheceu outros países. Foi no litoral paulista, em
Santos, que nasci, em 12 de julho de 1966.
Aquele bairro carioca, apesar de tudo, era bem tranquilo,
visto como se encontram hoje as regiões pobres do Rio
de Janeiro. Naqueles tempos, tão distantes desta guerra
não declarada de hoje, vivíamos em paz, apesar de
haver criminalidade, como em qualquer lugar haja falta
emprego e pobreza. O morro fervia quando saíam alguns
Neka
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tiros, mas logo depois as pipas já estavam voando outra
vez. Éramos muitos pobres, e nunca tive vergonha em
falar sobre isso, e sempre que as coisas apertavam os
crentes da igreja que tinham melhor condição social nos
ajudavam com algum socorro. Fazíamos um esforço fora
do comum para nunca precisar pedir a ninguém. Lembro
que sempre apertava quando meu pai viajava. Por muito
tempo tivemos essa vida, minha mãe punha-se, com
muita garra, na máquina de costura para dar conta do
que vestíamos e comíamos. Aonde quer que fôssemos
morar. ela logo conhecia gente e fazia sua freguesia.
Como naquele tempo costureira com máquina própria
era algo raro, minha mãe logo sugeria novos cortes.
Exceto algumas vezes, quando o carro pipa encalhava
de subir o morro, nós tínhamos água na caixa e podíamos tomar banho. A água ali era pouca, o jeito era buscar
água na bica. Vivíamos, então, a época da ditadura, e às
vezes acordávamos com o morro cercado pelo Exército.
Eles chegavam de surpresa, no meio da madrugada,
montavam trincheiras nos pés dos morros e fechavam
todas as ruas e becos que davam para a avenida. Depois
de entrincheirar a comunidade e vistoriar documentos
de quem descia ou subia, os soldados ainda se alinhavam e formavam um cordão de isolamento, que subia
feito funil pelo morro, fazendo uma verdadeira peneira.
Diziam que estavam em busca de armas e “terroristas”,
os perseguidos políticos do regime. Em uma destas ocasiões, meu pai sentou-se em um banco do lado de fora da
igreja, lendo a Bíblia aberta. As portas e janelas ficavam
abertas para a revista dos soldados, e eles entravam em
todas as casas, com pastores alemães, farejando tudo,
soldados com metralhadoras e muita gritaria de ordens.
O povo da comunidade olhava tudo em silêncio, e se
encontrassem algum barraco fechado, punham abaixo.
172
Coletivo canal*MOTOBOY
Eu não sabia, mas isto acontecia em muitos outros lugares. Eram tempos do AI-5, e a coisa ficava muito pesada,
principalmente para a população pobre. Em vez de acharem “terroristas” e armas, eles só encontravam alguns
facões e armas leves, no máximo algum revólver escondido. No retorno do pente fino, ao final da tarde, eles
vinham descendo o morro, passando em frente às casas,
e de trás dos muros ficávamos observando enquanto os
soldados levavam alguns homens algemados, em geral
negros, com uma corda que os prendia uns aos outros
para não fugirem.
Na partida do Rio, lembro que me juntei aos meus irmãos
em silêncio, pois nunca tinha viajado de trem. Já estava
quase escuro quando saímos, meu pai trancou a casa
pastoral e fomos com nossas malas para a estação.
Embarcaríamos no trem das dez, que na época fazia
o translado noturno entre Rio e São Paulo. Partimos da
Estação Central do Brasil. Do Rio de Janeiro, trago a lembrança da partida, do Cristo Redentor de braços abertos
no alto, iluminado, em meio à noite quente. Da lua cheia
vista pela janela da cabine do trem, enquanto o Cristo
flutuava. Levo também a lembrança das mazelas de
minha primeira infância, da vida difícil na periferia, dos
pés descalços nos paralelepípedos quentes. E também a
alegria de vivermos soltos pelas ruas, empinando papagaio, correndo o dia todo, e nos divertindo, sem maiores
preocupações. Como a imagem do Cristo para mim, tenho
a impressão de que sempre posso voltar lá e pegar esse
trem de novo... Basta fechar os olhos e imaginar. Afinal, a
cidade é realmente maravilhosa.
Neka
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IV
Acordamos em São Paulo. Uma neblina opaca cobria a
cidade. Nas ruas vazias, as luzes dos postes preenchiam
a madrugada. O sol ainda não tinha nascido. O trem visto
pela janela da nossa cabine era de uma cor cinza prata
e seu brilho molhado deslizava pelas curvas lentamente
e casas e ruas ainda úmidas da madrugada fria. O trem
diminuiu o ritmo quando foram aparecendo muitas fábricas, até que passamos pela estação do Brás e chegamos
ao terminal Júlio Prestes.
Uma multidão tomou a estação com a chegada dos trens
suburbanos. Embarcamos em um desses trens, e por
causa da neblina, não pudemos ver os prédios altos de
São Paulo. Assim que o trenzinho começou a andar, o
Centro desapareceu e entramos na periferia. As rodas
metálicas rangiam e o trem estava vazio, demorando
uma eternidade para chegar até Guaianazes, que nessa
época era apenas uma vila em torno da estação de trem.
O transporte coletivo até o centro da cidade era feito ou
por trem ou por uma linha municipal de ônibus da CMTC.
Outra opção era a que vinha de Ferraz de Vasconcelos e
ia até o Parque Dom Pedro II. Após o desembarque, fomos
a pé da estação até nossa nova casa, que fora alugada da
mesma maneira como todas as outras em que tínhamos
morado. O sol já estava aberto, e o calor do dia começava
a aparecer. Chegamos em nossa rua e o caminhão com
a mudança já se encontrava lá, aguardando na porta, e
o motorista descansava deitado numa lona embaixo do
veículo, tomando um chimarrão.
Quando entramos em nossa nova casa naquela manhã.
Esquecemos nossas mágoas e sentimos um aperto no
coração. São Paulo significava uma oportunidade para
crescermos na vida, mas também era um momento de
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Neka
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separação e tristeza, já que não viveríamos mais com
nossos primos no Rio. Ao entrarmos na casa número 33
da rua Andes, na Vila Minerva, parecia que havíamos
ganhado na loto. Na frente, a casa tinha uma varandinha,
como quase todas as casas de trabalhadores de antigamente. Sala, cozinha e dois quartos bem distribuídos.
Meu pai comprou três beliches para quarto que eu dividiria com meus irmãos, enquanto no quarto dos meus pais
ficava o berço do meu irmão mais novo, Davi, que havia
nascido um pouco antes de mudarmos. Lembro que ele
chorava sem parar.
A casa tinha um baita quintal cujos fundos davam para
um pequeno córrego que cortava os terrenos das casas
vizinhas. Tinha tanta árvore que parecia um bosque, com
bananeiras, mexeriqueiras, ameixeiras, pés de cáquis,
abacateiros e vários bambuzais. Havia também muitos
passarinhos e meu passatempo preferido era subir nas
mangueiras e construir balanços. Passávamos o dia todo
explorando e brincando, a rua fervilhada de moleques,
correndo o dia inteiro. Mil histórias, como qualquer rua
de periferia. Havia também os moleques da rua de cima
que sempre jogavam marimbas nas linhas das nossas
pipas, e nós para nos defender atirávamos pedras e estilingues neles, por causa dessas tretas havia muitas brigas no bairro. Quase não parávamos dentro de casa, e
nos quintais das casas apareciam tantos moleques que
deixavam a vizinhança doida. O que mais gostávamos
era de brincar de polícia e ladrão, bang-bang e imitarmos
os super-heróis que víamos no cinema. Tudo era improvisado. Dividíamos os papéis, construíamos os roteiros,
imaginávamos territórios, ataques, disputas com armas
que a gente mesmo construía, com paus, folhas de bananeiras e as tralhas que desciam pelo córrego.
Neka
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Os domingos eram reservados para as sessões no Cine
Guaianazes. Foi lá a primeira vez que assisti a um filme
no cinema. Lembro como a tela impregnava meus
olhos, e como eu me sentia, sentindo em meu próprio
estômago as porradas que o mocinho levava dos bandidos. Nos filmes, o grande momento era sempre quando
ocorriam os duelos entre mocinho e bandido. Cara a
cara! Essa era a única hora em que a molecada parava
de zonear o cinema, e quando não se ouvia nem a respiração dos outros. Silêncio total. Todo mundo vidrado na
luz do projetor... O momento culminante era quando os
pistoleiros sacavam rápido suas armas. Era um delírio
geral. Depois a gente ficava tentando recriar os filmes
em nossas brincadeiras. Anos depois o cinema fechou
e no local abriram uma loja das Casas Pernambucanas.
As peladas de futebol também me marcaram muito.
Adorava jogar bola na rua e sempre voltava com um joelho ralado. Aos sábados, porém, a coisa esquentava,
porque os caras mais velhos, que já trabalhavam, tiravam um rachão e então a molecada ficava em volta do
campinho esperando uma oportunidade. Não era meu
caso, pois sempre fui muito ruim de bola, cheguei a tentar várias posições, ponta esquerda, defesa e até atacante, mas nunca acertava a bola, então acabavam me
mandando pro gol, posição que ocupo até hoje.
Vivemos lá praticamente toda a década de 1970, chegamos no início de dezembro de 1972 e no final de 1979
saímos de lá. Por conta da religião, não podíamos jogar
bola, ir ao cinema e assistir à TV, mas fazíamos tudo
escondido do meu pai. Assim, ele não via a hora que
meus irmãos começassem a trabalhar, e foi o que fizeram meus três irmãos mais velhos, a Kedma, o Eliseu e
o Elias. Com isso, nossa vida melhorou um pouco, mas
mesmo com essa ajuda deles, ainda era muito difícil
sobrar alguma coisa porque a família era grande.
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Os meninos foram trabalhar de office-boys numa empresa
que ficava no edifício Martinelli, onde trabalhavam muitos office-boys. Eles pegavam no pesado distribuindo
recortes de matérias que saíam nos jornais sobre os
clientes. Minha irmã começou vendendo cosméticos e
depois foi trabalhar de datilógrafa em um escritório. Com
isso, todos passaram a estudar à noite. Comecei a descobrir o mundo quando fui mandado para a escola, com
pouco mais de 7 anos. Estudei na Escola Estadual Pedro
II, onde, logo de cara, levei bomba, por conta das péssimas condições da escola. O lugar era o próprio inferno!
Lembro que mudei de sala umas seis vezes na mesma
série, cada uma era pior do que a anterior. As professoras
não deixavam que os alunos fossem ao banheiro durante
a aula. Então o que acontecia de moleque molhando as
calças não era brincadeira. Pior ainda, todos morriam de
medo de ir ao banheiro sozinhos por conta de uma história sensacionalista divulgada nos jornais populares que
falavam da “loira do banheiro”, uma espécie de fantasma
que nos assustava. Por estas e outras razões, as próprias
professoras não iam ao fundo da classe, pois o cheiro era
insuportável de urina. Voltei pra casa muitas vezes com
os shorts molhados. Lembro ainda que acordar cedo era
uma maldade, um frio de gelar os ossos. A escola não
separava o ensino fundamental do ginásio, e por isso, a
molecada sofria na mão dos mais velhos, que descontavam seu ódio na gente.
Depois fui transferido para outra escola, a Escola
Municipal 25 de Janeiro, onde fiz o primário inteiro. Lá
só tinha classes da primeira até a quarta série e tudo
muito limpo e organizado. Foi onde me alfabetizei e descobri que a classe não era lugar de urinar. Aprendi a ser
educado e esperar o lugar na fila, era fila pra tudo. Todos
usavam uniformes, camiseta branca e calção azul.
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Descíamos uma classe por vez para a merenda, sendo
que algumas eu odiava, mas éramos obrigados a comer
algo como mingau de baunilha ou arroz doce, aquelas
papas brancas. Quem se recusasse a comer passava
todo o intervalo olhando pra cara do prato e não podia
sair para brincar. O ensino, porém, era de qualidade e era
divertido atravessar todo dia por dentro da estação do
trem pra chegar à escola.
Foi no 25 de Janeiro que eu soube o que era uma biblioteca. Tive muita sorte, pois, nessa idade em que a criança
descobre o universo das letras, tive acesso à leitura,
já que a escola ficava na parte de baixo da Biblioteca
Municipal, a única em toda a região. A gente tinha o hábito
cabular aula para ficar lendo gibis e livros infantis, passando a tarde toda na biblioteca. Para você ver como a
vida escreve certo por linhas tortas, adquiri o habito da
leitura fazendo coisa errada.
Pouco antes de parar de trabalhar como motoboy,
quando eu ia fazer uma última entrega do dia, tive a
oportunidade de rever a biblioteca. O local me pareceu
bastante deteriorado, porém guardava ainda um pouco
daquela atmosfera, com pessoas circulando e muitos
cartazes de eventos culturais fixados na entrada. Mas
não encontrei o tablado de madeira no chão onde passávamos horas deitados devorando o pequeno acervo
de livros e revistas das estantes. Fui até o fundo onde
havia uma janela e pude ver algumas crianças brincando
em um parquinho na parte mais embaixo, onde era o
antigo pátio da escola. Perguntei a uma funcionária e
ela respondeu que o 25 de Janeiro tinha virado creche e
só atendia o pré-primário. Como naquele dia eu estava
com bastante tempo, também aproveitei e resolvi rever
nossa casa na rua Andes. Agora, a varandinha era uma
antessala de um pequeno escritório de advocacia, e o
Neka
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grande terreno em volta da casa, que ia até o riacho que
corria nos fundos, foi todo ocupado por pequenas casas
de tijolos à vista.
Tinha acabado de cair uma chuva e a rua, agora asfaltada, estava vazia, sem ninguém passando. No asfalto,
a água que descia da parte alta corria pelo meio-fio da
calçada. Parei em frente à casa e desliguei a moto. Fiquei
um tempo lá olhando cada detalhe, lembrando do dia em
que os postes de luz da rua foram fixados e que a rua toda
ficou iluminada a noite, e que cada pedacinho daquela
calçada tinha uma parte de minha história. Ainda que o
cimento fosse outro, a calçada era a mesma em que passei a infância, correndo sobre ela. Quantas pessoas que
passaram por ela, quantas histórias ela tinha pra contar?
Ainda caiam uns pingos grossos de chuva, tirei o capacete e deixei que a chuva molhasse meu rosto.
De alma lavada, liguei a moto e parti lentamente subindo
a rua. Reconheci algumas árvores, ou pelo menos, o que
achei ter reconhecido, e elas ainda lutavam contra o
tempo. Algumas casas não existiam mais, outras resistiam mesmo que aos pedaços, coladas em outras construções, como das antigas casas das famílias do Zinho, do
Boi, do Beto, do Pelé... Mais adiante, sorri quando vi que
uma mercearia onde costumávamos comprar doces, com
suas portas altas e finas e com seus bêbados contumazes, ainda encontrava-se lá. Engatei a segunda marcha
até o fim da rua e tomei um atalho em direção à estrada
do Lajeado Velho, que eu acreditava ainda conhecer como
a palma da minha mão. Cortei por dentro de uns caminhos que antes conhecia bem para tentar sair do outro
lado quase em Ferraz de Vasconcelos, já no Jardim Alice,
mas estava tudo mudado, haviam construído muitos barracos e a favela tomava conta de toda a paisagem até a
beira das ruas, sem calçadas. Entrei em becos e vielas
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que não davam em lugar nenhum... Foi então que eu me
perdi, e tive que refazer o caminho de volta até a avenida
antiga Estrada Dom João Nery. Há algo profundo na periferia, que permanece vivo e resiste ao tempo.
Senti que os espaços e as distâncias da minha rua não
eram mais as mesmos e as medidas que eu tinha em
minhas lembranças eram outras. “Agora”, pensei, “os
poucos passos que levam do nosso portão até a esquina
não eram os quase quarenta passos que eu achava que
era. Vendo agora, aquela distância não me dava a margem de segurança que eu imaginara ao me esconder do
meu pai.” Por conta disso, dessa inocência, levei muitas
surras do meu pai, quando ele voltava de suas viagens,
e sempre nos pegava jogando bola na rua, ou então nos
encontrava na porta do cinema com a garotada. Aí que o
pau comia! Essas tais correções aconteciam com cinto
de couro ou com o que estivesse à mão, como alguma
vara de amoreira ou mesmo fio do ferro de passar. Havia
um preço por sermos filhos do pastor, e devíamos ser
exemplo para os outros. Deste ponto de vista, eram
tempos difíceis, pois não havia leis como o Estatuto da
Criança e do Adolescente, e ainda por cima vivíamos
tempos de ditadura militar, a esfera política de educar
e disciplinar o povo, a mesma linha dura que de certa
forma legitimava as coças que levávamos em casa. Não
sei se faço alguma comparação exagerada, só posso
dizer que também não sei se seria diferente se a situação fosse outra. Por conta de destas experiências, hoje
compreendo que temos que carregar na vida tais marcas. É difícil culpar alguém, embora nunca devêssemos
esquecer as responsabilidades devidas, seja do Estado
ou da religião. Como uma rua tão simples, na periferia,
podia conter tanta vida?
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Reencontrando meu caminho de volta pra casa, depois
de terminar o serviço na região, em vez de voltar por dentro de Itaquera, converti por Itaquaquecetuba e saí na
rodovia Ayrton Senna. Já havia anoitecido quando entrei
na Marginal Tietê, e o céu se abria às primeiras estrelas,
eu só dentro do meu capacete e com o ronco do motor.
Abri a viseira e deixei o vento entrar. Nesse momento, me
lembrei dos versos de Octávio Paz, que andavam pela
memória e que na solidão daquele dia eram minha única
companhia no trânsito da cidade de São Paulo.Agora eu
me preparava pra deixar de trabalhar como motoboy.
Como se estivessem caindo no nada, os versos vinham:
Sou homem, duro pouco, e é enorme a noite.
Mas olho para cima e as estrelas escrevem.
Sem entender, compreendo:
Também sou escritura! ...
E nesse mesmo instante
Alguém me soletra.
V
A mais triste notícia que recebi na vida foi a da morte da
minha avó.
Havíamos mudado de Guaianazes para uma casa que
pertencia a um primo do meu pai, numa rua que terminava às margens do rio Tietê, no Itaim Paulista. A rua também se chamava Tietê, e na época das chuvas as cheias
do rio chegavam bem perto de nossa casa. Próximo de
onde morávamos também passava outra linha de trem,
essa ia do Brás, do tronco Variante, até Calmon Viana, e
os trens eram bem mais detonados. Fazia oito dias que
havíamos feito nossa mudança e lembro que era um dia
quente de janeiro, início da década de 1980. Eu tinha
cerca de 13 anos quando minha avó passou mal.
Neka
185
O quintal de casa era enorme e os fundos davam para
outras chácaras que também tinham muitas árvores
altas e coqueiros. A casa fora construída pelo primo,
quando morava em São Paulo, e fazia jus à sua profissão:
ele era promotor de justiça e a casa tinha muitos cômodos. A casa foi alugada para nós porque ele tinha se
mudado para Chic-chic, uma cidade do interior da Bahia.
Estávamos ao mesmo tempo um pouco tristes com essa
mudança – como sempre ocorria, quando deixávamos
os amigos para trás -, mas ao mesmo tempo muito felizes, porque tanto os meninos quanto as meninas tinham
seus próprios quartos. Meu pai comprou mais dois beliches, já que havia aumentado a família nos últimos anos,
e minha avó, que às vezes passava uma temporada com
a gente, veio então morar conosco.
Passamos a tarde limpando as coisas neste dia. Tudo
ainda era novo, e nosso olhar acostumado com à paisagem de Guaianazes agora descobria outras fontes de alegria, como as muitas árvores frutíferas que
não conhecíamos. Os orvalhos de frutos amarelos, as
pitangueiras - que na época das floradas ficavam brancas com enxames de abelhas zunindo entre as folhas -,
as jabuticabeiras, que brotavam seus frutos no caule
como se fossem grandes bolas de gudes doces e pretas, e muitas outras, que já nem lembro os nomes. O
nosso plano era construir uma horta nos fundos do quintal. Todos se envolveram na tarefa e minha avó estava
muito disposta, cantando e dando ordens. Meus irmãos
mais velhos, que já trabalhavam, só voltavam à noite,
então eu e os pequenos ajudamos minha vó. Quando o
quintal ficou totalmente limpo, sem nenhum entulho ou
uma folha seca, ela pôs fogo no monte de lixo e entrou
pra tomar banho. Nós então fomos todos brincar e subir
nas árvores.
186
Coletivo canal*MOTOBOY
Mais tarde, depois de jantarmos, começou uma chuva
torrencial. Já que nossa religião não permitia assistir à
TV ou ouvir rádio, estávamos todos deitados sem fazer
nada. De repente, minha avó teve um infarto. Saímos
correndo para buscar ajuda e encontramos um táxi
que, por milagre, havia acabado de despachar um freguês na esquina, e naquela chuva, ele foi imediatamente
até nossa casa para levar-la para o pronto-socorro de
São Miguel Paulista. Vovó Maria ficou na UTI e no dia
seguinte um dos nossos tios veio vê-la, transferindo-a
para um hospital de Campinas. Lá ela apresentou breve
melhora e recomendaram que ela ficasse internada por
mais uns dias. Nesse ínterim, lembro que minha mãe não
saiu de perto dela, e minhas irmãs mais velhas, que iam
e vinham, contavam-nos como ela estava. Foi em um
desses retornos que encontrei minha irmã Keila na rua
e ela, com tristeza, me contou sobre o falecimento da
minha avó, a mãe da minha mãe.
Aquele episódio me marcou muito. Mas só recentemente,
por meio de terapia, descobri nestes fatos de minha adolescência, um processo depressivo que passei fato que
antes eu nunca havia identificado com a morte dela. Sei
que muitos tiveram a oportunidade de viver com os avós,
mas poucos puderam dividir momentos tão agradáveis
como os que tive com ela, como quando íamos visitá-la
em sua casa antiga de Poá. Ela deixou uma saudade profunda, que nunca morre. Lembro os momentos em que
minha mãe me pedia que fosse levar alguma costura até
oficina de minha tia que ficava ao lado da casa de minha
avó e passávamos horas ouvindo rádio, tomando chá e
cuidando do canteiro de rosas.
Antes mesmo de completar meus 15 anos e arrumar um
emprego, eu já me virava para levantar algum dinheiro.
Fazia geladinho em casa e vendia na rua, ou fazia carreto na feira. Cheguei a entregar marmita em fábrica,
Neka
187
e desde os 12 anos eu já ajudava minha mãe a vender
Tupperware. Meu primeiro emprego com carteira foi, no
entanto, de office-boy. Um dia minha mãe falou:
— Amanhã você começa a trabalhar. Vai lá e compre um
jornal, que vou achar um emprego pra você.
Subi até a banca ao lado da padaria na rua da estação
e comprei um Diário Popular. Ela me recortou um anúncio e no outro dia cedo eu liguei da empresa avisando
que tinha arranjado o emprego. Era uma fotocopiadora
e acho que o dono era turco. Na entrevista, depois de
eu ter dito que morava no “Itaim”, ele simpatizou imediatamente comigo, mas em seguida ele torceu o nariz,
quando repeti que morava no Itaim Paulista3. Os officeboys eram a maior parte da periferia, e alguns amigos
meus que já tinham passado por lá me deram muitas
dicas de como eu deveria trabalhar. O único problema
era que a copiadora ficava na Praça da Sé e só tinha
uma linha de ônibus que saía de lá até o Itaim. Eu tinha
a alternativa de caminhar até o Brás e pegar o trem, ou
então ficar horas na fila para me acomodar no aperto de
um busão lotado.
Nesse tempo tinham apenas uns seis office-boys, que
batiam perna o dia todo entregando as fotocópias e
heliografias em dezenas de escritórios pelo centro da
cidade, e também pegávamos muita fila nos cartórios
para autenticar documentos e cópias. Mas houve um
tempo que a copiadora teve mais de vinte boys e era uma
das maiores copiadoras da cidade, mas com a concorrência grande, o movimento caiu e aos poucos os garotos
foram diminuindo, até o dia que a fotocopiadora pediu
falência e fomos dispensados. Eu trabalhei lá uns quatro
ou cinco meses.
3 Confusão recorrente com outro bairro nobre da capital chamado Itaim Bibi.
188
Coletivo canal*MOTOBOY
Neka
189
Ser boy era mais que um trabalho, era estar em contato
com a cidade. Todo moleque queria ser office-boy. Outra
opção, para quem tinha esta idade, era começar a trabalhar nas fábricas como aprendiz, e depois subir como
ajudante de oficial ou meio-oficial, até passar a operário oficial na função de torneiro, chapeiro etc. Mas não
era fácil, e a vida na rua era uma saída para quem não
queria pegar no pesado de uma fábrica escura ou andar
incansavelmente sob sol e chuva. Conhecer a cidade, no
entanto, era uma experiência única. Para dizer a verdade,
no começo é como entrar em um labirinto de ruas, cruzamentos, prédios, esquinas, praças, repartições e muitos bancos. Até aprender tudo, como me guiar e conhecer
as ruas pelos nomes, ficava me perdendo e me achando,
pedindo informação para outros boys e me virando como
dava. Não foram poucas as vezes que me perdi. Saía com
minha pasta de OO7 batendo pelas esquinas até achar
os tais prédios. No começo, o patrão sabia que a gente
se perdia, mas depois que você tinha mais de um mês
de experiência ele botava pilha, cronometrando a cada
minuto, ligando para os clientes e descontando os minutos do nosso almoço. Para mim foi um aprendizado, me
virar sozinho e fazer minhas próprias escolhas, me ligar
nas malandragens e não cair nos contos do vigário que
infestavam a cidade com seus golpes. Nunca caí em
nenhum, afinal, tive a sorte de ter dois irmãos que foram
office-boys antes de mim, e eles sabiam de todas as lorotas e trambiques que os caras jogavam nos otários, turistas e até nos moleques que começavam a trabalhar, e
depois simplesmente desapareciam do mapa. São Paulo
era uma verdadeira fauna.
Chegou a hora do almoço e o Manuel colou a OO7 em
cima da minha, pra ter certeza que sairíamos juntos. Deu
certo, eu, ele e o Tom fomos para a Praça da Sé. “Agora”,
pensei, “teria grana pra jogar fliperama e eu era um
gênio!”. Era uma segunda feira, e nos domingos a praça
tornava-se um dos pontos turísticos mais visitados da
cidade, cheia de gente que lançavam moedas nas fontes e quedas d’água que têm lá. Ou seja, estávamos com
sorte! Tirei um rolo de barbante do bolso, amarrei no ímã
e lá fomos nós para nossa pescaria. Imagine nossa alegria ao lançar o ímã nas piscinas e ele voltar todo colado
de moedas. Os meus amigos davam gritos de felicidade.
Ou seja, saí de casa talhado e pastei até aprender como
andar na cidade, tanto que comecei a ficar malandro. As
horas de almoço eram uma farra, batíamos os pontos e
Os bolsos da calça já estavam lotados e as pernas escorriam molhadas pela dinheirama, quando de repente uma
porção de agentes de seguranças do Metrô pulou em
descíamos correndo pelas escadas do prédio, deixando
os zeladores loucos. Comíamos as marmitas escondidos
durante o expediente para poder sobrar mais tempo na
hora do almoço e irmos geralmente para as novíssimas
casas de fliperamas que começavam a brotar em toda
a cidade. Creio que fliperama e office-boy têm alguma
relação entre si, pois nos anos 1980, pra mim, essa
união foi muito feliz. Mas tinha um problema: office-boy
ganhava mal e muito mal. E eu ainda tinha um problema
a mais: dividir meu salário mínimo com minha família,
quero dizer, eu trabalhava, mas ainda não controlava
minha grana, entende?
Bom, foi daí que tive uma ideia que nos colocou em verdadeiros apuros. Um dia pela manhã cheguei com um enorme
ímã na fotocopiadora. O Manuel, que era o boy mais antigo
e filho de um português que morava na zona cerealista, me
perguntou pra quê eu queria aquilo. Eu disse:
— Na hora do almoço você verá...
190
Coletivo canal*MOTOBOY
cima da gente. Não houve tempo de correr. Levaram-nos
pelos colarinhos a uma sala vazia e ficamos horas trancafiados lá, levando um monte de esporro. Os seguranças ainda nos ameaçaram caso voltássemos lá para pescar moedas. Um agente veio conversar e nos levou pelos
subterrâneos, nos mostrou os cabos de força, explicando a bobagem que fizemos com o ímã, pois poderíamos ter sido eletrocutados nas redes que iluminavam as
fontes da Praça. No fim não deu em nada, mas ficamos
com as moedas. Pior foi levar uma senhora bronca do
patrão, o turco estava branco, pois estava desesperado
sem saber o que fazer com o “sumiço” de três officeboys em pleno centro da cidade.
Com a falência da fotocopiadora, eu e os outros boys
tivemos que procurar outro lugar para continuar a trabalhar. Assim, como eu já estava descolado, dessa vez
comprei um jornal e logo achei outro emprego de officeboy. Agora seria num escritório de uma agência despachante localizado na rua Brigadeiro Tobias, atrás do
Ministério da Fazenda, e era uma empresa pequena, só
havia os dois sócios e um office-boy, fui contratado na
hora para a vaga.
VI
Se aquela fotocopiadora na Praça da Sé foi onde aprendi
a me virar no centro da cidade com minha pasta OO7,
nesta nova firma próxima à Estação da Luz pude conhecer melhor a cidade e dimensionar de fato o tamanho
da metrópole de São Paulo. A partir de agora, em vez do
boca a boca, perguntando para as pessoas os nomes das
ruas, tive que comprar meu primeiro guia de ruas, para
não me perder mais por aí.
Neka
191
Eu chegava cedo e pegava as fichas dos clientes a visitar, colocava-as na mochila e só voltava à tarde. Era uma
empresa que vendia ou transferia informação cadastral. Para chegar ao trabalho, era preciso pegar o trem
lotado no Itaim Paulista até o terminal no Brás. Lá fazia
a baldeação até a Estação da Luz, que ficava próxima
à empresa. Na volta pra casa, era o cão. Enquanto os
trens da linha Variant, como era chamado o tronco Brás/
Calmon Viana, ficavam parados pelos trilhos aguardando
as sinaleiras para serem liberados, com todas aquelas
pessoas espremidas feito sardinha em lata, os Litorinas,
que eram trens expressos que faziam a linha Brás-Mogi,
passavam ao nosso lado aos milhões, e o povo ficava
enraivecido com isso4.
Eu estudava à noite na Escola Estadual Mário Kozél
Filho, na rua de casa, mas sempre chegava atrasado à
aula. Inclusive, ao final do ano, alguns caras que pegavam aquele mesmo trem não foram bem na escola e
repetiram de série. Acabaram abandonando a escola.
Ser office-boy, nesse sentido, era um atraso de vida:
além de ganhar uma mixaria, passávamos horas na lotação. Muitos não se interessavam em conhecer a cidade,
pois era preferível procurar trabalho em uma fábrica,
muito menos complicado. Em um mesmo dia, eu podia ir
do Alto da Lapa até Osasco, da Penha ou Guarulhos até
Santana, de Santana a Santo Amaro, e assim por diante.
Logicamente, naquela época não havia motoboys, pois
esse seria um trampo para eles.
4 Para quem quiser conhecer melhor as agruras que o povo da periferia passava nos transportes ferroviários naquela época, uma sugestão de autor é o
Suburbano Convicto, Alessandro Buzo, que em dezembro de 2000 lançou O
trem - baseado em fatos reais, falando do cotidiano desta mesma linha Brás/
Calmon Viana, e em 2008, publicou pela Coleção Tramas Urbanas seu Favela
toma conta.
192
Coletivo canal*MOTOBOY
Eu passava o dia andando de busão pra cima e pra baixo.
O ônibus passou a ser a esfera em que a cidade acontecia pra mim. Ali onde nada parece acontecer é que realmente tudo podia acontecer. Roubos, brigas, acidentes,
namoros e tudo o que se pode imaginar. Conheci todos os
bairros e algumas linhas de ônibus pareciam que te levavam para o outro lado do mundo, de tão longe que iam. A
cidade não tinha fim. Davam mil voltas, enchiam e esvaziavam. São Paulo é a “terra dos mil povos”, e os officeboys que a gente acabava conhecendo pelos ônibus iam
trocando ideia, se conhecendo e contando as malandragens que faziam pra matar a grana dos patrões. Eu não
tinha como fazer isto, pois todos os trampos eram feitos
de ônibus, e meu chefe dava a conta exata das passagens. Só de vez em quando ele dava um trocado a mais,
talvez por consciência pesada, por que sabia que eu
retornaria muito tarde e ficaria com fome pelo caminho.
