holly golightly: uma análise de personagens femininos

Transcrição

holly golightly: uma análise de personagens femininos
HOLLY GOLIGHTLY: UMA ANÁLISE DE PERSONAGENS
FEMININOS
Letícia da Silva Vitória *
Profª Drª Márcia Ivana de Lima e Silva
RESUMO
O presente estudo trata de uma comparação entre o romance “Breakfast at Tiffany’s”, de Truman Capote
(1958) e sua adaptação cinematográfica homônima, de Blake Edwards (1961). Através da discussão acerca
das diferenças entre ambas as obras, são comparados aspectos referentes à representação dos personagens
principais, especialmente a personagem feminina. Com a personagem de Holly Golightly, livro e filme
apresentaram à sua maneira um novo tipo de heroína, que abriu as portas para discussão de questões sobre
amor, independência e sexualidade. Através destas análises, percebe-se a crucial influência sócio-cultural nas
escolhas que pautaram as modificações da versão cinematográfica e o impacto gerado pelas diferentes
representações.
PALAVRAS-CHAVE: comparação, cinema, literatura.
ABSTRACT
The present study is a comparison between the novel “Breakfast at Tiffany’s” from Truman Capote (1958)
and its eponymous film adaptation, from Blake Edwards (1961). Through the discussion around the
differences between both works, aspects referred to the portrayal of the main characters are compared,
especially the female character. With the character of Holly Golightly, book and film presented each at its
own way a new kind of hero, which opened doors for the discussion of questions about love, independence
and sexuality. Through these analyzes, the crucial socio-cultural influence can be perceived on the choices
that led to the changes of the film adaptation and the impact generated by the different representations.
KEY-WORDS: comparison, cinema, literature.
1 INTRODUÇÃO
Desde muito cedo, o cinema demonstrou interesse nos mais variados materiais
oferecidos pela literatura. Roteiristas que trabalham com adaptações cinematográficas de
textos literários vêm lucrando com a popularidade e prestígio de peças e romances. Mesmo
quando o objetivo é preservar com fidelidade o conteúdo e o significado do texto literário,
a mudança do meio inevitavelmente envolve mudanças em muitos níveis. Para Linda
Hutcheon (2006, p.173), a adaptação vive no meio dessa ambiguidade:
It is not a copy in any mode of reproduction, mechanical or otherwise. It is
repetition but without replication, bringing together the comfort of ritual and
recognition with the delight of surprise and novelty. As adaptation, it involves
both memory and change, persistence and variation1
*
Estudante de Letras - Bacharelado – Hab. Tradutor Português/Inglês – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) E-mail: [email protected]
1
“Não é uma cópia em qualquer modo de reprodução, mecânico ou de outro modo. É repetição, mas sem
réplica, que reúne o conforto de ritual e reconhecimento com o prazer da surpresa e novidade. Como
adaptação, envolve tanto memória quanto mudança, persistência e variação” [minha tradução]
Hutcheon (2006, p.8) também diz que “as a process of creation, the act of
adaptation always involves both (re-)interpretation and then (re-)creation” 2 . Ou seja,
diretores são motivados por um desejo de preservar histórias que valem a pena serem
contadas, mas que não necessariamente falam com seu público-alvo sem uma reinterpretação “criativa”. Uma adaptação bem feita de um texto conhecido pode oferecer o
prazer de reconhecer cenários, personagens e citações, e, também, o descobrimento de
novos aspectos e leituras alternativas que provavelmente não teríamos. Além disso, a
adaptação cinematográfica tem o valor de fazer um trabalho disponível para mais pessoas,
muitas vezes o transformando em um material mais digerível para um público maior, o que
os torna alvos prontos para crítica e discussões sobre fidelidade.
O romance Breakfast at Tiffany’s, de Truman Capote (1958), e sua adaptação
cinematográfica de 1961, de Blake Edwards, apresentam muitas diferenças. Ao trazer à
tona estas diferenças, é possível perceber muitas inversões de significados e mudanças na
representação do personagem-narrador e da personagem Holly Golightly, interpretações
explicadas pelas intenções dos grandes estúdios de cinema da época – trazer um grande
público aos cinemas.
