Os Curiosos - WordPress.com

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Os Curiosos
Os Curiosos
Victor Alfons
Contos
Curitiba
2013
1
Os Curiosos
Declaração
Eu, Victor Alfons, estou disponibilizando este documento online para
quem quiser baixá-lo e lê-lo. Todos os textos aqui contidos, com exceção
das citações no início de alguns textos, são de autoria de Victor Alfons, e
todo conteúdo intelectual dos textos à ele pertencem. A reprodução dos
textos aqui contidos estão autorizadas pelo autor, contanto que o nome
dele e o site http://vicoralfons.wordpress.com sejam citados nos meios
veiculados.
Tendo todos esses itens sido esclarecidos, desejo à todos, uma boa leitura.
e-mail para contato:
[email protected]
2
Os Curiosos
Ensaio sobre a promessa..........................................................................04
A Fuga......................................................................................................11
O Voo das Andorinhas.............................................................................16
Euzinha.....................................................................................................36
Digressismo..............................................................................................44
profunda é minha cova.............................................................................52
Maria.........................................................................................................57
“Ó”............................................................................................................59
A História que ouvimos d’Ela..................................................................61
Conte-me mais sobre Aroldo José............................................................64
Memórias de um acordeão Aposentado...................................................67
Aos Olhos de Clara...................................................................................73
Almofadinhas...........................................................................................81
O Feitiço de Anna.....................................................................................94
Terra Vermelha.......................................................................................123
Os Curiosos............................................................................................128
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Os Curiosos
Ensaio sobre a Promessa
“A belief in hell and the knowledge that every ambition is
doomed to frustration at the hands of a skeleton have never
prevented the majority of human beings from behaving as
though death were no more than an unfounded rumour, and
survival a thing beyond the bounds of possibility.”
(Aldous Huxley – Themes and Variatons)
O chão era cerâmica. Argila cozida à altas temperaturas e depois banhada em silicone.
Telhas do tipo romano, compondo um telhado que se banha com os fortes raios de sol,
esquentando cada vez mais. Somente algumas células daquele composto cerâmico
tinham o calor aplacado pela sombra. Entretanto, ao contrário que se pode inferir, não
eram as sombras de alguma palmeira que recaíam sobre o telhado, mas a sombra de
dois seres vivos que, mesmo tendo os joelhos constantemente queimados pelo calor
absorvido pela cerâmica vermelha, insistiam, por alguma razão, em ficar de quatro
sobre as telhas. A sombra das barrigas dos companheiros aplacava o sol, embora vez
ou outra um dos dois se mexesse de desconforto. Eram os dois, um Amaro e outro
Dovalin. O um era negrinho, magro de fazer doer os olhos de tia. Vestia um calção
curto, uma camiseta apertada e havaiana no pé. Havia também, recentemente
descolorido os cabelos encaracolados, e posto nos dentes tortos, depois de muita
conversa entre o pai e o dentista, um aparelho. Dos dois era o mais curioso. O outro,
Dovale, apesar de mais gordinho, não saía do padrão de uma criança da sua idade. A
camiseta com faixas horizontais em vermelho e branco, um calção azul e um par de
chinelas muito parecido com o do companheiro, exceto pelo fato de ser alguns
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Os Curiosos
números maior. Ele estava ali somente por causa do amigo. Tinha em sua alma a
perfeita certeza de que algo não daria muito certo nessa empreitada. Os olhos
preocupados olhavam de um lado para o outro: a qualquer momento alguém poderia
os pegar no flagra. Olhando de longe, dir-se-iam irmãos. Olhando de perto, muito
embora somente amigos fossem, dir-se-ia o mesmo: uma amizade conturbada,
composta por longas risadas e companhias, e brigas e discussões homéricas:
verdadeiros irmãos.
Era aquele momento do tempo em que não é dia nem é noite. A lua já vai se
escondendo, mas o sol ainda não faz questão de dar as caras. Um dia frio, muito,
muito frio. Quem quer que saísse às ruas sem casaco e calça longa, sem cachecol,
provavelmente retornaria para casa com um resfriado; povo de cidade tropical não é
acostumado com essas friagens. Um dia daqueles de fazer inveja aos moradores que
nunca viram neve, que torcem pra que aconteça, contrariando o ardor das pernas; dia
de brincar de trenzinho, de criança fingir ser fumante com o palito do pirulito, de
lagartear nos alguns raios de sol que batem no muro da casa do Seu Adamastor; dia de
voltar pra casa cedo, de usar o ar condicionado do carro pra desembaçar o para-brisa,
de não lavar o cabelo, de secar a roupa atrás da geladeira. Mas como poderia esse
momento ser tudo isso se nem dia ainda era? Pois que era um momento, oras, que
previa na temperatura uma profecia concreta
sobre as características das horas
futuras. E lá longe, depois de seguir algumas vielas, entrar aqui e ali, subir algumas
escadas, dar meia volta, passar pelo terreno da Dona Marly abaixando a cabeça para
não derrubar nada do varal, tomando cuidado para não atiçar o pincher maldito e seu
latido ardido, e manter os olhos no chão, em sinal de respeito, enquanto faz sua
caminhada por alguns garotos com seus rifles em mãos, ficava a cozinha da família
Silva de Oliveira. A entrada da casa era do lado direito na rua. Subindo alguns
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Os Curiosos
degraus, dava-se de cara com a cozinha. Do lado de fora, a casa nem reboco tinha, e
assim como a maioria das outras casas, por dentro, seus moradores faziam de tudo
para tornar o lugar o mais aconchegante possível. A tinta da parede era branca, o
azulejo do chão e do banheiro, dos mais baratos, o assento da privada era de um
plástico amarelado e o chuveiro elétrico não funcionava em dias muito frios como
aquele, mas de qualquer maneira, as paredes ainda estampavam com orgulho as fotos
de família, os eletrodomésticos de linha branca, apesar de antiquados e usados, eram
limpos todos os dias, e na porta de entrada, um tapete dava a instrução: tire os sapatos
antes de entrar. Era de se esperar que o fizessem mesmo! Afinal, o chão não foi limpo
à toa, e com toda a poeira vinda do lado de fora, se cada pessoa que passasse pela casa
– o que não representava uma quantidade pequena – o fizesse com os sapatos, todos
os gastos em material de limpeza – algo que pesava no orçamento – teriam sido à toa.
E do alto daquele telhado, os dois irmãos de convivência tentavam não fazer barulho
para não atrair atenção alguma. Bastava que fossem um pouco descuidados, que
levantassem um pouco mais a cabeça ou o tom de voz para serem avistados por algum
morador preocupado ou desocupado andando pelas ruas de concreto. Portanto,
descrição e furtividade eram as características mais necessárias. Por baixo dos cabelos
loiros, o negrinho Amaro se sentia um verdadeiro ninja. Pensou em tirar a própria
camisa e amarra-la em torno ao rosto, de forma a deixar somente os olhos de fora, só
por firula mesmo, por molecagem, mas tal ideia foi deixada de lado depois de ouvir as
palavras sensatas do amigo: talvez os dois acabassem sendo confundidos com os
outros garotos falcões. Dovalin mantinha-se em silêncio, tenso com toda a situação.
Ao mesmo tempo que queria avançar, queria voltar para casa e sair de toda essa
potencial confusão. Como as forças das duas vontades eram exatamente iguais em
módulo e direção, mas opostas em sentido, se anulavam, entretanto, o avanço era
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Os Curiosos
proposto pela tração fornecida pela curiosidade do comparsa. O crime logo mais iria
acontecer.
As paredes, os vidros da janela da cozinha, a porcelana das xícaras, tudo parecia suar.
Isso é algo normal em dias de frio, e Mathias Rogério Silva de Oliveira Terceiro, no
alge de seus quatorze anos de idade, de forma incrivelmente poética, pensava que a
condensação da água em concentração excessiva na atmosfera da favela, nada mais
era do que lágrimas que as paredes choravam depois de receber algumas balas de
fuzil. Seu pai, Mathias Rogério Silva de Oliveira Jr, já era mais pé no chão. Apoiado
naquelas solas grandes que calçavam quarenta e seis, o homem que já carregava
cabelos brancos aqui e ali e, surpreendentemente, já apresentava algumas rugas no
rosto com somente trinta e três anos. A tez negra e os olhos afundados davam um tom
de cansaço, e as sobrancelhas que, depois de tanto tempo arqueadas, assim
permaneceram para sempre, faziam com que à todos parecesse uma pessoa
emburrada. Coisa que, de fato, era. Um homem de poucas palavras, pois não sabia
como falar direito. A fala apressada e quase ininteligível, fariam que um migrante, ao
ouvir qualquer discurso saindo da boca do homem, pensar se tratar de uma pessoa
falando espanhol, ou então qualquer língua que não a portuguesa. Ao mesmo tempo
que era um homem querido dentro de casa, era um homem temido. O alfa, o líder, a
última palavra. Não gostava de ser incomodado, principalmente enquanto fazia a
leitura do jornal do dia, hábito que adquiriu enquanto passou um ano estudando para
conseguir uma vaga na faculdade de engenharia elétrica, sem sucesso. Hábito que,
apesar de tê-lo conduzido ao fracasso, se fazia presente em todos os dias de sua vida,
não só por manter a casa informada, mas porque jornal é um ótimo acendedor de fogo
em churrascos de laje.
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Os Curiosos
Devagar, os dois vão caminhando com os joelhos e com as mãos, tomando todo o
cuidado para não fazer barulho: o barulho da televisão vindo por baixo os faziam crer
que com toda certeza havia alguém sob o telhado. Os joelhos levantavam devagar e
sentiam o ardor cada vez que tinham de pôs os pés sobre as telhas quentes. Mas tudo
isso valeria a pena no fim das contas. Segurando-se para não rir, para não gritar a
vitória antes da hora, os dois finalmente chegaram a abertura do telhado: agora
poderiam espiar com facilidade e amplitude de visão tudo o que acontecia no quarto
de Maria da Glória, dezesseis anos, estudante do oitavo ano do ginásio da Estadual
Pinheiro Machado. Era cobiçada por todos por causa do que guardava dentro do sutiã,
feito que nenhuma outra menina do oitavo ano havia conseguido alcançar.
Os dois homens da casa se sentavam nas cadeiras da cozinha, a espera do café da
manhã. A mãe, Joana, se posicionava na boca do fogão à espera da água ferver. No
mais íntimo, ela gostaria que aquele momento durasse para sempre, que a água nunca
esquentasse por completo, que o café não coasse, que seu marido e seu filho não
comessem e não fossem dali para outro lugar. A decisão que tomaram era triste, mas
necessária. Mesmo assim, sentia no peito e nos olhos o peso dela. Tenho de tomar
cuidado para não salgar essa água, pensou rindo da própria tragédia, enquanto
enxugava lágrimas. Foi uma decisão difícil. Mas a água ferveu, o tempo passou, a
ofegante respiração de sua boca fez com que saísse fumaça e ela teve uma vontade
gigantesca de voltar a fumar, mesmo sabendo todo o trabalho que teve para largar o
vício. Mas não o faria, principalmente porque Mathias fora quem a convencera de
parar, e, para ele, já bastava o destino que o esperava. Foi uma decisão difícil.
Para a grande decepção dos garotos, Maria da Glória não estava lá. De cima, os dois
podiam ver o quarto vazio. Na parede, ao lado da porta, um guarda-roupas barato, de
madeira em compensado. Já não tinha uma das portas, que, no momento, se
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Os Curiosos
encontrava escondida atrás da porta, que, por sua vez, abrigava uma infinidade de
casacos e roupas penduradas, como se fosse um guarda-roupas. Quanta ousadia!,
pensava o guarda-roupas. As paredes eram pintadas de verde escuro, e eram
escondidas atrás e cartazes de times de futebol e pôsteres de cantores famosos. A
cama de solteira, bem no meio do quarto, era coberta por um edredom envelhecido, de
tanto ser lavado, da Minnie, em tons azuis. Sobre ela, alguns cadernos e a mochila da
escola. Era fato que Maria da Glória não estava no quarto, mas que estava em casa,
estava. Da abertura, os dois esperavam.
Por mais que a vontade fosse oposta, o tempo passava, o relógio girava junto com a
mente de todos ali presentes. O que seria da vida de Mathias Terceiro agora? Não iria
mais para escola? Um garoto de quatorze anos precisa ir pra escola, para se formar,
para ter um futuro! Que futuro tem alguém que começa a trabalhar com quatorze
anos, meu Deus! Por Cristo, a vida é tão passageira, passa num piscar de olhos tão
rápido e nós estamos jogando a vida desse garoto pelo ralo?! Pra descer rápido desse
jeito?!, os olhos de Joana diziam para seu marido. Mas é preciso, mulher. Temos
contas pra pagar. O banco não se importa se o Terceiro é de maior ou de menor. Só se
importa com os dígitos que estamos devendo. Ou você quer ficar sem luz? Sem água?
Sem comida?!, respondia com os olhos Mathias. E enquanto essa briga de olhares se
dava, o outro Mathias, o mais novo, esperava insistentemente o café sair. As
circunstâncias fizeram com que tivesse de largar a escola. Não havia nada que
nenhum deles pudesse fazer. Por mais demorado que fosse, aquele leite iria ferver, e
ele e o pai teriam de sair para trabalhar.
Foi uma decisão difícil. Principalmente para Dovale que, embora gostasse muito da
companhia do amigo, sentia-se reprimido sempre que era forçado a se unir à uma das
aventuras incertas. O sol escaldante já torrava a sua pele. O calor do verão dói depois
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Os Curiosos
de um tempo. Mas era só uma questão de tempo, pois logo Maria da Glória haveria de
sair do banho e iria até o quarto para que pudesse se vestir e então, finalmente, os dois
veriam o que tanto queriam. O som do chuveiro e do canto feminino podia ser ouvido
de longe, assim que a televisão foi desligada. Era algo bom, pois os dois agora
saberiam quando a hora estivesse próxima, entretanto, a televisão foi desligada! Isso
significava que o silêncio absoluto era mais do que necessário, deveria se aderir de
forma orgânica ao momento, por mais excitante que as coisas se tornassem. Longe, a
água caía e escorria o corpo de Maria da Glória. O negrinho Amaro daria tudo que
tinha, embora não tivesse muito, para poder observar essa cena. Dovale, nervoso,
ponderava mentalmente se os dois tomaram a decisão correta. E se ela os visse? E se
alguém aparecesse? Como iriam explicar isso em casa? Tudo que parecia ocorrer
devagar. A luz do sol caía lentamente, e lentamente a garota terminava o banho e
desligava o chuveiro. A hora estava chegando. Logo mais ela entraria no quarto e
tiraria a roupa e os dois poderiam ver finalmente como ela por baixo do uniforme.
Cada instante parecia uma hora. E como as horas custavam a passar…
Não há arma ou defesa que se use contra o transcorrer do tempo e suas promessas
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Os Curiosos
A Fuga
“A maior parte da vida é tão tediosa que nem sequer vale a
pena falar nela, e é tediosa em todas as idades. Quando
trocamos nossa marca de cigarro, quando nos mudamos para
um bairro novo, quando assinamos um novo jornal, quando nos
apaixonamos e nos desapaixonamos, estamos protestamos de
maneiras que são ao mesmo tempo frívolas e profundas contra
o tédio indissolúvel da vida cotidiana.”
Capote, Truman(Travessia de verão, página 115)
Ponto de ônibus. O céu do centro da cidade está sem nuvens, um jarro de antisséptico
bucal acima de todos, e o meio dia passara ha poucos minutos, então o sol a pino
massacra quem não tem uma sombra ou protetor solar. Deus que
proteja os
carrinheiros! A fila é gigantesca e, como diz a regra, tende a aumentar a cada instante.
Senhoras barrigudas que decidiram usar o transporte público se amontoam entre
alunos matando aula e desempregados voltando para casa depois de uma procura
infrutífera. Elas carregam consigo sombrinhas e, pelo menos nesse momento, as
utilizam da maneira que o nome sugere. Um homem tosse uma tosse seca, porém
carregada, parece que estar querendo expelir os próprios pulmões. Um viciado em
crack para a fila para pedir dinheiro, sem sucesso. Seu corpo esquelético e
desapontado com a frustração segue caminho, lento como o vício, compulsório como
a pedra. No que esse menino de cabelos loiros, com a face branca corada pelo calor,
se pendurando na barra de metal roliça pergunta:
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Os Curiosos
-
Mãe, por que aquele homem era tão magro?
-
Não sei, Marcel.
-
Mas, por que ele é tão magro?
-
Já disse que não sei Marcel!
-
… – O garoto se balança ainda mais. Segura a barra de ferro de forma que todo o
peso de seu corpo está suspenso pelos dois braços amplamente esticados. No
momento ele apresenta um terço da altura que deveria apresentar se estivesse se
postando normalmente. – Posso ter meu chapéu agora?
-
Não.
-
Mas por quê?! – o tom de sua voz é manhoso.
-
Eu já te disse porquê! – Ela olha para os lados enquanto sua voz severa soa
quase como um sussurro – Hoje não é sexta feira.
-
Mas eu quero mostrar para os meus amigos, mãe!
-
Quando for sexta feira você pode mostrar.
-
Mas isso é só daqui um tempão! Ainda é segunda, mãe!
-
Você nem vai notar o tempo passar, Marcel…
-
…
No fundo, no fundo, Marcel sabia que o tempo iria demorar a passar. Ele sabia que
aguentar uma semana inteira de aulas sem o chapéu para brincar, para travestir-se e
transformar aquele mundo trágico da educação em um bom faroeste, era uma tarefa
difícil demais para cumprir. Muito mais difícil do que a multiplicação, muito mais
desafiadora que a divisão, era um castigo. Entretanto, ele se limitou ao silêncio, pois
já ouvira afirmação semelhante da mãe. Deus, como ela estava errada! O tempo não
passa tão depressa. Uma semana leva décadas. Um ano, uma vida inteira. De fato, ele
não sabia se aguentaria passar o dia sem o chapéu. Foi quando caiu sua ficha: a mãe
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Os Curiosos
não voltaria antes das nove da noite, e ele estaria em casa desde as seis da tarde.
Procurando reverter esse quadro, deixando a posição anterior para uma mais séria e
imponente, indaga:
-
Você vai deixar o chapéu lá em casa, né mãe?
-
Não. Eu vou levar o chapéu comigo pro trabalho.
-
Mas você volta muito tarde!
-
Eu sei, mas eu não vou poder voltar pra casa.
-
Mas por quê?! – o garoto interroga.
-
Porque eu tenho que trabalhar Marcel! Se eu não trabalhar como é que eu vou
poder comprar chapéus e as coisas que você quer?!
-
Não sei… – Ele não desiste – Então por que você não deixa comigo? Deixa eu
levar pra escola, eu prometo que não vou usar lá.
-
Porque não é dia de levar brinquedo pra escola.
-
Mas isso não é um brinquedo. É uma vestimenta.
Todos ao redor riem com o jeito da criança. A mãe cora e, não sabendo como se
portar, ri também enquanto olha para os lados. Depois, retoma o tom severo e
sentencia:
-
Não vai levar o chapéu com você pra escola, Marcel, e ponto final!
Marcel se mantém em silêncio. Sente que cruzou uma espécie de limite, embora não
saiba com clareza qual seja esse limite.
-
Posso usar ele por agora pelo menos?
Mais uma vez, todos os seres humanos que esperam no ponto de ônibus riem da
atitude da criança. Ela fica sem entender, e a mãe fica embaraçada.
-
Não.
-
Mas por quê?!?!?!
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Os Curiosos
-
Porque eu estou dizendo. Eu sou sua mãe e eu mando em você.
Todos continuam a esperar esse ônibus que não chega. Ele todo amarelo e, ao que
parece, decidiu imitar quem também fica dessa cor por doença pegada no pé, e se
demorar em um estado letárgico, como se estivesse prestes a morrer.
E como estava calor! As pessoas pareciam implorar por alguma brisa, bem como
fazem os drogados do centro.
Um outro amarelão para ao lado, o Abranches.
-
Não podemos pegar o Abranches, mãe?
-
Não.
-
Mas ele passa lá na frente da escola.
-
É, mas não passa na frente do meu trabalho.
-
… – Ele está fatigado. Quer chegar logo no colégio, para que esse dia acabe logo
e para que logo chegue as nove horas e que ele possa brincar da maneira que
imaginou que brincaria quando viu esse chapéu na vitrine. – Mas se a gente pegar o
Abranches a gente chega mais cedo!
-
Você chega mais cedo! – Respondeu, apontando o dedo e sorrindo ironicamente
– Eu vou ter que ficar esperando naquele terminal um tempão! Sozinha. Melhor a
gente esperar o Tamandaré.
-
E quanto tempo vai demorar pra chegar o Tamandaré?
-
Eu não sei, Marcel! Não sou vidente.
-
Ah, mãe! Vamos no Abranches! Ele é mais rápido. – implorava, como se a
velocidade do ônibus interferisse na velocidade que o tempo passava. Será que ele
estava certo? Pois há quem diga que sim.
-
Olha, se você quer ir no Abranches, vá no Abranches.
-
Me dá o dinheiro.
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Os Curiosos
A mãe abre a bolsa e tira o dinheiro para uma passagem. Marcel quer que ela se
apresse, está tão nervoso com a fila de pessoas entrando no Abranches diminuindo
que balançava as pernas como quem quer ir ao banheiro. A mãe finalmente tira os
trocados da bolsa e os entrega na mão do garoto. Quando ele vai começar a correria,
ela o desafia:
-
Você sabe aonde descer?
Marcel não sabia aonde descer. Hesitou. Ficou parado por alguns instantes, encarando
o chão como se ali houvesse o mapa das paradas. A dúvida em seu rosto era clara.
Enquanto isso, a mãe se postava vencedora, de braços cruzados com um sorriso
escondido no rosto.
Marcel faz que sim com a cabeça.
-
Tem certeza?
-
Uhum.
A mãe tem um olhar preocupado no rosto, mas não pode perder essa.
-
Vai lá então.
O garoto começa a correr em direção à fila do Abranches. Entra nela, é o seu último.
As pessoas vão entrando, como bois. Ele, com um sorriso no rosto, observa a mãe,
distante. Está cada vez mais próximo de iniciar uma viagem por conta própria,
entretanto, ao ver-se frente a frente com os degraus do outro amarelão, se vê incapaz
de continuar. Dar aquele passo era como fugir de casa.
-
Não vai subir? – Indaga o motorista.
Marcel pede desculpas e, cabisbaixo, volta para perto da mãe. A devolve o dinheiro
que não utilizava e, encostado junto à ela, mantém-se em silêncio até o ônibus chegar.
É possível ver, nos olhos da mãe, ao mesmo tempo pena, e ao mesmo tempo
reconforto. Seu filho ainda era uma criança.
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Os Curiosos
O Voo das Andorinhas
Era como se de repente todos simplesmente soubessem: o fim se daria em poucas
horas. Que fim exatamente? O fim, simplesmente. O fim de tudo e de todos, de tudo
que já existe ou existiu. E nenhuma singela palavra precisou ser dita nos jornais,
nenhuma especulação sequer precisou ser feita em lugar algum, profecia alguma foi
balbuciada, previsão alguma foi feita, dado científico algum foi coletado; todos no
planeta inteiro simplesmente sabiam. Sabiam, como dois e dois são quatro.
Gosto de comparar o ocorrido – e também as pessoas com que tive o prazer de
conviver durante esses longos e exaustivos cinquenta e dois anos – com a migração
dos pássaros para o sul durante o inverno, com as andorinhas.
Elas, veja bem, não têm ideia, do que exatamente é o inverno, como ele ocorre, quais
são suas causas científicas. Falta a elas, de forma tão exuberante, a propensão física
para inferir a inclinação do eixo terrestre, o periélio, o afélio, solstício e equinócio.
Não passa pelo cérebro pouco desenvolvido dessas criaturas tão vagas e instintivas as
dimensões da complexidade do funcionamento do universo. É algo simplesmente
instintivo. Ao chegar determinada época do ano, elas simplesmente sentem algo, um
ímpeto incomum, tão vago quanto um homem ao escolher a cor da cueca que vestirá,
quanto a vontade de ir ao banheiro. Elas abandonam seus ninhos, hidratam o corpo,
alisam as penas, abrem suas asas e num comportamento que, à elas, é totalmente
inexplicável e partem em um voo incrivelmente organizado. Cada uma tem no próprio
inconsciente – pois que penso que a consciência não seja algo exclusivo dos seres
humanos – um único objetivo: um lugar mais quente. E foi exatamente isso que
aconteceu com todas as pessoas da terra. Com um única e frustrante diferença: o tal
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Os Curiosos
“lugar mais quente”. Alguns podem até brincar dizendo que Mercúrio e Vênus estão
logo ali, mas os que o fazem são bem resolvidos o suficiente para encontrar motivo
para risos em algo tão triste quanto perceber que o labirinto infinito que tentamos
incessantemente desvendar não frui de saída alguma, quiçá algum dia fruiu.
Toda saída era mentirosa.
As janelas da edificação em que assisto, num dos últimos andares, estão todas
voltadas para uma esplendorosa panorâmica da cidade. Sempre me causou muito
estimo o ato de sentar na sacada com um bom livro aberto em cima do par cruzado de
pernas, meu bom e velho caderno de anotações, uma tinteiro, meu reconfortante maço
de cigarros e uma garrafa cheia de uísque doze anos na mesinha ao lado e contemplar,
nas pausas reflexivas sobre as mais abrangentes teorias literárias, sobre a admiração, a
contemplação plena e inquietantemente impotente de Dostoievski sobre os
sentimentos, enquanto giro levemente o pescoço com um olhar desguarnecido e
admirado com a escolha sutil de palavras de Nabokov e sua anormal afeição por uma
tal de Dolores, enquanto passo as mãos nas mechas brancas de cabelo e viro de novo
as páginas do grande dicionário tentando entender mais uma vez, com muito esforço,
as brigas políticas e versos milimetricamente planejados da Ilíada, o nascer e o por do
sol por entre os altíssimos concretos, espelhos gigantescos de uma cidade cinza, que
pareciam ser todos os dias refletidos diretamente até meus olhos cansados e
castanhos, como um quadro. O mais triste e melancólico que já vi, devo admitir.
Eis que me percebo em uma situação tanto quanto inusitada. O apartamento em que
vivo – palavras que devem aqui serem interpretadas da mais ampla forma possível- é
dono de uma planta invejável: quatro quartos, dois banheiros, uma cozinha e uma sala
de estar; custou-me muito, devo admitir, mesmo não sendo fruto de minha labuta; e
17
Os Curiosos
por apresentar tais características e ter como inquilino – pasmem! – um intelectual só,
era de se esperar que certos cômodos permanecessem por toda a sua existência vazios.
Dos quatro aposentos que detinha, só um deles era utilizado para o sono, efetivamente
– um dos mais livres de tranqueiras, devo admitir -, o outro assentava minha vasta
coleção de livros, filmes e música e, apesar disso tudo, já fui chamado de filisteu por
uma de minhas antigas namoradas. O outro era aonde eu iria ler, assistir e ouvir, tais
coleções, um cômodo, obviamente tecnológico e aclimatado(luzes e tecidos), e um
outro quarto completamente hiato, as paredes lívidas, tão lúridas quanto o humor de
bom senso, cândida e nívea. Mandei que removessem os rodapés da parede, e que
pintalgassem o piso da mesma alva cor. Ficou um infinito branco com exceção, é
claro, do gigantesco janelão que cobria quase todos os cômodos do apartamento.
Nunca usei tal aposento, mas o assim deixei, todo branco daquela maneira, penso que
para simbolizar algum tipo de vazio e, agora que ponho-me a pensar nele, é muito
provável que simbolize o tal do filho que nunca tive. Mas percebo que estou me
demorando em detalhes não tão minuciosos que até agora não vos contei da minha tal
situação inusitada. Pois bem.
Eis que me encontro inerte diante o arquivo de aço, verde e velho que tenho guardado
na bíblio-cinema-audio-teca, timorato e acabrunhado pelas convidativas e cheias
estantes um pouco aberto. Com meu natural canhestro e atarantado jeito de ser,
botando o quinto ou sexto cigarro do dia na boca, com o scotch subindo os nervos,
quando decido que ele deve ser aberto. Era como se minha mente simplesmente
houvesse optado por transformar a memória que até pouco se encontrava nela sobre a
natureza dos materiais que o imponente e pesado arquivo, que eu mesmo montara ao
longo da vida, acondicionava, naquele quarto branco e vazio logo ao lado. Com
demasiado desvelo, puxei a pesada primeira gaveta de ferro. Ela era mais extensa do
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Os Curiosos
que imaginava. Vou passando com dedos ágeis pasta à pasta, uma imensidão de
papéis, em suma maioria, contas e notificações antigas. Não faço ideia do porquê de
tê-las ali estocado, mas lembro-me de ter chegado a conclusão de que eu e meus pais
não somos tão diferentes assim. Ao deparar-me com uma infinidade de futilidade,
desiludido, decido fechar a gaveta, mas um antigo desenho em páginas amarelas
chama a atenção do meu olho esquerdo. Puxo-o para fora de sua designada pasta – a
única verde do grande maço, por sinal – e vejo no seu anêmico e gasto papel o
desenho de uma lebre branca, convidando-me a abrir os outros cacifos. “Maldito
sejas, Lewis Carroll!” penso. E em seguida, ponho-me a abrir a segunda das três
gavetas. Dentro da inusitada contenção encontram-se, amarelando com o passar dos
anos,
muitos e muitos papéis envelhecidos, alguns nem tanto, mas todos, sem
exceção alguma, contém ou um rascunho de texto que publiquei, ou algum poema
íntimo que nunca tive coragem de publicar. Um deles, por exemplo, dizia algo mais
ou menos assim:
Maldição!
cigarro na caixa, inteiriço
não sei aonde foi parar
o tal do cinzeiro.
Olho para o lado,
vejo meu pai na estante.
Me levanto,
o seguro em meus ternos braços
e acendo mais um.
