A representação do jovem em Cabra das Rocas, de Homero
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A representação do jovem em Cabra das Rocas, de Homero
A REPRESENTAÇÃO DO JOVEM EM CABRA DAS ROCAS, DE HOMERO HOMEM E CIUMENTO DE CARTEIRINHA, DE MOACYR SCLIAR Márcia Hávila MOCCI1 Resumo: O presente trabalho objetiva uma breve análise comparativa entre duas obras de literatura infantojuvenil publicadas com uma distância temporal de 40 anos: Cabra das Rocas, cuja primeira edição é de 1966, de Homero Homem e Ciumento de carteirinha, de Moacyr Scliar, 2006. Para tanto buscamos estabelecer relações entre as duas narrativas nos seguintes aspectos: concepção e representação do jovem, representação da família e da sociedade e projeto gráfico-editorial. O referencial teórico que subsidia a análise das obras compõe-se de textos sobre a juventude, a literatura infantojuvenil e a indústria cultural. Palavras-chave Cabra das Rocas, Ciumento de carteirinha, leitor juvenil Introdução A fim de contextualizarmos as narrativas, apresentamos uma breve síntese das obras. Cabra das Rocas (1980, 7ª ed.) narra a história do garoto João, morador do Bairro das Rocas, lugar em que os meninos são chamados de Canguleiros, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte e sua determinação em conquistar um sonho: ser admitido na melhor escola da cidade, o Colégio Ateneu, até então acessível apenas aos jovens de classe alta, denominados Xarias. Com muita persistência e a ajuda do farmacêutico da cidade, que passa a ser seu professor particular, João consegue ser admitido no Colégio. Em meio à narrativa principal aparecem diversos episódios relacionados ao universo do adolescente como o despertar do amor pelo protagonista e suas aventuras com o grupo de amigos. Em Ciumento de carteirinha (2006) a narrativa trata do ciúmes do jovem Queco por Júlia, a namorada com quem o garoto vive uma relação conturbada. Como ambos são estudantes do Ensino Médio surge um concurso a respeito da obra Dom 1 Professora de Rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná e doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá- UEM. Casmurro, um julgamento em que aqueles que melhor defenderem a posição de Capitu, culpada ou inocente receberão um grande prêmio em dinheiro. Influenciado pela posição de Bentinho nas suspeitas a respeito de Capitu, Queco começa a enxergar cumplicidade entre Júlia e seu melhor amigo, passando a viver dias de grande tormento e amargura. Motivado pelo ciúmes o jovem arquiteta um plano para, fraudulosamente, vencer o concurso, porém, ao ver Júlia na plateia, perde a coragem de levar seu plano adiante e confessa, diante de todos, a sua armação. Representação do jovem Antes de adentrarmos ao universo juvenil, torna-se necessário termos clareza quanto ao conceito de jovem e de juventude. Para tanto reportamo-nos às considerações de Cademartori (2009) ao citar a definição oferecida pela Organização Mundial da Saúde que considera adolescente o indivíduo entre 10 e 20 anos que passa por modificações corporais e por adaptações a estruturas psicológicas e ambientais que irão conduzi-lo à vida adulta. Já a definição de juventude parte de um enquadramento social e “engloba parte da adolescência e o início da vida adulta. Corresponde a uma faixa etária que vai dos 15 aos 25 anos, Nesse período, espera-se que ocorra a maturação da personalidade do sujeito e o início da integração na sociedade a que pertence”. (CADEMARTORI, 2009, p. 61) Sabemos ser a juventude uma época tumultuada e cheia de ambivalências e inseguranças, um período em que o jovem experimenta formas de inserção na sociedade e passa a se relacionar com pessoas da mesma faixa etária formando grupos de semelhantes. O jovem possui uma grande necessidade de saber que faz parte de determinado segmento social e que os amigos que o compõem apresentam as mesmas características, compartilhando uns com os outros a maneira de pensar, de falar e até mesmo de se vestir. A esse respeito Groppo (2000, p. 48) esclarece: Ao mesmo tempo que procuram acentuar suas diferenças em relação aos adultos, bem como opor-se aos papéis sociais parciais oferecidos, os jovens esforçam-se para se comunicarem e serem reconhecidos pela sociedade ampla […] os próprios grupos juvenis têm papel relevante ao criarem as primeiras disposições para identificação com a sociedade e serem receptáculos de solidariedade. Nesse