O Psicanalista e a Sex-Symbol

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O Psicanalista e a Sex-Symbol
Leituras / Readings
Volume IX Nº3 Maio/Junho 2007
O Psicanalista e a Sex-Symbol
Psychanalyst and the Sex-Symbol
“Marilyn! Porque é que tudo teve que acabar
assim, Marilyn? Porque é que a vida tem que
ser assim tão terrível?”
Truman Capote: Uma criatura adorável
“O principal na vida é o sofrimento, e embora não
seja este o seu verdadeiro sentido, o que nos faz
diferentes é basicamente a nossa capacidade
para o suportar…, ou para o afastar de nós.”
Palavras de Truman Capote citadas por Gerald Clark
no livro “Truman Capote. A biografia.”
Adrian Gramary
Médico Psiquiatra
1. As últimas fotografias
Correspondência relacionada com o artigo:
Centro Hospitalar Conde de Ferreira
Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto
e-mail: [email protected]
A atracção irresistível das últimas obras. O que é que nos
atrai nelas? Interrogamos os últimos quadros de Van
Gogh, como aquele famoso dos corvos, ou os últimos lie-
der de Shubert, convictos de que neles pode estar inscrito, explicitamente ou não, num gesto desesperado, o
testamento final, o canto do cisne, a chave que nos vai
permitir desvendar a mensagem final do autor, a sua verdade última.
A exposição Marilyn Monroe, Le Dèrnier Seánce, que
decorreu este ano em Paris, serviu para rever a última
série de fotografias de Marilyn, realizadas pelo fotógrafo
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Bert Stern a pedido da revista Vogue umas semanas
actriz vivenciou esta condição com grande humilhação ao
antes da actriz morrer. A maioria são fotografias sem arti-
longo da sua vida. Truman Capote, que nutria pela actriz
fícios, uma face ou um corpo em destaque sobre um
uma forte amizade e compreensível simpatia, talvez por
fundo neutro e branco, fotografias nuas, apareça nelas a
conhecer, como ela, a experiência de abandonos, de pais
actriz com ou sem roupa, imagens que revelam uma mul-
ausentes e de abusos sexuais, e que acabou por ter um
her madura, mais esbelta do que o habitual, mas com ar
fim em tudo tão semelhante ao da actriz, com barbitúricos
cansado, que brinca com uma taça de champagne entre
e álcool pelo meio, deixou-nos, no seu famoso retrato
as mãos, com colares ou com véus transparentes colori-
“Uma criatura adorável” algumas linhas que descrevem
dos que mostram mais do que ocultam a sua anatomia.
com exactidão a fragilidade da actriz: “O que ela possui, a
Nelas descobrimos uma mulher cansada do seu próprio
sua presença, a sua luminosidade, a sua inteligência des-
mito. Quem nos interroga atrás de um olhar decerto cre-
lumbrante, perder-se-ia num cenário. É tão frágil e deli-
puscular é Norma Jeane, que, sem renunciar ao glamour
cada que apenas pode ser captada por uma câmara. É
e ao carácter mítico, deseja mostrar-se em dimensões
como o voo de um colibri”.
definitivamente mais humanas e terrenas. Ela, a mulher
que melhor soube seduzir a câmara, evita agora ocultar
2. As últimas sessões
os seus defeitos atrás da maquilhagem (apenas esbo-
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çada nos olhos e lábios) e exibe uma cicatriz no abdómen
Em 1993, Donald Spoto publicou uma biografia sobre
resultado de uma colecistectomia recente, que o fotó-
Marilyn Monroe (Marilyn Monroe: A biografia) onde ten-
grafo, com a cumplicidade da actriz, fez questão de não
tava demonstrar a inconsistência da teoria da orquestra-
ocultar. Esta cicatriz à mostra bem poderia servir de
ção política como explicação para a morte da estrela
representação simbólica das muitas outras cicatrizes de
(aquela por todos nós conhecida, que envolvia o FBI,
natureza emocional que foram marcando a sua vida:
affaires com John e Robert Kennedy, e a intervenção da
saber-se o fruto de uma gravidez adolescente não dese-
máfia, e que continua a circular, ao que parece, imune a
jada, filha de um pai ausente que nunca a quis reconhe-
qualquer argumentação lógica). Neste livro, Spoto
cer e de uma mãe definitivamente não suficientemente
deixava, porém, a porta aberta para uma explicação mais
boa, que passou grande parte da sua vida internada em
próxima de um concerto de câmara macabro que envolvia
instituições psiquiátricas, deixando a educação e o cui-
a intervenção do último psicanalista da actriz, Ralph
dado da filha nas mãos de diferentes famílias de acolhi-
Greenson, a colaboração eficiente de uma tenebrosa
mento, incluindo passagem pelo Orfanato Público de Los
empregada doméstica, Eunice Murray, e a dependência
Angeles, e finalmente o peso escuro na memória dos abu-
de substâncias hipnóticas e sedativas de que sofria a
sos sexuais de que terá sido vítima na adolescência por
actriz.