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Os Curiosos
E na mesma hora a lembrança dele me vem a mente. Com o poema nas mãos,
levanto-me e olho na mesa da sala. Lá está a urna, agora guarda uma flor. Tenho a
lembrança, bem ofuscada pelo tempo, admito, do dia que fui buscá-la.
Chovia muito, na janela do carro que dirigia – na época que ainda dirigia, vejam só! –
as gostas d’agua caíam fazendo rios correntes nas janelas. Era como se chorassem no
meu lugar. Ao estacionar o carro na frente da velha casa que não via a mais de quinze
anos, não muito diferente de antes, fiquei parado dentro do carro. “Preciso
mesmo?!”eu perguntava pra mim mesmo. E esse mim mesmo somente balançava a
cabeça e dizia: “Quem mais vai o fazer?”. Ele estava certo.
Abri a porta do carro e foi instantâneo, me encharquei. Não entendo, e por isso
mesmo é que sou fascinado, a chuva forte e torrente. Entendo, porcamente, sim, seu
princípio, como se formam as nuvens, mas quando vejo a água caindo dos céus
incessantemente, é como se me esquecesse de todo o conhecimento sobre tal fato e
simplesmente a visse como uma adoração quase divina que nunca fora presente em
meu léxico de sentimentos. Eu virava um índio fascinado e, ao mesmo tempo, um
gaulês apavorado. Os passos pesados até a porta – não dormira muito bem, culpa de
uma rotina buliçosa – pela grande passarela de azulejo quebradiço, contornada por
duas fileiras de touças muito bem alinhas e recentemente aparadas para que não
tomassem o lugar da grama, fortemente lembrava-me da infância levemente
conturbada que vivi ali. Abri a grande porta de madeira negra que discrepava do
branco meio sujo de terra das paredes. A casa estava num silêncio. Enormes feixes de
luz entravam pela cortina aberta e iluminavam de forma direta – alguns podem até
dizer divina – a cadeira estofada de textura de flores de lis em verde e pastel . Logo
em cima dela, desfrutando das chorosas molas, estava meu pai em sua urna
ornamentada e reluzente. Nunca o vi tão afetuoso e carinhoso. Peguei o tenro em
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Os Curiosos
meus braços e o carreguei comigo por todo o percurso que fiz na casa. Saí de lá
carregando a urna de meu pai, alguns papéis enfiados numa pasta que também
encontrei por lá, uma foto de família(eu, meu pai, minha mãe, e Augusto, meu irmão)
que se encontrava torta na parede toda velha, e um guarda-chuvas que também
encontrei por ali. Pensei em ligar para Augusto, saber como estava em sua vida
sagrada, mas lembrei-me do porquê de ele não estar ali e deixei a ideia de lado.
Quando saí, a chuva estava ainda mais forte.
Tal lembrança causou-me certa ternura, um reflexo desleixado de uma saudade
inconsistente e, quem sabe?, até mesmo inconsciente.
Quando me percebi com um sorriso leve no rosto, tratei de me recompor e voltei para
frente do tal arquivo. Lá dentro encontrei um diário dá época em que, com clara
razão, causava-me muito estimulo pensar e refletir sobre a minha vida, ao invés de
personagens fantasiosas. Segurei-o em mãos e cheirei as páginas amareladas. Botei-o
debaixo do braço e fui sentar-me a varanda, aonde o uísque e um cinzeiro me
aguardavam. Bati o cigarro e abri a capa de couro sobre minhas pernas cruzadas.
“Àqueles que chamam-me de imaturo”, era o que dizia na primeira página, seguida
de um texto em que eu me defendia de forma bastante imbecilizada.
“Esta é uma resposta em texto àqueles que me chamam de imaturo. Em suma
maioria são mulheres inconfortáveis com as razões que dei para o término de nosso
relacionamento. Literalmente, vadias imaturas. É incrível como não conseguem
satisfazer-se com a simples e sincera resposta que normalmente dou: ‘Você já foi,
antes, interessante. Agora não é. Tem me entediado.’. E o mais interessante, ainda
por cima, é que essas são as mesmas que mais pedem por sinceridade em um
relacionamento…
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Os Curiosos
Agora àquela minoria que me chama de imaturo porque não aceito as tais ‘críticas
honestas’ à minha obra…
Schopenhauer uma vez escreveu:
‘A modéstia é a humildade de um hipócrita que pede perdão por seus méritos aos que
não têm nenhum.’
E ele está completamente certo, pois aqueles que me criticam seja pelo meu
comportamento ‘insolente’ ou ‘soberbo’, não fazem ideia do que falam e nunca
apresentam fundamento algum para sustentar suas críticas. Normalmente são todas
vagas e sem sentido. E se não concordam com os meus pensamentos e com os
pensamentos de um filósofo tão contundente quanto Arthur foi, tenho uma prova de
que sou mais maduro do que vocês, que insistem em me perseguir como se estivesse
pregando alguma coisa: Fui emancipado aos quinze anos. Isso mesmo! Aos quinze
anos convenci meu par de pais a me emanciparem para que pudesse ser, dali por
diante, responsável por meus atos. Tornei-me adulto antes de todos! Então não
venham me chamar de ‘imaturo’, pois já sou crescido desde muito antes de todos”.
Percebo agora que meus pais não me deram o nome de Pedro por acaso.
Havia, eu, encucado na cabeça que não bastava meramente crescer na minha hirsuta e
inteiriçada família, eu deveria sair de casa e começar a viver desajudo.
Sentei-me então, em uma tarde qualquer em que o sol alaranjava toda a cozinha,
pouco antes do jantar, enquanto meu irmão assistia com bastante aferro aos desenhos
na televisão da sala, eu de um lado, meu pai e minha mãe do outro. Com compostura
invejável, mas desleixa por ser performada por um desleixado tal qual eu sempre fui,
e firmando com afinco meu par de cotovelos na mesa envelhecida de madeira, fi-los a
proposta de que me emancipassem legalmente. Ao primeiro dizer, meio tímido,
confesso, os dois ficaram atônitos e até trocaram algumas gargalhas, e não os culpo
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Os Curiosos
por o terem feito, mas mesmo com tal afronta aos meus arbítrios, minha rigidez à
mesa fez com que os dois percebessem que falava com seriedade incontestável em
meu tom. Repeti uma outra vez, em boa e alta inflexão minha inusitada proposta e
minha mãe, com seus grandes olhos e cabelos longos, começou a balbuciar baboseiras
do tipo “você ainda é muito novo” ou “não tem ideia da crueldade que espera por
você lá fora”, como se nossa residência sempre fosse uma fortificação em que o
mundo não entrava. E como ela estava certa…
“Eu quero sair de casa, quero estudar alguma coisa que me interesse e não essa
porcaria que a escola tenta me enfiar goela abaixo. Vocês conseguem ver a coleção de
livros que tenho lá em meu quarto. Não são muitos, mas é porque fiz questão de jogar
fora ou passar pra frente os inúteis que a escola sugere. São ruins, pobres, coisa pra
incentivar meus colegas imbecis a lerem. Não preciso disso, já estou acima de tal
patamar. Quero sair de casa para estudar coisas que do meu agrado, talvez a literatura,
talvez qualquer outra coisa que me dê prazer. Já até arranjei um lugar para ficar.
Dormirei e viverei na loja de livros do Seu Eleanor, que, além de me abrigar, pagará
um semanal bom, mas somente o fará com a concessão de vocês.” Minha mãe
enumerou mais algumas bobagens sobre a minha falta de idade e de experiência,
coisas que me entraram por uma orelha e se escaparam dançando tango pela outra.
“Veja bem, seria, até mesmo, um privilégio para vocês. Teriam uma boca a menos
para alimentar, roupas a menos para comprar e uma responsabilidade a menos para
cumprir. Poderiam esquecer-se completamente de toda a labuta que é criar um filho.
Não que eu esteja ingrato por esses quinze anos, mas gostaria que vocês pensassem
seriamente sobre o assunto, tal qual eu fiz. Outro argumento favorável a minha
proposta, é o de que mesmo vocês não autorizando minha libertação, eu fugirei dessa
residência e viverei em algum lugar, provavelmente, muito mais longe daqui. Se
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Os Curiosos
autorizarem a emancipação, eu viverei com Seu Eleanor, que não só é pouco distante
daqui, então poderei vir visitá-los quando possível, como viverei uma vida pacata
focada no que me é gostoso, e não terei de sofrer muito. Então, o que acham de minha
proposta?” Minha mãe curvava-se na mesinha velha com as mãos sobre o rosto, aos
prantos, mas minha consciência parecia simplesmente haver se desligado. Ansiava
uma resposta. Eu queria ir embora dali o quanto antes. Havia até aprontado as malas.
Meu pai, então, depois de coçar os olhos, e passar algumas vezes a mão calejada no
denso bigode preto pegou o contrato de emancipação que eu havia posto em frente
deles e, com as mãos trêmulas e já cheias de arrependimento, assinou. Minha mãe,
tremendo em proporções muito maiores, o fez logo em seguida. Guardei o documento
em uma pasta, peguei minha mala, onde mantinha minha modesta biblioteca(a tenho
até hoje) e minhas roupas, e fui, muito menos saltitante do que antes imaginara, para a
latente loja do Seu Eleanor. À mais singela insinuação do sol na manhã seguinte, fiz
questão de acordá-lo e leva-lo comigo para autenticar e registrar tais documentos.
Daquela manhã ensolarada em seguinte, deixaria de ser garoto para me tornar adulto.
Hoje, como dois e dois são quatro, percebo que aos quinze anos, eu naturalmente
possuía a mentalidade de uma criança de quinze anos.
Mas digo novamente que me encontrei em uma situação inusitada, mesmo não a
fazendo parecer pelo meu método não tão prático de narrativa, pois o fato de pôr
aquele caderno amarelado entre as penas e lê-lo com tamanha minúcia quanto fiz,
teve consequências bastante esperadas(principalmente por ser feita no lugar onde foi
feita): eu comecei a refletir sobre a vida que vivi, sobre as pessoas que por mim
passaram, as que deixei passar sem mais nem menos. E a suma final de todos esses
acontecimentos, até o momento em que fechei o caderno em meu colo e analisei
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Os Curiosos
clinicamente seu couro velho, indagando-me sobre o por quê da qualidade dos
cadernos atuais apresentar tamanha precariedade, veio a ser tão negativa quanto esta
última constatação. Estava com os olhos vendados para as minhas boas memórias, e
só conseguia dar olhares os maus bocados de minha vivência. Devido a percepção de
um equívoco de minha parte ao analisar tão precariamente a minha realidade
recatadamente passageira, decidi investigar com mais afinco minha breve, em
perspectiva com a contagem temporal cosmológica, é claro, existência: fatos
mínimos, que aparentam ter importância alguma, tomariam o papel de algarismos em
uma complexa equação matemática cuja finalidade seria uma auto análise crítica, e
até mesmo fatal, da minha passagem pelo universo.
A equação se daria de forma simples e ideal. Deveria, em primeiro lugar, confiar
completamente em mim mesmo. Eu deveria deixar de lado o tão denso fato de eu ser
um humano e ter um ímpeto inconsciente. Não deveria deixar-me levar pela vontade
de ter os algarismos da equação favoráveis à um estado que me faria sentir um pouco
mais confortável com meus labirintos emocionais. Para evitar este truque mental,
decidi que iria lembrar-me de tudo a partir, e somente, das coisas que fitasse com os
olhos em minha casa, não fazendo questão de selecionar qualquer objeto em
específico. Os encontros, estes que gerariam as memórias, deveriam ser
completamente ocasionais, como o que aconteceu com o diário antigo ou com a urna
ornamentada de meu pai. Já estava sozinho no apartamento a mais de cinco dias, e
durante todo esse tempo não havia realizado nada de produtivo. Tudo que fiz foi
chorar sobre uma jarra de leite que ainda estava intacta sobre a mesa. Por que não
fazer algo útil, então? E essa equação de algarismos randômicos, além de se tratar de
algo que, na minha mente, soava extremamente útil, traria a mais confiável solução
para a interrogação que cobiçava com tanto aferro: Valeu a Pena?
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Os Curiosos
Fernando Pessoa disse que tudo vale a pena se a alma não é pequena, e é nessas horas
de desespero controlado que eu lamento não ter uma fita métrica espiritual. Todo o
trabalho que tive esquadrinhando meu passado seria reduzido à completa concepção
do vazio. Entretanto, como não fazia posse de tal utensílio, era minha incumbência
investigar a fundo as lacunas de minha existência a fim de comprovar a dúvida cruel
que assola a todos ao fim que qualquer coisa. Ao subir dos créditos de um filme, ao
fechar as abas de um livro grosso, ao ouvir o som da chuva ou dos pássaros se
sobrepondo sobre a última música de um álbum, tal questionamento sempre se faz
presente. E assim se faz pois é algo extremamente natural. Ao fim de um tanto que
demandou certo empenho, a alma humana, que pode se diminuir em dependência da
natureza do sucedido, grita por um julgamento, procura incessantemente saber se o
tempo gasto em sua ocorrência foi bem gasto, se o passado realmente dá as mãos
consigo mesmo e torna o presente naquilo que ele realmente deveria ser: um presente.
Envolto em tal sentimento amargo e ansioso, é que me pus a observar os objetos de
minha morada. Procurava com olhos clínicos e atentos um elo para com o passado,
qualquer que ele fosse. Levantei-me da varanda e comecei a dar passos pela sala,
todos sem compromisso, leves e meio inseguros, como os passos de uma criança no
primeiro dia de aula na escola nova. Quando me vi parado na frente da luz amarela da
geladeira a não pensar em absolutamente nada, percebi que deveria procurar em
outros lugares, mais fáceis do que uma simples e randômica “volta pela casa”. Voltei,
então, a atenção para a salinha aonde encontrei o diário pela primeira vez e, vejam a
besteira!, segurei em mãos um álbum de fotografias em mãos. Fotografias, vejam
bem, só são tiradas em ocasiões especiais, portanto a probabilidade de eu me
encontrar com uma boa lembrança em mãos era muito maior do que o contrário. Eu
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Os Curiosos
não deveria me permitir tal possibilidade. Ela era perniciosa de tão pretensiosa. E foi
o como se manifestou.
A foto que segurava em mãos estampava um sol poente que transformava o azul da
atmosfera naquele comum gradiente de vermelho e alaranjado. O sonho de muitos
fotógrafos profissionais. Na frente da estrela maravilhosa, eu abraçava, com um
sorriso tímido –
nunca gostei do meu sorriso: sempre achei minhas bochechas
grandes demais, por isso mesmo é que deixo a barba grande - e intimidado pela lente
negra, minha, então namorada da época. Andrea era minha, só minha. Seus cabelos
negros e longos, faziam-me estremecer. Foi, de longe, minha parceira favorita.
Um salão grande com um pé direito alto, uma valsa ao fundo – é como se pudesse me
sentir lá só de lembrar -, um papel de parede refinado, toalhas brancas e vermelhas
recém-lavadas, um buquê de rosas em um vaso, um garçom bem afeiçoado sempre
muito educado e sorridente, e apesar da ampla finura do lugar, o que mais me fazia
sentir-me como a única pessoa desse planeta era Andrea e o seu cheio que roubava o
exalar das rosas. Ela ao meu lado, linda como sempre, e sorri. Como sorri. O simples
ato de mostrar-me seus dentes brancos e grandes, pranchas lisas de contentamento,
fazia com que eu tintilasse ao seu lado, com que ficasse com as pernas bambas. Eu
voltava a ter quinze anos ao lado do meu primeiro beijo. O mundo em volta todo
desaparecia.
De repente, acedia-se a luz de plateia e, quebrando a parede, eu
observava e me arrepiava com os aplausos da plateia imaginária que vivia dentro de
mim e que eu, até então, não fazia ideia que existia; uma enorme plateia, composta
pelas pessoas que conheci e que viria a conhecer, ovacionando o grande ato do amor
correspondido. Pego em sua mão e iniciamos uma valsa linda e folclórica. Durante a
dança tento levar minha mão à sua bunda, mas ela as interrompe e sussurra em meu
ouvido, mais tarde, sussurra em meu ouvido, mais tarde, sussurra em meu ouvido,
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Os Curiosos
mais tarde, mais tarde, mais tarde, mais tarde, e me olha com os olhos de Vênus,
dominando completamente à mim e à situação, sempre mantendo a compostura e o
olhar terno, que em combinação com o sorriso, faziam-me alucinar!, Deus!, como era
bom! Fazia com que me sentisse… completo.
Depois da mágica valsa – em tão completa sintonia quanto o sexo – sentamo-nos à
mesa para um magnífico jantar totalmente experimental. Salientava a experiência do
paladar a um ápice dos sentidos olfativos e auditivos; toda essa experiência
combinada ao ato de sentir o tato por debaixo da mesa faziam com que toda a situação
se elevasse à níveis(por mais redundante que soe) poeticamente apoteótico: ela roçava
sua perna à minha, me provocando.
Mas até tal momento, não sei se me recordo bem, talvez seja a bebida que fez das
minhas faculdades, torpes fundações, tudo parecia um sonho; e assim parecia de
forma tão fervorosa, que até o presente momento não consigo afirmar com plena
certeza que se trata de uma memória real. Gosto de pensar que deve assim ser, pois é
o que mais me agrada.
Ao fim da mágica noite, embalado por algumas e muitas garrafas de vinho, não me
fazendo lembrar das novas leis estatais, acendi um cigarro no meio do lugar e, assim
como a biblioteca de Alexandria, toda a noite, todo o árduo trabalho para a criação
arquitetônica de um tempo de amor foi por água a baixo: um dos seguranças foi
obrigado a nos retirar do baile de gala devido a minha inadimplência ao manter acesa
a chama de meu vício. Que ato vergonhoso o de ser expulso de uma festa! Só de
lembrar coro a tez branca escondida por trás desse cabelo que espeta.
Entretanto – e talvez seja essa a razão de todo o meu amor – Andrea era mesmo
única, não poderia existir no mundo melhor mulher do que ela: não se deixando abater
pelos cataclismos de um inadimplemento vão, ela sorria com a mesma intensidade
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Os Curiosos
com que fazia a alguns momentos. Ria, sobretudo, da minha falta de jeito, do
embaraço que eu esboçava com tamanha inausteridade, onde já se viu um homem
barbado como eu, erudito como eu, modesto como eu, sendo vítima de tamanho
empecilho?! Eu riria também, caso o fato acontecesse com outra pessoa – tragédias
são mesmo cômicas quando não nos envolvem. E não poderia ela ter cometido ação
mais honesta, ação mais heroica do que encarar a situação com o bom humor. Todo o
acabrunhamento que me circulava foi aos poucos desaparecendo e a chama agora
apagada e resfriada, voltava a se ascender na nossa terna troca de olhar.
E enfim o mais tarde veio e tive, provavelmente, a melhor noite de sexo de minha
vida. Principalmente, talvez, porque fora seguida de mais alguns dias tal qual aquele.
Pena que, como diz o popular, tudo que é bom dura pouco. Depois de algumas
semanas, talvez um mês, surpreendi-me ao acordar numa manhã e ver vazios os
gaveteiros que havia reservado somente para ela… Em um primeiro momento não
soube o que fazer e senti meu coração palpitando cada vez mais forte e uma extrema
falta de ar. Meus olhos se enchiam de água enquanto discava para o telefone celular
dela sem respostas. Lembro-me com completa perfeição o embaçado do choro na
lente dos meus óculos e da vermelhidão de minha face ao me olhar no espelho e
declarar a mim mesmo minha sentença: ela fora embora para sempre.
Mas como tudo em minha vida, tal tragédia veio a se revelar o grande trunfo do meu
sucesso profissional: meu livro mais famoso, “Confissões à Aurora”, fiz em
homenagem a Andrea. Fiz para Andrea. Fiz com o intenso desejo de que ela visse
meus nomes nas prateleiras e, quem sabe?, voltasse correndo aos meus braços. Mas
não aconteceu. O livro vendeu cópias e mais cópias, rendeu-me este enorme
apartamento em que agora me encontro ao aguarde de não sei mais o quê. E só.
29
Os Curiosos
Tudo que sei é que todo o meu esforço para julgar minha própria existência havia se
resumido à um empate: três boas lembranças, contra três trágicas. Talvez, é claro, tal
resultado não passe de uma elucubração inconsciente para tornar o meu próprio
julgamento algo mais plano; algo que nem eu possa verificar, tamanha a subjetividade
das lembranças. Talvez minha mente tenha omitido alguns fatos, talvez ela tenha
privilegiado alguns, não faço ideia. Só sei toda a minha frágil e curta existência se
resumira à um lúgubre e sem sal empate. Só sabia que não sabia de nada.
Eis que me encontro só, novamente. Um cigarro na boca, uma bunda na cadeira, um
corpo na varanda, uma cara no vento e uns olhos na rua, movendo-se como carros
num passeio de domingo. Ao meu lado, o cinzeiro já se encheu mais uma vez. Por um
momento penso em deixar isso para o mundo: ele logo dará conta de limpar toda essa
bagunça; mas o toque da minha consciência é mais forte, me fazer levantar com o
cinzeiro nas mãos. Apoio-me no beiral e vejo pessoas andando na rua, todas cientes
do que está a sua espera, mas andando, como se tal ato fosse mudar alguma coisa.
Andando como meus olhos à poucos instantes. Andando, como se não houvesse
caminho nem pedra; e de fato, futuramente, não haveria. Sinto vontade de jogar as
cinzas de cigarro dali mesmo, mas lembro-me do meu pai e de como as cinzas não
caem, de como elas simplesmente voam, como a imaginação, como as palavras no
papel, como as pessoas na rua, como as andorinhas.
Bom seria bater asas e fugir.
Deixo esse pensamento vazar a cabeça, escorrer pela orlha, e vou para dentro jogá-las
no local mais apropriado: o lixo. Em cima do granito preto do balcão da cozinha vejo
meu livro, o livro que mais odeio, o que mais vendeu, o meu livro de maior sucesso:
“Cartas à Aurora”. O que têm de errado com os outros, qual o problema com os
poemas de “Trancado” ou com a coletânea de contos eróticos em “Empreitada”?
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Os Curiosos
Por que diabos “Cartas à Aurora”, a coisa mais intimista que já fiz, e que jamais
imaginei fazer, foi a que mais vendeu?
Tomado por tal pensamento abro o livro em uma página qualquer:
“Queria tê-la amado em uma idade em que a razão estivesse galopando, quase
invisível, distanciando-se quilômetros da nossa vidinha. Talvez as coisas fossem mais
simples, talvez o campo fosse mais verde, as frutas mais suculentas, e o prazer mais
prazeroso. Um mundo de gozos mais intensos, sem corrente elétrica, sem tensão, só
tesão. Porque foi a razão quem nos tirou o paraíso, e foi ela que não correu a tempo
de ter te deixado aqui mais um tempo.
Se não existisse a razão, se não existisse a ciência, se nosso lado animalesco não
fosse suprimido pela buzina de um trem, pelo ascender de um cigarro, se quando a
tosse viesse, ficasse e morresse junto à mim, o universo teria já me dado conta, já
teria me carregado no colo para aquelas bandas distantes onde você se encontra
agora, Aurora. Um lugar amarelo e verde brilhante, onde não existe nada.
É por isso, amor, que toda noite torço, eu peço para que algo aconteça, peço para
que o mundo se acabe, pra que eu possa me acabar contigo…”
Isso é uma porcaria!, e jogo o livro na parede.
O mais intrigante é que logo depois penso naquele último período caio aos risos ao
perceber que meu desejo estava sendo, finalmente, atendido.
Cinco dias preso dentro de um apartamento, dentro da própria mente, preso consigo
mesmo pensando na vida não é pra qualquer um. Ainda mais pra um ser do entretrópicos. Mas a culpa é minha de qualquer jeito, que fazer?
Quero voltar para a varanda, quero espiar o mundo sem rumo que anda nas calçadas,
que corre no asfalto, julgar cuspir na cara deles e ao mesmo tempo abraça-los e dizer
que vou sentir muita falta. Quero sentir a essência de todo o meu viver novamente,
31
Os Curiosos
observar gente que se sente grande na pequenez de seus espaços, e que se sente
pequeno na grandeza disso tudo.
Mas algo me para no meio do caminho: cartas ao chão, ao lado da porta de entrada.
Ignoradas por alguns dias agora elas me chamam, cantam e, por alguma razão,
desconfiado, penso se tratar de um canto de sereia. Mas como não me amarrei à
nenhum navio, eu obedeço.
As levo comigo para a varanda e enquanto acendo mais um cigarro abro uma das
cartas. É do meu produtor; diz que eu deveria aproveitar a situação em que o mundo
se encontra para escrever alguma coisa. Diz ele que iria vender bastante. Acho
engraçado o fato dele me pedir isso, ele: o mesmo que agora deve estar com a família
debaixo dos braços esperando que nada aconteça mesmo com a consciência e o céu
gritando o contrário a cada segundo.
Abro outra, essa tem o envelope todo o branco, sem inscrição. Quem o colocou ali o
fez sem ajuda dos correios. Muitos e muitos papéis e uma letra feminina nele. Trago
do texto e do fumo
“‘Hoje te vi de novo, Aurora: nó no céu, luminosa e atraente, mas, acima de tudo,
magnética. Atraindo meu olhar como um imã. E mais uma vez eu tento entender – e
acho que te entendo um pouco -, mas a vida aqui embaixo é tão fria, o clima é tão
frígido que acabou congelando meu coração junto…
Queria eu poder te encontrar, já pensei em mil maneiras, mas aí a culpa seria
minha…
É o que me conforta nesse tempo: pensar que não foi tua culpa. Por mais imbecil que
isso soe, por mais cético que eu seja, essa é a razão pela qual eu mantenho a calma e
não faço uma tentativa desesperada de encontro: uma razão maior.’
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Os Curiosos
Essas, meu amor, foram as palavras com as quais eu me deparei ao abrir o livro que
fez para mim numa livraria qualquer”
Seria possível? Andrea me enviara uma carta? No mesmo momento que leio essas
palavras estremeço. Eu mereço!, Largo meus cigarro ao chão, tento me levantar, mas
minhas pernas estão trêmulas e sinto as lágrimas subindo em meus olhos. Meu
coração já não cabe no peito, e não sei onde é que minha mão foi arranjar tanta
água pra suar. Tá suando de fazer exercício: a tremedeira.
“E você, detetive como sempre foi, não poderia estar mais certo:
Eu realmente parti por uma razão maior.
Sou apaixonada por você, Pedro, ainda sou. Ainda sou tremendamente apaixonada.
Meu coração me machuca, meu peito dói de não te ter por perto.”
Eu ainda te amo. Acho que nunca deixei de te amar.
Acontece que durante nossas aventuras eu fiquei grávida. Gravida de você, Pedro.
Você tem um filho. Esse foi o motivo maior que você teve a audácia de descobrir sem
descobrir. Antitético como você é, não poderia deixar de ter um filho.
Você agora deve estar-se perguntando o por quê de eu nunca haver te contado sobre
seu filho. Foi por que sempre carreguei comigo as palavras que você disse para mim
em uma noite em que passamos juntos. Disse que não queria filhos. Que era um
absurdo, um tremendo fracasso trazer alguém para esse mundo e que não via
problema algum em abortar uma criança. Um verdadeiro Brás Cubas.
E o engraçado é que eu sou coxa.
Pois bem, tens agora um grande fracasso; E o nome dele é Diógenes.
Meu conflito interno é tão grande, tão grande… Achei que quando soubesse de meu
segredo deixaria de me amar. Foi essa a razão do meu segredo até agora: o medo de
te perder. Lendo suas palavras, eu soube que você ainda me amava, entretanto,
33
Os Curiosos
sempre tive medo, e está aí onde eu manco: na coragem. Tenho medo de bater na sua
porta com Diógenes ao meu lado e ver todo seu livro desmoronar ladeira abaixo.
Mas agora que tudo está a ponto de se perder, criei coragem pra te mandar essa
carta pelo menos. Como você bem sabe temos mais três dias antes que tudo se acabe.
Então te espero, todas as tardes, daqui até o juízo final, na praça da frente do seu
prédio, com esperança nos olhos e uma criança entre os braços.
Eu não mudei muito. Só espero é que você esteja ainda reconhecível.
Espero te ver, Pedro, é o que faz esse fim de mundo ser um pouco mais confortável.
A possibilidade de te encontrar é o meu lugar mais quente.”
Olho para o relógio. Algo me diz que ainda tenho tempo.
Desço as escadas o mais rápido que posso, tropeçando em mim mesmo, não muito
diferente de como fiz por toda minha vida. Corro até a praça do outro lado da rua.
Não vejo ninguém, nenhuma mulher com criança. Nada. Tudo gira ao meu redor,
meus olhos giram, minha mente gira, só não gira as engrenagens da consciência para
me dizerem que ela não está ali. Puta merda!
Mentalmente eu entro em meu apartamento. Abro as portas do quarto branco e vazio.
Penso em uma caminha ali, em um berço, em brinquedos espalhados pelo chão, em
Diógenes brincando. Penso nele em meus braços, no carinho que eu faria em seus
cabelos.
Sinto que meus cabelos estão ficando brancos a cada segundo, pois que cada segundo
é um segundo que passa e não um segundo que fica meu Deus! Por que não acaba de
uma vez então?! Por que não morremos logo?! Finde essa agonia, Maldito!
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Pedro!
Os Curiosos
Lá está ela! Eu não acredito! Ao lado dela um garoto que não entende muito bem,
saltando a boca pra fora, gritando os pulmões. Não chore. Está tudo bem agora. Não
chore que isso me mata. Eu sinto suas lágrimas caindo como bombas no meu peito.
Um abraço apertado, mal consigo os olhar nos olhos, só consigo os apertar contra
mim mesmo, como se isso fosse os proteger de alguma coisa.
