LIDERANÇA E SOFRIMENTO PSÍQUICO: UM ESTUDO COM

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LIDERANÇA E SOFRIMENTO PSÍQUICO: UM ESTUDO COM
LIDERANÇA E SOFRIMENTO PSÍQUICO: UM ESTUDO COM GERENTES
DE UMA ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL
Lucas Martins Soldera(1)*
Elizabeth Constanti(2)*
Francisco Hashimoto(3)*
RESUMO
Este trabalho busca compreender o sofrimento pelo qual passa o indivíduo no
desenvolvimento de uma atividade de gerência de uma empresa, enfocando as questões
subjetivas na construção de sua relação com o trabalho. O referencial teórico adotado
foi da Psicodinâmica do Trabalho. A coleta de dados efetuou-se em duas empresas do
ramo de agronegócios, do interior paulista com gerentes e encarregados de diversas
áreas. A técnica utilizada foi a entrevista psicológica semi-diretiva. Os resultados
mostram como os gerentes e encarregados foram construindo a noção de liderança na
prática e as repercussões dessa vivência na sua vida cotidiana.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Liderança; Sofrimento psíquico.
ABSTRACT
This work has as its main objective to understand the psychic suffering undergone by
individuals when carrying out managerial activities in enterprise organizations, focusing
on subjective aspects in their working relations. A Psychodynamic of Work approach
was adopted as theoretical reference. Data were collected at two agrobusiness
companies located inland of São Paulo State, with managers and subordinates in several
areas of activities. Semi-directed psychological interviews were used and the analysis of
the data were carried out aiming at an understanding of how managers and subordinates
build up the notion of leadership. Taking into consideration socio-cultural aspects we
consider the repercussions of this leadership notion in the psychic suffering resulting
from the working organization.
1)*Mestrando em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Assis
2)*Docente do curso de graduação e Pós graduação da FCL/Unesp-Assis
3)*Docente do curso de graduação e pós graduação da FCL/Unesp-Assis
KEY-WORDS: Work; Leadership; Psychic Suffering.
INTRODUÇÃO
A fim de desenvolvermos este trabalho, procurou-se entender as dimensões
subjetivas, emocionais e inconscientes que caracterizam as relações do homem com o
trabalho e as relações com a vida psíquica, social e cultural. E a discussão centra-se no
estudo do sofrimento no trabalho. Sofrimento entendido como:
[...] em sua luta contra o sofrimento, o sujeito chega a elaborar soluções
originais que, como mostraremos, são em geral favoráveis simultaneamente à
produção e à saúde: caracterizamos então esse sofrimento denominando-o
sofrimento criativo. Ao contrário, nessa luta contra o sofrimento, o sujeito
pode chegar a soluções desfavoráveis à produção e desfavoráveis também à
sua saúde. O sofrimento será então qualificado como sofrimento patogênico.
(DEJOURS, 1992, p.150)
Para o entendimento do processo de sofrimento decorrente do desenvolvimento
das atividades de gerência de uma empresa, consideramos o trajeto profissional dos
sujeitos envolvendo a escolha, o contato com o trabalho e a ação desses no processo de
gestão.
O trabalho tal como afirma Pellegrino (1987):
[...] é o elemento mediador fundamental, por cujo intermédio, como
adultos, nos inserimos no circuito e intercâmbio social, e nos tornamos adultos – de fato
e de direito – sócios plenos da sociedade humana. (p. 201)
Temos assim uma situação paradoxal, ou seja, o trabalho aponta uma das
possibilidades de conseguir a felicidade, mas, ao mesmo tempo, pode gerar sofrimento e
infelicidade. Freud considera que, na relação com o mundo, entre o sofrimento e o
prazer, pode ocorrer a felicidade. Já a infelicidade, pode emergir de três direções:
[...] do nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que
nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de
advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de
destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos
relacionamentos com os outros homens. (FREUD, [1930], v. XXI, 1996,
p.85)
Existem, portanto, três aspectos que podem provocar sofrimento: os relacionados
ao corpo e sua finitude, as associações com o mundo externo e as relações com as
pessoas. O sofrimento emerge entre o homem e a vida, como condição básica de
sobrevivência e de busca de felicidade. É justamente nesse espaço, entre felicidade e
infelicidade, que desenvolvemos esse trabalho, buscando entender o sofrimento pelo
qual passa o indivíduo no desenvolvimento de sua atividade profissional.
Segundo Dejours (1992), o trabalho pode significar a possibilidade de o sujeito
engajar-se nas relações sociais e conciliar as questões resultantes de seu passado, de sua
história e de seu sofrimento psíquico com a situação atual. Neste sentido, o autor
introduz o conceito de ressonância simbólica: “A ressonância simbólica aparece, então,
como uma condição necessária para a articulação bem sucedida da dicotomia singular
com a sincronia coletiva’’ ( DEJOURS, 1992, p. 157)
A ressonância simbólica é entendida como a condição necessária para que o
sujeito busque uma articulação bem sucedida entre aquilo que foi construindo ao longo
de sua vida, o encontro saudável com o trabalho e finalmente, a possibilidade de uma
sincronia com a realidade social. Para que ocorra a ressonância simbólica existem certas
condições: a primeira refere-se a escolha da profissão, a segunda, o encontro com o
trabalho e a terceira, reconhecimento de seus pares.