Nem sempre, quando voltava à tarde, a marmita estava
em condições de consumo, e muitas vezes voltei pra
casa com fome, porque não havia geladeira no escritório, e para esquentar a marmita eu usava uma espiriteira aquecida a álcool no chão do banheiro. A marmita
estragava com o calor, lá só tinha arquivos e, às vezes,
ela voltava cheia de comida azeda pra casa. Então fui
aprendendo a me virar. Se por um lado não tinha como
levantar grana como os outros boys, que matavam o
dinheiro do táxi pegando ônibus, por outro lado tive que
criar minha própria estratégia, aprendi a ganhar tempo
e morder os trocados do ônibus. Antigamente nos ônibus os passageiros subiam pela porta de trás e desciam
pela frente, então, eu aprendi como pular por trás e não
pagar a passagem. Virei um especialista e terminava o
dia sempre com uns trocados no bolso. Esta não deixa
de ser uma forma consciente para não ficar com fome,
Neka
193
e como minha família era grande, o dinheiro em casa era
coisa rara, daí ou se comia a marmita, em geral arroz,
feijão e ovo, ou se ficava com fome na rua.
Aprender a mentir para o chefe foi o passo seguinte. Eu
dizia coisas incríveis que aconteciam nos ônibus, e que
me impediam de chegar aos destinos – a mente é poderosa, acreditem! Claro que nesse tempo minha grande
paixão continuava a ser o cinema, então, rapidamente
decorei os horários das sessões e acompanhava pelos
jornais todas as estreias. Fora aqueles filmes sem noção,
a que a gente assistia por acaso, só pra matar o tempo,
vi praticamente todos os filmes que estrearam nas telas
da cidade. Ia ao Cine Olido, Marrocos, Ipiranga e Marabá.
Os cinemas Metro, Ritz e São João depois passaram a
somente exibir pornochanchadas. As salas no Copan,
Bristol e Metrópolis passavam filmes inesquecíveis. O
famoso e pioneiro dolby stereo, o Cine Comodoro, que
ficava na avenida São João, o único a ter este sistema de
som estéreo. Todos queriam ir lá porque o som fazia até
as cadeiras tremerem. Tinham também os cinemas de
bairro, que aos poucos eu fui descobrindo. Lembro-me
de tantas tardes que passei no Cine Júpiter, no São
Geraldo e no Cinema da Penha. Todos estes cinemas
perderam suas clientelas e a maioria fechou, apenas um
ou outro ainda resiste lá no centro.
Nessa época, meus irmãos já trabalhavam em bancos e
este era o sonho de qualquer office-boy. Como eles, que
começaram nos anos 1970 como boys, eu também queria chegar lá. Um dia, tomei coragem e fui falar com um
tio que era gerente do Banco Mercantil de São Paulo e
havia arrumado uma oportunidade para o Eliseu, meu
irmão mais velho. Esse tio era muito bacana e havia sido
técnico do time juvenil do São Paulo Futebol Clube. No
banco ele era conhecido como o são-paulino, em casa
194
Coletivo canal*MOTOBOY
a gente o chamava de Nonô. Conversamos e ele escreveu uma recomendação em um cartão ao chefe do RH do
banco. Depois de toda a documentação pronta, cheguei
na agência e mostrei a carteira assinada a um dos sócios,
com carimbo e tudo, e pedi que ele fizesse minhas contas, pois agora eu era contínuo. O ex-patrão ficou fulo da
vida, pois eu ia embora e nem o tinha avisado a tempo de
contratar outro office-boy. Neste momento, percebi que
o próximo moleque provavelmente passaria por tudo que
passei, como aprender sozinho a dar nó em pingo d’água
e não se perder por aí, mesmo trabalhando sem o registro em carteira. como eu fizera.
No dia 18 de janeiro de 1982, passei a exercer a função
de contínuo no banco, como eram chamados lá os officeboys. Recebi um uniforme careta, um terno de tergal
preto com oito botões dourados, gravata preta e camisa
branca, e assim comecei minha nova vida de bancário.
Fui locado na agência central, que ficava na rua Líbero
Badaró, um edifício todo envidraçado. Para comemorar
meu novo trampo, peguei a merreca do acerto de contas
do último emprego e passei na antiga loja Mappin que
ficava na praça Ramos de Azevedo em frente ao Teatro
Municipal. Aquele dia tive o prazer de comprar meu próprio presente, um skate importado, e voltei todo feliz
com ele debaixo do braço dentro do trem. Acho mesmo
que aquele foi o primeiro skate que desceu pelas ruas
do Itaim Paulista, pois por onde passava todos me paravam e pediam pra olhar a tábua de rodinhas. Queriam
saber como andava e não resistiam, precisavam pegar
pra acreditar. O skate era lindo pra c...
Neka
195
VII
Fiquei no banco por quatro anos. Comecei de contínuo, como a maioria dos que trabalhavam lá. O banco
era muito grande e ocupava quatro andares do prédio, o
mezanino e o subsolo, onde eram a expedição e o caixa
forte. No quinto andar ficava a diretoria. Nós tínhamos
que fazer circular os documentos por todo banco. As
seções não tinham divisórias, portanto, no começo bati
um pouco a cabeça para memorizar onde ficavam todos
os departamentos e as caixinhas de entrada e saída de
documentos.
Aos poucos fui fazendo amizade com os escriturários, e
tudo corria na maior tranquilidade. Lá também aprendi
a “rodar pastinha”, uma imagem muito recorrente, antigamente, pois quando sempre aparecia na televisão um
moleque no centro da cidade rodando uma pastinha com
o dedo, com certeza era um contínuo. É possível imaginar
a zorra que fazíamos, principalmente na hora da troca de
turno, ao todo deviam ser uns vinte a trinta rapazes, que
na hora de bater o ponto iam trocar de roupa para entrar
ou sair, todos nos encontrávamos ao mesmo tempo,
fazendo uma farra no vestiário. Não demorou muito para
eu ser recomendado para trabalhar na seção de contabilidade do banco. Muitos departamentos tinham seus
próprios contínuos, e aqueles que se destacavam eram
locados em seções específicas do banco, e logo tinham
oportunidade de se tornar escriturários. Seu Minelli, que
coordenava toda a expedição, era quem nos indicava aos
chefes das seções quando estes solicitavam um novo
contínuo. Os “peixinhos”, aqueles que eram apresentados por algum funcionário do banco eram promovidos
rapidamente. Muito moleque que tinha até pego o jeito
rápido de trabalhar chegavam a passar quase dois anos
rodando pastinha sem promoção, por não serem peixes.
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Coletivo canal*MOTOBOY
Este período foi muito bom pra mim. Eu trabalhava seis
horas no banco, das sete à uma, e chegava cedo em casa
sem precisar passar aquele maldito sufoco nos trens
lotados da tarde. Agora tinha tempo para estudar, andar
de skate e ainda chegava cedo à porta da escola, para
poder brincar nos fliperamas que tinham por perto. No
entanto, logo as coisas começaram a piorar pra todo
mundo, aquela década de 1980 ficaria conhecida como
a “década perdida”, e comprovo isso pelos aperreios que
passamos. Meus irmãos, que sempre se viraram muito
bem, começaram a ser mandados embora nos bancos
onde trabalhavam. Lembro, em certa ocasião, que eles
rodaram de uma só vez. Minha mãe já não tinha tanta
força para ajudar em casa e as despesas com tantas
crianças eram muito altas. Neste período da história
do país faltava carne, leite e outros alimentos básicos,
o Brasil enfrentava uma grave crise e havia uma grande
pressão da sociedade por um regime democrático. Ao
nosso modo, sentimos o reflexo disso em casa também
em outras esferas. De um lado, meu pai era cobrado
pelos fiéis da igreja pelos seus filhos viverem livres e não
seguirem as regras da religião. Por outro, dependendo
dos nossos salários para manter a casa, nosso pai não
podia nos botar cabresto nem nos mandar embora.
Meus irmãos mais velhos e meu pai começaram a brigar
porque não íamos mais à igreja. Isto aconteceu justamente no momento em que começou a rolar uma desavença interna entre os pastores e a igreja começou a
rachar. Foi um rolo, que mesmo se eu quisesse não conseguiria contar, enfim, depois de vinte anos com meu pai
à frente da igreja, ele começou a afundar em depressão, e
por conta de sua fé nos homens, viu-se traído e abandonado, até porque também não tinha mais forças para voltar ao mercado de trabalho. Ele tinha sido gráfico antes de
ser pastor, e nesta função religiosa nossa família passava
Neka
197
necessidade pela fé honesta de meu pai, enquanto isso
os outros caras, que comandavam a igreja construíam
casas, trocavam de carros e tudo mais. Por conta destas
crises, não tínhamos mais condições de manter as despesas e tive que contribuir com uma parte maior do meu
salário. Nesse sentido, meu emprego no banco para mim
era um refúgio, pois ninguém mexia comigo, eu vivendo
numa solidão eterna, isolado do mundo. O Brasil vivia a
agonia do fim da ditadura e começava a democratização,
perdemos a Copa de 1982, 1986 e 1990, que foram sentidos como pesadelos seguidos.
Depois de morar no Itaim Paulista fomos morar em
Ermelino Matarazzo, e aí as coisas começaram a mudar
para mim.
VIII
Por causa de todos aqueles conflitos religiosos, um dia
tivemos que sair de casa. Ainda moramos, depois que
saímos do Itaim Paulista, em uma pequena casa na rua
Rainha do Bosque, junto da favela do Ermelino Matarazzo
e até fiz algumas amizades por lá, jogava muita bola com
a galera da favela e aprendi a gostar de pagode e samba
de raiz. A violência do bairro não diferia muito do quadro
geral da ZL5. Mas não seriam mais como os tempos de
molecagens na Rua Andes, em Guaianazes, onde eu, o
Betinho, o Pitchú, o Bolão, o Isaias e o Zinho, nós tirávamos o dia para brincar nas árvores, catar latas pelo
córrego para vender no ferro velho e soltar papagaio, lá
na rua formávamos um pelotão de elite de traquinagens
e planos mirabolantes.
5 Zona Leste da capital.
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Toda essa molecada cresceu. Cheguei ainda a encontrar
alguns, mas a maioria ficou por lá mesmo, casaram-se e
tiveram filhos na vila, filhos que talvez tivessem as mesmas aventuras e agruras que vivemos, incluindo os infelizes traumas de ver de perto alguns tiroteios e assassinatos, como os que chegamos a presenciar na nossas
quebradas. Quando você passa por uma experiência
dessas, isso te deixa marcas que te acompanharão pra
sempre. Creio que o tipo de formação desses garotos, de
baixa escolaridade e pouco, ou nenhum, acesso a cultura termina sendo mais dramático, por isto mais real no
sentido pleno da experiência de viver. A luta pela sobrevivência na periferia - em relação àqueles que vivem na
segurança do seu bairro e shopping centers -, para esses
garotos a vida real não se passa na televisão.
Quando fomos morar na rua Quilombo do Ambrósio,
perto da Ponte Rasa, a última casa que morei com meus
pais, eu já não tinha mais amigos, então me isolei por
completo, e todo meu tempo era para estudar e trabalhar. Eu estava com 16 para 17 e era tão magro que
passava por um buraco de uma agulha. Não havia mais
clima de morar dentro da casa de meus pais. A igreja que
meu pai agora frequentava era ainda mais radical que as
anteriores, e eu e meus irmãos mais velhos não admitíamos sermos enquadrados por regras de uma seita que
não tínhamos qualquer ligação. Ficávamos ainda porque
éramos o apoio financeiro da família.
Kedma, minha irmã mais velha, prestara o vestibular
pela primeira vez em 1978 e já trabalhava com arquitetura, mas ainda não tinha conseguido juntar dinheiro.
Elias foi quem mais sofreu naquela época, pois estava
desolado por não conseguir recuperar o emprego como
bancário. Eu e o Eliseu, que sempre fora meu irmão mais
esperto, seríamos os únicos que bancaríamos a história
a seguir. A Keila acabara de se casar e encaminhava a
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vida dela, os do meio, Carlinhos, Lôra e Davi ainda não
tinham idade para trabalhar, e os pequenos, John, Kátia
e Pepita, já na escola contribuíam para aumentar ainda
mais as despesas. Apesar do desespero financeiro pela
posição radical do velho não houve consenso, discussão que me recusei a tomar parte, e encontraram uma
saída negociada. Mas não poderíamos ir todos, fomos
apenas os homens. Vendi uma bicicleta Caloi 10 que eu
tinha, minha única companheira, e meu irmão vendeu
um fusquinha que ele havia comprado há pouco tempo.
Com essa grana, alugamos um apartamento. Um ano
e meio depois, Kedma, cansada de segurar as pontas
por lá, veio também morar com a gente na rua Martim
Francisco, na Santa Cecília.
IX
“Queríamos ser épicos heroicos românticos descabelados
suicidas,
porque era duro lá fora fingir que éramos pessoas como as
outras.”
Caio Fernando Abreu.
Depois que fomos morar no centro da cidade, tudo
começou a mudar. Aquela vida sofrida com a apatia de
não poder fazer nada de interessante, o mundo que eu
conhecia ficara definitivamente para trás. Agora minha
vida se transformava e passei a sair com os amigos para
bater perna pela cidade e beber, literalmente, mudou da
água para a vodca. A frase acima que citei resume bem o
que foram os anos 1980 a partir dali, quando meus amigos punks passaram a frequentar meu apartamento.
Trouxemos para a Santa Cecília apenas algumas poucas peças de roupas, um skate quebrado e um desejo
profundo de mudar tudo. Ríamos muito dos tempos que
íamos à igreja. Agora o Elias tinha começado a fazer
Neka
201
teatro e me convidou para fazer a sonoplastia de uma
peça que eles estavam apresentando. Foi minha primeira experiência com arte e carreguei muito cabo, mala
e muito figurino. Como agora era o único responsável pela
minha própria grana, fui estudar em um colégio particular na Saúde, dividindo meu tempo ouvindo discos e
indo ao cinema, conhecendo novas pessoas, e tudo isto
bem perto de casa. No banco também meus amigos curtiam muito rock e quando comecei a sair com eles para
as baladas tínhamos entre 18 a 21 anos, e agora todos já
estávamos promovidos a escriturários. Trocávamos muitas ideias sobre música, futebol e política. Não era proibido fumar em lugares fechados, naquela época, então,
o banheiro do banco ficava todo impregnado de tanta
fumaça. Ali eu passara a ficar sabendo de tudo o que
rolava no país. Havia muita inquietação política naquele
período pré-democrático, e lembro como todos os dias
chegavam às nossas mãos os folhetos do sindicato dos
bancários, informando os movimentos sindicais e políticos do país.
Para escapar à pesada rotina da seção e ficarmos um
pouco longe dos números e máquinas de calcular, tínhamos nossas próprias estratégias de fuga. Uma forma de
fazer isto era escolher alguma “tarefa” fora do banco,
sair por algum motivo não justificado e dar um pulo até a
Leiteria Alfa na rua Dr. Miguel Couto. Lá encontrávamos
sempre algum amigo e comíamos um X-tudo, aproveitando para tomar uns conhaques, hábito este que todos
os boys e contínuos tinham no horário de expediente.
Mas era um problema, porque colavam lá alguns caras
que também eram contínuos, em sua maioria punks,
rockers, office-boys e sempre dava alguma confusão.
Havia também uns caras que eram metaleiros e curtiam
aquelas bandas de metal comercial que a gente odiava,
e tínhamos vontade de socar eles. Enfim, chegamos às
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Coletivo canal*MOTOBOY
vezes até a voltar ao banco, completamente bêbados.
Foi também tempo de reestruturação dos bancos, com
reflexo no quadro de chefias, os antigos de linha dura
começaram a se aposentar e os novos tentando subir, a
maioria bajuladoras de primeira ordem, que impunham
regras extravagantes, e mandavam pra degola os escriturários que saíam da linha.
O ambiente bancário agora era um verdadeiro terror. Com
o país na crise em que se encontrava, nosso medo era ser
mandado embora, pois sabíamos que dificilmente conseguiríamos outro emprego como aquele. Era um campo
minado. Nunca se tinha certeza se um colega próximo
poderia dedurar alguém. A sorte era que na nossa seção o
cara que havia assumido a chefia era o Luizão, que estava
lá no banco desde os anos 1979 e era bastante tranquilo.
Além do mais, ele também curtia um bom rock-and-roll.
Sofríamos pressão de todos os lados e éramos o tempo
todo vigiados, pois a cada dia ficava evidente que o sindicato estava se fortalecendo e eles temiam que entrássemos em greve. Assim, aos poucos fui me identificando
com as reivindicações, com o movimento anarquista
dos punks, e encontrei, enfim, um lugar para depositar minha revolta. Graças aos protestos que surgiam de
todos os lados exigindo mudanças no país, houve uma
grande pressão política para a volta de plenos direitos
políticos. Por nosso lado, o sindicato dos bancários vivia
uma intervenção pelo governo militar e os antigos sindicalistas, que haviam sido caçados, iam pessoalmente à
porta do banco fazer o boca a boca, convocando diversas
manifestações de protestos e exigindo a volta da diretoria deposta e o fim da intervenção no sindicato. Os pelegos e paus mandados do banco ficavam de butuca, na
eterna expectativa de flagrar algum bancário envolvido
no movimento e dedurá-los. Essa tensão, que refletia o
processo de democratização no país, e lutava tanto por
Neka
203
direitos políticos como pelos eternos reajustes salariais
que nunca vinham, culminou em uma das maiores greves
que houve na história do Brasil.
Ao cabo do período de protestos no qual a Justiça deu
sentença de restituição à antiga diretoria eleita, e expulsou os interventores, os bancários começaram a se
mobilizar, tanto pela recuperação das perdas salariais
daqueles anos de crise e inflação galopante como por
movimentos políticos mais amplos como as Diretas Já,
que trouxe o país para a democracia. No ABC, os sindicalistas - que no início da década já haviam feito grandes
paralisações -, agora se articulavam por mudanças na
política, e muito se falava sobre a necessidade de uma
nova Constituição para o país. Recebíamos diariamente
o Folha Bancária, folheto do sindicato que passávamos
de mão em mão. Quando estourou a greve, nossa agência central foi uma das primeiras a parar. O país vivia um
pandemônio, que pode ser relatado aqui por uma imagem triste e, infelizmente, inesquecível.
Naquela época, o Estado de São Paulo era governado por
Franco Montoro, que, diga-se de passagem, estava entre a
cruz e a espada, pois nas ruas o povo pedia as diretas e ele,
que já tinha sido eleito pelo voto, tinha medo de um retrocesso político, possibilitando que militares interviessem
em seu governo. Nesse caso, não poderia se imaginar o que
aconteceria. Nunca podemos esquecer também que se o
governador fora eleito, sua polícia fora forjada nas casernas do regime militar, brutalidade conhecida até hoje pela
população mais pobre, uma polícia estúpida e autoritária.
Nem tudo que o governador dizia era cumprido. A polícia
militar descia o cacete em qualquer um que protestasse.
Este clima pesado trazia um grande medo à população,
e não foram poucas as vezes que saímos do banco sem
saber se ia sobrar para a gente.
204
Coletivo canal*MOTOBOY
Assim, em uma dessas tardes de muito calor, enquanto
nos esforçávamos para manter a concentração nos
números e fechar os balancetes diários da contabilidade,
alguém que tinha a vista cansada e perdida no Vale chamou a atenção de todos:
— Gente, olhem pr´aquilo!...
A agência central, como eu disse, ocupava cinco andares em um daqueles grandes edifícios que tem vista para
o Vale do Anhangabaú. Da nossa janela do quarto andar
era possível ver desde o viaduto do Chá, cruzando o Vale,
até o outro lado, o viaduto Santa Ifigênia. De repente,
um a um, todos os bancários começaram a sair de suas
mesas com seus jalecos azuis desbotados e se dirigiram para as janelas: o que víamos era muito grave e
nos chocávamos pela violência gratuita. A tarde estava
abafada, um terrível mormaço. Enquanto aqui e acolá
caía um pé d’água, desses rápidos, alguns caminhões
da tropa de choque estavam estacionados próximos ao
Teatro Municipal, sobre o viaduto do Chá. Uma segunda
tropa estava na Praça do Patriarca e uma terceira, que
só vimos depois, estava estacionada sob o pontilhão
do viaduto. Tropas armadas tomavam as duas pontas
da passarela do Chá, sobre o Vale. Naquela época, os
carros ainda trafegavam nas largas avenidas do Vale
do Anhangabaú, hoje ocupado por uma imensa praça e
um túnel subterrâneo. Muitos pedestres passavam por
ali e os pelotões de choque, que estavam posicionados
em pontos estratégicos, formavam com escudos e cassetetes barreiras ao lado dos caminhões. Foi quando
começaram a cair os pingões de chuva em frente à atual
Prefeitura de São Paulo, na Praça do Patriarca. Com o
começo da chuva, algumas pessoas começaram a correr para se abrigar da chuva, e descuido do acaso criou
um caos. As primeiras pessoas que correram da chuva
Neka
205
espantaram as outras. De repente, desencadeou-se
um corre-corre em todas as direções. Na Praça Ramos
estava estacionada uma tropa de choque que reagiu ao
ver as pessoas correndo em sua direção. O pelotão foi
pra cima, descendo o porrete na galera. O corre-corre
geral se espalhou. Vendo apanharem lá na frente, as
pessoas começaram a voltar em direção ao Patriarca,
onde outro pelotão os aguardava. Algumas pessoas desceram as escadas e outros seguiram às ruas laterais do
viaduto. Ali o pau comeu também. Como embaixo do viaduto, era gente pra todo lado, apanhando sem saber por
quê. Criou-se um frenesi geral na cidade e a sensação de
medo se espalhou. Todos estavam em estado de choque!
Logo depois, ao final do expediente, fomos para a Praça
da Sé para pegar o metrô. Foi preciso tampar o nariz
por causa do cheiro forte do gás lacrimogêneo. A cidade
estava devastada e aquartelada, lojas e bancos com as
vidraças e portas destruídas, e muita gente presa e hospitalizada. Passado uns meses, o povo saia às ruas pelo
Movimento Diretas Já, os bancários ocuparam as sacadas do prédio do Banco Mercantil de São Paulo e gritavam juntamente com um milhão de pessoas no Vale do
Anhangabaú pela volta da democracia no Brasil e o fim
do regime militar. Um ano depois, os bancários pararam
o sistema financeiro do país, com a maior greve de todos
os tempos, organizada pelo sindicato da categoria.
Essa greve, arquitetada na rua, recuperou a dignidade
dos bancários paulistas. Lembro que na época os bancários não tinham o cartaz que têm hoje, mas depois
daquela greve todos passaram a nos olhar com outros
olhos. Saíamos de agência em agência, fazendo piquetes nas portas. As “comissões de esclarecimento” ficavam acampadas em frente às portas dos bancos, porque era difícil convencer a todos sobre a importância
206
Coletivo canal*MOTOBOY
da greve unificada, e comissões entravam nos bancos
para convencer os gerentes a encerrarem o expediente.
Cada agência fechada era uma grande vitória para o
movimento, e foi assim dois dias inteiros, 48 horas em
que o centro financeiro do país parou. Um fato importante que presenciei, e merece ser relembrado, aconteceu durante um piquete na porta da Compensação
do Banco do Brasil, onde eram compensados todos os
cheques da praça da capital. O piquete já durava horas
e não conseguíamos convencer os caras a parar, e havia
um grande empurra-empurra na porta. De um lado,
os seguranças do banco junto com a polícia militar, e
de outro, centenas de bancários com bandeiras, faixas e apitos. Já eram quase quatro horas da tarde e a
Compensação, que ficava na Líbero Badaró, continuava aberta. Os fatos recentes do viaduto do Chá ainda
estavam frescos na memória. Ninguém queria voltar
machucado pra casa, mas também não tirávamos o pé da
porta. A tensão era muito grande e formávamos um bloco
com homens mais fortes prendendo-se pelos braços, a
linha de frente era ocupada pelos diretores do sindicato.
Quando começaram a chegar os malotes, que naquela
época eram trazidos pelo pessoal de carro-forte, percebemos que se não fossem parados ali, os cheques
iriam para a compensação, assim como no dia seguinte,
e seria ainda mais difícil paralisar o sistema. Tinha muita
gente e gritávamos palavras de ordem enquanto a polícia tentava formar um cordão de isolamento, e nosso
objetivo era impedir que os maloteiros entrassem. A
calçada foi ficando pequena para tanta gente, o carroforte abriu as portas e o transportadores desceram com
os malotes nas costas. Estávamos peito a peito, com os
cacetetes na boca do estômago, os gritos da multidão
atrás e empurra-empurra. Ao meu lado, uma senhora de
certa idade, também bancária, começou a cantar o Hino
Neka
207
Nacional baixinho, outros a acompanhando. De repente,
todo a multidão embarcou no hino, e em vez das palavras
de ordem, o hino brasileiro foi entoado com lágrimas nos
olhos. Os policiais congelaram em silêncio profundo, e
os maloteiros, que já estavam com o pé na calçada, não
tiveram mais coragem de dar um passo e recuaram para
os carros-fortes. Então cantando e comemorando, ocupamos a porta de entrada do Banco do Brasil e selamos
definitivamente a greve.
Quando lembro tudo isso e vejo esses movimentos narrados nos livros de meus alunos, me pergunto quem era
aquele garoto de cabelo espetado, magrelo e coturno no
pé. O que ele pensava? O que eu sabia realmente? O que
eu poderia ou viria a ser? Como tudo isto veio acontecendo? Como vim parar aqui hoje. Que importância tem
esse processo de democratização que vivi para a história dos motoboys?
Depois da greve, meu irmão Eliseu, que hoje trabalha no
Instituto Paulo Freire, foi despedido do Banco Mercantil
de Descontos, por fazer parte de uma comissão que paralisou sua agência. Houve muitas demissões também no
banco em que eu trabalhava. Eliseu foi embora do país,
como muitos jovens nos anos 1980. Elias casou-se com
uma mulher do prédio onde morávamos e se mudaram,
então, com 18 anos de idade, passei a morar sozinho no
apartamento da Santa Cecília. Foi minha completa independência. Sempre me senti muito punk. Meu lema era
tomar vodca e saber até onde ia minha liberdade, mas
para conhecer seus limites, você precisa chegar neles;
Então, passei a ficar conhecido no bairro durante algum
tempo apenas pelo apelido de punk. Dava muitas voltas
pelo centro velho, não faltava a um show de bandas punk
e batia ponto nas galerias e lojas de discos. Enfim, virei
frequentador das casas mais underground da cidade,
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Neka
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Coletivo canal*MOTOBOY
como Carbono 14, Madame Satã - o templo da subcultura-, e Ácido Plástico. Com os grandes movimentos de
bandas punk e hardcore, com os carecas apavorando
a periferia e as noites tenebrosas pelo centro velho da
capital. Nunca tive medo de apanhar das gangues, era
liso e me dava bem com todo mundo, conhecendo a
noturna e demoníaca cena underground paulistana. Por
exemplo, corriam para a Ácido Plástico todas as vertentes do movimento punk, e se você “marcasse toca”, voltava pra casa sem os dentes. A casa noturna, para o leitor ter uma ideia, era uma antiga igreja abandonada em
uma rua escura atrás da Casa de Detenção de São Paulo,
o antigo presídio do Carandiru. Enfeitada com uma cruz
de néon azul, a igreja ficava no fim da rua, ao lado dos
altos muros da prisão. Lotava de gangues vindas de
todas as regiões da cidade. A coisa era feia! Todo mundo
trajando preto, moicanos e cintos de metal, a própria
visão do inferno. Porém, ao mesmo tempo, era a única
forma de sentir viva a batida rápida do punk rock, com o
sangue correndo nas veias e os olhos secos de fumaça.
Creio que o movimento resistiu a alguns retrocessos e,
com sua revolta vibrante estampada nos gestos, no vestuário e na música, buscava uma alternativa à mesmice
medíocre a que se reduzira a vida dos jovens na cidade.
Se por um lado pregávamos um movimento de cultura
urbana apolítico e apartidário, ao mesmo tempo havia
enraizamento na luta da democratização política, pois
não perdíamos um comício, e como em toda luta os lados
estão visíveis, não poderíamos ficar indiferentes, então
a integração dava-se junto à esquerda radical6.
6 Em Revolução dos boys - a face oculta da cidade (2009), de Gilberto Lobato
Vasconcelos, o leitor poderá encontrar maiores referências sobre esta relação
dos office-boys e contínuos com a política e os movimentos de revoltas juvenis dos anos 1970 e 1980 em São Paulo.
Neka
211
Seja na música, na atitude e no comportamento, se
olharmos com generosidade a juventude daquele período, podemos reconhecer um lugar de conflito para ela,
que se situavaem uma sociedade que passava por uma
transformação profunda.
X
Eu ainda era estudante, em meados dos anos 1980,
quando passei a colecionar revistas de moto e a me interessar por elas. Meu sonho era ter uma Yamaha DT 180,
que era minha cara. O emprego no banco até me dava
algumas oportunidades, e com um pouco de sorte, podia
morar sozinho e frequentar um curso técnico de informática, mesmo assim era quase impossível naquele
momento comprar uma moto. Portanto, era apenas
um sonho distante. Não era comum naquela época um
garoto vindo do fundão da periferia ter uma relação tão
próxima com motos, e nem me passava pela cabeça que
um dia eu aliaria motos ao trabalho. Na verdade, era
algo inimaginável, até porque, como eu estava cursando
o técnico em processamento de dados, buscava outro
tipo de horizonte para mim.
Meu primeiro contato real com uma moto foi no próprio
banco, quando um colega de trabalho, o Osvaldo Alexandre
Jr., comprou uma motocicleta, e curtíamos a liberdade de
acelerar pelas avenidas da cidade nos finais de semana.
Naquela época, a ZN era a região onde se concentrava a
maior quantidade de motos na noite de São Paulo. Meu
sonho era voltar lá na periferia, onde eu deixara os velhos
amigos, chegando com uma moto, eu ficava horas imaginando tudo isso. Pra mim, a grana era curtíssima, pagar
as despesas e o rango, e quando sobrava algum dinheiro,
eu podia comprar alguns discos no final do mês.
212
Coletivo canal*MOTOBOY
Ao lado do banco onde trabalhávamos havia um estacionamento de motos que, na década de 1990, viria a
ficar conhecido pelos motoqueiros como a “Ilha”, uma
clareira entre os altos prédios da rua Líbero Badaró no
centro de São Paulo. Era um canto de praça com um
pequeno mirante para o Anhangabaú, onde o pessoal
se encontrava para bater papo enquanto esperávamos
o horário de entrar nos bancos. Estacionavam lá suas
motos, o mesmo local de que posteriormente os motoboys tomariam conta, e foi conversando sobre motos
ali, com aqueles caras, foi que percebi que liberdade e
motocicleta tinham algum tipo de relação muito íntima,
e então compreendi porque eu era apaixonado por elas.
Além de motos, também rolava um papo sobre as garotas e onde levá-las. Era esse o tal sonho de liberdade.
O Sérgio, um destes caras, um dia foi mandado embora
e encontrou trabalho em uma empresa de contabilidade próxima ao nosso banco, na rua São Bento. Nessa
época, ele tinha uma Honda XL 250 e foi convidado por
seu patrão para trabalhar de motoqueiro, uma vez que os
office-boys da contabilidade não estavam dando conta
do serviço. Daqueles caras, me lembro do Pedro, que
me ensinou a fazer o serviço de contínuo, e sendo o
primeiro dos demitidos, depois virou pedreiro. O Larry
Jerry Ballock, que depois saiu e terminou a faculdade,
não voltou a trabalhar em bancos e virou consultor. O
Paulão conseguiu ir para outro banco, mas ficou por
pouco tempo, hoje não imagino onde esteja. Creio que
apenas que Rodolfo, um japonês bacana que torcia pelo
Santos junto comigo, tenha se mantido na carreira de
bancário. Encontrei-o muitas vezes quando ia fazer
algum pagamento na Nossa Caixa. Poucos ficaram. Em
especial o Flávio Mello, que fez jornalismo e depois foi
trabalhar no Jornal da Tarde. De nossa seção só sobrou
o Luizão, que ficou muito tempo ainda como chefe do
Neka
213
setor e hoje deve ter se aposentado. A maioria tinha
entrado como contínuo e só conhecia a rotina daquele
banco, não tinha nenhuma outra especialização.
O legal mesmo era que, naquela época, apesar de todas
aquelas pressões, ainda mantínhamos nossas “fugas” e
farras na Leiteria Alfa e começamos a explorar também
outros lugares. Nosso passeio começava na Woodstock
Discos da rua Dr. Falcão, onde íamos saber das novidades e ouvir música, e terminava invariavelmente na lanchonete do Bob’s da rua Direita. Mas entre um lugar e
outro, passávamos pelo Museu do Disco, na Barão, pelo
Mappin e pela galeria Presidente. A Galeria do Rock, na
24 de Maio, ainda nem existia. Às vezes, voltávamos com
quatro, cinco ou até dez discos de vinil de uma vez. Íamos
para o banco quase no fim do expediente na maior cara
de pau! Um dia, conversando com Sérgio, ele comentou
que havia começado a dar uma cobertura aos officeboys, que enrolavam muito na rua, e que o chefe dele
gostou da rapidez com que o trampo era feito de moto, e
que tinha sugerido que ele ficasse só como motoqueiro.
