kaspar hauser texto completo e final

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kaspar hauser texto completo e final
O PARADIGMA DA MODERNIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL EM “O
ENIGMA DE KASPAR HAUSER” DE WERNER HERZOG
Luiz Augusto Passos1
Advertência
a) Escrevi este texto, inicialmente, como apoio ao trabalho de sala de aula, para meus alunos da Filosofia
III da UFMT no primeiro semestre de 1994. Foi retocado com a finalidade de interlocução no Seminário
de Educação “Paradigmas em Movimento” Outubro de 94 do Instituto de Educação. Recebeu diversos
adendos. Estuda a modernidade sobre um dos seus prismas mais espetaculares: o da “ordem contra o
movimento” (Alain Touraine).
b) A construção deste texto se deu de maneira muito rápida. Havia assistido ao filme, pela primeira vez,
junto com meus alunos. Alguns já o haviam visto e discutido sob a ótica da linguagem. Fiz rápidos
apontamentos em notas quase taquigrafadas das vinhetas, traduzidas para o português: traduttore:
tradutor – dizem os italianos – traditore: traidor! Nem sempre sou fiel à letra do texto, mas sim à sua
‘essência’ segundo minha leitura. Meus alunos viram o filme, e não acharam nada nele que dizia
respeito à modernidade. Havia, por outro lado, uma dificuldade, os que o haviam visto tinham com
ênfase uma leitura psicológica, das crianças lobos e linguagem. Posto em debate (sob a ótica da
modernidade), os alunos, ainda, não conseguiam percebê-la. Tendo sido, a Modernidade, a ênfase no
trabalho de Werner Herzog, decidi – frustrado pedagogicamente de minha intenção - descrever meu
olhar, no que ele captava coincidências com a perspectiva de Herzog. Escrevi o texto com certa
veemência no mesmo dia, até a madrugada.
c)
Este texto, por isso, é minha interpretação, não sou Herzog. Tenho consciência que recrio o
personagem de Kaspar e o diretor Herzog, sob minha ótica da Modernidade: que muitas vezes
coincidirá. Em momentos, sobretudo, quando levanto hipóteses interpretativas dos silêncios, das
imagens, dos signos, dos símbolos do filme, poderia ter qualquer certeza de que foi exatamente o que
HERZOG queria dizer da “modernidade dele”. Meus leitores serão meus juízes.
d) Escrito com a finalidade pedagógica, precisará ser lido sob a ótica pedagógica. O texto quer esclarecer
o tratamento dado à modernidade, naquilo que ela representa de negatividade, suas utopias
universalistas, sem âncora na existência dos seres humanos imiscuídos na histórica, proposta de
maneira sistemática e rigorosa pelo pensamento cartesiano(René Descartes) e kantiano (Immanuel
Kant). Lê-lo sobre a ótica pedagógica significa perguntar, que modelo educacional pode resultar na
adoção destas teses da modernidade? O que se deve negar e o que se deve afirmar da modernidade
para um projeto pedagógico contemporâneo? Estas questões não possuem respostas únicas, precisam,
contudo, ser respondidas por todos os educadores, dado que a modernidade plasma nosso jeito de ser,
buscar, fazer mundos e pessoas. Buscando contribuir com este engajamento, abro este texto para
debate.
Prof. Passos.
1
Doutor em Educação, professor associado do Depto. de Teoria e Fundamentos da Educação da UFMT e do
Programa de Pós-graduação da UFMT. Coordenador adjunto do GPMSE/GEMPO.
www.luizaugustopassos.com.br
Assisto junto com meus alunos, por sugestão deles o filme: O Enigma de Kaspar
Hauser, de Werner Herzog. Acima desenho quando fora encontrado, seu túmulo e o
monumento que retrata sua presença meteórica numa sociedade que aspirava a ORDEM.
Li ainda, para meu consolo, um comentário crítico no FOLHETIM, 22/07/94, pp.
3-5 com o título de “Kaspar Hauser: a apologia a diferença”; fornecido por uma aluna,
a respeito, decodificando em grande parte a empreitada de Herzog, em uma entrevista
dele mesmo. Contudo, a autora do comentário crítico-cinematográfico LUCIA NAGIB
limita-se a apontar o núcleo de debate do filme, descrevendo cenas em que isso se
patenteia, sem obviamente entrar em detalhamentos, menos ainda de deter-se
longamente em comparação com a modernidade. Isso busco compreender e interpretar.
Quero contribuir com esse debate e explorar o caminho que se apresenta mais ou menos
virgem à decodificação à crítica contumaz de Herzog à Modernidade.
*
*
*
A Atmosfera do filme de Herzog, do qual eu assistira apenas Aguirre, a Cólera
dos Deuses – um extraordinário épico sobre a invasão espanhola, da qual resulta a
destruição da cultura pré-colombiana das Américas – salienta o gosto de Herzog, de
mover uma crítica penetrante e radical ao paradigma da modernidade, na aliança deste
paradigma com os objetivos de expansão colonialistas; contudo, em “Aguirre...” trata-se
da aliança da Igreja Romana interessada nos processo da Missão, de recuperá-la para
Cristo de súditos, perdidos na Europa para o braço protestante, pela ação dos Reis
Católicos legitimados no Padroado, representando o papado, garantindo por sua vez os
espólios dos povos dominados para o reino Português2; e, em Kaspar Hauser trata-se
da defesa do pensamento racionalista esteiado na reforma Protestante.
Neste tratado o Sumo Pontífice reconhecia o direito do rei (português) a submeter povos, escravizá-los,
reduzi-los politicamente à servidão do rei português sob o poder político do Infante D. Henrique, bem
como reconhecia suas incursões a terras pagãs como legítimas e com foro de missão religiosa embora
jamais completamente sacramentado juridicamente, passou a vigorar na prática e determinou até idos de
1903 – e, portanto mesmo sob o regime da república (em que a aliança Império-Igreja estava
completamente desfeita aparentemente e em discurso), atos de desmembramentos territoriais das
“Parochias de Guia e Brotas, que tiveram lugar em Mato Grosso”. O padroado foi, portanto um contrato
estabelecido entre o papa Nicolau V, o rei português D. Afonso e o Infante D. Henrique, cujas cláusulas
exponho sinteticamente, e que estão expressas na bula ROMANUS PONTIFEX de 08/01/1454 “Não sem
grande alegria chegou aos nossos ouvidos que o nosso dileto filho Infante D. Henrique, incendido no ardor
2
O cenário do filme é reconstituído com escrupulosa fidelidade à época, costumes,
indumentária dos personagens, fiéis do ponto de vista cultural aos idos de 1812, onde
ocorre o fato da “descoberta” dum menino-rapaz mantido em cativeiro numa caverna,
sem contato com outras pessoas que não seu alimentador. Desenvolve-se no
personagem um sentido e percepção distinto (“diferença”) para com o mundo da
modernidade em estruturação, que desejava patrolar, efetivamente, toda a natureza por
um projeto civilizador. Nesse cenário em que se desenrola uma história de problemas
culturais, psico-sociológicos e culturais - transcrito pelo diário do jurista Anselm Von
Feuerbach, personagem ‘vivo’ no filme, e que era coetâneo do acontecimento, pai do
eminente filósofo Ludwig Feuerbach -, é que Herzog escolhe como campo de batalha os
conceitos universais, genéricos e abstratos da modernidade. O Filme por isso toma os
autos do processos lavrado por Anselm, no momento mesmo em que ocorria, e serve de
material para a criação do filme: não é, por isso, pura fantasia ou romance.