Nesse processo de construção da vida profissional, a angústia vivenciada pelos
pais em relação ao trabalho tem um papel fundamental, principalmente porque a criança
também vivencia o sofrimento dos pais, e o trata como se fosse dela: “O sofrimento
nasce nela, ela o vive na primeira pessoa. Não está ao seu alcance perceber que ele se
origina da angústia de seus pais. ´´ (DEJOURS, 1992, p. 155)
A exteriorização desse conteúdo aparecerá, no primeiro momento, quando a
criança, para compreender o processo de sofrimento dos pais, utiliza-se do jogo. O jogo
permite à criança brincar e trazer para fora a sua angústia de forma controlada. Desta
forma, o indivíduo se prepara para a entrada na vida de trabalho, onde os parceiros serão
os trabalhadores, não sendo então mais necessário utilizar-se do teatro.
A
passagem
automaticamente.
do
teatro
psíquico
ao
teatro
do
trabalho
não
ocorre
Esta passagem precisa de analogias que criem situações de
ambiguidade para o indivíduo, mobilizando sua imaginação e criatividade. A escolha da
profissão não ocorre ao acaso, ela é produto deste processo e, no primeiro momento,
depende mais do sujeito, pois, a partir disso, ele busca a sua formação e sua inserção no
mercado de trabalho.
A segunda condição, o encontro com o trabalho, constitui-se na elaboração entre
organização prescrita e real. A organização do trabalho é compreendida pela divisão de
tarefas e divisão dos homens. A divisão de tarefas abarca desde o conteúdo das tarefas,
como são operacionalizadas, até as atividades prescritas pela organização. Assim,
envolve todas as operações administrativas, como a hierarquia, o controle e o comando.
A divisão dos homens refere-se à divisão das pessoas pela organização do trabalho e às
relações interpessoais reguladas no contexto de trabalho. Assim, o trabalho prescrito
pela organização compreende tudo aquilo que ela estabelece como regras, normas e
políticas a serem assimiladas pelo trabalhador. O trabalho real é a forma como estas
prescrições são compreendidas e aplicadas na prática pelos trabalhadores no interior das
organizações.
E a terceira, refere-se ao reconhecimento, que é o reconhecimento é a retribuição
fundamental da sublimação. Isso significa que a sublimação tem um papel importante
na conquista da identidade. Reconhecimento social e identidade como condição de
sublimação conferem a essa última função essencial na saúde mental. (DEJOURS,
1992, p.158)
Para que ocorra a sublimação, é necessário que haja a conciliação entre a história
singular de cada sujeito e a realidade de trabalho. É a articulação bem procedida entre
estes três fatores – a escolha da profissão, o encontro com o trabalho (organização do
trabalho) e o reconhecimento de seus pares – que produzirá a ressonância simbólica.
Às vezes, em sua luta contra o sofrimento, o sujeito chega a elaborar soluções
originais que, como mostraremos, são em geral favoráveis simultaneamente à produção
e à saúde: caracterizaremos, então, esse sofrimento denominando-o sofrimento criativo.
Ao contrário, nessa luta contra o sofrimento, o sujeito chega a soluções desfavoráveis
também à sua saúde. O sofrimento será, então, qualificado como sofrimento patogênico.
(DEJOURS, 1992, p.150).
Dejours considera a necessidade de articulações entre o sofrimento singular,
herdado da história psíquica de cada indivíduo e o sofrimento atual, que surge do
encontro do sujeito e a situação de trabalho. Aqui, considerando a individualidade de
cada um, o sujeito se transforma, obtendo prazer no trabalho, resultante do equilíbrio
entre o desejo do indivíduo e a organização do trabalho.
No processo de desenvolvimento de atividade produtiva dos gerentes – na luta
entre o sofrimento criativo e o patogênico – estamos considerando um aspecto essencial:
a questão de liderança.
O gerente, diante do grupo de trabalho, vivencia um conflito entre a necessidade
de impor-se e o desejo de ser aceito. Desta forma, ele procura conciliar o
reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento. O gerente busca expressar
seus desejos e espera que os outros considerem a aceitem suas posições. O
indivíduo
nessa condição envolverá os outros nas redes de seu próprio desejo, expressando as
mais reais fantasias de onipotência. Para o sujeito que exerce a liderança, a expressão de
seu desejo não é suficiente, ele precisa ser reconhecido e sentir-se pertencente ao grupo.
Esse reconhecimento implica na aceitação e partilha dos “segredos de grupo”. O grupo,
desta forma, poderá transformar-se em um corpo social, em busca da diferenciação. É
tarefa do líder manter o espaço de diferenciação dos indivíduos para a satisfação dos
desejos do grupo; os participantes do grupo, por sua vez, deverão compartilhar a
capacidade própria de pensar e agir, reconhecendo a competência de cada um. Essa
possibilidade de “personalização do poder” é definida como:
A visão criativa, os desejos e seus interesses profundos, a paixão e a
determinação obstinada por uma idéia, uma causa ou um projeto, as
disposições, as finalidades e os atributos pessoais, a segurança e o entusiasmo
são alguns dos elementos que levam a aderir ao líder, e sob seu governo,
abrem-se novos horizontes, inovações ousadas ou mudanças radicais.
(LAPIERRE, 1995, p.31).
Entende-se aqui, liderança como um processo que supõe a relação que o
indivíduo estabelece consigo e com o grupo. E é exatamente na relação entre líder e
liderados que ocorre a liderança.