Nesta época, as motocicletas eram apenas utilizadas
para lazer, e combinar a máquina ao serviço era uma
ideia nova. Eu não podia imaginar as avenidas cheias de
motoboys de hoje. Como ele ganharia a mesmo salário
da época do banco, topou a parada na hora.
A contradição era que eu queria também experimentar isso, pois odiava aquela rotina do banco, então por
um lado gostei daquele lance do Serginho, uma alternativa pra continuar a ganhar bem. Porém, lembro que
torci o nariz, pois na minha imaginação a moto não era
para trabalhos, mas para curtir a vida! Depois que saí do
banco, nunca mais vi este cara e a história desse motoqueiro caiu no esquecimento. Eu já estava a ponto de
explodir com o banco. Por conta de irmos para o trabalho com cabelo moicano, coturnos nos pés e as malditas
214
Coletivo canal*MOTOBOY
gravatinhas que o banco impunham, éramos os sujos e
revoltados. Não aguentando mais aquela burocracia,
certo dia tive uma crise e desci correndo pra rua, à deriva,
andando pelo centro da cidade até a noite, quando voltei pra casa. Faltei no dia seguinte de trabalho e voltei
na sexta. Fui direto para a mesa do diretor, e pra minha
surpresa, o cara em vez de me pilhar de broncas, simplesmente ficou me aconselhando a enfrentar as dificuldades e os conflitos da vida, lembrando-me de que eu
era jovem e tinha futuro. Eu pensava, largado na cadeira,
segurando a ponta da gravatinha: “Que futuro? O que ele
sabia disso? Esse cara não passa de um cretino, e só porque é um diretorzinho ele pensa que pode ficar me dando
moral!” E ele continuava naquele papo furado, dizendo
que se naquele momento eu tinha uma posição estratégica no banco, pois era quem lidava na contabilidade
com o fechamento do balanço, isto me permitia ter uma
visão panorâmica e galgar os degraus para futuras subchefias... Que belo esforço! Ele realmente não entendera
nada da minha agressividade, já começava a ferir minha
inteligência com aquelas baboseiras e coisas do tipo.
Eu ficava pensando: “Existe um ser humano embaixo
desse terninho alinhado? Será que ele não percebe que
existe um mundo além dessas portas, ou ele é mais um
daqueles burocratas trituradores de pessoas?” Com
franqueza, expliquei as razões do meu desligamento,
de como aquela odiosa estrutura massacrante diária já
não interessava mais, e pedi que colocassem meu nome
no topo da lista do próximo corte de funcionários. Saí
da sala de cabeça erguida e com muito orgulho. Admirei
minha coragem de enfrentar o destino e olhar pra frente,
não tendo mais medo do futuro. Os colegas aguardavam
de fora e apertaram minha mão. Pouco depois veio o
facão, e no dia 04 de fevereiro de 1986, após quatro anos
na função, deixei pra sempre aquela seção e o elefante
branco que era o banco.
Neka
215
XI
A máquina eletrônica que eu operava no banco para
fechar os balancetes, uma Sharp modelo BA-1000, contabilizadora que mais parecia uma espécie de computador movido a cartões magnéticos, hoje provavelmente ocupa uma prateleira em algum museu. Descobri
que aquela máquina era usada em contabilidade em
algumas grandes empresas e logo achei um trabalho
numa empresa distribuidora de produtos químicos, em
Pinheiros, atrás do Hospital das Clínicas, onde passei
uns poucos meses. Pouco tempo depois comecei também a fazer estágios pela manhã em algumas empresas de informática. Logo surgiu uma oportunidade de
me fixar em outra empresa, da área de computação. Saí
da distribuidora e me tornei trainee, e foi a última vez
que trabalhei com contabilidade.
Entrei nessa área, que então começava a despontar e
ainda tinha poucos profissionais. Ganhava bem menos
que os programadores, mas sentia que estava dando os
passos certos, e que a oportunidade de trabalhar numa
empresa que dava suporte a fábricas de computadores
Prológica era um bom começo. Ali eu poderia me tornar
um técnico em informática. Logo fui convidado por um
cliente para trabalhar diretamente para ele, pois ele
comprara um daqueles computadores que eu já dominava, e precisava de um programador para operar. Não
posso dizer que estava muito satisfeito: sempre fui
bom e gostava de lógica computacional - até pensei em
fazer faculdade -, mas, diferente de outros programadores, eu me interessava pelos resultados do meu trabalho. Incomodava-me ver que minha criatividade era
usada para reestruturação e racionalização dos custos da empresa que terminavam invariavelmente em
corte de pessoal. Nunca curti o fato de, ao introduzir um
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Coletivo canal*MOTOBOY
novo processo na gestão da empresa, esta minha ação
levasse às decisões de dispensa de funcionários. Eu
nem sempre sabia das coisas, mas sentia que as pessoas me temiam, por conta desse poder que a máquina
tinha sobre a mente e o trabalho delas. Minha função era
sistematizar, economizar, racionalizar e maximizar os
lucros. Muitas vezes tive vontade de vomitar...
Mas o amor veio me salvar.
Em 1987, eu já era técnico em informática formado e
trabalhando numa grande rede de lojas. Então, resolvi
dar um tempo sem estudar, não tinha mais certeza do
que fazer, ou o que queria da vida. Meio frustrado, muita
coisa havia acontecido naqueles últimos anos e eu já não
via meu futuro com os mesmos olhos. Apesar de a área
de informática naquela época ser uma das mais promissoras, eu continuava descontente. Diziam que eu tivera
a sorte de ter escolhido a profissão na hora certa e que
eu deveria seguir em frente, fazer faculdade para completar minha formação. Que eu poderia chegar a ser um
bem-remunerado analista de sistema.. De certa forma,
as pessoas tinham razão, mas eu era punk, anarquista,
ateu, humanista e sei lá mais o quê, e odiava o que percebia como falsa aparência de normalidade e hipocrisia que as pessoas tinham em relação a sua vida. Não
compreendo ao certo, mas se me sinto desconfortável
com certa situação eu logo largo. Então eu acabara de
ganhar o mundo, mas não queria me prender a projeções
de futuro. Precisava de tempo para viver, acho...
Vou fazer aqui um parêntese e tentar compreender o porquê de algumas coisas. Enfim, quais eram as expectativas para um garoto da periferia no início dos anos 1980?
Quais eram as principais fontes de informação? Creio
que os jornais, a TV e no rádio não eram. Claro que essas
fontes que refletiam a realidade, mas faltava muita
Neka
217
informação e era muita coisa distorcida. Ao contrário
das outras famílias de pastores, eu e meus irmãos sempre buscamos no estudo uma forma de sair da ignorância e da pobreza, buscávamos outras referências além
da Bíblia. Chegavam lá emcasa alguns livros extraordinários que meus irmãos traziam. Lemos também muita
bobagem, mas havia muitos livros legais. Li, por exemplo, A náusea, de Jean-Paul Sartre, aos 14 anos e sinto
orgulho disso até hoje. Curtíamos muito literatura brasileira, como Jorge Amado e seus Capitães de Areia, Érico
Veríssimo com Olhai os lírios do campo, ou alguma coisa
mais histórica como A Coluna Prestes – rebeldes errantes, de José Augusto Drummond. Quantas vezes quebramos o pau por conta dos mais diversos assuntos, fosse
sobre história do Brasil, política ou música, já que minha
mãe lecionava música e meus irmãos mais velhos sabiam
tocar vários instrumentos. Gostávamos até de pintura. A
Kedma gostava de pintar e todo mês ela comprava fascículos da coleção Mestres da Pintura, da Editora Abril,
que a gente colecionava com prazer. Para ficar por dentro
de assuntos mais atuais sobre ciência, lembro que fiz a
assinatura mensal da National Geographic.
Curtíamos música popular e samba. Elias, que começava
a se interessar por teatro e foi ator por uns tempos, era
conhecedor de samba e MPB, e nos anos 1970 ele seus
amigos black power formaram um conjunto e faziam bailes na Chácara do Padre, em Guaianazes. Mesmo depois
que virei adolescente e passei a curtir rock, não via problema em conhecer outros estilos de música. Muitas
vezes, eu e o Nêgo, junto com o Vagner, outro amigo
nosso, caíamos para dentro da favela lá no Ermelino
Matarazzo para ouvir os discos raros que os caras tinham
por lá. O pai do Vagner fazia parte de uma roda de samba
e passávamos longas tardes de sábado jogando sinuca
218
Coletivo canal*MOTOBOY
Neka
219
enquanto ouvíamos o chorinho ao vivo pelas quebradas
da avenida Imperador. Samba de raiz, blues, os sons dançantes da black music, sempre com James Brown e Tim
Maia. Também ouvíamos muito Fundo de Quintal, Bezerra
da Silva, Leci Brandão, Beth Carvalho, Almir Guineto e
Zeca Pagodinho, e conhecíamos o verdadeiro samba de
roda antes de virar pagode e tema de novela. Estavam no
começo também os bailes funk em galpões alugados em
São Miguel e fomos a muitos furacões. Enfim, nas domingueiras, eu já tinha uma preferência pelo samba-rock,
porque podíamos dançar sem parar. Foi nessa época que
encontrei, numa edição da National Geographic, uma
matéria falando do universo dos computadores e me
senti motivado a estudar computação.
Na loucura da cidade, em um dia de dezembro, com
bela chuva de final da tarde, visitando uma amiga que
estudava comigo, a Tânia, fui apresentado à sua melhor
amiga, uma pequena menina muito linda que curtia
visual dark. Para minha surpresa, aconteceu o que um
dia teria de acontecer: eu me apaixonei à primeira vista.
Seu nome era Tutte, que em italiano quer dizer tudo. Eu
me apresentei:
— Olá, eu sou o Neka!
Como já se sabe, em Portugal, neca tem o sentido de
negação, ou seja, nada. Logo, alguma coisa aconteceu, Tutte e Neka. Tudo e Nada. Foi inexplicável, mas os
opostos se atraem. Começamos a namorar naquele dia,
e um ano e pouco depois estávamos casados.
Feliz da vida com os preparativos do casamento, comprei
todos os móveis e os eletrodomésticos nós tiramos na loja
onde eu trabalhava. Numa ensolarada manhã de quintafeira, 31 de março de 1988, eu e ela fomos até o Cartório
do Jabaquara para casar no papel. Além de nossos
220
Coletivo canal*MOTOBOY
familiares, estiveram presentes alguns amigos. Não fizemos festa. Não tínhamos dinheiro e íamos começar do
zero. De cartório fomos para nosso apartamento de um
quarto, que havíamos alugado no bairro de Mirandópolis,
colocamos roupas mais leves e fomos os dois passear de
mãos dadas pelo Parque do Ibirapuera, que ficava próximo
perto de nosso novo lar. O dia estava lindo e as horas passaram vagarosamente com o amor no ar...
XII
Enquanto isto, em São Paulo começou a surgir o precursor do“motoboy”: o office-boy com moto.
A mais antiga lembrança que tenho desta nova profissão, além do meu colega de banco, que passou a fazer
serviço de boy com sua moto, foi relatada a mim por
minha cunhada, que em 1986 era secretária executiva
e disse ter usado os serviços de um office-boy externo.
Tinham entregado lá um cartãozinho. Ela me contou que
o serviço era prestado por um motoqueiro de bigode,
cavanhaque e jaqueta de couro com botas altas, com
uma moto turbinada e um bauzinho branco preso na
rabeta. Havia um adesivo no baú escrito “call boy” (algo
como “chame o garoto” em inglês), com número do telefone dos caras. Essas pequenas empresas com dois ou
três motoqueiros do início, não saberíamos dizer a procedência nem a quantidade, mas apareceriam e desapareceram aos montes na capital em curtos espaços
de tempo.
As primeiras empresas de entregas rápidas começaram
a surgir em meados do anos 1980, contratando motoqueiros para prestar serviços a escritórios e outros tipos
de clientes, disponibilizando “office-boys com motos”,
mesmo ainda não existindo qualquer estatuto legal para
Neka
221
operarem como terceirizadores de serviços. Não havia
ainda uma lei que regesse os contratos entre as empresas e motoqueiros. Tal relação surgiu após a promulgação da nova Constituição do país, em 1988. O trabalho que
era, a princípio, informal, passaria a ser caracterizado
como serviço terceirizado. As empresas interessadas
em reduzir custos começaram a contratar estas empresas de serviço de motos. Tanto os direitos como os deveres das empresas terceirizadas em relação aos clientes,
quanto dos trabalhadores assalariados que passaram
dessa forma a fazer parte indireta da cadeia produtiva
estavam submetidos à lógica do mercado, permitindo
àquelas tomadoras de serviço selecionar os melhores
preços sem se preocupar com a qualificação desse pessoal. A novidade diminuía drasticamente os custos, pois
elas não tinham gastos adicionais com contratação de
pessoal, colocando sob responsabilidade das prestadoras de serviços a contratação de pessoal, muitas vezes
com os direitos básicos dos trabalhadores negados.
Bancos e multinacionais também começariam a fazer uso
do serviço de terceirizados, dispensando seus funcionários e contratando empresas interpostas para realizaros
mesmos serviços. Antes disso, eram poucos os empresários no setor que se arriscariam a entrar nesse mercado
e somente quando essas grandes instituições começaram a terceirizar estes departamentos é que ficou claro
o próprio conceito de mensageiro motorizado. O custo
de manter uma frota de motos ainda eram altos, então
a mesma dinâmica de relação entre as empresas-clientes e as terceirizadas se aplicou ao contrato de trabalho
com os mensageiros, e em vez de as prestadoras de serviços comprarem e manter uma frota, elas simplesmente
contrataram mensageiros com motos, usando mão de
obra e automóveis de terceiros. Na prática, todos ganhavam, pois como veremos adiante, era uma profissão nova
222
Coletivo canal*MOTOBOY
que possibilitava que pessoas com pouca escolaridade
pudessem entrar no mercado de trabalho e ganhar bem.
Como não havia ainda uma regra geral para regular este
mercado incipiente, cada empresa praticava o preço de
entrega que preferisse, isso dando margem ao aparecimento do motoboy. O próprio nome motoboy ainda demoraria quase uma década para aparecer como denominação desta nova profissão.
No princípio, éramos chamados apenas de motoqueiros, porque foram os caras que curtiam motos e a liberdade de pilotar que começaram a buscar formas de usar
as motos como instrumento de trabalho, incentivando
o “crescimento da categoria como uma nova forma de
uso do espaço urbano”, como diz o pesquisador da PUC,
Roberto Shinji Ito. Esta informação é pertinente em relação aos motociclistas pioneiros, pois algumas empresas
tiveram sua origem a partir da vinda destes motociclistas para o setor de entregas, pessoas que após terem
trabalhado como motoqueiros, abririam seus próprios
negócios com o conhecimento que tinham sobre o uso
racional da motocicleta.
Se por um lado, no fim da década de 1980, a terceirização
e a flexibilização nas leis permitiram a criação do trabalho terceirizado, nem sempre a vida das pessoas melhorava. O contingente desse pessoal de serviços gerais,
como foi o caso dos antigos contínuos e office-boys, foi
sendo gradativamente substituído pelos terceirizados,
e suas vagas desapareciam à medida que os motoqueiros cresciam. Apesar de fazerem os mesmos serviços, a
relação destes terceirizados com as instituições sempre
foi desvinculada, por exemplo, por nunca ter havido promoção de um motoqueiro a um trabalho interno de um
banco. Assim, estava encerrada mais uma porta para
quem era pobre. Quem antes sonhava em começar em
Neka
223
um banco como contínuo e crescer, só poderia ingressar
nestas instituições tendo diploma de faculdade. Os contínuos e boys desapareceram quase por completo.
As condições para o surgimento dessa nova categoria
profissional não podem ser apenas explicadas apenas
pela gradual entrada no mercado de empresas que contratavam motoqueiros para prestarem serviços. Deve
ser observado também o aumento do trânsito na cidade.
O tráfego urbano, com a entrada do Brasil no processo
amplo da globalização, se tornou um dos principais
entraves para a alta circulação do capital, e passou a
ser um dos problemas mais importantes das grandes
metrópoles. A solução apresentada pela motocicleta foi
peça-chave para o incremento do comércio nos grandes centros financeiros e da segurança no transporte
de documentos e informações. Somente então bancos
e grandes empresas começaram a confiar em nossos
serviços e passaram a utilizá-los. Junto à lógica desse
trabalho, uma enorme gama de novos serviços começou a ser realizada por motociclistas, e até mesmo
novos negócios surgiram na cidade a partir da inclusão
da moto na produção. Um exemplo clássico disto são as
pizzarias, que ampliaram o raio de seus atendimentos
aos clientes com as motocicletas, proporcionando conforto e novos hábitos.
O espaço da cidade transmuta-se com a mobilidade da
moto, a flexibilização nas relações trabalhistas e o baixo
custo operacional da motocicleta em relação a outros
transportes. Estas são as principais razões que possibilitam explicar a explosão na contratação destes serviços a partir da década de 1990.
Estas explicações, contudo, ainda não são suficientes
para dar conta do surgimento da figura do motoboy nos
grandes centros urbanos - e da sua cultura. Acredito
224
Coletivo canal*MOTOBOY
que foi preciso que os antigos motoqueiros e mensageiros motociclistas desconstruíssem sua autoimagem, para que enfim a figura intrépida desse personagem altamente urbano pudesse emergir. Aqui, porém,
já estamos no terceiro tempo do jogo, e para não atropelar nossa argumentação, vamos por partes.
É necessário lembrar que a profissão foi formada em
seu início principalmente por trabalhadores que tinham
já alguma experiência em outras profissões, como exbancários, ex-metalúrgicos, ex-operários de construção
e assim por diante. Este caldeirão, na verdade, era uma
experiência à parte, e discutíamos muito a respeito, as
vantagens e desvantagens de cada profissão. Para uma
verdadeira abordagem sobre as dimensões sociais que
estes motoqueiros percebiam em seu dia a dia, desbravando o trânsito e impondo uma marca de autonomia
que lhes garantia – e ainda garante – uma possível voz
a ser sempre ouvida, acontece justamente devido à relação com a motocicleta.
Tal relação não pode ser compreendida se não estiver ao
alcance do leitor a informação de fundo de que esta categoria foi construída a partir de uma diferença: o fato de
as motos, em sua grande maioria, pertencerem aos próprios motociclistas. Isso permitiu que estes profissionais
tivessem sua autonomia preservada, e por outro lado,
que se criasse uma cultura própria, talvez se as motos
desde o principio fossem de propriedade das empresas
não existiria a categoria no formato que existe hoje. Ou
seja, a motocicleta cumpre não só o papel de ser a ferramenta de trabalho do profissional motociclista, mas
também, deixando a esfera do trabalho, é objeto de prazer e desejo, que pertence a outros campos da vida. Este
diferencial talvez explique as muitas soluções encontradas por estes profissionais no seu dia a dia, e aí sua
Neka
225
independência. Como também sua atomização que dificulta a criação de estratégias coletivizadas para a organização de seu trabalho, e este é um problema quase
insolvível. Apesar dos motociclistas não terem o controle
desta produção, o serviço prestado por eles é vendido no
mercado como produto, ficando ele subordinado a uma
relação empregatícia com seu empregador e assim, uma
eterna ambivalência em relação aos seus direitos e contratos. Explico: como é sabido, alguns motoqueiros são
profissionais autônomos e atendem diretamente aos
seus clientes, sem que dependam de um agênciador para
tanto. Aprendem, assim, a embutir todos os seus custos
no preço do serviço, mas estes motoqueiros ainda são
uma minoria. A grande maioria, os motoboys, vive em uma
situação sem saída, subordinada à lógica do mercado e
dependente de um patrão.
Ao seradmitido em uma destas empresas, o motoboy se
depara com a seguinte situação: com seu ganho, ele precisa manter tanto a moto como a si mesmo. Em geral,
as empresas não registram logo de cara, o motoqueiro
passa um tempo fazendo serviços esporádicos até o
dia em que ele consegue um contrato fixo em alguma
empresa-cliente. Quando é registrado, o motoqueiro
tem direito a fazer outro contrato de locação para sua
motocicleta, somando o ganho do contrato do aluguel da
moto com o salário, daí o motoqueiro tira sua sobrevivência, mas se qualquer custo a mais aparecer com a moto
ele é obrigado a tirar de sua sobrevivência, se quiser
continuar rodando. Existem outras maneiras de contratação também, como os muitos motoboys que passam a
vida toda apenas trabalhando de esporádico, assinando
contratos de autônomo sem ser autônomo na realidade,
pois, lembre-se, ao disponibilizar sua força de trabalho e sua ferramenta ele se terceiriza e muitas vezes
abre mão dos direitos trabalhistas para poder competir
226
Coletivo canal*MOTOBOY
no mercado. Muitos profissionais sequer sabem que
têm direito a um contrato pela locação da moto, e passam a vida trabalhando como se fossem empregados,
ganhando só o salário. É uma confusão e em cada lugar
encontramos diferentes situações.
Nosso objetivo neste livro é mostrar que sem o transporte de moto não haveria o negócio de entregas rápidas
tal como conhecemos hoje. Quem detém o meio material para a realização de tal negócio é o motociclista. No
entanto, como explicar o fato de que eles sejam os grandes prejudicados? Se der problema, as respostas recebidas nas empresas variam de acordo com a situação,
tipo, “a moto é sua, você se vira” ou “você é meu empregado, portanto, me respeite”. Esta ambivalência se
estende assim por toda a teia de produção, o empregador se eximindo muitas vezes de suas responsabilidades
e dando ao profissional sua liberdade, com sua própria
moto e responsabilidade única por seu próprio destino.
Ao assinar um contrato de locação de seu veículo com
a empresa e outros tipos de contrato de trabalho, este
misto de empregado-patrão, já que ele é proprietário
do meio de transporte, e ao mesmo tempo subordinado
ao regime de contrato trabalhista, cria contradições e
vícios difíceis de sanar como a forma injusta de transpor suas perdas para o valor do serviço. Estas perdas se
acumulam com o passar dos anos sobre o faturamento
do motoboy, e o motoqueiro fica refém de um sistema
que lhe explora indecorosamente.
Um problema a ser levantado pode não estar relacionado
ao fato do motociclista ser o dono da moto, mas sim ao
fato de não está claro ainda para ele às vantagens e particularidades da profissão e a forma concreta de se tornar um profissional competente e valorizado. Talvez daí
venha uma explicação relacionada ao acolhimento que
Neka
227
a categoria deu àquelas pessoas que não tinham outra
oportunidade na vida, e que perderam seus empregos e
vieram tentar a sorte como motoboys, que mesmo desconhecendo completamente a realidade das ruas e direção defensiva, permanecem na profissão, aumentando
ainda mais os problemas do setor. Penso que muitos de
nós pararam nesta profissão com esperança de voltar às
antigas profissões. Éramos motoqueiros antes de tudo,
e muitos na primeira oportunidade sonhavam encontrar algum tipo de sobrevivência sem deixar de andar de
moto. Isso significava que, vendo a profissão como lugar
de passagem, nunca houve um forte compromisso com a
coletividade, possibilitando margem para a relativização
dos direitos e falta de uma identificação com a função.
Este não pertencimento, como se não fizessem parte
de uma categoria, contribuiu para que a mesma não
fosse bem vista pelos próprios motoqueiros, outra relação intrinsecamente ligada com a razão dos acidentes
e principalmente com a dramática luta diária do motociclista contra os automóveis no meio do trânsito. No
fundo, havia a urgência da vida cotidiana de se obter o
sustento e competir pelo melhor alcançando seus resultados. É necessário, porém, transpor a falta de compromisso com a especificidade deste trabalho, seja em sua
dimensão coletiva ou política, e compreender que este
compromisso tem relação direta com a lógica da produção e do engajamento do trabalho na complexidade da
vida moderna.
Ao conversarmos com qualquer motoqueiro, os riscos da
profissão sempre aparecem no meio da narrativa. Ou seja,
fica evidente o paradoxo que é o alto risco de se perder a
vida em acidentes e ao mesmo tempo o prazer único que
vem da liberdade de pilotar uma moto. E isto é inenarrável!
228
Coletivo canal*MOTOBOY
XIII
Comprei minha primeira moto no final de agosto de 1988.
Era uma Vespa 200/E ano 86. Estava praticamente zero
quilômetro. Ela fora comprada por uma construtora para
os funcionários fazerem o serviço externo, mas depois
que a empresa passou a usar serviços de motoboy ela
tinha ficado encostada em um galpão, e a partir de uma
dica de um amigo, e fui lá e a adquiri. No princípio, foi
apenas para meu lazer. Não imaginava que minha primeira moto seria justamente uma Vespa e que fosse
um dia trabalhar com ela. Nessa época, eu estava juntando dinheiro para comprar outra moto. e então, como
o preço era irrecusável, paguei. Havia certa nostalgia nestes modelos de moto - que me interessam até
hoje. Curti muito aprender a andar de moto com ela.
Descobri em seguida que pilotar sem capacete não era
mais permitido, levei duas multas e fui imediatamente
obrigado a comprar um. Meu primeiro capacete Wind foi
um modelo aberto que os motoqueiros apelidaram logo
de peruzinho da Sadia. Além de aprendemos na marra
a usar capacete, que os motoqueiros não gostavam,
pois era muito bom o vento na cara, outra coisa eram
os mata-cachorros, que até hoje ninguém suporta em
moto, e tivemos também que aprender a não retirar os
espelhos nas motos. Depois de alguns tombos, aprendi
que o chão é liso e que pra tomar um róla7 é mais fácil do
que se imagina. Cotovelos e joelhos ralados, eu ia por aí
fazendo gingas com minha Vespa preta.
A princípio eu estava tranquilo, meu casamento ia bem
e dava para pagar as contas. Mas em meu emprego na
rede de lojas de eletrodomésticos, do Jean Bittar, as coisas já não eram como antes e eu percebera que com o
7 Gíria usada para expressar as quedas em alta velocidade em que o motociclista sai rolando pelo asfalto.
Neka
229
230
Coletivo canal*MOTOBOY
passar do tempo eu ficara desatualizado, e que se um
dia eu saísse dali, dificilmente encontraria um emprego
igual ou melhor que aquele. Na área de computação,
tudo muda muito rápido. Vi então que quem era dessa
área como eu, não poderia ter parado de estudar, pois
rapidamente você poderia ficar fora do mercado. As
empresas agora estavam contratando apenas quem já
possuía diploma ou cursava faculdade. Naqueles quase
três anos que fiquei lá, acabei me atrasando. Teria que
dar um grande salto se quisesse continuar trabalhar
com computação. Então, dias antes de eu sair daquele
emprego, tive uma discussão com o gerente, pois não
concordava que eles não fizessem mais investimento em
novos computadores, e que como aqueles equipamentos não davam mais conta do recado, acabava sobrando
para mim, pois tinha que fazer parte dos apontamentos e cálculos com as próprias mãos. Nada era on-line
como hoje, e o computador em que eu trabalhava era
um trambolho. No início de 1989, de novo tomei a iniciativa de pedir meu desligamento do emprego, e dessa vez
sem qualquer perspectiva de futuro, porém sem medo.
Jamais senti qualquer terror de ficar desempregado,
mesmo estando casado.
Creio que a ideia de procurar trabalho de moto veio de
uma conversa que tive com um motoqueiro, que quando
eu trabalhava na rede Jean Bittar, veio sentar ao lado
no computador e me contou como era seu trabalho. Ele
trampava numa agência de publicidade muito conhecida
e passava por lá às sextas-feiras ao final da tarde para
retirar o disquete com os preços promocionais, que eu
preparava para fazer parte do nosso anúncio no jornal
de domingo. Por conta de ele ter ido muitas vezes lá,
ficamos amigos e conversávamos sobre motos, pois na
época eu estava me preparando para comprar a minha.
Neka
231
Puxei assunto sobre sua profissão e ele começou a me
passar o esquema de trabalhar de moto na rua. Era coisa
fácil. Mas tinha que ser motoqueiro, pois, às vezes, eles
pegavam umas roças e se a moto quebrasse o cara tinha
que se virar sozinho. Tinha também suas vantagens,
como não ter que aguentar a cara do patrão o dia inteiro
e ficar olhando para as quatro paredes de um escritório.
Conforme ele ia dizendo, eu ia acompanhando seu
roteiro: buscar disquetes, documentos, fotos e outros
materiais leves nos clientes e fornecedores e levar com
rapidez para a agência, pois lá eles fechavam as mídias
e mandavam para a gráfica ou para a TV os anúncios
prontos. O trabalho dos motociclistas era dar cobertura
a toda esta logística, não importando as condições do
tempo ou do trânsito. Achei interessante e vi ali uma
possibilidade de ganhar a vida como motoqueiro e ainda
gozar a antiga liberdade de andar pela cidade, como nos
meus tempos office-boy. Eu disse pra ele:
— Putz! E vocês ainda são pagos para andar de moto?!
Às vezes penso que não vale a pena resistir às coisas
belas. Lembro-me da gravidez da minha esposa, um
presente que não esperávamos e que recebemos com
muita alegria. Para mim, foi uma mudança muito grande
em pouco tempo. E com espanto, vi a barriga dela começar a crescer. Éramos muitos jovens ainda, e de repente
tivemos que começar a ter responsabilidade com o
nascimento do Lucas, nosso filho. Acabamos lidando
muito bem com a situação, ela já não trabalhava mais
e recebíamos nossos amigos com alegria e prazer nos
finais de semana em nosso apartamento, para ouvirmos
música, assistir a filmes e comer pizza. Não tínhamos
do que reclamar. Essa foi uma época muito boa para
termos tempo com outras preocupações. Meu trabalho agora se resumia a sair de casa de manhã de moto
232
Coletivo canal*MOTOBOY
até Copeg, uma fotocopiadora perto da avenida Paulista,
onde eu encontrava um trabalho de fazer entregas com
motocicleta. Parecia trabalho de office-boy, mas não era
a mesma coisa. Desde meu primeiro dia como delivery, já
comecei com uma baita dor de cabeça por conta do barulho no capacete, tendo que me acostumar com o trânsito
pesado. Era um serviço que não exigia quase nada, além
da moto, do capacete, às vezes, também necessário o
baú, a carteira de habilitação e o imprescindível guia de
rua, que nem todos usavam. Quando meu filho nasceu, no
final daquele ano de 1989, até pensei em não continuar
mais naquele trabalho, porque eu sentia no dia a dia com
os motoqueiros que havia sempre uma sombra rondando
nossas cabeças, e mesmo naquele período, muitos motociclistas já morriam no trânsito violento da cidade de São
Paulo, e eu sabia a dor que poderia causar caso tivéssemos um acidente. Ao final do dia, colocávamos a capa
de chuva e nos mandávamos com a saudade imensa de
casa, e não víamos a hora de chegar junto à família.
Neka
233
mais. Alguns até já trabalhavam em contratos e tinham
remuneração fixa, além de receberem altas comissões
por serviços extras. Nessa nova empresa, tive meu primeiro registro como mensageiro motociclista. Ali eu passaria os próximos dez anos da minha vida.
XIV
Mais que ficar indo e vindo, levando e retirando documentos e fotocópias, o trabalho de mensageiro que eu
executava agora tinha outras obrigações. Costumo dizer
que comecei minha carreira como delivery, depois virei
mensageiro motociclista e terminei um dia como motoboy. Mas não são somente nomes para a mesma coisa.
Mas ainda éramos muito poucos. A profissão nem mesmo
tinha nome. Naquela época, São Paulo era praticamente
só dos automóveis, e apenas cerca de 3 mil motoqueiros
trabalhavam como entregadores, e não tínhamos qualquer destaque em relação a outros motociclistas que
circulavam pela cidade, deslocando-se para ir ao trabalho ou a lazer. No início do ano seguinte, um dos motoqueiros que conheci na fotocopiadora saiu e foi trabalhar em outra empresa só de motoqueiros que prestava
serviços a grandes escritórios e bancos, e agora eu passaria a ser chamado de mensageiro motociclista.
O bate e volta dos deliverys, seja entregando cópias
ou lanches e pizzas, não exige muita estratégia. Muito
diferente de um mensageiro, que precisa construir seu
cotidiano conforme o trampo vai pegando. O dia vai passando e o mensageiro vai mudando suas táticas, encaixando os trampos, mudando os roteiros e criando novas
estratégias. Tampouco os motoboys esporádicos têm
de enfrentar os mesmos problemas. No início, a categoria ainda não era formada em sua maioria por motoboys, como hoje, e nem mesmo existia ainda tal palavra.