aspecto observamos que as duas obras analisadas destacam a importância da formação dos grupos na juventude. Em Cabra das Rocas (1980) temos as aventuras dos moleques pobres das Rocas e a necessidade que João, o protagonista, tem de parecer-se com os demais amigos. Essa necessidade de pertencimento é tão intensa que o garoto deseja abandonar os estudos para tornar-se igual a seus companheiros de brincadeiras: “Foram eles, seu Geraldo […] me chamaram de doutor, de traidor, de xarias […] não voltarei mais para a aula, não voltarei! Não quero ser doutor. Quero ser como eles, o Budião, o Varapau, o Tatu.” (HOMEM, 1980, p. 38) Em Ciumento de carteirinha (2006) o destaque é para a união do grupo de amigos, quatro jovens estudantes: “O 'Quarteto' Jaime, O 'quarteto' que você conhece […] Somos um grupo ou não somos? E tenho certeza que você acabará vestindo a camisa”. (SCLIAR, 2006, p. 27). A questão da identificação, tão importante na juventude, se faz presente no diálogo do protagonista Queco com os jovens de Dom Casmurro: “Jovens do século XIX, certo, jovens que eu imaginava diferentes da gente, usando roupas diferentes das nossas roupas, mas jovens, de qualquer maneira. Mais: jovens com sentimentos parecidos aos nossos, com emoções parecidas às nossas”. (SCLIAR, 2006, p. 44) A representação do jovem nas duas obras se dá de forma distinta. O adolescente representado em Cabra das Rocas (1980) é, na verdade, um garoto de onze anos, porém se considerarmos a cultura e a sociedade da época em que o mesmo está inserido, 1966, observamos que ele possui atitudes e responsabilidades de um garoto de aproximadamente dezesseis anos comparando-se aos dias atuais. É o que se revela ao leitor no despertar do amor do garoto em que se destaca certo apelo sexual: A voz de Dora soava mansa e o seu corpo tinha um cheiro bom e novo, no qual só agora atentava […] enquanto eu a beijava, uma, duas, muitas vezes […] seus lábios cocegando nos meus como uma fruta comida de vez […] estava pertinho dela, sentia seus cabelos roçando minha boca […] Minhas mãos tocavam-lhe os cabelos, afagavam-lhe o rosto. Fiz menção de abraçá-la _ Você deixa Dora?”(HOMEM, 1980, p. 26-28) A fala da garota, mais à frente, também reflete a sociedade de pobreza e exploração em que vivem os dois jovens: _ Ainda não é estudante e se mete a bolinar a gente [...] Suas palavras eram uma alusão aos rapazes da Cidade Alta, que se aproveitavam das moças das Rocas como passatempo”. (HOMEM, 1980, p. 27) Em Ciumento de carteirinha (2006) a representação do jovem se dá a partir do conflito vivido pelo mesmo: deixar-se dominar pelos ciúmes ou vencê-lo por meio do bom senso, optar pelo mal, ao praticar uma atitude fraudulenta, ou professar os valores éticos da honestidade, até mesmo consigo mesmo. Nesse aspecto observa-se que a temática da obra está sintonizada aos anseios da juventude, pois a questão dos ciúmes, assim como da instabilidade constante nos relacionamentos amorosos entre adolescentes perpassa toda a narrativa: À medida que o tempo passava, as dúvidas cresciam: às vezes me parecia que sim, que éramos namorados. Por exemplo, quando eu ia à casa dela, e ela me recebia, e me levava a seu quarto, e ficávamos trocando beijos e carinhos … Mas já no dia seguinte ela se mostrava distante, até fria. (SCLIAR, 2006, p. 22) O desejo de transgredir, tão natural ao jovem, se faz presente em Ciumento de carteirinha (2006) por meio das ações de Queco: “O meu voto é importante? Pois então não teriam o meu voto […] A mim pouco importava (p. 75) Isso ocorre porque, segundo Groppo (2000), dentro do jovem ainda convivem duas formas distintas de pensar, sentir e enxergar o mundo: a do adulto e a da criança, sendo esse contraste a própria essência da juventude. Da mesma forma são representados os tradicionais conflitos juvenis gerados por atos impulsivos: “Meu Deus, o que é que eu tinha feito? O que é que eu estava fazendo?” (SCLIAR, 2006, p. 103) Foco narrativo e linguagem Em Cabra das Rocas (1980) os fatos são narrados pelo garoto João e seguem a sequência cronológica dos acontecimentos. Apesar de a perspectiva ser do adolescente, a linguagem utilizada é a de um adulto extremamente culto, criando certa incongruência e distanciamento entre a obra e o leitor juvenil que não se vê representado na narrativa por meio da linguagem. O uso de termos eruditos é constante no texto: “Miasmas de sangue putrefato, cheios