parte de um primo e de um dos pais de acolhimento…
Esta explicação defendida por Spoto é o argumento que
múltiplas cicatrizes indeléveis, falhas básicas que contri-
serviu de base para o romance de ficção do psicanalista
buíram para fazer dela um ser frágil, dependente e emo-
francês Michel Schneider Marilyn Monroe: últimas ses-
cionalmente instável. O biógrafo Spoto lembra-nos das
sões, que tenta reconstruir, a partir dos elementos reais
declarações de Marilyn sobre a fantasia que criou durante
descritos por Spoto e por outros biógrafos que vieram a
a sua estadia no Orfanato: “Às vezes dizia aos outros
seguir, a relação psicoterapêutica entre Ralph Greenson
órfãos que tinha pais reais, que eram maravilhosos e que
e Marilyn Monroe, focando especialmente os últimos dois
estavam a fazer uma longa viagem e viriam buscar-me a
anos da vida da actriz.
qualquer altura, e uma vez até me enviei a mim própria
Marilyn Monroe decidiu iniciar a sua análise pessoal em
um postal assinado como «Papá e Mamã». É claro que
1955 por recomendação do director de cinema Elia Kazan
ninguém acreditou, mas não me importei com isso: eu
e de Lee Strasberg, professor e director da famosa escola
queria acreditar que era verdade.” Filha ilegítima numa
nova-iorquina de arte dramática Actors Studio, cujas
época em que isto era considerado como um estigma, a
aulas a actriz tinha começado a frequentar com o intuito
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de melhorar a sua técnica interpretativa. O Método de
baseada numa “terapia de adopção”, ao tornar a sua pró-
Strasberg, baseado nas teorias do russo Stanislawsky,
pria família numa família de acolhimento que tencionava
estimulava os actores a indagar as suas vivências emo-
transformar-se no substituto para as carências precoces
cionais passadas para a reconstrução do papel. Assim
que a actriz tinha tido em relação com as suas figuras
sendo, e facilitado pelo clima fortemente impregnado pela
parentais. Numa palestra de Greenson, intitulada “As dro-
psicanálise que envolvia o establishment intelectual nor-
gas na situação psicoterapêutica”, encontramos as
teamericano dos anos 50, a iniciação da análise pessoal
seguintes palavras: “Os psiquiatras e os médicos devem
tornava-se um passo quase imprescindível para qualquer
estar dispostos a ficar emocionalmente implicados com
actor que tentasse atingir o êxito, sendo muitos os acto-
os doentes se esperam estabelecer uma relação terapêu-
res que nessa época decidiram deitar-se nos divãs de
tica fiável”. A partir de uma determinada altura, Greenson
famosos psicanalistas: Marlon Brando, Vivien Leigh,
começou a marcar as sessões com a actriz no seu domi-
Dustin Hoffman, Paul Newman e um longo etc.
cílio, baseando-se na necessidade de fugir da atenção
Marilyn Monroe passou sucessivamente pelas mãos de
dos media. A verdade é que com esta decisão o psicana-
três psicanalistas, duas mulheres (Margaret Hohenberg e
lista permitiu a entrada da actriz na intimidade da sua
Mariane Kriss) e um homem (Ralph Greenson). Ainda
família. A seguir, ela passou a compartilhar, com regulari-
durante um curto período de tempo, enquanto rodava em
dade, as refeições da família Greenson (incluindo o jantar
Londres, junto a Laurence Olivier, o filme “The Prince and
de consoada), e dava longos passeios com os filhos do
the Chorist”, chegou a ser acompanhada por Anna Freud,
terapeuta, que acompanhavam a actriz com o intuito de a
a filha de Sigmund Freud, por indicação de Mariane Kriss.
confortar nas fases mais difíceis da terapia. Um pequeno
Com a primeira terapeuta, a imigrada húngara Margaret
embora significativo pormenor que ilustra a natureza
Herz Hohenberg, a actriz manteve uma relação intensa, o
desta relação terapêutica sui generis é que a actriz tinha
que permite explicar que o seu nome aparecesse no tes-
sempre uma garrafa de champanhe reservada no frigorí-
tamento que a actriz fez em 1956, como beneficiária de
fico da casa do analista, para poder servir-se de uma taça
20.000 dolares. Em 1961, ainda segundo o livro de Spoto,
após as sessões. No último ano da vida de Marilyn, o zelo
Marilyn fez um novo testamento, onde aparece a segunda
intervencionista do terapeuta atingiu uma intensidade
terapeuta, Mariane Kriss, como herdeira do 25% do patri-
extrema, estimulando a actriz a ligar-lhe a qualquer hora,
mónio da actriz “com o objectivo de que seja utilizado
participando nas negociações com a Fox sobre as condi-
para o fomento do trabalho das instituições ou grupos psi-
ções do contrato do último filme, interferindo de forma
quiátricos que ela decidir”. Na altura da morte da actriz, o
directa nas relações de amizade da actriz, e recomen-
seu património foi calculado em 92.781 dolares, mas
dando explicitamente decisões como a venda da sua casa
Mariane Kriss já tinha falecido e a sua herdeira foi a Anna
e a compra de uma casa mais próxima da dele. Mas o clí-
Freud Children´s Clinic de Londres.
