Ação educativa em espaços culturais: uma experiência

Transcrição

Ação educativa em espaços culturais: uma experiência
Novas gerações,
novo fazer
educacional
Ação educativa em espaços
culturais: uma experiência de
Educação Patrimonial no
Centro Cultural Martha Watts
Educational activity in cultural spaces:
an experience in Heritage Education at
the Martha Watts Cultural Center
Claudia da Silva Santana
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e docente na Universidade Metodista de Piracicaba.
E-mail: [email protected]
Joceli de Fátima C. Lazier
Mestre em Educação pela UNIMEP e coordenadora do Centro Cultural Martha Watts
E-mail: [email protected]
Resumo
Esta experiência com Educação Patrimonial ocorreu durante o primeiro semestre de 2009, no contexto do Estágio Supervisionado do
Curso de Pedagogia da Unimep, em parceria com o Centro Cultural
Martha Watts e uma escola municipal de educação infantil em Piracicaba. Os objetivos delineados no projeto visualizaram dois focos:
oportunizar às estagiárias o conhecimento do trabalho realizado em
museus e seu potencial educacional; promover o estudo do acervo
do CCMW relacionado à educação, história e cultura da cidade,
capacitando-as simultaneamente para o uso da metodologia da
Educação Patrimonial, difundida pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (Iphan). O segundo foco dirigiu-se às crianças e
suas professoras, buscando favorecer um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização da herança cultural.
Palavras-chave: Educação Patrimonial. Cultura. Infância. Pedagogia.
Abstract
This experiment in Heritage Education happened in the first half of
2009, in the context of a supervised traineeship of the Pedagogy
Course at the Methodist University of Piracicaba (UNIMEP), São
Paulo, in partnership with the Martha Watts Cultural Center and an
elementary education public school in the city of Piracicaba. The goals outlined in the project had two foci in mind. The first one was to
create opportunities for the interns to know the work developed in the
museums and its educational potential, to study of the collection of
CCMW related to education, history and culture of the city, enabling
them at the same time to use the Heritage Education methodology,
promoted by the Historical and Artistic Heritage National Institute
(IPHAN, acronym in Portuguese). The second focus was directed at
the children and their teachers, seeking to promote an active process
of knowledge acquisition, appropriation and valorization of their
cultural heritage.
Keywords: Heritage education. Culture. Childhood. Pedagogy.
Resumen
Este experimento en educación patrimonial ocurrió en el primer semestre de 2009, en el marco de una pasantía supervisada del curso
de Pedagogía en la Universidad Metodista de Piracicaba (UNIMEP),
São Paulo, en colaboración con el Centro Cultural Martha Watts y
una escuela pública de educación primaria en la ciudad de Piracicaba. Los objetivos planteados en el proyecto tenían dos focos en
mente. El primer de ellos fue la creación de oportunidades para que
los estudiantes pudiesen conocer el trabajo desarrollado en los museos y su potencial educativo y el estudio de la colección del CCMW
relacionados con la educación, la historia y la cultura de la ciudad,
capacitandoles al mismo tiempo para utilizar la metodología de Educación sobre el Patrimonio, promovido por el Instituto del Patrimonio
Histórico y Artístico Nacional (IPHAN, sigla en portugués). El segundo
foco de atención estuvo dirigido a los niños y sus maestras, tratando
de promover un proceso activo de adquisición de conocimiento,
apropiación y valorización de su patrimonio cultural.
Palabras clave: Educación patrimonial. Cultura. Infancia. Pedagogía.
Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve
agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer
voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra,
revolvê-lo como se revolve o solo. Pois “fatos” nada são além de
camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo
que recompensa a escavação. [...] Mas é igualmente indispensável a
enxadada cautelosa e tateante na terra escura. E se ilude, privandose do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe
assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho
(BENJAMIN, 1995, p. 239).