de detritos caseiros” (p. 9) “tropel de apocalipse” (p. 11), “paul” e “comedor de xaréu”, entre outros que exigem do leitor a consulta a um dicionário. Em certos momentos a linguagem torna-se poética, encantando o leitor por meio de metáforas criativas: “O sol adoecia tudo quanto tocava com sua mão amarela […] o mangue dormia uma sesta misteriosa” (p. 24). Em outros momentos da narrativa a linguagem propicia discriminação em relação às personagens menos favorecidas, pois a fala excessivamente estilizada acaba por ridicularizá-las, criando um enorme abismo entre a linguagem do narrador e a das personagens: “Mió, Seu Geraldo. Apareceram umas perebas nela, eu estava inté pra levar ela prumode o senhor ver.” (p. 22) Em Ciumento de carteirinha (2006) o foco narrativo também se apresenta em primeira pessoa e os fatos são apresentados ao leitor a partir da perspectiva do jovem Queco. Essa maneira pessoal de narrar permite ao leitor tomar consciência dos dramas, angústias e forma de enxergar o mundo do adolescente, aumentando a empatia entre a obra e o leitor juvenil. O texto de Scliar (2006) particulariza-se por apresentar um narradorpersonagem que confidencia suas experiências e angústias. Embora sejam a mesma pessoa, são representados por duas caracterizações diferentes: a do adolescente que vive as ações do passado e a do adulto que rememora os fatos de sua adolescência, Essa caracterização diferenciada para a mesma personagem, além de destacar a distância temporal entre os dois, gera outras distâncias emocionais, culturais e ideológicas. O narrador adulto imprime aos fatos seu modo particular de ver o mundo: “Dizem que os jovens não gostam de ler. Não é verdade. Jovens leem sim, e leem com prazer, desde que sejam bem motivados”. (SCLIAR, 2006, p. 9) Observamos que a linguagem em Ciumento de carteirinha (2006), mantém-se em um nível muito próximo à utilizada pelos adolescentes, seguindo a norma culta da língua, mas com simplicidade e a incorporação de termos coloquiais. Na fala das personagens aparecem expressões características da juventude: “Grande Jaime, homem grandão. Cara, esse escritor vai fazer a sua cabeça” (p. 10) “A coisa meio que vira guerra” (p. 55), porém, sem grandes exageros. O próprio título da obra, por meio do termo “de carteirinha”, propicia identificação com o jovem e com sua maneira característica de expressar-se. Nas colocações do adulto observamos uma linguagem, às vezes, mais elaborada: ”E o quarto estava como eu deixara, ninguém entrara ali” (p. 50), às vezes, mais próxima da oralidade: “A gente aprendeu muita coisa com obras como Dom Casmurro” (p. 128), fazendo com que, por meio da linguagem o jovem se veja retratado na obra. Representação da família Como as obras analisadas são de épocas distintas e contextos sociais, econômicos e culturais diferentes, a representação das famílias segue as concepções de da sociedade e da cultura vigentes. Em Cabra das Rocas (1980) a família representada é tradicional, contando com a presença de um pai provedor, único responsável pelo sustento da casa, e da mulher que cuida do lar e dos filhos, submissa à autoridade do marido: “Meu pai se desembaraçou da japona, sentou à mesa. Dona Laura, minha madrasta, trouxe quase em seguida o jantar.” (HOMEM, 1980, p. 16) As relações familiares representadas em Cabra das Rocas (1980) denotam pouco diálogo e muita obediência, como se pode observar pela fala do garoto ao referir-se ao silêncio do pai: “Aquela secura me doeu. Estava acostumado com ela, meu pai era assim mesmo. Mas a situação era tão especial que me dera coragem para engendrar aquela conversa”. (p, 16) Porém o autoritarismo não é total, pois, em alguns momentos o pai deixa entrever uma pequena abertura ao diálogo: Raro meu pai falar assim, encarando-me como igual. Era um homem entrincheirado em seu silêncio, um silêncio pesado como o resto de sua pessoa, difícil de romper. Cedo me acostumara a ele. Em casa, eu e a Dona Laura, ninguém se espantava. (HOMEM, 1980, p. 17) A família representada em Ciumento de carteirinha (2006) pertence à classe médio-alta, é bem estruturada e conta com a presença de um pai e uma mãe que apóiam e incentivam os filhos em relação aos estudos. O adolescente se move em um mundo organizado com pessoas cultas e estudiosas (seus irmãos já cursam a universidade) e possui excelentes relações com os pais, especialmente com a mãe, com quem o