max deste intervencionismo foi a decisão de por uma
Em 1950, em Los Angeles, e por indicação de Mariane
empregada doméstica, Eunice Murray, que tinha trabalha-
Kriss, começou a ser acompanhada por Ralph Greenson.
do para ele e que se tornou uma espécie de espiã da inti-
Greenson, que chegou a participar nas famosas reuniões
midade de Marilyn, servindo de elo de comunicação com
de formação de Freud, tinha sido analisado por Otto
o analista. Spoto qualifica a estratégia de Greenson como
Fenichel em 1938 e era, já nessa altura, autor de vários
desastrosa, uma vez que, muito longe de conseguir a
textos sobre a técnica psicanalítica. Este analista didacta
autonomização da doente, provocou exactamente o efeito
foi membro fundador da Sociedade Psicanalítica de L.A. e
contrário, tornando-a totalmente dependente dele.
tinha a sua consulta de Beverly Hills abarrotada de perso-
Spoto explica a morte de Marilyn não como uma tentativa
nagens ricas e famosas de Hollywood. Spoto e Schneider
de suicídio mas sim como a consequência da falha de
descrevem as dificuldades de Greenson em preservar os
articulação entre o psiquiatra e o médico internista que
limites recomendáveis numa terapia analítica freudiana,
seguiam a actriz. Ambos prescreviam barbitúricos e
como foi o caso, ao ter estabelecido uma estratégia
outros sedativos, como o hidrato de cloral, sem estabele-
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cer a necessária articulação entre eles, o que poderia
B. Barcelona.
explicar que no dia da sua morte a actriz tivesse ingerido
barbitúricos por via oral e um clister de hidrato de cloral,
López-Muñoz F, Álamo C (2007): Historia de la Psicofarmacología.
Editorial Panamericana. Madrid. Tomo II.
que foi administrado por Eunice Murray por indicação do
Bert Stern (2007): Marilyn Monroe. La última sesión. Electa.
psicanalista. É claro que Spoto avança com uma teoria
Schneider M (2007): Marilyn Monroe, últimas sessões. Difel.
algo mais perversa que inclui a eventual luta desenvolvida
Spoto D (2000): Marilyn Monroe. Compactos Anagrama.
Barcelona. (tradução em espanhol do original inglês “Marilyn
Monroe. A biography”)
nessa altura pela actriz para se autonomizar do analista e
a incapacidade deste para assumir os seus erros técnicos.
Chegamos assim à famosa insónia de Marilyn e a sua
dependência de hipnóticos. Para uns, a actriz terá começado de forma inocente a sua adição aos hipnóticos em
1954 coincidindo com uma fase de insónia causada pelas
mudanças horárias resultantes das contínuas viagens de
avião. Para outros começou nessa época mas como
resultado da incapacidade para enfrentar nas sessões
terapêuticas as recordações de uma infância da que tentava fugir. Convém ressalvar que nos anos 50 e 60 como
refere Spoto e Kenneth Anger, o autor do famoso livro
Hollywood Babilónia, a dependência de tóxicos não era
bem compreendida e era relativamente habitual os actores usarem barbitúricos para dormir, anfetaminas para
estar acordado, ou narcóticos para relaxar. Barbitúricos
como o Amytal ou o Nembutal, sedativos como o hidrato
de cloral, terão sido responsáveis, em grande medida,
pelos famosos atrasos da actriz e pelas suas dificuldades
mnésicas crónicas que se reflectiam na altura de decorar
os papéis. “Para mim a noite quase não existe, tudo
parece um dia longo, longo e horrível” terá dito a um
amigo. Interrogadas as últimas fotografias, pesquisadas
as últimas sessões, continuamos sem saber onde acaba
a realidade e onde começa a ficção, onde está o limite
entre a biografia e o romance, ficando apenas com verdades fragmentárias, pequenos flashes que nos falam de
falhas precoces, da ausência do pai, de uma infância itinerante, de abusos sexuais, de terapeutas desnorteados,
de dependência de hipnóticos e de noites eternas, noites
brancas que tornaram os dias longos e horríveis.
Bibliografia
Anger K (2006): Hollywood Babilónia. Tusquets. Colección
Andanzas. Barcelona.
Capote T (2006): Retratos. Compactos Anagrama. Barcelona.
Clarke G (2006): Truman Capote. La biografía definitiva. Ediciones
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