Algumas questões da modernidade em Herzog
O filme inicia centrado sobre o personagem principal Kaspar. Ele é identificado
com estereótipos que o colocam na mesma condição dos animais, comendo, bebendo,
coçando-se e rosnando-se, como se fora natureza - não ‘domesticada’, ainda - pela
cultura. É um ser-em-si (sem nós e o mundo) e um ser-para-si (fechado nele),
coincidentes na mesma corporeidade, sem rupturas. Ele está “livre” da consciência
reflexiva dos humanos pensantes, livre - por isso - mesmo da culpa e do desejo: por isso,
tantas vezes a inveja que ele despertava naqueles que já se encontravam fissurados pela
cultura. A moça comentará: “É um verdadeiro filho da natureza!” E, ele declarará mais
tarde de si mesmo que no cativeiro não sofria e nem tinha sonhos. Tratava-se, portanto,
de uma inteireza do ser, sem fragmentação, ao qual iniciará, com certeza, pelo duro
embate com a alteridade. Lembra Hegel, cuja história da Ideia universal e só, estivera
adormecida também, coesa e sem co-ns-ciência de si e de nada, até tropeçar na
materialidade (alteridade) que a coloca em conflito. Assim, o encontro primal da
consciência com a exterioridade é imediatamente na descoberta da própria limitação, e
da fé e do Zelo da salvação das almas se esforça [...] fazendo pregar o nome de Cristo entre os povos que a
seita infesta há vinte e cinco anos com suas poderosas naus chamadas caravelas não cessava com grandes
trabalhos, perigos e despesas, de devassar o mar. Tivemos conhecimento de que o Rei (D. Afonso) e o
infante, receando que quando obtiveram com os tais perigos, trabalhos e despesa e possuem como
verdadeiros senhores, outros movidos de malícia ou cupidez o venham usurpar ou danar, levando aos
gentios que os habite a resistir-lhes mais fortemente impedindo assim, não sem ofensa de Deus, o
prosseguimento de tal obra (para isso) nós pensando em tudo [...] concedemos [...] plena e livre faculdade,
entre outras de invadir, conquistar, subjugar quaisquer sarraceno e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras
e bens a todos reduzir a servidão e tudo aplicar em utilidade própria e dos seus descendentes [...]
determinamos e declaramos que o mesmo Rei Afonso, seus sucessores e o Infante poderão livremente e
licitamente estabelecer naqueles , tal como nos outros sues domínios, proibições, estatutos e leis, mesmo
penais, assim como tributações, tanto nas terras já adquiridas como nas que a adquirir [...] poderão
fundar nessas terras Igrejas, mosteiros, para enviar eclesiásticos seculares e regulares [...] ninguém tente
impedir sua pacifica posse [...] se alguém indivíduos ou coletivamente, infringir estas determinações, seja
excomungado” Os grifos foram feitos por mim. Extraído de HAUNK, João Fagundes. História da Igreja na
América Latina. Petrópolis: Vozes, 1987.
por isso negação de sua absolutidade. O Outro sempre limita. Implica imediatamente em
rompimento de minha pretendida infinitude. O “outro” que emerge na vida de Kaspar,
constitui em grande parte a negação dele, dramática condição de percepção dos seus
limites, mas também oportunidade de re-conhecimento e autoconsciência. O Outro torna
Kaspar estranho a sim mesmo (L’étranger de Camus), antes concebido, sem costuras,
incosutilmente, como o tudo e todo. Entretanto, a alteridade de Kaspar também é um
tropeço para a Modernidade em construção, que é incapaz de conceber o outro, senão
para colonizá-lo, enquadrá-lo, fagocitá-lo e destruí-lo.
O tempo para KASPAR na gruta é o tempo marcado pelo cavalo de pau, cuja
mobilidade dependia dele. Um ‘objeto’ que move instintivamente outro objeto, numa
gruta sem tempo.
Kaspar em nada se diferenciava das crianças-lobos encontradas, Tamasha, Victor,
e as gêmeas africanas Kamala e Amala. Também eles e elas não tinham desenvolvido
uma conduta em padrões humanos, nem mesmo no desenvolvimento dos sentidos.
O filme mostra seu tutor, que o livra de estar acorrentado, e agora, Kaspar sem
equilíbrio e também sem ter aprendido a andar precisa ser arrastado para fora de uma
caverna, destituído de vontade e intencionalidade, como se fora um ente sem vida. Ele
não reage, sofre a ação como se fosse um “cadáver” – etimologicamente: Ca-dá-ver em
latim: caro data vermibus – literalmente - carne dada aos vermes; estando determinado
“de fora”, não por sua autonomia (normalizado por si mesmo) ou liberdade, mas
aguardando as iniciativas heterônomas (normalizado pelo outro) e para o outro
(instrumento). Seu estado é de objetificação total. E sua defesa é o ilhamento3 em que se
coloca, aguardando docilmente o comando. Não aparece em nenhum momento ira. Ser
inocente é, para Herzog, capaz de apavorar-se diante de uma galinha e de chorar
lágrimas contido e sem gritar ao ser queimado pela chama de uma vela. Está posto
diante da diferença de forma inapelável e indefensável.
A primeira tensão posta pelo desejo também vem moldada “de fora”, quando seu
protetor reiteradamente indica para nunca esquecer o objetivo que deve ser
internalizado, o de “ser tão bom cavaleiro como seu pai o fora”. Kaspar é, então,
carregado para fora da caverna. Neste momento inicia a cortina sonora, solene e grave,
preludiada por uma música ligada ao mundo antigo (entoada as primeiras palavras em
tom gregoriano) dando em seguida lugar a uma “polifonia moderna”: o coro a capella
(várias vozes simultâneas que compõe acordores, dispensando instrumentos acústicos).
A melodia é um hino fúnebre da Igreja que decora lápides: o patético grito: REQUIEM!
(Descanso eterno, dai-lhe, senhor!) – música que anuncia o cortejo de um vivo, velado,
durante toda a sua vida agora destinado ao sepultamento(!) , sob o compasso do tempo
cronológico representado pelo relógio na parede. O relógio parece prenunciar o fim da
eternidade do presente da caverna, agora quebrada pela aquisação de uma história
própria, contingente, respingada pela morte: ‘lugar’ também da sofrida eclosão da
consciência advinda pelo atalho do outro intolerante e auto-referenciado (que valida por
3
Isolamente: do termo isola – latim – ilha.
si mesmo seu valor): uma “via-crucis”4, cujo esforço de aprender a andar passo a passo,
se já aponta desde já para um destino comum dos humanos, o fim da vida irretorquível e
inelutável; tem o agravo de estar destituída de todos os privilégios dos bem nascidos:
uma vida-em-caminho-para-a-morte (HEIDEGGER), de não obter o privilégio de estar a
bordo da consciência dos vivos (SARTRE).
Aliás, tempo e morte se fundem como o melhor conceito de expressão da ação da
modernidade, em Herzog. A morte é a solução da modernidade à diferença. Ela também
é a ‘solução’ da vida sem sentido, saciada. As concepções ligadas a Vida e a Saúde, de
ordinário, no catecismo médico e da enfermagem, não se referem nunca à vida do ser
humano, mas ao doente, à doença, ao vírus e à morte. Trata-se da negação do movimento
e da transformação. Trata-se da linearidade do processo sem rupturas. Toda a mudança
de destino constitui um ato de subversão ao destino de uma história cujo trajeto
definido pelo Poder, tem selo da “eternidade divina”. Isto estará presente a cada
momento em que os circunstantes tentam arrastar KASPAR para o mundo deles. Um
mundo fechado, um mundo marcado pela continuidade, cuja argamassa exclusiva é
sustentada pela Razão monolítica em desesperada luta de afirmação contra a morte e a
sua falta de sentido.
Kaspar é objeto5 na praça
Ali está ele, imóvel, sob alguns olhares sem pejo, o da mulher adoentada
limpando o nariz, o do boi peado, o do casal impassível cujo marido esfumaça
descuidadamente ao tragar o cachimbo, o uivo de estranheza do cachorro, o sino
implacável – marcando o tempo cronológico, representando pelas horas que se esvaem
como se tivesse contudo num tempo petrificado. Uma vaca marca o compasso giratório
sobre mesmo, preso numa árvore, sem qualquer trabalho frutífero, lembrando o tempo
grego, o tempo de Sísifo – cuja metáfora, a do burrinho grego de Camus, retomará o
mesmo caminho sofrido de levar uma pedra ao cimo de uma montanha, para que de lá
ela role necessariamente para baixo, donde Sísifo com paciência dedicar-se-á a refazer
sofregamente seu intento eterno, o de levar uma pedra onde ela, de antemão, está
interditada de poder estar. É também o tempo circular dos gregos, o do Prometeu, cuja
águia durante toda a eternidade comerá o seu fígado eternamente, posto que se
aventurou a roubar o fogo dos deuses no Olimpo.
Nesta condição, de quem dá voltas no tempo, está Kaspar na praça da cidade, com
um “estranho no ninho”, donde executa apenas ordens que lhe vem de fora, sem
pestanejar. “Não saia daqui até eu chegar” – Esta foi a ordem emitida por uma figura
que nunca mais pretende retornar, salvo para vê-lo sob os olhares zombateiros dos
outros numa espécie de “circo”, e ao final dos seus dias para executá-lo (?!?).
Interrogado por um cidadão que quer ajudar, a primeira fala, deste mesmo
estranho chama-o de “Cavalo” para depois corrigir por “Cavaleiro”. Não é desprezível
4
5
Literalmente um “vida da Cruz”, tão bem expressa pelas Vias Sacras.
Objeto: ob-jactum – os que está aí jogado...
tal informação, pois o cavalinho de pau movido na caverna pelas mãos de Kaspar, e
também o cavalo preso na árvore em círculos, são na verdade a projeção da
interioridade de Kaspar confinado.