Acontece que contratar um motoqueiro para fazer um
serviço era muito caro. No meu trabalho mesmo, muitos
caras como eu entravam e só aos poucos iam trabalhar
nos contratos. Os contratos, no caso, eram os postos de
serviço terceirizados dentro das grandes empresas e
bancos.
Por isso, quando fui ver esta empresa em que meu camarada estava trabalhando, fiquei surpreso com a quantidade de motos que tinha por lá: quase trinta motoqueiros!
Percebi que o negócio tinha futuro e cresceria cada vez
Assim, quando entrei, fiquei na reserva para ir suprindo
os motoqueiros quando algum faltava ou quebrava a
moto. O legal era que os motoqueiros nos tratavam
bem e até ensinavam o trabalho, a fim de que quando
234
Coletivo canal*MOTOBOY
eles faltassem, o serviço fosse bem feito. Minha primeira substituição para valer foi no lugar do Grecco, um
negão que ficou muito meu amigo, e mesmo muitos anos
depois de termos saído da categoria, ainda nos falávamos. Fiquei uns dois meses em seu lugar, pois ele havia
sofrido um acidente e ficara afastado. O contrato dele
era em um banco e fui lá fazer a substituição e tocar seu
roteiro. O que me impressionou foi como as pessoas que
trabalhavam no banco vinham perguntar como o Grecco
estava, e eu não podia dar nenhuma informação, e apesar de ainda não conhecê-lo, vi que ele tinha o maior
respeito. Este era um diferencial. O acidente foi até um
pouco grave, quebrando-lhe o maxilar. Quando o Grecco
voltou fui substituir outro cara, o Neno.
No começo, havia uma grande amizade entre os motoqueiros, e todos tinham uma grande preocupação em
evitar acidentes. Na maior parte formadas por motoqueiros experientes, as empresas ganharam estrutura
para atender bancos e multinacionais. Como eu disse, só
foi possível o crescimento do setor quando estas instituições deram um voto de confiança necessário para que
os setores de transporte de malotes, até mesmo com
cheques e valores, passassem a ser feito por nós, motoqueiros. Na verdade, elas deram o lastro para seguirmos
adiante. Logo eu estava ganhando mais do que quando
trabalhava de operador de computadores, e não havia
razão para deixar de trabalhar de moto, já que era um
trampo que não tinha patrão na tua orelha te enchendo o
saco. Estava na rua o dia todo, fazia novas amizades, e o
mais importante, dava pra eu dar meus rolés sem precisar dar satisfação a ninguém.
Em meu primeiro acidente quebrei apenas a clavícula.
Os acidentes não acontecem sem razão. Não existe
acaso. Apesar de serem imprevisíveis e muitas vezes
Neka
235
poderem ser evitados, são a melhor demonstração
de como os homens são falhos. Eu tinha acabado de
entrar na empresa e substituía um motoqueiro que tinha
sofrido uma grave batida, quando eu mesmo sofri este
acidente, entre muitos em que ainda me envolveria.
Claro que desde que aprendi a andar de moto eu já tinha
levado muitos tombos e saído ralado, mas foi um grande
susto quando me vi atingido por um carro na via paralela
à rodovia Anchieta. Eu estava a milhão quando acelerei
pela via livre. Tinha um cara fazendo uma manobra irresponsável e ele me atingiu no outro lado da pista. O carro
acertou a traseira da minha moto e eu voei uns 50 metros
pela pista. A moto foi parar mais longe ainda. Rolei pela
pista feito um carretel e fiquei lá estrebuchado, me
levantaram pelos braços e me retiraram da pista com a
clavícula quebrada, meu braço e ombro esquerdos vieram encostar-se à orelha, além das fatídicas raladas
pelo corpo inteiro, que todo motoqueiro sabe como são.
Algumas vezes, por exemplo, por conta da má utilização
dos freios, de uma falha direta de pilotagem ou ainda
por inexperiência, não reconhecemos todas as armadilhas do trânsito, o que pode fazer com que beijemos
o asfalto. A primeira vez em que voei foi naquele dia.
Depois de passar embaixo da alça da rodovia, na Vila
das Mercês, já quase chegando ao meu destino, o Centro
de Computação do Banco América do Sul, a única
coisa que lembro foi um automóvel que fazia a meia lua
bem na minha frente. Como diz um verso do Poeta dos
Motoboys, que fala muito desta realidade, “coisas assim
ensinam na guerra, a minha vida vale mais que a sua
entrega”, naquela instituição ninguém tomou conhecimento do meu drama e, assim, a partir daquele acidente
percebi nossa fragilidade. O motorista também não
assumiu qualquer responsabilidade, dizendo que olhava
236
Coletivo canal*MOTOBOY
pelo retrovisor aguardando um momento para manobrar
e não viu que eu me aproximava em alta velocidade. Mas
naquele local era proibido o retorno, e como nunca pude
processá-lo por ter quase me matado, as coisas ficaram
por isso mesmo e passei quatro meses sem poder subir
numa motocicleta.
Depois ainda sofri mais outras tantas porradas que
perco as contas de vista. O mais grave acidente que sofri
foi quando eu tinha um contrato em um outro banco e
meu trabalho se resumia a dar apoio à logística da agência do banco que ficava dentro do Centro Operacional,
em Santo Amaro. Era um daqueles contratos filés, que a
gente quase não precisava se preocupar com a correria,
já que o trabalho de fato era ficar de prontidão para qualquer emergência que aparecesse por lá. Naquela manhã
fui até Alphaville buscar um malote de cartões de clientes do banco que tinham acabado de ser processados.
Na volta, vim pela pista central da Marginal Pinheiros e
s’imbora. Ao chegar próximo à antiga ponte do Morumbi,
descobri que a pista de acesso havia mudado com a
construção da nova ponte. Fiquei em dúvida se valia a
pena parar e dar um quebrão ou ir adiante, até a ponte
João Dias, já em Santo Amaro. Parei no acostamento
da pista para decidir. Próximo às obras, os tapumes
fechavam os canteiros, impedindo a transposição para
a outra pista. Haviam mudado a logística do acesso à
ponte e fiquei pensando como faria pra chegar ao outro
lado da avenida Nações Unidas, porque não queria gastar tempo e gasolina andando oito quilômetros até a
próxima ponte.
Como eu estava muito próximo às armações da construção da ponte, e as pistas se afunilavam junto aos tapumes, ficou difícil sair dali e seguir adiante. Decidi seguir
em frente, mas não cheguei a colocar a segunda marcha:
Neka
237
fui jogado longe por um caminhão que vinha por trás.
Não deu tempo pra nada, ele mal teve tempo de parar.
Carros e caminhões passavam ali em alta velocidade e
fiquei prensado entre as rodas traseiras do caminhão e
o guard-rail. Bati na roda e fui arremessado feito turbilhão
para trás. Da moto não sobrou nada. Caí de costas no
asfalto em brasa. O malote ficou destruído e os cartões
todos espalhados pela pista. Mas saí com vida.
A primeira sensação que se tem depois do primeiro
impacto é de que ainda não acabou, que outras porradas ainda virão e sua mente te direciona a sair dali imediatamente. Ainda zonzo, tentei me levantar para sair do
alvo. Dei sorte porque o caminhão brecou bruscamente
e os carros que vinham atrás pararam, um inferno, as
freadas. Minha perna esquerda ficou aberta, levantei a
cabeça e vi a ponta do osso branco. As pessoas saíam
dos automóveis e vinham em minha direção. Quando
você vê o mundo de baixo pra cima, o que se tem a fazer
é aguardar o socorro, neste caso com asfalto quente
como fogareiro e mantendo a respiração para não apagar. Nesse momento, a cabeça já está longe, você pensa:
“Puta merda como vou fazer pra pagar o aluguel? Quanto
tempo vou ficar sem trabalhar? Como vou fazer pra
arrumar esta moto?” Aí começam os pesadelos, antes
mesmo de se chegar ao hospital... Esta é a cabeça de
um motoboy. Sem falar que a família, aesta altura, se já
foi avisada, entra em desespero. Quando não, é um Deus
nos acuda!
Passar três dias internado parece uma eternidade.
Alguns motoqueiros que tinham contratos na própria
rede hospitalar faziam questão de me visitar e dar uma
força. Mas dor é sempre dor. Acho que sofri mais com
as costas raladas que com minha perna engessada, que
ficava pendurada em uma única posição.
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Coletivo canal*MOTOBOY
Na mesma ala hospitalar tinha um homem que caíra de
uma laje e ele gritava a noite inteira. Lembro que os médicos já tinham aplicado até morfina e ele ainda sentia
muita dor... Não sei se ele ficou melhor, mas depois de um
dia assim, com várias juntas médicas em volta dele, na
noite seguinte ele foi levado embora para o Hospital das
Clínicas. Motoboy, pedreiro, cada profissão tem seu risco.
Agora era se recuperar e fui levado para casa. Nessa época
nós já estávamos morando na rua dos Democráticos,
em São Judas Tadeu. Uma das sócias da empresa, dona
Augusta, foi lá me ver e disse que eu não precisava ficar
preocupado, parte do meu ordenado seria pago normalmente e quando eu voltasse iria recuperar meu contrato.
Quantas vezes eu agradeci por este dia não lembro. Estar
em uma empresa de responsabilidade, com registro em
carteira e uma boa estrutura de apoio ao motociclista
acidentado era um privilégio. Como disse, apesar de tudo
eu tinha sorte. Outras empresas simplesmente abandonam seus funcionários à sorte.
Fiquei despreocupado e em recuperação por oito longos
meses. E para um motoqueiro acostumado ao agito do
dia a dia, oito meses eram anos, pois não via a hora de
voltar. Aproveitei aqueles meses para fazer algo que há
muito tempo eu não fazia: ler muito e ficar com meu filho,
que já estava pelos seus 2 anos. Logo, os ossos, a tíbia
e o perônio, ficaram novamente colados e eu voltaria a
andar, e não fui mais o mesmo depois daquele acidente.
Passei a ter o hábito da leitura, li tanto nesse período
que até cheguei a tentar escrever e aconteceu meio de
repente, sozinho no silêncio da madrugada, a mesa da
cozinha vazia e uma folha branca. O que ia para o papel
não tinha qualquer ordem ou sentido, pois eu nunca
tinha escrito nada em minha vida, mas também não era
hora ainda, eu acho. Senti que se eu desejasse escrever
Neka
239
de verdade, acima de tudo, deveria estudar, faltava uma
formação. Guardei numa gaveta aqueles escritos esquisitos que fizera quando passava as noites acordado
lendo e olhando as estrelas. Pensando bem, um dia
poderiam virar um livro. Mas não foi isso o que aconteceu. Eu simplesmente não pensei mais neles, e depois
que a vida voltou ao normal, voltei a trabalhar.
XV
Há muito eu já tinha trocado de moto. Como disse, comecei com uma Vespa, mas ela não era muito prática e a
manutenção era bem mais cara que a das motos normais. Tirei então no consórcio uma Honda 125 cilindradas, zero quilômetro, que, como se sabe, foi o modelo de
moto adotado pela categoria para seu trabalho. Naquele
período tive várias motos. Era normal ver os motoqueiros ficarem fazendo rolos8. Tinha motoqueiro que dividia
o tempo de trabalho apenas negociando, e nesses rolos
sempre se fazia uma grana extra. Este mercado acabou
depois que a moto se popularizou e ficou muito barata.
A razão de a categoria adotar este modelo de motocicleta está em sua relação custo-benefício, sua fácil
manutenção e o gasto com combustível, que é muito
pouco em comparação às outras cilindradas, além de ser
uma moto prática para pilotagem. Uma 125 cc consome
em média 1 litro de gasolina a cada 35 quilômetros, ideal
para quem roda o dia todo. Nós percebemos isto muito
cedo, mas durante um bom tempo ainda existiam muitos
motoqueiros usando outros modelos, já que a moto sempre foi utilizada também para o lazer. Mas com todas
estas vantagens, este modelo acabou dominando o
8 Trocas.
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Coletivo canal*MOTOBOY
cenário. É também muito lógico que a moto acabe sendo
investimento para quem tem pouca grana e quer seu
próprio negócio. Como agora eu estava vacinado, montei
numa zero quilômetro e fui trabalhar em outro contrato,
em um outro banco, na avenida Paulista, onde eu chegava por volta das dez da manhã e saia às seis da tarde.
Assim, eu tinha outros trampos de manhã que me ajudavam nas despesas e aumentavam meu faturamento,
como a entrega da Gazeta Mercantil no bairro e alguns
malotinhos que acabava encaixando durante o dia.
Em média eu tirava em torno de cinco a seis salários
mínimos. Não era muito, já que outros mensageiros na
empresa chegavam a tirar até dez salários mínimos. Este
era o sonho de qualquer cara que quisesse levantar um
bom dinheiro trabalhando de moto, ter uma moto nova e
a oportunidade de fazer um bom faturamento. Traduzido
para hoje, eu tirava em torno de R$ 2.400,00, o que equivale a um salário de alguém que tinha no mínimo uma
faculdade. Mas isto foi naquele tempo... Confesso que a
vida estava sossegada. O ruim mesmo era levantar cedo.
O jornal era entregue no ponto às cinco e meia da madrugada, e tínhamos que estar lá. Eu fazia a região da Saúde
e do Jabaquara, indo do Parque do Estado até o lado de
cá do Aeroporto de Congonhas. Se não chovesse, antes
da nove da manhã eu já estava em casa tomando um
segundo café reforçado e me preparando para ir para o
contrato do banco.
Quando estava calor, colocava um bermudão e saía com
a moto abarrotada de jornal. Quando chovia, tínhamos
que pacientemente embalar os jornais um a um. Em um
dia assim, você pode pensar que nada pode acontecer
com você, mas é aí que você se engana. Em 1993, precisamente uma segunda-feira, em maio, depois do dia das
mães, tive uma experiência bastante traumática quando
Neka
241
saí de madrugada para ir trabalhar. Anos mais tarde eu a
transformaria em um conto. Guardei então em sua forma
original, aquilo que naquele momento era o que eu procurava dar vazão, as agruras da minha vida de motoboy
e o ódio que sentia pelo descaso e a impotência a que
éramos lançados. Esse conto passou a se chamar Ditão
e Grillo, os apelidos dos caras que aquele dia com armas
em punho levaram minha moto e que tiveram um destino
muito parecido ao de qualquer marginal:
dITÃO e Grillo
A vida bandida
Um cara um dia saiu para trabalhar,
mas ele não sabia o que lhe esperava.
— Esse é o vez e quando... Quê vou dizer é um lance assim...
Bem... bem, o que te espera? Senti isso aquela manhã, quando
passei pela porta de casa e fui trabalhar e quase num volto,
com um balaço! Hoje sinto um nó apertado no peito e meu
cérebro ferve, quando penso nisso, o mochilão nas costas
e um silêncio zuuado nos ouvidos e a tua vida passa nuns
segundos... Tipo uma luz do poste da rua penetrando pelo
vidro da janela, você saindo sossegado do seu lar e o sol
ainda nem nascera e você fica ali na penumbra, aguardado o
momento certo de botar o pé na rua, mas nem... Tava escrito.
Aquela manhã não acendi a luz da cozinha, não queria acordar ninguém. No quarto escuro Sapotira ainda oprimindo um
sonho debaixo das cobertas e meu moleque no berço e, coisa
estranha, que o dia nem começara e já sentimos isto... Tava
cismado o bagulho, mas como saber? Eu poderia não ter ido
aquele dia, mas fui...
Ele fica em silêncio, tenta retomar:
— Você fica imaginando mil coisas. Mas não sabe nada ainda.
Desci pra garagem pra pegar minha moto e cair no mundo. As
chaves na mão, você para no parapeito e pensa, o que pode te
acontecer? Um inesperado sempre tá à espreita, e persegue
você atrás da sua mente, quando você acelera no corredor.
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Coletivo canal*MOTOBOY
Mas você não quer pensar nisso, então você se manda. Acelera
fundo. Atravessa o tempo. Fura o tempo, anula. Não espera
nada, sem temer você parte que o dia é longo. Num lance
assim eu nem sei, eu saí e fechei a porta... Não olhei pra trás.
Os caras colaram em mim com uma CB 400.
Levanta gesticulando as mãos e é visível nestes gestos ver sua
angústia ao narrar o incidente:
— Fui pra batalha, não tem vacilo não! A gente não tem
como escapar é enfrentar esse dia-a-dia, fui eu pro correcorre. Agora, logo de manhã, meu irmão?! Cara! Num pode
ser, pensei na hora. O asfalto estava molhado da chuva da
noite anterior, a capa e a bota no pé é uma guerra, você pensa
“ninguém sabe quem volta e quem fica estirado”. Agora nem
bem tirei a moto das grades lá embaixo da garagem, passo o
cadeado no portão, a moto ligada pra rua acelera meu último
pensamento foi: “pego meus jornais no ponto e”... Então, o dia
te amanheceu, os caras páah... te metem o cano na cara e me
levam a minha magrela. E o pior... Quê isso fica te martelando
a cabeça por dentro!
Com certeza deve ter provocado muita dor, ele continua:
— Foi de encomenda, tenho certeza! A quadrada na sua cara,
e vem aquela primeira sensação de impotência... Depois um
sentimento de revolta sobe e que te consome por dentro...
Amargura, desespero e ironia juntos e tu pensas “nem tava
paga ainda!” Mas você fez uma troca: A moto pela sua vida!
Neka
243
samentos vão passando pro submundo, você olha o carnê com
as prestações ainda pra serem pagas e um ódio sobe pelos
brancos dos olhos, tudo isso aqui é a cidade, Perus, Caieiras,
Freguesia, Heliópolis, Socorro, Capão, Osasco, Taboão, a capital. Você não sabe aonde vai ser. Não importa, tem Guarulhos,
tem entrega? Você abraça. “Esse, meu irmão, é o mundo cão,
e motoboy é cachorro loko, e vive em outro quem não é junto
com o seu”, disse o cara que entrega o jornal junto comigo. E eu
penso: e se foi tu, malandro, que passou essa fita? Ele queria
apenas me consolar, e eu no veneno, já corria nas minhas veias
esse ódio... E esses caras, o Ditão e o Grillo, montados numa
cebezona quatrocentas, o berro na cinta, te pegam num beco.
Assalto
“Puxa vida o que faço agora, me pergunto, antes de me dar conta
que a rua não tinha saída. Minha mente silencia por um segundo,
tentado pensar rápido, como sairia dessa; pois, eles aproximamse, o garupa tem as mãos enfiado no bolso... Que enrascado
onde eu estava? Quando vi já era tarde e colam a moto em mim,
o garupa saca a arma. Congelei. A ferramenta apontada e o cara
foi gritando:
— Saí, saí... fora!
A frieza que vi a cara da morte. O portão da casa do cliente
fechado não dá fuga, você se dá conta que a rua não tem saída
é madrugada, numa ruela assim num bairro distante, uma CB
roncando lento.... Levaram minha moto...”
Já mais calmo, senta-se de volta e começa a narrar como
foram as coisas a partir dali:
Após narrar estes fatos ele começa a remoer suas unhas, era o
pesadelo voltando em relances:
— Depois é voltar pra casa. O B.O.9 em mãos e você anda
zonzo pelo meio da rua a pé, não querendo ainda acreditar...
“É começar tudo de novo”, um pensamento te consola. Aonde
você chega a tua galera tá comentando, dão apoio e uma força.
Fica ainda aquele zum-zum-zum, depois a notícia já passou
e aquilo cai no esquecimento. “Roubaram a minha moto”, eu
digo, seco, quando perguntam. Sua pressão abaixa e seus pen-
— Tudo vira contra você, não cabe mais tanta porcaria e ódio
na tua cabeça e “eu aqui nessa merda desse trampo”, enfiando
a cabeça nesse capacete o dia todo. Finalmente você chora e
tenta esquecer.
9 Boletim de Ocorrência policial.
Ele deixa enfim as unhas, a respiração volta ao normal:
— Esse é o meu corre... Eles uma hora pagavam, eu pensei,
e os cambau... Mas eu deixei quieto, nem fui atrás não. Eu ia
me virar agora com uma moto que eu montei em cima de um
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quadro velho. Ganhei a vida, melhor assim... “Meu, tenho filho,
tou pagando, tenho aluguel”, nada disso adianta... Eles montaram nela e saíram fora. Aquele Grillo que fazia o piloto, eu o
conhecia de longe, ele era da área. Acabou morto embaixo de
um caminhão na Avenida do Estado. Antes agonizou em tempo
lá no Hospital do Jabaquara. “Adiantou num farol”, me falaram.
Ele era desses caras que fazem as correrias erradas e ainda
dava uma de migué numa boca de porco10 ali perto na Cupecê.
“Êita pôrra”, fico pensando, esse mundo é o cão. Já o Ditão,
que sacou o ferro, veio de garupa e foi quem foi montado
na minha moto. Fiquei sabendo depois que ele foi uns dos
pivetes que, naquela guerra do PCC, anos atrás, acabaram
fuzilados na noite atrás dos muros da Polícia Civil. Mas se
for verdade, não foge à realidade. Você se mata de trabalhar
e vêm uns pilantras desses e te levam sua ferramenta de
trabalho. Faltando ainda vinte e quatro prestações e isso... O
que fazer? Bom, agora era ir pra correria. Tinha que ir pra luta,
me virar. Tinha que ir lá pegar um motor com o João, descolar
um quadro na oficina do Zé, e na Ponte dos Remédios, conseguir uns docs11 com um despachante, amigo meu. João me
veio com um zerado de fábrica, agora tinha muito que ralar
pra pagar as contas. O Zé apareceu com um eixo oitentinha,
ralado até as horas... Mas acabei pegando. Acabei dando
uns tapas na carenagem e joguei em cima um kit 90. Isso é
barra, não tinha como não ser, você pensa, e a família? Então,
tinha que continuar. Tinha que descer pras bocas pra pegar
umas peças. Tinha que não sentir culpa ao comprar ali umas
bengalas no balcão (na sua frente o balconista joga assim
de qualquer jeito as peças), por um preço mixo e sem nota.
Sem nota e sem nada, saí com elas debaixo do braço. Era só
entrar na loja e comprar. Tinha que não sentir nada e também
que não sentir pelos outros. “Má sorte”, se pensa nessa hora,
para aliviar a culpa. Mas no fundo você sabe... Uma hora a
vida melhorava, “e se aqueles putos lá na firma conseguem
uma pá de contratos, também chego lá”, é nisso que a gente
pensava. É lógico que a gente pensa na grana e se fode com
10 Pequenas empresas que agenciam motoboys por hora.
11 Documentos.
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esses trampos, só sobra roça! Mas e a motinha que montei
nem rendia, a vontade de destruir ela era grande. Queria jogar
no poste. Pegar o amortecedor e bater nela. Ruim de pegar,
fazer curva, pneu furando toda hora e os contratos passando
de montão... Andando desse jeito é que eu não ia. Deixando
na mão... Uns caras fazendo uns rolos e tu pensa... “vai virar,
tem que virar...”. Bom, o tempo passou e até que um dia consegui, depois de muito trabalho, recuperar meus contratos.
Exausto, corre a palma da mão no rosto em sinal de reserva:
— Chorar é que não, mas fazer o quê?
Depois se mostra esperançoso e abre um pequeno sorriso no
canto dos lábios:
— Então eu também ia chegar lá. Como saco de pancada nesses trabalhos aqui eu tenho que pagar o aluguel, comprar os
baratos do meu bebê, então foda-se! Um monte de gente querendo ditar seu ritmo: “Põe isso aqui no seu roteiro!”,“Passe lá
no sei aonde!”, “Põe gasolina naquele posto...” Meu, eu queria
falar aqui e agora, sou página virada, aquilo que aconteceu,
isso passou, marcou pacas, mas tenho certeza que você não
sabe o que é isso, se não viu a cara do cano. Sinto que toda
minha desgraça começou ali, naquele dia, não devia ter saído
pra trabalhar!... Então. Se liga, não é que uns meses depois eu
vejo minha moto estacionada na frente do Mappin, na Praça
Ramos, dá pra acreditar? Os caras passaram ela, meio que
estava já zoada, mas era ela sim, eu a reconheceria de longe,
lembro dela ainda zerada lá em casa na garagem! E havia pensado que eles tinham picotado ela! Era ela, vermelha e com
todos os amassadinhos e arranhões que fiz nela! Corri para
um posto policial na esquina da rua Barão de Itapetininga.
Então, para minha surpresa, o policial que chamei pediu para
eu virar a moto para conferir o chassi. Virei inclinando-a pra
ele ver o número do chassi, e ele disse: “Sinto muito cara, sua
moto já foi, essa aí os elementos pinaram12 o número do chassi
e não tem como...”. Como assim, eu disse. Não pode ser, mas
é ela? Meu estômago dobrou... Que porra..., sentei por uns
12 Apagar a numeração do chassi.
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tempos nas escadarias do Teatro Municipal e fiquei remoendo
em silêncio, o guarda ficou plantado lá, imaginando que talvez
eu voltasse e colocasse fogo na “minha” magrela... Isso, cara,
não tem palavras – pelo menos é uma informação que tenho
desde pequeno, que sinto no silêncio, e aquela coisa e não
poder fazer nada... - na mira a boca negra do cano gelado...
Olhando-me fixo nos olhos ele fica em silêncio, depois torce a
cabeça para os dois lados relaxando os músculos do pescoço,
ouve-se um estalo e ele não diz mais nada por uns instantes,
depois volta-se para mim e conclui:
— Quando passei a porta naquela manhã estava frio lá fora.
Ergui o esqueleto da cama, fui jogar uns jornais lá no bairro, e
aí aquilo, e minha vida desabou, é isso cara...
XVI
Em 16 de fevereiro de 1992, cerca de um ano antes
daquele episódio do assalto, minha mãe morreu. Recebi
a notícia sem estar preparado, e era um dia normal de
trabalho, pois como sempre, eu passava em casa na hora
do almoço. Ao fechar o portão e desligar a moto, minha
esposa veio, pegou minha mão e me levou para dentro.
Choramos longamente aquela tarde. Minha mãe havia
estado hospitalizada por conta de sua saúde muito
debilitada e tínhamos ido visitá-la em Sorocaba, onde
meus país e irmãos menores foram viver depois de se
mudarem de São Miguel Paulista. Triste não é só lembrarmos sua morte. Mas também a forma estúpida que
ela morreu.
Uma semana antes nós tínhamos ido visitar minha família. Fizemos um churrasco no quintal e até estávamos
bastante descontraídos. Por muito tempo controlando
uma diabetes, ela ia ficando debilitada, nesse dia ela
estava com uma tosse leve e com a garganta bastante
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infl amada. Como havia sempre religiosos por perto,
ela não ficava sozinha, mas alguma pessoa muito simples indicou a ela que colocasse uma ponta de sal na
língua, para aliviar a tosse. Ao final da tarde, quando
nos preparávamos para partir, ela piorara bastante.
Recomendamos que no outro dia alguém a levasse ao
médico, e isto foi feito. O médico não conseguiu diagnosticar imediatamente e naquela semana ela ficou
internada. O sal havia destruído parte do seu organismo e a saúde dela não se recuperou mais. Ficamos
desolados e ela até chegou voltar para casa. Mas não
houve jeito. Ela foi internada novamente.
Na última vez que a vi fiz um retrato dela. Sentado ao
seu lado na cama, seu sorriso largo tinha algo de perspicaz. De vez em quando, eu parava de desenhar e a
olhava em silêncio, enquanto seu olhar inocente se perdia pela janela do quarto.
XVII
Durante um curto período me afastei da empresa para
decidir o que fazer da vida. Como eu e minha esposa curtíamos muito o SESC Pompeia, nos matriculamos em
alguns cursos de artes. Matriculei também meu filho em
um programa de educação infantil mantido por eles chamado Curumim. Comecei fazendo desenho e pintura
nas oficinas ministras pelos artistas plásticos Carlito
Contini e Roberta Fortunato. A Tutte já fotografava então
se matriculou no curso de fotografia, e naquela época
estes cursos já eram excelentes.
O SESC Pompeia sempre foi um caldeirão cultural e eu já
o frequentava desde os tempos que movimento punk agitava a cidade. Ali fiz muitos amigos, e em 1993, depois de
estudar com aqueles artistas, tive o prazer de conhecer
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e trabalhar com o artista Eng Goan, um ceramista vindo
da Indonésia responsável pelo ateliê de cerâmica, que
estava preparando um projeto de pesquisa para uma
grande exposição naquela instituição. A exposição se
chamaria “Homenagem a Gaudí” e reuniria várias técnicas, cerâmica, vidro, tapeçaria etc. O interessante foi
que, ao conhecê-lo, ele imediatamente me contratou
para organizar a equipe que trabalharia na exposição.
Aquela seria a minha primeira experiência profissional
com cultura, mas naquele momento eu ainda não sabia
disso. Comecei amassando barro.
Amassar barro era fazer o reaproveitamento da argila que
sobrava das oficinas e endurecia. Vários tonéis cheios
até a boca de argila seca e dura, que estavam lá há anos,
tinham que ser umedecidos para que o barro ficasse em
ponto de uso. Por isso, sempre dizia, quando eu voltasse
um dia a trabalhar de moto eu estaria totalmente renovado, aquela experiência com aquele artista oriental
foi um verdadeiro aprendizado espiritual. Amassado o
barro, tínhamos um grande estoque de argila fresca. Era
pôr a mão na massa. Então comecei a chamar meus amigos todos que curtiam artes para aprender a fazer cerâmica e mexer no forno de queima. Aqueles que gostavam
de tapeçaria podiam ser instruídos pela artista plástica
Anabela Rodrigues, que veio se juntar a nós no projeto,
ensinando a galera a fazer esculturas e rendados.
Assim, criamos um espaço onde todos podiam se desenvolver e aprender alguma linguagem. Tínhamos passado
por algumas experiências políticas bastante frustrantes naquele tempo. Lembro que quase todos ali estavam desempregados e desiludidos com a vida e, ainda
por cima, havia a grande expectativa criada em torno da
campanha presidencial de 1989. Como o Collor venceu,
todos ficaram sem rumo. Por isso, quando as oficinas
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começaram, havia um certo baixo astral. Enfim, vivíamos
o último refrão dos anos 1980, a década perdida. O país
afundava e não havia qualquer esperança de saírmos
da recessão criada pelo Plano Collor, mesmo depois dos
caras-pintadas e de a população ter ido às ruas pedir o
impeachment do primeiro presidente eleito em 29 anos.
É preciso dizer aqui, no entanto, que aquele momento era
de ressaca moral.
Assim, aquela galera encontrou nas oficinas do SESC
Pompeia um refúgio e ninguém ali reclamava de amassar
barro. Passamos meses desenvolvendo o projeto, a ideia
era que nós reproduzíssemos a experiência que o arquiteto catalão Antonio Gaudí realizara na Espanha, quando
construiu o Parque Güell e a famosa Igreja Sagrada
Família em Barcelona, ao trabalhar com o lado orgânico
da forma abrindo a possibilidade de qualquer cidadão
expressar a linguagem artística acumulada pelos artífices catalães, participando todos assim da criação, porque ele acreditava no potencial que cada pessoa tem
para a arte. Em 29 de abril daquele ano inauguramos a
exposição, e minha equipe já contava com mais de trinta
pessoas envolvidas, aprendendo a fazer cerâmica, a
derreter vidro e a tecer. A exposição foi um sucesso e
tomou todo o espaço do SESC Pompeia. Quando saímos
de lá, cada uma daquelas pessoas, ao voltar para sua
vida, levou consigo uma experiência única e ninguém
sairia dali o mesmo. Quem estava sem trabalhar, logo
conseguiu voltar ao mercado. Quem tinha desistido de
estudar, logo redescobriu o valor dos estudos e voltou
pra escola. Aquela experiência nos marcaria para sempre, possibilitando que retomássemos nossa vida.
Alguns meses depois, já em 1994, o Planalto lançaria o Plano Real, acabando com a inflação e voltando a
dar estabilidade à economia. Eu voltaria a estudar, não
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agora, mas um ano depois. Antes de voltar a trabalhar
de moto, ainda fiquei um tempo como garçom. Foi uma
última tentativa de não voltar a trabalhar de moto, mas
eu continuava a pilotar nesse período, e como ainda
encontrava meus amigos motoqueiros, eu sempre balançava, sabia que o dinheiro que entrava era imbatível, até
que voltei, e mesmo porque, eu já não era mais o mesmo
e também já sabia o que queria fazer da vida.
XVIII
Passado quase um ano, voltei a trabalhar na Moto
Service. Primeiro tive uma longa conversa com a dona
Augusta e expliquei porque queria voltar. Como ela sempre foi muito direta com os motoqueiros desde que a
empresa começou – lá na rua da Consolação –, eu sabia
que ela entenderia as razões porque eu decidira me
afastar. Ela percebeu que andava meio desorientado por
ter perdido minha mãe recentemente e, por isso, quando
passei um tempo fora, foi como se ela soubesse que eu
precisava de um tempo para pensar.