“Fatos” nada são
além de camadas
que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo
que recompensa a
escavação
À esquerda de quem adentra o Centro Cultural Martha Watts se encontra uma maquete da cidade antiga de Piracicaba, abaixo do nível do
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piso, cuja visão é possibilitada pela transparência do vidro que a recobre
como uma caixa expositora sobre a qual o visitante é convidado a pisar
para atravessar esta espécie de antessala ao anfiteatro. Invariavelmente,
as visitas feitas pelas crianças têm início nesse espaço de espanto e maravilhamento. A princípio, elas não pisam imediatamente sobre o chão
de vidro; mantêm-se na margem, olhando a imagem da cidade que se
encontra sob seus pés, num misto de encantamento e curiosidade, até
que uma delas olha para um adulto, este a autoriza com um sinal de
cabeça, e então todas passam a explorar o espaço, ajoelhadas, deitadas
de bruços ou mesmo de pé, buscando reconhecer e localizar aquilo que
conhecem sobre sua cidade, cortada pelo rio que lhe dá o nome.
A imagem da maquete abaixo do nível do piso remete ao procedimento da escavação, ao mesmo tempo em que revela e expõe, através do
vidro, aquilo que se convida a encontrar: reminiscências de um tempo
e lugar habitados por crianças e suas professoras.
Como significar a
infância e a escola
de hoje a partir
da apropriação da
memória e vivência
preservadas?
Sons da sineta escolar
Como colocar o presente em situação de confronto? Como provocar
o encontro desses tempos e lugares de infância? Como ouvir as vozes
aparentemente emudecidas dos objetos que sobreviveram à passagem
do tempo? Como significar a infância e a escola de hoje a partir da
apropriação da memória e vivência preservadas?
As questões aqui formuladas possibilitam um percurso viável para o
texto que se inicia. Procura-se discutir uma experiência com a Educação
Patrimonial, realizada com crianças de cinco anos, alunas de uma escola
pública de Educação Infantil de um bairro periférico do município de
Piracicaba, no estado de São Paulo. O lugar dessa experiência é o Centro
Cultural Martha Watts (CCMW), vinculado à Universidade Metodista
de Piracicaba, cujo acervo abrange, dentre outros, objetos culturais que
se reportam à história do Colégio Piracicabano, criado em 1881 pela
missionária norte-americana Miss Martha Watts.
Tais objetos compõem o acervo específico do Museu Jair de Araujo
Lopes, que integra o conjunto arquitetônico e museológico do CCMW.
Ali se encontra uma museografia desenhada para uma exposição de
longa duração, com ambientes que remetem ao dormitório das alunas
internas, a uma sala de aula e laboratório de química, ao quarto de
Miss Martha Watts e ao escritório de Miss Lily Stradley, diretora durante vários anos. Nesse universo se encontram móveis, baús, peças de
roupas antigas, livros, fotografias, penicos esmaltados, bacias e jarros
de porcelana, telefones, tinteiros, calculadora, mimeógrafo, sinos, tubos
de ensaio, telescópio e muitos outros objetos próprios de uma escola
de bases progressistas e liberais, na passagem do século XIX para o
século XX.
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“Nada substitui o
objeto real como
fonte de informação sobre a rede
de relações sociais
e o contexto histórico em que foi
produzido”
As muitas fotografias espalhadas por todo canto do espaço expositivo mostram quase sempre o gênero da pose fotográfica. O instante
fixado e congelado. Alunas internas em recreação no pátio, na sala de
atividades, lendo, aprendendo música, ciências e artes. Nas salas de
aula, a figura do professor ou da professora lecionando para uma classe
atenta e disciplinada.
O que revelam esses objetos e fotografias e a própria maneira
concebida para expô-los? Maria de Lourdes Parreiras Horta (HORTA;
GRUNBERG; MONTEIRO, 1999, p. 9) afirma que
A capacidade de flagrar os objetos numa
rede de significados
pode propiciar um
encontro do passado
com o presente
Nada substitui o objeto real como fonte de informação sobre a rede
de relações sociais e o contexto histórico em que foi produzido,
utilizado e dotado de significado pela sociedade que o criou. Todo
um complexo sistema de relações e conexões está contido em um
simples objeto de uso cotidiano, uma edificação, um conjunto de
habitações, uma cidade, uma paisagem, uma manifestação popular,
festiva ou religiosa, ou até mesmo em um pequeno fragmento de
cerâmica originário de um sítio arqueológico.