A adaptação cinematográfica da história original teve um grande sucesso comercial,
recebeu várias indicações ao Oscar, assim como outros prêmios também. Ao passar dos
anos, a imagem de Audrey Hepburn como Holly Golightly em seu longo vestido e luvas
pretas virou icônica. Até hoje, alguns críticos discutem como a personagem na verdade
representou um novo tipo de personagem feminino, que não era muito comum de se ver
nos grandes filmes de Hollywood naquele tempo.
Este estudo tem a intenção de mostrar, através de comparações entre livro e filme,
como certos aspectos do romance foram alterados para o cinema, em especial a reinterpretação da personagem de Holly Golightly e seu relacionamento com o narradorpersonagem, e o porquê destas mudanças.
2 HOLLY X HOLLY
2
“como um processo de criação, o ato da adaptação sempre envolve ambas (re-) interpretação e então a (re-)
criação” [minha tradução]
No filme, o tema principal trata do poder do amor e da estabilidade triunfando
sobre a liberdade. A trama é centralizada na personagem de Holly, uma garota que vive em
Nova York, e é independente. Holly é caracterizada como uma pessoa desconhecida e um
tanto quanto misteriosa, já que consegue esconder bem certos aspectos de sua vida pessoal.
Ela é livre e parece estar aproveitando a vida. Quando um novo rapaz, no filme batizado de
Paul Varjak, aparece e se torna seu vizinho, os dois começam um relacionamento, que ao
fim do filme culmina em um romance.
Fazendo a análise da representação feminina em Breakfast at Tiffany’s, pode-se
usar o conceito de Meggy Humm (1997, p. 13) sobre feminismo e cinema:
Mainstream cinema did not represent women’s lived experience but only
stereotypes of women’s social status or, indeed, lack of status. (…) In other
words, films reflect social power structures at large.3
Podemos investigar as diferenças mais significativas da representação feminina no
romance e na sua adaptação e analisar como e porque foram influenciados pelo olhar da
sociedade da época. Sam Wasson (2011, p. 41) disse,
Com um grau de tempo livre sem precedentes e mais acesso à mídia do que
nunca, a mulher dos anos 50 foi, em toda a história americana, a mulher
mais vulnerável ao alcance do pensamento convencional pré-fabricado e,
por extensão, dos homens que o fabricavam.
Havia uma idéia de conformismo muito presente naquela época. A mulher dos anos
50 aprendia pela televisão, imprensa ou filmes que tudo que ela precisava era uma casa e
uma família e toda a felicidade que ela buscava estava ali. A mídia refletia o que era
adequado ou inadequado, e nos anos 50, sendo mulher, muita coisa era errado – ou ela era
santa ou era vagabunda.
O livro traz uma personagem que escapa de uma simples existência. Holly não
sente que pertence a lugar algum e não acredita que pessoas possam pertencer umas as
outras. Isso fica claro quando descobrimos que ela fugiu de um casamento, de um homem
que, segundo ela, tinha mania que prender coisas selvagens: “you can’t give your heart to a
3
“O cinema popular não representava a experiência real das mulheres, mas sim estereótipos do status social
feminino, ou de fato, a falta dele (...). Em outras palavras, os filmes refletiam o poder da sociedade
dominante no geral”. [minha tradução]
wild thing: the more you do, the stronger they get, until they’re strong enough to run into
the woods.” 4 (CAPOTE, 1958, p. 69)
Com Holly, o livro apresentou um novo tipo de heroína, que era livre das mais
diversas maneiras, o que não era o caso da maioria das mulheres daquele tempo. Holly é
uma personagem inspiradora, em um romance que criticamente lida com alguns dos
valores e dos supostos ideais que dominavam a sociedade naquela época. Assim como no
filme, Holly é independente e misteriosa, mas o tema central do texto é dar validade a
relações que acontecem fora de um casamento, normalmente apresentando isso como algo
muito mais compensador do que relacionamentos românticos. O livro termina com Holly
indo embora, se recusando a simplesmente se acostumar, ao contrário do que o filme
mostra.