Kaspar é encaminhado ao senhorio, ao qual remetido pela carta anônima que
trazia a mão. O ‘dono’ – capitão da cavalaria- , contudo, viajara. Seu destino imediato é a
estrebaria, junto aos animais. Lá há repouso sob o bafo sensível do cavalo. À chegada do
dono, o encontro adquire uma curiosa feição: o registro público do escrivão Anselm Von
Feuerbach minuciosamente atento ao que está de fato escrito na carta lida. Sempre
consulta escrupulosamente o texto para compreender a pessoa. A modernidade
pretende estender o texto como um “objeto” venerado que não esconde a verdade. O
escrito torna-se mito, testemunho veraz. Nossos documentos é que testificam quem de
fato somos. Trata-se do testemunho, a carta, o livro escrito é o grande fetiche da
modernidade, constituirá a verdade à qual a vida do homem dever-se-á submeter.
Menos do que as informações do sujeito vivo, vale o documento, o simulacro; o
testemunho do outro, escrito. Vale pouco o que Kaspar revela de si enquanto sujeito vivo
– interessa muito mais a história dele contada sob signos escritos – ele dirá à mulher do
prefeito: “A única coisa interessante em mim, é minha vida!”. Ela poderia ter dormido
sem essa... Não valem verdade, justiça, vale a lei em sua Letra. Letra morta. Mais
precisamente, ao pé da Letra. Trata-se da falência do “objeto real” demolido por sua
representação – alienação - nota tônica da modernidade no dia a dia de todos nós!6
Ali a nudez de Kaspar deixa sobressair a brancura da pele, comentada pelos
circunstantes; as botas que saem fácil e também a delicadeza da pele dos pés que
sangravam desabituados ao uso ordinário de botas. Seu corpo registrava ainda
“bengaladas” – signo do castigo. O cativeiro ainda que só, e sob correntes, não privou
Kaspar da repressão sobre o corpo – essa coisa odiada pelos modernos! - método
essencial da concepção tradicional (que sobrevive nas pedagogias); dizia de direção
correta de modelar o caráter tão a gosto da violência, como caminho da descriação.
A reforma entenderá que a concupiscência semeada pelo pecado abre no ser
humano uma fenda irretorquível de corrupção pela queda ontológica de origem7, de
sorte, que o ser entregue a si mesmo corrompe-se, deforma-se, caso não haja um esforço
de fora, pela educação e pela graça divina – aquilo que as instituições costumam matar - ,
para “salvá-lo” para uso da sociedade e para a pretensa usura de “deus” possessivo. Esta
sequer é a concepção de Comenius que abrira a instituição escolar segundo o projeto de
Educação da Reforma: de emancipação, autonomia, e para uma pedagogia republicana.
A Pedagogia que temos não levam à humanização pois passa pela formatação e
normalização das pessoas, para concebê-las dissociadas do mundo e da natureza, e para
inserir no projeto cultural da modernidade: o capitalismo que ensina três dimensões da
relação: exploração (econômica); dominação (cultural) e expropriação das relações
Há alguns anos conheci um secretário de Educação que se defendia pelos gráficos. Era muito difícil tese
contrária, posto que a (des)aprendizagem real dos alunos precisava confrontar-se com a realidade do
sucesso escolar atestado cientificamente nas representações estatísticas e gráficos.
7 O Pecado original.
6
personalizantes (subjetividade). Mas, que aprendizagem teve Kaspar para sofrer
castigo? Parece – o filme insinua – o ler e escrever e desenhar pela fantasia, sem tutor!
Lá encontra-se Kaspar apalpado, vasculhado. O “outro” dominado e manipulado
porque “estranho”, trás perigo às pessoas. Pensa-se em escrupulosamente ‘higienizar’ as
relações, desnuda-se de suas roupas para coloca-lo no banho ritual, fala-se em vaciná-lo
(método tão rústico na época), ao mesmo tempo ela já havia sido vacinado, pertencera
ao mundo dos que tinham poder. No Banho ele exclama: “Mamãe estão arrancando
minha pele!” – para descontaminá-lo do seu antigo mundo (Goffmann). Encontram, - o
que o salva – entretanto, em Kaspar estereótipos do mundo deles, o livro de rezas, de
pensamentos espirituais, o terço de cruz de metal, as folhas de ouro; todos estes signos
são indicadores de sua origem e o perigo de sob Kaspar haver outro senhorio de poder
maior: o poder eclesiástico e os castelãos. Penduricalhos sem significação para Kaspar,
mas que servirão mais como referência para os receptores. Ainda que não decodifique o
“outro”, prenunciam a persistência de um enigma vivo; e, neste caso, um problema para
uma racionalidade que tem o poder de tudo explicar e devassar. De onde virá, quem são
seus descendentes, pertencerá a família de nobres. Ligados a Napoleão Bonaparte?
O interrogatório conta com a presença da guarda (repressão), cujos métodos,
entretanto, embora abandonados explicitamente para esse caso – “com os métodos
policiais habituais (diz autoridade hábil no assunto), nada obteremos” – fica
enunciado os procedimentos “habituais” adotados (ordinariamente) para manutenção
da segurança e do controle social imposta: a ameaça, o espancamento, a tortura, a
crueldade e a morte – dimensões ainda hoje alardeadas pelos indecentes programas de
TV que usam a indigência para legitimar a violência total contra tudo e contra todos,
tirando os núcleos dos que possuem dinheiro e poder.
Kaspar será então enviado à torre, uma prisão para “vagabundos e ladrões”
ainda que não tenha “cara de mau”. É novamente a exterioridade determinante, e
porque não dizer, a ameaça do OUTRO, que faz ceder à ‘objetividade’ do medo, e a
introdução de dimensões de subjetividade.
Curiosamente o ritual de exame termina com o mais veemente testemunho de
ligação entre o mundo externo e o de KASPAR, a representação de seu nome escrito,
apesar de que isso em nada esclareça a investigação: sua origem!
Os rituais de socialização são um a um repassados a Kaspar, pela família. Trata-se
da adequação de sua pessoa ao universo dos circunstantes, aprender a comer, “sentouse afinal”, “ele precisa esticar as pernas”, “na caverna quando o tiraram mal ficava
em pé”, “vamos apoiá-lo na cadeira para que ele coma sem cair” e o extraordinário
esforço para arrancar-lhe o chapéu. O outro sempre precisará ser o mesmo. É preciso o
controle social diuturno para tirá-lo da trilha da natureza, da identidade para que
adquira ‘modos”.
Obviamente estes símbolos ligados ao corpo são extensão do próprio corpo.
Sobretudo na medida em que não fomos ainda treinados para deglutir os objetos à nossa
volta, sem remorso e atenção. Expressam a mutilação da própria compreensão simbólica
de si mesmo, é o que Foucault e Goffmann vão demonstrar, e que Merleau-Ponty leva às
últimas consequências: não existe um mundo fora que não esteja dentro. Trata-se de um
estraçalhamento na identidade de Kaspar, violada através do seu corpo. O corpo é o selo
definitivo da totalidade, em sua dimensão pública. Na parede um pássaro preso à gaiola
muito pequenina, - pássaro selvagem preso há poucas horas – se debatendo procurando
sair, é motivo de identidade entre ambos, a figuração (analógica) do aprisionamento de
Kaspar, encurralado estreitamente, mais ainda do que fora em sua caverna. Este mesmo
pássaro, quando na prisão, estará na janela pedindo comida, livre, e provocando o
sentido de felicidade pela liberdade de ambos. Doravante, os muros são constituídos
pela liberdade dos outros. Isto é, a experiência do mundo humano da liberdade
configura-se ao próprio KASPAR uma prisão bem mais estreita que sua caverna
primitiva. Ele o dirá. Aliás, sempre lhe será dura a presença destes labirintos humanos, e
seu compartilhamento comunicativo entre animais e bebês recém-nascidos, e o estar na
cama, na fantasia, nos sonhos, isolado, constitui sua maior felicidade. Tão lamentada
pelo pastor que o adota. É quase uma evocação das palavras históricas de Inês de Castro,
narrado nos LUZIADAS, de Camões: “Põe-me onde haja feridade, entre leões e tigres e
verei, se posso neles encontrar piedade, a que entre peitos humanos não achei”
Pela primeira vez KASPAR olha-se num tanque de água e se vê. Tenta segurar4-se
com as mãos. Diluí-se na vertigem. Ali estão dois, um livre e em movimento, flexível e
sem contornos, o outro rígido, preso, marcado.
A vida de Kaspar decorre entre as crianças que vão lhe ensinar os nomes das
partes do seu corpo e mediante a repetição, aprender o versinho infantil sobre o gato.