diálogo é freqüente. Porém, como texto representativo da sociedade contemporânea, a obra também aborda a questão das relações familiares conflituosas, tão presentes na sociedade do século XXI. É o que se observa no comportamento de Júlia, namorada de Queco, após a separação traumática de seus pais: O fato é que ela era uma garota complicada, sobretudo por causa da relação familiar. Depois de uma longa e difícil convivência os pais tinham se separado, um rompimento tumultuado, com muitas brigas e acusações. O pai mudara para o Rio de Janeiro e raramente aparecia. Júlia morava com a mãe, funcionária pública, mas as duas não se davam muito bem, discutiam por coisas insignificantes. (SCLIAR, 2006, p.22) Tal situação remete às considerações de Óbiols (2006, p. 108) a respeito da diversidade dos grupos familiares presentes na sociedade atual, à situação tão comum dos lares mono parentais chefiados por mulheres e as conseqüências desastrosas das separações conflituosas. A autora destaca que, muitas vezes, os filhos são vistos como espólio do divórcio, de um pai e uma mãe que disputam narcisisticamente por seus filhos e passam a vê-los como troféus a serem ganhos para satisfazer sua própria autoestima, e não considerados como adolescentes e jovens em formação a quem se deve proteger. Obiols (2006) ressalta ainda a dificuldade que os adultos, atualmente, enfrentam nos relacionamentos com os jovens, uma vez que eles mesmos estão em crise, perdidos em seus papéis de pais, sem saber exatamente como agir com os filhos, situação que deixa o jovem cada vez mais desnorteado e sem referências a seguir. Sociedade, escola e literatura Para entendermos a visão das personagens em relação à escola e à literatura torna-se imprescindível um olhar mais atento à sociedade em que as mesmas se inserem. A sociedade representada em Cabra das Rocas (1980) é a dos marinheiros das Rocas, homens pobres com pouco, ou quase nenhum, estudo. Composta por pessoas humildes que dependem do mar para seu sustento. Os filhos dos marinheiros não estudam e as perspectivas de futuro são as de reproduzir a vida laboriosa dos pais, enfim, é uma sociedade extremamente estratificada cuja hierarquia o garoto João tenta romper por meio do estudo: “- filho de rico para a escola – filho de pobre para o trabalho” – eu, filho e neto de marinheiros, me atirava à grande aventura, proibida até então à minha gente, de cursar um colégio oficial de grau secundário, comprar livros, frequentar aulas, ilustrar-me para concorrer ombro a ombro com os rapazes de família, no pega-pra-capar da luta pela vida. (HOMEM, 1980, P. 8) Observamos que é também a sociedade quem determina o posicionamento, tanto do garoto quanto de seus amigos e familiares, em relação à literatura: Também havia a literatura de folhetins jogados pelas janelas e depois recolhidos pelos agentes que percorriam as Rocas propondo assinaturas que nunca eram tomadas. O pessoal lia, ou melhor, ouvia a leitura daquelas histórias […] Muito melhor eram os panfletinhos de tostão comprados na feira, contando com rimas capengas a odisseia de João e Maria, o fausto da princesa Magalona, as proezas de Lampião. Aquilo, sim, acendia o entusiasmo. Já os dramas à base de sexo e da fortuna, devorados pelo povo da Cidade Alta, nos deixavam enojados e indiferentes. (HOMEM, 1980, p. 30) Ao analisar essa passagem podemos nos reportar às considerações de Adorno (1990) a respeito da cultura de massa. O autor salienta que a diferença entre os produtos artísticos em classe A e B tem a finalidade de classificar e padronizar os seus consumidores e, dessa forma, cada público deve se comportar de acordo com seu “nível” usufruindo os produtos destinados ao “seu tipo”. Adorno assevera que, na cultura de massa, a ênfase recai sobre os feitos (que, na obra em questão, poderiam ser as “rimas capengas”), a fórmula toma o lugar da obra e o todo se sobrepõe ao particular numa generalização que se repete e priva o espectador de realizar oposições e conexões a atrofia sua imaginação. Em Ciumento de carteirinha (2006) salta aos olhos a valorização da leitura literária. Os pais do protagonista, advogado e assistente social respectivamente, são exemplos de leitores assíduos e conhecedores de obras clássicas: “Os grandes escritores ensinam a viver por meio de suas histórias” (SCLIAR, 2006, p. 38). Também o discurso dos professores em relação à leitura é persuasivo: “Tem