Wasson (2011) diz que quando o estúdio da Paramount conseguiu os direitos para o
filme, muita coisa entrou em discussão. A intenção de Truman Capote era de que o papel
fosse da atriz Marilyn Monroe, uma das atrizes mais famosas pelo seu grande apelo sexual,
mas os produtores acharam isso arriscado demais – o livro já havia sido recusado à
publicação por uma notável revista americana muito popular da época, a Harper’s Bazaar
– pois
(...) tinham uma protagonista altamente inflamável nas mãos (...) e não faziam a
menor idéia de como pegar um romance sem segundo ato, com um protagonista
gay sem nome, um drama sem motivação, um final infeliz e transformá-lo num
filme de Hollywood (WASSON, 2011, pg. 19)
No filme A Princesa e o Plebeu de 1953, Audrey Hepburn interpreta uma princesa,
a Ann, que foge em busca de aventura, diferente da vida previsível e cheia de
responsabilidades que vivia. Hepburn aparece cortando o cabelo bem curto, demonstrando
uma mudança radical no ideal feminino dos anos 50 para a mulher “moderna” dos anos 60.
Como Wasson (2011, p. 48) descreve: “(...) se trata de uma transformação do ser
conformista de Ann (uma moça com cabelo tradicionalmente comprido, tradicionalmente
feminino) para o verdadeiro ser de Ann”. E assim, para Breakfast at Tiffany’s, a escolha de
Audrey Hepburn para o papel de Holly se deu ao fato de ela ter conseguido tornar o
diferente aceitável, e ainda mais, fazer parecer que morar sozinha e ser independente não
4
“você não pode entregar seu coração a coisas selvagens. Quando mais o fizer, mais forte eles ficam. Até
que estejam fortes o suficiente para correr floresta adentro.” [minha tradução]
era tão ruim, e que ser solteira na verdade não era uma vergonha e parecia divertido.
Hepburn ficou conhecida por tornar tudo palatável.
Um fato que destaca Holly, e a separa de tantos personagens femininos da época, é
o fato de que ela não é mãe, nem nada do tipo. Ela não é uma garota de família, ela ia para
festas, dormia o dia todo, e sua visão sobre casamento estava longe de ser a tradicional. Se
for comparada com o que era mostrado nos filmes na década de 50, Holly certamente
marcou uma mudança. Por isso é compreensível a mudança ao final do filme, como se a
personagem visse o erro de viver como vive, e acabasse se rendendo a casar e se fixar em
algum lugar. Os produtores do filme pensaram que nem todo mundo estava pronto para ver
uma personagem como a Holly e simplesmente aceitar isso, pois
É importante ressaltar que uma obra literária assim como uma obra
cinematográfica é feita e produzida por pessoas (autores, diretores, editoras, ou a
indústria cinematográfica) com o propósito de atingir um grande número de
leitores e/ou espectadores. A obra, seja ela literária ou cinematográfica, é feita a
partir da manipulação de sentido. (LAZZARIS, 2007, p. 46)
Portanto, para que o filme vendesse, foi necessário mostrar o que a maioria das
pessoas queria ver, o que em Hollywood nos anos 50 era basicamente “ter um final feliz”.
3 SILENCIAMENTO E SEXUALIDADE
Muitos críticos discutiram que o personagem principal do romance, o narrador sem
nome, na verdade é gay. Muitos dizem ser uma representação do próprio Truman Capote.
Isso nunca é colocado explicitamente no texto, mas há partes do livro que podem sugerir
tais colocações. Segundo Michel Focault (2003, pg.2), em A Ordem do Discurso, “não
temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer
circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja”.
Ao vermos um filme tomando esse ponto de partida, podemos refletir sobre que valores da
época levaram os roteiristas a pensar no que seria transmitido, o que seria dito e porque, o
que seria de alguma forma silenciado, e com que fins.