KASPAR tentará ensinar ao gato como caminhar sobre dois pés, num evidente sinal de
continuidade entre e aquele animal, a que a menina adverte dizendo-lhe que o gato
jamais aprenderá fazê-lo.
O mundo de Herzog parece um mundo absurdo e kafkiano. Entretanto, é o
mundo MESMO da modernidade que é si mesmo um mundo marcado por requintes de
violência, desumanidade e consumação. Herzog apenas transpõe para as telas com
maestria uma história verossímil reproduzida à letra pela narração de Feuerbach.
Kaspar procura alimentar um pequeno corvo com alimento, apesar das
dificuldades de ambos, há entre ele e o animal real, comunicação, abertura entre um e
outro: ele mesmo, Kaspar rosna de felicidade, um flash back da mesma linguagem
corporal de sua caverna.
A tentativa de comunicação dos aldeões com Kaspar passa pela cena ridícula de
capitão, esgrimando no ar, contra nada, e procurando estocar Kaspar para ver se ele se
defende ou tem medo daquela espada imaginária. Os olhos de todos acompanham a cena
com curiosidade voraz e espanto face à impassibilidade do rapaz face ao que ali se
representa. A modernidade cultua ridiculamente representações contra a realidade
selvagem, sempre livre das representações. A única lógica está em Kaspar!
Acendem uma vela. À chama, os olhos de Kaspar ficam presos como que
enfeitiçados e expõe seu dedo à ela, demoradamente, queimando-o. Kaspar não grita, se
encolhe: aprende reiteradamente que não será ouvido, onde a ternura e a compaixão é
fraqueza inútil. Não chora, apenas deixa escorrer as lágrimas de contestação, em dor e
sofrimento. Está sufocado diante do espetáculo conduzido pela frieza dos seus
espectadores, face à mulher que esboça um riso de deboche. Esta sociedade sem ternura,
atroz, sente prazer no sofrimento do outro. Esta sociedade capaz de conduzir
experiências destrutivas e dolorosas em animais e seres humanos, alto preço em nome
da ciência e do conhecimento, e sob a égide da observação objetal, que não conhece
limites. É a racionalidade kantiana, posta no Iluminismo de pé e justificada: tudo o que é
possível no campo da ciência é ético: devemos tudo o que podemos. E nossas
possibilidades parecem que se aprofundam no mal-feito! Não foi Herzog que criou o
otimismo trágico; afagou a estética da guerra, conduziu o mundo da ciência à
progressiva destruição da natureza e da própria humanidade; enfim, tudo em nome da
Racionalidade científica – deusa louca - que ainda hoje se processa agora em escala
ampliada pela implantação de um modelo neo-liberal, do agronegócio e do genocídio
cujo ícone, no Mato Grosso, é Marãîwatsede.
Se o sufoco do grito de Kaspar pelo fogo esteve cristalizado; na cena contígua, ele
emerge pungentemente: uma criança chora desesperadamente no berço, a presença e o
toque de Kaspar a acalmam. Com a criancinha indefesa no colo, Kaspar encontra
identificação e acolhimento para soltar seu gemido de confidência da mesma nudez
“Mamãe, ninguém aceita Kaspar!”. É a suplica de quem foi emudecido pela impiedade.
Sua voz é agora clamor no deserto por uma surdez ontológica da razão ensandecida,
única lógica dos seus observadores. É a fragilidade denunciadora da incapacidade de reconhecimento do outro-estranho, no espaço e na temporalidade modernos,
excessivamente cheios de si próprios. A modernidade foi capaz de produzir o
(en)cobrimento do outro8. A outridade tornou-se para ela um apêndice de sua própria
mesmice (DUSSEL). O narcisismo doentio enlouqueceu uma época, e, destinou à morte, a
nossa.
Kaspar aparece numa bacia, nu, sendo lavado como um menino, sob a cínica
admoestação de que “ninguém vê”, só Deus! - ao mesmo tempo, que seu corpo como
objeto oportuniza um debate sobre a origem, se é descendente de uma casa principesca
de Baden que o teria afastado da sucessão; até o comentário sobre seus traços rudes e
grosseiros, ou delicados e suaves. Na verdade as pessoas evocam no corpo do outro suas
próprias projeções e crenças, posto que elas estão encurraladas sob seus próprios olhos.
O outro é a possibilidade de expressar a dor pessoal, escondida sob repressão, da cultura
sem piedade. Nem a existência palpável do corpo material do outro, libera alguém da
cegueira. A última história de Kaspar denunciará: É uma sociedade de massas guiada por
DUSSEL, Henrique. “1942 – O Encobrimento do Outro. a origem do mito da modernidade. Conferência de
Frankfurt”. Petrópolis: Vozes, 1993. Dussel tem por tese que a modernidade é de fato um acontecimento
europeu, mas que compreende uma relação dialética com a periferia não podendo apenas incluir o
desenvolvimento dos países sob seu estandarte, mas de incluir a miséria estabelecida pelo eurocentrismo
nos países empobrecidos. Esta mesma relação permite transpor para análise das relações da diferença
entre o mundo periférico de Kaspar Hauser gravitando por sobre uma sociedade que se apreende como
centro, e que de certa forma o é.
8
um cego, desorientada, e mentirosa para consigo mesmo; dribla a verdade e o
conhecimento com seus “idolas”9.
A grande e infinita diferença entre Kaspar e os outros é que ele não possui arte de
MENTIR, ele não aprendeu dissimular. Observação tão sábia no guarda: “Ele não
dissimula... Não tem medo do perigo, não conhece...”
A cena seguinte apresenta, novamente, o cavalo girando sobre si mesmo como
intróito à ação do negociante-sábio que tira partido da curiosidade e do “interesse” do
povo, povo que por sua vez é iludido pelos seus enigmas, entre eles o “enigma de Kaspar
Hauser”. Trata-se segundo ele de quatro “mistérios”. O primeiro é o “Rei do Ponto”.
Cada rei daquela cepa, a cada geração, encolhe em seu trono até, se se continuarem os
séculos, virem a se tornar apenas do tamanho de uma pulga, capaz de ser esmagada por
qualquer um. A diminuição deles – explica o apresentador das atrações – diminui
também o Reino deles. Ali está um homenzinho de pequena estatura, um rei entregue à
sina da natureza que lhe apresenta que lhe arranca fatidicamente a condição de se
contrapor, de lutar pelo seu reconhecimento. Uma sátira ao poder dos reis, agora
colocado nas mãos de quem comercializa toda a diferença, mas muito mais a
inferioridade a partir do se etnocentrismo. Na verdade é também uma parábola do
poder transformador da burguesia, através da economia de mercado cuja ira pretende, e
vou usar o que só conheci formulado pela boca de meu pai, acerca dos sonhos dos
ilustrados: “Enforcar o último papa, nas tripas do último Rei”. Sobreviverá, a antiga
ordem feudal? Sob que disfarce? Como será o reino que o sucederá? Quem será o
próximo Rei? Quem será o próximo dono da(s) igreja(s)?
A segunda “atração” é do sábio-cego, meditando solipsistamente10 sobre sua
obscuridade, alienado em sua própria interioridade, incapaz de contato com o mundo
pelos sentidos. É uma crítica à metafísica como alienação. Há que decodificar dois
grandes símbolos presentes nesta parábola de Herzog: a do ancião – símbolo do poder e
arquétipo da sabedoria na sociedade pré-moderna, superada e demolida pela ordem
burguesa, onde o adulto é símbolo da força e do poder. Segundo, a posição curvada
deste ancião sábio evoca a posição clássica da escultura: O Pensador. A música de Mozart
– como necessidade vital de expressão da harmonia do mundo clássico, está ornando a
cena. Mas o curioso é que o apresentador do espetáculo diz: “...ele sabia todas as músicas
de Mozart de cor, mas o ensinaram a ler e escrever, e agora ele está num buraco profundo,
intocado, buscando uma caverna para se esconder”. É o escárnio da produção da cultura e
da filosofia – encarnado num tipo humano raro, um simulacro do humano nas mãos do
pragmatismo burguês. É o conhecimento eficiente e lucrativo, verborrágico, que
BACON (Roger) (1651-1626) acusará na sua “Instauratio magna scientiarum” (Grande instauração da
Ciência reconhece que o estabelecimento de um “Novo organun” das Ciências teria uma parte por assim
dizer crítico-redutiva e outra parte sintético-construtiva. Bacon atribuía a fonte principal de erros a três
grandes tentações dos homens, as “idolas” (ídolos, fantasmas) Os erros da natureza dos homens (Idola
tribus), os das nossas “cavernas”, provenientes do subjetivismo (Idola specus) e os erros da praça, do
senso comum (Idola Fori) e erros cênicos-teatrais provenientes de prestidigitação (Idola theatri)
10 Solipsismo: latim: soli, ipso: só, o mesmo – ato de isolar-se a si mesmo de maneira a perder contato com
a realidade circundante e as pessoas que dela são parte (Passos).