Mostrei a ela alguns dos desenhos que fizera e até cheguei a vender a ela umas peças de cerâmica que eu
havia criado quando fiz meu curso de cerâmica no SESC.
Nessa conversa, deixei clara minha intenção de voltar a
estudar e ela sabia que eu já tivera outras profissões,
até me sugeriu que eu não voltasse pra rua e ficasse no
suporte da empresa. Mas insisti: eu adorava andar de
moto e não queria ficar preso em escritório cuidando de
logística. Como não tinha mais dinheiro para nada, precisava do dinheiro que os mensageiros ganhavam para
poder tocar meus projetos. Ela me recontratou, com
a condição de que não fizesse mais tantas comandas
de serviços juntas, uma vez que ela já conhecia meu
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histórico de acidentes. Passei então a fazer um contrato em uma empresa onde, em vez de eu rodar o dia
inteiro, podia fazer rapidamente meu trabalho e depois
me acabar de ler e estudar. Desde que sofrera aquele
grave acidente, eu tinha readquirido meu hábito de leitura. Havia descansado bastante durante aquele período, passando as horas apenas vendo meu filho crescer, pintando e tentando escrever. Preenchi meu tempo
assim, com muita arte, e tomei João Cabral de Mello
Neto como meu poeta de cabeceira. Quando voltei, os
motoqueiros vieram me cumprimentar. Muitos ainda
não me conheciam. A empresa não parava de crescer.
Pelo menos mais uns trinta caras novos haviam entrado
e agora havia mais de 150 mensageiros motociclistas
na empresa. Por esta razão, a empresa, mais uma vez,
mudara de endereço, para um prédio com garagem na
avenida Santos Dumont, na Ponte Pequena. Não fiquei
muito tempo sem contrato: logo a Augusta achou um
contrato com meu perfil. Fui alocado no Bank of Boston,
e a partir dali, por um bom tempo eu seria o motoqueiro
exclusivo do personal banking, na matriz do banco, que
ficava, de novo, na rua Líbero Badaró. Lá tive até o prazer de conhecer pessoalmente o atual presidente do
Banco Central, Henrique Meirelles, que na época era o
presidente do banco no Brasil. Sinceramente, quando
falo para as pessoas que tudo isso aconteceu, até fico
em dúvida. Mas aconteceu. Como eu já tinha experiência em banco, pude compreender os processos introduzidos por ele naquela instituição, e que a transformaram numa das mais rentáveis do mundo, levando seu
presidente ao posto que ele ocupa hoje.
Pergunto-me, principalmente, qual empresa de motoboy, ontem e hoje, tem uma relação dessas com seus
empregados. Sim, porque há um diferencial aqui que
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não pode ser visto como uma coisa menor. Fazia parte
da filosofia da Moto Service, naquilo que ela se propunha como um atendimento completo aos clientes, tratar
os motoqueiros com respeito e dignidade, e como todos
trabalhavam bem, as empresas-clientes raramente
tinham alguma reclamação. Nosso serviço de qualidade
aparecia nos resultados das empresas, assim, não havia
quebra de contrato e, quando precisávamos de algum
reajuste (lembrem-se, a inflação era galopante nessa
época), eles sempre nos davam. Isso fazia com que a
empresa estivesse entre as melhores do mercado, apesar da grande concorrência. Crescíamos, assim, a uma
ordem de 30% ao ano.
Mas não eram apenas nossos contratos que engordavam nossa conta-corrente, já que quanto mais contratos
a empresa tivesse em carteira, maiores eram as possibilidades de os mensageiros “casarem” serviços, baseando sua logística na parceria empresa-mensageiroempresa. O mercado estava cada vez mais aquecido.
Logo depois do Plano Real, a economia passou a crescer
no nosso ritmo. Quase todos os bancos tinham mensageiros motociclistas e nós tínhamos quase todos os bancos como clientes, e a Ilha, na rua Líbero Badaró, onde
estacionávamos as motos, estava cada vez mais abarrotada de motoqueiros. Chegou um dia que ficou impossível estacionar ali, nem os pedestres conseguiam passar.
Veio então a Associação Viva o Centro e acabou com ela,
mas isto foi mais para a frente.
Por enquanto, quero me concentrar num recente “encontro” com alguns amigos motoqueiros daqueles tempos.
Tivemos um longo papo, trazendo alguns aspectos do
nosso dia a dia na Moto Service e na categoria. Tentamos
principalmente descobrir a razão do sucesso e do fracasso do modelo de trabalho que montamos ali.
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Não digo que foi um papo muito feliz, já que foi mais
para saudosista. Mas creio que, para além de tudo que
está sendo dito aqui, ao reavivarmos nossas memórias,
menos que simples lembranças, o que descobriremos é
a possibilidade da construção do nosso passado, que é o
que interessa aqui. E ele é verdadeiro porque é nosso.
O que notamos então foi que não só se destruiu com o
tempo aquele modelo de trabalho, criando espaço para
o surgimento do motoboy, mas a própria possibilidade de
se inventar outra maneira de organização do trabalho, o
negócio de entregas rápidas. Assim, escrevi essa narrativa abaixo, em que conto como eram as coisas por lá:
Cláudio, Leonel, Boy e Paulo Pequim
“Eram várias, R1, CBR, Hornet, Bandit etc...”
Começa aí, Leonel...
— Xii mano... Não sei... Num lembro bem, mas esse lance não
foi logo depois que mudamos para a avenida Santos Dumont
(um dos locais onde a Moto Service operou entre 94 e 96)?!
Lembro que comprei minha primeira CBR 600cc naquela
época, paguei ela à vista e foi logo depois que saímos lá do
sobradão (que ficava na rua Tomaz de Lima) lá na Liberdade.
— Ah sim, eu lembro, fazia meus trampos e recolhia os malotes do Sudameris e nos cruzávamos lá por Santo Amaro. Diz
o Pequim.
— Eu tava nessa época no contrato do personal banking, aí
dava pra fazer meus encaixes. Claro que não ganhava como
o Cláudio. Depois ele pegou a dele também, lembra, uma R1
azul!
— Feita pra nós, né? Cada máquina... Mas não era do mesmo
ano, a minha era zerada. Só isso já contava tudo, depois a
empresa mudou ali pra Ponte Pequena. Lá no sobradão tinha
ficado muito pequeno, e depois fomos para o prédio novo, foi
quando o Boy montou a oficina no fundo...
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— Tinha ficado pequeno mesmo, Leonel. Diz rapidamente o
Boy. Não ficamos nem dois anos e mudamos de novo.
— No começo fomos só eu e Cláudio que pegamos aquelas
motos. Que máquinas! Depois um foi comprando, outro também, e até o Augusto foi lá e pegou uma. Logo desistiu e pulou
pra uma Shadow 1.200cc metalizada, era mais a cara dele,
não? (O outro sócio da empresa chamava-se Augusto – mas
apesar dos nomes, os sócios não eram irmãos.)
— E aquela oitocentas, Suzuki, aquela que você chegou por
lá uma vez, era sua?
— Não, eu disse, era de um amigo. (Depois este meu amigo
viria a falecer e seu pai vendeu a moto, que ficara na garagem
do prédio estacionada. Ele morrera dormindo e se chamava
André – isso eu não digo a eles.)
O Boy foi por esse tempo o mecânico da empresa. Ele tinha
parado de trabalhar na rua e montou a oficina que atendia
aos motoqueiros da empresa. Como a empresa cresceu, foi
preciso que montássemos uma oficina que atendesse exclusivamente aos nossos motociclistas. Claro que a Augusta e
o Augusto deram uma força e ele foi fazer alguns cursos de
mecânicos. Nessa época, já eram mais de cem caras trabalhando e não podíamos depender de serviços externos. Então
a manutenção era feita na própria empresa.
— Cheguei a ter várias motos– disse o Leonel. – Uma para o
trabalho, outra pro lazer, e para pegarmos o contrato da distribuição do Sudameris, tirei um Ford KA zero, naquele pacote
que fizemos com a revendedora. O pátio ficou lotado de KA, foi
quando eles lançaram esse carro. Como a empresa ficava na
Armênia, dávamos saída direto para a zona sul, norte, leste e
oeste. Tudo muito rápido.
— Quando a gente começou...
— Lá no centro velho?
— Sim. A empresa ficava numas salinhas no andar de um
prédio. Nossas motos a gente largava no canteiro central, na
Consolação.
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— Putz! Ali, marcou, levavam sua moto...
— Agora, quantos já éramos... No começo, eu lembro, eram uns
vinte ou trinta caras, aí teve o Plano Collor, lembram? Quem
ficou daquela primeira turma? O governo tomou o dinheiro de
todo mundo, não teve jeito, foi uma quebradeira, e um monte
de motoqueiro foi pra rua, mas foi bom, não é Leonel, pelo
menos deu uma peneirada.
— É, tinha muito moleque no começo...
— A Augusta, para não fechar as portas, chamou a gente e
jogou em pratos limpos. Então, a gente concordou que os caras
que fossem solteiros deveriam ir embora... E você, Silveirinha?
— Ah... escapei. Meu filho tinha acabado de nascer. Pelo
menos, depois disso não paramos mais de crescer. Já faz
tempo... hein, que corte! Teve sorte quem era casado, lembra?
“Era maldito, os motoqueiros não tinham essa imagem que têm
hoje!”, disse-me em voz baixa o Pequim, que até agora não
tinha falado quase nada.
— Foi o jeito que a empresa encontrou pra não fechar, a economia esfriou geral – falei.
— Mas também para não pôr nenhum pai de família na rua
– respondeu Leonel. – Os que eram solteiros, depois da crise
voltaram... Alguns.
— Quando veio o Plano Real – entrei no assunto – eu tava
de bem, tinha meus contratos e até virava noite cobrindo os
malotes, era muita hora extra, fora as ordens de serviços, e
também não podemos esquecer das entregas de fim de ano...
— Nossa! Foi com essa grana que juntei que comprei aquela
moto. A gente se pergunta agora, o que aconteceu? Como foi
que afundamos?
— Fiz meu investimento a tempo – disse o Pequim. – Ainda
bem, pra mim maluco não tem vez, quem ganhou, ganhou, eu
tirei muito, eu, o Cláudio, Leonel, o Boy, o Michel, o Mineiro,
essa é a diferença... Agora esses caras acabaram com o mercado, foi isso sim, que fizeram...
262
Coletivo canal*MOTOBOY
— Quem trampava direito tinha vez, era segurar os contratinhos, dar um trampo – disse o Cláudio.
— De boa, sem querer cortar sua fala. Leonel, fala aí, de
semana a gente rodava até as horas com as 125 (cilindradas), eu tinha uma MLzinha nessa época, massa, e nos fins
de semana montávamos nas motos e pegávamos a estrada.
Cara, colava um monte de motoqueiro no pedaço, vinha de
Itaquera, tinha cara que vinha de São Matheus, COHAB II e
até Parque Novo Mundo, e naquele baita sol de macacão de
couro, e custavam uma grana estes equipamentos... Jogávamos em cima e íamos até a praia, a gente descia ziquezagueando pela Imigrantes, ninguém pegava, mas também
caíamos pra outros lados. Saíamos dando uns rolés fortes,
acelerando em umas cidadezinhas que nunca ninguém ouviu
falar aí pelo interior, pegávamos a Rodovia Bandeirantes,
Anhanguera e sumíamos, a gente não era de empinar as
motos... Na verdade, o que interessava eram as melhores
pistas, aquele tapete, e as curvas, claro, mas era tudo família, ninguém tava lá pra zoar ninguém, era sentir a velocidade,
adrenalina a mil, mas também tinham as crianças em casa,
eu também dava meus rolés com meus moleques pelo bairro.
O Cláudio não... ah, esse sempre foi mulherengo, andava com
as minas na garupa...
Vi que este papo duraria horas, então, puxei novamente o
assunto.
— Agora, e aquela nossa ideia de nos associarmos à empresa,
lembram?
— Foi... Confesso que até hoje não entendi muito bem como
foi aquilo tudo – respondeu Silveirinha.
Na verdade, tudo começou quando a Moto Service ainda era
na avenida Santos Dumont. Como se sabe, o custo principal
de qualquer empresa de entregas rápidas é a folha de pessoal.
E para manter a empresa competitiva, estes custos precisam
ser muito bem controlados. No entanto, existem outras formas
de organização do empreendimento. Exemplo claro disso são
as cooperativas. Nelas, os custos com a folhas são reduzidos
Neka
263
por que, em tese, as pessoas que operam o serviço não são
contratadas, mas cooperados autônomos, sem quaisquer vínculos empregatícios.
Nesse sentido, dificilmente uma empresa que contrata e
registra seus motociclistas concorre em pé de igualdade com
estas cooperativas, já que elas podem oferecer um preço
bem menor.
Até 1994, poucas empresas concorriam no espaço mais
fechado dos contratos com bancos e multinacionais. Estas
instituições solicitavam uma contrapartida à contratação de
terceiros, como já discutimos antes.
No entanto, as coopergatos13 começaram a penetrar nesse
espaço e tomar os contratos das empresas do setor que os
detinham. Obviamente, não em pé de igualdade. Por outro
lado, a pouca - ou nenhuma - fiscalização sobre as pequenas
empresas de entregas rápidas criou a figura fictícia do motoboy esporádico. Como se tratavam de pequenas empresas
familiares, ou às vezes de algum motoqueiro que se aventurava a virar empresário, eles simplesmente colocavam o preço
que bem entendiam, para atrair a clientela, desconsiderando
qualquer parâmetro, mesmo por que estes motoboys nunca
eram registrados e não apresentavam custos diretos. E mais
uma vez, não dava para concorrer com estes preços.
Estávamos numa situação muito delicada. As grandes empresas do setor precisavam se mobilizar. Mas não ache o leitor
que estas informações estavam na ordem do dia. Muitos
empresários não tinham nenhuma consciência do que estava
acontecendo, e muito menos a maioria dos mensageiros -poucos discutiam isto. Porém, e aqui quero que mais uma vez
mostrar a diferença, na Moto Service, esta era uma discussão
corrente. Tanto que um dia solicitei uma reunião à diretoria e
apresentei algumas propostas discutidas pelos mensageiros,
para avaliação da empresa. Estávamos interessados em che-
13 Gíria que designa as cooperativas de fachada, que se utilizam do estatuto
de cooperativa para burlar a fiscalização e não pagar os direitos trabalhistas de
seus funcionários.
264
Coletivo canal*MOTOBOY
gar a uma solução juntos, antes que o cerco se fechasse sobre
a empresa. Uma solução que nos colocasse em um patamar
que não fosse alcançado por nenhuma outra empresa. Que em
vez de enxugarmos os quadros, como era a ameaça que começava a fazer sombra no batente de nossa porta, acolhêssemos
aqueles motoqueiros que agora entravam no mercado e os
agenciássemos. Mas o que foi feito?
Para ter uma ideia do que acontecia naquele tempo é preciso
conhecer a empresa por dentro e um dos motoqueiros que
melhor representava este espírito era o Leonel. Este cara era
mensageiro motociclista desde o tempo que tudo começou,
lá atrás, em meados dos anos 1980. Hoje ele tem seu próprio
negócio, mexe com caçambas de entulhos, trabalha com seu
caminhão e os filhos já estão grandes. Aprendemos muito com
ele, que era sempre aberto e não puxava o saco. Mostrava
ter consciência de sua autonomia e capacidade de trabalho.
Daqueles motociclistas que conheci quando entrei na Moto
Service em 1988, era o que ganhava mais por ano! Além dele,
trabalhavam na empresa seus irmãos, Michel e Armando, e
Edvaldo, seu cunhado. Na verdade, todos que trabalhavam
na Moto Service eram gente boa. Assim como eu, a maioria
da galera fora apresentada. Para trabalhar lá, então, se o
cara pisava na bola, a chefia primeiro chamava quem havia
apresentado o cara e dava um toque. Se o cara continuasse
no erro, era dispensado. Era uma técnica simples de convívio social, que os antigos motoqueiros, que faziam parte de
alguns motoclubes, implantaram na empresa. Naquele tempo,
nossa opinião era levada em conta, tínhamos uma boa relação
com a patroa e éramos sempre consultados. Sabíamos que
ela sempre nos ouvia antes de tomar alguma decisãoA gente
se reunia e discutia o que dizer. E como ela sempre ouvia a
opinião do Leonel, jogávamos nossas demandas pra ele mostrando as vantagens da empresa estar ao nosso lado. Tanto
que o Boy, o Leonel e os outros caras da velha guarda tinham
um princípio que era muito respeitado, que herdamos dos primeiros motoqueiros formadores da nossa categoria: antes de
tomarmos qualquer serviço, devíamos calcular os custos, as
despesas com a moto. Também colocávamos o valor da mão
Neka
265
de obra e só chegávamos ao preço final do serviço. Acertado o
preço, o o trabalho era aceito e feito com eficiência; não eram
esquecidos os desgastes das peças e a alta dos combustíveis, que a toda hora comiam o ganho do motoqueiro. Claro
que esta era um tipo de mentalidade ligada à constante alta
inflacionária. Como a cada dia os preços estavam os olhos da
cara, tínhamos que estar atentos, e a reposição dos preços era
diária. Coisas assim, que foram esquecidas, destruíram nossa
categoria por dentro. Hoje vemos que os motociclistas já não
sabem fazer isso e, exatamente por esse motivo, qualquer um
que entra, vai dando o preço que quer. Hoje quase pagamos
pra trabalhar. Entendo até mesmo a razão da raiva de alguns
velhos companheiros.
— Tão ferrando com própria vida - diz Silveirinha, que hoje tem
um bar e faz pinta de aposentado.
— Por isto está uma lástima, “tudo cabaço” - diz Cláudio,
ainda irado. - Pode dizer aí, Eliezer,, quando fizemos a categoria a patroa chamava: “E aí, pessoal, vamos rever os contratos,
chegar a um preço melhor, me passem seus custos (calculávamos), vamos negociar com o cliente.” Era nóis...
— Nós tínhamos uma enorme autonomia, e fazíamos jus a ela.
Os motociclistas faziam parte da vida da empresa - digo.
— E hoje - diz o Leonel -, quem desses caras que estão aí já
viu um contrato?
— E quando alguém se quebrava? – corta o Pequim. - Juntávamos e dávamos uma força, ninguém ficava descoberto e a
empresa ajudava se a coisa apertava quando roubavam uma
moto, ou quando o cara se quebrava e tinha que passar uns
meses em casa...
— Os brações14 que entravam na empresa não duravam, se
corriam com a gente, logo estavam montados em uma moto
nova, saíam do aluguel, casavam e aparecia de carro novo.
Quem acredita que o João Rosa sustentava duas mulheres...
14 Motociclista inexperiente.
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Coletivo canal*MOTOBOY
(risos). Este entendia do assunto quando era motoqueiro! - diz
Silveirinha, tirando uma.
— Não zoa o cara. Se liga aí... Se o cara abraçava seu contratinho, acordava cedo, montávamos um bom esquema pro cara.
Aprendia a negociar, senão era paulera, e a Ivani não passava o
serviço numa segunda chamada - completou o Paulo Pequim.
— O Cláudio, era só na manha do gato, debaixo do braço a pastinha zipada cheia de O.S.s e outras entregas, no baú, sempre
uns malotinhos. Os clientes dele eram os melhores, podia
chover ou fazer sol, o moleque arrebentava de comandas no
fim do mês.
Neka
267
quer reivindicação, e sim para obter uma resposta direta de
um projeto que eu levara a ela e que vínhamos discutindo há
meses. O Leonel, que subira na frente, veio já com a resposta:
— Ela não quer outra reunião, eles fecharam com os caras
do LevEntrega. A coisa é bem maior, todas as empresas do
setor vão entrar nessa proposta, e a Moto Serviçe não tem
como ficar de fora...
Balancei a cabeça, não acreditando no que ouvia. Apesar de
tudo, o Paulo Pequim, que não via com muito agrado esse
lance de participação no lucro da empresa, também se sentiu
desesperançoso. Todos nos retiramos.
Cumprimentei todos na hora de ir embora naquele dia, quando
paramos para trocar uma ideia e relembrar os velhos tempos
em que ganhávamos muito dinheiro e éramos verdadeiros
profissionais.
Ela pedira um tempo. Dissera-nos que voltássemos a procurála em janeiro, após as entregas de Natal. Marcamos outra vez
na oficina do Boy. Discutimos mais uma vez sobre essa possibilidade de a empresa abrir o capital. Passou o fim do ano.
Nós não achávamos que os malotes e os contratos caiam do
céu! Sabíamos como era difícil trazer um novo contrato para
a empresa. Eles sabiam que davam duro, “era tudo responsa”,
e que parte daquele sucesso devia à nossa participação nos
rumos da empresa.
Leonel também balançou a cabeça e disse:
— Quando tinha, era um ou outro que não dava valor. Pensavam sozinhos, perdiam o bonde, atrasavam o malote, queimavam o fio com o cliente, aí dançavam... A Ivani deixava os caras
a ver navios - lembrou o Leonel.
Certa vez subimos eu, o Leonel, o Paulo Pequim, o Armando, o
Boy e o Cláudio até a sala da chefia.
A Augusta sempre perguntava: “Como estão vocês, e os clientes?” O Augusto, o outro sócio da empresa, cuidava mais da
logística e convivia mais com a gente, deixando as decisões
com a Augusta. “Satisfeitos? Vamos lá...”
Sempre tratávamos diretamente com ela. Algumas vezes,
quando estava para estourar uma greve, quando os motoqueiros faziam assembleia lá na Ilha, éramos nós que levávamos
as reivindicações. Naquele dia ela não teve coragem de nos
atender, mas nós também não estávamos ali para trazer qual-
— Deixa’quéto. Vamos tocar o barco, não há nada a fazer, os
caras são fortes pra caramba. Eles têm até avião!
Na verdade, eles não tinham. Descobrimos mais tarde. Foi
tudo uma grande jogada de marketing. O tal LevEntrega se
espalhou como uma febre, e quase todas as empresas do
setor passaram a trabalhar com esta logística.
O cara que criou o LevEntrega era muito ligado aos transporte
aéreos e tentava implantar um sistema de porta a porta no
Brasil, se utilizando de uma plataforma baseada nas empresas de entregas rápidas. A ideia dele era criar uma só empresa
a partir de uma associação entre as empresas do segmento
de motos com as de cargas, numa espécie de novo Correio.
Ficamos em silêncio e descemos a escada de volta ao refeitório, onde nossas marmitas esquentavam. Os caras pálidas,
engravatados, dariam a logística. A gente levaria e entregaria
as encomendas pra onde desse ou fosse, pensei.
De certa forma, esta fora uma tentativa dos empresários de
organizar o setor, uma vez que não havia como controlar os
preços e evitar a concorrência desleal. Mas as coisas não são
tão simples assim. Eles tinham culpa nessa história:
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Coletivo canal*MOTOBOY
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Coletivo canal*MOTOBOY
Um dia apareceu por lá um sujeito com cara de bom amigo.
Brasília velha, batendo as latas. Pegou dez contos de alguém
para comprar um saco de gasolina e voltou segurando as calças. Depois que botou a gasosa, ele subiu a ladeira de volta de
marcha a ré.
Nós estávamos sentados no pé das escadas, eu, o The Flash,
que era conhecido assim por que cruzava toda a cidade a 10
km/h, e o Flávio Silveira, que já naquela época chamávamos
de Silveirinha. Sem pedir licença, ele passou por nós. Somos
testemunhas do dia que a figura do Sr. Antonio Brilhante colou
na nossa categoria. Primeiro, ele foi lá Moto Service, quando
era no sobradão da rua Tomas de Lima, na Liberdade, depois
abriu uma porta de escritório na Sé, para funcionar a sede
do sindicato de fachada. Ninguém foi com a cara daquele
Brilhante.
Neka
271
empresários confiaram no Brilhante. “Alguém convidou o Brilhante?”, perguntaram, um dia. Não, ninguém tinha convidado.
Mas ele chegou no dia em que as empresas não podiam mais
depender dos insignificantes reajustes salariais dos motoristas de ônibus da capital. Nossos contratos estavam vinculados à Convenção Coletiva deles, para fazer os reajustes dos
nossos contratos. Daí que, para os empresários do segmento
de motofrete darem uma mãozinha ao Brilhante, foram dois
pulos. De outra forma, ele nunca teria aberto o Sindicato dos
Mensageiros Motociclistas. Lembro até o dia em que estávamos atrás do balcão, aguardando o horário pra fazer os malotes do Banco Nacional, e a Augusta saiu da sala dela com o fax
na mão, que acabara de receber:
— “Brilhante!” - disse ela, em voz alta - Esse Brilhante é
demais, conseguiu!
Na Liberdade, a gente se reunia na cozinha e ficava se perguntando qual era a dele.
O tal fax era uma cópia estatutária da fundação do Sindicato
dos Mensageiros, com registro em algum cartório na capital.
Um tempo depois de ter montado um escritório na Sé, disse
que era já o nosso sindicato. O mundo é realmente cheio de
espertalhão. O Brilhante é deste mundo. Fomos tirar satisfação com a dona da empresa. Ela riu e disse:
A questão é que quando se coloca a raposa para tomar conta
do galinheiro sempre dá nisso. O tempo foi passando, e em vez
de o sindicato ser uma instituição de fiscalização e defesa
dos nossos interesses, para coibir o abuso das empresas que
abriam a cada dia sem manutenção dos registros dos funcionários, era mais um aparelho de subordinação e chantagem,
ao qual aqueles que “quisessem” poderiam se associar, sem
esperar nada em troca. Os que “não quisessem”, tudo bem, o
sindicato estava lá para isto, ou seja, para receber a propina,
não importava de onde viesse.
— Não se preocupem. Isso pode até dar certo, ele está só
querendo ajudar. Vocês deviam ir lá, ele foi do sindicato dos
taxistas, tem experiência, e agora (que correram com ele de
lá) ele percebeu que vocês tão formando uma nova categoria e
que alguém precisa “defender” vocês.
Nessa época éramos pouco mais de 5 mil motoqueiros, todos
registrados no Sindicato dos Condutores de São Paulo. Não
tínhamos com o quê nos preocupar. Não parecia que o cara
de tiozão metido a motoqueiro, com um colete velho de couro
e bigode torto, querendo parecer ser de algum motoclube,
fosse um dia dar problema pra cima dos motoqueiros. Não era
motoqueiro, logo se via, pois nunca tinha subido numa moto.
Com os combustíveis comendo nosso salário todos os dias,
a inflação acabando com os contratos e a necessidade de
termos reajustes mais adequados à nossa realidade, os
Mas era tarde. Os empresários já haviam criado a cobra que
os comeria.
Assim, o tal LevEntrega se tornara apenas mais um paliativo
inventado no meio empresarial para não enxergar a própria
miopia. A ruína da categoria já estava à vista, aquele modelo
desapareceria e os motoboys já começavam a tomar conta do
mercado. O preço dos serviços despencava pela tabela.
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Coletivo canal*MOTOBOY
Nós mesmos, mensageiros e motoqueiros, acabamos com
a LevEntrega. Afinal, ninguém ali levaria ou entregaria uma
mercadoria ao preço de R$3,00. A ideia deles era trabalhar
no atacado, competindo com os Correios, e tentando baixar
os custos a partir de uma estreita logística montada a partir
da rede de empresas associadas. Mas a tabela de preço deles
era fora da realidade dos mensageiros motociclistas. Por isto,
deixávamos a encomenda no balcão, que no mesmo tempo
poderíamos fazer dos nossos clientes ao preço da comanda
de R$ 26,00!
Um dia, enquanto participava de um congresso, tive o prazer
de conhecer o cara que havia inventado o LevEntrega. Seu
nome era Ubira, e falamos de nossas tentativas de modificar
a organização do trabalho de entregas rápidas. Ele me pareceu um cara bacana. Sem vencedores, os serviços de entregas seriam cada vez mais desvalorizados e todos perderiam.
Mesmo as empresas que controlavam o mercado de entregas
rápidas naquele período - como a Moto Service, a Moto Forte
e a Força Tarefa, entre outras – desapareceriam. Falei para o
Ubira:
— Velho, sinto te dizer, mas você se equivocou quando criou
seu negócio. Mesmo por que, também sonhamos um dia em
expandir a nossa empresa. Mas diferente de você, tínhamos
a consciência de que as motocicletas pertenciam aos mensageiros, e creio que foi aí que você se enganou: ao julgar que
os patrões mandavam na gente. Ninguém te contou que aqui
nesse setor as motos são dos motociclistas, e que quando eles
se organizam eles podem tudo? - Ele fez cara de branco. Não
me deu uma resposta que pudesse acalentar seu desgosto,
disse que deixara de ganhar 2 milhões de reais.
Todas estas pessoas e empresas estão hoje sumidas do
mapa, nós não.
Nós estamos na correria.
O Renato Fofão, só porque eu falava de política enquanto a
gente separava os roteiros e dividia o bolo de entregas, não
gostava de mim. O sonho do Paulo Pequim não era um dia a
Neka
273
gente ter nosso sindicato, nós sabíamos que ninguém faltaria ao trabalho pra correr atrás de sindicato, só se o cara não
fosse motoqueiro. Ninguém mais deu muita atenção, a coisa
correu e cada um foi para um lado. O Leonel foi um grande
amigo e companheiro. Não preciso dizer mais nada, vocês
devem imaginá-lo por si. O Cláudio avançou um tempo ainda,
não fosse o alto custo que era para manter sua nova Speed
Kawazaki ele teria ido longe, mas perdemos os contratos, e
não tive mais notícia dele. Aquele que apelidamos de The Flash
ainda trabalhou por um bom tempo, creio, se não foi o primeiro
mensageiro, deve ter sido um dos, que se aposentou e, para
nossa sorte, deixou seu filho, ótimo motociclista, em seu lugar.
Às vezes a gente leva bronca, outras a gente perdoa e quer
ser perdoado, mas não guardo mágoas da Augusta e do velho
Augusto, que eram sócios na Moto Service. Hoje todos devem
rodar aí pela cidade, vendo como nossa categoria cresceu.
— O cara veio mansinho, vinha meio sapeando, passa pelo bar,
mas a gente tá nas mesas, alguém diz “vem que tamo facinho”... Ê esse Brilhante, mêu, quê era aquilo... era foda. “Sorriso gordo de baiano safado”, mas aí, o lance é que quem não
fez nada fomos nós – disse o Pequim. Quem ia faltar ao trampo
pra correr atrás de sindicato? Aqui é correria, e se você cola
por aqui você ainda pode ouvir: “O Grecco mora em Diadema,
encaixa ele, pede pra ele fazer esse malote!” Víxi, a Ivani era
f... Era ela quem controlava os motoqueiros, ela gritava o dia
todo: “Pequim (ela chamava da janela) vai até Paulista, deixa
seu malote do BCN lá com o Eliézer, ele tava cobrindo a Vilma
(motomina, grande amiga e confidente), pega os malotes dela
e depois passa no Banco América do Sul, que ela te passa
o serviço, faz o roteiro dela da tarde, vai, que o Eliezér tá lá
embaixo na oficina do Boy esperando.”
— E aí, Manuel, me diz um velho camarada, quem decorava
o guia dominava o barato, fala aí, Leonel, cada um na sua, e
todos na dele, o mapa da cidade na cabeça, ê pois, as motos
andavam, viu... Ziííuuuuumnnnnn... Os escapamentos...
274
Coletivo canal*MOTOBOY
XIX
Em outubro de 1999, numa tarde abafada e com muito
trânsito, eu tomaria uma decisão que mudaria totalmente minha vida. Foi muito difícil encontrar forças
para descrever as razões que me fizeram parar, naquela
tarde, e pôr fim a uma agonia que havia me tomado há
alguns meses. Havia um tempo eu vivia atormentado por
um dilema. Tinha que tomar uma decisão de vida, que
implicaria, por um lado, responder a algumas questões
que eu levantava em relação à tentativa da prefeitura
de regulamentar a categoria dos motoboys, e por outro,
como deveria me posicionar, tendo consciência dos problemas em que me meteria ao me envolver com estas
questões. Será que eu realmente devia defendê-las?
Não sabia se era isto que eu queria como projeto de vida,
me envolver com política.
A minha posição como homem representava uma postura que significava assumir diante do mundo uma responsabilidade na qual eu não sabia se estava preparado para vivê-la. Daí que, ao me encontrar diante dessa
porta, se deveria abri-la ou não caberia a mim, mas
como dizem os filósofos, esta condição de possibilidade
já estava dada, e eu percebi que não teria escolha, na
medida, que eu já me encontrava diante dela. Quando
nos deparamos com um problema assim, geralmente
pensamos na família, em nossos filhos e, principalmente, no amor que nos une. Por este motivo, finquei
pé e deixei que tudo se resolvesse por si. Mas não foi
possível. Na verdade, foi impossível ficar indiferente.