Podemos considerar que a liderança não pertence ao líder, mas a existência
de uma relação entre a visão e as ações de uma pessoa e as necessidades de
um grupo, considerando o espaço e o tempo. (MIZUMOTO, 2003, p. 75).
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Dessa relação – líder e liderados – é preciso compreender o mecanismo de
projeção, que constitui-se na forma dos grandes líderes terem o fascínio dos indivíduos.
Os líderes podem provocar em seus seguidores sentimentos bons ou ruins, de acordo
com o que cada um traz dentro de si para a relação de trabalho. Existe uma
correspondência entre a liderança e os desejos e fantasias inconscientes.
Fala-se de fantasmas inconscientes quando se quer ressaltar o cenário básico
da vida de uma pessoa, o trauma ou o drama que parece dar sentido a toda
sua existência, quer seja sob a forma de uma grande paixão, de uma grande
obsessão ou de uma grande defesa. (LAPIERRE, 1995, p.33).
Assim, o fantasma inconsciente possibilita o sentido ou a direção do pensamento
e a ação da pessoa. É aí que os fantasmas conscientes encontram os seus significados:
sobre os fantasmas inconscientes. O gerente vivencia esse processo em seu ofício,
convivendo com as pressões internas e externas que podem prejudicar a saúde psíquica.
Logo, é necessário considerar a definição de saúde: “[..].a saúde para cada homem,
mulher ou criança é ter meios de traçar um caminho pessoal e original, em direção ao
bem estar físico, psíquico e social.” (DEJOURS, 1986, p.11).
O autor relaciona bem estar físico à condição de regulação das variações que
ocorrem no organismo, a partir de seu estado ou necessidade que emerge do corpo. Já o
bem estar psíquico está ligado à abertura que é deixada para o desejo de cada um na
organização de sua vida. E, finalmente, o bem estar social está na possibilidade de
atuação do indivíduo, tanto no seu processo singular como no coletivo, considerando a
organização do trabalho. “Saúde é antes de tudo uma sucessão de compromissos com a
realidade, se reconquistam, se redefinem, o que se perde e o que se ganha. Isso é
saúde!” (DEJOURS, 1986, p.11).
Desta forma, no estudo da Psicodinâmica do Trabalho busca-se trabalhar os
conflitos que possam emergir entre a organização do trabalho e o funcionamento mental
das pessoas:
Particularmente, as organizações de trabalho perigosas são as que atacam o
funcionamento mental, ou seja, o desejo do trabalhador. Quando se ataca o
desejo do trabalhador, e há organizações que são terríveis porque atingem
diretamente isso, provoca-se não somente perturbações, mas trará sofrimento
e, eventualmente, doenças mentais e físicas. (DEJOURS, 1986, p.10).
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Dessa relação – líder e liderados – é preciso compreender o mecanismo de
com objetivo de propiciar o equilíbrio entre a organização do trabalho e as
aspirações, as idéias e os desejos de seus funcionários.
Em geral isso é possível quando o trabalho é livremente escolhido e quando a
organização é bastante flexível para que o trabalhador possa adaptá-la a seus
desejos, às necessidades de seu corpo e às variações de seu estado de espírito.
É, portanto, fundamental ressaltar que o trabalho não é forçosamente nocivo
para à saúde. Ele pode ser tolerável; pode mesmo ser francamente favorável à
saúde física e mental. (DEJOURS, 1986, p.10).
A Psicodinâmica coloca, então, a questão da atividade produtiva como
mediadora de saúde e de doença e enfoca o sofrimento psíquico como centro da relação
entre o homem e o trabalho. É nesse contexto que buscou-se a compreensão do
sofrimento dos gerentes dentro de uma organização empresarial.
Assim, pretendeu-se desvelar os processos psíquicos que os trabalhadores – os
gerentes – desenvolvem em uma luta contínua frente aos desafios que o mundo do
trabalho exige para evitar o sofrimento e a doença mental.
Deste modo, o objetivo desse artigo constituiu-se na compreensão do sofrimento
pelo qual passa o indivíduo no desenvolvimento de uma atividade de gerência de uma
empresa, buscando as questões subjetivas na construção de sua relação com o trabalho.
Esse
objetivo
abarcou
os
seguintes
aspectos,
que
estão
intimamente
relacionados:
-
compreender o trajeto profissional dos sujeitos, considerando a escolha
profissional e o contato com a realidade de trabalho;
-
entender a ação dos sujeitos no processo de gestão, enfocando as questões da
liderança;
-
compreender como os sujeitos vivenciam afetivamente o cargo que ocupa,
ou seja, entre aqueles que definem as metas e políticas e aqueles que devem
executar as tarefas;
-
e finalmente, a compreensão do sofrimento humano na relação que o sujeito
estabelece com o trabalho.
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MÉTODO
O estudo foi desenvolvido em duas empresas de grande porte do setor de
agronegócios do interior do Estado de São Paulo, a fim de estabelecermos um paralelo
entre ambas. A escolha de gerentes dessas empresas deu-se por se situarem exatamente
no espaço intermediário da hierarquia: entre os que definem as metas e as políticas da
organização e os que executam o trabalho diário. Essa posição foi adequada ao estudo,
pois o gerente recebe pressões de ambos os lados e necessita utilizar-se de recursos para
que o trabalho possa desenvolver-se de forma produtiva.