O som ao redor aumenta, aumenta e aumenta; um som alto, ensurdecedor, mas ao
mesmo tempo inaudível. Um som monótono e grosso, como o grito de Deus, que
entra os ouvidos como música. E ao mesmo tempo não escuto nada. Meu coração bate
forte. O coração dos dois bate forte e o garoto não para de chorar. Não chore, não
chore, não chore que você me mata por dentro. Não chore que eu estou aqui. Sinto os
dedos de Andrea agarrando meus cabelos. Ela treme tanto! Não trema, não tema, não
chore, não chore. Não trema que sua tremedeira me mata. Não chore que seu choro
me mata. Só me abrace forte e quem sabe Ele mude de id
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Os Curiosos
Euzinha
Quando eu ainda era uma pequena criança, sempre ouvi minha mãe dizer que deveria
carregar minha identidade comigo sempre. Se você não carregar sua identidade com
você sempre como é que vão saber que você é você e não outra pessoa tentando se
passar por alguém que não é? Ela brigava feio comigo, porque uma vez eu fui pega
matando aula fora da escola por alguns guardas sujos que gostavam de andar por aí
dizendo que estavam fazendo alguma coisa além de extorquir o dono do bar que eu
não me lembro o nome, que ficava a algumas quadras da escola onde eu estudava.
Uma vez por semana esses dois sujeitos vestidos de farda e se achando os donos do
bairro entravam no bar e recebiam dinheiro do dono. Dizia-se que era pra proteção. E
de fato era, o dono do bar pagava aos policiais para que eles o protegessem deles
mesmos. Como diria o bom e velho e finado Don Vito Corleone, de Nova York, eles
faziam uma oferta irrecusável. Eu sei disso tudo porque meu pai costumava me contar
as histórias da criminalidade quando eu entrava no nosso antigo chevette azul, mas
que pra mim parecia mais cinza, 1982. Eu gostaria mais que fosse um chevette 1984
porque eu gosto muito do livro do George Orwell e acho que o ano de 1984 é um ano
que soa aos olhos um ano muito bonito. Digo que soa aos olhos, mas eu sei que quem
escuta sons é a orelha, entretanto eu acho que ‘toa aos olhos’ não é algo que soaria
muito bacana aos olhos de quem quer que estiver lendo isso aqui agora. Mas eu
comecei escrevendo por um motivo, e esse motivo era falar da minha identidade e o
que eu faço com ela. Por isso mesmo é que eu comecei falando que a minha mãe
sempre me dizia que era pra eu carregar a minha identidade comigo. De que outra
maneira eu provaria que eu sou eu mesma? Ela estava certa, pois aqueles dois guardas
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Os Curiosos
que extorquiam o dono do bar que eu não lembro mais o nome, uma vez me pegaram
matando aula na pracinha algumas quadras afrente da escola, do lado do rio Belém.
Era um dia de sol no Ahú, e eu e as meninas conseguimos sair da escola através do
bosque das freiras, que, apesar de ser um bosque com menas coisas do que o bosque
das crianças, é um bosque mais legal. Acho que é mais legal porque é um bosque
proibido e ninguém podia entrar lá. Mas mesmo assim, havia uma brecha na cerca que
separava o bosque das freiras do bosque das crianças. E nós conseguíamos pular ele e
entrar no bosque das freiras mesmo sabendo que era proibido. Aliás, especialmente
porque era proibido. Do lado de lá, as folhas das samambaias pareciam ser mais
gordas, o musgo parecia ser mais escorregadio, a lima nas pedras parecia ser mais
viva e a as dobraduras dos pinheiros pareciam rostos amaldiçoados, implorando para
serem ouvidas. Pelo caminho de pedras no caminho que fazia a trilha pra sair de lá e
dar de cara com a porta para o gazear, sempre aparecia uma plaquinha com alguma
frase famosa ou alguma oração. Porque existe uma diferença entre frase e oração e eu
não soube responder essa pergunta na aula do Chico, que era uma caricatura humana e
tinha os dentes debaixo tortos pra cima, como um morro, e fumava cigarro e soltava a
fumaça na cara de quem quer que passasse na frente dele. Mas, principalmente, as
plaquinhas continham fragmento da Bíblia. ‘Pedi e vos será dado; buscai e achareis;
batei e vos será aberto; pois todo o que pede recebe; o que busca acha e ao que bate se
lhe abrirá. Mateus 7,7’. E eu estava buscando aquele dia. Ai, ai, eu estava pedindo,
estava pedindo… ‘Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito
debaixo do céu. Eclesiastes 3,1’. O momento, no caso desse momento em específico,
era o de assistir a aula de história com a maldita da professora Eneida, que apesar de
ter o nome mais poético que uma mulher pode ter(apesar da Eneida de Virgílio contar
a história de Enéias, que era um homem troiano, que foi o ancestral de todos os
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Os Curiosos
romanos, e não um barbudo que era o deputado federal mais votado do Brasil até
vinte dois vinte dois aparecer – e eu sei disso porque ela dizia toda vez que
perguntavam do nome dela), era uma professora horrível. Muito melhor do que ela era
o Euclides de Matemática, que além de tudo era superengraçado e sempre saía com
giz na testa careca dele. Eneida e Euclides, Euclides e Eneida, nós e os outros alunos
brincávamos, e quando sugerimos ao Euclides essa possibilidade ele começou a rir, e
disse que já havia servido o exercito, e disse que o tempo de enfrentar canhões já
havia passado, e que ele já havia cumprido todo o seu dever, e que Deus já sabia de
todos os seus pecados e que já havia pago por todos eles. A sala toda ria por causa da
relação óbvia com canhão, que de fato era engraçada, mas quando entrava no papo de
Deus dava pra ver nos olhos de todos que a coisa ficava um pouco mais séria. Mas daí
todo mundo despencava a rir novamente, porque ter que aturar a ‘professora Eneida e
seus peitos despencados pera aqui no joelho’ era uma punição que nem o maior
pecador do nono círculo mereceria sofrer. Mas eu nunca fui de acreditar nessas
bobagens de Deus, e seu filho, e pecado e sofrimento. As vezes, quando algo muito
bom acontece, como quando eu acordo com o despertador e descubro que na
realidade é sábado, e que eu não preciso de fato acordar cedo, eu penso: Deus existe!,
mas aí eu vejo o tamanho da bobagem que é falar isso e volto a dormir, pois o mundo
dos sonhos é muito mais legal do que ter de ficar protocolando papéis que eu nem sei
o que querem dizer, ou ver a sentença e buscar o processo porque meu chefe não se
contentou em lê-lo três vezes. O direito é foda. Mas as vezes eu me pego pensando,
por mais ilógico que pareça, que talvez eu esteja errada e que todas as coisas que
acontecem de errado comigo acontecem por causa desse ato de desrespeito com algo
que nem existe. Eu sei que é ilógico, mas o pensamento também é ilógico e
imprevisível e as vezes eu me pego pensando esse tipo de coisa mesmo, mesmo
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Os Curiosos
sabendo que é bobagem da minha parte e que eu sou uma pessoa muito feliz mesmo
não acreditando que eu vá viver pra sempre e reencontrar as pessoas que eu amo. E
essa constatação dá um link para o que eu estava falando. Estava contando das placas
haviam – desse jeito errado mesmo, já que eu gosto mais de haver do que ter, mas
ainda assim quero passar um tom questionador das normas vigentes – no meio do
caminho feito de pedra, e agora que vocês sabem desses meus questionamentos, hão
de pensar o que é que eu pensei quando me lembrei disso à caminho da delegacia. ’E
nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam. Romanos
8,28’. Eu já não amava Deus naquela época, pois a verdade é que não sei se cheguei a
o amar em qualquer momento da minha vida. Daí, vai ver, ele não cooperou. Ou então
foi o sistema que não cooperou e me fez ficar presa ali, naquele labirinto sem volta
nem vida. Ou então ele cooperou, na verdade, porque o fragmento fala de cooperar
para o bem da pessoa, e depois desse aperto que eu passei eu nunca mais andei por aí
sem meu documento pra provar minha identidade. Mas é como eu disse, as vezes
quando eu penso nessas coincidências, algo me leva a dizer: Deus existe, mas dizer
isso é tamanha besteira que logo eu me levo a pensar no quão humana eu sou e no
tamanho gigantesco que as coisas tem quando comparadas as coisas que eu vivo, e em
como eu só sou uma partícula subatômica na baleia gorda e imensa que é o universo.
Mas o fato é que eu e as meninas conseguimos entrar no bosque das freiras e, por
mais incrível que isso pareça, nós acabamos topando com duas ou três delas. Mas elas
não falaram nada porque estavam vestidas de branco e as freiras vestidas de branco
ainda não fizeram tudo o que tinham de fazer então são como os alunos numa escola,
ou como os estagiários no escritório e não tem muita voz, apesar de serem seres
humanos e terem línguas e pregas vocais e terem uma vontade imensa de serem
ouvidos, mas se frustrarem com o fato de não terem ouvidos para ouvir o tom das
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Os Curiosos
palavras e de tudo que deve ser dito – e eu digo tom mesmo sabendo que… não, não.
Nesse caso a palavra ‘tom’ também vale pra som. E é por isso que o Antônio decidiu
se chamar de Tom, porque tem tudo a ver com a música além de ser um diminutivo
sem o ‘inho’ que muitas vezes pode soar pejorativo. Enfim conseguimos passar pelas
freiras sem pregas vocais sem que elas precisassem usar as pregas vocais delas,
mesmo querendo – mas está aí o poder da fé em fazer as pessoas se renderem… e eu
já estou enrolando demais. O fato é que passamos pelas freiras e conseguimos sair do
colégio. Eu, a Drisana e a Amanda, minhas amigas. A Drisana era uma loucura. Ela
colecionava ponta de lápis. No quarto dela viam-se milhões e milhões de pontas
quebradas de lápis todas alojadas em potes, e quando perguntávamos pra ela o porquê
dela colecionar tantas pontas de lápis ela dizia que não sabia e que era só um hábito
que ela cultivava desde a primeira série. Se ela quisesse ela poderia fazer vários
lápises com todas aquelas pontas e reutilizar elas, mas eu sempre achei melhor não
sugerir nada, pois ela já pegava no meu pé pelo fato de eu não comer carne. Quero
dizer, ela já me achava uma ecochata só por ser vegetariana, se eu ainda sugerisse a
reciclagem, aí sim ela me mandava direto para os braços do greenpeace. Já a Amanda
era uma garota meiga que se perdeu com o tempo. Eu conheci ela no grupo de teatro e
ela era a melhor no improviso. Sempre conseguia se sair bem e sempre recebia
elogios do professor que eu acho que era gay, mas que o nome eu não me lembro
mais tão bem também. Ela era um doce de menina, mas era muito namoradeira e eu
parei de falar com ela quando eu tinha por volta de uns quinze anos e ela começou a
usar narguilé e tomar tubão. Ela me adicionou no face um dia e desde então eu
acompanhei o nascimento do bebê sem pai dela. Nada contra também, mas as vezes
bate uma vontade de dizer ‘Eu sabia…’ com aquele tom prepotente que os videntes
normalmente têm. Porque é como se a gente fosse vidente nessas horas, mas um
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Os Curiosos
vidente que não acredita na própria visão. O filho dela se chama Henrique e ela me
convidou pra ir no chá de bebê, mas eu não pude ir porque eu estava muita cansada de
protocolar coisas e fazer xérox pra faculdade. Direito é foda. Nós saímos da aula da
professora Eneida e fomos andar por aí. O sol estava de rachar e eu me arrependi de
haver escolhido o pretinho básico naquele dia. Tomamos um sorvete no bar, e eu acho
que foi o dono do bar que o nome eu não me lembro que foi a ponte entre os dois
fardados e a gente. Tudo faz um pouco de sentido quando a gente pensa um pouco no
assunto, né? Mas enfim… Depois de tomar sorvete a gente foi descansar e esperar dar
a hora numa pracinha que ficava do lado do rio Belém, que naquele dia estava mais
fedido do que nos outros dias, principalmente porque estava sol e porque o sol é
ótimo para produção de cadaverina, que é o principal responsável pelo odor
nauseabundo dos cadáveres de gente e de, como no caso, cachorros atropelados. Nós
três ficamos lagarteando naquele sol das onze horas sem se preocupar com o possível
melanoma que surgiria pela nossa pele se continuássemos com essa rotina sem
protetor solar até nossos quarenta e poucos anos. No meio de uma de nossas conversa
apareceram os dois policiais e perguntaram o que a gente estava fazendo ali e
disseram que vadiagem era crime. Depois um deles, o mais gordinho e de voz fina,
levantou a voz de pato dele e disse Podem ir dizendo os nomes. A Drisana disse
Drisana, a Amanda disse Amanda e eu disse o meu nome. Mas eles não acreditaram e
pediram os documentos. A Amanda mostrou o dela, a Drisana mostrou o dela, mas eu
havia esquecido o meu documento em casa e só estava com o crachá de passar na
entrada, que não tinha foto e que não podia provar que eu era euzinha e não outra
pessoa tentando se passar por alguém que não é. E apesar das minhas amigas e eu
termos tentado discutir com os dois policias em patrulha que isso não era necessário e
que eu era eu mesma, eles não acreditaram e me colocaram no banco de trás do carro
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Os Curiosos
como quem vai preso. Mas eu não fui presa de verdade e nem tomei ficha nem nada.
Só fiquei sentada em uma sala por um tempo até eles me trazerem o telefone com a
minha mãe do outro lado com ela gritando “Eu te disse, eu te disse pra sempre andar
com o seu documento sempre!”, e eu arrependida que estava fiquei esperando. Depois
eles me colocaram num corredor com umas cadeiras desconfortáveis aonde eu fiquei
por um tempo até o meu pai chegar do trabalho e me levar pra casa. O mais
impressionante de tudo é que eles não saíram daonde estavam na hora que souberam
que a filha deles foi presa, mas só depois que terminaram seus respectivos turnos no
trabalho, o que me fez esperar bastante sem ter o que fazer, e me fez pensar na vida e
em como eu devo sempre ouvir os meus pais e, principalmente sempre carregar meus
documentos, o que me faz pensar agora se isso tudo não foi arquitetado, porque
conversando com meu pai antes dele morrer do Câncer que ele tinha no colo, ele
confessou que sabia que eu matava aula antes de saber que eu matava aula, ou seja,
antes de ir me buscar na delegacia aquele dia e me fazer aprender a sempre levar o
documento comigo. Eu, infelizmente, nunca perguntei nada pra minha mãe,
principalmente porque eu sei que ela não vai responder, porque agora ela deve estar
em Miami curtindo alguma festa de arromba e sendo velha, enquanto eu, jovem,
tenho que protocolar papéis que eu nem sei o que querem dizer e olhar autos e
sentenças na esperança de levantar uma grana extra pra gastar em livros. Eu bem sei
que não parece por causa desse meu jeito de escrever, por causa daquele menas ali em
cima e por causa de muitos e muitos outros erros, mas eu sou uma pessoa que gosta
muito de ler. E é agora que finalmente chego à parte que me fez escrever tudo isso.
Eu, euzinha, gosto de marcar a página do livro que eu estou lendo – e que,
consequentemente, carrego comigo de um lado para o outro – com o meu documento
de identidade. Marcar o livro com a identidade. Acho que isso diz muito da minha
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Os Curiosos
personalidade, apesar de vez ou outra eu não saber direito o que é que eu sou ou o que
é que eu tenho de fazer. Acho que é poético, apesar desse meu dia-a-dia patético presa
dentro te um ônibus torcendo pra que ninguém me veja limpando o nariz na manga do
casaco.
Eu acho que eu acho demais pra alguém da minha idade. Mas também acho que se eu
não achar nada, não vai ter ninguém pra me achar e eu vou viver sozinha pra sempre,
sonhando com aquele carinha que poderia ter me achado, mas que não me achou
porque me achou uma pessoa vazia demais.
É complicado…
Mas até que eu gosto.
43
Os Curiosos
Digressismo
Eu acho engraçado o jeito que a gente consegue complicar as coisas que não são tão
complicadas. Como conseguimos complicar as coisas simples. Por exemplo: quando
compramos aquele computador de mesa, ou instalamos o todo atrás da televisão.
Coloca o modem, o telefone, a televisão, o cabo do dvd e do vídeo game, além dos
cabos da tevê a cabo, que no meu caso funciona via satélite, mas vai entender!, isso
tudo naquele balcão da sala que serve pra colocar esse tanto de coisa. Ele tem até
alguns buracos que parecem não servir pra nada, mas que serve para passar a fiação
sem ter que dar a volta pelo móvel todo. Você liga tudo ali, bonitinho. Três meses
depois aquele tudo que estava bonitinho vira um bolo, uma maçaroca de fios pra todo
lado que você nem sabe como é que isso aconteceu. A fiação criou vida enquanto
ninguém estava olhando e decidiu fazer uma suruba naquela parte da sala que você
limpa uma vez por mês somente? Vai saber? As vezes sim. Se até seres unicelulares
fazem sexo, porque que fios atrás do balcão da sala não podem fazer também? Mas
existem outras teorias além dessa. Há quem diga que os fios atrás do balcão ou os fios
do fone de ouvido que a gente guarda no bolso são embaralhados por um duende que
tem a especial função de fazer esse tipo de coisa. Mas isso só seria verdade se esse
duende não soubesse como descolar a fita adesiva, porque quando você cola os fios
com fita adesiva, eles acabam não embaralhando desse jeito que é tão irritante. Mas é
como eu estava dizendo. A gente complica as coisas que podiam ser facilmente
descomplicadas se a gente não fosse um ser de cabeça tão emaranhada. Isso pode ser
chato, mas pode ser legal também, depende do ponto de vista. Por exemplo, eu
poderia ter feito todas as minhas explicações até agora de um jeito muito mais fácil e
44
Os Curiosos
didático, onde eu não precisaria ficar jogando palavras ao vento a todo minuto, nem
criando longos períodos, nem ficar me alongando demais em explicações que seriam
mais simples de serem feitas se eu fosse menas prolixa, mas eu acho que isso tiraria
toda a personalidade das coisas que eu escrevo, porque na verdade eu sei escrever
direito, já que eu faço direito, e quem faz direito tem que saber escrever direito, pois
que no direito a objetividade de uma linguagem é algo muito importante. Mas eu
também não sei qual dos dois tipos de linguagem é mais objetiva, porque no direito
também existe uma coisa da linguagem ser utilizada a como artifício, como e
utensílio, e não como simplesmente linguagem. O que eu quero dizer é que eu não sei
realmente dizer em quais dos dois métodos a gente soa mais claro, principalmente
porque aqui e desse jeito a coisa parece muito desleixada e pouco cuidada, e porque
no direito ela parece justamente o contrário, só que tão exacerbado quanto. Falar
juridiquês não é fácil pra muita gente, principalmente com todos aqueles termos em
latim que só servem pra dar um charme na coisa toda. Eu tenho um livro que eu
carrego comigo só por causa disso e isso me faz perguntar se todo esse auê realmente
faz da linguagem penal uma linguagem clara e objetiva. Eu vou dar um exemplo.
“Meu pai, per inuriam, me considerou uma persona alieni iuris no que se refere aos
estudos e, em pleno Iuri, por ser meu pai, me condenou a uma semana sem celular. In
fine, inania verba, disse: ‘sapienti dictum sat est.’” Não seria mais fácil eu
simplesmente dizer que meu pai me botou de castigo injustamente porque me
considera uma má estudante, e que no fim das coisas, inutilmente disse que à bom
entendedor meia palavra basta? Seria! Mas acontece que tiraria todo o brilho da coisa
e daí os juristas não poderiam se gabar com o latim, que é algo muito legal e que eu
pretendo fazer quando eu estiver em algum cargo mais alto, sendo fodona. Mas tudo
bem, quem faz direito sabe que eu estou exagerando e que não tão sempre que usam
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Os Curiosos
isso na prática. Na prática até que é verdade, mas na parte da teoria é impossível
escapar de um capítulo sem alguma citação em latim. Mas essa parte é legal,
principalmente porque o latim é uma língua morta e não sofre alterações de acordo
com o uso dela. Por isso que falam que é uma língua morta, mas eu acho que isso
todo mundo já sabia. Outra coisa que todo mundo sabe, mas que mesmo assim eu
insisto em falar é que a gente sempre acaba complicando uma coisa que não era tão
complicada assim, simplesmente por complicar. Talvez seja algo com o que o ser
humano já nasce com, uma vontade de complicar as coisas. Talvez porque o nosso
cérebro seja complicado demais, e daí ele acha que as coisas tem que ser complicadas
como ele, porque se não forem, ele vai ter jogado um tempão fora se desenvolvendo e
ficando tão complicado assim. E ninguém gosta de perder tempo. Nem de sentir que o
que fez foi inútil. Mas fazer coisas inúteis pode ser algo bom também. Esse texto que
eu estou escrevendo agora, por exemplo, é super inútil, mas é super agradável. Ao
menos pra mim é. Muitas outras coisas inúteis podem acabar sendo bacanas, como
ficar jogando uma bolinha na parede quando não tem o que fazer, ou ver um Bob
Esponja de pijama, enrolada debaixo de uma coberta, tomando chá quente em dia de
frio. É inútil, mas é bacana. Há quem diga que fazer coisas que são inúteis é algo antinatural, mas eu acho que é bem natural. Olhe para os leões, por exemplo. Uma vez eu
vi um documentário sobre leões, e ele mostrava o que é que eles faziam logo depois
de comer uma zebra e ficar empanturrados de tanta carne. Eles simplesmente deitam
debaixo de uma árvore e ficam de barriga pra cima lagarteando, mesmo sabendo que
são mamíferos e não répteis. É que nem você quando sai da churrascaria aonde se
empanturrou tanto de maminha e tudo mais que não consegue ficar de pé por muito
tempo. Se eu não me engano, isso acontece porque boa parte do sangue do seu corpo
se concentra nas áreas relacionadas àquela primeira digestão que acontece no
46
Os Curiosos
estômago. Daí falta sangue num monte de lugar, inclusive no cérebro. Queria ver o
Stephen Hawking fazer um cálculo matemáticos depois de uma temporada comendo
feijoada e churrasco sem parar. Queria ver o Stephen Hawking numa temporada
dessas, mas a gente sabe que ele não pode por causa da doença dele. Mas seria legal.
Talvez se todo mundo comesse feijoada e costela e churrasco pra caramba, o mundo
fosse um lugar melhor. Queria ver o Hitler matar judeus depois de se empanturrar de
filé mignon e picanha numa churrascaria qualquer, ou o Osama Bin Laden explodir
um prédio depois de um cupim bem assado. Mas isso não seria algo tão bom,
principalmente pra todos os animais que morreriam só pra que os humanos não
morressem mais. Sabe?, eu sou vegetariana, não como carne e recentemente estou
tentando adotar o veganismo, mas é meio difícil porque eu adoro sorvete, e chocolate
com leite e omelete com queijo. E essa é uma das razões pra eu não acreditar que,
mesmo talvez sendo uma solução essa de empanturrar todo mundo de carne, ela não é
uma boa solução. Eu tenho um cachorro e ele senta igualzinho à mim. O nome dele é
Pacato e eu não sei qual a raça dele. Um dia eu estava voltando pra casa e ele
começou a me seguir e agora ele mora comigo e sai comigo, sem coleira mesmo, pra
ir no parcão todo domingo, onde ele encontra muitos amigos. O Pacato também é
vegetariano e só adota o veganismo porque é louco por leite desnatado light. Vocês
não imaginam a felicidade dele quando vê o potinho cheio de leite. Acaba rápido. Eu
falei isso pro meu professor de sociologia, que também é conhecido por ser um
adorador de cachorros, e ele disse que todo cachorro é assim. Entretanto eu gosto de
pensar que só o Pacato é assim, porque isso faz com que eu sinta que ele é mais
especial que os outros cachorros, o que ele é de fato, principalmente porque ele é meu
cachorro, e não de outra pessoa. Taí um animal que não complica as coisas. Fica em
casa me esperando voltar, e no meio tempo não deve fazer nada a não ser correr por
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Os Curiosos
aí, brincar, pular e ver novela, parecendo um aposentado. Apesar de eu dizer pra ele
que não é bom ver tanta novela, ele gosta. Então eu deixo a televisão ligada a tarde e
ele assiste. Se eu troco de canal ele late, é impressionante! Quer dizer… seria
impressionante se não fosse mentira, já que nós dois bem sabemos que cachorros não
assistem novelas nem qualquer coisa. Eles nem sabem o que é um espelho! E talvez
seja por isso que a vida deles não é complicada, porque o cérebro deles não é
complicado e porque eles não tem que viver com coisas complexas como um espelho
e a auto imagem que transcende o julgamento de si mesmo. Porque cachorros não
falam latim, só latindo. Eu sei que foi infame, mas eu meio que ri por dentro. Por
exemplo, se a gente levasse a infâmia menos à sério, talvez as coisas fossem menas
complicadas. Vergonha, por exemplo. Vergonha de quê? Vergonha de si mesmo?
Mas eu estou entrando numa área muito pessoal e que eu não quero colocar nesse
texto. Por quê? Bem… vergonha. Disseram pra mim que o que eu andei fazendo da
outra vez foi uma digressão, eu simplesmente segui a linha do meu pensamento e sem
nem lembrar direito o que é que eu comecei falando. E eu acho que isso é bem
verdade. Porque eu já não me lembro do que é que eu comecei falando! Ah, sim.
Comecei falando sobre como a gente consegue complicar as coisas, né. Viu só? Eu
consegui complicar até o tema com essa coisa complicada que é um texto digressista,
se é que essa palavra existe. Mas o fato é que a gente complica as coisas mesmo. Por
exemplo, o fato disso tudo que eu escrevo não ter parágrafo, só serve pra fazer com
que as pessoas sintam preguiça de ler isso tudo. Segundo a Wikipédia digressão (do
latim digressĭo, -ōnis) é o efeito de romper a continuidade de um discurso com uma
mudança de tema intencionada. Pode ser uma reflexão da volta do passado, um flashback refletivo, por exemplo. É um flash back, ou seja, uma volta no tempo, e uma
quebra cronológica temporal, uma vez que não obedece uma ordem lógico e
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Os Curiosos
sequencial. Então talvez o que eu esteja fazendo aqui, embora não envolva muitos
flashs backs talvez seja uma digressão. Mas a verdade é que tanto faz. Qualquer coisa
já tá bom. Pra que complicar, não é mesmo? Por exemplo, criam um sistema de
nomenclatura de animais pra facilitar a vida do mundo, mas acabam só complicando a
vida de um estudante que não quer nada com taxionomia animal. E ainda por cima de
tudo, usam o latim! É por uma razão óbvia que usam o latim, eu sei, é só que já
encheu o saco dele. Mas falar do latim, não é falar de mim e esse era o ponto disso
tudo. Eu sou uma pessoa complicada, uma maçaroca de fios atrás do armário, um
sistema de nomenclatura que só serve pra encher o saco das pessoas. As pessoas já
dizem que quando andam comigo, estão pagando pelos pecados que cometeram. Isso
tudo porque eu definitivamente não sou uma cachorra. Por que é que eles sempre
preferem as cachorras? Tem algo nelas que me fere e me confunde sempre. Ou seria
neles? Eu não sei. Não quero falar disso. Quero falar de coisas pequenas, pois por
alguma razão muito estranha, são as coisas pequenas que dizem as maiores coisas
sobre a pequinês de nossa gente. É um preciosismo que dá uma sensação muito
estranha de fragilidade. Eu por exemplo, tenho um amigo muito, muito forte que por
ser tão forte quanto é, a gente acaba chamando de dragão. Mas ele é muito, muito
forte mesmo. O braço dele é muito grande e ele consegue levantar um botijão de gás
com um braço só. Entretanto, o dragão se emociona muito facilmente, principalmente
quando fala da mãe dele. Se ele precisa falar em público algo que está dentro dele –
que no caso dele não é um baforão de fogo -, algo cheio de sentimentalismos, ele
começa a chorar, a chorar muito. Pensem num cara forte tipo o Conan chorando que
nem uma criancinha. E ainda pegando papel pra limpar o nariz. Não estou tirando
sarro. É algo muito bonito, até meio poético, ver um homem cheio de músculos
exercitando os canais lacrimais. Por causa dessa característica dele, a gente o chama
49
Os Curiosos
de dragão dengoso, porque, apesar de ser forte… bem… você já entendeu. Agora, por
que é que ele chora? Porque as coisas são complicadas, bem. complicadas. Mas eu
estava falando desse preciosismo que as coisas pequenas fazem na gente. O dragão
dengoso chorar desse jeito, o fato de eu não conseguir mais receber flores depois da
morte do meu pai sem chorar um pouco, ou o fato do meu vizinho usar uma daquelas
chaleiras com apito e me fazer um favorzão me acordando toda manhã. As vezes eu
tenho vontade de chegar nele e agradecer por ser meu despertador de manhã, mas eu
tenho medo que ao saber disso, ele resolva comprar uma chaleira sem apitos pra não
me incomodar. Ele esquenta água com bastante frequência. Tenho medo de como é
que ele vai reagir ao conhecer a vizinha que vive do seu lado. Porque, “se ela já escuta
o barulho da chaleira, como não poderia então estar ouvindo as conversas particulares
que tenho aqui dentro?” e se mudaria pra sempre porque sente uma falta de
privacidade danada com uma vizinha intrometida como eu. Então eu deixo quieto. As
coisas já andam muito complicadas pra eu conseguir falar nelas direito direto. É
difícil encher linhas com nossas inquietações. Dizem que o dilema de quem é jovem é
o de ter muito à dizer e poucos métodos de se fazer isso. Eu não sei se é verdade.