A capacidade de flagrar os objetos numa rede de significados pode
propiciar um encontro do passado com o presente, colocando o próprio
presente em situação de confronto, especialmente com os sonhos e ideais
que estavam postos naquela configuração.
Como observa Cristina Freire (2003, p. 9), “o museu não trabalha
com objetos, mas com problemas”. À tarefa de pesquisar, documentar,
conservar, preservar e comunicar se junta a de ressignificar.
Os objetos em exposição passaram por um
processo de exclusão
do sistema utilitário,
isto é, foram descartados de sua função
originária. Todavia,
essa passagem os coloca em outro nível de
representação
O museu ordena um acervo de coisas materiais para a organização
de valores e relações sociais. Portanto, expor objetos é propor problemas, produzir sentidos. Isto porque os objetos não são fetiches,
isto é, não têm valor imanente. Todos os valores são criados pela
sociedade e aplicados aos objetos. Estudar os objetos em exposição
é entender como a sociedade produz, circula e descarta os valores
que estão ali materializados.
Importante lembrar que os objetos em exposição passaram por um
processo de exclusão do sistema utilitário, isto é, foram descartados
de sua função originária. Todavia, essa passagem os coloca em outro
nível de representação, pois potencialmente guardam o que é invisível,
ganhando significado ao serem expostos. Essa atualização de significações só pode ter lugar se os objetos forem descontextualizados de seus
sentidos originais para que possam se mostrar como textos, abertos à
atribuição de novos sentidos.
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Assim como os objetos, as fotografias também exigem um método
de leitura, pois logo após as primeiras manifestações do óbvio da imagem, elas podem se encerrar na opacidade do sentido dado, desafiando
a procura de outros significados não visíveis imediatamente. Como
fazer a leitura dessas histórias de infância e de suas professoras, numa
cidade do interior de São Paulo, no final do século XIX? Que sonhos de
progresso e civilização permeavam as práticas pedagógicas?
O conjunto arquitetônico que hoje abriga o CCMW possui características da arquitetura norte-americana e também influências do neoclássico
paladiano, estilo comum na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, países
de origem do metodismo que aportou no Brasil no século XIX por intermédio dos missionários norte-americanos. O processo minucioso de
restauro, iniciado em 2001 e concluído em 2003, recuperou cada tijolo da
fachada externa, tendo também as janelas sido reconstruídas conforme
o estilo original. O interior do edifício foi remodelado a fim de abrigar
os diversos espaços do Centro Cultural. São espaços diversos, como
o Memorial da Educação Metodista; o Espaço Memória Piracicabana,
com acervos de Rocha Netto sobre esportes e cinema, de João Chiarini
sobre folclore e literatura, de Jair Veiga sobre genealogia, assim como os
Processos do Fórum de Piracicaba de 1801 a 1948. Há ainda salas para
exposições de artes e laboratório fotográfico que, além da restauração de
fotos e documentos, tem sob a sua responsabilidade a guarda de cerca
de 130 mil fotos de vários acervos pertencentes ao CCMW.
O conjunto arquitetônico que hoje abriga o
CCMW possui características da arquitetura
norte-americana e
também influências do
neoclássico paladiano
Escavando e revelando reminiscências de pedagogias
e infâncias
O Centro Cultural ocupa hoje o mesmo edifício que abrigou o
Colégio Piracicabano durante muitos anos. Reconhecidamente de bases liberais e progressistas, a filosofia educacional representada pela
missionária Martha Watts vem ao encontro das propostas republicanas
de Prudente de Moraes e Manuel de Moraes e Barros, líderes do Movimento Republicano e apoiadores da instalação do colégio em terras
piracicabanas. A fundação do Colégio Piracicabano, em 1881, ocorre uma
década antes da construção dos chamados Grupos Escolares do ensino
público na cidade de São Paulo e no interior do estado. De acordo com
Esther Buffa (2002, p. 32),
Do Império, havíamos herdado escolas de ler e escrever que muitas
vezes eram a extensão da casa do professor, funcionando em paróquias, cômodos de comércio, salas com pouco ar e luz, cujo aluguel
ficava por conta do mestre escola. Políticos republicanos e educadores, no final do século XIX, passaram a defender a necessidade de
espaços especialmente construídos para serem escolas.