9
desdenha e destrona a sabedoria. É o Herói substituindo o Santo. É a lógica e a
consciência relegando o inapreensível, o mistério e a mística.
O enigma do índio, o antepenúltimo, explica que ele só é capaz de tocar flauta
compulsivamente e falar a sua própria língua. Está imiscuído em seus mitos e suas
crenças que o levam a ridícula crença que se parar de tocar a flauta desabariam os céus e
a terra, e tudo tornar-se-ia morte, noite e caos, e “morreriam as pessoas da cidade”.
Toca flauta ininterruptamente como se movesse céus e terras. Ali está o término de uma
nação “enquadrada”. Também ele não tem pontes – é uma “mônada” leibniziana, sem
portas nem janelas, para o mundo cultural circundante.
O quarto enigma é o de Kaspar Hauser: nada se sabe, será um príncipe, um
descendente de Napoleão Bonaparte, quem quer que seja, a “piedade” de quem o
acolheu o coloca na “vitrine” para “tirar vantagem do interesse para sua
manutenção”. Kaspar é uma inutilidade porque não produz sua própria existência e,
nisso é um mutilado do ponto de vista da concepção burguesa do trabalho. É um boneco
identificado com o seu passado, as mesmas roupas, o mesmo gesto, o mesmo bilhete nas
mãos como se fosse uma estátua numa praça ou um manequim, alheio ao presente e ao
significado criacional dele.
A cena seguinte é o esboço de um circo (?), em que um macaco está montado
sobre um cavalo parado. O cavalo anda. O macaco não toma qualquer iniciativa. O cavalo
parece carecer da iniciativa do “cavaleiro”, incapaz de “dirigi-lo”. Tudo é apenas um
arremedo e uma comédia. É o niilismo da modernidade captado extraordinariamente
por Herzog: um universo trágico jogado em situações inúteis e sem alternativas.
Em cena contígua um fato novo desequilibrante desta situação, recupera o
movimento: trata-se da fuga desesperada do índio (Hombrecito), do Rei do Ponto e de
Kaspar. A fuga de ambos descritos pelo viajante e dono do circo, antes para aqueles que
pagavam, como seres alienados e submissos é a desmentida como estereótipo criado
para enganar.
A fuga é, contudo, um desespero ineficaz. Sempre se poderá fugir de um espaço
restrito, de um tempo demarcado, jamais de uma Cultura! É a inutilidade da Alternativa
para quem está fora do sistema! São ameaçados pelo senhorio situado de dentro da
ordem estabelecida esteiada sobre a letra da Lei – “Se quebrarem um galho da árvore
eu os responsabilizarei”. Trata-se de um “parem diante da Lei!” para aqueles que
precisamente estão fora dela. É um grito tão ingênuo quanto a situação de fuga. É a
inutilidade da Palavra para quem está fora do sistema!
Kaspar retornando a seu protetor se expressa em poesia. Sua poesia (Poiésis11),
entretanto, é forjada no incêndio do desejo acenando um projeto vitorioso:
- “Eu queria ser um cavaleiro para travar um combate sangrento”
11
Poiésis: (grego) Criação, “fazimento”, gerar do nada (Passos)
Seus desejos retomam o caminho de casa, do início de sua socialização: “ser
cavaleiro”, mas concretizado na forma de um combate sangrento. Trata-se do IMAGO
introjetado, uma situação pré-moderna.
A cena que se sucede novamente ataca a cultura pré-moderna: Kaspar ouve
atentamente aquele que toca mal e grosseiramente no “cravo”, temas barrocos, sob o
som duma cantilena que o absorve inteiramente. Personagem também enclausurada,
ensimesmada, mostrando o destino da arte, alheia ao combate com o mundo. Esse toque
descompassado e compulsivo, produz um impacto talássico em Kaspar.
- “A música me soa forte no peito. Eu me sinto velho”.
É uma forte expressão parida do anacronismo. O tempo é a identidade da pessoa.
Kaspar não pertence ao tempo da modernidade, que é um tempo flecha linear. Tempo
que desreconhece tudo o que se passou. Mozart está morto. É uma denúncia da
insolvência também de uma pujança da beleza. O que é belo para o homem, está acoitado
num símbolo “retrô”. Nesta formatação da história, viver a afasia do tempo e do espaço é
que constituem a salvação. Arremata Kaspar: “Os homens são uns lobos!”. É a mesma
decadência artificiosa da civilização (Rousseau). verdade expressa por Hobbes: “Homo,
Hominis lupus”12.
O narcisismo solipsista só e capaz de substituir o outro, num tempo controlado,
fechado e utilitário. Se a arte é símbolo do “Anciénne régime”13 embalsamado e
mumificado, a razão arrogante e plenipotenciária também a estilhaçará e guilhotinará
setores populares, intelectuais orgânicos, revolucionários, filósofos, poetas e artistas.
E, Herzog volta-se a um desmonte pós-moderno14 da “Razão Ilustrada”. Ela não
consegue ser uma razão lúcida e coerente. E o filme amadurece no golpe certeiro
arremessado contra a lógica e a dedução e a metafísica escolástica.
A primeira situação retoma a experiência da confiança de que os dados
fornecidos pelos sentidos possam formular um juízo e transpô-lo para uma
generalização, mediante uma inferência adquirir um conhecimento novo para uma
situação desconhecida.
Kaspar, diz diante de uma imensa torre:
- “Esta torre é muito grande, eu gostaria de conhecer o homem enorme que
fez esta torre.”
Seu preceptor busca corrigi-lo tratava-se do uso de técnica, lhe diz o Pastor:
“Você não conhece andaimes, quem construiu tinha o tamanho normal de qualquer
“O homem é um lobo do homem” (Hobbes).
“Regime antigo”: expressão que se referia ao período medieval, satanizado pelos modernos e
iluministas como um tempo de trevas. Em verdade, os autores modernos perderam mais tempo em
dinamitar a cultura medieval, para atribuírem a si a criação de uma cultura do nada, do que realizar a
revolução proposta.
14 Vale muito a leitura da coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense, de Jair Ferreira dos Santos, 14
ed. 1994, “O que é Pós-Moderno”.
12
13
homem. E você esteve preso num quarto desta torre”. A percepção interpretativa de
Kaspar entra em cena:
“Isso não pode ser. Meu quarto é maior do que essa torre. Pois
quando estava no centro dele, eu olhava para trás e o via; olhava À
minha frente e o via; olha para os dois lados e ele ainda
continuava se estendendo. Aqui, eu olho para a frente e vejo a
torre e se olho para trás já não torre há nenhuma. Meu quarto é
maior do que essa torre!”
A impressão que se tem é de que se está diante de Zenon, o sofista, da antiga
Grécia, vilipendiando a lógica grosseira da evidência. É o cartesianismo em crise e
encurralado diante duma lógica dos sentidos e de representação distintas, incapaz de
poder ser conhecida sem que os caminhos da razão tenham que adquirir a diferença, e
adotar um caminho da relativização de si mesmo, inaugurando um pensamento de
novidade dialética. Merleau-Ponty será aquele que de certa forma, compartilhará com as
antinomias e as ambigüidades dos sentidos, que dirá, que efetivamente que ele não nos
enganam.
Admitir a lógica de Kaspar é dobrar-se, e estabelecer não apenas a relativização
do princípio parmenideano de que o SER É – e, consequentemente, de que o NÃO-SER
não é: referência para a lógica formal da modernidade, mas também heracliteamente
terá que admitir o seu contrário, de que o Não-Ser É Não-Ser, e que a negação conta
porque também É! Ou, no sentido agostiniano, retomado por Merleau-Ponty, que a
essência do tempo é o NÃO TEMPO; e portanto, a essência se faz pela ‘afirmatividade’
da negação15.
A argumentação contra a arte, desdobra-se para o universo religioso destacado,
ponteado pela Reforma Protestante. Mistérios e dogmas parecem incoerentes com a
própria lógica da modernidade que se estabeleceu como processadora da história pelo
mito do progresso, via uma ordem laica, expressa em utopias políticas, e a dimensão
privada e pessoal da fé. A reforma, contudo, nascida no bojo da modernidade, inaugura a
interpretação pessoal livre da mente e da razão, como fundamento da Fé erigida por
sobre a PALAVRA – uma grande síntese racional. Contudo a Razão dobra-se de joelhos
ao Senhorio de Jesus Cristo mediatizado pela Assembléia dos Fiéis e do Pastor.
Kaspar não dobra os joelhos, foge!