gente que vai em busca de um livro porque um amigo recomendou. Tem gente que gosta do autor, tem gente que está interessada pessoalmente no tema... Isso não importa. O que importa é gostar, se emocionar, e aprender". (SCLIAR, 2006, p. 25) À literatura é atribuído um papel tão importante em Ciumento de carteirinha (2006) que a leitura de Dom Casmurro acaba influenciando as atitudes do jovem Queco e ele, que já se considera extremamente ciumento, cria uma forte identificação com Bentinho e, na medida em que vai lendo o romance, começa a projetar em sua namorada Júlia as mesmas suspeitas que, na ficção, recaem sobre Capitu: “Que fantástico livro, o Dom Casmurro! Machado era mestre até em pequenos detalhes. Por exemplo? Havia me chamado a atenção o fato de que grande parte dos sentimentos eram transmitidos através do olhar, e sobretudo através do olhar de Capitu. (SCLIAR, 2006, p. 60-61) Também a figura do professor é representativa nas duas obras, pois em ambas os mestres são figuras fortes, de presença marcante e agem como mediadores, em Cabra das Rocas (1980) em relação aos estudos e em Ciumento de carteirinha (2006) em relação à leitura literária. O “professor” de Cabra das Rocas (1980), na verdade um farmacêutico com alguma instrução, optou em dedicar sua vida a ajudar as pessoas pobres das Rocas e exerce um papel decisivo na vida de João, pois jamais o deixa desistir dos estudos: “Seja canguleiro, João, acima de tudo canguleiro. Mas seja canguleiro estudando, aprendendo, indo para adiante, como fazem os xarias lá do outro lado.” (p. 39) e, a fim de convencer o garoto, reporta-se à história de sua vida, valorizando a opção do garoto pelo saber: “Há muito tempo que vivo neste mangue, e isso nunca me acontecera. Todos me procuram para que eu escreva cartas, cobre dívidas, resolva seus casos de amor. Nunca, porém, até você aparecer, ninguém me pediu para ensinar. (HOMEM, 1980, p. 39) Em Ciumento de carteirinha (2006) Jaime, o professor de literatura, tem papel fundamental no incentivo à leitura e, usando sua experiência pessoal, realiza o papel de mediador entre a leitura literária e seus jovens alunos: “Sempre levava consigo uma pasta cheia de livros: minha biblioteca portátil, segundo dizia [...]Fazia questão de partilhar conosco o seu entusiasmo pela leitura. (SCLIAR, 2006, p. 10) Ao pensarmos no papel da escola, observamos que em ambas as narrativas, ela é vista como um símbolo de ascensão social e formadora de pessoas ilustres. Nesse aspecto as obras dialogam entre si, em Cabra das Rocas (1980) a admiração do garoto pelo colégio beira à idolatria: “Era esse então o Ateneu de tanta importância e tradição na vida cultural de nossa cidade! Por ali haviam passado os grandes vultos locais […] Daqueles bancos escolares saíra o que há de melhor já dera o Estado em matéria de sabedoria e inteligência”. (HOMEM, 1980, p. 7-8) Em Ciumento de carteirinha (2006) a visão da instituição escolar é semelhante: “Esta escola, entre parênteses, era o orgulho para a cidade […] na escola José Fernandes da Silva tinham estudado pessoas importantes para nós: o prefeito Gondim (duas vezes reeleito), o doutor Eustáquio, o poeta Jerônimo de Oliveira, publicado até em Portugal.” (SCLIAR, 2006, p. 15-16) Observa-se também que em Ciumento de carteirinha (2006) há um esforço em revitalizar e valorizar da leitura dos clássicos por vários expedientes: a propaganda da obra feita pelo professor Jaime em sala de aula, o concurso a respeito de Dom Casmurro e a identificação do jovem protagonista com o herói de uma obra clássica. Sendo assim, podemos nos reportar às considerações de Bourdieu (1982) a respeito de ser o sistema de ensino um dos legitimadores do campo da cultura erudita, advogando no sentido de legitimá-la e dar-lhe maior credibilidade. O autor ressalta também que o campo da produção erudita destina seus bens a um público de produtores de bens culturais, no caso da obra em questão, a instituição escolar. Projeto gráfico-editorial e mercado Os instrumentos culturais se modificam conforme a humanidade evolui e as culturas vão se modificando, sendo assim, de acordo com Eco (1979), é preciso analisálos à luz de um novo modelo de homem, o homem da era industrial que passa a ter participação ativa no mundo cultural: “com o advento da era industrial o acesso das classes populares subalternas ao controle da vida associada, estabeleceu-se, na história