Para que vocês possam compreender meu dilema, teremos que fazer um pequeno recuo no tempo, mais precisamente até o início de 1996, quando eu me preparava
para prestar o vestibular.
Neka
275
Como ao retonrar para a Moto Service havia escolhido
um contrato que me proporcionasse tempo para estudar, trabalhei para escritório da Bracel, uma multinacional francesa. Claro que era um contrato em que poucos desejariam trabalhar, uma vez que se ficava preso
dentro da empresa o dia todo. Para mim era perfeito,
pois passei a levar meus livros para lá e pude me concentrar nos estudos. Ao escolher aquele contrato na
Bracel, sabia de antemão que não poderia fazer encaixes e serviços de outros clientes. Assim, meu ganho
estaria limitado apenas àquele contrato. Porém, lá, eu
saía no máximo duas vezes ao dia, um banco à tarde ou
a um cartório qualquer pela manhã. Era um contrato que
nenhum motoqueiro queria. Mas aquele contrato se tornaria minha ponte para a universidade. Lá, éramos eu,
duas secretárias, uma copeira e um segurança. Uma
das secretárias era bilíngue, a copeira cuidava de tudo
e o segurança passava o dia dormindo na garagem da
frente. Ou seja, era a paz necessária para cair de cara
nos estudos. A empresa ficava numa casa alugada no
alto da Lapa, e os diretores ficavam mais na França do
que no Brasil. Assim, quando decidi me matricular no
cursinho pré-vestibular, encontrei naquelas moças um
apoio inesperado. Tive muita sorte, as três não só me
ajudaram a estudar as apostilas como me tratavam bem
e em dias de muito calor deixavam que eu entrasse na
piscina, nos fundos, completamente nu.
Para mim, era um investimento. Não podia pensar em
dinheiro em curto prazo. Tive que me esforçar muito
para ganhar ritmo de estudo e passar no vestibular. Fui
recompensado, enfim, pelo esforço. Após dois anos,
acabei entrando na USP. Minha primeira tentativa foi
frustrada. Fiz minha inscrição no curso de cinema e,
por pouco, não passei. Mas era muito difícil, e se eu
276
Coletivo canal*MOTOBOY
quisesse tentar novamente teria que dobrar meu horário
de estudo, sem a garantia de passar. O curso de cinema
tinha apenas 15 vagas e era ministrado durante o dia. E
eu viveria do quê? Enfim descobri minha vocação para a
filosofia, então prestei vestibular novamente. Em 1997,
entrei na Universidade de São Paulo. Confesso que tive
um baita apoio, tanto da família, que compreendeu
minha escolha e não pôde mais contar com o alto salário que recebia quando tinha vários contratos na Moto
Service, tanto daquelas meninas na Bracel, que foram
um estímulo a mais para que eu prosseguisse.
Incentivado pela ideia de que eu podia ir aonde quisesse,
e já estudando à noite na faculdade, saí da Bracel e fui
para o personal banking do Bank of Boston. Achei que
era hora de ganhar dinheiro para me manter na faculdade e bancar os custos da carreira de fotógrafa que
minha mulher seguia.
Por isso, neste novo posto passei a encaixar serviços.
Além de fazer todas as entregas e atender aos pedidos
dos gerentes, por fora eu tinha um malotinho do Banco
Sudameris. Quando sobrava um tempo, fazia várias
comandas de O.S.15 que a Moto Service me passava. No
final de 1998, meu casamento estava quase terminando.
Aproveitei para mudar de ares e fui morar sozinho - aluguei um novo apartamento nos Jardins. Estava tudo em
ordem, exceto pelos meus estudos na USP, que eram
muito puxados. Como eu havia assumido muitas dívidas,
cada vez mais eu tinha que fazer serviços por fora para
bancar o padrão da minha nova vida, o que me deixava
menos tempo pra estudar. Até que um dia a casa caiu
no Boston. A Cristina, que me passava os serviços da
gerência, flagrou uma Ordem de Serviço de outro banco
na fatura que a Moto Service mandara. Pegou muito
15 (O.S.) Ordem de Serviço.
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mal, foi uma mancada da empresa, pois nunca aquela
comanda poderia aparecer junto às faturas do Boston.
Assumi a bronca da firma, apesar do erro deles, e fui trocado por outro mensageiro.
Dali em diante, até encerrar meu trabalho na Moto
Service, passei por dezenas outras empresas-clientes.
No dia dos Motociclistas, em 27 de julho de 1999, eu me
desliguei definitivamente da Moto Service. Nesse período, em que eu dividia meu tempo entre as correrias
do dia a dia de mensageiro e estudava à noite na USP,
passei a questionar todas as condições a que os motoqueiros estavam submetidos. Claro que eu era da velha
guarda e tinha o maior respeito entre os motoqueiros,
e a empresa sempre pode contar comigo. Mas as condições do mercado de entregas rápidas a cada dia pioravam e a concorrência se tornava cada vez mais feroz.
Perdíamos quase todo dia um novo contrato, e as coopergatos deslavadamente pagavam propina às chefias
dos bancos, que passaram a ignorar se os motoqueiros
eram ou não registrados, retirando nossos contratos e
oferecendo as estas pseudocooperativas.
Algumas delas faziam leasing para adquirir lotes imensos de motos com a condição de colocar no mercado
centenas de motociclistas sem experiência e ganhando
salário. Isso barateava absurdamente os custos operacionais, pois, depois de algum tempo, eles se desfaziam
dos contratos de leasing e as motos ficavam destruídas,
sem qualquer manutenção. Sem contar as inúmeras
mortes causadas por este tipo de exploração do trabalho dos motociclistas, como tão bem comprovou a
experiência do Marcelo Veronez, Poeta dos Motoboys,
em sua narrativa. Contratando assim trabalhadores
motociclistas para colocar nos mercado, estes empresários não só aumentavam as altas margens de lucros
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à nossa custa, como não se responsabilizavam pelas
ações destes motociclistas sem experiência no trânsito. Morriam mais e mais motoboys e a situação piorava com a falta de respeito e de qualquer ética motociclística. Discutíamos cada vez mais dentro da Moto
Service qual seria a solução, mas ninguém apontava
uma. Atrevo-me a dizer aqui que quando a Moto Service
optara pela parceria com a LevEntrega perdera uma
chance extraordinária de encontrar uma solução corajosa e, juntamente com seus profissionais, apontar
uma saída. Como o leitor pode ter percebido, nas conversas com os motoqueiros, na narrativa anterior, havia
um forte potencial dentro da empresa para enfrentarmos juntos qualquer crise que viesse - e vencermos.
Nunca saberemos o que poderia ter acontecido se houvesse tempo de amadurecimento daquelas discussões
que iniciamos lá atrás. E se, antes de aparecer aquele
empresário com uma proposta da LevEntrega, talvez a
própria crise nos levasse a uma união em torno de um
projeto? Era isto, pelo menos, que estava se delineando
antes que da chegada dele. Mas nunca saberemos.
Há algo, portanto, que poderíamos saber: a partir da
necessidade de repensar o modelo de negócios do segmento de entregas rápidas, buscamos talvez encontrar
outra base jurídica e vislumbramos uma nova lógica de
crescimento, ou seja, criamos um novo modelo. Para isso,
a solução que apontávamos naquelas discussões era que
devíamos buscar outra forma de contratação: em vez de
torná-los empregados, torná-los profissionais com autonomia, e para isto devíamos agenciá-los, oferecendo-lhes
suporte e preparando-os para atender à forte demanda
que surgia pelos serviços de motoboy, sem vinculá-los
diretamente à estrutura da empresa, mas passássemos
a representá-los de forma associativa com orientação e
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assessoria aos clientes. Desse modo, eles se tornariam
profissionais liberais. Exigia-se, assim, um compromisso mútuo de crescimento. Achávamos que, partindo
da particularidade da empresa, poderíamos atuar sobre
a totalidade do mercado. Caminho totalmente inverso ao
que foi tentado e não realizado pelos empresários que
idealizaram a LevEntrega, que partira da totalidade para
o particular. Da venda de uma imagem de empresa para o
mercado, que não tinha qualquer base na realidade particular do profissional motociclista. De uma imagem inadequada deste profissional.
Meu pensamento amadureceu com a longa experiência
que tive, principalmente com aqueles motociclistas.
Até hoje eles têm muito a no ensinar, principalmente em
relação à direção defensiva. Conceito tão pouco explorado, que pode salvar a vida de uma motociclista16. Eles
sobreviveriam à carnificina que se tornaria o trânsito da
cidade de São Paulo, nos anos subsequentes. E todos
vivos aí, para contar suas histórias.
Voltando aos números, dos cerca de 3 mil profissionais
motociclistas de quando comecei a trabalhar de moto,
ao chegar o final da década de 1990 este número chegava à estimativa de cerca de 80 a 90 mil motoqueiros
cruzando a cidade diariamente. Para mim, o fato de ter
entrado nesta profissão e ter passado diversos apertos, acidentes, roubo à mão armada e até ficar preso em
escada de incêndio, além de uma enorme quantidade de
experiências felizes, como o prazeroso sentimento de
pilotar uma moto por um dia em algumas cidades vizinhas, para fazer uma entrega, e ainda o fato de algumas
16 Só posteriormente difundido pelo CETET – Centro de Treinamento da
Empresa de Engenharia de Tráfego do Município de São Paulo, este conceito já
era aplicado empiricamente e repassado oralmente pelos antigos mensageiros
motociclistas.
Neka
281
vezes ter ganho muito bem para realizar um trabalho
assim. Fez de mim um defensor irreparável e interlocutor que a categoria não tinha ainda visto em sua história. E digo isto sem modéstia, ao contrário de antes,
hoje não temo mais represálias, os atores sindicais têm
seus papéis bem definidos, e não posso influenciar em
nada mais a direção que eles possam tomar, ainda que
tenha, por conta da história da categoria, se constituído
uma trama de questões que deixamos aqui em aberto,
para ser revelada por um historiador mais autorizado
no futuro. Voltemos ao contexto que me levou ao dilema
aquele dia, de ter que passar para uma perspectiva
comunitária de ação sobre o destino de toda a categoria, deixando de lado uma visão pessoal e pessimista,
em que deixei de acreditar que outros poderiam fazer
aquilo que eu estava destinado a fazer.
XX
O caso do “maníaco do parque”, que em meados dos
anos 1990 havia manchado definitivamente a imagem
da categoria. Fez com que aparecêssemos na mídia sob
esta máscara de marginal - sem rosto. Nem mesmo nos
perguntaram se tínhamos nomes e qual eram nossos
sonhos sob o capacete. Os fatos que vieram a seguir, no
final daquela década, foram a gota d’água.
Depois de um dia seco de inverno, com muita poluição,
ficamos sabendo pelos motoqueiros que moravam na
região leste que na noite anterior, após uma fechada no
trânsito, um motoqueiro irritado com seu dia de trabalho e com a insistência da motorista que dirigia o automóvel em levar adiante a reclamação do motoboy até a
delegacia mais próxima, eles entraram numa discussão
em plena Marginal Tietê.
282
Coletivo canal*MOTOBOY
Após esse incidente, divulgado pela imprensa, o
governador Mario Covas ligou para o prefeito Celso
Pitta pedindo providências contra estes “marginais”.
Imagina se fosse com sua filha, deve ter dito o governador, preocupado com o índice de acidentes e de desrespeito no trânsito. O caso dizia muito sobre a perspectiva da motorista, que se vira sozinha, à noite, em plena
Marginal, cercada por dezenas de motoqueiros com as
caras pretas de poluição. Os motoqueiros, compreendendo a razão do rapaz - que corria o risco de, além de
não ser justamente ressarcido pela barbeiragem da
motorista, ficar sem a moto, quando fosse conversar
com o delegado. Só pediram para que eles se acertassem, e um cheque resolveria tudo. Porém, ela não queria ser contrariada, e em vez de ir lá fazer o B.O., para
que seu seguro cobrisse seu prejuízo, sozinha, chamou
a polícia e disse estar sendo constrangida e correndo
risco de vida. A galera que tinha parado para saber do
caso correu antes da polícia chegar, mas não antes dos
repórteres que noticiaram.
O prefeito chamou o secretário, que solicitou ao diretor
de departamento de trânsito que chamasse os representantes da categoria, os empresários das empresas
de motos (SETCESP), os empresários do setor das montadoras, os presidentes das cooperativas, os comandantes do policiamento de trânsito e o representante
do sindicato dos motociclistas (SIMMESP), no caso,
em pessoa, o Senhor Brilhante. Isso tudo aconteceu
em menos de duas semanas. Eles queriam regulamentar o setor, disseram nossos patrões, quando estiveram
nessa primeira reunião, e falou-se em muitas coisas,
inclusive, em colocar coletes nos motoqueiros e impedir
que motos acima de quatro anos circulassem a trabalho
na cidade. Segundo disseram, fora o próprio Brilhante
Neka
283
que viera com aquelas ideias. O clima esquentou na
Moto Service. Ninguém ali estava interessado em pagar
mais taxas, além dos encargos de IPVA etc.
Ao saberem disso, os motoqueiros se revoltaram. Como
o Brilhante nunca fora motoqueiro, qual era o compromisso dele com a categoria? Nenhum! E foi neste clima
que deixei a Moto Service. Quando pedi a conta desta
vez, eles me mandaram embora, como fizeram com muitos outros que não tinham mais os polpudos contratos
dos bancos. Eles perdiam motoqueiros, clientes e a
cabeça. E foi assim que nós todos começamos a sair, a
colocar em prática os projetos pessoais com o dinheiro
que tínhamos ganho aqueles anos – alguns colocaram
a empresa no pau17, aumentando ainda mais os custos
dela e inviabilizando-a cada vez mais como empresa.
Uma pequena correção: nós vírgula! Eu não tinha nenhum
tostão guardado quando o barco afundou!
Eu estava estudando, bebendo e fumando muito. Nos
finais de semana, em vez de lavar a moto eu saia à noite,
não dormia e já não tinha mais ninguém. Na USP, as coisas começaram a piorar, e piorariam ainda mais com a
decisão que eu tomaria, e enquanto Leonel, Cláudio, Boy,
Pequim, João Rosa, Mineiro, Armando e todos os outros
punham em prática suas ideias e largavam a profissão
de motoqueiro eu continuava ali no batente. E pior, ao
sair da Moto Service, tive que virar motoboy.
A nova empresa em que comecei a trabalhar era a Alta
Express, na Radial Leste, o maior corredor de motociclistas da América Latina. Lamentavelmente, o cara que
dirigia a empresa era espertalhão, ele chegou tarde ao
mercado, aprendeu rápido como as empresas de motoboy cresciam e se deu bem à custa dos motoboys. Por
17 Foram processados na Justiça Trabalhista.
284
Coletivo canal*MOTOBOY
um lado, eu tinha que fingir que gostava do marketing
deles. Por outro, eu odiava cada vez mais toda a situação, a sensação de impotência diante de uma condição
social que só poderia ser vencida pela união dos motoqueiros. Mas qual união? Era bastante difícil organizar
qualquer greve, e numa empresa de motoboy é praticamente impossível!
Certa vez, quando nossos contratos na Moto Service ficaram defasados por conta da inflação, como estávamos há
um tempo sem qualquer reajuste no preço da hora de serviço, voltamos a nos reunir em nosso ponto de encontro
na Ilha, na Líbero Badaró. Sabendo os horários de cada
um, nos encontrávamos lá principalmente à noite. “Hoje a
cobra vai fumar”, pensei. A Ilha aquela noite ficou lotada
de motos, lá foi um ponto de referência pra todos nós,
porque era onde discutíamos abertamente nossas diferenças e semelhanças, com outros motoqueiros, conhecíamos a realidade das empresas. Era onde nos abraçávamos e, no dia seguinte, competíamos entre nós. Fazia
um tempo que os bancos não ajustavam os contratos de
acordo com o aumento dos combustíveis. Organizamos,
então, nossa primeira grande greve, que começaria em 48
horas, caso os sócios da empresa não pressionassem os
bancos. Levamos nossa pauta e a empresa, que era ainda
ali na Liberdade, levou nossa proposta no dia seguinte
aos bancos. Em 24 horas, tivemos os primeiros retornos.
Eles haviam conseguido nosso aumento. A Ilha guarda na
memória outras destas empreitadas. Mas certa ocasião
caímos na besteira de, em vez de mandarmos cinco representantes, como havíamos feito da outra vez, por conta de
terem entrado muito mais motoqueiros na empresa e ficou
uma baita confusão, decidimos todos falar com a Augusta,
e marcamos na noite seguinte uma assembleia com a presença dela. Nessa noite lembro que apareceu por lá também o tal do Brilhante. Nós o tocamos de lá.
Neka
285
Mal chegamos para negociar e ela percebeu nossa fragilidade. Na frente de todos nós, comentou como ajudara
cada um ali:
- Para este eu adiantei o 13º, pra pagar uma dívida.
- Para aquele, as férias pra trocar de moto.
- Para aquele outro, que vai casar...
E assim foi...
Saímos humilhados e sem aumento, mas aprendemos
a lição. Pena que isto só acontecia na Moto Service.
Éramos motoqueiros experientes e podíamos até errar,
porém, aprendíamos rapidinho com os erros cometidos.
Nas outras empresas, os motociclistas tentavam a
mesma sorte, mas não sabiam que quem mandava no
galinheiro era o patrão: cometiam o erro de organizar movimento dentro da empresa, sob as vistas dele.
E pior, marcavam as reuniões em dia de pagamento,
quando todos estavam ali para pegar o salário e loucos pra ir logo para casa. Ou seja, ser patrão de motoboy era mamata. Agora, você quer realmente conhecer
a categoria? Escute essa. Um dia, estou num guichê de
uma repartição e vejo que o carinha na minha frente usa
uma jaqueta da mesma empresa que eu. Pergunto a ele
desde quando estava com a gente, e ele respondeu que
estava na empresa havia cinco meses! Cinco meses?
Fiquei me perguntando em que tipo de acordos aquele
cara estava se envolvendo na empresa para que nós
sequer o conhecêssemos. Como poderíamos organizar
uma categoria onde todos os dias, cada um dos motoqueiros ia para um lado diferente do jogo. De que adianta
trabalharmos “juntos”, se nem nos vemos. Estupefato
com aquela verdade, me dei conta, quase desmaiando
no pé do motoqueiro perto de mim: enquanto na fábrica
os peões tão juntos, almoçam juntos e pensam juntos,
286
Coletivo canal*MOTOBOY
logo, fazem greves juntos, nós simplesmente estamos
fodidos! A lógica do espaço do trabalho do motoboy não
permite que ele se organize! Nunca esta categoria fará
uma greve salarial! (Que pena, jamais saberá o sabor da
vitória, pensei, lembrando as greves dos tempos de bancário.) Compreendem minha agonia agora? Trabalhando
na Alta Express, sem registro em carteira, tendo depressão todos os dias! Eu estava alienado numa lógica terrível de um trabalho em que eu não era mais do que um
subproduto, vendido no mercado por uma merreca, e
poderia morrer a qualquer hora embaixo de um ônibus,
e não deixar absolutamente nada para minha família.
Cansado de tentar me suicidar pelas ruas, aquela tarde,
quando faltavam dois dias para o prefeito assinar o tal
Decreto, a vida me cobrou sua dívida. Saber era saber, e
tinha um preço. Eu sabia que fizera poucas escolhas até
então, e poderia contar na mão quantas foram as decisões que mudaram o rumo da minha vida de fato. Nossas
reais decisões de vida são raras. E ali estava ela, uma
decisão a ser tomada, a porta a ser aberta, que eu haveria de tomar e enfrentar às tramas lançadas por ela para
sempre. Ao trabalhar de moto, pude ver de perto a realidade dos motoboys. Ali, naquele Decreto que o prefeito
assinaria, não havia nada que pudesse salvá-los, senão
enquadrá-los num sistema rígido de regras, que a muito
custo poderiam padronizá-los em uma categoria fictícia,
mas não lhes daria uma nova identidade, não procuraria
sanar suas necessidades nem mesmo consideraria suas
próprias determinações.
Quem foi consultado para que eles lançassem aquele
projeto e o que deveria ser feito para resolver os reais
problemas da categoria? Rodei a cidade aquela manhã
como se fosse um zumbi, não sei quantas entregas fiz,
ou se as fiz.
Neka
287
Eu sei que a ideia estava amadurecida na cabeça, argumento por argumento, que aquele decreto não se sustentava. Havia uma cópia do projeto de lei circulando pelas
empresas. Os diretores nos mostraram e não havia nada
nele que fizesse sentido. Tanto era assim que, passados
dez anos, nada do que era proposto ali se concretizou,
e os motoboys e motogirls resistiram àquele projeto. A
minha ideia naquele momento era escrever a um jornal
e expor os motivos pelos quais o decreto-lei que a prefeitura estava prestes a baixar não tinha fundamento. O
decreto, que era uma necessidade, tornou-se uma obra
de oportunistas, que viram a possibilidade de lucrar com
isto. Muitos empresários vieram “dar seus palpites”, teve
gente querendo que motoboy tivesse taxímetro, e como
eles não conheciam nosso trabalho, basearam-se numa
lei que regulamentara - com sucesso - os táxis na capital,
e eles acreditavam piamente que aquilo seria aplicado à
gente também.
Naquela tarde, eu vinha pela Doutor Arnaldo em direção
à avenida Paulista, onde há uma bifurcação, e eu justamente precisava tomar aquela decisão aquele dia - pois
o tempo estava passando. Se eu mantivesse a esquerda
passaria por baixo do túnel que ia parar na avenida
Paulista. Se escolhesse a direita eu cairia na Consolação.
Meus olhos estavam já totalmente embaçados, então
tomei a decisão, não sei porque virei à esquerda... Saí
na Paulista. Se eu não tivesse optado por esse caminho,
viveria o resto de minha vida sabendo que podia ser diferente, que eu poderia ter me dedicado a escrever.
Parei, então, no estacionamento da rua Padre Manoel ao
lado do restaurante onde tinham algumas mesas absolutamente vazias. Sentei-me numa ao fundo, tirei meu
palm top e o coloquei sobre a mesa, chamei a garçonete
288
Coletivo canal*MOTOBOY
e pedi um café, e a avisei que todas as vezes que eu solicitasse, ela deveria me trazer outro, e escrevi o artigo
que estava em minha cabeça.
Respirei fundo, abri uma página em branco no computador e comecei um artigo de cerca de cinquenta linhas
onde eu convidada a população a fazer uma reflexão
sobre o decreto do prefeito Celso Pitta. Minha esperança era de que ele lesse o artigo enquanto estivesse
comendo seus brioches pela manhã. E quando fosse
assinar o Decreto, pensasse duas vezes antes de selar o
destino de toda uma categoria.
Primeiro, perguntava ao leitor do jornal como poderiam
os fiscais autuar sobre os motociclistas, quem faria
isso? Como determinar os limites da cidade? Qual motoboy que trabalha e mora na cidade? E os que não moram,
eles podem trabalhar e se cadastrar? E com esta pressa,
quem fiscalizaria? Por exemplo, quando o táxi pega seu
cliente na calçada, podemos observá-lo tranquilamente.
Por acaso, o motoboy com seu mochilão também será
observado dentro da empresa, pois não há como determinar quem é motociclista ou motoboy. Quando vier de
uma cidade vizinha fazer trabalho aqui, nessa cidade,
ele vai pagar as taxas. Sim, porque com essa tecnologia de comunicação, não importa onde é a firma, o trabalho pode ser feito aqui na Paulista e a empresa onde
bem entender, que não há como enquadrá-lo. E as
empresas daqui, como é que ficam? Como os perueiros ilegais estavam sendo alvejados (porque naquela
época os perueiros tinham acabado de passar por uma
ostensiva regulamentação – que, no futuro, seriam tirados definitivamente das linhas, e estas entregas aos
grandes empresários de coletivos), os motoqueiros que
não fossem se cadastrar também seriam alvejados?
E, por último, já que um programa de regulamentação
Neka
289
baseado nos táxis fora usado, categoria tão diferente
da nossa, por que foi retirado do Decreto aquele capítulo onde eram estabelecidas as formas de cobranças
(UTs) das viagens? Perdeu-se a oportunidade de oferecer algo real aos motoboys, ou seja, não foi criada
a UTM – Unidade Tarifária Motofrete -, que possibilitaria o reajuste da hora do serviço, temporariamente,
contra a inflação. Chamando a atenção para estes e
outros pontos, terminei o artigo e peguei minha mochila.
Bom, agora era escolher uma edição. Tirei a sorte e deu
Estadão. O motoboy Eliezer tinha uma última entrega
a fazer aquela noite, quando saiu pra pegar sua moto
estacionada ao lado do Conjunto Nacional.
Chegando ao edifício do jornal, disse ao segurança na
portaria que tinha urgência em entregar um computador
de mão ao editor, e falei o nome do editor que eu lera ali
numa edição que estava sobre a mesa da recepção do
jornal. Pensei: “motoboy entra em qualquer lugar nessa
cidade, camaradas!”
Convencer eles a publicarem não foi difícil. Vários repórteres leram o que estava escrito em meu computador de
mão e discutiram entre si. Depois veio o subeditor-chefe,
e disse que faltavam ainda 10% de aprovação para que
o artigo fosse publicado. Como não tinha ali um cabo
para transferir o arquivo, ele solicitou que assim que
chegasse em casa eu enviasse por e-mail, que naquela
época eu já tinha, e eles fariam de tudo para publicar.
Não sei o que aconteceu com meu artigo, nem sei onde
foi parar. O que sei é que no dia da assinatura do DecretoLei, o repórter Flávio Mello veio me procurar para repetir minha opinião, quando estive na redação do jornal.
Era coincidência demais, o reporte enviado para cobrir
aquele evento era meu amigo do banco, que trabalhara
comigo na seção de contabilidade, e, de fato, enquanto
290
Coletivo canal*MOTOBOY
conversávamos sentados em uma mesa do lado de fora,
lembrando nossos dias de bancários, e como acabávamos nos encontrando em situações tão inusitadas, no
saguão do lado o prefeito fazia as cerimônias aos convidados. Aproveitei para me desculpar com meu amigo,
por perder a cabeça aquela vez no banco, quando não
aceitei que a promoção fosse dada a ele e não a mim, o
que causou aquela crise que resultou em minha saída.
Enfim, naquele dia eu disse como eu fora parar lá, envolvido com os motoboys, como eu havia desistido da minha
carreira de programador de computadores e como estava
sendo uma grande luta para termos reconhecimento. Se
o plano do prefeito desse certo, com certeza, eu teria
razão em acreditar que, em pouco tempo, as fábricas
estariam vendendo motocicletas padronizadas (como
queria a lei) diretamente aos empresários, deixando os
motoqueiros fora do negócio e colocando um monte de
gente sem experiência para trabalhar, correndo o risco
de morrer no trânsito e ainda por cima ganhando uma
ninharia, o que prejudicaria a todos. Ele ficou impressionado, pois não sabia que os motoqueiros eram os donos
de 99% das motocicletas que rodavam na cidade, e que
apenas poucos trabalhadores motociclistas que eram
empregados das transportadoras tinham moto própria.
Isso dava um outro caráter ao processo. Um último dado
antes de terminar este capítulo. Naquela manhã, depois
da “festa”, o decreto era assinado em um departamento
de trânsito da prefeitura, longe dos olhos do público e
dos mensageiros que protestavam em frente à sede da
Prefeitura. Conversando com os empresários do setor
de motos, joguei um verde em cima de um dos diretores de uma das fábricas de motos presente ao evento:
disse que trabalhava na Alta Express e que tínhamos
planos de expandir os negócios. Falamos em adquirir
um lote de mil motos, padronizadas, e contratar alguns
Neka
291
trabalhadores motociclistas para servirem a nossa
empresa. E não é que o pato caiu de boa? Tenho até hoje
o cartão dele amassado entre meu papéis, e ele não
deve desconfiar de nada até hoje. Ou seja, o jogo estava
armado pra cima dos motoqueiros.
Naquela oportunidade, também tive o prazer de me juntar pela primeira vez à luta dos motoboys, ao ser convidado para participar da Associação dos Mensageiros
Motociclistas do Estado de São Paulo por seu próprio
presidente.
XXI
No dia seguinte à assinatura do decreto eu não voltaria
mais à empresa de motoboy. Fui direto para a associação,
para iniciarmos um plano de resistência aos projetos da
prefeitura.
Nessa época, somente a AMM (Associação dos
Mensageiros Motociclistas) batia de frente contra a
regulamentação dos motoboys. Reunimo-nos no apartamento do Ernane Pastore, na Barra Funda, que era
quem presidia a associação. A casa dele servia de escritório para a associação e ponto de encontro do grupo de
mensageiros e motoqueiros que estavam organizados.
A associação era muito nova e ainda estava se estruturando, levada à frente pelo próprio presidente, que eu
já conhecia dos tempos de Moto Service, quando trabalhávamos juntos, antes da empresa entrar em crise
quando já chegava a ter cerca de trezentos funcionários.
Portanto, já tínhamos alguma experiência em organizar
as reivindicações dos motociclistas e creio que o movimento dos motoboys nasceu ali, pois pela primeira vez
os motoqueiros resolveram criar uma associação para
defender a categoria.
292
Coletivo canal*MOTOBOY
Durante aqueles meses que se seguiram ao decreto fizemos várias manifestações públicas, como motopasseatas pelo centro da cidade e na avenida Paulista. E, de
minha parte, a princípio achei que não era mais possível
ficar contra a regulamentação, uma vez que o decreto
passava por cima da Câmara Municipal, e não haveria a
possibilidade de mudar substancialmente nada, já que
não houve um debate público anterior a ele. Eu insistia
que a prefeitura cometera um erro ao não ouvir a categoria. Assim, eu discordava da forma como fora feita a
regulamentação. No entanto, não me oporia a ela diretamente porque, simplesmente, como havia apontado
no artigo que enviara ao Estadão, eu sabia de antemão que a regulamentação estava fadada ao fracasso.
Tratava-se agora de gerir o estrago, antes que houvesse
vítimas, e esperar que um dia tivéssemos algum vereador que fizesse outro projeto de lei que fosse mais a
nossa cara. Mas isto, infelizmente, jamais aconteceu.
Minha lógica era também que, ao forçar a regulamentação, a prefeitura nos obrigava a nos auto-organizarmos,
e isto não era de todo mal, olhando por esta perspectiva.
E de fato ela forçava.
Lembro de uma tarde, ao final do dia, quando os motoqueiros se reuniam pra trocar ideia na oficina do Boy, antes de
zarparmos cada um para sua casa, que contamos até 27
comandos da polícia de trânsito na capital. Não era brincadeira. Junto com o pacote da negociação, a prefeitura
de São Paulo recebeu como parte pela assinatura a doação de cinquenta motocicletas das fábricas de moto, pra
serem usadas pela polícia militar, na busca e apreensão
dos motoqueiros que não estivessem com a documentação da moto em ordem ou com a manutenção em dia.
Neka
293
Inacreditável. Sofríamos uma grande pressão todos os
dias e ninguém fazia nada (tanto psicológica Quanto
financeira), chegavam a parar a gente duas vezes num
único dia em blitz de polícia. Os atrasalados metiam
multa na gente e ainda perdíamos o dia parados nas
barreiras policiais. Na verdade, aquilo se tornara uma
grande perseguição, mas éramos lisos: criamos nossos próprios códigos e,assim, conseguíamos escapar.
Talvez os motociclistas de hoje não tenham ideia do que
passamos, mas se o cerco fechasse era correr que a
polícia vinha aí! Pois é, para onde íamos tinha comando!
Depois de uns meses, vimos uma das imagens mais
absurdas – e que sequer foi citada pela impressa local:
o pátio da Companhia de Engenharia de Trânsito do
Município de São Paulo, na avenida Marques de São
Vicente, tornara-se um mar de motos apreendidas e
empilhadas, umas sobre as outras, ao ar livre. Muito
motoqueiro que eu conheço não conseguiu mais recuperar sua moto. Enquanto isso, a venda de motos novas
crescia vertiginosamente!
Fiquei quatro meses na associação. Meu FGTS pelos dez
anos de trabalho na Moto Service se esgotava. As manobras da prefeitura para obrigar os motoqueiros a se cadastrarem tornavam-se cada vez mais duras, pois os policiais
também passaram a mudar suas estratégias. Os motoqueiros resistiam, mais vi muito motoboy novo correr pro
balcão da prefeitura, com medo de não poder trabalhar. Os
cursos nos CFC (Centro de Formação de Condutores) ficavam lotados. Em vez de pessoas experientes explicando
direção defensiva e outras técnicas pra sobrevivência
no trânsito, apenas boçais formadores, que nem mesmo
sabiam subir numa moto, tentando explicar o inexplicável
– os motoboys aproveitavam para tirar uma soneca! E pior,
era ano eleitoral. Salvadores da pátria e oportunistas se
294
Coletivo canal*MOTOBOY
lançavam a vereador como candidato dos motoboys! E adivinha onde eles começaram pregando? Claro, dentro das
salas de aula e espaços de formação, nestes centros arrumados para “ensinar” os motoboys.