Acho que é um pouco mais complexo do que isso. Talvez falte ao jovem capacidade
de dizer o que pensa e é isso que torna a vida dele tão complicada. Além de uma
enxurrada de hormônios, ainda existe a imaturidade, a falta de conhecimento, o sentirse pouco bem vindo em uma área que faz com que o jovem se sinta sufocado pelo
próprio desconhecimento. E isso é uma aflição bem grande. E também diz muito
sobre quem é jovem. Porque são as coisas pequenas que dizem muito sobre você e
quem você é. Como o fato de eu me sentir extremamente culpada quando eu não dou
o meu lugar pra alguém de idade no ônibus, só porque eu estou cansada. Poxa, eu não
posso estar cansada de um dia, mas aquela senhora de oitenta e nove anos deve estar
50
Os Curiosos
cansada é da vida! Uma noite de sono não resolve o problema dela, mas talvez meio
quilo de remédios e um andador! Mas falando assim eu estou sendo muito maldosa, já
que existem muitas senhoras de oitenta e poucos anos que estão melhor do que muita
gente como prova um clipe que eu vi uma vez e que me fez refletir se eu queria
envelhecer mesmo. E ser preconceituosa e falar mal e atravessar fora da faixa são
coisas que fazem com que eu me sinta mal. Eu não sei porque fazem me sentir ruim, é
só que dá uma aflição no peito. Como quando eu uso o lado de trás do caderno pra
anotar alguma coisa, ou quando eu uso o lado errado da borracha. É difícil
compreender os porquês disso tudo, mas acontece que é assim.
E é complicado mesmo…
Mas até que diz muito sobre mim.
Vai ver que é justamente porque é tão pequeno.
51
Os Curiosos
profunda é a minha cova
eu queria ter profundidade suficiente pra dizer alguma coisa que não fosse qualquer
coisa que uma pessoa bêbada e intoxicada com fumaça de cigarro e álcool diria, mas
acontece que eu ando meio que me intoxicando, apesar de saber que isso faz mal pra
minha saúde. mas já faz tempo que eu não ligo mais pra ela mesmo. quer dizer: comer
cachorro quente uma vez por semana e já ter a voz automaticamente reconhecida pela
mulher que atende o telefone da pizzaria são indícios bem fortes disso.
mas a verdade é que eu não tenho nada pra dizer e só peguei agora nesse caderno
porque eu andei olhando o diário que eu costumava escrever quando eu era criança.
foi sugestão de um analista babaca pra minha mãe, porque nós não tínhamos dinheiro
para pagar uma seção por semana e porque meu pai tinha morrido de um ataque
cardíaco bem de repente. a gente já tem um histórico de cardíacos na família, e meu
pai era taxista, então vivia sempre com se estressando com as coisas. é que não é
usual dos homens da família do meu pai chegar ao sessenta anos de idade. a gente até
chega aos cinquenta e poucos, mas para por aí. foi o que meu tio me disse algumas
semanas antes de também ter um ataque no coração com cinquenta e seis anos. talvez
isso seja algum tipo de maldição que caiu sobre a família. eu acredito nessas coisas,
sabe? vai ver, sei lá, meu tataravô que era um homem rico e tinha várias fazendas aqui
no sul do país, vai ver ele não fez um pacto com o demônio comprometendo a alma
de todos os descendentes. espero que ele tenha vivido uma vida boa, porque pagar
pela fortuna e pelas fazendas com a vida do próprio filho não é algo muito ético, se é
que concordam comigo. mas ele deveria pensar Eu nem conheço eles mesmo! Que se
lasquem então… Porque o que importa é o presente, é por isso que tem esse nome,
52
Os Curiosos
porra! É pra se aproveitar. vai ver é por causa disso mesmo que eu estou gordo. por
causa desse pacto que meu tataravô fez e daí é meu destino ser assim, incontrolável
com a comida e com várias outras drogas. mas só drogas lícitas também, porque caso
contrário, aí sim eu estaria encurtando minha vida de verdade. eu vou de carro pro
trabalho, mas tenho que estacionar na rua e pagar star até o final de Junho desse ano
porque eu não fiz a reserva de vaga a tempo, e no caminho que eu tenho que fazer pra
chegar até o prédio do banco(que é um caminho bem longo, pra falar a verdade,
dobrando algumas esquinas), eu passo por um monte de craqueiros sentados ali, na
frente de prédios privados privando à todos de seguir o próprio caminho, com frio e
nóia. são uns filhos das putas. esse governo devia fazer uma limpa nessa merda desses
craqueiros de bosta, sei lá, levar pra cadeia, que é pra onde eles merecem ir.
puta que pariu, mó papo mais taxista esse meu.
meu pai era taxista e morreu em serviço, no sábado. soube de detalhes da morte dele
falando com Pacífico, um taxista de setenta e oito anos que estava na ativa e ainda
tinha muito orgulho da filha – impressionante como os taxistas tem orgulho dos filhos
e como eles estão sempre muito bem arranjados na vida e fazendo uma grana preta!,
digo isso porque eu sempre me pergunto Se a sua família está tão bem, por que razões
você ainda está dirigindo esse taxi? foda-se. o seu Pacífico é que era foda. na década
de setenta, contavam os outros taxistas, começou a rolar muito assalto em taxi em
Curitiba, e a polícia não fazia nada, bando de incompetentes! acontece que tinha que
dar um jeito nesse bando de malandro e o que o Pacífico fez? o filho da mãe foi ser
assaltado um dia. entraram três pretos no carro, ele já tava sentindo, e puxaram um
revolver de mentira. o Pacífico disse o código no rádio e os outros taxistas já foram
seguindo, logo atrás. quando botaram os pneus na cidade industrial, todos os outros
desceram e encheram os marginais de porrada. deixaram só um vivo, mas fizeram ele
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Os Curiosos
assistir uma parada muito esdrúxula e cabulosa. amarraram o corpo dos outros dois
pela perna à dois taxis diferentes, e levaram os dois sendo arrastados pelo chão até o
IML. tipo aquela cena daquele filme, Tróia, em que um carinha carrega o corpo do
outro amarrado na carroça. Quem imaginaria que uma corrida ia custar tão caro, não é
mesmo? diz o Pacífico quando conta a história. fizeram o terceiro neguinho, o mais
novo, assistir a porra toda pra mandar uma mensagem pra malandragem: a partir de
hoje, não se mexe mais com os taxistas. e sempre que tem a malandragem começa a
cair em cima dos taxistas, eles dão um jeito de se virar sozinhos. os caras são fodas.
mexeu com um, mexeu com todos.
Mas tem que ser assim mesmo! Malando só aprende na base do medo!
e aí eu volto a falar feito taxista, feito meu pai.
essa ideia de escrever quando se aflige veio de um psicólogo babaca naquela época.
eu lembro que não tinha vontade alguma de escrever qualquer coisa, mas minha mãe
me obrigava dizia que era pro meu bem. eu escrevia qualquer merda, falava que
estava me sentindo triste, até que um dia eu copiei um texto de um livro que eu achei
na casa da minha vó. era um livro com uma capa bonita, por isso chamou minha
atenção. tinha os escritos de não sei quem, feito em não sei que lugar. era o tipo de
livro que a gente vê sendo mais vendido hoje em dia, acho que era autoajuda, sei lá.
mas não vou criticar, porque, pelo menos pra mim, a autoajuda serviu pra minha mãe
largar meu saco. quando ela viu toda aquela baboseira de superação, deixou de pedir
pra eu escrever o diário.
mas por que estar escrevendo se eu achava a ideia idiota? bem… porque na época de
agora a ideia não parecia muito idiota, sabe. – eu acho que eu preciso tirar algumas
coisas do meu peito, sei lá. ontem foi meu aniversário de cinquenta e dois anos. isso
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Os Curiosos
significa que logo mais eu vou partir por causa daquele pacto maldito do meu
antepassado.
acontece que eu meio que me apercebi o quanto eu não cresci nada nesses últimos
anos. continuo bêbado e xingando uma tese babaca que eu inventei só pra fazer que
eu sinta que tem algum culpado nessa falta de sorte que é morrer jovem. não deixo
família, não deixo mulher, mal deixo amigos e transas por aí. deixo um cadáver cheio
de sangue no álcool, pronto pra embebedar as larvas. ao menos elas vão se divertir
com alguma coisa. vou ter lápide de indulgente. não tenho irmão e o resto de família
que eu tinha morreu há tempos. é a vida. a gente vive pra morrer, porque viver mata.
comecei a escrever mesmo porque eu sempre achei que antes da morte eu ia ter algo
profundo pra dizer, algo impressionante e bonito, mas acontece que eu não tenho. que
palavras posso eu expressar aqui? nem nunca li um tal de Dante, escritor curitibano
que fez muito sucesso e que hoje vive isolado. pelo menos vive. mais do que eu, pelo
menos. eu nem conheço a minha cidade. digo, sei me localizar, mas o sentimento de
ser estrangeiro continua grande. eu olho pras obras da copa e não tenho certeza se vou
viver pra ver qualquer um dos jogos secundários que vai passar ali. talvez isso seja
profundo. eu ouvi algo parecido de uma mulher que tinha câncer e que estava careca.
eu sentado na praça, com uma ressaca do caralho, ela vem senta do meu lado e conta a
vida toda pra mim. eu fico sem entender. mal absorvo qualquer coisa do que ela diz,
só penso em voltar que eu tenho que trabalhar. mas daí eu penso que essa mulher seria
uma ótima desculpa pra meu atraso na firma.
eu devia ter ouvido mais o que ela tinha a dizer. ela parecia mais letrada. mas ela
provavelmente está morta. se eu tivesse a ouvido, talvez eu tivesse algo profundo pra
botar no papel. talvez eu tivesse aprendido alguma coisa. má verdade é que foda-se
mesmo. eu comi muita mulher, bebi muita cerveja e dei muita risada. sambei pra
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Os Curiosos
caralho é até acertei cinco números na mega uma vez. se não tive nada de profundo na
vida até agora, pelo menos na morte vou ter. o buraco da cova. a não ser que me
enterrem nesses cemitérios de superfície, essas lajes que chamam de enterro e de que
a manutenção é mais fácil. meu ódio será sua herança. sempre quis dizer isso. mas
não tenho herdeiros. eu poderia citar poetas, mas nunca conheci nenhum. poderia ter
citado filósofos, mas nunca conheci nenhum. só conheci gente que acha que pode com
a morte. inclusive eu.
ah. foda-se. se já faltou profundidade, qual o problema de faltar um fim pra essa
merda?
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Os Curiosos
Maria
Cinco e meia da matina. Biblicamente o sol se levanta. O inverno é difícil. Nuvens
baixas ofuscam aqui e ali os brilhantes raios de luz, verdadeiros feixes no céu. A
cidade em panorâmica tem seus prédios todos revestidos pelo manto branco da
neblina do alvorecer.
Numa rua distante, muito distante, tão distante disso tudo, de estrada de terra e poste à
lampião de querosene, onde mata baldia abriga um barraco no outro – mas que barato!
– vem caminhando lentamente uma senhora. De tudo que é nego torto, bandido do
caes do porto, ela já viu passar, e sempre na dela, não se metendo em confusão.
Segura nos braços um potencial, uma promessa, que de tão preciosa recebe afagos
indulgentes na cabecinha, como se eles fossem mágicos o suficiente para evitar o
futuro provável despedaço. Tal pedra inda não lapidada se chamava antônio e, atônito,
tentava descrever as vastas árvores folheadas de sua vista bucólica, balbuciando uma
sílaba ou outra em sua boca de neném. A avó do menino, percebendo o minguo
uivado, o apertava contra o farto peito, fardo as costas, fado antigo, forçando-o ao
silêncio tácito. No balancê do braço e passo, no paço do amanhecer, cantarolava entre
os suspiros de cansaço: “a vida é boa de viver…”
E a passos largo seguia firme: a rodovia é logo ali, logo mais vemos os prédios e o
caminho de há de vir. Um verdinho e um azulão, mais um vermelho e um amarelo.
Chegamos com tempo de sobra!: creche e casa do Seu Marcelo. Depois da guerra à
casa torna, caminho longo, longo caminho, muitas pedras pertinazes, torna amargo
água de filtro. Dia longo, jornada longa, marmita pronta. Cala-se a boca com feijão,
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Os Curiosos
que é preciso ferro pro braço no batente. A neblina do amanhecer quase faz a manhã
dar meia volta, mas a indecisão de um pé frio é coisa de cabeça quente.
Segue a viagem.
- E como é que ela chama mesmo? É Odisséia?
- Sinto muito, ó poesia! Infelizmente, o nome dela é Maria.
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Os Curiosos
“Ó”
- Vamos sobe….
- Não vou subir! Você me magoou muito.
- Mas eu te amo.
- E eu não me importo… – E penava para tirar a mecha de cabelo da frente dos olhos.
A moto dele andava devagar e vez ou outra ele penava para manter o equilíbrio
- Isso é mentira… Eu sei disso, meu amor.
- Não me chame assim!
- Mas você vai ser sempre meu amor.
E o silêncio prevaleceu por mais alguns metros.
- Você não pode andar de moto na ciclovia.
- Por você eu posso.
E mais alguns metros de passos e somente passos.
- Vamos, deixe-me pelo menos te dar uma carona até a sua casa. É muito longe daqui
até lá.
- Não quero carona! Já te disse.
- São só alguns minutos aqui na garupa. Não vai te fazer nenhum mal.
- Eu não quero… não com você.
Mais alguns passos de silêncio. Ela para de andar. Olha pra ele. Sobe na garupa.
Dona Maria, a vizinha da frente, me disse que eles ainda deram um beijo longo na
frente da casa dela e que ela ficou abismada com a falta de privacidade que os olhos
curiosos e fuxiqueiros dos vizinhos proporcionavam aos dois.
Dona Maria é uma pessoa do bem.
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Os Curiosos
Houve uma vez que o João sofreu daquela maldição dos pais, sabem? Aquela quando
os pais dizem: “Não faça isso moleque, você vai se machucar…”. A gente nunca se
machuca, exceto quando escuta isso dos pais. O João caiu em cima do próprio braço e
quebrou ele. Nada evitou que ele levasse uma surra no final da tarde, mas a primeira
pessoa a socorrê-lo foi Dona Maria. Ela é uma boa pessoa.
O filho dela, acho que se chamava Marcio ou algo assim, se meteu com drogas e duas
vezes roubou a televisão dela. Depois ela desistiu dele. Já imaginou, cara? O que é pra
uma mãe desistir de um filho? Imagina se a nossa acaba desistindo da gente? Como é
que a gente fica. Enfim. Ela desistiu dele, mas o quarto dele continua arrumado. Tive
de dormir lá durante algumas semanas em que o pai e a mãe viajaram. Dormi no
quarto do Marcio. Ela tinha um papagaio que bicava a gente numa mordida forte.
Tenho uma cicatriz aqui no cotovelo por causa dele, ó. Veio até um médico quando
isso aconteceu e usou umas palavras grandes daquelas que a gente não entende.
Enfim. A Dona Maria disse que viu os dois se beijando por um tempão e que não
entendia como podemos viver num mundo com tanta falta de privacidade. Um casal
não pode mais se beijar na rua sem atrair olhares e fofocas da vizinhança. E a notícia
se espalha no boca-a-boca numa velocidade tão incrível que quando vai ver a história
já tá toda transformada…
O importante é que domingo o fotógrafo vem aí tirar foto da família. Eu subi numa
peroba hoje e o pai falou pra eu tomar cuidado pra não cair. Desci na hora. Não quero
aparecer todo ferrado na foto desse ano. Não na desse ano.
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Os Curiosos
A História que ouvimos d’Ela
Conversam, dois amigos, sobre Ela. A história que ela contou foi no mínimo
trepidante, Dizem que foi toda cheia de injúrias, Nisso tem razão quando dizem,
realmente foi de cair o queixo de qualquer contador de histórias, Ela é muito boa
nisso também, há de convir comigo, Tem razão, Ouvi-a contando uma ou duas vezes,
duas distintas, saí de queixo caído em ambas, Mas não que a história seja boa, ela tem
seus sentidos e peca muitas vezes, está tudo na entonação que dá e na escolha de
palavras que faz, um vocabulário vasto e a entonação certa tornam até o simples cair
de uma folha ao outono em uma sinfonia de palavras, é um trabalho difícil, por isso
ela merece todo esse reconhecimento, Ei de te confessar que já tentei ser prosador
muitas vezes, é mais difícil do que parece, As coisas são mais difíceis do que
parecem, quando você escuta a uma música no piano, pode ser qualquer uma, pode
até achar fácil de tocar, principalmente se você tocar piano, é claro, mas a composição
de algo novo é muito difícil, Não é a toa que vemos tanto plágio hoje em dia, Mas é
como dizem, o segredo não está na originalidade das coisas, mas na forma como as
coisas são contadas, Então quer dizer que você acha estilo mais importante do que
conteúdo, Não bote palavras na minha boca, o conteúdo é parte fundamental da
história, talvez a mais importante, mas o estilo também é um fator muito importante,
principalmente quando o assunto é vender, não é mesmo, Talvez, mas estamos a falar
acerca de arte, amigo, e arte não tem nada a ver com vendas, Como não, como então
vive um artista se não vende uma só obra, O artista vive da sua aspiração artística, Do
que é que você está falando, até Shakespeare era vendido, a arte está no método de
botar conteúdo e ainda vendê-lo, Mas isso é uma consequência, e, ainda assim, das
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Os Curiosos
mais frustrantes, Como frustrante, com dinheiro no bolso nada é frustrante, Claro que
é, as pessoas compram a obra não pelo valor emocional ou filosófico que ela carrega,
mas pelo fato daquilo conter a máscara de agrado, está tudo aí, o marketing é
frustrante para o verdadeiro artista, ou por quê é que você acha que o mesmo
Shakespeare voltou pra família no interior, Mas só porque vende não deixa de ser
arte, Claro que não, toda a arte tem seu público e, principalmente seu preço, Até Ela
tem seu preço, mesmo que sejam somente algumas moedas, Mas o que disse Ela na
história que me contava antes de entrarmos nessa vã filosofia, Contou uma história
muito boa hoje, acho que não a entendi direito ainda, Conte-me, vamos, quero ver se
entendo, Bem, como sempre a encontrei na rua chamando as pessoas ao seu redor
para que pudesse contá-la, agregou-se ao grupo umas quinze pessoas, Não estava frio
demais, Frio estava, é claro, mas o sol das três da tarde a esquentava de tal modo que
ao meio do conto tirou todo aquele monte de cobertores de cima de si, E a história,
como foi, Disse ela, naquele tom místico de sempre, que há muito tempo existia esse
homem, hoje já falecido, cuja atividade que mais gostava de fazer era colocar moedas
em garrafas de vidro ornamentadas de tal maneira que fosse impossível tirá-las de lá
sem quebrar a garrafa, um dia tal homem casou-se com uma mulher que gostava
bastante de gatos, e com tendências depressivas horrorosas, E aí, E aí eles se casaram,
e foram casados por muitos anos, ela começou a entrar em depressão depois do casal
descobrir a esterilidade dela, Nossa, Sim, mas não estamos nem na metade ainda,
Continue, A depressão foi aumentando, ela foi piorando cada vez mais, não saía mais
de casa e se recusava a comer, eles foram a um médico que a receitou antidepressivo,
o remédio funcionou, mas não por muito tempo, pois no fim de uma noite, ela,
enquanto o marido dormia, encheu a cara de bebida e ainda virou algumas pílulas do
remédio tarja preta receitado pra depressão, Caramba, Calma, não chegamos lá ainda,
62
Os Curiosos
Vá em frente, Louca, ela matou o gato com uma de suas varas de costura e pôs-se a
dormir, ao acordar no dia seguinte, o marido encontrou o gato morto ao chão da sala e
a mulher dormindo toda ensanguentada, levou-a para o banheiro para limpar o sangue
de seus braços e a deixou ali enquanto dava um jeito no corpo do gato, voltou,
limpou-a, colocou-a na cama, ele estava possesso, enraivado, ela não falava nada,
estava passando mal, mas o marido achou que fosse frescura, a deixou dormindo o
resto dia, e gritou algumas palavras de ódio pra esposa, no meio tempo, foi trabalhar,
mas mal sabia o fatalismo que estava a cometer, pois a mulher faleceu engasgada na
própria saliva naquela tarde, Caracas!, Calma, não chegamos lá ainda, É claro, é uma
história d’Ela, não é mesmo, Então, a empregada doméstica que trabalhava na casa
não notou nada, só viu a patroa dormindo ali e foi-se embora sem saber de nada, ao
voltar para casa ao final da tarde, o marido queria beijá-la com a boca de paixão, e o
fez, ele havia bebido algumas antes de chegar em casa e não notou o estado morto e a
carne fria da esposa, abaixou as calças e transou com ela mesmo assim, ao acordar na
manhã seguinte, percebendo que a esposa que amava estava morta, no ápice de seu
desespero, pegou a arma que guardava em baixo do travesseiro e, abraçado à esposa
morta, com gosto de defunto no pênis e na boca, pintou a parede de sangue e miolos,
Caraca!, A empregada, ao chegar para trabalhar no dia seguinte e ver a cena final da
tragédia, voltou pra casa mais cedo com muitas e muitas garrafas para quebrar, O
silêncio então percorre os dois amigos por alguns instantes, Não sei se entendi, Eu
disse, foi uma história difícil de engolir, Quanto você deu a ela dessa vez, Algumas
moedas, somente o pouco que tinha comigo no bolso, Ela merecia mais, Concordo
contigo, mas, é como você disse, ela definitivamente não é frustrada.
63
Os Curiosos
Conte-me mais sobre Aroldo José
Sempre soube que esse menino não ia se criar. Nas noites de festa, brincando com
alguns amiguinhos, ele vinha se esconder debaixo da minha saia. E não saía de lá
enquanto não o achassem. Não interessava o quanto eu insistisse pra que parasse. Pro
azar dele, eu me irritava entregava seu esconderijo aos amiguinhos.
Sempre foi muito bom brincar com ele. Foi um grande amigo na infância, meu primo.
Lembro-me que quando brincávamos de esconde-esconde ele se escondia debaixo da
saia da madrasta dele. Acho que era Lúcia ou algo assim. Muito linda. Eu era uma
criança, na época, mas já tinha uma quedinha pelas mulheres. E acho que ela tinha
uma quedinha por mim também. Contava só pra mim onde é que o Aroldo estava
escondido. Tem outras coisas também mas isso aqui é sobre o Aroldo e não sobre a
família dele não é mesmo?
Não é que eu não gostasse dele, quer dizer… Ele sempre foi uma espécie de fardo pra
mim e para o pai dele.
E como eu tinha inveja dele! Um par de pais responsáveis maravilhosos como
aqueles! Lúcia já era linda por natureza e o pai era ridículamente rico! Eu tinha uma
inveja desgraçada. Enquanto ele podia fazer o que quisesse, que os pais nem davam
bola, os meus ficavam em cima. O cara tinha liberdade, e grana! Era só pedir pro pai
que já tinha dinheiro em mãos. Não vejo razão pra ter feito… você sabe.
Costumava andar pela casa correndo, pondo à si mesmo e aos móveis em riso. Só de
meia no pé. Ele pedia pra cair!
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Os Curiosos
Teve uma vez, me lembro bem! Ele quebrou o braço. Caiu porque andava pelo chão
encerado, de meia. O gesso na escola foi um charme. Ganhou todas as menininhas da
escola fazendo-se de coitado e pedindo assinaturas.
Foi horrível! Tivemos de levá-lo ao hospital porque o osso havia saído pra fora…
quê?… isso mesmo: fratura exposta! Eu que não sou nem um pouco acostumada com
sangue quase desmaiei. O choro do guri era in-su-por-tá-vel!
Sim, sim. Estudávamos na mesma sala. Ficamos juntos até o fim do ensino médio
mais ou menos. Depois que ele decidiu se aventurar pela música, ir tocar com a
bandinha dele e nunca mais soube dele.
Quando ele era criança, costumava cantar muito. Sempre teve jeito pra coisa. Cantava
de tudo! Roberto Carlos o dia inteiro! Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso e
Engenheiros do Havaí, Ele não parava. Era a toda a hora, a hora toda. Saia cantando
que quem não tem colírio usa óculos escuros, uma música do Raul Seixas. Na época
ele nem sabia o que a letra significava. Digamos que alguns anos depois ele
simplesmente começou a usar óculos escuros com mais frequência.
Mas sempre foi um bom amigo… Havia essa garota, Angélica, eu acho; nós dois
éramos louquinhos por ela. Tínhamos por volta de quinze anos. É claro que se por
algum acaso algum de nós acabasse conseguindo ficar com ela, não ia ter a mínima
ideia do que fazer. Era a garota mais desejada do colégio, nunca tivemos nenhuma
chance. Mas era bom sonhar. Houve uma ocasião em que ele foi tocar uma serenata
pra ela. Eu disse que não ia dar em nada, apesar dele cantar bem, mas ele insistiu.
Romântico? Mas é claro! Ou você acha que o Aroldo teve o fim que teve por quê?
Foi muito piegas! Cantou “Meu Amor Por Você” do Roberto Carlos! Quer algo mais
brega do que isso?! Nos aproximamos da janela do quarto dela, jogamos uma
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Os Curiosos
pedrinha e esperamos ela aparecer. Enquanto ele cantava, ela dava risadas e afundava
a cara entre as mãos, toda envergonhada.
O mundo não é lugar para os românticos…
Não mesmo! Esse mundo é cruel, isso sim! Mas é como já dizia Drummond:
“Neste país(…)”
E eu completaria, Neste Mundo,
“É proibido sonhar”…
Tem um cigarro aí?
Não, não estou com fomo… Além do mais, sopa já esfriou ali na mesa.
66
Os Curiosos
Memórias de um Acordeão Aposentado
Quando penso no toque dele, na rapidez de seus dedos e na paixão que sentia ao
utilizar-me, tudo que sinto, por mais triste que seja, é essa exclusiva e linda palavra,
tão cheia de significado em sua essência e infeliz, embora muito bela – acho que
porque as coisas mais belas do universo são sempre tristes, mesmo nunca
perguntando-me o porquê -, a saudade.
Lembro-me do brilho dele ao me ver escondido atrás de uma grossa camada do vidro
mais frágil que existia – quem roubaria uma loja de músicas? – naquela loja pequena
e escondida num dos cantos de Buenos Aires. Seus olhos tão pequenos se enchiam
d’água ao pensar na possibilidade de me ter em seus braços, por isso, durante meses,
sempre por volta das três e meia vinha e me olhava com seu brilho infantil. E o dia da
minha compra, talvez fosse esse o dia mais feliz de nossas vidas. Até então nossa
relação não passava de uma paquera, de um flerte inocente, sem compromisso mais
duradouro do que os minutos em que a troca de olhares acontece. Mas no dia 15 de
novembro de 1954, lembro-me como se fosse ontem, seu pai, com seu bigode ajeitado
e cabelos brancos nas laterais, comprou-me depois de muito negociar com meu, até
então, “dono”. E coloco a palavra dono entre aspas, pois nunca me considerei
propriedade do barrigudo. Meu verdadeiro dono é aquele menino dos olhos brilhosos,
aquele rapaz que escapava do mundo ao seu redor na música que tirava de mim,
aquele homem que por muitos anos fez de meu som seu sustento nas ruas e nos
estúdios.
E como foi feliz o dia em que nossa relação foi consumada. Foi nosso casamento, a
oficialização de nosso querer. Eu o queria, pois o que há para um acordeão fazer
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Os Curiosos
numa vitrine a não ser olhar os artistas de rua e sentir uma vontade tremenda de jogarse para calçada e gritar minha melodia e afinação sem compromisso com sustento
algum? Com o único e simples compromisso de mostrar ao mundo meu tom e minha
alma, flertava com a criança de mais ou menos 10 anos querendo nele o que ele queria
em mim: um sentido.
A primeira vez que pôs suas pequenas mãos em mim. Foi a primeira vez que senti o
toque que mais tarde viria a me causar tamanho saudosismo. Eram pequenas, com
seus ossos finos e movimentos desajeitados. Pude sentir os ossos de sua perna quando
colocou-me em seu colo, e o movimento de seu ombro juntos ao desconforto, sempre
ajeitando minhas alças… Se eu tivesse olhos, garanto que estariam cheios d’água
agora… Seu pai tirou-me de seu colo e tocou minha primeira música. Não passava de
um simples bolero, mas é até hoje uma das músicas mais especiais e guardo-a na
minha superfície metálica que alguns podem chamar de coração. A música, a primeira
música, combinou perfeitamente com a cena. Meu dono colocou as duas mãos no
rosto e ouviu o pai tocar com olhos atentos, cheios de esperança, desejando no seu
mais profundo ser a astúcia de pegar-me em seus braços e desbravar-me tal qual seu
pai fazia. Analisando tal cena agora, forço e forço a mente, mas não lembro se eu
dividia do sentimento com ele. Gosto de pensar que sim…
As aulas, os treinos, os meses e anos de teste, intercalados com apresentações na
igreja e para os churrascos de família, todos esses momentos pareceram passar como
aquela música que gostamos, como aquela tarde com os amigos. Quando me dei
conta, o menino dono meu já não era tão menino assim. Havia deixado o cabelo
crescer na altura do ombro, coisa que não agradava nem um pouco o pai, e agora
carregava uma outra aliança no dedo, prateada. Não havia nada que me irritasse mais
do que senti-la batendo em minha madeira quando ele estava nervoso ou ansioso. Era
68
Os Curiosos
muito melhor quando aliava tais sentimentos num improviso realmente improvisado –
não era como os improvisos ensaiados, pois estes requeriam tanta habilidade que só
muito mais tarde para experimentá-lo.
Uma das tardes que nunca vou esquecer, foi a do dia que trouxe uma garota – que
mais tarde viria a tornar-se sua esposa – muito linda, com os olhos mais verdes da
cidade e o sorriso mais marcante(nos apaixonamos, eu e ele), para seu quarto. Era
julho de 62, ele com seus 17 anos de idade, prestes a fazer 18, logo em novembro,
trouxe-a a garota de nossos sonhos para lá. Ela vestia um vestido azul que cabia
perfeitamente em seu corpo fino e um laço na cabeça. Juntos, eles realçavam ainda
mais seus olhos verdes. Ela sentou-se na cadeira da escrivaninha, ele pegou-me no
colo e depois de dizer algumas palavras, tocou uma música que havia ouvido no rádio
algumas semanas antes e havia aprendido a tirar em mim, era na voz de uma tal de
Edith, uma das mais lindas que tive o prazer de tocar, La Vie en Rose. Lembro-me da
boca dela cantarolando a música junto. Ao fim da música, ao invés de aplausos, tudo
que se ouviu foram os estalos de beijos inocentes e sem prática. Eu encostado agora
na cadeira da escrivaninha, assisti a cena toda. Foi a primeira vez que beijamos uma
garota.