contemporânea, uma civilização dos mass media.” (ECO, 1979, p. 35) Pensando no livro como um bem cultural acessível a um grande número de pessoas, verificamos que os meios externos à sua produção influenciam na divulgação e comercialização desse produto cultural. Bourdieu (1982) assevera que o desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos está intimamente relacionado aos diferentes tipos de públicos a que os mesmos se destinam, são bens valorizados como mercadorias e agregam ao seu caráter cultural de obra de arte o caráter mercantil. O mercado editorial brasileiro tem evoluído bastante nos últimos anos, tanto quantitativamente quanto qualitativamente em relação à publicação de narrativas para a juventude, E é observando essa evolução que ressaltamos as especificidades das duas obras, tanto em relação ao mercado, quanto ao projeto gráfico-editorial. Porém não podemos esquecer de que, nos vinte e seis anos que separam a publicação das duas obras, houve um avanço significativo da linguagem imagética e dos recursos gráficovisuais. A presença, cada vez maior, de designers no mundo literário tem sido representativa e responsável pela qualidade dos elementos não-verbais que contribuem para compor a significação de uma obra. Em Cabra das Rocas (1980) a capa do livro, representada por um fundo rosa e emoldurada por um quadro em marrom, retrata uma cena do cotidiano do protagonista: um jovem pensativo e de olhar nostálgico relembrando suas aventuras, no caso uma briga, com outros adolescentes. Como tudo está literalmente representado a imagem não possibilita ao leitor o recurso à imaginação, ou mesmo a inferência de outros sentidos para a imagem, pois esta prevê apenas uma interpretação possível. O semblante das personagens retratadas em Cabra das Rocas (1980) representa pessoas sisudas e de expressão fechada. A representação do jovem se dá por meio da figura de um rapazote de semblante sério, resignado e, até mesmo, triste. Sua posição de submissão ao pátrio poder se faz representada pela imagem da página dezenove que reflete o modelo familiar da década de 1960: “Vá dormir para acordar cedo, menino. Se tem mesmo que ser doutor precisa ir se preparando”. (HOMEM< 1980, p. 19) Quanto à presença das ilustrações observa-se em Cabra das Rocas (1980) que, em dezenove capítulos, aparecem apenas sete ilustrações em preto e branco, sendo todas as representações fiéis de partes da narrativa, contando, inclusive, com legendas abaixo das mesmas. Tal clareza, segundo Iser (1999), não exige do leitor nenhum esforço para o deciframento das imagens apresentadas ou mesmo para uma construção mental mais elaborada a fim de procurar outros sentidos por meio do texto imagético. Tudo está graficamente representado sem deixar, nas palavras do teórico, “espaços vazios” para que o leitor construa suas próprias representações mentais. Tal fato, porém, é representativo da cultura e da sociedade da época, pois não havia até então a preocupação, tanto por parte dos autores quanto dos ilustradores e dos editores, em propiciar um diálogo interativo entre o leitor e a obra. Essa é uma tendência que surge a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção, vertente que começou a ser divulgada na Alemanha ao final da década de 1960, chegando ao Brasil bastante tempo depois. Se procurarmos analisar obras editadas na mesma época em que Cabra das Rocas (1980) como A ilha perdida (20ª ed. 1984) de Maria José Dupré, O escaravelho do diabo (3ª ed. 1975) e Xisto no espaço (19ª ed. 1982) de Lúcia Machado de Almeida e Cem noites tapuias (9ª ed. 1984) de Ofélia e Narbal Fontes verificaremos que as ilustrações representando a descrição fiel dos episódios da narrativa e a clareza de informações reforçada pelas legendas era prática comum. No entanto, o excesso de transparência e clareza, tanto no texto quanto nas ilustrações, recorrentes nas obras dessa época, pode ser analisado hoje, à luz das considerações de Adorno (1990), como uma das principais características da cultura de massa que “consiste em se dirigir às pessoas fingindo trata-las como sujeitos pensantes, quando seu fito, na verdade, é o de desabitua-los ao contato com a subjetividade”. (ADORNO, 1990, p. 42) Também Eco (1979) se posiciona a esse respeito ao afirmar que os produtos da indústria cultural apresentam-se sintetizados em fórmulas facilmente decifráveis evitando qualquer esforço por parte de