Estavam, em plena luz do dia, tratando os motoboys
como um bando de carneirinhos!
Era também uma máquina de ganhar dinheiro em cima
da categoria. A patifaria corria solta. Assim, por um lado,
cada vez mais tínhamos diversas frentes de batalhas,
porém, carecíamos deestrutura suficiente para defender todas estas frentes. Lutávamos para sermos recebidos pelo prefeito e ter direito a sentar à mesa onde eram
decididas as ações, que no fundo estava prejudicando a
todos. Destas reuniões no departamento de transporte
da prefeitura participavam os empresários do segmento de entregas rápidas, os do setor das duas rodas
das fábricas de motos e peças e os técnicos que apoiavam explicitamente o Brilhante e a política de repressão
da prefeitura. Por outro lado, não tínhamos um veículo de
comunicação com toda a categoria para esclarecer isto,
então, ficávamos reféns de tudo aquilo que eles decidiam
e aplicavam a seu bel-prazer.
Um pouco antes que toda aquela discussão surgisse em
torno da regulamentação, uma jornalista e um publicitário haviam criado um pequeno jornal chamado O
Motoboy. Um deles me procurou quando eu já estava na
associação, com uma proposta de transformar o jornal
numa revista. Uma vez feito isto, poderiam me pagar
para trabalhar com eles, já que os anúncios de jornal
naquele momento não pagavam nem mesmo o trabalho
deles. Então teríamos uma revista mensal, e eu também receberia uma coluna nessa revista, para que eu
pudesse discutir os problemas da categoria. Como não
via a cor do dinheiro há algum tempo aceitei, e também
Neka
295
por que eu realizaria um velho sonho de trabalhar em
uma edição. Antes de fazer filosofia na USP, cheguei a
prestar vestibular para cinema na USP, como já contei
aqui, e jornalismo na PUC. Para cinema não passei. Para
a PUC cheguei a passar mas não fui fazer minha matrícula, já que o curso custava uma grana – então achei
melhor fazer mais um ano de cursinho e tentar filosofia.
Durante um tempo auxiliei a associação enquanto apenas escrevia para a revista. Mas chegou um momento
que não dava mais. Além de discordar das estratégias
políticas adotadas, eu apoiava a ideia de fomentar a criação um novo sindicato de motoboys, já que a justificativa
da prefeitura para não nos receber era não termos “legitimidade”. (Porém, não se tratava de legitimidade, mas
de uma postura política negativa sobre nossa representação, isolando a AMM das decisões, o que, em qualquer
situação social onde houvesse uma representação legitimada, constitucionalmente, era legítimo e por direito
sentarmos à mesa para representar os mensageiros e
motoboys. É a situação dos professores do Estado de
São Paulo, por exemplo, que têm em uma associação, a
APEOESP, uma forma de representação, para defendêlos inclusive em questões salariais diante do Estado.)
A AMM, com razão, contestava na justiça a legitimidade
do Sindicato dos Mensageiros Motociclistas do Estado
de São Paulo como representante oficial da categoria, já
que a assembleia de fundação desta entidade fora descaradamente fraudulenta.
Nessa época, portanto, corria no Ministério Público uma
ação movida pela Associação contra o Sr. José Antonio
Brilhante, que naquela época tinha feito uso indevido
das assinaturas dadas pelos motoqueiros em um curso
oferecido pelo “seu” sindicato para os motoqueiros da
Moto Service para, com isso, fundar o Sindicato.
296
Coletivo canal*MOTOBOY
Com estas folhas de assinatura (ele retirara o cabeçalho
e ficara apenas com as assinaturas), ele dera entrada no
cartório, dizendo ter havido uma “assembleia” de fundação que nunca houve. Ou seja, três boas razões para
responsabilizar esta pessoa tanto pela aparição dos
motoboys em empresas irregulares, como pela regulamentação que, em vez de sanar as reais causas da
degradação da categoria e a consequente vitimização
dos motoboys no trânsito, estava interessado apenas em
nos vender. A primeira é que, como se sabe, este senhor
nunca fora motociclista, então ele não tinha conhecimento de causa e não tinha o apoio dos motoqueiros na
rua. Segundo, seu sindicato não tinha legitimidade para
nos representar, apesar de tentar nos convencer de que
ele era o único que podia falar oficialmente pela categoria (embora os patrões tenham confiado na pessoa dele
para que fosse possível a categoria ter uma Convenção
Coletiva própria, o que só foi possível porque eles ofereceram dinheiro para que ele abrisse o sindicato) – assim,
pelo menos era o que aguardávamos a justiça decidir. E
em terceiro lugar, a AMM tinha muito mais associados
do que o SIMMESP, já que a qualquer momento poderíamos botar o pé na rua e fechar o trânsito, enquanto
o sindicato não tinha força política nenhuma para barrar os ditames de um prefeito que fora destituído por
duas vezes de sua função e ainda, em vida, responderia
a vários processos de corrupção e lavagem de dinheiro.
Então, de repente, me vi fazendo política – sem, no
entanto, ter escolhido ser político.
Depois de uma viagem a Blumenau, em que fui fazer
uma matéria sobre a fundação dos sindicatos dos mototaxistas – que começavam a se estabelecer naquela
cidade –,eu me desliguei da Associação dos Mensageiros
Motociclistas.
Neka
297
Nessa viagem para o Sul, aproveitei para ter uma longa
conversa com as lideranças locais sobre o panorama
político na cidade de São Paulo e sobre as categorias
que estavam nascendo. Com isto, não havia mais clima
de continuar na associação.
E a partir desse ponto passei a atuar dentro da revista
Motoboy Magazine, o antigo jornal O Motoboy.
A princípio correu tudo bem na minha ida para lá, e até
tivemos algumas grandes vitórias, se pensarmos que
a revista se resumia a três pessoas trabalhando. Eu
escrevia, fotografava, editava e ainda ajudava a vender
anúncios. O Oscar Gonçalves ajudava a fazer as entrevistas, cuidava dos contatos comerciais e gerenciava. E
um motoboy nos ajudava fazendo de tudo. A jornalista
caíra fora e o Oscar passara a gerir o negócio.
Desse modo, tive a oportunidade de fazer diversas viagens pelo Brasil conhecendo a realidade da categoria
em outras cidades e estados.
Para mim, antes de tudo foi um grande aprendizado,
conheci por dentro diversas empresas com culturas completamente diferentes – algumas empresas eram sérias
e outras, grandes picaretas. E ainda que tivéssemos que
passar noites acordados em porta de gráfica pra poder
entregar as revistas nas datas (a revista era distribuída
gratuitamente e era o único veículo de comunicação de
grande circulação na categoria – outros veículos viriam
aparecer e desaparecer sem deixar rastros), era interessante desenvolver um trabalho de conscientização tanto
dos motoboys quanto dos empresários do setor.
Assim, tínhamos um bom respeito onde íamos e ainda
podíamos nos posicionar sobre alguns pontos, que sindicatos e associação não estavam em condição de se
posicionar.
298
Coletivo canal*MOTOBOY
Iniciamos diversas discussões na categoria e cobríamos quase todos os eventos do segmento, até que
numa destas oportunidades tive o prazer de entrevistar e conhecer o Sr. Luis Nakama, que era diretor do Departamento de Transporte Público (DTP) da
Secretária do Trânsito e Transporte, e que era diretamente responsável pela implantação da regulamentação do motofrete na capital. Termo este, motofrete,
que ele mesmo cunhou, na tentativa de bolar uma nova
designação para a categoria, que se diferenciasse
daquelas que os motociclistas utilizavam.
Estávamos em março e naqueles seis meses a regulamentação tinha entrado num impasse. Muitos empresários que agênciavam motoboys, inclusive, também
estavam boicotando o processo, já que eles tinham
dúvidas se o motofrete iria pegar. E era então o momento
em que ou a regulamentação entrava com força total e
“fechava” a categoria, ou o processo poderia correr o
risco de estagnar, como foi de fato. No entanto, apesar
da preocupação da prefeitura em manter o cadastramento aberto (ela havia determinado uma data limite,
apenas para obrigar os motoboys a correrem para se
cadastrar, não havia interesse em limitar o acesso a ela),
isto não podia ser anunciado, como o próprio Nakama
tinha me deixado claro numa conversa, afinal, as lojas de
motos tinham interesse em continuam a vender muitas
motos. O óbvio interesse político por trás estava ligado
ao segundo fato: aquele era um ano eleitoral e a regulamentação do motofrete deveria constar na agenda política, para um segundo mandato, como uma realização
da gestão Maluf-Pitta.
Vendo agora, a figura do motoboy tornava-se, assim,
o centro de uma trama de interesses em torno de sua
categoria profissional.
Neka
299
O tempo era também um inimigo. A associação todo dia
saia na rua. Os empresários, que também liam a revista
O Motoboy, tomavam consciência dos artigos e matérias
que produzíamos. Inclusive que, se de fato a regulamentação fosse só no nosso município, poderia ainda haver
uma nova ameaça de concorrência desleal, com empresas dos municípios vizinhos atuando aqui – como eu já
havia previsto lá atrás, em meu artigo ao jornal.
Assim, foi no meio de todas estas discussões que criei
o conceito que passei a chamar de os profissionais
motociclistas.
Como disse, aquele ano era determinante para o futuro
da categoria. E naquela conversa com o Sr. Nakama,
onde discutimos muitos pontos e expusemos nossas
divergências sobre a regulamentação, que, tendo em
vista uma visão mais ampla sobre o profissional motociclista que chegamos a alguns que convergiam, chegando
a um consenso sobre os encaminhamentos que deveriam ser tomados sobre o processo de regulamentação.
Deixei de lado uma postura de acusar a gestão e apontar seus equívocos, quando passara a tábua rasa sobre
a categoria, a fim de que, no futuro, a prefeitura se comprometesse a fazer um amplo estudo de prospecção,
para conhecer a fundo os serviços de entregas por motos
e então chamasse os representantes para discutir um
projeto comum para todo o setor. Como Luis Nakama era
um engenheiro técnico, ele tinha uma visão desvinculada da politicagem, e pensava a cidade em sua totalidade, compreendendo a necessidade de uma profunda
discussão sobre a mobilidade da motocicleta e uma
revisão sobre o tratamento geométrico das ruas e avenidas, para promover um melhor uso do espaço público.
Então, propus a ele que criássemos um fórum de debate,
a fim de se discutir publicamente aquelas questões, e
300
Coletivo canal*MOTOBOY
que seria ao mesmo tempo uma oportunidade do poder
público ouvir os motoboys. Ele não só topou como propôs me ajudar no que fosse preciso, para que eu organizasse o Fórum.
XXII
O primeiro passo estava dado. Receberia dias depois um
convite para participar da próxima reunião agendada da
comissão de regulamentação do motofrete, no DTP.
O passo seguinte era convencer Oscar da necessidade
daquele Fórum, já que eu precisaria do apoio da revista,
para sua realização.
Mas ainda faltava o mais importante: um nome para o
Fórum Nacional, já que como se tratavam de questões
que tocavam todos profissionais em todo Brasil, aquele
era um momento único. Como por meio da revista eu
mantinha contato com os poucos sindicatos que existiam naquela época, achei importante envolvê-los e
chamá-los para a discussão – já que não se tratava apenas de debater a regulamentação, mas a própria profissão. E, finalmente, seria a primeira vez em nossa história
que todos os representantes dos sindicatos poderiam se
reunir aqui em São Paulo para um encontro nacional.
Após o carnaval, que fora na passagem de fevereiro a
março, aconteceria em São Paulo, no Autódromo de
Interlagos, a 1ª Etapa de Motovelocidade do GP Brasil.
Como nossa meta, na revista, era cobrir todos os acontecimentos do mundo das duas rodas, trazendo informações para nossa categoria, tomei a incumbência de
naquele domingo de manhã cobrir aquela corrida.
Neka
301
Como era a primeira vez que eu assistiria a uma corrida
de motos, fiquei bastante feliz, coloquei um bermudão,
uns óculos escuros (sou fãs deles), máquina fotográfica
a tiracolo e capacetes. Coloquei meu filho na garupa e
fomos ver as máquinas roncarem na pista.
Lógico que minha cabeça estava ali a trabalho, mas
meu corpo era pura descontração. Eu sabia que poucos motoboys se interessavam por aquelas colunas de
esporte, diferente dos antigos motoqueiros, que compravam suas próprias revistas de moto, então realizava um antigo sonho como leitor de revista de motociclismo. Nessa época já tinha sido apresentado a vários
diretores das montadoras de motos, então ficamos
na torre, onde rolava um bufê, conversando com eles
e olhando de binóculos os pilotos fazendo o circuito.
Como só havia adultos, Lucas, meu filho, disse pra descermos para os boxes, onde poderíamos ver as motos
de perto. Então descemos, e nos enfiamos no meio
daquele monte de gente que trabalha e curte motovelocidade. Tiramos várias fotos e fomos para os guard rail
ver as motos passando a milhão pela reta dos boxes.
Como ainda faltavam muitas baterias, fiquei por ali
conversando com os mecânicos e pilotos, tirando fotos
e fazendo entrevistas.
Em um desses bate-papos, sem qualquer pretensão,
falei para os mecânicos que eu vinha da categoria dos
motoboys. Eles foram legais me dando atenção e, por
acaso, eu já estava falando de política. Como no universo
das duas rodas, quando eu falava nas categorias, eles
pensavam em termos de cilindradas, vi então que participávamos de mundos totalmente distantes, assim eles
não compreendiam muito minhas angústias. Naquele
momento, em 2000, os pilotos de motovelocidade também estavam começando a discutir novas regras para
302
Coletivo canal*MOTOBOY
os campeonatos e patrocínios para haver mais profissionalismo nas corridas de velocidade, por isto, um deles
disse “que deveria haver mais união entre os motociclistas profissionais”.
Vindo de alguém que pratica o motociclismo, aqueles
pilotos e mecânicos não estranhariam nunca o que eles
acabavam de dizer. Para mim, aquelas palavras mostravam o outro lado da mesma moeda!
Eu com meus botões, que procurava um conceito que
desse a maior abrangência possível para colocar sob o
mesmo teto todas as designações que encontrara país
afora para os serviços de motoboy e mototáxis, aquela
nova informação caiu como uma luva. Fiquei bastante
aliviado quando ouvi aquilo, e fui pesquisar nos site das
Federações de Motociclismo para conferir. De fato, aquele
conceito pertencia a eles. Pois, aquela semana, depois de
labutar diversos nomes para o 1º Fórum Nacional, estava
bastante confuso em relação a adotar “motociclistas profissionais” para o Fórum, uma vez que já havia um sindicato no Rio Grande do Sul que utilizava estes dois termos
juntos, e não era só este o problema, pois eles tinham
acabado de usá-los para a fundação daquele sindicato
e outros ainda seguiriam por este caminho. Porém, sem
conhecer a realidade de todo o universo das duas rodas,
pelo menos naqueles primeiros anos.
As atividades profissionais que faziam uso da motocicleta naquele momento já tinha se diversificado em
duas grandes categorias, a de motoboy e a de mototáxi.
Os mototaxistas espalharam-se rapidamente por todo
o Brasil e, em poucos anos, tornaram-se uma profissão
bastante consistente. Portanto, eram categorias irmãs,
embora tivessem funções completamente diferentes
(ainda que muitos mototaxistas fizessem também serviços de motoboys).
Neka
303
O nome motoboy, como a atividade profissional de entregas de documentos e todo tipos de apetrechos, foi criado
em São Paulo, e se popularizou por todo o Brasil. Mas na
verdade, isto só foi possível por que este motoboy tornara-se a síntese do profissional motociclista urbano em
qualquer cidade, que com uma moto própria e sua flexibilidade para encontrar soluções, ganhava cada vez mais
espaço no mercado para fazer suas entregas e atender
à clientela, o nome se estabelecera definitivamente no
imaginário popular.
Desse modo, ao intuir a necessidade de termos todas
estas categorias juntas, batizamos o 1º Fórum Nacional
dos Profissionais Motociclistas, que aconteceria em
julho daquele mesmo ano.
A fim de que não restasse dúvida sobre nossa escolha,
comuniquei a algumas pessoas sua razão, já que não
podíamos nos referir a estes profissionais com a mesma
denominação de outra categoria que faz apologia à velocidade e se diferencia em número e grau da nossa - no
caso, os pilotos de motovelocidade e de teste. Esta razão
me pareceu bem simples, ainda que até hoje alguns
ainda insistam em não considerar, de um ponto de vista
global, as categorias dos profissionais motociclistas,
como uma só. Sem conhecer este conceito, estas pessoas fazem uso do termo “motociclistas profissionais”,
para designar todos os motoboys, mototáxis, mensageiros, couriers, deliverys, motoentregas etc. como uma
única classe, sem levar em conta o próprio termo ao qual
estes profissionais estão vinculados. Ou seja, a moto, no
caso dos profissionais motociclistas, é o meio para sua
atividade principal, não o fim. É sua ferramenta de trabalho, não sua finalidade. Para os motociclistas profissionais, pilotos de motovelocidade e de testes das fábricas de moto, a motocicleta não é o meio, mas o próprio
304
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Neka
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fim de sua ação; seja pelo prazer da competição ou pela
técnica que utilizam para desenvolver ainda mais este
veículo automotor. Desta diferença, nasceu um conceito
que, além de tudo, marca um território de pertencimento
recíproco. Cabe agora a estas categorias profissionais
firmar seus espaços a partir destes termos.
O 1º Fórum já nasceria, portanto, dentro de uma discussão que apontava o futuro da categoria. E com a presença dos sindicalistas, a própria categoria tomava seu
destino em suas próprias mãos.
Quando, enfim, levei a proposta ao diretor da revista,
vimos que não era possível bancarmos sozinhos o Fórum.
Então, fechamos diversas parcerias com o intuito de
custear o encontro. Encontramos na própria associação das montadoras de motos (ABRACICLO) o apoio
que faltava à realização. Assim, nasceria junto com
esta oportunidade o 1º Salão do Motoboy, uma feira de
motos e peças voltada aos profissionais motociclistas,
idealizada e organizada pelo editor da revista Motoboy
Magazine, que a cada dia encontrava mais reconhecimento na categoria.
Uma tarde, enquanto corríamos para dar conta dos primeiros preparativos do Fórum, eu receberia um telefonema que, pela abordagem, me deixaria totalmente
surpreso:
— Alô, eu queria fazer com esse Eliezer? – diz o motoboy.
— Pois não, sou eu, digo.
— Mano, você tá louco, você fica escrevendo filosofia pra
motoboy!
— Como assim?
— Aqui quem fala é o Alemão...
— Velho, eu apenas escrevo para clarear as mentes, num sei
escrever diferente...
— Motoboy num lê nem jornal - disse ele, irritado.
Neka
307
Alemão, na verdade, era motoboy e poeta, e de tanto eu
escrever difícil (de propósito), parecia ter, afinal, atingido
meus objetivos ali na revista: pelo menos UM motoboy
nessa cidade sabia ler! Ri enquanto ele esbravejava do outro
lado da linha...
— Olha - falei -, esta revista é dos motoboys. Por que você
mesmo não vem aqui e põe a boca no mundo?
— Eu faço poesia... - disse ele
— Legal, cola aqui a qualquer hora, vamos conversar, tem
muita coisa pra fazer e estamos sozinhos... Vamos marcar
um café?
Aldemir Martins, o Alemão, apareceu um dia por lá e
pudemos nos conhecer. Ele acompanhava de perto
toda a movimentação política dos motoboys e estivera
naquelas manifestações que fizemos contra a regulamentação quando eu estava na AMM.
Conversamos longamente sobre os problemas da categoria. Como ele viera do ABC e tinha uma posição firme
de esquerda, ele discordava do modo como estavam
sendo feito as coisas. Achei aquilo interessante e estimulamos ele a se envolver mais com a classe, já que
ele era motoboy e não se sentia representado, para que
viesse participar também dos debates no 1º Fórum.
Assim, naqueles meses vimos surgir uma nova liderança na categoria.
Em poucos meses, o Alemão organizara um monte de
motoboy e a revista O Motoboy parecia um bunker cheio
de motoboys, capacetes, capa de chuvas, baús. Passamos
a apoiá-los e eles criaram assim a União dos Motoboys do
Brasil (UMAB), como uma organização não-governamental, para representar todos os motoboys do país. Este era
o sonho deles.
308
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O 1º Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas chegava, assim, com várias frentes, com muitos motoboys
envolvidos na luta e com a participação de todos os sindicatos que representavam os motoboys e mototáxis do
Brasil, menos, claro, o SIMMESP, sindicado do Brilhante,
aqui de São Paulo. Atingimos, graças ao trabalho duro
dessa galera, do Oscar e de muitas pessoas que compreenderam a importância daquele primeiro grande encontro para debater os problemas da categoria, nossa meta.
Antes de finalizar este capítulo sobre a história da categoria, é necessário ainda relatarmos aqui um dos lances
decisivos para que pudéssemos organizar este encontro.
Como disse, ao conhecer o diretor do Departamento de
Transporte Público, durante uma entrevista que concedemos a Rádio Eldorado FM, ele me convidou para a reunião da comissão que estava conduzindo o processo de
regulamentação na cidade de São Paulo.
Estas reuniões mensais aconteciam desde que o prefeito assinara o Decreto e participavam os representantes do setor e as autoridades envolvidas em cada
etapa da regulamentação. Os empresários tinham mais
cadeiras, pois, além do presidente do sindicato patronal
(SETCESP) vinham sendo convidados para acompanhar
alguns empresários donos de cooperativas e representantes do setor das duas rodas. As autoridades eram
compostas pela assessoria do secretário de transporte
e os comandantes do policiamento de trânsito, que
estavam ali para receberem instruções sobre a ação da
polícia durante o processo.
Difícil dizer que eu me sentaria ali naquela mesa para
argumentar pela realização daquele debate público,
mas também contrapor as estratégias que eles estavam
seguindo a partir das informações que o presidente do
Neka
309
Sindicato dos Mensageiros (SIMMESP) passava para
eles. Inclusive, para nossa surpresa, o representante
do sindicato, o senhor Brilhante, a princípio se recusara
a sentar à mesa quando me viu.
Começou logo dando escândalo. Eu, que fora bem-vindo
e estava ali a convite, tinha as melhores intenções em
promovermos este debate, buscando, com esta iniciativa, que o poder público ouvisse os pontos de vistas dos
motoboys. E o Sr. Luis Nakama, diretor do DTP, a fim de
encontrar meios para que a regulamentação saísse do
impasse criado pela recusa da maior parte da categoria
em se cadastrar, via nessa oportunidade uma forma de
trazer a opinião pública para esta questão. Com isto, me
apresentava à mesa como um colaborador da revista e
organizador do Fórum.
Brilhante, ainda em pé, jogou o estatuto do sindicato
sobre a mesa, dizendo-se ser o representante oficial da
categoria, e único a ter a legitimidade em representála. E recusou-se a sentar. Mesmo com os outros insistindo com aquele “deixa disso” – senão a reunião não
continuaria.
Vendo então que era comigo a parada, pedi a palavra. E
disse:
— Brilhante, não se trata aqui de sabermos se esse ou
aquele tem legitimidade para falar em nome dos motoboys.
Mas também, não está em questão, para que esta reunião
aconteça, de que tenhamos a mesa o representante “oficial”
da categoria. Mesmo por que, ninguém aqui esta pondo em
dúvida sua representação, não se trata disso.
E neste momento ele parou. Não sabia o que dizer, tentando acompanhar meu raciocínio.
— Trata-se - continuei falando pausadamente -, de sabermos
quem tem representatividade. E, como nós sabemos, você
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não tem. A categoria é muito grande, e se fôssemos esperar
que você fosse registrar todos os trabalhadores, só acabaríamos com isto daqui a vinte anos...
Mas não precisei continuar argumentando. Ele sabia que
o Baixinho (era como eu chamava o Ernane, da AMM, na
época) já havia queimado ele da categoria.
Sentou-se, então, com o rabo entre as pernas, e não
abriu mais o bico. Então, naquele dia presenciei como
eram feitas as coisas por lá, e vi atônito cada um daqueles senhores dar seu voto a favor do posicionamento do
Comandante da Polícia de Trânsito, que deu seu diagnóstico sobre a atuação dos motoboys em São Paulo e ordenou maior rigor nas batidas. Era, enfim, a solução final
para eles. Mas como eu disse, aquele era um ano eleitoral.
XXIII.
Ao relatar estes fatos hoje, posso confessar que quando
saí daquela reunião eu sabia (ou pressentia) de antemão
que tivemos ali uma grande vitória, que infelizmente não
pude compartilhar com ninguém naquele momento.
Meu cálculo era que, ao endossarem a realização do 1º
Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas, além
de desmoralizar o falso presidente do sindicato dos
motoboys perante os outros atores que tocavam a regulamentação (afinal, Brilhante sempre fora “cachorro
morto” para nós, motoqueiros), os ânimos a partir dali
iriam se arrefecer com a expectativa do Fórum. Mas
também, e foi justamente nesse ponto de duração que
baseei a minha estratégia, como eu sabia que em julho
já estaríamos dentro da agenda eleitoral, com menos de
três meses para as eleições municipais, dificilmente os
políticos jogariam a polícia pra cima da gente.
Neka
311
De fato, durante a realização do Fórum, no mês de julho,
no Instituto Dante Pazzanese, o panorama político era
outro. E numa última tentativa, a prefeitura estenderia
ainda mais o prazo do cadastramento, mas já era hora de
jogar a toalha. O prefeito fora quase cassado. Brilhante,
depois disso, nunca mais botou os pés na rua. A “regulamentação do motofrete” se arrolou ainda pelas gestões seguintes dos dois prefeitos eleitos. Apenas uma
pequena parte destes motociclistas se enquadrou na lei.
Enquanto isso, nas ruas os motoboys resistem até hoje.
Neste conto, escrito em 2001, adiciono ao nosso livro a
história de Miltinho, amigo que tem moto e morava próximo à casa do finado tio Nôno, que me deixou saudades, em Diadema:
Miltinho
Se o diferente é o oposto do incerto, Miltinho era o meiotermo. Não tinha nada de diferente de qualquer um, mas
corria pelo certo. Seu irmão, Cassiano, era responsabilidade
sua - tirava o dia pra cuidar do menino. Mas se seu dever era
educar o caçula, Miltinho é quem, de verdade, precisava lá de
mais educação.
Deixava as cuecas sujas no chão do banheiro, largava a escova
de dentes no tanque cheio de roupa encardida, sentava de
cara pra tevê e ia comendo durante todo o dia. Chegava da
rua, dava um mijão na tampa da privada. Fio-dental pela casa
toda, a mesa nem se fala, ele deixava coberta de porcariadas,
às moscas, nos cinzeiros cheios mofando por dias uma nódoa
cobria a casa. Além de tudo, nunca havia o dia em que se
habituara a lavar uma simples louça (não fossem as vizinhas!).
Mas ele era bom motoboy. Lembro-me até de sua mãe falando,
quando ela estava viva: “Que menino porquinho. Meu Deus,
nem parece que criei você!”
Como outro qualquer.
312
Coletivo canal*MOTOBOY
Mas essas “qualidades”, acima de tudo, serão sempre dele,
leiamos.
— Porquiiiinho...? - choramingava o irmãozinho quando acordava pela manhã e ficava perambulando pela casa. Chamavao assim desde cedo porque gostava de imitar o pessoal da rua,
que subia na mureta atrás da casa pra chamar o Miltiiiiiiiiinho.
Mas Cassiãn esticava ainda mais o i... – – Porquiiiiiiiiinho...
Alguém ia lá na janelinha da porta sem vidro e dizia:
– Vai trabalhá não? –
meio-dia.
Mas Miltinho só levantava após o
Pela manhã, “só tirar atraso”. Desculpava-se sem qualquer
necessidade, referindo-se ao fato de ter que dormir enquanto
tomava conta do moleque de dia. Ainda pela madrugada,
quando voltava da pizzaria, caia às vezes de botas, capa de
chuva e tudo num sofá torto que ficava embaixo de um armário
desengonçado preso à parede da escada que dava pra o lado
de cima do sobradinho construído com o suor da sua mãe, que
um dia voltara da Bahia, após um casamento fracassado, e
terminara seus dias num cubículo de empregadas numa mansão, ali no Jardim Paulistano.
Enquanto os filhos cresciam, eles viviam na parte de baixo
da casa de blocos, que tio Domêio ajudava a construir. No
pequeno cômodo ainda não cabiam todos. Por isto, quando ele
viera ajudar na construção tinha que dormir lá fora no quintal. Tio Domêio tinha o costume de estender uma rede velha
embaixo da laje onde hoje Miltinho guarda sua moto. Quando
chovia, ele estendia uma lona de plástico preta até o chão,
para conter a chuva. Hoje Miltinho ainda guarda esta técnica.
Nessa época, dona Terezinha não tinha com que se preocupar,
pois, de manhã, quando saía, deixava comida para os três.
Depois passou a dormir no emprego e tio Domêio passou a
ficar com os meninos até levantar as paredes do quarto de
cima. Esse tio era chamado assim desde criança. Filho do
meio de seu Antonio e dona Maria, os avós maternos, que
os meninos nunca chegaram a conhecer no sertão da Bahia.
Mas Domêio fora um consolo. Até então, era a força que dava
Neka
313
à irmã mais velha, quando o pai das crianças desapareceu no
mundo. “Filho a gente nunca esquece o nome”, mas de tanto
vó Maria chamá-lo assim, para disfarçar a parca memória que
ainda lhe restava, Domêio foi ficando, por conta da avó chamar
dona Terezinha, mãe dos meninos, de “minha filha Terezinha,
mais velha”; e o filho mais novo de “meu Cazuza, mais novo”.
Então o tio, que era “o do meio”, ficou Domêio. (Isso começou
depois que passou a morte do “mais novo”. Talvez fosse uma
forma que ela encontrara pra não se referir mais aos nomes,
mas também nunca esquecer a perda do caçula da família,
sem ter que dizer-lhe o nome.) Já dona Terezinha batia perna
com apenas um pensamento, levantar a obra. E também, da
mesma forma com que veio parar em São Paulo, o tio Domêio
foi ficando. Ficando e gostando, que logo resolveu sair de casa.
Domêio deixou os dois cômodos e foi morar com uma mulher
do outro lado de Diadema. Miltinho foi o que mais sentiu sua
falta, mas nada disse. Depois que assumira tudo, acostumárase de cara a lidar com o impacto, quando logo depois de a
pobre mãe adoecer e ter “ido para o céu”. “Foi pro céu!”, dizia
ao maninho Cassiãn, na hora de por ele para dormir.
Milton era bem mais velho, tinha mais do que o dobro da idade
do irmão. Porém, depois do falecimento da mãe, recorreu ao
juizado de menores para que seu irmão ficasse em casa, talvez um medo inconsciente de vê-lo se perder numa instituição
de caridade para menores.
Assim cresceu Cassiãn, miudinho entre os arroubos do mundo.
Na imensa favela, todos sabiam a história dos dois meninos, e
um sentimento de culpa que não tinha por onde nem porquê,
apenas com a companhia do irmão e o carinho das “tias”, ou
melhor, das vizinhas, que fizeram uma corrente de apoio ao
motoboy e ao irmãozinho órfão.
Descobriu cedo que ficar sozinho significava abrir mão das
zoeiras de moleque da rua. E de tudo mais que o futuro podia
oferecer a um garoto da periferia. Ele queria ser completamente livre, mas o fato é que já tinha tomado um rumo. Não
tinha volta. Tinha que se virar sozinho e cuidar do irmão.
314
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Juntou uma grana que sua mãe deixara e comprou uma DT
180 cc, toda cabritada, não demorou pra aprender a pilotar,
mas apanhou muito para aprender a consertá-la. No quintalzinho, sentado sobre uma lata velha de tinta, Cassiano
acompanhava a aventura do irmão. Miltinho gostava de
chamá-lo “Cassiâããnn” para mantê-lo sob as vistas.
O menino tinha uns olhos perdidos no mundo e um tanto deixava para olhar as molecadas das redondezas, que corriam
em bando pelos becos da favela em alta velocidade numa
gritaria danada. E foi numa tarde abafada dessas que Miltinho
entrou pela viela subindo em primeira marcha até o portão de
sua casa. Acelerou, antes de desligar. Quando punha a moto
para dentro, no canto da laje, ao lado do tanque, era porque
tinha que esperar o entardecer, até o horário de a pizzaria
abrir. Então tombava no sofá com as pernas abertas. Quando
não, deixava a moto travada do lado de fora e entrava rapidamente em casa, bebia algo e já logo saia, outra vez acelerando,
deixando um rastro de fumaça pelo ar. Um sentido de gratidão,
de quem recebe, e apenas silencia a alma, foi o que sentiu
quando passou pelo pequeno Cassiano sentado ali.