O dia da noite de núpcias também foi lindo, ele me pegou no colo e foi, esta, a
primeira vez que conseguiu improvisar de forma ensaiada. Foi a primeira vez que
pude expressar sua alma. Foi justo, faziam anos que ele expressava a minha.
E como já disse, o tempo passa rápido demais pra acompanhar e quando fui me dar
conta que já era 1970. Ele não me tocava mais com tanta frequência, trabalhava como
contador a semana inteira e não podia mais dedicar seu tempo a mim, preferia dedicálo ao casamento, e eu, até hoje, concordo cegamente com a decisão.
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Os Curiosos
Seu pai, um dia veio nos visitar. Ele tossia mais do que o usual e o cabelo branco das
laterais já tomava quase toda a cabeça. Depois de tomarmos um café, os dois me
tocaram na sala de estar. Meu dono continuava com uma técnica muito boa, embora
não muito acurada. Seu pai, por outro lado, que sempre teve uma astúcia tremenda ao
pegar-me no colo, não conseguiu realizar mais de uma canção e meia. Suas mãos,
agora tremiam e não havia mais fôlego em seus pulmões. Lembro-me de suas
palavras ao filho. Ele dizendo que, por toda a sua vida, havia o visto tocar-me com
tanto fervor, que não imaginava vê-lo numa corporação, mas sim tocando sua música
em qualquer lugar que fosse, mesmo que na rua. A alegação foi seguida de uma
reação imbecil de meu dono, que destratou-o e os dois, pra falar a verdade, só meu
dono acabou saindo de mal com o pai. Um mês depois, seu pai veio a falecer.
A reação na nossa residência foi grande, meu dono foi tomado por uma revolta
tremenda e até ameaçou com a mão em palmo aberto o amor de nossa vida. O que se
seguiu então foi um desespero, uma falta de ar tremenda, um sufoco enorme a maior
decepção de nossas vidas. Nunca o vi tão abalado, o que deixou-me abalado tal qual.
Foi nesse dia que percebi que eu tinha um pulmão. Queria dar-lhe todo o meu fôlego,
e foi através de uma sessão de mais de três horas de improviso ensaiado, que lhe dei o
maior suspiro de sua vida. Foi nesse dia, um dia de amor e lágrimas que ele compôs
sua mais bela obra, até hoje só ouvida por eu, ele e sua esposa.
Quando dei-me conta, meu dono já estampava cabelos os mesmos cabelos brancos do
pai e todos os dias, por volta das seis da manhã, ele punha-me em minha maleta e me
levava consigo ao centro da cidade, onde conseguia arrecadar muito mais do que no
emprego de contador.
Um dia chegou fino e elegante um velho papudo e grisalho oferecendo-nos a
oportunidade de gravar um disco, pois ele havia escutado as composições de meu
70
Os Curiosos
dono e as achou magníficas, disse que gravaria todas as composições que viessem a
ser boas. Gravamos todas as composições em três discos. Eles não venderam muito,
mas o suficiente e em mais de vinte países. Fomos convidados à televisão, fizemos
alguns shows por aí, tocamos para nossos filhos em noites sem luz, e quando fui me
dar por conta, já era 1995. Ele com seus cinquenta e um anos de idade nunca me
trocou, embora as oportunidades e ofertas fossem de um leque bem aberto, ele
manteve-se fiel e mandou-me restaurar três vezes nesse meio tempo, e eu, nos meus
quarenta e tantos anos, não podia sentir-me mais feliz.
Gui, nosso filho chegou um dia trazendo uma tela bem grande, como uma televisão.
Disse que era a mais alta tecnologia e que a estava dando de presente para ele. Ele
nunca a usou.
Lembro-me dele conversando com a esposa na sala enquanto tocava algumas
clássicas em mim. O telefone tocou, ele atendeu e pareceu não acreditar no que ouvia.
Ligou, então a televisão e nós três nos deparamos com dois prédios e um deles em
chamas. Era setembro de 2001. O suspiro de susto que ela deu ao ver o segundo avião
colidindo a outra torre até hoje não sai de minha mente. Meu dono fez infinitas
ligações, mas não se frustrou e pôs-se a chorar. Gui estava no prédio.
Era um dia frio, 11 de Novembro de 2001, um mês depois da morte de Gui. Eu e ele
viajamos sozinhos e, ao chegar em Nova Iorque, antes mesmo de nos hospedarmos
em algum lugar, fomos ao Ground Zero. Algumas pessoas trabalhavam e outras
deixavam flores. Ele sentou-se num banquinho e começou a tocar. Tocou por mais de
uma hora, um multidão se juntou em volta, algumas pessoas até chorosas e o
assistiram durante esse tempo todo. Suas mãos não eram mais tão ágeis, ele, tal qual o
pai, tremia. Até hoje não vejo lógica nisso, a menos de um mês ele tocava
perfeitamente. Nós recusamos qualquer tipo de dinheiro e voltamos ao mesmo lugar,
71
Os Curiosos
chorando juntos por uma semana, e depois voltamos pra casa. Foi no fim dessa
semana, descobri meu olhos, pois foi a última vez que ele me tocou.
Cinco anos depois, foi a vez dele. Em 4 de março de 2006, meu dono faleceu vítima
de um derrame.
Hoje, e que data é não faço ideia, eu fico guardado contando os minutos para
acumular poeira suficiente e ver o amor de nossa vida me limpar. E ela vem toda
devagar, limitada, grisalha. Com cuidado tira toda a poeira de todas as minha dobras e
depois me encara, seus olhos se enchem d’água e ela chora com sinceridade. Nós
conversamos através de olhares e eu acho que ela sabe que divido do mesmo
sentimento, aquele mesmo de palavra única, a saudade. E é nessas horas, nas trocas de
olhares, e na compaixão que descubro meu mais singelo órgão, o coração.
72
Os Curiosos
Aos olhos de Clara
Era uma rua cheia de nuanças gregas. Se olhasse bem, quem sabe apertando os olhos,
talvez fosse possível ver, por detrás das construções barrocas e do caos da presente
em todas as direções, os deuses gregos se manifestando por toda a sua extensão de
mais de três quilômetros. Afrodite num casal osculando, apaixonadamente; Dionísio
no velho boêmio que, entre lágrimas e sorrisos, tinha sempre uma piada na ponta da
língua; Ades na silhueta de giz do outro lado da rua; Ares nos dois homens que
discutiam sobre o verdadeiro responsável acidente; A medusa na boca de uma velha
senhora que vivia gritando “cobra!” por aí; e tantos outros exemplos que um livro
poderia ser escrito a respeito.
Mas de todos os deuses e criaturas místicas, a que mais era evidente, nem muita
atenção era necessária para notar sua presença, era Éolo que, comandando seus quatro
cardeais, Bóreas, Zéfiro, Eurus e Nótus, era quem definia a quantidade de movimento
na rua de acordo com seu humor no dia. Se por acaso estivesse de mal com a vida,
trabalhava para que o vento fosse frio e cortante, como um ego machucado; quando
estava triste, fazia com que chovesse e que todos compartilhassem de suas lágrimas;
quando estava feliz, limpava as nuvens do céu e deixava que o sol se abrisse e
banhasse todas as pessoas; e quando estava alegre, ou satisfeito com alguma coisa,
soltava leves brisas que, ao baterem nas fontes “golfantes” de Poseidon, refrescavam
as pessoas em dias de muito calor.
Num dos dias desses em que quem Éolo andava por aí de mal humor, o frio cortante
afastara quase todas as pessoas da rua. Era por volta de seis da tarde e estava
começando a anoitecer quando os três amigos do acaso, Ventania, Lufada e Vendaval
73
Os Curiosos
– apelidos vindos do velho bêbado chamado de Néscio,(ninguém sabia direito o
porquê, só ele, mas nunca contara pra ninguém. Uma vez um literário se interessou no
tal homem e o estudou, e conversou com ele por um dia inteiro. Ao final desse dia,
disse que tal nome não era nem um pouco congruente com a sabedoria que o homem
tinha, o que acabou por deixar o velho com um grande sorriso no rosto) – não haviam
feito um centavo. Não havia ninguém nas ruas para quem pedissem dinheiro.
Rodaram toda a extensão do lugar sem sucesso até que por fim, decidiram conversar
com o velhote.
Ele estava lá, apoiado nos corrimãos que cercam a fonte e segurava em sua mão, uma
moeda de um real. Os garotos cercaram o velho negro de barbas brancas que estava
ficando cego e pediram que desse a eles a moeda. O velho concordou, mas com uma
condição, que ouvissem abertamente uma história que ia contar.
Ventania e Vendaval protestaram, disseram que não tinham interesse e que não viam
utilidade nos devaneios de um velho néscio e bêbado como ele. Lufada se posicionou
junto aos amigos. Apesar de gostar das histórias daquele senhor cheio de experiência,
sabia muito bem que quando existem ventos conflitantes, a possibilidade deles se
juntarem num ciclone devastador é grande.
E então os três ventos seguiram seus caminhos, procurando por todo o centro da
cidade alguém para ganhar um trocado.
Falharam.
Ao lado de um banco de praça, Ventania deitado ao chão e Vendaval se equilibrando
no meio fio, Lufada, coçando a cabeça, estava inquieto. Uma parte dele queria ouvir a
história do velho e outra parte doía de fome ao mesmo tempo.
“Eu vou lá no Zé, preciso ir no banheiro…”, disse tentando não causar suspeitas. Os
outros dois ventos pareceram dar de ombros, mas mesmo isso não foi suficiente para
74
Os Curiosos
acalmar a adrenalina que era mentir. “Volto já” E os dois amigos não disseram nada,
continuaram a fazer o que faziam antes.
Faceiro e com um leve sorriso no rosto, Lufada saiu andando pela grande rua de tal
forma que, mesmo com suas poucas roupas todas rasgadas, não sentia o frio da
ventania.
No caminho, viu um casal que passeava cheio de casacos saindo do carro logo depois
de – finalmente – encontrar uma vaga. – Veja bem, o vento frio do lugar só impedia
as pessoas de sair às ruas a pé. Os veículos automóveis eram muito confrontáveis, o
que fazia que, mesmo com as ruas estando vazias de pessoas, o trânsito continuasse
caótico. Mais caótico do que em dias de chuva. Nos dias de chuva, ao menos, as
pessoas não tinham medo de abrir as janelas e jogar pra fora alguns trocados. Mas no
frio do dia, aquele povo acostumado ao calor, não se atrevia a abrir sequer uma fresta
– e foi ver se eles tinham algumas moedas. Infelizmente, não tinham nenhuma, mas
caso o garoto ainda estivesse lá quando eles voltassem, eles prometeram algum troco.
Quando chegou na fonte, viu que Néscio continuava lá, jogando a moeda para cima e
para baixo, pensando nas coisas.
“Conta a história…” Disse baixinho, com medo de alguma represália.
“Até te conto a história, moleque. Mas a moeda fica comigo.”
“Tudo bem…” E o velho se surpreendeu. Até começou a querer enxergar a cara do
garoto. Por dentro, sentia um palpitar mais forte.
“Ok, guri. Vou deixar você escolher a história sobre o que você quer ouvir.”
“Eu não sei… qualquer uma pra mim tá bom.”
“Porra, guri! Como é que você vem até mim, me pede uma história e não sabe do que
quer ouvir?!” E o velho se virou para a fonte novamente. “Seja criativo!”
75
Os Curiosos
“Então tá!” Lufada tinha um tom desafiador na voz. “Conta a história dessa fonte aí!
Quero ver se você é bom mesmo.”
“A história da fonte… Deixa eu ver se eu me lembro…” e se virou novamente para o
menino. “A história da fonte é… Como definir?… É uma história, simplesmente. E
começa mais ou menos assim:
“Quando esta cidade, esta gigantesca e incoerente cidade não tinha mais de três
bairros, o padre da cidade, chamado, na época, de Pe. Frederico estava exausto da
profissão divina e precisava desesperadamente de… como posso dizer isso?” Néscio
acabara de notar que estava falando com uma criança. Se falasse em prazeres da
carne, provavelmente Lufada não entenderia nada.
“Ele estava se sentindo muito sozinho.” Completou uma mulher de rosto fino, olhos e
cabelos negros e que constantemente passava a mão no braço direito. O velho a olhou
com estranheza. “Clara!” disse sorrindo e estendendo a mão. “Sou uma fã de boas
histórias e fiquei curiosa com a história da fonte.”
Néscio, então, apertou a mão da mulher.
“Pois eu aprecio admiradores de boas histórias…” por baixo da barba branca, um
sorriso sincero se escondia. “Pois bem, deixe-me continuar.” Ele parecia estar até
tomando pose pra contar a história. Lufada não estava entendendo nada. “Então, como
a moça aqui teve o prazer de completar, o Pe. Frederico estava se sentindo muito
sozinho. E, bem, a suprema igreja diz que homens do Senhor têm de serem sozinhos.
É o preço que se paga, chamam tal negócio de celibato. Estranho o nome, não? Pois o
celibato é quase como uma surra em pessoas que… bem… não convivem bem com a
solidão…
“Enfim, o padre estava se sentindo sozinho, então foi procurar ajuda num lugar aonde
as pessoas vão quando se sentem assim. Mas a cidade era pequena demais e todos
76
Os Curiosos
reconheciam Pe. Frederico onde quer que ele fosse. Por tal razão, ele decidiu ir
disfarçado. Ele, bem, era careca, então botou uma peruca e ficou com cabelos longos.
Mas parece que só isso não foi suficiente, pois quando estava quase indo para o
quarto com a sua… é… amiga, ele foi reconhecido por um dos adúlteros do bairro.”
Lufada estava bufando. Achava a história muito chata. “O homem disse ao padre que
não contaria nada a ninguém, afinal, se o fizesse era capaz de ser descoberto como
adúltero.” Os olhos de Clara, por outro lado, brilhavam. “Mas mesmo assim a história
se espalhou. Diziam em todo lugar que o padre da cidade era um pervertido, que não
deviam suportá-lo nem ir a missa como forma de protesto e esse tipo de coisa.
“Em consequência de tal atitude, a igreja foi ficando cada vez mais vazia. Nem
mesmo os famosos ‘carolas’ iam lá ouvir o que Pe. Frederico tinha a dizer.
“Esta, então, foi a época em que Pe. Frederico mais se sentiu mal. Estava devastado
por dentro, arruinado. Sua reputação havia escorrido água abaixo e, com isso,
ninguém mais o ouvia. Pregar a palavra do Senhor não fazia mais sentido. Viver não
fazia mais sentido.
“E por estar cansado da vida, o Pe. decidiu que não queria mais viver e começou a
armar um plano de suicídio. Então decidiu que iria se enforcar no meio do salão da
igreja. E o fez. Foi um escândalo. Uma freira foi abrir as portas da igreja e se
surpreendeu com o corpo de Frederico lá, pendurado. Acontece que, antes de cometer
suicídio, ele havia escrito uma carta com as razões de seu suicídio. E na carta,
também falava de um sonho que o perturbou por toda a vida. No tal sonho, Pe.
Frederico via a imagem de uma criança que estava num rio, na parte rasa, e um Jacaré
aparece e tenta devorá-la. A criança, de alguma forma, consegue segurar o Jacaré pelo
pescoço e o mata, quebrando a coluna do bicho.
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Os Curiosos
“Como era um exímio desenhista, Pe. Frederico desenhou a imagem da criança
estrangulando o Jacaré. Dizia na carta que tal sonho fora uma das razões dele escolher
ser padre. Ele achava que se tratava de uma mensagem que Deus estava o enviando
via sonho.
“Por fim, a morte do padre comoveu toda a cidade que, num piscar de olhos, pareceu
esquecer de todos os ‘pecados’ pelos quais condenavam o padre. Pe. Frederico acabou
virando um mártir e, em sua memória – pois ele havia pedido que colocassem o
desenho do tal menino, ao invés de um epitáfio bobo, em sua lápide -, os cidadãos da
cidade construíram essa fonte. Se você olhar para as estátuas aqui, vai ver que se trata
de um menino estrangulando um jacaré. O exato mesmo menino que pairava os
sonhos de Pe. Francisco…” Então, o velho olhou para os dois, satisfeito com o
resultado. Lufada estava entediado, achara que seria uma história melhor, com mais
fantasias ou algo assim. Já Clara, só faltava bater palmas.
“Que magnífica história, senhor! Alegrou meu dia! E você, garoto, gostou?”
“Já ouvi melhores…” O velho o olhou meio bravo.
“Olhe, o senhor está precisando de alguma coisa?”
“Algum dinheiro pra um café seria bom, né?”
“Então tome” e entregou quase vinte reais ao velho. “Pra um bom jantar!” E sorriu.
Os olhos do menino estavam curiosos nas mãos do velhote. “Muito obrigado,
Senhor.” E Clara foi-se.
Néscio mal podia acreditar. Mostrava todos os dentes da boca.
“Ou, velho! E aquela moeda?!” Pedia Lufada.
“Eu falei que não ia dar! É a única que eu tenho.”
“Pô! Mas você acabou de ganhar vintão! Dá a moeda pra mim! Por favor. Eu ouvi a
história toda.”
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Os Curiosos
Para ver-se livre do moleque, o velhote jogou a moeda nas mãos do garoto que, ao
pegá-la no ar, saiu correndo na direção dos amigos.
Ventania e Vendaval estavam sentados num banco cabisbaixos.
“Ei, galera! Olha aqui!” disse, segurando a moeda. Os dois se levantaram e, ao ver o
brilho daquele um real, ficaram encantados.
“Como você conseguiu, cara?!” Perguntou, entusiasmado, Ventania.
“Eu só ouvi a história do velhote! Foi um saco, mas ele me deu essa moeda depois.”
Os dois não esboçaram muita reação. “Mas ele ganhou vintão de uma mulher que
ouviu a história comigo!”
“Cadê o velhote?! Vamos lá pegar dele!”
“Lá na fonte, venham comigo!”
E os três correram o mais rápido que puderam até chegar na fonte, e mais uma vez,
falharam. O velho não estava mais lá.
“Cadê o velhote, Lufa?!” Ventania parecia irritado.
“Ele estava aqui até agora pouco… Não sei o que aconteceu…”
“Me dá a moeda!” Ventania agora fechava os punhos. Lufada olhou para Vendaval,
mas ele também estava fechando os punhos.
Se eu não posso ficar com a moeda, então ninguém fica!
E, como num reflexo, Lufada jogou a moeda em direção a fonte, fazendo-a cair na
água congelante. Ventania e Vendaval o olharam surpresos, mas logo a raiva tomou
conta da ambos e, levantando Lufada pelas calças, tacaram-no nas águas congelantes
da fonte.
Ao sair, pela primeira vez naquele dia, Lufada sentiu o mau humor de Éolo. Começou
a pigarrear pesadamente e, para se proteger da Ventania, deitou-se na frente de uma
loja, aonde veio a adormecer para a eternidade.
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Os Curiosos
A algumas quadras dali, Clara admirava a visão que tinha por trás das janelas do
carro. Ficava admirada com a beleza de dois deuses agindo em conjunto enquanto
passava a mão nas queimaduras que tinha no braço direito. Na fonte do Memorial
Árabe, Poseidon jorrava feixes de água com mais de dois metros de altura, enquanto
Éolo lançava suaves brisas periódicas que “batiam” horizontalmente os esguichos,
hora da direita para a esquerda, hora de esquerda para a direita. De todas as direções,
os ventos batiam a água, fazendo com que os feixes “dançassem” numa sincronia tão
perfeita, que parecia ter sido ensaiada dezenas de vezes e mais algumas.
Ao lado dela, Aroldo reclamava do trânsito.
“É lindo, não?” Disse, Clara, sem tirar os olhos da fonte.
“O que?” Ele estava irritado.
“A noite, o show de luzes artificiais que ela proporciona. A beleza de uma fonte bem
iluminada. E o vento, tão aritmético quanto nunca.” E virando-se para ele, finalmente.
“Você consegue ver?”
“O que?!”Aroldo estava evidentemente irritado.
“Eu consigo…” Ela disse.
“Mas é claro, Clara! Não é você quem está na direção!”
Silêncio.
Ela o entendia. Só não compartilhava o sentimento no momento.
Voltou a olhar para a fonte que continuava a dançar, magnífica. E num suspiro
apaixonado, Clara disse a si mesma.
“Exatamente…” Aos olhos de Clara, a dança da água, do vento e do tempo só
precisava de música para parecer um verdadeiro balé.
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Os Curiosos
Almofadinhas
“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que
olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…(…)
A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos
homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que
um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e
assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par
de botas, uma cavantina, um tambor, etc. Está claro que o ofício
dessa segunda alma é transmitir a vida como a primeira; as duas
completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.”
(Machado de Assis – O Espelho)
De tanto ficar deitado no sofá durante os dias de folga – e durante os dias de semana
também -, Paulo teve parte de sua essência roubada pelo móvel da sala. O começo de
tudo se deu quando ele conseguiu notar a própria silhueta adornando o tecido azul
claro das almofadas. Eis a primeira coisa que lhe foi roubada: o desenho do corpo. Por
ser algo, em seus próprios moldes, extremamente peculiar, acabou por gerar em Paulo
diversas reflexões: será que não passo tempo demais em casa? Será que não deveria
sair mais? Será que sou tão sedentário assim?; mas, de qualquer maneira, tais
indagações morreram da mesma maneira que criaram vida: em banhos longos e noites
em claro.
Conforme os dias de preguiça e procrastinação frente à televisão passavam, mais e
mais o sofá ia absorvendo os trejeitos de seu dono. Quando Paulo se levantava para
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Os Curiosos
qualquer coisa que fosse, algo parecia o segurar no lugar, as almofadas pareciam
conspirar para que continuasse deitado, pareciam suplicar para que ficasse só mais um
pouco, como um fã doente quando consegue agarrar o artista favorito em um tapete
vermelho; ou então, quando perdia o controle remoto da televisão e em menos de
alguns segundos o encontrava novamente, num passe de mágica. O sofá parecia
cuspir o controle até os olhos do dono, como se de alguma forma pudesse saber
exatamente o que o dono procurava.
Paulo podia sentir que algo estranho estava acontecendo. Podia sentir nos olhos e na
barriga, no dia quente de frio em baixo de cobertores. Algo lhe dizia que se
sustentasse um pouco mais o seu ritmo cotidiano, permeado por longas maratonas
deitado e mudo frente ao noticiário, e se ainda elevasse tais jornadas à um nível
ainda maior, algo grande aconteceria. Poderia ser um derrame ou ataque cardíaco.
Mas toda essa especulação pintava um quadro triste de auto análise, e não
correspondia de maneira alguma com o que realmente estava acontecendo: aquele
sofá estava tomando vida.
Paulo só caiu na real, e teve todas essas outras especulações descendo privada abaixo,
esgoto abaixo, ao chegar em casa depois de um longo dia no trabalho, quando gritou
às paredes enquanto se jogava sobre o sofá em um estado letárgico de
autolamentação:
“Que dia! Estou morto!”
No que o sofá respondeu com uma voz amigável:
“Se tivesse ficado em casa, nada disso aconteceria.”
O que foi seguido de um pulo enorme. Se um documentarista ouvisse tal historia do
ponto de vista do sofá, é quase certo que o escutaria dizer que Paulo quase deu com a
cabeça no teto do apartamento, tamanho foi o susto que levara.
82
Os Curiosos
Com seus olhos arregalados e coração batendo muito, muito forte, fazendo-se sentir
no rosado de suas bochechas e no suor escorrendo pela testa, Paulo indagou ao vento:
“O quê?! Quem disse isso?!” E obteve como resposta, a mesma voz amigável de antes
dizendo: “Fui eu, seu bobo! O sofá!”
De início, Paulo pensou estar começando a cair nos braços da loucura. Não podia ser
possível! Ele deverias de estar ouvindo vozes, só pode ser! Um sofá é um ser
inanimado, não pode falar! É só um emaranhado de linhas, tecidos e espuma. Não
tem um cérebro próprio e desenvolvido, não faz cálculos o tempo todo, não possui
cordas vocais, não tem alma e nem vontade própria. Não é um ser vivo. E como não é
um ser vivo, como pode então ter vida?! Os sofás não passaram por milhões de anos
de evolução até chegar a presente forma! São todos feitos em diversas etapas, em
marcenarias ou até mesmo em linhas de produção, eu não faço ideia. E esse sofá, mais
especificamente, já havia passado por algumas reformas e servido algumas pessoas
antes do atual dono. Provavelmente foi feito por um João sem nome, e esse, sim, tem
ancestrais que passaram por todo o processo evolutivo para que João tivesse os
polegares opositores necessários para um trabalho de peso, para que tivesse todas as
cordas vocais e respirasse – mas dizer isso de tal maneira é equivocado e lamarquista.
Esse sofá fora desenhado, tinha um propósito claro, por esse motivo era impossível
que estivesse vivo. A vida, em parte, se caracteriza pela ausência de propósito, oras!
Portanto, não podia ser viável. Isso era coisa da cabeça de Paulo. Só podia ser. A
própria cabeça colocando as falas no sofá era a única explicação racional e sensata
para um evento tão incomum.
Paulo evitou sentar-se no sofá por alguns dias, até que entendesse o que estava
acontecendo. Tinha a estranha impressão, enquanto carregava a televisão para o
quarto, de que talvez nunca mais pudesse usufruir da sala de estar. E por mais que o
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Os Curiosos
sofá insistisse lá da sala gritando: “Ei, amigo! Não vamos assistir mais televisão?”,
Paulo não se rendeu.
Nosso protagonista, agora, via-se transtornado ao perceber que não poderia ser
somente coisa da sua cabeça. Se era algo da sua cabeça, porque se manifestava tão
somente no sofá e tão somente quando estava em casa? Se era o caso de seu
subconsciente estar tentando dizer algo, expelir os próprios desejos reprimidos em um
grito anômalo, por que não dizia a todo momento, mas tão somente quando estava
cara-a-almofada com o sofá?
Tal teoria teve sua confirmação fixada quando Paulo chegou em casa e se deparou
com o sofá trazendo informações novas, as quais ele mesmo nunca poderia saber.
Enquanto estava na cozinha preparando o jantar, tentava ignorar o que o improvável
companheiro dizia. Eis que Paulo fora inundado de novas informações. Ficou
espantado ao ouvir, da boca(?) do sofá as notícias do dia. O móvel da sala havia se
transfigurado no próprio William Bonner e vomitava notícias do Brasil e do mundo.
Era impossível! Paulo não acompanhou nenhum jornal naquele dia. Paulo havia
perdido o mindinho naquele dia, havia deixado a a barba crescer, rompido com os
próprios ideais e não sabia de nada, enquanto o estofado repetia as principais
manchetes da noite e ainda concluía fazendo análises sobre os melhores investimentos
a se fazer na bolsa.
Era algo ao mesmo tempo assustador e hilário.
Com o tempo, Paulo foi obrigado a aceitar que o móvel de sua sala havia tomado
vida. O cotidiano e a necessidade de um local confortável na sala de estar o fizeram
aceitar a realidade que, no fim das contas, não se sucedeu de forma tão brutal e
drástica como antes parecera. A cama do quarto continuava gritando o desconforto
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Os Curiosos
nas molas rangedoras, e o sofá, além de continuar sendo muito confortável, tinha um
papo bom, era eloquente na hora das discussões e debates, uma ótima companhia.
E como haveria de não ser, sendo uma parte do próprio dono?
A amizade dos dois cresceu, e Paulo já não se via mais sozinho quando no
apartamento. Tinha a estranha sensação de estar socializando, de estar vivendo o
“mundo lá de fora” dentro do próprio apartamento, ao debater questões políticas com
o móvel da sala. Parecia, finalmente, haver encontrado um amigo dentro de sua vida
de migrante. Desde que voltara para Campinas em uma visita à família – que matou a
longa saudade de longos cinco anos de distância – não se sentia tão bem recebido
quanto quando o amigo azulado o desejava boa noite.
“Mas.. tá… você é um sofá… mas qual exatamente é o seu nome?”
“Meu nome? Eu não tenho um nome. Meu nome é Sofá, oras…”
“É só que chamar você só por sofá não é algo que me deixa muito confortável,
entende. Seria como você me chamar de humano, por exemplo.”
“Se isso fizer nossa relação parecer mais natural, fico feliz em chama-lo de humano,
Humano…”
“Não… me chame de Paulo, belo.”
“Ok, Paulo belo.”
“Não. Belo é só um pronome… mas se bem que…”
“Se bem que o quê?”
“O que você acha de Belo?”
“Bem… eu sou meio surrado mas até que eu tenho meu charme…”
“Não, não! Como seu novo nome. O que acha de ser chamado de Belo daqui em
diante? Não seria uma boa?”
“Sabe que até que sim! Representa muito de como eu me sinto.”
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Os Curiosos
“Ótimo, será Belo daqui pra frente, Belo.”
E foi Belo e Paulo dali pra frente, belo.
Ser amigo do sofá da sala, trazia ainda outras vantagens. O sofá parecia estar
antenado em tudo que acontecia dentro daquele micro ambiente. Ele sabia a
localização de tudo que estava no cômodo. Se Paulo não sabia onde estavam as
chaves do apartamento, e elas se encontravam em algum lugar da sala de estar, o sofá
sabia exatamente as coordenadas geográficas para informar ao dono. Se as chaves
estavam impregnadas em uma das dobras das almofadas, o sofá fazia questão de
cuspi-las até as mãos do dono, mas não sem antes chorar um pouco. Belo era
manhoso, e queria a atenção do dono, todavia sedia aos caprichos do mestre depois de
muita insistência e discussão. Isso tudo, principalmente no começo, quando o
estofado ainda não entendia direito como funcionavam as responsabilidades de um
homem do século XXI. Mas o tempo é mestre das transformações. Se participasse de
uma partida de D&D, seria um doppelganger de marca maior. Não há relação no
mundo que não se sedimente, ou se corroa, com o lento e devagar transcorrer do
denso tempo.