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Políticos republicanos e educadores, no
final do século XIX,
passaram a defender
a necessidade de
espaços especialmente construídos para
serem escolas
Na Europa e nos Estados Unidos estava se consolidando o modelo
dos edifícios-escola, apropriados para o ensino primário. No Brasil,
o vínculo entre o edifício-escola e concepções educacionais apareceu
tardiamente, quase simultaneamente à configuração que ainda hoje
permanece presente, com salas organizadas para o ensino sequencial e
um professor para cada classe de alunos. Buffa (2002, p. 33) esclarece:
No Brasil, a escola graduada de ensino primário, compreendendo
múltiplas salas de aula, várias classes de alunos e um professor para
cada uma delas apareceu pela primeira vez no ensino público, no
estado de São Paulo, na década de 1890. O primeiro edifício projetado para abrigar uma escola primária na capital do Estado foi o
da Escola Modelo da Luz, mais tarde denominada Grupo Escolar
Prudente de Moraes, situado na Avenida Tiradentes. O projeto era
de Ramos de Azevedo e a construção iniciou-se em 1893.
O Colégio Piracicabano foi o primeiro do
País a implantar um
laboratório de química
A escola como lugar
da infância ganha
força na experiência
do colégio
Nota-se, portanto, que a fundação do Colégio Piracicabano tem
em seu ideário uma concepção pedagógica distinta, tanto no que se
refere à organização do trabalho docente quanto aos alcances de uma
educação de base científica para ambos os gêneros. Contra a ideia de
que as meninas deveriam ser preparadas unicamente para o casamento, a educação desenvolvida no colégio se organizava com aulas das
disciplinas zoologia, mineralogia, física, ciências, aritmética, geometria,
português, inglês, francês, desenho e trabalhos de agulha. As matérias
eram divididas entre práticas e de experimentação, vindo o colégio a
tornar-se o primeiro do País a implantar um laboratório de química.
Destaca-se, ainda, o observatório astronômico, localizado no telhado do
prédio. Em 1886, foi aberto o “kindergarten”, destinado para crianças
entre três e sete anos de idade.
A escola como lugar da infância ganha força na experiência do
colégio, embora se esteja falando de um contexto específico, com claro
recorte de classe social. Ainda assim, os indícios parecem mostrar que
se acreditou ser possível que a sociedade reservasse um tempo e um
espaço para a formação de pessoas capazes de fazer diferença, num
mundo que se anunciava repleto de sonhos de progresso e de civilização. Se essas esperanças se concretizaram de fato, importa menos
do que compreender como alimentavam o imaginário do século XIX e
como é possível enxergá-las, ainda hoje, nos monumentos erigidos e nos
objetos preservados, como testemunhos de uma época e promessas de
seus ideais, inclusive para colocar o presente em situação crítica.
A Educação Patrimonial no contexto da Educação Infantil
Com o objetivo de desenvolver ações educacionais voltadas para
o uso e a apropriação dos bens culturais, a Educação Patrimonial é
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concebida como uma metodologia específica de trabalho pedagógico
para museus, monumentos, sítios arqueológicos e centros históricos
e culturais. Inspirados nas experiências desenvolvidas, sobretudo na
Inglaterra, especialistas e pesquisadores brasileiros introduziram a
proposta, lançando as bases do que viriam a ser os eixos de sustentação
dos projetos dessa área no País.
De acordo com Horta (HORTA; GRUNBERG; MONTEIRO, 1999,
p. 5), as experiências e as práticas desenvolvidas, a partir do início do
processo de difusão e implantação da metodologia, contribuíram para
uma nova visão do patrimônio cultural brasileiro na sua diversidade de
manifestações. Tais manifestações, tangíveis e intangíveis, são consideradas como fonte primária de conhecimento e aprendizado, que pode
tanto ser explorada na educação formal de crianças, jovens e adultos,
inserida nos currículos escolares, quanto servir como ferramenta em
trabalhos de educação popular, cujo foco seja direcionado para as
questões ligadas à cultura.