O assunto da sexualidade está bastante presente no texto, como por exemplo,
quando Holly questiona sua própria sexualidade: “Of course people couldn’t help but think
I must be a bit of a dyke myself. And of course I am. Everyone is: a bit. So what? That
never discouraged a man yet, in fact it seems to goad them on5.” (CAPOTE, 1958, p. 25).
No filme, mudam o personagem central do livro para que ele seja um garoto de programa,
pois ele é escritor, mas sobrevive de “favores sexuais” a uma mulher casada. E isso é
mostrado muito francamente, o que faz o personagem feminino, que é levemente mais
disfarçado, parecer ainda mais reprimido. Além disso, a adaptação trabalha com a
manipulação do significado da natureza do relacionamento dos dois, que no fundo era
mostrar o relacionamento “platônico” de um homem homossexual e uma mulher
heterossexual.
Muitos críticos também falam sobre Holly ser uma prostituta. Sua profissão não
fica muito clara no filme, ela parece ser uma simples dama de companhia. Mas no livro,
sua profissão é falada abertamente, em várias ocasiões. Mesmo a trama se passando perto
do final dos anos quarenta, a personagem de Holly funcionou muito bem se passando nos
anos sessenta, pois considerando que a geração dos anos quarenta era muito mais
conservadora, e garotas diziam não fazer sexo antes do casamento, na década de sessenta é
um tabu que está caindo, e traz muitas indicações do contrário.
4 CONCLUSÃO
Através desta breve análise entre ambas as obras, foi possível demonstrar como a
sociedade e os costumes da época contribuíram para que o filme tenha sido produzido e
concretizado como foi. Pudemos observar as aparentemente sutis, porém cruciais
mudanças na personagem de Holly Golightly e do narrador-personagem e verificar a
representação de um personagem feminino baseado nos valores da época.
Mostrando uma preocupação maior com o que era considerado moral, no filme
existe uma negação da sexualidade e uma inversão de papéis, colocadas no roteiro com um
olhar machista e conservador. O romance mostra explicitamente questões sobre amor e
sexualidade que eram grandes discussões naquele tempo. Enquanto o livro consegue ser
algo próximo a revolucionário para aquela época, o filme acaba tendo um final tradicional.
A adaptação celebra o completo oposto do livro, culminando com um romance que
não existe no final. Todas essas mudanças na adaptação do romance mostram o quanto a
5
“as pessoas se perguntavam se eu não era lésbica. E claro que eu sou. Todos são: um pouco. E daí? Isso
nunca desencorajou homens, na verdade, parece excitá-los ainda mais” [minha tradução]
estrutura da sociedade da época influenciava, como ainda influencia, o resultado de muitas
obras criativas.
REFERÊNCIAS
BONEQUINHA de Luxo [Breakfast at Tiffany’s]. Direção: Blake Edwards. Produzido
por: Martin Jurow, Richard Shepherd. Baseado no livro de Truman Capote. USA:
Paramount Pictures, 1961. 1DVD (115 min.), Widescreen, Colorido, Leg.
CAPOTE, Truman. Breakfast at Tiffany’s. UK, London. Penguin Modern Classics, 2000.
FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Disponível em: <
http://anarcopunk.org/biblioteca/wp-content/uploads/2009/01/foucault-michela_ordem_do_discurso.pdf> Acesso em: 18 jul. 2012.
HUMM, Maggie. Feminism and Film. Edinburgh University Press, 1997. 246 pg.
HUTCHEON, Linda. A Theory of Adaptation. New York, NY. Routledge, Taylor &
Francis Group, 2006.
LAZZARIS, Fabiane. O Dito e o Não-dito nas versões de A StreetCar Named Desire. In:
Literatura e Cinema: do Palco à Tela. Porto Alegre, 2007.
A PRINCESA e o Plebeu [Roman Holiday]. Direção: William Wyler. Produzido por:
William Wyler. USA: Paramount Pictures, 1953. 1DVD (118 min.), Tela Cheia, Preto e
Branco, Leg.
WASSON, Sam. Quinta Avenida, 5 da manhã: Audrey Hepburn, Bonequinha de Luxo e o
surgimento da mulher moderna. Tradução José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Zahar,
2011.