Paulo, que sempre se sentira meio deslocado, principalmente por causa de seu olhar
falho, de seus óculos de lentes tão grossas que faziam com que os olhos parecessem
dois painéis iluminados e da barba que de maneira alguma era capaz de cortar, sabe-se
lá o porquê, sentia agora algum conforto dentro da própria casa. Um conforto que ia
além da maciez das almofadas, do chuveiro à gás, do carro na garagem. Que deixava
a televisão no chinelo. Era o conforto de uma companhia. E esse conforto se fazia tão
necessário, que Paulo quase não conseguia contar os minutos de ansiedade antes de
voltar às molas e às imolações procrastinosas do amigo.
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Os Curiosos
Eis o início de uma amizade sincera, que duraria anos, e que teve o início de seu fatal
fina, como toda boa tragédia grega, em uma profecia.
Os ventos do inverno eram frios e secos: um temporal estava a caminho. Nuvens
carregadas tomavam conta da cidade. Aos poucos, as cabeças curiosas das sacadas
iam se escondendo, amedrontadas pelos gritos dos trovões e pela luz meandrada dos
raios, refletidas nas inúmeras poças da calçada.
Paulo fazia o mesmo. Naquela noite, ele já havia esquentado o jantar no micro ondas,
tomado banho e tirado uma soneca. Um sábado qualquer que se demorava a passar.
Bom seria se caísse tão rápido como as gotas de chuva do lado de fora. Mas não
passava. Denso tempo, que lentamente passava e moldava as eras. Ele e Belo não
trocavam uma palavra sequer. Estavam ambos com os olhos vidrados na televisão,
assistindo ao season finale da série televisiva que tanto adoravam. O sofá contorcia as
próprias molas enquanto Paulo roía as unhas nervoso. O que iria acontecer? Qual
seria a plot twist da vez? Isso era algo que nenhum dos dois saberia, pois a companhia
de energia fez questão de impedi-los: durante o clímax, no ponto máximo de tensão
do episódio, a luz acabou e os dois foram deixados no mais completo breu.
A tempestade lá fora tomou o lugar sonoro da elaborada trilha sonora.
Enquanto Paulo acendia algumas velas para alumiar o apartamento o sofá indaga: “E
agora, o que será que vai acontecer?”
“Chamas? Pois bem!” Grita uma voz vinda das sombras. E de uma das sombras dos
cantos das paredes sai uma mulher magra e esquelética, raquítica e velha. Seus braços
finos tremulantes gritam a própria voz que, de tão fina, arde nos ouvidos. Um longo
nariz torto para baixo e um cabelo liso caindo aos olhos. A sujeira dos dentes e da
pele a faz parecer uma moradora de rua. E o cheiro! O cheiro em especial era o pior.
Cheiro de maldição, de cachaça e de crack.
87
Os Curiosos
Cheiro de mazela.
De qualquer maneira, ao observá-la, a conclusão de se tratar uma bruxa era evidente:
além da entonação que dava as palavras, a luz e as labaredas que soltava enquanto o
discurso era performado não podiam ser ilusão, eram magia.
“Fogo, Fogo, chamas e labaredas!
A resposta para os problemas cai sobre a forma de luz acesa de um raio azul
enérgico! Uma flama adentra ao lar transformando o céu em cinzas, apagando o ardor
das horas e apaziguando a inquietude em um questionamento! No final, tudo será só
cinzas ou teremos também o inquérito?!
Tanto faz, pois no fim serão só as chamas, as flamas e as labaredas a arder nos
quintais! Nos quintais e nos umbrais! Nunca mais?! Chamas, e mais chamas.
Chamaste, então respondo: Chamas!
Chamas, fogo e labaredas!”
E a bruxa volta às sombras, ao seu canto escuro na parede, enquanto sua risada
malévola ecoa pelo apartamento.
O longo da noite se seguiu em medo e aflição. Nem Paulo, nem Belo sabiam o que
fazer, tampouco o que comentar. O silêncio imperou no apartamento. Trovões
cantavam aqui e ali, realçando o medo dos companheiros.
Que significara tudo isso? De onde surgira tal ser macabro?
Essas eram perguntas que perambulavam a mente de ambos, e ambos sabiam que,
assim como na mente de um elas passavam, na mente do outro elas se perpetuavam.
Os dois eram a mesma pessoa, afinal. Não havia porque as inquietações se mostrarem
muito divergentes.
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Os Curiosos
Passadas algumas horas de silêncio, Paulo decide comentar sobre o ocorrido,
entretanto, segundos antes de abrir a boca, é surpreendido com a volta da energia no
apartamento: as velas, a penumbra eram inúteis.
Foi interrompido por Belo, que disse:
“E aí, onde é que paramos no nosso episódio?”
No olhar de Paulo era possível ver como ele estava grato pelo fato do amigo ter
sugerido que continuassem a ver a série ao invés de realizar uma conversa inútil sobre
algo tão sem sentido. Paulo não queria tocar em seus medos. Tampouco seu
companheiro.
E tal acontecimento foi enterrado à sete palmos do chão, foi jogado debaixo do tapete,
deixado em um canto, em um baú, foi trancado em um cacifo de onde nunca mais
sairia.
No transcorrer dos dias e dos meses, nenhum dos dois ousava se pronunciar sobre o
acontecido. Ambos sentiam um medo danado de interpretar o que o destino dizia
sobre eles. Sentiam medo até de duvidar do acontecido.
No fim das contas, a melhor das hipóteses, é fingir que nada aconteceu.
Ao final do período de um ano, ambos já haviam se esquecido daquela noite de
horrores.
Mais um dia normal no cotidiano normal de Paulo e Belo. Plena segunda feira. Paulo
chegara mais cedo do trabalho. Ainda eram somente três da tarde. Do lado de fora, os
raios de sol banhavam as ruas, causando um ressecamento tênue na garganta de
qualquer um que não carregasse consigo uma garrafa d’água.
Dentro do apartamento, os dois companheiros se refrescam com um ventilador que
vai pra lá e depois pra cá. Lento como a cabeça de Paulo ao desenvolver contas
matemáticas. Maldito imposto de renda.
89
Os Curiosos
Conforme o ventilador gira, o vento que proporciona faz com que a enorme
quantidade de papéis sobre a mesa balance, instável como a lógica matemática de um
linguista. Como as crianças brincando no balanço.
Com a ajuda da calculadora, Paulo devagar vai realizando as contas. Belo tenta
interrompê-lo algumas vezes, sem sucesso. Paulo mantinha a concentração.
Foi quando o sofá decidiu realmente encher o saco. Não parava de dizer que estava
entediado, que queria fazer alguma coisa. Que ao menos Paulo o deixasse ligar
televisão. O tédio estava mortal.
“Cala a boca, Belo!” Paulo virou e gritou. “To tentando trabalhar aqui, porra!”
Enquanto dizia tais palavras, se desajeitou todo e o giro do ventilador fez com os
papéis voassem por toda a sala, e que também se avoasse a concentração Paulo. “Eu
avisei!” disse Belo, jocoso. Irritado e gritando nomes, Paulo juntou toda a papelada
para que pudesse voltar ao seu estado de meditação, para que pudesse cumprir a
obrigação que tinha com o Estado.
Contudo, Paulo acabou enxergando em sua frente um empecilho ainda maior: na
confusão de papéis voando por aí, ele havia deixado cair a caneta com a qual fazia
todas as contas.
Há, nas canetas um fator interessante. Teorias e mais teorias dizem que ela entra
dentro de um portal que a leva para outro universo quando cai no chão. É a única
explicação lógica para o trabalho degradante que é o de encontrar uma caneta quando
a mesma cai no chão. Tendo em vista que nenhum estudo sobre o assunto foi feito,
prefiro eu acreditar nessa hipótese. Por mais absurda que seja, ela não deixa de ser
extremamente legal.
Paulo não encontrava a caneta em lugar algum. E Belo fazia questão de não reportar o
local onde a caneta se encontrava, tal era a sua raiva momentânea.
90
Os Curiosos
“Onde é que caiu?” Paulo pergunta.
“Não sei…”
“Poxa, fala de uma vez.”
“Se você me deixar ligar a televisão…”
Paulo sentiu tanta raiva nesse momento, entretanto, seu dever com o Estado era de
maior importância. Então consentiu.
“Está atrás do armarinho.”
Enquanto o sofá ligava a televisão – sim, ele já havia aprendido a fazer isso – Paulo se
locomovia para perto do armarinho. Era um armário velho, que ganhara da casa da tia
avó quando ela morreu. Ele o usava, agora, para estocar alguns vinhos que nunca
bebia. Se agachou para olhar embaixo do armarinho. A caneta estava muito longe,
não conseguia alcançar. Teria de mover o móvel, por mais impossível que pareça tal
tarefa.
Com os braços e com a força, ao som de um filme ridiculamente dublado, Paulo
moveu o armarinho para frente. Uma surpresa: ele tinha uma infestação.
Atrás do móvel, encontrava-se um emaranhado de teias de aranhas, e aranhas para
todos os lados. Eram muitas! Corpos de inseto por todo o lugar. A bagunça era tanta,
a sujeira era tanta que Paulo não conseguia enxergar a caneta que pouco antes vira. A
situação era grotesca. As aranhas pareciam o encarar, como que pegas no flagrante,
como a criança ao ser pega roubando doces do armário. E eram tantas! Meu Deus!
Sem pensar duas vezes, Paulo correu até o banheiro a procura de inseticida. Estava
descontrolado, derrubando todas as outras loções no caminho. Voltou à infestação,
colocou a camiseta sobre o nariz e espirrou o inseticida como a polícia espirra spray
de pimenta. Com vontade.
91
Os Curiosos
Ao fazer isso, que surpresa!, um mar de aranhas saiu correndo e tomou conta do chão.
Era um exército de aranhas, incontáveis. O azulejo branco do chão, nos lugares por
onde o exército se locomovia, ficava preto de patas e mais patas e olhos e mais olhos.
Apertando o spray, Paulo as perseguiu, segurando algumas no caminho. Para sua
decepção, o exército de aranhas começou a se dirigir em direção à Belo e em questão
de segundos, elas estava adentrando as costuras do estofado, que não pode fazer nada
senão gritar.
Em alguns instantes Belo havia sido tomado pelas aranhas. O sofá dizia ao amigo que
podia sentir algumas delas caminhando dentro dele e, passados alguns minutos, não
dizia. Estava morto. Paulo, impotente, assistiu a cena toda sem saber o que fazer.
Lágrimas lhe subiam os olhos.
E agora? O que fazer? Perdera o amigo e perdera o sofá!
Desconcertado, perdido, sem rumo, Paulo desceu até a portaria e falou com Honório,
o porteiro. O porteiro ficou sem entender direito a situação, mas disse que já havia
visto casos parecidos na comunidade onde vivia, e que a única solução que
encontraram foi a de queimar o sofá. Não havia o que fazer.
Com ajuda de Honório, Paulo, então, desceu o sofá do oitavo andar até o térreo. Com
muito cuidado e com medo das aranhas, os dois levaram o sofá até um depósito ilegal
de lixo, de entulho, em um terreno baldio na esquina.
“O sinhô, vai queimá, não vai?
“Mas é claro que sim, Honório, por que não queimaria?”
“Faz bem então. Não dá pra deixar esse ninho de aranha solto por aí. Elas pode entra
na casa de alguém, de apica uma criança.”
“Eu sei.”
92
Os Curiosos
“A coisa pode ficar séria. Aranha marrom mata! Eu mesmo já vi morrere de picada
desse bicho.”
“Eu sei, Honório.”
“Se sabe, por que é que não queimô ainda?!”
Silêncio. Paulo, por detrás das grossas lentes, encara Honório, tentando inutilmente
entender o que é que estava acontecendo.
“Se o sinhô quiser, eu posso fazer procê.”
“Não…” disse Paulo, “não se preocupe.”
Com passos lentos, Paulo se aproximou no cadáver cheio de aranhas do amigo. Era
um sofá que nunca mais iria falar. Uma parte dele mesmo que se calava. Com
cuidado, Paulo despejou uma garrafa de álcool sobre o tecido azul do companheiro e,
com lágrimas nos olhos, acendeu um pedaço de jornal que carregava consigo. A
chama queimava a página de classificados.
Ao jogar o jornal em chamas sobre o corpo do amigo, uma bola de fogo explodiu.
Parte do álcool havia evaporado devido ao tempo quente do dia. De qualquer maneira,
ninguém saiu ferido. Por trás de sua face marginalizada, Honório julgava Paulo como
sendo maluco. E por trás de seus painéis falhos, Paulo se perguntava se seria melhor
comprar um sofá novo ou começar a sair mais de casa.
93
Os Curiosos
O Feitiço de Anna
O indiscutível: toda cidade grande apresenta uma infinidade de lugares. Parques,
shoppings, praças, ruas movimentadas, parques de diversão, teatros, cinemas, escolas,
faculdades, bares, restaurantes, salões de festas, lanchonetes, livrarias, bibliotecas,
museus, galerias, igrejas, santuários, enfim.
As cidades grandes têm tantos lugares, mas tantos lugares, que muitas vezes é preciso
que um livro seja escrito para os turistas saberem quais lugares são melhores do que
outros, quais são mais atrativos e quais têm o melhor preço.
Também é fato que toda cidade tem seus moradores, seus cidadãos. Alguns mais
“válidos” do que outros, pois podem se locomover sozinhos, trabalham e pagam
impostos. Outros, não tão “válidos”, precisam do acompanhamento dos pais, pois são
muito novos, ou precisam do acompanhamento dos filhos, pois são muito velhos. O
fato é que todas as pessoas “válidas” podem interagir com os lugares da cidade sem a
necessidade de alguém os acompanhando. Já os “inválidos”, as crianças e os muito
idosos – pois que também existem muitos idosos que não são nem um pouco
“inválidos” – precisam de acompanhamento.
E o que acontece quando não existe alguém que os acompanhe?
Bem, as cidades grandes são espertas, pensam em soluções inteligentes para os
problemas que têm. Quando as crianças e os idosos não têm quem por eles procure,
seja por falta de tempo ou por uma ausência dolorosa, eles, os “inválidos”, são
encaminhados para lugares específicos que, devido aos tristes e febris tons que
apresentam, dificilmente – alguns diriam que é até impossível - são tão visitados
94
Os Curiosos
quanto os lugares de livros turísticos. Ou então, melhor dizendo, dificilmente são
sequer visitados.
Tratam-se dos orfanatos e dos asilos. Os primeiros servem de educandário para a
formação de futuros cidadãos “válidos” que terão plena mobilidade. Os segundos,
servem para aqueles eu um dia usufruíram do ébrio prazer de contornar as ruas com
passos bêbados, de sentar-se em um ônibus com a plena consciência de que é possível
ser independente; servem para que terminem a vida engaiolados e para que, por fim,
morram. São lugares dificilmente visitados. Tanto pela tristeza de seus umbrais,
quanto pela triste apelo que dão aos que visitam. Quem visita um orfanato sente culpa
por todas as crianças sem pais. Quem visita um asilo sente medo de estar observando
o próprio futuro.
Entretanto, o que poucos cidadãos sabem, é que apesar de se tratar de lugares tristes e
medonhos, são esses lugares, os lugares que apresentam a maior quantidade de
mágica por metro quadrado. Mais mágicos que shows de mágica, mais mágicos do
que comida de vó, que um lava louças, mais mágico que algodão doce, que a internet;
olha, são lugares tão mágicos quanto às páginas de um livro e quase tão mágicos
quanto um primeiro beijo.
Quarta-feira
“O baile vai ser no sábado.” Estão todos muito ansiosos. Um grupo de jovens da
faculdade de Medicina vai promover um baile com direito à música ao vivo e tudo
mais. Além de quitutes preparados especialmente para a dieta dos velhinhos. “Pena
que não teremos álcool!”, dizia Lia em voz alta, extremamente empolgada com o
grande acontecimento de sábado. Tão empolgada que cochichava com todas as outras
companheiras e não parava um segundo! Seu entusiasmo parecia ignorar o próprio
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Os Curiosos
corpo envelhecido e as níveas madeixas de sua cabeça, fazendo com que, por muitas
vezes, se esforçasse demais.
E não era por pouco! Um baile era um acontecimento! Principalmente em um lugar
em quase nunca acontece nada. Somente vez ou outra um campeonato de truco aqui,
um concurso de bordados ali, tudo uma verdadeira chatice. Ao menos era o que Lia
pensava. Ao contrário da irmã, Léa, que, além de se empolgar com esses concursos
mirabolantes, ainda fazia questão de participar dos comitês organizadores e de, muitas
vezes, fazer o papel de juíza.
Fazia anos que as paredes velhas daquele asilo não viam tamanha empolgação de seus
moradores. Era como se, de repente, todos os filhos de todas as pessoas ali alojadas,
houvessem decidido ligar para dizer que estavam com saudades e que no sábado iriam
fazer uma visita. Muitas pessoas lá foram internadas e saíram depois de um tempo
sem ver algo do tipo.
De longe, Anna observava.
Quando a notícia foi dada, quando tudo estava acertado com os estudantes de
medicina, não faltou quem ficasse empolgado. Naturalmente, não faltou quem com
veemência extrema se opusesse.
“Não importa o quão boa uma proposta pareça, sempre vai haver alguém que não
goste. Alguém pra ser do contra.” Dizia Rita às outras amigas em uma roda. Rita
havia recentemente pintado os cabelos de vermelho: um luxo que lhe foi permitido
depois de muita insistência. Embora as despesas do asilo não bancassem tamanho
luxo, ela era das poucas pessoas que tinha filhos que a visitavam. Estava ali pois o
Parkinson aumentara e, apesar de terem dinheiro para comprar tinta para o cabelo, a
família não podia dar-se o luxo de ter uma enfermeira em casa. Rita concordou em ir
para o asilo contanto que recebesse visitas com constância, ou que ao menos
96
Os Curiosos
recebesse ligações, condição que seus filhos cumpriam com prazer, para inveja boa
das companheiras. Sentia falta da época em que era jovem, dos tempos em que
conseguia carregar a bandeira do feminismo sem medo de pegar um resfriado. Para
seu pesar, tal tempo se fora.
“Eu estou é superexcitada com esse negócio!” retrucou Léa que, como dito
anteriormente, era irmã de Lia. As duas foram criadas juntas em uma casa do interior.
Lia se casou e se mudou para a cidade grande. Léa, pelo contrário, não conseguiu
arranjar um marido, mas isso não a impediu de se mudar para a cidade grande
também. Desde sempre fora uma espécie de chaveiro da irmã, se mudando sempre
que a outra se mudava, morando junto e fazendo as graças de estar presente. As duas
cresceram juntas e cuidaram dos filhos de Lia juntas sem nunca se separar. Nem
mesmo quando os filhos de Lia escolheram o Lar para Idosos Nossa Senhora de
Fátima. Apesar de nunca receberem visitas, as duas ainda tinham a companhia uma da
outra, o que era um conforto maior do que muitas das companheiras podiam
conquistar. “Não sei como podem ser contra!”
“É fácil ser contra.” Respondeu Dora, por detrás do crochê que segurava em mãos.
Apesar do nome, Dora dificilmente se aventurava. Era uma senhora caseira e não se
lembra de quando é que começou a ser desse jeito, só que sempre se sentira assim.
Por muitos e muitos anos fora casada com Teodoro, de quem guarda lembranças e
sempre se refere quando pode. Os dois viveram em um bairro distante, no subúrbio da
cidade. Ajudaram a iniciar uma vizinhança que hoje está tomada por prédios e lotes
residências, mas que na época não passavam de chácaras e mais chácaras. Também
eram muito assíduos na igreja da vizinhança, fazendo com que alguns vizinhos mal
intencionados, durante as conversas de lavadeira, que se davam com mais frequência
que chuvas na Amazônia, dissessem que eles não saíam debaixo da saia do padre. O
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Os Curiosos
que não deixava de ser verdade. “Pense, se houver muito barulho, se durar até muito
tarde… Na vizinhança em que morávamos, eu e Teodoro passávamos por isso o
tempo todo… jovens sem juízo algum fazendo barulho sem parar. Além do mais, uma
festa dessas pode assustar os outros pacientes da clínica…”
“Por que é que você insiste em chamar isso daqui de clínica, Dora?!” interrompeu
Lia.
“Por que isso daqui é uma clínica! Não adianta você ignorar a realidade!”
“Por algum acaso está escrito clínica na placa ali na frente? Então eu duvido que isso
aqui seja uma clínica. É só um lar pra idosos.”
“Okay, meninas, isso não é necessário.” Interrompeu Rita.
“É necessário sim!… Clínica… humpf!”
“De qualquer maneira” continuou por debaixo de seus ruivos cabelos. “o fato é que
tem gente que não gosta de festas. A gente deveria respeitar isso.”
“É exatamente isso que eu estava tentando dizer!” interviu Dora. “A gente quer fazer
festa, quer remexer os esqueletos, tudo bem, mas a gente tem que pensar no outro
também, pelo amor de Deus. Não dá pra essa farra ir até tarde.”
“Uma velhota que nem você não aguentaria até as dez e meia!” retrucou Lia.
“O que é que você disse?”
“Olha, além de raquítica é surda!”
E se puseram todas a rir. Lia ria de verdade, um riso sincero, embora maldoso. Ao
mesmo tempo que tinha a intenção de dizer as palavras que dizia, também não tinha,
pois sabia que tal ato era como se olhar no espelho.
Dora, afundada no meio do crucifixo que carregava no peito, somente pensava: “Pai,
perdoai-vos! Eles não sabem o que fazem!”
98
Os Curiosos
“Não é porque a gente tá velha que não pode aproveitar!” retrucou Léa. “E se acabar
indo até mais tarde? Qual o problema? Primeiro que eu duvido que a gente vá
aguentar até tão tarde.”
“Sim minha gente! Eu mesma precisei de ajuda pra ir no banheiro semana passada!”
Disse Lia instigando o riso novamente. “E não é por isso que vou me sentir mal nem
deixar de usufruir uma festa de arromba ué!” As outras concordaram dizendo, cada
uma no próprio tempo, que “sim”, que “a razão estava com ela”. Todas menos Dora,
que continuava com o rosto meio emburrado pensando no que é que Teodoro diria se
conhecesse a maluquice dessa mulher. “E aí, já sabem com que é que vocês vão?”
“Eu não faço ideia!” Respondeu Rita.
“Pois eu já faço. Vou com o Pedro, do andar de cima.”
“O Pedro do andar de cima!? Mas ele não tem nada a ver com você, menina!”
“Como assim.”
“Olha, querida, você toda doce e meiga e ele, bem, ele meio que é um cavalo!”
“É bom que seja mesmo um!”
“Ah, sua safada!” Acusou a irmã, rindo.
“Isso aí é só da boca pra fora.” Retrucou Dora.
“Falou a senhorita redundância, redundância!”
“Falar a palavra duas vezes não torna a frase menos mentirosa.”
“Tanto faz!” Respondia Lia com um sorriso no rosto. As duas eram petulantes como
duas crianças brigando para saber quem é a melhor. “Mas quem deve ter alguma
experiência com cavalos é a Gení não é mesmo?” E todas riram novamente. “Fala,
menina, ficou quieta aí esse tempo todo por quê?!”
Gení não estava ouvindo as companheiras. Estava tão vidrada na palavra cruzada que
apoiava na coxa que parecia estar em outro planeta, imersa no quebra cabeça. Por
99
Os Curiosos
medo do futuro, ela decidiu seguir à risca as instruções do Dr. Neurologista cujo
nome ela já não mais se lembra para auxilia-la com o tratamento que combatia o mal
de Alzheimer.
“Gení!” Gritou Lia, acordando-a do sono junto com algumas outras pessoas presentes
na sala, e tomando uma advertência do grupo de enfermeiras.
“O que é?! Não vê que eu estou concentrada aqui, caramba!”
“Calma, meu amor. É só que a gente estava falando de homens cavalos e imaginamos
que, né, devido ao seu passado, você saiba nos contar sobre eles!”
“Jesus Cristo!” vociferou Dora para si mesma.
“O que é que foi, Dora!? Você quer saber também…”
“Olha, meninas” interrompeu Gení “não é só porque eu fui mulher da vida que eu sei
dessas coisas.”
“Você tá dizendo que nunca viu um cavalão, é?”
“Categoricamente eu não posso dizer que nunca vi.” E todas, menos Dora, caíram na
gargalhada.
“E como é que era?!” Indagou Lia, risonha.
“Eu não quero saber!” Respondeu Dora.
“Quer sim, sua velhaca! Senta aí e escuta.”
“E eu também cansei de ser chamada de velhaca por você, Lia!” Dora agora estava de
pé, de braços cruzados. Sua feição era séria, ela não estava para brincadeiras. Os
olhos se enchiam d’água. Estava prestes a chorar.
“Que é que deu em você, mulher?! Deixa a Gení contar a história.”
Depois de passar alguns segundos de braços cruzados, Dora voltou a sentar-se, como
uma criança depois de ser reprimida. Já sentada, ela começou a enxugar o canto dos
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Os Curiosos
olhos. Estava magoada e pensando em como Teodoro fazia falta. Mais alguns
segundos de silêncio. Estavam dando a ela os momentos que precisava.
“Pode continuar” sugeriu Lia, algum tempo depois.
“Não” respondeu Gení “Tudo bem pra você a gente tocar nesse assunto, Dora?”,
indagou, preocupada com o bem estar da companheira.
“Não…” ela respondeu com dificuldade, com sua voz trêmula.
“Tudo bem então. Eu deixo o assunto morrer aqui.”
Um clima de silêncio se instalou na sala. Toda a jovialidade do grupo de amigas havia
morrido no instante em que Dora ameaçou chorar.
“Você tem razão, Rita” completou Lia em voz alta “sempre tem um pra estragar a
festa!”
Algumas enfermeiras apareceram para conferir se Dora estava se sentindo bem. Não
foi necessária nenhuma intervenção. Depois de alguns minutos mergulhadas naquele
silêncio estranho, cada uma seguiu o próprio rumo. Diziam ter afazeres, cada uma
delas. Não eram tanto afazeres, pois não faziam muita coisa. Era só uma questão de
tempo até arranjarem outro chá como desculpa e se reunirem todas para especular
sobre o futuro e relembrar o passado.
Quinta-feira
O baile seria dali dois dias. Chovia, portanto todos estavam do lado de dentro,
esperando que a água que insistia em cair do céu em ritmo torrencial desistisse de sua
empreitada até sábado. Não porque corressem o risco de ter a festa cancelada por
causa de equipamentos molhados, até porque o Lar para Idosos não possuía muitas
áreas abertas com exceção do jardim externo, mas porque pé direito alto do salão
principal, que antigamente costumava ser uma igreja, era muito alto e não possuía
101
Os Curiosos
laje, fazendo com que quando chovesse, principalmente chuvas torrenciais como a
que caía naquele exato instante, um barulho alto, horrível e constante se fizesse
presente de forma insistente. Fazia mais barulho dentro do asilo do que fora dele.
Seus moradores duvidavam que o sistema mais eficaz de som pudesse vencer o
barulho das gotas caindo no telhado. Por tal razão a preocupação se alastrava pelos
corredores.
Em cada canto, os que conseguiam, cochichavam sobre a tremenda possibilidade de
terem o baile cancelado caso tal chuva não parasse. Alguns até desejavam que isso
acontecesse, mas não eram a maioria. Embora uma boa parte de seus moradores
permanecesse imóvel, outra parte se inquietava sem sossego. Era o caso do grupo de
amigas, Lia, Léa, Dora, Rita e Gení. A cada cinco minutos de conversação a conversa
era interrompida por uma lembrança dada por um trovão inusitado, as alarmando
sobre a horrível possibilidade do cancelamento do baile. Isso não era nada bom.
De longe, Anna se preocupava. Atrás de seu uniforme branco, ela perambulava os
corredores ouvindo as conversações e inquietações dos idosos. Era quase como se o
asilo fosse uma pessoa viva, com suas partes excitantes, e outras tanto quanto mortas,
com suas felicidades e êxitos, e com seus tristes percalços e constatações; com seu
lado vivo que andava e concluía, que se excitava e tentava ao máximo ser
independente, e ao mesmo tempo com seu lado sombrio, ébrio com o tempo que se
passou, apodrecendo devagar nas sombras dos corredores, muitas vezes sem dar o
menor sinal de consciência. Algumas partes daquele complexo mental do asilo se
concentravam na infância e era como se nela vivessem novamente, imersos em um
mundo de ilusão, fruto de uma triste falha na organização neuro-sistêmica.
Era a própria representação física da mente humana.
102
Os Curiosos
E representando o lado consciente, pessimista e pouco empolgado que todo ser
possui, representando aquele estado duvidoso, que dificilmente se agrada com
qualquer coisa que seja, um lado emburrado e – e talvez seja essa a melhor palavra
para definir tal estado – ranzinza, estava o nosso grupo de quatro ou cinco senhores de
idade. Mas por que quatro ou cinco? Digo assim, pois que um deles raramente se
pronunciava, se fazendo ausente na maior parte dos debates. Se abria a boca, tal ser
calvo e bigodudo o fazia somente reproduzindo os ditados populares. Quando o
perguntaram o porquê disso, ele disse que não sabia. Disse que toda a família era
quieta daquele jeito, e que provavelmente ele herdara isso do pai. Ele parecia nunca
estar dando ouvidos ao que os outros estavam dizendo, mas sempre quebrava tal
impressão ao inserir uma frase de efeito na hora certa, dando ao outros a entender que,
apesar de silencioso, era um homem muito, muito atento. E por ser silencioso de tal
maneira, todos desconheciam seu passado. Não contava a história de sua vida por
mais que pedissem várias vezes. Tudo que sabiam, era que seu nome era Pedro.
Alguns dos amigos, uns mais otimistas do que outros, já haviam levantado algumas
hipóteses. Paulo, por exemplo, levantava a hipótese de que talvez ele fosse o filho
perdido do mestre José Amaro, do romance Fogo Morto, de José Lins do Rego, ou
que então que fizesse parte da linhagem direta de Elizabeth e Fitzwilliam Darcy.