Os participantes selecionados para a realização das entrevistas foram escolhidos
de forma aleatória por sua respectiva empresa, perfazendo o total de 30 gerentes de
empresas que desenvolvem atividades em diferentes áreas. O material de estudos
constitui-se de observações do cotidiano na organização e relatos desses gerentes,
obtidos por meio de entrevistas semi-diretivas, gravadas e transcritas. Utilizamos nomes
fictícios para preservar a identidade dos mesmos. De forma geral, as médias de idade e
de serviço entre cada empresa foram: empresa A – 43 anos de idade e 15,5 anos de
serviço; empresa B – 35 anos de idade e tempo de serviço de 7 anos.
A coleta de dados foi fundamentada na proposta de Dejours, seguindo essas
indicações, em que se considera o sujeito:
[...] nas articulações entre o sofrimento singular, herdado da história
psíquica própria de cada indivíduo (dimensão diacrônica), e sofrimento
atual, surgido do reencontro do sujeito com a situação de trabalho (dimensão
sincrônica). (DEJOURS, 1992, p.150)
A partir dessa forma de compreensão do fenômeno, percebemos como o
indivíduo vivencia seu sofrimento, mediante a sua relação com a organização do
trabalho, e ainda, tendo em vista que ela pode ser fonte de pressões, de dificuldades e de
desafios. Aspectos estes que podem produzir sofrimento, mas também satisfação.
A técnica utilizada para a coleta de dados foi a entrevista semi-diretiva, seguindo
as orientações e precauções apontadas por Bleger (1998).
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A análise dos dados fundamentou-se na abordagem Psicodinâmica do Trabalho
de Dejours, visando compreender o sofrimento psíquico, decorrente da organização do
trabalho, levando-se em consideração a questão sociocultural.
RESULTADOS
Trajeto profissional dos líderes: a escolha da profissão e o contato com o trabalho
Para buscar essa compreensão foi necessário resgatar dados da fase inicial de
suas vidas, sua origem, para relacionar com as suas escolhas atuais e futuras.
Na empresa A, a maioria dos sujeitos pertence à zona rural e isto mostra o tipo
da organização escolhida para desenvolver suas atividades de trabalho:
Antes de trabalhar no sítio eu trabalhava com meu pai,
que meu pai arrendava terra, plantava lavoura, essas
coisas, quando eu era moleque. (Mário)
Já na empresa B, parte dos sujeitos entrevistados também veio da atividade rural:
Olha, minha infância, nós fomos de uma infância muito
pobre, então, é... de roça mesmo, os pais moravam em
fazenda, tive uma infância difícil pra caramba.( Luiz )
O sítio ou a fazenda era local comum na vida desses trabalhadores. Atuar em
uma empresa de agronegócios era uma perspectiva de mudar de vida, mas mantinha
uma certa ligação com a atividade desenvolvida desde a infância.
Há uma proximidade do trabalho com as relações familiares. A maioria dos
entrevistados iniciou as atividades profissionais com seus pais. Apesar de viverem em
condições precárias, esse espaço construído pelos sujeitos, possibilita uma relação de
proximidade que caracteriza um sentimento de pertença. Para Eiguer (1989), pertença
significa que cada membro da família vivencia em relação aos outros membros uma
sensação de proximidade e de tratamento diferenciado em relação às outras pessoas não
pertencentes ao grupo, também a existência de um passado comum e um tipo de relação
identificada e reconhecida pela família.
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Além disso, este sentimento de pertença se alimenta de percepções inconscientes
causadas pelo reconhecimento das reações dos outros diante de tal dizer ou agir. Tratase de um metaconhecimento da interação: “sabe-se” de antemão em que se basear
quando se fala, ou quando se fala, ou como fazer o outro reagir (EIGUER, 1989, p.38).
Esse sentimento presente na vida dos sujeitos mostra uma relação direta do
trabalho dos pais. A maioria iniciou sua atividade profissional com o pai. O trabalho na
empresa de agronegócios representa, então, uma possibilidade de ascensão e busca de
uma vida melhor.
Em geral, a figura paterna está sempre relacionada ao trabalho, o que de certa
forma indica o processo de construção da sua relação com a atividade produtiva. Assim,
é necessário enfatizar que os processos psíquicos vivenciados na infância são
significativos para a inserção no mundo do trabalho. É na infância que a criança sente a
angústia dos pais, tal como revelam os entrevistados.
Além disso, a atividade profissional dos pais também pode influenciar na
escolha de seus filhos. Tal como ocorreu com os trabalhadores da empresa A:
Eu trabalho desde criancinha, meu pai sempre pôs a
gente pra trabalhar ... eu abria porteira pra aqueles
caminhão que ia buscar leite nas usinas, então meu pai
me arrumou o serviço de leiteiro, e eu ia com ele pra
abrir porteira por causa de um litro de leite ... meu pai
era lavrador.( Celso )
O mesmo ocorrendo com os sujeitos da empresa B:
Brincava muito. Meu pai tinha uma, uma destilaria
pequena e eu brincava dentro da usina. Então fui criada
dentro de usina, sempre trabalhei dentro de usina.
Gostava
de
brincar,
mas...(Elizabeth )
gosto
né,
até
hoje
[risos],
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É, a gente espelha nos pais, nos irmão mais velho né, tudo
trabaiava, gostava de mexer co sítio, gosto até hoje... eu
to... aqui não dá tempo né. Tô mais aqui na, na usina
mesmo.( Jorge )
Além disso, uma outra característica na vida desses sujeitos é de que a
construção do trajeto profissional foi se estabelecendo na prática.