Horta (2003, p. 2) explica a ideia de processo ativo contida na metodologia:
A observação direta e a análise das “evidências” (aquilo que está
à vista de nossos olhos) culturais permitem à criança ou ao adulto
vivenciar a experiência e o método dos cientistas, historiadores, dos
arqueólogos, que partem dos fenômenos encontrados e da análise
de seus elementos materiais, formais e funcionais para chegar a
conclusões que sustentam suas teorias. O aprendizado desse método investigatório é uma das primeiras capacitações que se pode
estimular nos alunos, no processo educacional, desenvolvendo
suas habilidades de observação, de análise crítica, de comparação
e dedução, de formulação de hipóteses e de solução de problemas
colocados pelos fatos e fenômenos observados.
A estrutura da metodologia é concebida em etapas que se caracterizam por diferentes recursos pedagógicos, com objetivos definidos
para cada uma delas. Embora ordenadas e roteirizadas, elas podem
também ocorrer simultaneamente, dependendo da avaliação da dinâmica usada e das respostas do público envolvido. As etapas projetadas
são observação, registro, exploração e apropriação, detalhadamente
descritas na publicação do Iphan intitulada Guia Básico de Educação
Patrimonial, de 1999.
Formulada com o intuito de orientar as ações educacionais na área
patrimonial, a proposta considera que os artefatos ou evidências da cultura carregam uma multiplicidade de aspectos e significados, atribuídos
no contexto de sua produção, que precisam ser deslindados e articulados
com a vida contemporânea, numa atualização de seus sentidos.
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As experiências e as
práticas desenvolvidas
contribuíram para
uma nova visão do
patrimônio cultural
brasileiro na sua
diversidade de
manifestações
Os artefatos ou
evidências da cultura
carregam uma multiplicidade de aspectos
e significados que
precisam ser deslindados e articulados com
a vida contemporânea
Encontro de histórias de infância e pedagogias
O fato de as classes
estarem pesquisando
a história do bairro
possibilitou maior
integração entre os objetivos e os conteúdos
propostos pelo projeto
Alguns dos objetos
foram apresentados
em sua forma original,
causando interesse em
tocá-los, perceber sua
matéria e conversar
sobre seus usos no
passado daquela
escola
O projeto desenvolvido no CCMW pelas estagiárias do Curso de
Pedagogia da Unimep teve início em fevereiro de 2009. No decorrer das
primeiras semanas, priorizou-se o conhecimento do acervo do Centro
Cultural, por meio do contato direto com os objetos, materiais, pinturas
e fotografias expostas, seguido de discussão, em supervisão, acerca das
impressões e percepções obtidas nas visitações. Ao lado do trabalho de
conhecimento direto do acervo, com registros em relatórios semanais, as
estagiárias fizeram a leitura da bibliografia sobre a história do Colégio
Piracicabano e da Unimep. Após esse momento, foram programadas
sessões de estudo sobre Educação Patrimonial, que possibilitaram as
primeiras articulações entre o acervo e o projeto a ser desenvolvido
com as crianças da Educação Infantil.
Nesse mesmo período, foram estabelecidos os contatos com a escola,
por intermédio da diretora e das professoras, e, em seguida, ocorreram
as visitas das estagiárias à escola, o que possibilitou o conhecimento do
público-alvo e também do planejamento curricular em desenvolvimento
junto aos alunos. Em relação a esse último aspecto, observou-se que o
fato de as classes estarem pesquisando a história do bairro possibilitou
maior integração entre os objetivos e os conteúdos propostos pelo projeto. Na escola foram mostradas às crianças, numa roda de conversa, fotografias de alguns objetos selecionados do acervo, dentre eles: o penico
esmaltado, a sineta, a maquete, o telefone, a máquina de datilografia e
o relógio, além dos retratos de Miss Martha Watts e Miss Lily Stradley.
Diversas perguntas e hipóteses sobre os objetos foram suscitadas, com
vistas a identificá-los, discutir seu uso pelas pessoas da época, dialogar
sobre o contexto social, englobando os costumes, a tecnologia disponível
e também o universo daquela escola do século XIX.