Outros, um pouco menos otimistas, especulavam a possibilidade de Pedro na verdade
ser um ex-presidiário com vergonha do próprio passado e com medo de sofrer
represálias, como era o caso de Carlos.
E embora fossem muito criativas, não passavam disso: meras especulações. Ninguém
saberia ao certo qual era o passado de Pedro. A única certeza que se podia ter sobre
ele é que levaria o próprio passado consigo para o túmulo, para ser esquecido em uma
cova fria, para se perder com o transcorrer do tempo.
103
Os Curiosos
Dentro da roda de amigos, Pedro escuta.
Eles conversavam sobre futebol, relembrando os antigos tempos em que os árbitros
não eram todos comprados, em que se jogava pela camisa e não pela bufunfa que se
iria receber no fim do mês. Os áureos tempos da seleção de setenta e a decepção das
copas dos anos oitenta. Falavam de como hoje não se via garra no campo, de como os
tempos mudaram, de como os jogadores deixaram de amar a própria profissão para se
vender à marcas de congelado. Não somente conversavam, como principalmente
lamentavam.
Eis que passa pelo grupo de amigos Dora. Dito a observa de longe, e podia jurar que
ela estava andando de um jeitinho especial só pra ele. Instigado, ele começa:
“E aí, já sabem quem vocês vão convidar para o baile?” Indagou em um tom sincero.
Dito vivera boa parte da vida como açougueiro. Tinha a própria casa de carnes e
mantinha a casa nos eixos de tal forma. Uma família com esposa e dois filhos. No
final da década de oitenta, tendo engravidado, a esposa faleceu durante o parto
complicado levando a criança consigo. Desde então, foram ele e os dois filhos. Como
vivia no açougue não tinha tempo para as crianças, o que teve como consequência a
queda de uma delas no mundo das drogas. Mesmo com muita insistência, ele e o mais
novo, não conseguiram convencer o mais velho a se desvencilhar das drogas. Ele
acabou entrando para a criminalidade e sendo preso e na cadeia adquiriu HIV depois
compartilhar uma seringa de cocaína injetável. Morreu na virada do século. Enquanto
isso, o açougue foi para o buraco por causa do congelamento de poupanças do
governo Collor. Dito não tinha mais fonte de renda e foi morar com o filho mais
novo, que havia arranjado um emprego na portaria de um prédio. Mal podendo
sustentar a família com três filhos e mulher em casa, o mais novo foi obrigado a
104
Os Curiosos
expulsar o pai de casa. Dito conseguiu se virar por um tempo sozinho, mas o pulmão
comprometido por anos de uso incontrolado de cigarros o obrigou a procurar
assistência médica. Sendo aposentado por invalidez, com o dinheiro da aposentadoria
mal dando para se alimentar, e a necessidade de remédios aumentado a cada dia, ele
não teve para onde ir. Com ajuda da Pastoral da Pessoa Idosa, ele foi encaminhado até
o Lar para Idosos Nossa Senhora de Fátima, onde estava tendo entusiasmada conversa
sobre o baile. Apesar de tudo que passou na vida, Dito nunca deixou-se abater. Era
uma pessoa, acima de tudo, feliz. “Eu estou pensando em chamar a Dora.”
“A Dora?!” indagou Juca. Juca havia sido motorista de ônibus a maior parte da vida.
Fora apaixonado por uma prostituta por muitos anos, sustentando a mulher até não
poder mais. Não tinha família, e não se lembrava se algum dia teve. Não porque não
tentasse, mas por mais força que fizesse para tentar voltar à infância, ele falhava de
forma gritante. Tal parte de sua vida havia simplesmente desaparecido nos cacifos de
sua mente. O processo de envelhecimento foi triste. Sozinho, ele viu todos os amigos
da companhia falecendo, um de cada vez. Quando a saúde acabou piorando, ele
decidiu se mudar para um Lar de Idosos. “Mas ela é a maior carola!”
“Pode até ser, é só que ela me chama atenção.”
“Eu não sei não. Ainda acho que ela deve ser um saco.”
“Meu querido, tendo duas pernas e vestindo saia pode até ter saco que eu já estou é
olhando mesmo!” Disse, abrindo o riso no grupo.
“E você ia fazer o que com duas pernas dentro de uma saia, rapaz?” indagou Carlos.
Carlos havia passado a vida toda fazendo carreira na Polícia Militar. Depois de servir
o exército, se apaixonou por uma menina e acabou sendo levado à deixar a carreira de
militar. Casou-se com ela, e como não queria deixar o universo do serviço, entrou
para a polícia militar no final de década de cinquenta. Na década de sessenta, ajudou a
105
Os Curiosos
reprimir algumas manifestações, sempre obedecendo ordens, é claro. A década de
setenta e a primeira metade da década de oitenta foram repletas de um sentimento de
prosperidade. Ele era um exímio apoiador da revolução militar, citando vantagens e
mais vantagens de se ter um governo autoritário ao invés de um democrático. A
década de noventa, porém, foi marcada por decepções. Além de ver o casamento da
filha ruindo, o que para ele foi extremamente vergonhoso, pois ainda carregava
consigo os valores santos do matrimônio, viu um país despreparado “cagando nas
urnas”, como as próprias palavras diziam. A esposa morreu de câncer na tireoide,
depois de ficar enorme, e a morte dela trouxe a sua desgraça financeira. Não tendo
mais como se sustentar, pois os remédios estavam ficando muito caros e a ausência da
esposa – que ganhava mais dinheiro do que ele – o fizeram falir alguns meses antes de
começar a valer nas farmácias brasileiras o plano genérico, que salvaria sua vida
financeira. Era rancoroso com tudo e com todos, amargurado pelos desprazeres que a
vida lhe proporcionara. “Não consegue nem espirrar sem ter que ter alguém pra te
limpar o nariz e está aí, todo cheio de marra achando que está com a bola toda!”
“Tudo bem, Carlinhos, já que você insiste pode ficar com a Dora. Eu me contento
com a Rita que, por sinal, é muito mais docinha.”
Carlos grunhiu. Todos os outros riram, sendo interrompidos pelo som alto e
imponente de um trovão. Todos falavam o mais alto que podiam para que a chuva não
atrapalhasse a compreensão das respectivas falas.
“E você Paulo? Quem é que você acha que vai chamar?”
“Bem, belos…” Disse, por detrás da barba gigantesca e dos óculos fundo de garrafa.
Ele estava mais magro do que costumava ser. Ele, que sempre fora mais
rechonchudinho, com as bochechas bem grandes escondidas atrás da barba, agora
tinha as marcas da idade no rosto, a bochecha caída e saliente, a testa marcada pelas
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Os Curiosos
rugas e os cabelos brancos descendo até a altura dos ombros. Na juventude, crescido
em Campinas, sempre se interessou por literatura, sendo um grande fã das poesias
épicas do tempo grego e romano. Também era apaixonado por Shakespeare, mas
tinha uma queda mais afetiva por Goethe e o Fausto. Fez letras na maior faculdade do
país, se especializando em linguística, área do estudo na qual fez muitas
contribuições. Viveu a vida no mundo acadêmico, não se dando muito tempo para
amores e, em consequência, família. Não se lembrava como havia ido parar no Lar de
Idosos. Havia um vazio em sua memória nesse sentido, como se parte de sua mente
quisesse reprimir alguma lembrança antiga ou alucinação passada. Ainda recebia a
visita de alguns alunos de letras interessados em linguística que sabiam da sua estadia
ali. Normalmente via o rosto dessas pessoas tomando uma feição triste, desapontadas
com o rumo que as coisas tomaram. Ele simplesmente evitava tocar no assunto,
evitava pensar nele inclusive. As coisas estavam boas do jeito que estavam. Não havia
razão para se deprimir. A única coisa que o frustrava era o fato de não poder escrever,
pois os livros ele arranjava com certa facilidade, por ser amigo das enfermeiras. “Eu
não diria que por ela estou apaixonado como o jovem Werther, do livro Sofrimentos,
de Goethe, mas sinto somente uma pequena excitação ao falar de seu jeito de ser:
trata-se, belos, da cara Lia.”
“Vocês não têm nada a ver um com o outro!”, retrucou Juca.
“Sim, mas vejam bem, não é pelo caráter meramente físico que esse interesse
acontece. Tenho vontade de descobrir o que a faz ser esse ser tão bem humorado que
passa por meu quarto todos os dias, tirando sarro das minhas chinelas.”
“Gosto é gosto, né, rapaz.” E outro trovão ressoou.
“Não poderia dizer algo mais sensato.” Disse, dando um gole no café que bebia. “E
você, belo, vai convidar a quem para o acompanhar?”
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Os Curiosos
“Bem…” ponderou Juca. “ quero confessar que a razão eu ainda não sei. Acho que é
porque ela me lembra alguém que eu conheci há muitos anos…”
“Quem é, porra!?” interrompeu Dito.
“A Gení” Disse, seguido de um longo Ah! Vindo do grupo. “O que é que foi? É como
eu disse, eu não sei explicar.”
“Não tem problemas, belo, essas coisas não se explicam”, interveio Paulo.
“Você quer parar de chamar as pessoas de belo?!” vociferou Carlos.
“Não entendo por quê razão você gostaria que eu parasse…”
“É irritante! Você não sabe o nome das pessoas não? Eu sou o Carlos, aquele é o Dito
e aquele outro é o Juca! E é claro! Não podemos nos esquecer do Pedro!”
“Tudo bem…” respondeu tímido “se não quer que eu use esse pronome eu não uso
mais, belo… opa!” Ele sinceramente não quisera repetir o erro, mas não conseguiu.
Estava tão acostumado à usar “belo” como pronome que não se percebia fazendo uso
de tal forma de linguagem. Corou com sinceridade. E desculpou-se, em submissão.
E todos riram, menos Carlos, que grunhiu mais uma vez. E bem baixinho, num tom
de voz quase inaudível devido ao som forte da chuva torrencial que caía sem descanso
no telhado, foi possível ouvir as sábias palavras que saíam da boca de Pedro: “Quando
um não quer, dois não brigam.”
Sexta-feira
O baile será amanhã. Para o aumento da preocupação geral do Lar de Idosos, a chuva
do dia anterior ainda não havia cessado, e dava a impressão de que não cessaria tão
cedo. Ao menos os raios deixaram de cair e as trovoadas tornaram-se menos
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Os Curiosos
frequentes. Isso servia de alento para muitas das preocupações, como uma desculpa,
uma justificativa estofada para que a esperança voltasse a brotar.
Anna chegou mais cedo sexta-feira. Em condições normais, deveria chegar somente
depois do almoço, mas a filha gripada de Célia, uma das outras enfermeiras,
precisando de imediatos cuidados, fez com que Anna fosse obrigada a chegar para o
almoço. Ela cobriu a colega com o bom humor de sempre, sem deixar nunca de ouvir
o que àqueles da melhor idade tinham a dizer, por mais irrelevante ou maluco que
fosse. Ela havia nascido para a geriatria.
O almoço foi normal. Alguns comeram a sopa com carnes e legumes, outros, menos
aptos à tal feitura, foram agraciados com um “delicioso” caneco de papa de milho.
Alguns outros não conseguiam comer sozinhos e necessitavam da ajuda das
enfermeiras, como bebês que ainda não aprenderam a comer. Eram como aquele
personagem de um conto de Fitzgerald. Ficavam mais jovens a cada dia até voltarem
a ser bebês. Pacientemente, Anna e as outras funcionarias deram à eles de comer. O
almoço que se iniciara ao meio dia para todos só teve seu fim às duas e meia para as
enfermeiras, que depois de tanto trabalharem, agradeceram todas as deidades
existentes pela tarefa de lavar toda aquele louça não ser à elas incumbida.
Anna voltava do banheiro quando foi interrompida por Lia, em seu caminho.
“Sim, Dona Lia?” indagou em um tom que parecia tão verdadeiramente preocupado
que chegava, em certos momentos, a ser irritante.
“Por favor, sem o ‘Dona’, só Lia por favor.” Anna assentiu com a cabeça “Não seria o
caso de precisarmos de sua ajuda, mas acontece que nesse caso ela é estritamente
necessária.” Lia silenciou-se por alguns instantes, e percebendo a atenção vinda dos
olhos negros de Anna, prosseguiu “Acontece que temos um problema. Bem… não
exatamente um problema, mas uma necessidade…”
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Os Curiosos
“Nós quem, Dona… desculpe, Lia?”
“Bem… eu e minhas amigas. A Rita, a Dora, etc…. você sabe.”
“E que problema seria esse?” indagou, retomando os passos e agora com os olhos
centrados no caminho.”
“É que nós precisamos que a Senhora faça uma coisa para nós. Uma coisa, bem…
digamos assim… não muito ética.” Anna voltou a interromper a caminhada. Estava
interessada, mas ao mesmo tempo preocupada.
“E o que seria isso que vocês precisam que eu faça? – E por favor, não há necessidade
de me chamar por Senhora. Eu prefiro ‘você’.” E sorriu.
“Tudo bem. Isso é difícil de explicar e eu vou parecer meio louca, mas mesmo assim:
precisamos que você coloque algo no almoço de alguns rapazes amanhã…”
“Você está maluca?!” retrucou retomando o passo. “Não posso por nada na comida de
ninguém! Além de antiético é imoral.”
“Como eu disse!” interrompeu, segurando Anna com os braços. “É algo antiético, mas
eu garanto que não é nada demais. Não é nada pra machucar ninguém, pelo menos…”
seus olhos pediam que Anna a ouvisse.
“Mesmo assim. E se algum deles for alérgico à qualquer que seja essa substância que
vocês querem colocar na comida deles? Como é que fica?”
“Eu garanto que nada demais vai acontecer.”
“Não, Lia… já disse que não vou te ajudar dessa vez.” Disse, continuando o passo e
deixando-a para trás. No meio do caminho, ela parou, como se tivesse uma pedra a
interrompendo, ou como se houvesse se lembrado de algo importante. Se virando,
retomou. “Só três perguntas: quem, o quê e por quê?” Seu tom era severo, como o de
uma diretora. Enquanto dizia isso se aproximava do corpo encolhido e envelhecido de
Lia.
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Os Curiosos
“Quem… é só uma lista com cinco nomes, nada demais. O que… bem… é
complicado explicar e duvido que a Senhora vá acreditar em mim.”
“Me faça de teste.” Provocou.
“Bem… é uma poção do amor.” Disse na espera de que Anna finalmente a entendesse
e concordasse com o plano todo, ou que então caísse na gargalhada. Mas Anna não
mudou a feição do rosto. Continuou com o semblante sério e inexpressivo, e pediu
para que prosseguisse com um movimento leve da cabeça. “E o motivo? Bem… o
motivo está aí, não é óbvio. O motivo é sábado.” E cochichou, como se não quisesse
que as paredes à escutassem. “É que não recebemos nenhum convite…” e se afastou,
com um sorriso infantil no rosto.
Anna permaneceu em silêncio por alguns instantes, pensando nas cartas que tinha na
manga e como as iria utilizar. Depois de alguns segundos, questionou:
“E o que exatamente vai nessa poção do amor?”
“Bem… digamos que é algo que todo mundo, sem excreção já bebeu, com algumas
pitadas de canela e menta, pois esse é o gosto do amor, não é mesmo. O resto são
palavras mágicas e feitiços que aprendemos ao longo da vida. O segredo de todo o
feitiço está nas palavras.”
“Interessante… fiquei instigada: por que é que não vai pimenta?”
Lia partiu-se em risadas. “Fico lisonjeada com o elogio, entretanto não somos mais
tão jovens como pode ver. A pimenta só nos traria frustrações, se é que me
entende…” disse batendo em Anna com o cotovelo.
Anna riu. “Interessante, mas como pode uma poção funcionar somente com água,
menta e canela?”
“Ah, não se iluda. A menta e a canela são só para dar um gostinho. Como eu disse
antes, o verdadeiro poder dos feitiços está na palavra. Na maneira como a dizemos,
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Os Curiosos
em todo o sentimento que ecoa dentro de seus significados. Todo o poder que uma
palavra carrega não cabe no mundo real. Por isso é que elas tem esse mundo tão único
e infinito só
para elas. Um mundo sem sentido algum, que essa nossa lógica
convencional não consegue entender de jeito nenhum. E o engraçado é que a gente
tenta, e tenta , e tenta e não consegue chegarem lugar algum. As palavras são muito,
muito complicadas. Mas dizer isso é redundante, redundante. Não há no universo
feitiço mais poderoso do que a palavra!”
“Mas como é que você pode manusear a palavra, tirar tudo dela, se nem sabe como
ela funciona? Isso não faz sentido!”
“E não é pra fazer sentido mesmo. Controlar as palavras não é tão difícil quanto você
pensa. Você mesma a controlou várias e várias vezes ao longo de sua vida. Aprendeu
ainda bebê, observando a maneira com que seus pais faziam. A usou agorinha mesmo
para formular uma pergunta. A mente humana é maravilhosa! Ela consegue entender
o funcionamento de coisas que nem tem a capacidade de saber como funciona! Mas,
no fim das contas, não importa se entendemos ou não seu funcionamento. O
importante é que funciona!”
Anna sorriu. Ela não entendia muito bem tudo aquilo que Lia falava. Entretanto, vê-la
tão entusiasmada com alguma coisa a fez sorrir.
“Interessante essa poção do amor.” Disse enquanto voltava a caminhar.
“Isso significa que vai nos ajudar?” perguntou de longe, enquanto era deixada para
trás pelos imponentes passos da enfermeira.
“Não” Ela já era obrigada a falar mais alto, pois a distancia entre as duas aumentava.
Percebendo isso ela parou, virou-se para Lia e a chamou para perto de si. Quando a
velhinha já estava frente a frente, ela concluiu. “Isso significa que eu quero estar com
vocês na hora que forem preparar essa poção. E que só depois disso, depois de ver
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Os Curiosos
como é que vocês fazem essa coisa toda que eu vou decidir se eu coloco eu não ela na
comida dos rapazes.”
E seguiu seu caminho.
Já era tarde da noite quando Lia deixou o quarto que dividia com Léa para ir chamar
Anna, sorrateiramente, até o seu quarto, onde iriam fazer a poção. Ela nunca
percebera o quão sombrio aquele lugar era a noite. Alguns dos quadros pendurados na
parede, pareciam te seguir com os olhos. O chão mal iluminado e escuro parecia uma
imensidão negra e sombria onde era possível cair por toda a eternidade. E o som da
chuva caindo no telhado sem laje transformando todo o asilo na parte de baixo de um
tambor, faziam com que Lia tremesse muito mais do que o seu Parkinson permitiria.
Um clarão iluminou o corredor escuro por alguns instantes, e por alguns instantes Lia
pode ver aquele lugar com que se acostumara. Entretanto o trovão que veio logo em
seguida, alto de potente, e a fez botar a mão no coração e apressar o mais rápido
possível o passo, ofegante.
Anna estava sentada atrás de um balcão, fazendo algumas anotações em alguns
cadernos. Parecia cansada. Os olhos castanhos estavam fundos, e o cabelo havia
perdido boa parte do penteado e do brilho. Já estava ali há muito tempo.
“Anna” sussurrou Lia, a acordando de uma espécie de transe. “Chegou a hora.” E
começou a se aproximar no balcão.
“Só me deixe terminar isso daqui.”
Lia assentiu com a cabeça. Enquanto Anna rabiscava aquele papel em cima da mesa,
Lia olhava para trás, para a escuridão dos corredores. Ela sentia algo estranho, algo
que dificilmente sentiu na vida: medo. Era como se houvesse alguém atrás dela a todo
o momento, com o rosto muito próximo à sua nuca. Essa pessoa horrenda e pavorosa
113
Os Curiosos
ainda fazia questão de levemente soprar contra o pescoço, causando uma vontade
insistente de se olhar para trás.
Não podendo aguentar mais a pressão, Lia agarrou Anna pelo braço e começou a
puxá-la.
“Depois eu te explico” desculpou-se enquanto puxava a manga da enfermeira.
As duas andaram o mais rápido possível de acordo com o ritmo de Lia e, em pouco
tempo, já era possível ver algumas das luzes que saíam de um dos quartos que tinha a
porta abera: o quarto era o de Lia e Léa, e as luzes eram provenientes de velas de sete
dias espalhadas pelo quarto.
As camas e os outros móveis haviam sido empurrados para os cantos, e no centro do
quarto era possível ver um grande caldeirão preto. Era um caldeirão muito, muito
grande. Ele facilmente abrigaria duas ou três pessoas dentro dele.
“Mas… como…”perguntou Anna, surpresa, apontando para o caldeirão.
“Ah… isso daí?! Isso daí é de cobre vitoriano, não se preocupe.”
Isso ainda não respondia a pergunta: como um caldeirão tão grande fora parar dentro
de um quartinho tão pequeno? E melhor!: como é que passara pela porta tão estreita?!
Isso não fazia sentido.
Com o passar do tempo, e enquanto os preparativos eram feitos, Anna começou a
observar o quartinho. Ele já não era muito grande, mas só o fato dos móveis terem
sido empurrados para as paredes já mudava a feição do ambiente. Sentadas nas camas,
as outras senhoras devagar se levantavam.
Dora carregava consigo um saco de sal, e foi despejando-o em volta do caldeirão,
formando um círculo. Enquanto isso, Rita e Léia iam acendendo mais algumas velas.
“Por que velas? Por que não simplesmente acender a luz do quarto” pensou.
114
Os Curiosos
“Minha querida, o nome disso é show business” Rita respondeu, como se tivesse
acabado de ouvir seus pensamentos.
Dora terminou de colocar o sal na entrada de todas as portas e todas as janelas. Por
fim, colocou o saco em cima de uma das camas.
Intrigada, Anna assistia a tudo aquilo, boquiaberta.
Rita terminara de posicionar algumas velas no chão, com espaçamento entre elas para
caber uma pessoa. Haviam cinco espaços no total.
“Tudo bem, querida” advertiu Léa “ agora você só observa, tudo bem?”
Anna fez que sim com a cabeça, como uma criança maravilhada.
As cinco velhinhas se uniram em um círculo ao redor do caldeirão. De mãos dadas
elas começaram a recitar alguma espécie de mantra em uma língua que Anna nunca
ouvira antes. Parecia uma mistura de latim e grego, mas havia algo muito intrigante
na maneira com que era pronunciada. Em alguns momentos, pareciam simples
palavras colocadas ao vento, como numa conversação normal, mas em outros,
pareciam uma música nunca antes escutada.
Conforme as cinco iam cantando a canção, dizendo as ordens mágicas. luzes
começavam a sair do caldeirão. A primeira era de uma cor lilás forte, encheu o quarto
todo. Depois, o caldeirão começou a borbulhar, mesmo não havendo fonte de fogo em
baixo dele. Uma fumaça espeça e verde começou a sair do caldeirão e, por mais que a
Anna parecesse que era tóxica, ela tinha o cheiro gostoso de lustra móveis. A fumaça
então tornou-se vermelha e tinha cheiro de morango. A luz que era emitida pelo
caldeirão era um laranja intenso, quase demoníaco.
Dizendo mais algumas palavras, Dora despejou um pote com o que parecia ser a
menta. Colocou tudo de uma vez, empolgada e levantando os braços logo após, como
se estivesse entretida em uma espécie de dança. Ela realmente estava se empolgando
115
Os Curiosos
com esse papo de fazer feitiços. Era quem Anna menos imaginaria que estaria
envolvida com esse tipo de coisas.
Logo em seguida, Léa começou a quebrar tiras de canela nas mãos trêmulas. Dizendo
mais algumas palavras, ela esfarelou a canela em pau nas mãos. Era como se
houvesse realmente passado por algum tipo de triturador, devido a maneira que era
fino o pó que saía de suas mãos.
Elas continuaram a cantoria por mais alguns minutos, e o show de luzes e de fumaça
se intensificou. A cada segundo era uma cor diferente que tomava conta do quartinho.
O canto das mulheres começou a aumentar, elas estavam chegando no clímax do
feitiço, isso era perceptível até mesmo para os leigos.
Anna estava com medo de que o som alto fosse acordar os outros.
E depois de dizer algumas palavras, elas se aquietaram e abaixaram a cabeça,
repentinamente. Um clarão veio do lado de fora e a sala foi tomada pelo som
estridente de um raio que caíra logo ao lado. Anna se assustou, mas as senhoras
continuavam de cabeça baixa: o raio, ao que parece, era parte do ritual.
Elas permaneceram imóveis por alguns segundos incontáveis. Parecia que estavam
mortas. Todas de pé, de mãos dadas em um círculo de cabeça baixa. O caldeirão não
mais soltava fumaça nem emitia luzes. As velas eram a única coisa que iluminava mal
e porcamente a sala.
Depois de alguns segundos o caldeirão começou a emitir uma luz branca e forte,
como a do sol. Mas somente no centro do caldeirão: era algo dentro da água que
emitia tal luz. Esse algo começou a subir devagar, até sair completamente da água e
flutuar por entre as senhoras, em um balé luminoso. Voava como uma abelha
silenciosa. Depois de pairar por alguns segundos, dirigiu-se à Gení, que o segurou
entre as duas mãos, acabando com a incandescência do que quer que fosse.
116
Os Curiosos
A luz do teto se acendeu, quebrando todo o clima sombrio de antes. A poção estava
pronta. As senhoras retomaram seus lugares e já começavam a arrumar as coisas
quando Gení se aproximou de Anna e a entregou o que segurava. Era um pequeno
frasco com as cinco gotas da poção.
Anna segurou o frasco em mãos, e Rita começou a arrumar toda aquela bagunça. As
senhoras haviam deixado a idade de lado e se locomoviam como se tivessem dezoito
anos novamente. Era incrível. Anna tinha tantas perguntas, tinha tanto que queria
saber, mas foi interrompida por Lia que começou a empurrá-la para fora do quarto. Já
na porta, Anna perguntou:
“Não querem ajuda?”
No que lia respondeu, na lata.
“Não precisamos de ajuda, minha filha! A gente resolve. Agora vai, vai, vai. E vê se
coloca esse negócio no almoço de cada um dessa lista? Olha, quando você for pingar
cada gota, pense nos dois nomes que vê. O nome feminino para cada refeição
masculina, está ouvindo? Se você pensar diferente na hora de pingar isso aí, os
resultados vão ser completamente diferentes. Então está aqui a lista com os nomes.
Fique atenta à eles na hora de fazer isso, ouviu?” Anna ainda estava meio hipnotizada
com o que vira. “Ouviu?!” E fez que sim com a cabeça.
Lia fechou a porta bruscamente.
E agora? Anna colocaria ou não as gotas do feitiço na comida dos rapazes? Ela nunca
fora de acreditar em superstições, mas como poderia negar algo que acontecera na sua
frente e ainda por cima perfomado por um grupo de velhinhas idosas que fora dali não
conseguiam se locomover direito?
Como diabos aquele caldeirão de aço vitoriano fora parar ali? Disso ela não sabia,
mas, por alguma razão, tinha certeza que não estaria mais lá no dia seguinte.
117
Os Curiosos
Ela pegou o papel em mãos. Nele havia o nome de cada um dos homens ligado ao
nome da cada uma das mulheres por uma setinha.
Carlos ligava-se com Dora, Léa com Pedro, Rita com Dito, Lia com Paulo e Gení
com Juca.
Uma dúvida assolava Anna. Ela havia ido àquele lugar com a certeza plena de
somente dar esperanças as senhoras que dela pediram o auxílio, mas, para sua
surpresa, acabou sendo colocada em um beco sem saída. Colocava o feitiço ou não
colocava? Por que era fato que era um feitiço. Ela colocaria, ou diria que havia
colocado, se soubesse que se tratava de algo inofensivo. Entretanto, ela havia visto o
poder da magia que as senhoras professaram.
Era ético enfeitiças as pessoas?
Está aí uma pergunta que Anna nunca pensou em se indagar.
Sábado
Os estudantes de medicina chegaram na hora do almoço. Ao invés de montar os
preparativos, instalar as caixas de som, e deixar tudo nos trinques para quando se
desse início o baile, eles gastaram boa parte do tempo simplesmente conversando com
aqueles que podiam conversar, ouvindo aqueles que conseguiam falar, e dando
atenção à todos que podiam. Alguns dos estudantes pareciam realmente estar
aproveitando a visita para conhecer melhor a vida no Lar de Idosos, outros,
entretanto, pareciam dispersos, não queriam estar ali e tudo estava bem evidente na
maneira trágica com que apoiavam o queixo sobre as mãos e arqueavam a
sobrancelha para cima.
118
Os Curiosos
Para a felicidade geral da nação, as chuvas torrenciais haviam se extinguido, e o céu
estava azul como esteve em tantos outros domingos presos à tantas e tantas memórias.
O sol banhava o asfalto negro da avenida da frente, e o bom clima fazia com que os
motoristas deixassem o mal humor de lado e vez ou outra até sorrissem ao invés de
xingar. Com a exceção de algumas poças d’água aqui ou ali, dir-se-ia que nunca
sequer chuva como aquela que havia passado pela região. Deus em pessoa havia
soprado as nuvens do céu para longe. Era o que muitos dos idosos pensavam. E com
razão. O fato de não haver nuvem no céu, ou água dele caindo justamente no dia tão
esperado não poderia ser nada menos do que um milagre. Quem esperava
ansiosamente à festa estava agradecido.
Quem não estava nem um pouco agradecida era Anna. Por alguma razão, ela tinha
dentro de si o sentimento de que a noite do dia anterior estava diretamente relacionada
ao tal acontecimento milagroso. Não conseguia se convencer de que esse ato fortuito
fora mero acaso e cultivava a ideia de que as Senhoras tinham algo a ver com isso.
Ela sorriu ao se perceber pensando nisso.
Os salões estavam lotados. Os passos dos estudantes de medicina de um lado para o
outro faziam o chão de madeira velha, tão ou até mais velha do que as pessoas que ali
residiam, gemer sem parar, da mesma forma que alguns velhinhos enfermos que ali
residiam também faziam.