leitor/espectador nivelando-o ao nível do entretenimento. O projeto gráfico editorial em Ciumento de carteirinha (2006) diferencia-se inicialmente pela capa, cujo fundo branco dá ideia de leveza e retrata o tema principal da obra: as brigas entre os dois jovens, deixando entrever, pela expressão facial do rapaz a associação com o título da obra, ser ele a vítima dos ciúmes. Diferentemente de em Cabra das Rocas (1980) em que o nome do autor aparece em letras bem menores antes do título, o nome de Moacyr Scliar (que também carrega o nome da coleção) ocupa um espaço de, aproximadamente, um terço da capa, sendo esse, um recurso da indústria cultural para a valorização do seu produto, uma vez que o nome do autor, já consagrado escritor para adultos, serve como propaganda para a aquisição do livro. O nome da ilustradora, Maria Eugênia, aparece em destaque na contracapa da obra. Quanto à presença das ilustrações, em Ciumento de carteirinha (2006), observamos trinta e duas imagens divididas nos quinze capítulos da obra, um número significativamente maior do que em Cabra das Rocas (1980). Algumas ilustrações ocupam a página toda e outras, menores, aparecem ao final ou no início do capítulo. As imagens são coloridas e também representativas do desenrolar da narrativa, enfatizam, e até mesmo exageram, as expressões das personagens. O livro apresenta-se em formato pequeno, com letras espaçadas, capítulos curtos e páginas com fundo em cores suaves quebrando a monotonia do preto e branco tradicionais. Enfim, o projeto gráfico-editorial apresenta recursos imagéticos que, embora sutis, despertam a atenção do leitor, especialmente do jovem, acostumado ao bombardeio diário de imagens e cores presentes na cultura contemporânea. Sabemos que o livro, com bem cultural que representa, depende de mecanismos que regem sua produção e divulgação. A esse respeito Bourdieu (1982) salienta que a indústria cultural submete-se àqueles que detêm esses mesmos instrumentos de produção e de difusão, fatores externos à criação artística, mas que entram na concorrência pelo mercado de forma que a própria estrutura de seu bem cultural decorre das condições econômicas e sociais de sua produção. O livro, um bem simbólico, portanto, busca, além da rentabilidade dos investimentos, o alcance a um público cada vez maior. Nessa perspectiva, um eficiente recurso do mercado editorial, e consequentemente da indústria cultural, são os paratextos, pois, assim como as propagandas televisivas, possuem o objetivo de divulgar a obra oferecendo pequenas dicas ou chamadas que possam despertar a atenção do leitor para a leitura da obra completa. Como destaca Eco (1979), não podemos nos esquecer do caráter comerciável dos produtos sujeitos às leis do mercado em que o livro encontra-se inserido. Em Cabra das Rocas (1980) o paratexto no interior da capa, conduzindo o direcionamento da indústria cultural, apresenta um breve resumo da obra enfatizando aspectos do interesse juvenil: “O que ele apronta pra vencer uma parada séria não está escrito, ou melhor, está escrito aqui no livro. [...] Suas brigas, sua transa no circo, seus amigos e vai por aí afora. É só virar as páginas e começar a leitura”. Como podemos observar a linguagem utilizada para chamar a atenção do leitor é bem mais atual e diferenciada do que a linguagem usada na narrativa, demonstrando claramente a distância temporal entre a época de criação da obra (1966) e de sua divulgação (1980). Ao final da obra, o segundo paratexto apresenta as demais obras da Coleção no intuito de despertar o interesse do leitor para a leitura e aquisição das mesmas. Como Cabra das Rocas (1980) pertence a uma coleção específica, a Série Vaga-lume, os editores criaram a figura de um mascote (um vaga-lume simbolizando aquele que traz a luz) para fazer “propagandas” em todas as obras, um mascote bem simpático: “Oi turma! Desta vez estou aqui pra apresentar um grande amigo: o cabra das rocas, seu nome verdadeiro é João. Joãozinho tem onze anos e é dos nossos”. Como se pode observar, o discurso do mascote conduz o leitor a acreditar ser semelhante à personagem Joãozinho, criando imediatamente uma certa empatia entre ambos. Em Ciumento de carteirinha (2006) observamos que o paratexto enfatiza a questão dos ciúmes e a intriga armada pelo adolescente utilizando termos do jargão policial como “incriminar” e “forjar prova falsa” numa visível tentativa de remeter