Para a empresa A:
Quando eu era moleque, eu lembro desde moleque os
lugares onde a gente morou que foi aqui nessa região,
morava em um sítio ... meu pai era tratorista ... eu entrei
aqui trabalhando como tratorista.( Fábio )
E na Empresa B:
... olha, um espelho, um espelho a vida não faz. O meu
pai, ele não tinha nada na vida certo? Ele era um pedreiro
né, ele chegou a ser, comprar lá a serraria, foi o que ele
teve, chegou a ser visto pelo povo da cidade, batalhando,
nunca teve nada, batalhando foi que ele conseguiu. Nos
últimos dias, nos últimos tempos agora, deu um vacilo,
teve que fechar a serraria e tudo, mas...( Roberto)
De acordo com Dejours (1992), a criança não consegue diferenciar e não
consegue expressar seu sentimento em relação aos sentimentos dos pais, desta forma, o
sofrimento nasce e vive com ela própria. A criança vivencia a angústia e tem medo de
tocá-la, pois sente a ameaça de aumentar o sofrimento dos pais e dela própria.
Essa condição parece indicar uma escolha já é preestabelecida, pois o trabalho
na vida desses sujeitos inicia-se na infância com as atividades profissionais dois pais.
Considerando os trajetos percorridos pelos sujeitos, pode-se entender a forma
como chegaram aos cargos atuais:
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E naquela época que eu vim pedir serviço, fiz teste aqui e
depois ia me chamar em casa e não chamou, aí chamou
gente reprovada aqui, que fizeram teste comigo, falaram
na
minha
frente
que
tinha
sido
reprovado,
mas
chamaram, e eu fiquei fora, aí no outro ano seguinte, vim
aqui atrás de serviço, aí fui bem recebido, trabalhei um
ano em uma safra, no final da safra chamaram pra ficar e
eu to até hoje, graças a Deus, não tenho queixa nenhuma
deles aqui ... entrei aqui como ... no primeiro ano, e já fui
engrenando, ajudando, fazendo, tudo que tinha que fazer,
ajudava, fazia, sei lá se foi bem feito, mas fazia, e depois
de uma certa idade, eu já tava aqui fazia 7 anos, já me
chamaram pra ajudar no serviço de encarregado, de
comecinho a gente fica até meio assim, porque de ... você
virar encarregado, é complicado, você ter uma noção das
coisas, mas não é, porque é mais fácil você ser mandado
do que mandar ...( Rafael )
Na empresa B, o mesmo pode ser visualizado, como na empresa A:
Olha, porque eu já fazia parte da, da, da área do campo,
então no começo ce ficava assim meio, eu pensei pra mim:
pô, eu vou ter que encarar trabalhar de fiscal, não é fácil
na época sabe, é um negócio complicado, o pessoal que
tinha nas época de 80 pra o que tem hoje tem muita
diferença sabe, em termos de, do que a empresa oferecia
na época pra eles sabe, não é que eles eram...na época o
recurso eram outro, então o trabalhador era bem mais
difícil do ce administrar, do que é hoje. Então falava: pô
começá de fiscal aí, não sei se eu vô seguir carreira,
porque o negócio era complicado né. Mai depois c,com
os, como o tempo passa, e os anos passando né, a empresa
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foi melhorando, as condições pra, pra quem trabalhava no
campo e tal né, e com isso o povo ficou mais fácil de se...
lidá com eles, ce entendeu?(Lauro )
O crescimento profissional dos sujeitos na empresa possibilitou uma articulação
bem sucedida entre a concepção e a execução do trabalho. Essa articulação facilitou a
elaboração do espaço entre a organização prescrita e real do trabalho.
No entanto, Dejours (1992) considera que, além das duas condições já citadas –
a escolha da profissão e o encontro do sujeito com o trabalho –, existe ainda uma outra
para o estabelecimento da ressonância simbólica: o reconhecimento dos pares. Esse
reconhecimento é fruto de uma espécie de julgamento por seus parceiros.
O trabalhador busca o reconhecimento. Tal reconhecimento é fundamental para
que ocorra a sublimação que, por sua vez, é importante para a construção da identidade.
Vejamos como ocorreu com os sujeitos da empresa A:
... eu gosto muito aqui da ..., porque tudo que eu tenho,
tudo que eu consegui, eu consegui através da ..., porque
eu tenho um relacionamento muito bom com a diretoria,
com os outros gerentes e...( Joaquim )
Já na empresa B:
“...então tem um trabalho legal cara e o pessoal do
campo, pelo jeito que a gente percebe gosta muito do
nosso trabalho e respeita a gente, por isso que eu falei no
começo que eu sempre vou lá, por que eu tenho esse
respeito som eles, e eles, eu respeito também bastante
eles, e então, eles me ajudam muito, cara e se eles não
assumissem o projeto, não daria certo né. Na verdade,
eles também no campo fizeram a parte de compra o
projeto né, então vamo faze, e a parte de recurso a
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empresa liberou sem problema nenhum. E dá resultado, ta
bom o resultado.( Eduardo )
De uma forma geral, os sujeitos parecem ter encontrado um trabalho que
pudesse conciliar os seus desejos com a sociedade. A atividade profissional possibilitou
recuperar as vivências da infância e o crescimento no trabalho.