A atividade seguinte foi a confecção de uma maquete da própria
escola das crianças, integrando outros equipamentos do bairro, como o
posto de saúde, localizado ao lado, e o terminal de ônibus, situado em
frente à escola. A confecção da maquete teve como propósito despertar
o sentimento de valorização e de identificação com o bairro e a escola,
além dos objetivos relacionados à localização espacial e o reconhecimento da estrutura urbana, construída naquele bairro, onde vivem milhares
de famílias de trabalhadores piracicabanos.
No dia combinado para a visita, três estagiárias receberam vinte e
cinco crianças de cinco anos de idade, acompanhadas de uma professora e uma auxiliar de professora. As crianças foram conduzidas para
uma sala, localizada à direita do hall de entrada, se sentaram em roda
com as estagiárias e as professoras e ouviram uma história que contava sobre uma menina chamada Lili que realiza uma visita ao museu e
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descobre uma porção de coisas interessantes, todas elas vinculadas ao
acervo do CCMW e também à própria história de fundação do Colégio
Piracicabano. O enredo possuía um pouco de suspense, fazendo com
que algumas crianças lembrassem do filme “Uma noite no museu” e o
associassem à experiência que estavam vivenciando. Alguns dos objetos,
mostrados às crianças por meio de fotos, foram apresentados em sua
forma original, causando interesse em tocá-los, perceber sua matéria e
conversar sobre seus usos no passado daquela escola.
Após a roda de conversa e história, as crianças se dirigiram para
o espaço em que se localiza a maquete, abaixo do nível do piso, conforme descrito no início deste texto, e puderam explorar o que viam,
procurando reconhecer os lugares, considerados marcos do centro da
cidade de Piracicaba.
O passo seguinte foi conhecer o dormitório das alunas internas,
ambientado com camas, baús, armários, penicos debaixo das camas,
violino, relógio, fotografias e máquina de costura. Assim que chegaram,
as crianças foram olhar embaixo da cama para ver de perto o que lá
havia. As estagiárias iam chamando a atenção para alguns dos objetos
presentes naquele ambiente e que haviam sido apresentados, anteriormente, nas fotografias e também pela história contada. As crianças
respondiam interagindo, questionando, mostrando-se surpresas com
o tamanho de alguns objetos, como o telefone, a pilha do telefone e o
relógio de parede.
O ambiente seguinte seria, então, a sala de aula e o laboratório de
química, composto de escrivaninha ou mesa da professora com uma
maçã e um jarro de flores, carteiras escolares, bonecas de pano uniformizadas sentadas nas carteiras, mesas e tubos de ensaio do laboratório,
livros, alguns animais taxidermizados. Foi nesse ambiente que um dos
meninos, ao ouvir a explicação de que os animais não estavam vivos,
mas haviam morrido e foram preservados graças a um processo especial, perguntou ao monitor: “E aquelas meninas (apontando para as
bonecas) morreram de quê?”
Outro espaço visitado, denominado “Túnel do Tempo”, apresentava
o quarto de Martha Watts e o escritório de Miss Lily Stradley. Logo na
entrada, numa primeira sala, encontrava-se uma enorme Bíblia com
letras góticas douradas na capa, trazida de navio por Martha Watts,
acomodada numa mesa expositora de vidro, com iluminação direta
sobre ela, num pequeno ambiente escuro. As crianças formavam fila
para ver a Bíblia, uma vez que o ambiente não comportava mais de
duas ou três crianças por vez. Algumas disseram que a Bíblia se parecia
com o livro do Harry Potter, personagem de filmes e livros bastante
populares nos últimos anos.
Seguindo em direção ao quarto e ao escritório, as crianças passaram por um corredor e uma antessala, onde foi possível ouvir o áudio
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As crianças respondiam interagindo,
questionando,
mostrando-se surpresas com o tamanho de
alguns objetos
As crianças passaram
por um corredor e
uma antessala, onde
foi possível ouvir o
áudio da leitura das
cartas de Martha
Watts
Depois da visita ao
acervo, as crianças
realizaram atividades
de artes visuais, como
colagem, desenho e
pintura
As atividades continuaram na escola:
pesquisas sobre a
história do bairro e
da escola, produções
plásticas e gráficas e a
edição de um livro
da leitura das cartas de Martha Watts, traduzidas para o Português e
gravadas por uma atriz. A princípio, algumas crianças estranharam o
surgimento da voz e depois passaram a ouvir algumas partes em que
a autora conta sobre suas experiências e seu estranhamento quanto à
cultura e aos costumes do lugar.