o leitor ao gênero policial, tão apreciado pelos jovens. O apelo da indústria cultural também se faz presente pelo uso do imperativo: “Acompanhe de perto as peripécias desse „advogado‟ de pavio curto e grande coração”. Ao final da narrativa há um pequeno paratexto intitulado “bastidores da criação” em que Scliar conta como surgiu a ideia de escrever o livro e quais os resultados ele esperava alcançar por meio da obra. Observamos então que, nas duas obras, os paratextos se constituem em um importante atrativo de venda utilizado pela indústria cultural e buscando a conquista de um público cada vez maior. A esse respeito Bourdieu (1982) argumenta que o desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos está intimamente relacionado aos diferentes tipos de públicos a que os mesmos se destinam, são bens valorizados como mercadoria e agregam ao seu caráter cultural de obra de arte o caráter mercantil: “constitui-se o produto de um sistema de produção dominado pela procura de rentabilidade”. (BOURDIEU, 1982, p. 137) Em relação ao projeto gráfico-editorial das duas obras verificamos que em Cabra das Rocas (1980) não existe uma preocupação muito acentuada em relação à arte gráfica. Já em Ciumento de carteirinha (2006) a arte literária apropria-se da arte gráfica contribuindo para o aumento da qualidade da obra. Ao efetuarmos tal comparação não podemos deixar de observar, porém, o avanço da tecnologia e a presença constante dos novos projetos de designers renomados na literatura para crianças e jovens nos vinte e seis anos que separam a edição das duas obras apresentadas. Considerações Após essa breve análise, verificamos que as duas obras Cabra das Rocas (1980) e Ciumento de carteirinha (2006) apresentam, respectivamente, diferenças marcantes em relação aos seguintes aspectos: despertar do amor carnal x conflito emocional, linguagem como separação x linguagem como elemento de identificação, família extremamente pobre x família abastada, sociedade discriminadora x sociedade democrática, arte gráfica singela x projeto editorial elaborado. O ponto de convergência entre as duas obras se manifesta na preocupação do mercado editorial em investir em paratextos interessantes, visando atrair a atenção do leitor juvenil para a leitura e aquisição das obras. A delimitação do conflito em Cabra das Rocas (1980), a superação da falta de conhecimento de João para adentrar ao universo letrado, apresenta-se diluída na narrativa e entremeada por diversos acontecimentos. Não existe uma exploração mais aprofundada dos pensamentos e sentimentos do protagonista recurso que, se bem elaborado, poderia propiciar maior interação entre o leitor juvenil e a obra em questão. Se pensarmos no crescimento psicológico do jovem protagonista de Ciumento de carteirinha (2006) podemos observar a administração e a resolução do conflito interno da personagem: superar seu ciúmes exagerado. Nesse aspecto encontramos características do romance de formação na narrativa em questão. De acordo com Maas (2000, p. 19) esse tipo de narrativa promove a formação do leitor de forma mais abrangente uma vez que oferece ao jovem possíveis soluções para a resolução de seus conflitos internos. Nessa medida a obra contribui para a formação do caráter juvenil e para a constituição de relações mais justas e mais humanas. Referências ADORNO, Theodor W. HORKHEIMER, Max. “O iluminismo como mistificação das massas”. In: COSTA LIMA, L. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982. CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. Belo Horizonte: Autêntica-Editora, 2009. (Série Conversas com o professor: 1) ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1979. GROPPO, L. A. Juventude: ensaios sobre sociologia e história das juventudes modernas. Rio de Janeiro: Difel, 2000. HOMEM, Homero Siqueira Cavalcanti. Cabra das Rocas sete ed. São Paulo: Ática, 1980. Ilustrações de Edmundo Rodrigues. Coleção Vaga-lume. ISER, W. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução: Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1999, v. 2. MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo. O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora Unesp, 2000. OBIOLS, Silvia De S. Adultos em crisis. Jóvenes a La deriva. Buenos Aires: NOVEDUC, 2006. SCLIAR, Moacyr. Ciumento de carteirinha: uma aventura em torno de Dom Casmurrro, de Machado de Assis. São Paulo: Ática, 2006.