Lá ao longe, no canto de tudo, um grupo de estudantes entusiasmados observava uma
partida de xadrez sendo jogada por Paulo e Juca. Paulo parecia estar vencendo. Ele
acariciava a longa barba e raramente emitia um som. Juca só faltava deitar-se na
cadeira. Com seu jeito maroto, fazia piadas sem parar. Ria da risada dos outros e
parecia estar feliz.
119
Os Curiosos
O jogo parecia estar terminando. Era possível ver no rosto de Paulo o sorriso
vitorioso. Seus olhos estavam brilhosos: ele iria vencer. Mas todo esse brilho dos
olhos, toda essa excitação quase infantil que babava sobre o tabuleiro desapareceu em
questão de segundos. Bastou que Juca dissesse:
“Xeque-mate!”
Enquanto todos ao seu redor riam, Paulo não conseguia entender como perdera o
jogo. Estava revoltado! Ele iria ganhar! Mas… mas… não! Não era possível que Juca
o vencera mais uma vez.
Indagado pelo companheiro de jogo e por todos ao redor da mesa, ele simplesmente
respondeu:
“É o nervosismo! Toda essa gente me encarando não me deixou pensar direito!”
No que Juca respondeu, na lata:
“Se ao menos houvesse uma multidão dessa todas as vezes que você perdesse de mim,
hein!” E todos riram.
Lá onde os risos eram distantes, em seu quartinho, Lia esperava com a irmã. Léa
andava de um lado para o outro, não parava um segundo. Estava nervosa. Será que
Anna depositou as gotas da maneira correta? E se ela tivesse errado? Léa não iria
aguentar ter de passar a tarde toda dançando aos braços de Paulo só porque a
enfermeira cometera um erro.
Alguns minutos depois, suas dúvidas foram sanadas.
Do quartinho arrumado, as duas começaram a ouvir a música tocando alto. Uma valsa
antiga. Léa indagou-se se não havia começado. Lia a tranquilizou, disse que era
besteira dela, que bailes só acontecem a noite e que não fazia sentido um baile ocorrer
às quatro horas da tarde. Entretanto, a música não parava de tocar. Ao que tudo
indicava, pelo tempo que permaneceu-se ligado o rádio, ficaria mais um bom tempo.
120
Os Curiosos
Anna apareceu na porta do quarto.
“Não vão para o baile?!” indagou.
“Mas ele é agora?”
“É sim! Vamos lá, mexam esse esqueleto!” Disse, batendo palmas.
“Por favor. Essa gíria nem a minha avó dizia.” Argumentou Lia.
“Sei, sei”, respondeu sarcasticamente.
Enquanto caminhavam, elas riam.
O salão principal estava transformado. Não que houvesse nenhum tipo de decoração,
na verdade a transformação fora simples, mas dera outros ares ao lugar. Tudo que
havia sido mudado era a posição das mesas. Elas estavam todas nos cantos, e serviam
de apoio para alguns quitutes, algumas xícaras de café, como em um café colonial. O
salão estava todo aberto, com um amplo espaço para a dança. O sol da tarde entrava e
alaranjava o lugar. Algumas caixas de som enormes e pretas foram espalhadas pelos
cantos. No momento, era tocada uma valsa de Tchaikovsky. O primeiro pensamento
de Lia foi: “Fomos enganadas! Que música ao vivo que nada!” Mas logo esse
pensamento se esvaiu quando observou no canto direito, os instrumentos de uma
banda.
Pedro se aproximou de Léa. Estendeu-lhe a mão. Ela sorriu para a irmã e o
acompanhou. Lia olhou para Anna, que a respondeu levantando as sobrancelhas e
fazendo um biquinho com o lábio inferior. Lia sorriu. Paulo, nervosamente, parecia
suar bastante, estendeu-lhe a mão.
“Me dá o prazer dessa dança?” indagou.
Lia pegou em sua mão e pôs-se a dançar.
De longe, Anna observava.
121
Os Curiosos
Não era uma dança muito bonita nem muito ensaiada. Era toda desajeitada e imposta
aos ossos velhos, às dores nas costas e à falta de energia comum da idade.
Definitivamente não era um baile como o que senhoras haviam imaginado. Não havia
luxo, elas não vestiam roupas novas, não esperaram até a noite chegar. Não se
produziram – com a exceção da Rita, mas ela é um caso à parte – nem se maquiaram.
O alaranjado fim de tarde dava um tom romântico. Mas estava longe de ser o baile
que imaginavam. Era melhor. Era a dança pela dança.
Cada uma das senhoras estava com o respectivo senhor. Era evidente: o feitiço havia
funcionado. Enquanto dançavam, sorriam. Eram jovens novamente. Léa e Pedro, Rita
e Dito, Lia e Paulo, Dora e Carlos, e Gení e Juca. De longe, Anna e as outras
enfermeiras sorriam e conversavam, como mães observando a brincadeira inocente e
infantil dos filhos no parquinho.
De longe, do meio do salão, Lia olhou para Anna por cima dos ombros de seu
acompanhante. Anna, lá de longe segurou o pequeno frasco com a poção que lhe fora
entregue no dia anterior ainda cheio. Lia apertou os olhos para ver, e conseguiu
distinguir o que era depois de alguns segundos. Ficou espantada. Com seus olhos,
perguntou à Anna: “Mas… como?”
Anna somente levantou os ombros e pensou: “Não há no universo feitiço mais
poderoso do que a palavra…”
122
Os Curiosos
Terra Vermelha
A casa onde meu avô morava era grande, rica. Daquelas que tem até chuveiro a gás. O
quintal imenso servia de vista para uma varanda ampla aonde ficávamos conversando
quando até a noite cair. Governo negligente, imprensa extremamente influente, a
burrice do dia-a-dia, como nós não éramos nem um pouco alienados eram alguns
dentre os vários outros assuntos que permeavam aquelas conversas. Os dias eram
todos longos e, por mais improvável que pareça, pouco cansativos. Levantar, comer,
conversar, digo, reclamar, e comer de novo, e dormir para acordar e repetir a rotina,
era o que fazíamos nas férias de interior. Apesar de monotonia, falta pelas
responsabilidades não se faziam presentes. Por isso mesmo é que nem sabíamos de
qual dia da semana tratava-se.
Êta vida besta, meu Deus.
Meu avô, depois da soneca que tirava ao meio do dia, sentava-se na varanda com um
livro baixo do braço e lia até a proximidade da janta. A lentidão bucólica e seca do
campo me faziam ficar ao seu lado, como aquele cão amigo, sem exprimir som
algum. Quando ele tinha vontade, trocávamos palavras um com o outro. Normalmente
me falava do livro que estava a ler. Perguntava-me, sem notar a imaturidade dos meus
oito anos de idade, se já havia o lido. Eu dizia que não, mesmo que precisasse mentir.
Tudo isso só pra ouvir quais as impressões dele sobre as obras, o que achava daquilo
que lia. Eram sempre comentários inteligentes, bem traçados acerca da forma e da
maneira que o autor lidava(ou que desconhecia) dos problemas que retratava.
Bons tempos…
123
Os Curiosos
A terra era vermelha, tão quanto o sangue que jorra de um corte profundo. E tal qual o
sangue, gruda na pele, nas roupas e não sai. Um terror para minha vó, para minha
mãe, para as minhas tias, incumbidas da tarefa de lavar a roupa. Meu avô dizia que a
terra sangrenta era assim por causa do sangue derramado nas épocas em que o lugar
era esquecido por Deus e pelos homens. Um lugarejo sem leis aonde um
derramamento de sangue era tão comum quanto inspirar e expirar. As pessoas do
lugar diziam que com a chegada da lei e do governo e sanguinolência havia
terminado. Meu avô só dizia que saíra de moda.
Um dos dias, não sei qual, sarneei ao lado de fora da casa pela tarde toda, sujando
meus pés e minhas roupas com o sangue da terra. À chineladas no traseiro fui
mandando ao chuveiro com pressa, antes que sujasse mais a casa. A água pressurizada
caia no meu crânio e era um prazer. O azulejo branco do chão já estava todo
vermelho. Meus pés e meu corpo, branco como era naquela manhã. Como em todo
banho que tomo, meditei por alguns minutos e olhei para cima. No teto, imóvel, quase
camuflada, a lagartixa me encarava. Ela não se movia, era quase como se estivesse
morta. Acumulei água entre os dedos e taquei para cima, para que fossem de encontro
ao ser. E foram, ao menos eu acho, e mesmo assim, ela permaneceu lá. Imóvel. Nem
piscar, piscava! Fiquei desinteressado e deixei pra lá. Durante os outros dias, nem
lembrava mais dela. Ia tomar banho e nem tomava conhecimento de saber se ela
estava ali parada.
Num desses dias quaisquer, dava pra ver o sol se pondo da varanda. Eu sentei ao lado
do meu avô, no chão. Ele naquelas cadeiras de fio com a almofada de sempre olhava
para o orizonte. Casa com a face oeste é algo bom! Se algum dia for comprar uma
casa de varanda, com toda certeza comprarei com face oeste. Eu havia terminado de
lavar a louça da janta. Minha avó estava na sala com as outras mulheres, vendo
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Os Curiosos
novela. Meu pai e meu tio haviam saído na hora do almoço e não voltaram até aquele
momento. Meu avô estava vestido de forma diferente. No bolso da camisa estava o
distintivo de delegado que ele não usava faz muitos e muitos anos. No cinto, dava pra
ver o coldre com o revólver. Ele dava um trago no cigarro quando eu o perguntei.
- Pra que tá com revolvi, vô?
- Nada não, guri. – ele dizia por trás daqueles óculos fundo de garrafa.
- Cadê o pai e o tio?
- Teu pai foi resolvê uns problema.
- E quando é que ele volta?
- Não sei se avolta hoje… – Ele olhou pra mim no fundo dos seus olhos, com suas
bochechas caídas. Estava quase por chorar.
Fiquei ao seu lado até o anoitecer. O jardim da frente já estava todo prateado com a
luz da lua. Vagalumes iam de lá pra cá. Peguei cinco e coloquei dentro de um pote de
requeijão vazio.
- Vagalumes me alembram a minha época de guri. – Ele disse com a voz rouca. –
Lembra também a época do teu pai. A gente tem que ser bom negociador se quiser se
dá bem. Você nota quando alguém é bom negociador desde criancinha. Quando já
tem teu tamanho assim, tá vendendo e trocando coisa por outras, sabe? É meio
“escambal”, mas já mostra que ela é aprumada pro negócio. – Ficamos alguns
minutos em silêncio. Um homem passou. Ele abaixava a cabeça e levantava-a, como
que nos observando. – Tá vendo aquele homi andano ali? É o Joaquim!… – Meu avô
suspirou – Eu fico impressionado! Como esse povo é incherido! Parece até que não
tem a própria vida!… As vezes eu penso que isso é coisa d’interior. É como dizia o
poema: “Devagar… as janelas olham.” É uma vida besta mesmo. De quem não tem
mais o que fazer…
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Os Curiosos
Minha mãe me chamou pra dormir lá de dentro.
- Agora se alevanta. Vai durmi que isso não é hora de criança tá de pé.
Eu o obedeci. Não era louco para fazer o contrário.
Na hora de dormir, eu era o único do sexo masculino no quarto. As mulheres, minha
prima mais velha, minha mãe, minha avó e minha tia pareciam todas preocupadas.
Estavam todas sentadas em um círculo, no mesmo quarto. Conforme o tempo foi
passando elas foram espalhando colchões pela sala e ficaram lá. Eu não estava
entendendo por que é que estavam todas dormindo no mesmo quarto e não em quartos
diferentes, como sempre. Parecia até que a casa era um castelo e que estávamos sendo
cercados pelo exército inimigo. De qualquer maneira, as horas passaram, e passaram,
custosas e cheias de tensão. Elas todas conversavam sobre algo que eu não me lembro
mais. Só me lembro que era algo sério. Minha mãe acariciava meus cabelos e vez ou
outra dava alguma opinião. Meus pés iam se aquecendo, fazendo magicarias em cima
das minhas pálpebras, lutando para que elas também viessem a altura baixa do chão.
A última imagem que tenho na mente antes de dormir é a de minha avó com os olhos
cheios de lágrima, os limpando devagar depois de tirar os óculos.
Na manha seguinte, acordei antes de todos. Abri meus olhos. A luz entrava pelo vidro
grosso da janela. Alguma poeira indo que parecia subir ou descer sobre os feixes de
luz. A casa estava um silêncio. O ácaro do colchão coçando minhas costas, o cheiro
forte de naftalina no ar. Tudo culminava para uma manhã normal, para um café
quente, para um pão fresco. A única coisa que me atormentava era a imagem do dia
anterior: meu avô na varanda, com a arma no coldre e desgosto nos lábios.
Era por volta de cinco e meia da manhã, havia acabado de amanhecer. Na cozinha,
tomei um copo de água gelada. Minhas costas estavam suadas. A porta da frente
estava aberta e meu avô já estava sentado à cadeira olhando para baixo. Ele era
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Os Curiosos
sempre o último a dormir e o primeiro a acordar, mas nunca pensei que acordasse tão
cedo. Comecei a caminhar em sua direção. Era estranho, a porta a porta aberta, a
cortina da janela fechada. Fui me aproximando cada vez mais. Era impressionante!
Meu avô não notava minha presença! Ele que se orgulhava de aos setenta anos ter
uma audição tão aguçada. Quando consegui pôr fim por meus olhos na varanda é que
identifiquei o sangue no chão. É que identifiquei a mão suspensa e morta e o olhar
vazio que meu avô dava aos jardins. O revólver estava fora do coldre, esparramado no
chão. Ele tinha um buraco no peito, na altura do coração. O antigo distintivo estava
vermelho. A camisa azul estava encharcada. E os olhos imóveis, os olhos imóveis
com a boca caída. A barba mal feita e os olhos imóveis e a boca caída. Ele me pegou
de surpresa.
Ao vê-lo com todo aquele sangue no corpo me lembrei de uma bronca que ele me deu
– minhas orelhas nunca foram as mesmas depois daquele dia – quando pisei com
meus pés descalços e cheios de terra sangrenta em uma das paredes brancas da casa.
Dei uma pequena risada.
Olhei para o chão e identifiquei um ponto que não estava sujo de sangue. Sentei-me
ali vendo o sol nascer com meu avô do lado.
Uma vizinha passou de repente. Largou o pacote com compras que carregava e veio
correndo até a varanda. Lá dentro ligou para a polícia e acordou minha avó. Vendo
aquela mulher, toda intrusiva mexendo nos nossos móveis como se fosse dona do
lugar, olhei para o meu avô. O olhar dele havia se deslocado. Ele olhava pra mim! Ele
olhava pra mim e esboçava um sorriso, como se estivesse achando a situação bastante
engraçada.
Eu acho que, de fato, era mesmo.
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Os Curiosos
Os Curiosos
Toda história tem seu começo. Mesmo com essa besta discussão sobre o início da
vida, se é que ela começa na fecundação ou não, o importante é que histórias não são
como a vida, apesar do contrário muitas vezes ser perceptível. Histórias estão além da
vida, vão além da vida, duram gerações e gerações intactas e intrigantes. Muitas delas,
são trabalhos árduos de uma vida levada à disposição dela. Por isso mesmo é que
histórias não têm nada haver com a vida. A vida é complexa, discutível, geradora de
matérias e mais matérias à seu respeito. As histórias, a literatura também o é, mas a
literatura é humana, a vida é sobre-humana, e a literatura só existe por essa magnífica
característica da vida. A vida inverte aquele velho bordão sobre a história: não é
história, é estória. E isso, pois a vida vai além do homem, pois não é do homem,
apesar de estar no homem. E com essa análise da vida é que começamos a história de
Laís. Com a morte.
Trata-se da memória mais distante que ela tem em mente. Daquelas que de tão
incertas, não se distinguem claramente dos sonhos. Tal lembrança é a de quando tinha
por volta de quatro ou cinco anos. O sol já era um adolescente passando pela faze de
timidez e com sua voz baixinha, quase um sussurro, dizia, adeus!… Laís, que sempre
fora uma menina muito mais masculinizada que as outras, no sentido de se sentir
muito mais disposta em atividades masculinas e não de sentir-se atraída sexualmente
por outras meninas, brincava no jardim de casa, sozinha. A grama alta, fazia semanas
que deveria haver sido podada, comichava o pé descalço daquela menina de cinco
anos e cabelos curtos e vestidinho batido. Seus olhos grandes cor de mel pareciam
prender-se a cada coisa que olhava, como se estivesse a analisar alguma coisa. A mão
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Os Curiosos
dela jogava uma bolinha de borracha pelo jardim esculpido e os pés tomavam todo o
cuidado para desviar as lajotas de concreto que faziam um caminho do portão da
frente até a varanda. De lá, o pai de Laís, conhecido na cidade como Dr. Genari, por
Laís, de papai e, pela esposa, de amor, balançava a rede devagar; Sra. Genari, ou
mamãe, ou amor, havia dito a ele que mantivesse os dois olhos na menina, trabalho
que fazia questão de cumprir porcamente enquanto virava as páginas do dicionário de
russo que tinha em mãos e se surpreendia com a imbecilidade de não prestar atenção
em uma perninha. Na rua de terra batida, uma terra que parecia se misturar com areia
nas cidades, mas que no campo era negra e marrom como o chocolate ao leite, uma ou
outra pessoa passava de vez em quando e, na lentidão dos passos dizia um “alô!,
como vai?!”, ou simplesmente levantavam o chapéu ao ver a imagem de Dr. Genari
deitado na rede. Ele retribuía e vez ou outra perguntava sobre algum parente que
havia passado pelo seu consultório alguns dias antes. Dr. Genari, como o título de seu
nome sugere, exercia o trabalho de médico da cidade, portanto era conhecido por
todos, e amado por todos, e venerado por todos. Vez ou outra atendia em casa, mas
normalmente as pessoas se dirigiam, ou ao consultório, ou a própria casa dele, na qual
mantinha quantidade considerável de equipamentos. Era uma casa modesta, que,
apesar de modesta, era muito melhor do que as outras, principalmente pela imensa
antena parabólica colocada no jardim, e posta ali só para que a família pudesse assistir
televisão. Da varanda dessa casa, Dr. Genari ignorava seu posto e, como soldado
inadimplente, dava mais um gole no quente e ardente chimarrão.
No Jardim, surpresa com as coisas ao seu redor, Laís brincava. Suas risadas serviam
de música de fundo para a leitura pesada e maquinal que o pai fazia, algo haver com
punição e loucura. A criança de cinco anos, correndo atrás da bola que acabara de
arremessar, tropeça e cai no chão, ralando o joelho. Por um momento ela pensa em
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Os Curiosos
chorar, é visível em seus olhos, eles, muito suavemente, se comprimem, o lábio
inferior está começando a se projetar para frente, o queixo começa a enrugar e as
linhas nasais a se comprimir. Era evidente, a criança iria chorar. Entretanto, ao olhar
para o próprio joelho, lentamente todos esses sinais começam a desaparecer. O
primeiro deles, são os lábios, voltando a posição normal. De segundo em segundo, as
sobrancelhas arqueadas e para baixo, vão voltando à mais natural posição. Os olhos se
abrem, os ombros deixam esvair toda a tensão. Laís olha para o próprio joelho
sangrando. O olhar de desespero se transformou em um olhar curioso. Ela observa o
próprio joelho, a própria articulação sem nem imaginar a complexidade por trás de
cada movimento, por trás de cada plaqueta rompida para que a cadeia da coagulação
tenha um início. Com seus finos dedos infantis, ela passa a mão no sangue que jorra
do joelho e o trás até a boca. Ela fica impressionada, isso é evidente com o olhar ao
infinito que deu, com o gosto salgado do sangue. E se torna mais evidente quando a
percebemos voltando o dedo à ferida para mais sangue. A salubridade da chaga é
intrigante, uma leveza no sabor… mas é claro! Cumpre o meramente necessário, por
tal razão se faz tão suave! Mas é claro que uma criança no auge dos seus cinco anos
de idade não pensaria nisso. Depois de saborear uma, duas três vezes, ao final de seu
experimento científico ela concluiu: o sangue é salgadinho! Com toda certeza esse
seria um dos assuntos à mesa de jantar.
Como toda criança intrigada demais com as possibilidades e novidades ao seu redor,
Laís logo desinteressou-se pela ferida. Só voltou a dar bola para ela quando viu a
casquinha e a coceira que surgia dela. Mas novamente, tal curiosidade durou somente
alguns minutos, pois que correr e simular a vida adulta e caçadora que teria pela
frente era uma atividade muito mais interessante dentro do próprio instinto humano.
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Os Curiosos
Eis que ela se vê comtemplada por uma ideia. Está parada no jardim, olhando para o
alto da copa da árvore. As folhas do abacateiro deixam um ou outro raio de sol
transpassar, e isso dá um tom áureo, santo àquela obra de anos e anos de evolução e
crescimento. O grosso corpo de árvore, a grossa casca saliente são o convite que
faltava. Foi como se “epifaniasse”, como se a árvore de um momento para o outro se
tornasse algo completamente importante na vida de uma criança.
Decidiu subir.
O começo foi difícil. Ter o corpo pequeno não era um fator determinante para o ato de
pôr-se bem na dobra central dos troncos em ramo. Mas uma poda de muitos anos, já
enegrecida, era o suporte necessário para que a subida se desse com facilidade. Pôs
um pé aqui, outro ali em uma saliência e quando deu-se por si mesma, estava na dobra
central. De lá, três braços dividiam a espessura da árvore em forma aparentemente
igualitária, cada um em uma direção, entretanto não perfeitamente espaçados, pois
que a diferença entre dois deles era de mais ou menos cento e oitenta graus, o que deu
a Laís a oportunidade de subir.
Do centro do abacateiro, ela olhava para cima, calculando em quais dobras segurar-se
com as mãos e em quais outras segurar-se com os pés. A tática, porém, não foi de
escalada, mas de pressão. Essa pequena mente de cinco anos, deslumbrada com o
mundo ao seu redor teve uma ideia brilhante: utilizar o atrito à seu favor. Mesmo que
não pensasse tecnicamente assim, assim o fez. Os pés descalços forçavam um dos
troncos de um lado e as costas o outro. Com uma pitada de tempo e cortes na roupa e
no corpo, já havia subido alguns centímetros, o que, em sua mente, soava como
metros e metros de altitude. O empecilho em seu caminho, entretanto, era o
afastamento dos troncos. Conforme iam crescendo, iam também se afastando. Ela só
perceberia a ironia desse paralelismo às avessas num futuro distante.
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Os Curiosos
Com seu instinto infantil, com sua mente humana, pensou em uma maneira de
escapar. Viu, acima dos olhos outra bifurcação no crescimento da árvore. A utilizou a
seu favor, agarrando-a com os braços. Dessa estratégia, tomou posição com os pés e
se impulsionou para cima, até que o local onde antes estavam suas mãos, servissem de
apoio aos pés. De lá de cima, sentia-se no alto do mastro de uma caravela. Com uma
mão segurando o próprio peso, e a outra sobre os olhos, tapando o sol ofuscado pelas
sombras das folhas, Laís se sentia um navegante procurando por algo que não fosse
água. Evitava olhar para baixo com medo da altura. Entretanto, isso não a impediu de
subir mais e mais. Quando mais subia, mais o universo se modificava. O que era antes
um ensolarado jardim, tronou-se uma densa floresta de folhas de abacate de um lado
para o outro. Passava alguns frutos, somente os batia para ver se caíam. Um pé vai
aqui, outro ali, não há outro caminho à não ser para cima. Fazendo força com os
braços, esquecendo-se dos rasgos no próprio vestido, ela finalmente chega ao topo.
Sua cabecinha pequena observa o telhado da casa e um sorriso gigantesco aparece no
rosto. Ao olhar para o lado, vê o sol descendo por alguns minutos e depois de sentir
uma dor no fundo dos olhos, aceita dele a sugestão: começa a descer.
Espantosamente, descer é mais difícil do que subir. Quando se desce, vê-se a frente o
frio, o gelado, o reto e chato chão. A promessa que lhe faz da proximidade, da dor, é
muito mais intensa e atormentadora do que que a copa da árvore faz. Mas Laís não
deixou-se abater por tal premissa e, com cuidado foi descendo. Um obstáculo. Teria
de pular de um galho ao outro para chegar aonde queria. Sem medo, o fez, apesar de
sentir o bruto balançar do tronco. Pensou por um instante que iria cair, tamanha foi a
tremedeira do lugar. As folhar gritavam o horror do balançar. Algumas não
aguentaram a pressão é cometeram suicídio.
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Os Curiosos
Passo à passo Laís foi descendo do abacateiro até fazer seu caminho de volta à dobra
central. De lá, o pulo foi curto até o chão. A felicidade não podia ser contida. Ela
cantarolava uma música que ouvira na televisão e dançava em um ritmo infantil, com
braços soltos. Mais uma vitória!
Ela ia correndo até a rede contar ao pai sobre a mais nova aventura quando foi
surpreendida pela imagem dele mesmo agachado no jardim. O sorriso que mantinha
ao rosto desapareceu completamente. Algo estava errado. Papai deveria estar na rede,
balançando-se e lendo qualquer coisa. Ao invés disso estava agachado sobre algo,
olhando enquanto passava a mão na cabeça.
Cautelosa, com tanta cautela como a que usara para subir na árvore, Laís foi se
aproximando. Com a lentidão dos passos, pôde ver, pelo ombro do pai, algo caído ao
chão. Era algo marrom, seco e gosmento ao mesmo tempo.
- Pai? – ela perguntou, tão baixo quanto o sol.
Ele se virou e por detrás dos óculos, estendeu o braço em sua direção. Com o braço
todo envolto à ela, a puxou para perto de si, para que visse o que ele via. Ao ver o que
viu, ela começou a chorar. Mais do que choraria quando se calou, curiosa com o
sangue. E com o sangue se calou também. Mamãe, Sra. Genari, apareceu na porta. O
pai somente a olhou como quem diz que resolverá o assunto. Uma promessa ao
traficante ali, nos olhos.
Com seu grosso e longo dedo, o médico virou o ninho de passarinhos para cima. Era
possível enxergar perfeitamente o estado desenvolvido daqueles ovos antes de se
quebrarem. Era como ver um bebê morto. Como ver uma promessa quebrada antes
mesmo de ser feita.
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Os Curiosos
Ele mostrou seu grande dedo para ela, aquele indicador de unhas curtas, e o levou até
aquela mistura de sangue e clara que jorrou dos olhos quebrados. Molhou a ponta do
dedo e depois à levou até a boca.
- Como é salgadinho! – constatou.
Laís manteve-se em silêncio. Estava sentindo-se culpada pela morte daqueles
pássaros. Papai pegou um dedinho dela e levou até aquela mistura gosmenta
esparramada entre os cadáveres. Melou o dedinho dela até ali, e devagar levou até a
boca dela. Seria possível? Como ela sabia? Ela pensava que ele estava lendo um livro
e não prestava atenção nela dali, da varanda. Entretanto ele o fez! De maneira
estranha ele o fez! Foi nesse dia que Laís descobriu que bons pais estão cientes de
muitas coisas, de mais do que imaginados.
Ela pôs a gosma na boca e… era impressionante! Era salgado! Aquele animal, ou
melhor, aquela promessa de animal, por dentro era tão humano quanto os homens! O
sangue do ser era salgado como o nosso! A clara, sem gosto, pouco foi sentida, mas o
sangue do passarinho. O sangue do passarinho era tão salgado!
Era algo lindo!
- Esses dois aqui, se não estou enganado, são filhotes de sabiá. – Prevendo a piada que
ela ouvira na escola e que repetia pela casa todo santo dia, ele completou – Sabia que
o sabiá sabia assobiar?!
Ela riu. Choro transformou-se em riso e riso transformou-se em curiosidade.
- Por quê, papai? Por que é salgadinho também? – perguntou, limpando o nariz, com
um enorme sorriso no rosto.
- Porque são vertebrados, minha querida! – Ele percebeu o rosto de confusão da
menina. – Você não sabe o que são vertebrados?
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Os Curiosos
Ela fez que não com a cabeça. – Eu estou aprendendo a ler ainda, pai! – ela brincou.
– Que é um verterbado?
- Um vertebrado – corrigiu – bem… seria mais fácil se eu te mostrasse. Olhe aqui,
para os filhotinhos de sabiá que tragicamente morreram. Eles morreram por um acaso
do universo. Coisas assim acontecem. Nós, os curiosos, devemos olhara para essas
coisas e tirar algo disso, mesmo que nós sejamos os culpados… Está vendo – disse
levantando a asinha em formação, mostrando através da pele em desenvolvimento
transparente, os ossos brancos – esses aqui são os ossos. Esses contornos mais grossos
sobre a pele. Vê? – ela respondeu positivamente. – Os ossos são as estruturas mais
importantes dos vertebrados, por isso mesmo é que dão nome ao grupo. Eles servem
pra sustentar. Sabe quem mais tem ossos? – ela fez uma negativa. – Eu. – e sorriu. –
Pega aqui no meu dedo, vai apertando ele, devagar. – ela foi apertando – devagar! –
ele gritou. – assim você me machuca. – os dois riam. – Está sentindo? É o osso.
- Eu tenho osso também?
- Mas é claro! Por isso mesmo é que seu sangue também é salgadinho!… O seu
sangue, e o dele também, é produzido nos ossos, por assim dizer… – Ela ficou
espantada! Não entendia como uma coisa poderia acontecer, e como estariam
relacionados. – Mas pra te explicar como isso funciona, tenho um pré-requisito. Você
sabe o que é uma célula? – ela respondeu negativamente com a cabeça. – Quer saber o
que é uma célula?
- Sim! – ela gritou.
- Ótimo. É algo um pouquinho mais complicado. Antes, vamos ter de limpar essa
sujeira. Vá lá dentro e pegue um saco pro papai.
E correndo, entusiasmada, enquanto a noite finalmente caía, com a oportunidade de
saber como as coisas acontecem, de ter seu lado infantil suprido por explicações que
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Os Curiosos
não necessitaria fazer, pois que já foram descobertas. Suas pequenas pernas corriam
em direção à despensa à procura de uma sacola. Não. A procura de uma oportunidade:
a descobrir dentro de si mesma um universo de possibilidades.
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