O trabalhador procura desenvolver as suas atividades em busca da solução de
seus
problemas,
que
constitui-se
em
atividade
de
elaboração,
obtendo
um
reconhecimento social de sua atuação. É exatamente nessa busca que se constrói os
novos desafios simbólicos.
Liderança: uma construção do cotidiano
Os gerentes e encarregados, que agora denominamos de líderes destas
organizações, foram construindo a sua forma de atuar na prática do cotidiano. Não
constatou-se em nenhuma entrevista elementos que possam indicar reflexões acerca do
cargo que ocupa e a necessidade de ter um conhecimento sobre o trabalho de lidar com
o grupo.
Antes de compreender a questão da liderança, é importante considerar como os
gerentes e encarregados lidam com a pressão no trabalho:
É esse o tipo de problema que a gente tem no dia-a-dia ...
a diretoria sempre cobra, né, sempre cobra resultado...
Pressão, não, não faz pressão não porque a gente
trabalha, inclusive em horário até de uma certa folga que
dá pra cumprir o que a diretoria determina, mas sempre
cobrando,
sempre
pedindo,
sempre
querendo
um
resultado melhor...( Joaquim )
Os sujeitos da empresa B também vivenciam situações de tensão e conflito,
como podemos notar:
... a gente que é novo, a primeira vez a gente fica com
medo né, de, de começá o serviço, não dar certo e ser
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mandado embora, entendeu? A gente, quando começa, a
gente, a gente quer dar certo no serviço entendeu? Porque
é o começo de tudo, então eu tinha medo de dá errado,
deles não gostá, de ser mandado embora e tal. Que nem é,
que nem quando eu cheguei aqui, entendeu? Eu também
quando cheguei, entrei de encarregado aqui, eu entrei
com medo de não dar certo, mas hoje eu to bem tranqüilo
com que eu faço, entendeu? Bem tranqüila naquilo que eu
faço, naquilo que eu... entendeu? Então a gente no
começo tem aquele receio de, de não dar certo, do pessoal
não gostá do seu serviço tal, daí a gente vai, corre atrás
do objetivo, rala pra dá o melhor da gente e tocá o barco
pra frente. (Sérgio)
Na verdade, a liderança foi sendo construída tendo como imagem a figura
paterna, que dirigia a realização dos trabalhos na infância; como pôde ser observado
anteriormente. Já no trabalho, os seus superiores foram sendo modelos para a atividade
de gestão.
Outro aspecto que é possível de ser observado refere-se à valorização do
conhecimento do trabalho que desenvolve. Essa necessidade de mostrar “conhecedor” é
um dos valores mais enfatizados pelos trabalhadores, ou seja, para coordenar uma
equipe é necessário conhecer o trabalho.
Empresa A:
As dificuldades que vai tendo a gente vai resolvendo,
tentando passar por cima, assim, algum problema que
tem a gente fala com o ..., que é o dono, os amigos, os
outros
encarregados,
e
vai
tocando
o
serviço...
Dificuldade a gente tem, todo dia a gente tem, todo dia a
gente erra, e vai indo, né, porque, assim, eu não sou
técnico (...) quando vim trabalhar aqui na ..., eu tive
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oportunidade aqui na ... de terminar os estudos, né, eu
terminei, eu fiz até o 2° grau, e graças a Deus, eu conclui
o 2° grau, mas eu não tenho nenhum curso técnico (...) é
tudo por experiência mesmo, eu trabalho de acordo com
o que eu aprendi, e vai indo no dia-a-dia, cada serviço,
ah é gostoso, né. ( Fábio )
Já na empresa B:
Foi complicado, porque na verdade eu não sabia nada.
Até quando eu vim fazer a entrevista, é, a doutora..., que a
é diretora hoje, né, de desenvolvimento aqui, ela falou pra
mim:
e aí qual é sua
experiência
experiência?
Disse,
minha
é de cadeira de escola, eu não tenho
experiência nenhuma, eu não sei nada nunca vi ninguém
trabalhar, porque eu nunca trabalhei numa empresa onde
tivesse um departamento de... , num, não sei nada, mas eu
tenho vontade de aprender, se você me der oportunidade
eu vou, eu vou tentar fazer por merecer sua confiança, né,
e aí deu certo, eu aprendi muito com os meninos e
aprendo até hoje, eu falo pros meninos é, hoje eu tenho
uma equipe que... eu adoro esses meninos que eu trabalho
hoje.(Sonia)
A construção no cotidiano sobre as lideranças aparece também na forma de
dedicação ao trabalho, ficando à disposição em qualquer horário quando a atvidade
requer.
Empresa A:
Eu preciso supervisionar a equipe de mecânicos... Por
que eu aprendi não só a conhecer a moenda, mas a
caldeira também, e todo resto, então isso te dá uma visão,
uma direção, que dá uma melhor solução para o trabalho
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... Problemas centrais, por exemplo... A moenda... Parou
a moenda ... Então a gente procura manter uma coisa
constante, a estabilidade geral que mantém a produção ...
quando entrei na ... em 93 eu fiz uma safra, e voltei em
janeiro como funcionário efetivo da empresa, aí fiquei um
longo período sem estudar, e nesse meio tempo ganhei o
cargo de assistente de produção, um cara que dá todo
tipo de suporte, para todos os setores, são em três, tem
um de manhã, a tarde e a noite, quando os encarregados
não estão todo mundo procura os assistentes, qualquer
problema mais sério que ele tenha, qualquer horário, me
procura, ou procura outro encarregado.( Renato )
Empresa B:
Eu não sei, eu, eu sou muito imediatista (...)