O tempo passava, pensou, “logo o menino ia ter que ir a
escola”. Um dia perguntou ao menino “se ele não sonhava
com o futuro, ser alguém na vida”. O garoto, que tinha os olhos
longe, enquanto o irmão inclinava a moto pra medir o óleo,
respondeu do ombro da janela: “Se não se sonha com o futuro,
morre-se no presente.”
Coisas assim a gente só ouve da boca de um guri. Mas foram
estas as palavras do pequeno Cassiano ao irmão motoboy.
Saiu pra trabalhar fritando com aquilo na cabeça. O capacete
no cuco preso às orelhas, o mochilão encardido nas costas e
um cigarro no canto da boca, quando chegou ao asfalto abaixou a viseira e acelerou grandão.
Entrou na Rodovia dos Imigrantes. As dores nas costas voltaram mais fortes nesse dia, então ele puxou a mochila pra
frente, apoiando-a sobre o tanque da moto. Agora que ele
conseguira umas entregas extras. só pensava em dar um jeito
Neka
315
de conseguir trocar de motinha, e já calculava a possibilidade,
que lhe aliviaria ao menos não ter que trabalhar de segunda
a segunda na pizzaria. Aquelas entregas à noite estavam
acabando com ele. Sem contar os corres pra fugir do risco de
não ficar em fogo cruzado na boca da favela. Então sonhava.
Mas com o trânsito, logo esse pensamento ganhou sumiço e
o tempo bom acendeu sua expectativa de chegar logo àquela
sexta-feira que daria o cano no patrão e sairia com aquela mina
que conhecera no pancadão do domingo. A calça apertada na
bundinha, o umbiguinho de fora da blusinha, só ia pensando
nela agora, com certeza ele só pensava nela, “o lance bolava”,
e disse, sorrindo, seu nome. A pista quente ainda soprava uma
poeira fina que entrava pela viseira, o vento seco de inverno ia
apertando os olhos.
Na Ipiranga o tempo abriu e viu que seu dia também voara e
ele só tinha mais uma entrega a fazer. Dessa forma, era domar
as curvas e pinar a segunda, pra escapulir dos faróis vermelhos. Mas tocar sem medo no corredor ainda era o grande
risco. Ganhava seus segundos e a cada minuto deixava um
pra trás, dizia consigo, hasta la vista, baby, dando um quebrão pra direita, sumindo atrás de um automóvel e fritando
o freio dianteiro diante de um policial parado na esquina. “Ô
atrasalado”, dizia.
Bloco na mão, saca a caneta, olha, torce o pescoço, coça o
canhão pra impor respeito, mas sabe que a moto acelerada
aguarda no ponto-morto. Se o tira tem um dia cansado ele te
esquece, se tem capitão ele avança, se te tira do trânsito, anota
teus dados, faz perguntas inúteis e te lasca uma multa. Miltinho é do tipo que fica calmo por fora. Por dentro do capacete,
ele sempre está fulo: “Maldito f.d.p.”, pensa, dando uma risada
nervosa, quando parte acelerando e torcendo, para que o cabo
do velô, que quebrou pela décima segunda vez, não o deixe na
mão numa hora dessas! Um bração cola do lado arrastando os
espelhos dos carros e um motorista xinga: “Mais uma vez? Seu
corno!”, e põe a cabeça pra fora pra ajeitar o retrovisor. “Hoje
é assim”, pensou Miltinho, “dormiu, vem outro cara e te zoa”.
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Mas também tinha os camaradas, que estão de boa, como
esse que viu Miltinho quando atravessou o Mercado, na Zona
Cerealista, já próximo ao local da sua entrega, o motoqueiro
deu um guincho pra tirar um carro quebrado do meio da pista
e comentou: Putz, hoje tá punk’rock.
XXIV
Era ir pras cabeças, costas doendo pelas horas maldormidas
no sofá, de dia fazendo um bate-e-volta na firma do Zelão e a
noite correndo pela pizzaria. Abaixo do grau e no leva e trás
pensava em Cassiãn, sozinho ou no vizinho, mas sempre sozinho. A tarde cuidava de deixar sempre um desses cobertores à
mão, e a TV ligada, pedia sempre, que a coisa esfriava na serra
do Mar, para que o menino não saísse para o quintal. Mas a
friaca vinha e congelava as paredes e o vento da madrugada
fazia tremer as telhas finas dos vizinhos, nem todos tinham
como pôr uma laje.
Acredito que minha participação na história da categoria, que começou no início dos anos 1990, ao ser mensageiro motociclista na Moto Service, me deu uma experiência de vida que em outro lugar eu não teria. Aprendi
a respeitar e a ser respeitado no convívio com os motoqueiros que trabalhavam comigo. Nunca, no entanto,
esperei ser totalmente compreendido, já que os problemas que afetam os motoboys são extremamente complexos. Também não me preocupo com isto, pois acredito
no potencial destes profissionais e na força essencial
de sua categoria, e que um dia eles se emanciparão.
Confesso que percebi cedo que existia um lugar para
atuar nesta categoria, e já que minha própria história de
vida se entrelaçava na história dela, aceitei este destino, mas não me agarrei a ele. Afinal, nossa luta sempre
foi pelo reconhecimento e por condições melhores que,
independente de quem suba num palanque para fazer
a defesa destes profissionais motociclistas, sempre
deverão se pautar pelo bom-senso e a autonomia destes profissionais em escolherem suas formas de representação. Paguei um preço pelo caminho que escolhi,
porém, tive muitas recompensas em termos de aprendizado e de reconhecimento pelo meu trabalho como pensador. Agora, ao ser convidado para organizar este livro
com o Coletivo canal*MOTOBOY, também sou um escritor da categoria. Percebi, entretanto, com mais clareza,
a multiplicidade de pontos de vistas sobre como cada
uma daquelas pessoas que sacrificaram sua vida sobre
as duas rodas tinham algo a dizer quando decidimos
contar aqui a história desta categoria, que se encontra
Hoje, nem sempre assim, “mas ele ao entregar aqueles envelopes tiraria seus 30 pilas”, pensou, era pegar ou largar, senão
eles não passavam mais os trampos e ele ficaria na rua.
Sentado agora na recepção de um edifício, aguardando aquele
tiozão de camisa branca assinar os documentos, pensou
novamente no que o Cassiano dissera, o que era mesmo? Puxa
pela memória, “Futuro?”, disse, lembrando os olhos fundos
do moleque... Pra que queria saber daquilo, “futuro”?, perguntava-se Miltinho. Teria ouvido aquilo na televisão? Sentia
que o moleque mudara muito depois de tudo que aconteceu...
Aquela tarde na volta pra casa acelerou macio, deixando a
raiva e a cidade pra trás, pelo retrovisor.
“Soul Favela, Soul a Norte, Sou a Leste,... a Zona é forte”,
tocava uma música ao longe quando entrou no bairro. “Como
tudo isso ficara feio”, pensou, lembrando da sua infância:
quando chegara havia tanta arvorada. Agora, só bala perdida.
Hoje, em São Paulo - capital e região metropolitana -, a
categoria é uma das principais forças políticas e é formada por milhares de motociclistas.
320
Coletivo canal*MOTOBOY
em pleno desenvolvimento e apenas iniciou sua jornada
em busca de uma autêntica cidadania, o que, como os
leitores devem ter também percebido, tem ainda muitas
coisas para acontecer.
Assim, já que nossas histórias relatam o próprio surgimento da categoria, julguei que seria muito importante
mostrarmos como se enraizaram as lutas, e como tivemos que nos organizar para evitar que elas fossem destruídas em sua essência pela ganância e despreparo dos
que não tinham condições de defendê-las. Foi desse
modo, por exemplo, que nosso objetivo passou a ser dar
voz aos motoboys e motogirls, acreditando que, uma vez
pudessem ser ouvidos, estes trabalhadores incansáveis pudessem ter um futuro melhor, coisa que só eles
podem conquistar a partir de uma reflexão sobre os problemas e dilemas com que lidam diariamente na sua vida
profissional. Tal visão, que nasceu dentro da experiência proposta pelo artista Antoni Abad com seu projeto
ZEXE.NET canal*MOTOBOY, se desdobrou na Semana
de Cultura Motoboy, organizada dentro do movimento
dos motoboys que participam deste Coletivo. Agora com
este livro, pudemos expor pontos de vistas de diversos
motoboys e ex-motoboys, que entendem a importância
desta categoria para a sociedade.
Após a realização do 1º Fórum Nacional, em 2000, quando
os motoboys começaram a se organizar-se em torno da
UMAB, e a discutir a criação de um sindicato dos motoboys, aos poucos comecei a me desligar do dia a dia de
lutas, já que meus estudos exigiam-me cada vez mais. E
se antes eu acreditava que fundar um novo sindicato era
uma solução, passei a ter sérias dúvidas sobre este caminho quando iniciaram o processo de fundação de um sindicato de motoboys na capital, o Sindimoto. No entanto,
não compartilhei com o Aldemir, o Alemão, seu presidente,
este meu ponto de vista, pois, como desde o Fórum, onde
Neka
321
ele conheceu os sindicalistas de outros estados, e teve
uma participação ímpar nos debates, quando eles começaram a se mobilizar eu sentia que o caminho deveria
ser lutar por dentro do antigo sindicato dos mensageiros
(SIMMESP), obtendo credenciamento naquela instituição
e forçando seu presidente, o Brilhante, a fazer uma eleição justa. Mas Alemão estava convencido de que o mais
correto seria desmembrar o sindicato dos mensageiros,
que era estadual, de sua base em São Paulo e, a partir do
movimento dos motoboys, fundar outro sindicato. O que
foi feito até com certo louvor.
Minha vida particular a esta altura já estava totalmente
destruída, meus parentes todos longe, meu casamento
há muito estava acabado e, por conta da minha participação no movimento dos motoboys, a universidade
pedira meu jubilamento, ou seja, eu perderia a única
coisa que eu construíra com enorme sacrifício em todos
aqueles anos. Ao sair da revista O Motoboy e bater lata
em empresas de motoboy, eu apenas tentava sobreviver e mandar uma pensão para meu filho. Foi quando
conheci o Miltinho, em uma dessas bocas de porco, e
escrevi aquele conto sobre sua vida de motoboy.
Desse modo, vejo como fazia sentido toda minha angústia quando, no final de 2002, pensei que tudo estava
acabado e tive que encostar minha moto antes que ela
me jogasse embaixo de um caminhão – na minha moto
não restava quase mais nada, a não ser um motor que
começava a bater, um quadro elástico que às vezes me
deixava sem a corrente e uma caixa de direção zoada,
que não dava segurança na hora das freadas. O desligamento da profissão não era apenas uma derrota ou
uma consequência natural, como acontecera a muitos
outros que passaram por ela, que dela tiraram seu sustento e depois procuraram outras formas de sobrevivência, tendo-a como categoria de passagem. Como alguns
322
Coletivo canal*MOTOBOY
ex-motoboys que conheço, percebi na pele a dificuldade
de sobreviver no trânsito com a moto em pandarecos,
derrotado assim pelas péssimas condições de trabalho numa empresa de motoboy sem estrutura, mas que
continuam a considerá-la porque os motoboys que ficam
são como irmãos para nós. Enfim, eu me voltaria para os
estudos. Levava comigo a certeza de que, se algo não
fosse feito, seria perdida uma parte da história da categoria, e se não houvesse uma reflexão sobre os processos que levaram à sua desestruturação, ela jamais descobriria seu incrível potencial humano. Além disso, seria
esquecida a parte da resistência que fizemos para evitar que fôssemos enganados por abutres que, motivados pelas sucessivas tentativas de regulamentação de
nossos serviços, se aglutinaram em torno da categoria
a fim de se apropriar do capital que girava nas mãos dos
motoqueiros. Se não houvesse outro caminho, a categoria nunca encontraria sua verdadeira emancipação.
Assim, em fevereiro de 2002 eu entraria com um pedido
de solicitação de bolsa-moradia na Universidade de São
Paulo, a fim de voltar aos estudos. Naquele mesmo ano,
eu entraria com um recurso, que ganharia em segunda
estância, para recuperar meu número de matrícula,
depois que fora jubilado. E em outubro, já com minha
vaga recuperada, eu passaria a ser residente do CRUSP Conjunto Residencial dos estudantes da USP, onde moro
até hoje enquanto preparo meu projeto de mestrado, com
a novidade, agora, de que trouxe meu filho para morarmos
junto, já que ele passou para curso de Letras na universidade, que me deixou muito feliz. Em outubro daquele
mesmo ano eu abandonaria definitivamente a profissão
de motociclista vendendo o que restara de minha moto
a um garoto da favela São Remo, para ele entregar pizza,
pelo valor de R$ 300,00. Foi tudo o que restou dela.
Neka
323
XXV
Com as mãos nos bolsos e uma tristeza no coração,
eu mais uma vez recomeçaria minha vida. Mas tinha
a história dos motoboys. Então, durante uma greve na
Universidade, sentei e comecei a escrever um romance.
Ele se chamava Linha 10 e era uma ficção sobre meus
dias de motoboy e a história de uma categoria, que acabara de nascer. O romance, que ainda tenho numa gaveta
à espera de uma editora, ficou entre os dez títulos no
concurso Nascente da Universidade de São Paulo, recebeu ótimas críticas, mas ainda não emplacou. Creio que
eu mesmo tenha deixado ele lá, até ter tempo e discernimento18, para transformá-lo em uma obra sem idealizações, mas tudo tem sua hora e lugar. Quem sabe ele não
vira um filme, primeiro!
Em 2003 eu finalmente conseguira uma bolsa-trabalho
na Universidade, que agora me dava a oportunidade de
estudar, mas tinha ainda esperança de fazer um estudo
mais ampliado sobre os motoboys.
Mas o curso de filosofia, por ser muito difícil e conceitual, não me dava oportunidade de se voltar aos motoboys nem a cidade e meus contatos com as lideranças
estavam cada vez menores. Estava completamente
preso dentro dos muros da Universidade, voltado à abstração e à leituras dos filósofos. Por um lado, eu realizava
finalmente o sonho de uma vida inteira, que que era me
dedicar às coisas do pensamento e do desenvolvimento
humano. Preenchia meu tempo integralmente com os
estudos e minhas notas melhoravam a cada semestre.
Por minha história de vida até era chamado pelo nome
pelos meus professores, que sempre me perguntavam
18 Lembrando Nietzche, em suas inumeráveis tiradas: “Tudo que era garantia
de um mundo ideal se desvanece a partir do “discernimento” (Einsicht) de que o
verdadeiro, o bem, o belo, são idealizações.”
324
Coletivo canal*MOTOBOY
sobre a luta dos motoboys. Mas não me sentia realizado
e o romance que escrevera não tinha naquele momento
subsídios suficientes para que eu lutasse pela sua publicação. Assim, naquele ano, como eu sempre falava dos
motoboys às pessoas que conhecia, num papo com
uma amiga do curso de antropologia ela me disse que
naquele semestre estavam formando vários grupos
de estudos no Curso de Antropologia Urbana e que um
deles iria estudaria os motoboys em São Paulo. Como
ela conhecia uma das pessoas desse grupo, sugeriu
que eu fosse levado até lá. O curso, ministrado pelo
professor José Magnani, foi uma excelente oportunidade para seus alunos realizarem um primeiro estudo
antropológico sobre os motoboys.
Quando os alunos do grupo me convidaram para participar das discussões e eu me dispus a apoiá-los, dandolhes informações preciosas sobre as características dos
motoboys e onde poderiam encontrá-los em momentos
mais sociáveis, cuidando assim, de evitar que os pesquisadores intercedessem na lógica do trabalhos, da correria do dia a dia de um motoboy. Outro cuidado, agora em
relação às informações que passava, era para que meu
olhar não influenciasse o trabalho dos pesquisadores
antes que eles fossem às ruas. Assim, tinha certeza de
que aquele grupo estava bastante interessado e podia me
oferecer uma nova visão sobre algum aspecto da categoria que eu ainda não conhecia! No final do ano, o trabalho deles foi apresentado com louvor entre os alunos da
faculdade, sucesso que se deve também ao professor, que
esteve incentivando o grupo, mostrando aos integrantes
as peculiaridades dessa nova classe de profissionais,
que formavam uma tribo urbana e que mantinham com a
cidade de São Paulo uma relação bastante complexa, rica
em dimensões que, numa metrópole como a nossa, se
Neka
325
inscrevem a partir dos espaços ocupados por estes profissionais motociclistas na malha da trama urbana. O trabalho apresentado pelos alunos Augusto Stiel Neto, João
Mutaf e Silvia Avlasevicius, do Curso de Ciências Sociais
da USP, intitulado “Pelo espelho retrovisor: motoboys em
trânsito”, foi posteriormente colocado pelo professor no
site do NAU - Núcleo de Antropologia Urbana.
Em 2004, eu continuava a me encontrar com aqueles
pesquisadores, principalmente com o Augusto Astiel,
que viraria um grande amigo e companheiro e fora quem
liderara o grupo de estudos antropológicos. Um belo dia,
o Astiel me procurou e me disse que um artista espanhol
achara a nossa pesquisa na internet e enviara e ele um
e-mail, dizendo-se interessado em realizar um projeto
de arte contemporânea com os motoboys. Ele queria
oferecer uma oportunidade para que os motoboys falassem de si mesmos na internet usando celulares para
envio de fotos e vídeos.
A princípio achei muito estranho aquilo, não sabia ainda
as reais intenções daquele artista e achei melhor esperar: era ver pra crer. O artista chamava-se Antoni Abad,
e naquele ano apresentaria sua primeira experiência de
arte usando celulares com a comunidade de taxistas na
cidade do México.
O Augusto, que continuava a falar com ele, disse que em
breve ele viria ao Brasil e fazia questão de me conhecer, pois, segundo o Augusto, eu era o cara que o artista
procurava para realizar este projeto no Brasil. Como eu
conhecia as discussões estéticas envolvidas em um projeto como este e também como tinha um profundo conhecimento sobre a categoria dos motoboys, ele propôs um
contato. Assim, enquanto eu levava adiante meus estudos e todos os dias ia ao Museu de Arte Contemporânea
da USP, onde eu tinha uma bolsa trabalho e realizava
326
Coletivo canal*MOTOBOY
minha Iniciação Científica em curadoria de arte, este
artista, que também se tornaria um grande amigo, viajava
o mundo, realizando seus projetos com diversos grupos
marginalizados pela sociedade, como as prostitutas em
Madri, os ciganos na Espanha e os cadeirantes em sua
própria cidade, em Barcelona. Eu acompanhava atentamente este desenvolvimento, mas ainda com uma dúvida
na cabeça: o que aconteceria em São Paulo, quando ele
desse aos motoboys celulares ligados à internet? Era
uma pergunta cuja resposta eu não conhecia, e precisei
viver esta fascinante experiência para saber.
Em Barcelona, ao formar o grupo de cadeirantes para
mostrar os obstáculos que as pessoas com deficiências físicas têm na cidade para se locomover, o artista
ofereceu uma ferramenta absolutamente revolucionária aos participantes do projeto canal*ACCESSIBLE
(Canal*Acessível): junto à tecnologia de envio de fotos,
a mídia era feita com um dispositivo de geolocalização,
ou seja, era a primeira vez que eu via o uso do GPS para
um uso social. Ao lado da fotografia, que muitas vezes
denunciava um abuso no trânsito de alguém que deixa
um carro sobre a calçada, impedindo a passagem de
uma pessoa com deficiência, a foto vinha acompanhada
de um mapa mostrando exatamente o local onde ela fora
tirada. E como muitas daquelas fotos eram de escadas e
batentes de locais públicos e privados, foi montado um
mapa da cidade acessível, uma verdadeira evidência de
que uma comunidade específica estava mostrando ali as
limitações impostas pela falta de uma política pública
voltada às diferenças.
Aquilo encheu meu coração de alegria. Todos os dias
eu visitava canal*ACCESSIBLE para ver como os
cadeirantes estavam se saindo em Barcelona, como também, pelas suas fotos, reconhecendo naquela cidade que
Neka
327
antes quando estávamos preparando o projeto da exposição do Gaudi, no SESC Pompéia, eu tivera que estudar
toda a história daquela cidade. Era tudo maravilhoso,
e sem saber, já estava apaixonado pela ideia do projeto
em São Paulo, mas não conseguia imaginar de que forma
aquilo que os cadeirantes faziam, inclusive apresentando
o mapa feito por eles à prefeitura de Barcelona, modificar os espaços públicos onde tinham obstáculos, e que
um dia eu sonhava poder realizar junto com o projeto do
Antoni no Brasil. Mas como os motoboys se apropriariam
destas ferramentas? O que eles apontariam? Como eles
iriam lidar com ela? Quais as preocupações deles na hora
que formassem o grupo participante?
Finalmente, em 2006 o Antoni Abad veio ao Brasil e tive
a oportunidade de conhecê-lo. Mas ele pouco falou dos
cadeirantes, que eram minha maior curiosidade. Ele
falou sobre os motoristas de táxi da capital mexicana
que, nas palavras dele, eram nossos hermanos, por
conta dos problemas que estes lutadores enfrentavam
para serem reconhecidos pela sociedade e pela precariedade com que o trabalho lá era feito, com muitos distúrbios causados por táxis clandestinos e não haver uma
regulamentação destes profissionais por lá. Nesse sentido, éramos muitos marginalizados e parecidos.
Como o artista que teve essa ideia de dar celulares a
uma comunidade sem voz, quando esteve aqui em São
Paulo anos antes, vinha nestes anos tentando realizar
o projeto aqui, mas não conseguia encontrar patrocinadores por conta do grande preconceito em relação aos
motoboys, finalmente parecia ter achado uma parceria
para trazer o projeto, recebemos meses depois a notícia de que começaríamos a desenvolver os trabalhos.
Recebi, assim, o convite para ser curador-adjunto do
projeto, que seria realizado no CCSP – Centro Cultural
328
Coletivo canal*MOTOBOY
São Paulo. Local que eu passara parte de minha vida
seja estudando nas bibliotecas, assistindo filmes e
peças teatrais e principalmente durante a minha juventude havia visto as primeiras apresentações de bandas
punk rock, ou seja, eu estava em casa, e sabia que o
lugar era perfeito para o canal*MOTOBOY nascer!
O nome canal*MOTOBOY já estava na cabeça do artista
há muito tempo. Mas ele esperou pela primeira reunião com os organizadores para nos consultar. Então,
um pouco mais de um mês antes de abrirmos a exposição, ele chegou ao Brasil, trazendo consigo sua esposa,
Glória, e nessa primeira reunião no CCSP para discutirmos o projeto tive o prazer de conhecer uma das pessoas
que mais me influenciaria desde que o projeto nasceu: o
motoqueiro Ronaldo.
O Ronaldo era o profissional ideal. Aquele que em minhas
horas de meditação, em que a única forma de deixar
escapar a mente da rotina pesada de motoboy eu passava a imaginar qual seriam as qualidades desse profissional do futuro. Ele era autônomo e não tinha patrão.
Organizava seu dia a dia, mudava várias vezes suas
estratégias para poder atender a todos os seus clientes,
usava seu celular para fazer seu serviço e ainda tirava
ótimas fotos. E estes não são elogios vãos, nas fotos
dele podíamos ver aquilo que Merleau-Ponty diz em relação ao movimento do pensamento: uma certa “solidariedade entre o observador e o observado”19, ou seja, por
trás dos seus cliques, havia o pensamento de alguém
que sabe a posição que ocupa no espaço da cidade – e
esta posição, o Ronaldo nos revelava, é única! O que digo
é que não acreditávamos em nossa sorte, já pelas fotos
dele víamos que os motoboys proporiam imagens inusitadas da cidade. Mas até aquele momento eu apenas
19 O olho do espírito. Marcel Merleau-Ponty.
Neka
329
sabia da existência do Ronaldo a partir das fotos que ele
enviava para uma página de testes, que o Antoni criara
em uma de suas viagens ao Brasil, antes de fundarmos
o canal*MOTOBOY, quando ele tivera a oportunidade de
conhecer o Ronaldo. Desde o princípio, tinha uma preocupação de que aquele ponta de lança seria fundamental para haver uma parceria na hora de organizar o
grupo de motoboys do projeto, e deveria ter ele mesmo
um caráter forjado nas ruas, com experiência e dedicação de anos e conhecimento das complexas relações da
nossa categoria: o Ronaldo tinha tudo isto, e mais que
tudo, tinha o carisma necessário para liderar os motoboys e a humildade em reconhecer o grande papel que
deveria ser desempenhado dali em diante, representando toda a categoria, como uma pessoa sensata e
crítica. Nesse sentido, a categoria teve muita grande
sorte em tê-lo como profissional motociclista à frente
do canal*MOTOBOY.
Vou agora terminando nosso pequeno livro. Deixo ao leitor a curiosidade de saber mais sobre os motoboys, sobre
o canal*MOTOBOY e as atividades culturais do nosso
Coletivo, que a partir deste projeto do Antoni Abad, vem
realizando diversos projetos com os motoboys. Para isto,
deixo também um convite para uma visita ao nosso Canal
na internet. Lá, todos os dias, o leitor poderá acompanhar a jornada diária de Ronaldo e de todos os motoboys
e motogirls, seus companheiros, que enviam flashes ao
vivo da cidade, e nessa saga mostram um outro lado da
cidade. Dando uma visão aprofundada de pessoas que
abrem um tempo em seu dia a dia no trânsito para contar um pouco sobre a realidade em que vivem dentro do
espaço urbano. Que dão um tempo em seus afazeres para
mostrar seus saberes.
330
Coletivo canal*MOTOBOY
Mais importante ainda é que, para a própria existência
desta categoria naquilo que ela tem de mais essencial,
na sua própria especificidade, foi que neste caminho
que fizemos ficou evidente, com esta experiência, que
estes profissionais são mais do que meros mensageiros, mas sujeitos de suas próprias histórias, também
têm sua própria mensagem. Como aquela que faz de
nós, motociclistas, portadores de uma visão única sobre
nossa cidade e que se abre para um novo tempo.
Foi muito difícil chegarmos até aqui. Muito trabalhoso.
Tivemos que rodar muitos caminhos, e depois de batermos muita cabeça, descobrimos nesta oportunidade,
quando juntarmos estes motoboys e ex-motoboys
escritores, que com muita dedicação e perseverança,
contaram um pouco como nasceu esta grande categoria, e justamente por que o que nos une é o desejo
de sermos livres. Assim, da clara certeza que brota
quando dois motociclistas se encontram e conversam
entre si, e trocam experiências, e que quando cada qual
coloca seu capacete, a solidão da mente invade os pensamentos e ao mesmo tempo cruzando a cidade, estes
pensamentos se encontram e realizam a esperança de
um dia, quando encontrarmos outra forma de organização social do nosso trabalho, aí, realmente, todos
serão livres.
Do mesmo modo que em nosso site estão todos os registros desta experiência inusitada de vermos simples
motoboys transformarem-se em críticos das condições
de vida dos motociclistas, das preocupações ambientais, e também, do ponto de visto único, que a motocicleta os proporciona. Pela manhã fazem suas entregas,
à tarde dão entrevistas e palestras, promovem debates e,
em breve, preparam sozinhos a esperada 2ª Semana de
Neka
331
Cultura Motoboy. Realizam paralelamente a isto a expectativa de mostrarem suas capacidades e sua cidadania
participativa, o desejo de emancipação que propõem a
todos os profissionais do futuro, porque a ele estes motociclistas pertencem.
XXVI
De certa forma, na vida algo sempre nos escapa. Caso
tenhamos esquecido aqui de citar alguém ou algo, que
nos perdoem a imperfeição, mas também o tempo corrido, porque, como vocês sabem, motoboy é correria. E,
para finalizar, volto àquilo que estava tão evidente nos
versos de Octávio Paz, e que eu soletrava, soletrava, na
tentativa de decifrar seu enigma, e que parecia mostrar
que nem tudo estava acabado; naquele momento em que
pensei que minha desistência era definitiva, e nas situações mais difíceis de minha vida, uma força inconsciente
me segurava e fazia com que eu não me perdesse no
mundo ou enlouquecesse. Assim, minha luta nem mesmo
começara, mas já havia, de algum modo, uma última missão. Aliás, sempre haverá:
“Sem entender, compreendo:
Também sou escritura!”
Índice de
imagens
P.19
P.24-25
P.26-27
P.29
Eu em uma foto de escola
O ventilador
Cezarão num dia de sol
Indicação para base aérea de Santa Cruz
P.32
Central do Brasil
P.37
Estação de Santa Cruz
P.40-41
Uma van
P.42-43
Avenida Brasil
P.45
Antenas UHF
P.46-47
Mais uma vista do Cezarão
P.49
Interior do trem
P.52-53
Stevie B. e Seiya de Pégasus
P.56-57
P.60-61
Placa da Rua 50
Arcos da Lapa
P.62-63
Palácio Gustavo Capanema
P.64
Carteira de indentificação funcional do Banco do Brasil
P.67
Banca de jornal da Carioca
P.71
Eu com o meu padrasto na Praia de Mauá
P.72-73
Eu na escola de teatro Martins Pena
P.77
Máscara de Clóvis
P.84-85
P.89
Placa de indicação
Estação de trem de Madureira
P.90-91
Igreja Nossa Senhora da Glória
P.94-95
Passarela na Avenida Brasil
P.97
Ingresso para cinema no CCBB
P.103
Bandeira da Paraíba e Bandeira do Estado do Rio de Janeiro
P.107
Brasília
P.109
Minha casa no Cezarão
P.110
Um aniversário
P.113
Praia na Ilha do Governador
P.114
Dois aniversários perdidos no tempo
P.118-119
Carta de conversa com um amigo metaleiro
P.121
Época do movimento estudantil
P.124
Minha primeira carteira de trabalho
P.128-129
Minha agenda e adesivos colados em caderno
P.131
Candelária
P.135
Proletário e Vanguarda
P.136-137
Pista de skate do Cezarão
P.138
Eu e meus avós
P.141
Avenida Brasil
P.145
Recortes do jornal O Dia
P.147
Selo comemorativo do cometa de Halley
P.150
Bússola
P.153
Minha tia e minha mãe comigo na praia
P.158-159
Atari
P.161
Eu e minha tia em Paquetá
P.164-165
Eu e minha irmã em Mauá e Porto das Caixas
P.168
Minha tia que eu imaginava ser rica
P.169
Eu sentado no sofá da minha tia que eu imaginava ser rica
P.172-173
Balas de tamarindo e Pedalinho
P.174
Cidade de Deus
P.179
Meu avô usando telefone doméstico pela primeira vez
P.181
Escritos antigos
P.183
Eu numa festa junina
Sobre o autor
Eliezer Muniz dos Santos, o Neka, como é chamado pelos
amigos, sempre foi interessado por tudo relacionado à cultura de rua. Professor, escritor e curador, exerceu as mais
diversas profissões, mas foi como motoboy, entre 1988 a
2002, que descobriu que a liberdade era mais que andar de
moto. Encontrou, então, um jeito de ser livre, e deu um tempo
no trampo de motoboy para se dedicar aos estudos. Soube,
finalmente, que a verdadeira liberdade é compartilhada.
Hoje é formado e licenciado em Filosofia pela Universidade
de São Paulo. À frente do movimento dos motoboys desde
os anos 1990, articulou e organizou o 1º Fórum Nacional dos
Profissionais Motociclistas em 2000 na capital paulista, que
reuniu pela primeira vez todos os sindicalistas do Brasil,
para discutirem os problemas da categoria. Em 2007, já formado, deixou a política de lado e passou a se dedicar à cultura motoboy. No mesmo ano, foi convidado para a curadoriaadjunta da Exposição “Motoboys transmitem de celulares,
canal*MOTOBOY”, de Antoni Abad, no Centro Cultural São
Paulo. Em 2008, organizou a 1ª Semana de Cultura Motoboy,
juntamente com o Coletivo canal*MOTOBOY, que chacoalhou
o Centro Cultural Popular da Consolação. Apaixonado por
motocicletas desde que se entende por gente, seu grande
sonho é ver um dia todos os profissionais motociclistas respeitados em sua liberdade de seguir em frente em busca de
seu destino, sem que precisem, para isto, perder a vida no
trânsito por conta da pressa do patrão.
Hoje leciona Filosofia em uma escola da rede pública na periferia enquanto organiza da 2ª Semana de Cultura Motoboy.
Este livro foi composto em Akkurat.
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².
Impresso pela Prol Gráfica em Abril de 2010.
As fotos desse livro são imagens de arquivo pessoal
e também imagens feitas por Diego Felipe e Veruska Taylla.
Todos os recursos foram empenhados para identificar e
obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados.
Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total
desinformação ou por erro de identificação do próprio
contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder
os créditos aos verdadeiros titulares.

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