Teria sabido ele, que não é possível enfrentar a fé – por sua dimensão pessoal, de
foro intimo e de crença – no mesmo nível da enfrentação lógica, mesmo porque não há
representação plausível dela, nem mesmo para a “razão diferenciada” de Kaspar? Ele
não podia acreditar em Deus, na sua caverna.
Sua fuga constitui a única forma “lógica” de confronto com o ‘irracional’ da fé:
O tempo é duração. Não existe, passa existir um tempo, e mergulha de novo no não ser. Portanto, o
corpo do tempo, que o faz temporal, e portanto não eterno, é o período demarcado por um NADA antes
dele, e um NADA depois dele. (Passos, comentário a Merleau-Ponty)
15
- “Eu não suporto, os fiéis cantam aos gritos; quando calam é, então, o pastor
que grita!” – ele explica.
Gritos são de natureza aterrizadora, exorcizam o silêncio insuportável na culpa,
são ainda expressão de dor do massacre ao sujeito coletivo a arbitrária predestinação,
captada pela sensibilidade invulgar de Kaspar Hauser. Não é à toa que a música
contemporãnea ensurdeça e insensibilizem as pessoas, em muitos níveis!
Não há embate possível através dos cânones da racionalidade, com a dimensão
religiosa. A primeira busca invisibiliza a segunda. E a segunda, prossegue, altiva,
incólume, e independente do qualquer reconhecimento. “O Homem diante da Morte” de
Phillipe Ariés patenteia o insucesso da revolução francesa em busca de laicizar as
questões religiosas, sobretudo no que tangia aos cemitérios.
Herzog volta a um tema preferido, o do oportunismo religioso que esteia,
configura e implementa, por sua forma mística, uma parafernália racional. Em “Aguirre
a cólera dos Deuses” está o frade a explicar para o “rude” indígena a lógica do poder da
modernidade: “Meu filho, a natureza divina da Igreja deve levá-la a estar sempre do
lado do poder e dos vencedores”.
No filme, agora em análise, é a reforma Protestante que ameaça a diferença viva
encarnada em Kaspar Hauser, através da irracionalidade e do grito. Fiéis e pastores
gritam exorcizando o medo e o abandono, tão próprio da concepção Kierkergaardiana.
Kaspar teologiza:
- “Eu não podia aceitar de minha caverna que Deus do nada fizera o
universo”.
É Kaspar Hauser agora que está do lado da RAZÃO. Como poderia ele ter
concebido o universo numa caverna donde não tinha conhecimento do universo? Como
acreditar que do niilismo da modernidade deificada, se pretendesse fazer o que quer que
fosse? Invertem-se curiosamente os papéis. Com enorme diferença: a razão de Kaspar
Hauser não é ideologia, nasce dos próprios dados da concretude de sua existência. A
ORDEM, contudo prescrevia que ele desse sentido ao que não sentia. Seus interlocutores
agora o querem submetê-lo a uma ordem dogmática imperscrutável, de adesão
mentirosa, ato de pacificação racional ao fragmentado homem moderno: “Deves ter fé!”.
Era o “Ajoelha-te!” dos tribunais da Inquisição. Há um único caminho para os
modernos, ao bom senso-comum, o da negação da própria liberdade, o do ajustamento
às normas sociais e à submissão cega ao “senhorio”.
Os métodos do estado e da Igreja não são tão distintos: o da repressão
configuradora e são também idênticos os objetivos de ambos: a homogeinizaçãopleonástica-da-uniformidade! Vale ler o prefácio de Leonardo Boff no livro “Carisma e
Poder”.
O universo Kaspar se desenvolve dentro de uma outra lógica, ela é não
racionalista, nem mecanicista; ou seja, ela sequer é cartesiana (DESCARTES), isto se
explicita no diálogo sobre maçãs. Seus professores demonstram-lhe como uma maçã é
uma “coisa”, um objeto exterior e inerte que adquire a forma estabelecida pela vontade
humana, racional. Joga-se a maçã e estabelece-se que ela fique onde está. Põe-se o pé e
ela é freada pela decisão racional. Trata-se de um jogo do sujeito (que decide) X objeto
(inerte e em conformidade). O sujeito ativo, o objeto passivo. A maçã jogada para
demonstração, pula os sapatos, e se põe além do pé. Kaspar comenta:
- “Esta maçã é esperta e pulou do pé”
À outra que desviou o caminho:
- “Esta está cansada e quer ir dormir”
A outra, ainda, também surpreende:
- “Esperta, aquela escondeu-se no Mato”
As maçãs foram concebidas como dotadas de opacidade e mistério, que – real e
filosoficamente, são! Mas, mais do que isso, é preciso ir a Merleau-Ponty através do
Professor Fabio Di Clemente: há uma relação entre o sistema humano e o sistema dos
objetos. Não há dentro e fora.
Carece de sentido perceber coisas dotadas de subjetividade e consciência?
Ora, hodiernamente cada “objeto no universo” é expressão de uma unidade de
energia e matéria, ativa, retroversiva uma na outra, num “continuum”. Há nesta energia,
uma interioridade distinta, mas portadora de uma subjetividade, ou até no sentido
Theilhardiano; portadora de um nível de consciência menos complexo, mas capaz de
comunicar-se a uma interioridade. A matéria de Einstein, Eisenberg, Bergson, Theillard,
não é cega. Contudo, aos olhos da modernidade rompe-se a concepção organísmica do
Universo (Gaia do gregos; Pacha mama do povos andinos: mãe terra das sociedades sem
estado), introduz-se de forma linear uma concepção de maquinaria instrumental
debaixo do qual o homem exerce seu domínio, absolutamente necessária para que ser
expulse qualquer dúvida de consciência na manipulação inescrupulosa de um mundomáquina. De alguma forma o pensamento de Kaspar se circunscreve a pensamento
‘animista’ da física contemporânea e do pensamento holístico e ecológico pós-moderno.
Vejamos a “Fenomenologia da Percepção”:
“Há mais verdade nas personificações míticas do tempo do que na
noção de tempo considerado, à maneira científica, como uma
variável da natureza em si, ou à maneira kantiana...” (MERLEAUPONTY, 1971. P. 425)
É muito impressionante o diálogo do personagem com a governanta, sentada
tricoteando.
- “Explica-me para que afinal servem as mulheres?
Tal pergunta embaraçosa e suspeita, foi remetida pela criada para ser perguntada
ao senhor. A lógica, contudo, era bem mais penetrante:
- “Será que só servem para ficar sentadas, cozinhar e fazer tricô?”
A suspeita de que havia mais coisas a ser feita do que o visível mostra em Kaspar
uma atitude contemplativa crítica.
Acaso a democracia da modernidade e o pensamento ainda contemporâneo foi
capaz de vencer o patriarcalismo em que se movimenta a história da humanidade, na
qual a mulher é excluída da cidadania e da condição de pessoa? Os filósofos modernos
gestaram um inferioridade ontológica no feminino e excluíram mulheres do poder.
Kaspar gostava de conceber histórias que só tinham começo, não tinham fim. No
entanto, era sempre reprimido a que as expressasse somente quando tivesse concebido
um fim para elas. Somente na hora de sua morte (o fim dele mesmo) lhe foi facultado
contar a estória que não tinha “formalmente” ainda um fim. Em verdade ela concebia
com clareza dois finais: o primeiro no qual a morte esperava aquela multidão cansada
no fim da subida da montanha coberta pela bruma; e o segundo tratava-se do
prosseguimento de uma caminhada perdida e sem rumo. Figura de uma civilização
moderna, cujo caminho era mantido apenas por obstinação. Sua primeira história tem
por paisagem o SAARA que não conhecia, a segunda com o CÁUCASO, também lhe era
desconhecido. O que não o impedia que os concebesse do jeito que quisesse. Eles
existiam efetivamente em suas estórias, apesar de expressamente Kaspar dizer que não
conseguia delimitar sonho e realidade.
Kaspar conta que ele tinha semeado seu nome vivo com o agrião, alguém o
“pisoteou” (Não foi uma graça!!!), “...Chorei – diz ele - muito o dia todo, e o semeei de
novo. Kaspar está violentado em sua identidade: o tempo todo.
Uma cena misteriosa apresenta um filme amador16 O que se afigura na tela então,
são cenas de um deserto parecendo montículos em forma de cone, como os antigos
zigurats17. A paisagem está nua de qualquer coisa que pareça viva. É uma paisagem
bucólica.
O protetor de Kaspar levanta, pois a questão, como é possível só te sentires feliz
em tua cama? Como não vês a vida, o verde, as groselhas vermelhinhas?
- “Minha aparição no seu universo – diz Kaspar – foi uma queda bem dura.”