(...) ah.... eu acho que eu cresci bastante dentro da
empresa, depois que eu entrei, mas eu adoro, eu, puts, eu
me sinto muito bem aqui, acho que por isso também, sabe.
As coisas vão saindo, eles têm coragem de jogar algumas
coisas na minha mão. Então, se eu acho que é muita coisa,
acho que não. Às vezes eu vou pra casa a noite e fico lá
pensando nas coisas que eu tenho daqui, sabe, mas isso aí
também não me faz mal, isso aí eu não tenho... esses
tempos atrás até a gente precisou ficar um pouco mais,
até mais tarde aqui pra resolver algumas coisas, e um dia
eu tava conversando com um técnico que trabalha comigo
aqui, ele faz o turno 2 então ele fica até as 11 e meia da
noite. Então eu acabo pegando o turno 1 inteiro e quase o
turno 2 também intero. Daí ele ficava, passava bastante
tempo comigo. E um dia ele falô pra mim: nossa Sônia,
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são 10 horas da noite e ce tá aqui, ce tá de bom humor?
Eu falei assim, eu fale assim: eu to acostumada com isso
né, na minha casa eu aprendi isso, meus p, meu pai
trabalha até muito tarde; meu pai, eu cresci com meu pai
chegando 10 e meia da noite. Então pra mim, o fato de
quando eu tenho que ficar até mais tarde, eu não sofro. Eu
não sei se isso é bom ou se isso é ruim. Eu acho que é bom
porque eu não sofro. E o lado ruim é que tem gente que
fala que, então a empresa vai te explorar. Mas eu não,
não enxergo dessa forma. Então eu acho, eu trouxe isso de
casa...( Sônia )
Ao colocar como tarefa do líder conhecer bem a atividade que exerce e dedicar o
seu horário para o trabalho, inclusive o horário de lazer, ele busca obter o
reconhecimento.
Esse
reconhecimento
passa
também
pela
necessidade
de
reconhecimento de seu desejo.
No ambiente de trabalho, cada um procura expressar seu desejo e se fazer
percebendo pelos outros. Ele tenta se fazer amar por si mesmo ou, no
mínimo, não ter rejeitado, procurando obter status, prestígio e realizar aquilo
que deseja. (MIZUMOTO, 2003, p.124).
O líder considera que é nesse grupo da organização que, além de poder
concretizar um projeto coletivo, poderá ter seu desejo reconhecido. A construção desse
imaginário, que pode ser comum, tanto do líder como dos liderados, cada um em sua
especificidade, definirá as formas de atuação específica desse grupo.
Assim, cada líder tentará prender os outros na rede de seus próprios desejos,
manifestando os seus reais interesses e os fantasmas de onipotência.
Empresa A:
Que é o que todo mundo conhece, então, eu nunca,
peguei, por exemplo, trabalhando comigo, porque eu nem
gosto da palavra chefe, não gosto da palavra chefe,
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porque nóis não precisa de chefe, eu acho assim, quem
tem chefe é índio, nóis não precisa de chefe, então eu
menor, era difícil assim, contornar a situação, mas
graças a Deus eu sempre, assim, soube ter um
relacionamento bom, então, hoje, eu coordeno tudo esse
pessoal que está comigo aqui, todo o pessoal, e você pode
sair perguntando, porque não tem nenhum deles que
trabalha... (Celso)
Empresa B:
... eu procuro ser, não ser aquele cara mandão, procuro
ser um cara amigo, eu cobro muito do pessoal, mas
procuro ser amigo, eu entendo também o lado de rodo
mundo. Não quero chegar lá e ser aquele cara autoritário
não, tem que fazer e vamo é do jeito que eu quero,
procuro ser um amigo sabe... trabalhar juntinho, a gente
ser juntinho pra vencer, por que hoje a vitória nossa, não
é chegar lá e falar: você, eu aqui fiz isso e isso e ó meu
nome tá ali porque eu sou o tal.( Roberto )
Os sujeitos não expressam seus desejos apenas para solucionar os problemas,
mas eles querem ser reconhecidos, fazendo parte desse mundo, com segredos e sendo
reconhecidos pelos seus pares. Buscar ainda, a possibilidade de se identificar entre si,
colocar um mesmo objeto de amor, que seria a causa luta, em lugar de seu ideal de ego.
É importante considerar que a liderança não pertence ao líder, mas ela é
constituída na relação que se estabelece com as pessoas que compõem o grupo. Nesse
sentido, deve existir na correspondência entre as ideias e ações que o líder propõe e os
desejos dos subordinados.
Na organização existe a questão da hierarquia que estabelece os papéis que
devem ser assumidos. É por meio da hierarquia que o líder assegura a sua condição na
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organização. Sem essa possibilidade, a liderança deixa de ser considerada, pois não
existiriam os seus subordinados. Há necessidade de manter seu posto.
Dessa forma, na história de vida dos gerentes e encarregados, principalmente em
relação ao desenvolvimento profissional, podemos notar que devido às dificuldades
vivenciadas, eles tentam solucionar os problemas por meio de outros que ocupam
posições hierárquicas superiores. Eles recorrem, então, correntemente, aos superiores
imediatos apresentar suas ideias.