No quarto de Martha Watts e no escritório de Lily Stradley, as
crianças se mostraram curiosas a respeito de alguns dos objetos expostos,
vistos através das fotos, realizando perguntas e sendo questionadas sobre
o telefone de parede, a máquina de escrever, a calculadora, o relógio e
também sobre a mesa de café da tarde, com réplicas de bolos, biscoitos,
sucos de laranja, chás e leite, onde Martha Watts costumava se reunir
com as professoras do colégio para as reuniões pedagógicas. O último
ambiente visitado foi a cozinha do internato, com fogão a lenha, vários
objetos da culinária da época, grandes panelas, chaleira, copos, xícaras,
além de réplicas de waffle, ovos fritos, queijos, bifes, bolos, etc.
Depois da visita ao acervo, as crianças se dirigiram para a Oficina
e lá realizaram atividades de artes visuais, como colagem, desenho e
pintura. Sem que lhes fosse solicitado diretamente, retratavam, em suas
produções, imagens relacionadas ao acervo, comentando entre elas e
também com os adultos aquilo que haviam captado da visita. Parte
dessas produções foi coletada como registro do trabalho feito para
posterior análise e elaboração dos relatórios de estágio e a outra parte
foi levada pelas professoras para os registros do projeto na escola. O
encerramento da visita se deu no espaço chamado Café Flora, onde as
crianças merendaram e conversaram com as estagiárias sobre o que
haviam visto e gostado de ver naquela visita. As observações, descrições
e análises sobre o evento foram registradas em relatórios, escritos pelas
estagiárias, assim como feitos também diversos registros fotográficos.
Na semana seguinte, em contato com a diretora da escola e com as
professoras, soube-se da continuidade dada ao trabalho na escola: rodas
de conversa, pesquisas sobre a história do bairro e da escola, produções
plásticas e gráficas e, finalizando, a edição de um livro da classe sobre
o projeto desenvolvido naquele semestre.
Considera-se, assim, que as etapas da metodologia da Educação
Patrimonial foram essenciais para orientar e organizar o trabalho com
as crianças, partindo-se da observação e do registro nas atividades
desenvolvidas na preparação da visita, ocorrida na escola, e na visitação propriamente dita ao CCMW. As etapas referentes à exploração
e à apropriação puderam ser desenvolvidas, sobretudo no retorno à
escola, possibilitando a pesquisa em outras fontes, a interpretação das
evidências e significados, assim como a recriação e releitura em outros
meios de expressão.
O contato das estagiárias com a metodologia da Educação Patrimonial favoreceu a elaboração de outro olhar sobre o trabalho realizado
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em museus, assim como o reconhecimento de um campo potencial de
atuação profissional. Também as professoras puderam identificar oportunidades de articular os conteúdos tratados no currículo da Educação
Infantil com os bens culturais disponibilizados no acervo do museu,
além do acesso ao conhecimento, apropriação e valorização da herança
cultural, proporcionado pela experiência.
As questões que instigaram este trabalho permanecem abertas para
outras interpretações, pois compreender o mundo da infância e da escola, concebidos no século XIX, pode colocar em pauta a infância e a
escola contemporâneas. O que moviam as professoras, as alunas e suas
famílias? Que esperanças ainda se encontram nos lugares da infância?
A linguagem muda dos objetos tem muito a revelar.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995.
BUFFA, Ester. Arquitetura e educação: organização do espaço e propostas pedagógicas dos grupos escolares paulistas, 1893-1971. São Carlos: Edufscar;
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FREIRE, M. C. M. Ritos profanos: museu e arte contemporânea na era do espetáculo. Tese de Livre Docência. Instituto de Psicologia da Universidade de
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HORTA, Maria de Lourdes P. O que é educação patrimonial. 2003. Disponível
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________________; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia
Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
MESQUITA, Zuleica. Evangelizar e civilizar: cartas de Martha Watts, 1881-1908.
Piracicaba: Unimep, 2001.
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A linguagem muda
dos objetos tem
muito a revelar

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