A palavra aparição é forte. Ela diz de uma constitutividade do sujeito a priori do
ponto de vista da temporalidade e da espacialidade em que ele surge. Isso traduz uma
consciência já amadurecida de Kaspar, Ele não mais se concebe como coisa preexistente
num informe e vazio, e que se configura humano somente a partir de um descobrimento
(O Cáucaso? O cinema ainda não havia sido inventado no tempo de Kaspar. Interessante é que também
a história contada no leito da morte recorre a mesma linguagem como se se tratasse da projeção de um
filme produzido de forma muito elementar. Parece evocar uma fantasia ou um sonho ou mesmo o
processo de concepção das estórias-poemas de Kaspar compreendidas através da sua percepção singular.
17 Zigurats era cidades em forma de altas torres, produzidas por persas, sumérios e babilônios e que aos
olhos dos judeus que concebiam o trono de Deus logo acima das nuvens, ao contemplarem estas torres
onde se dava o comércio internacional, com muitos povos e línguas, provavelmente ao verem esta
construção que desafiava a Deus, buscaram o castigo de Javé àquele povo impiedoso. A torre de Babel,
episódio bíblico, com certeza explica a confusão de línguas como castigo de Javé, para que o povo não se
entendesse.
16
de si pelos outros, ao contrário, ele é irrupção. Ele tem a consciência de que é outrosujeito-num-outro-universo, e, portanto gestado numa temporalidade e espacialidade
diversa. Ele é uma emergência da alteridade num universo de mesmidade. Defrontam-se
agora dois paradigmas diferenciados que se chocam numa “queda bem dura”! Duro
para quem? A frase não o permite dizer, salvo a experiência; e ela permite afirmar que
foi queda dura para ambos. É por isso que a vida de Kaspar se torna insuportável aos
seus coetâneos e nos marcos de sua época. Mais insuportável ainda, ter de reconhecer de
que a vida de KASPAR é outra forma, igualmente autêntica de qualificar e quantificar, e,
portanto, expressar possibilidades do real.
É neste ínterim também que Kaspar será assediado e testado por duas situações
“de fora”. A primeira diz respeito à produção do conhecimento e suas regras lógicas, do
ponto de vista da modernidade. A segunda, pelo cientista impressionado com a
performance dele, com o projeto de levá-lo para a Inglaterra pela genialidade com que
ele se apropriou do tocar Mozart no piano - a palavra, e o sucesso de sua socialização –
abandonar a natureza selvagem via trabalho.
Tratam-se dos três eixos fundantes da configuração da humanidade no mundo
moderno: o conhecimento, palavra e trabalho.
Na primeira cena temos o mais ousado diálogo entre o lógico – e, portanto, o
sustentáculo da representação substantiva e coerente do mundo ocidental versus
Kaspar.
A questão posta é baseada no clássico e paradoxal teorema do “Homem
mentiroso”: “Eu vim de uma terra onde todos mentem”. Aporia “irresolvível” do
ponto de vista lógico: se aquele que fala diz a verdade, mente! Se falar que mente, diz a
verdade!
No filme a proposição reengenhada por Herzog é:
Você tem duas aldeias, uma delas todos dizem a verdade, na outra
todos mentem. Delas saem dois caminhos que bifurcados chegam
até você. Neste caminho vem um homem. Qual é a única pergunta
que permite você do ponto de vista da lógica saber se este homem
que você encontrou na estrada é da aldeia da verdade ou da aldeia
em que as pessoas mentem?
Imediatamente, Kaspar é avisado que a lógica só permite uma resposta: é certeza
do caminho único. E, curiosamente, a governanta media a visita do lógico com Kaspar.
Ela Justifica - diante do silêncio de Kaspar – que é impossível dar a resposta a uma
questão tão complexa. O lógico, perante o silêncio e a presunção da ignorância de
Kaspar, acaba por decodificar a questão dizendo, que “é lógico, que só é possível saber se
aquela pessoa pertence a uma das aldeias mediante a uma dupla negação.” A que
Kaspar responde que tem uma outra pergunta capaz de elucidar a questão. O lógico lhe
diz que é impossível, não existe nenhuma outra questão capaz de fazê-lo, é impossível.
Mas acaba querendo ouvir a pergunta de Kaspar que explica:
Eu posso perguntar ao estranho se ele é uma rã. Se ele for da
aldeia da mentira terá que dizer que sim, e saberei que ele está
mentindo e de onde ele veio; e se ele for da aldeia da verdade terá
que negar, e saberei que está dizendo a verdade.
O lógico lhe diz que isso não é uma dedução, é uma descrição. Isso não pertence
ao universo da lógica e, que ele não pode admitir que exista um outro caminho que não o
da lógica dedutiva.
Espetacular afirmação da linearidade lógica e, sobretudo, embuste formidável de
confundir dedução com descrição, posto que Kaspar rigorosamente “DEDUZ’, não
descreve.
O pensamento moderno esgrima do ponto de vista dos juízos e dos silogismos tão
mecanicistamente quanto mantém uma prática fria de intervenção objetificante por
sobre o outro e sobre o mundo. A lógica sempre se propôs o esmagamento intelectual de
quem não compartilha de seus estratagemas. Ouvi de um professor de lógica: “A
escolástica usa a lógica do silogismo como um anel de ferro para esmagar os
adversários!” Fica patente a semeadura da guerra santa, a divisão posta do sujeito versus
objeto, a paturição da desigualdade, como fundamento da verdade. A clivagem entre a
natureza e história esteiada na razão. É, pois a racionalidade analítica que adquire a
importância, onde a partir dela, sob seu peso e medida se gera, pela valoração, a
desigualdade da diferença e do mundo e a pretendida “cientificidade”. É a racionalidade
vitoriosa, ela mesma, que constitui único limite no limiar da absolutidade (o que vale
dizer ilimitadamente) e ao mesmo tempo “locus” de legitimação das intervenções (juíza
em própria causa). Sob a visão da legitimidade com a lei e o costume legaliza-se as
intervenções debaixo da letra da lei, como forma orientadora duma nomização estável.
O segundo “assalto” é o do viajante inglês que propõe levá-lo ao Centro e Coração
da Modernidade – a Inglaterra: quer pela precedência neste país da revolução Industrial,
que pela Revolução política que precede a Revolução francesa em seu ímpeto de
democratizar o poder pela iluminação da razão.
Kaspar resiste, não é ele enquanto pessoa que está sendo o lugar da decisão, mas
o que ele produz. Refugia-se em dois estrategemas: frustrar as expectativas sobre sua
“produção” pela “anarquia” da execução de Mozart no piano. Segundo, “confunde os
expectadores pela inversão dos papéis”: tricoteia, e por isso mesmo, paradoxalmente,
produzindo! Estas atitudes confunde aquele que se autoproclama “seu protetor” que se
pergunta, com estranheza, “que diabos está fazendo?” naquele trabalho grosseiro
reservado às mulheres. A resposta de Kaspar agir-pelo-absurdo implica numa resposta
no mesmo nível e grau ao desafio que lhe é desferido pela racionalidade adoecida e
insana.
A “dor de barriga” provocada por nozes (fictícia?), que o faz correr atropelando a
garça que comeu seu nome escrito pelo agrião, para desmentida pela cena de Kaspar
escondido comendo ovos. Na espreita, Kaspar é repetidamente acertado com um cajado,
sob a cortina sonora das vozes cantando – pela segunda vez – o mesmo “Réquiem”!
Kaspar, contudo, não morre.
Recuperado, conta a história segundo ele, ainda sem fim (?!):
- “Vi o mar, e a montanha, uma procissão de gente cansada, no meio da
bruma, lá em cima a Morte esperava por eles.”
Mar e montanha contrastam com pessoas, cansadas, na escuridão, caminhando
para a morte: projeto e destino de uma sociedade necrófila.
A cena seguinte Kaspar vai mostrar-se correndo, como se fosse um espantalho
novamente enrijecido, e objetificado: “Fui observar o jardineiro, ele me deu uma
bolsa e me feriu”. Havia, porém desta vez um bilhete em que o personagem misterioso
diz que Kaspar o identificaria por isso assinaria o nome... Herzog omite o nome.
Precisava? Parece que não. Na verdade a morte de Kaspar Hauser não foi articulada e
levada a efeito por um único indivíduo, mas por uma horda de guardiões da civilização. A
cada momento ele foi sofregamente triturado e consumido pelos cidadãos, pela cultura
narcisista e etnocêntrica e pelos paradigmas da modernidade. É a Cidade que dirá a
última palavra – nas última cenas do filme lá está a cidade composta, extática, simétrica,
ordenada e vazia. Ela é o instrumento vivo do poder de solvência universal do capital –
nos lembrará Chauí – em ascensão por sobre a subjetividade humana, no mesmo
espírito expresso pelo Manifesto. Está aí a lógica da Modernidade:
‘dessubstancialização’ do sujeito para torná-lo essa coisa informe e monótona chamada
evaporadamente cidadão.
Ouve-se o pastor articular a leitura de um salmo Bíblico, cujo teor assemelha-se
ao Salmo 129. O salmista está esmagado debaixo da opressão e do medo. Inerte perante
o destino da morte eminente tramada por seus amigos, do pó ele clama ao Senhor que
tenha misericórdia.
Kaspar ainda uma vez retoma a palavra. Está no fim de sua vida. Mas a história
que ele vai narrar está apenas no começo. “Só sei o começo!”: ele não se entrega.
Porque começo e morte seriam incompatíveis?
A morte é um ato com personagem único. Ela recorta na massa
confusa do ser essa zona particular que é nós. Põe em evidência,
sem ser secundada por nenhuma outra, essa fonte inesgotável de
opiniões, sonhos e paixões que animava secretamente o
espetáculo do mundo e, assim, melhor do que qualquer outro
episódio da vida, nos ensina o acaso fundamental que nos fez
aparecer e nos fará desaparecer18
Ninguém testemunha a própria morte, pois para tal precisaria ainda estar vivo. E
a história contada por Kaspar Hauser vivo, não fala de sua própria morte. Ele não fala a
18
MERLEAU-PONTY, M. Lecture de Montaigne. In: CHAUÍ, Marilena de Sousa. Da realidade aos mistérios
do mundo: Espinoza, Voltaire, Meleau-Ponty. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.180.
partir de essências. Fala sempre imerso na experiência e, por isso, sua história tem por
eixo a preocupação a vida, e a vida dos outros.
Vejo uma grande multidão num deserto de areia ela o atravessa. A
frente dela há um velho bérbere, ele é cego, a água acabou. Eles se
perderam. Olham uma bússola (instrumento produzido no
começo da modernidade e dos descobrimentos) não a entendem.
Estão diante de montanhas. Ele leva a areia à boca, come a areia e
diz: “Vocês estão errados, não são montanhas aquilo que se vê à
nossa frente, não passa de imaginação. Vamos para o norte” E a
caravana prossegue em direção e a história continua naquela
cidade. Mas a história daquela cidade eu não sei...
Na tela, entretanto, aparece agora uma caravana em frente a montanhas,
dispersa, cada um indo para diferentes lados. É o mito a negar a realidade. As
necessidades da criação das crenças continuam a obscurecer a verdade que está à frente.
Os homens continuam sem direção tangidos como gado pela ideologia que os desorienta
e os cega.
“Mas, (arremata Kaspar) a verdadeira história desta cidade eu não sei. Esta é
a minha história. Estou cansado.”
Há consciência de Kaspar de que a sua é uma interpretação possível da cidade
que sequer pode ter uma história verdadeira. Esta era a sua: não a única. Como ter
acesso à história daquela cidade da qual ele jamais foi parte? Com certeza, confronta-se
com ela como duas versões; no mínimo, duas histórias, duas configurações, duas
formatações de uma realidade informe, obscura e opaca. Uma história jamais, em seu
fluxo mutante, poderá ter um fim. Como poderia conhecer a história de uma cidade que
nega a história, definitizando o tempo para que ela mesma não passe. Congelando seus
heróis.
Esta VERDADE da História que chegou a Kaspar, não chegou, contudo aos outros
cidadãos da Modernidade: eles foram cegados!
A cena decorre agora estanha e tétrica.
Um sudário branco cobre toda a tela, e no meio aparecem dois pés hirtos e
inertes. No pé direito um bilhete – onde nada se pode ler nada – afinal das contas, como
identificar na morte quem não pode ser identificado durante a vida? Ainda mais quando
a essência do sistema esteja relacionada com a lógica da morte e da negação dela?
A cena é a “intelligentsia” curvada perante um cadáver. Continua o massacre do
homem, uma dissecação do corpo de Kaspar. Ali também continua desaparecido o
sujeito, trata-se de um animal dissecado e esquartejado em busca dos desígnios
misteriosos encobertos sob os tecidos. É novamente um objeto perscrutado, devassado,
medido, pesado, sem qualquer relação simbólica com o que possa ter sido enquanto
homem. Trata-se de uma “TANATOFILIA19” inerente à modernidade, a de se vangloriar
na destruição do objeto até a morte demonstrando a necessidade de sacrifícios humanos
para a construção do mito da ciência.
O objeto agora adquire “status” sob a ação instrumental-matéria dos cientistas e
tecnocratas: o objeto esfacelado e destruído é espólio vitorioso da dedicação. Está
justificada a ação por si mesma. A qualidade formal não carece de qualidade política, e
de fins éticos, posto que estes estão sob um outro estatuto de racionalidade e de ética
que brota da natureza – segundo Kant, eleito papa da Modernidade pela Ilustração – tal
estatuto da natureza possui autonomia própria, independente da ética ou da
intencionalidade humana, possuem uma racionalidade extrínseca ligada ao objeto.
(Sic!)20.
O grupo de médicos, biólogos, juristas e policiais se acham representados na
busca uma causa para a inexplicável e paradoxal irrupção de Kaspar no seu mundo,
depois de terem sido abalroados por ele, e suas certezas sofrerem rachaduras
terminais. O farejamento desta matilha a serviço das anomalias termina com a
conspiração: encontram numa discretíssima hepatomegalia (fígado crescido), e num
cerebelo mais desenvolvido razões ostensivas para o derradeiro laudo: a
“monstruosidade” da vítima!
As duas últimas cenas são patéticas. A carruagem vem buscar o tabelião que
anotava o conjunto das descrições e das cuidadosas observações bio-médicas, ele
contudo, se desnuda do seu chapéu que lhe trazia cobertura, e o envio pelo cocheiro à
sua casa, ele mesmo indo a pé. A cidade perfilada, matematicamente simétrica, fria e em
ascensão é a única testemunha. Tão alegre e aliviado ele fica, que rindo, comenta:
“Que lindo processo! Achamos enfim uma deformidade. Afinal de contas era a
melhor desculpa que podíamos encontrar!”
A Câmara de Herzog faz a última ironia. O afastamento do juiz e tabelião é a única
coisa viva na cena de uma cidade simétrica e gelada. Ao afastar-se progressivamente sua
imagem dança, cambaleante, e trêmula e acaba soldando-se e sendo congelado num
árvore. Esta cidade calcinada, perene e insolvível engolirá a todos e todas, um por um.
*
*
*
Thanatós: grego: Morte.
A Razão Prática possui um reino distinto daquele que impera no reino da Razão Pura, isso é, no campo
da Ciência. De forma que a ética Kantiana dica sem mãos perante as consequências mis en marche pela
Tecnologia e Biociência. Precisamente isso ocorre porque Kant reconhece uma racionalidade extrínseca ao
sujeito, típica da pós-modernidade, onde a legitimação dos processos de pesquisa na ciência possui um
estatuto próprio de regulação que transcende a responsabilidade da ética humana. O otimismo de Kant na
racionalidade é assim tipicamente moderno, afirma de que se deve tudo quanto se pode, no campo das
Ciências da Natureza, porque sai fora do campo da ação ética dos sujeitos, não responsabiliza mais o
individuo, porque pertence a um outro estatuto auto-regulável, o da “natureza”. Por isso tudo se pode em
Ciência e Tecnologia porque as consequências sociais de suas experiências e pesquisas, isentam os
indivíduos de responsabilidade” PASSOS, Luiz Augusto. Ética: projeto a ser construído. Cuiabá, 11/12/93.
(mimiografado). Vide ainda sob este prisma o trabalho de HERRERO, Xavier. O homem e a técnica
contemporânea. Revista Filosófica Brasileira. Rio de Janeiro, Vol IV, Nº2, out 1988. p. 131-144.
19
20
Bibliografia
CHAUÍ, Marilena de Sousa. Da realidade aos mistérios do mundo: Espinoza, Voltaire,
Merleau-Ponty. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.180.
DUSSEL, Henrique. “1942 – O Encobrimento do Outro. a origem do mito da modernidade.
Conferência de Frankfurt”. Petrópolis: Vozes, 1993.
HAUNK, João Fagundes. História da Igreja na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1987.
HERRERO, Xavier. O homem e a técnica contemporânea. Revista Filosófica Brasileira. Rio
de Janeiro, Vol IV, Nº2, out 1988. p. 131-144.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 1ª ed., Trad. Reginaldo de
Piero. Sâo Paulo: Freitas Bastos, 1971.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. trad. Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. 1ª ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
PASSOS, Luiz Augusto.
(mimiografado).
Ética: projeto
a
ser
construído.
Cuiabá,
11/12/93.