É necessário compreender o que representa o imaginário tal como é apontado
por Lapierre (1995):
O imaginário representa um trabalho interior, mais ou menos consciente, de
transformação, de mudança e de criação. Mesmo que o produto da
imaginação seja elaborado a partir de informações estocadas na memória,
eles são também e sobretudo o resultado das projeções ou das construções
intelectuais que o sujeito elabora a partir destes conteúdos memorizados. O
imaginário é então, essencialmente uma realidade subjetiva. (p.10)
Assim, a realidade subjetiva é formada por objetos e significações, a partir das
representações de pessoas, ideias e pensamentos, imagens e possui uma realidade
própria. A liderança faz parte desse mundo interno, além da capacidade de análise,
conhecimento técnico, sensibilidade política e habilidades de direção.
O que podemos observar no grupo de gerentes e encarregados dessa organização
é uma valorização dos aspectos relacionados à capacidade de análise e conhecimento
técnico. Essa possibilidade de olhar a liderança faz parte da forma como os valores
culturais são considerados na empresa.
Para olhar de uma outra forma, a liderança carece de um outro tipo de
investimento ou seja, considerar as dimensões esquecidas da relação indivíduo e
trabalho tal como aponta Chanlat (1992).
Sofrimento psíquico e trabalho
De uma forma geral, o grupo de gerentes e encarregados investe esforços para
lidar com o sofrimento. Não hesita em buscar vencer as dificuldades e adversidades
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postas pela condição de trabalho, mantendo a esperança de descobrir ou criar condições
para melhorar a empresa.
A criatividade confere sentido porque ela traz, em contrapartida ao
sofrimento, reconhecimento e identidade. E o sentido afasta o sofrimento
porque em contrapartida à repetição (ressurgimento do sofrimento) ele dá
acesso a uma história (a experiência vivida): cada inovação é diferente das
outras. Pela série encadeada de suas descobertas ou de suas invenções, o
sujeito se experimenta e se transforma. (DEJOURS, 1992, p.160).
O grupo toma o desafio e luta em busca de soluções que envolvem a empresa.
Nessa perspectiva, constrói uma forma de pensar, agir, sentir na relação que se
estabelece na empresa e também como tentativa de conciliação
entre o que
individualmente cada um foi construindo ao longo do tempo e a realidade da empresa.
Empresa A:
... então a experiência é muito grande, então vontade de
trocar de setor, eu não tenho não, eu tenho assim, a gente
sabe como que trabalha na caldeira, na fábrica, porque é
muitos anos de usina né, então eu não tenho vontade de
trocar não...( Marco )
Empresa B:
... eu tenho um respeito e um carinho muito grande pelas
pessoas que trabalham aqui; é muito bom trabalhar aqui
porque a empresa aqui é boa, sabe, tem, tem, deixa a
gente trabalhar, ta, não existe uma exigência muito
grande, além do normal, a possibilidade, então isso é
importante. E trabalhar, acho que agora com esse
crescimento, eles tão dando oportunidade, tão dando, tão
mudando a visão inclusive da né, tão crescendo lógico que
tão mudando. Então a empresa é boa pra gente.( Pedro )
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No processo de sublimação, o indivíduo associa sofrimento e prazer em uma
trajetória comum, por meio de uma relação estreita, que um encobre o outro. Esse
mecanismo constitui-se de uma operação de subversão do sofrimento, que sempre
recomeça, mas elimina a repetição. A tentativa é de reconciliar a saúde mental e o
trabalho, buscando articular a história singular com a situação atual.
Para a maioria dos sujeitos, a relação de trabalho possibilita um sofrimento que
podemos considerar como criativo, pois existe a viabilidade de construções de espaços
pessoais. Assim, eles reconciliam-se com o passado e fazem a ligação com o futuro.
Discussão
O grupo de gerentes e encarregados dessa organização
vislumbra no
desenvolvimento de suas atividades uma possibilidade de compreendê-la, atribuir-lhe os
significados, encontrar alternativas e/ou dar continuidade ao próprio trabalho. Essa
busca de sentido que gera o sofrimento possibilita a criatividade, o reconhecimento e a
identidade dos trabalhadores.
O regate da história do indivíduo na sua relação com o trabalho constitui-se em
dado necessário à compreensão da saúde mental. É também dessa recuperação que se
pode entender o sentido da busca de prazer no trabalho que, por sua vez, é derivado do
sofrimento.
Assim, esse grupo de trabalhadores considerou sua história e optou por
atividades, de certa forma ligada às anteriores, vivenciadas na infância, junto com seus
pais. Tal vivência permitiu conciliar aquilo que foi construindo ao longo da vida com a
realidade da empresa, possibilitando uma forte ligação com a mesma e consequente
satisfação no trabalho.
Um dos aspectos que a empresa preserva, apesar de não ser de uma forma
sistematizada, é o espaço da palavra. O espaço que abre a condição de poder
compartilhar as dificuldades e propor sugestões, e isso é condição primordial para a
manutenção do equilíbrio e da saúde mental. Ele constitui-se em uma possibilidade de
ocorrer o processo de reconhecimento
e filiação. Espaço necessário para a
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transparência, exteriorização, confiança, solidariedade e reconhecimento para melhorar
as relações de trabalho.
Em relação à liderança, praticamente todos os gerentes e encarregados
construíram sua forma de lidar com os subordinados em sua prática profissional. O
primeiro modelo foi o pai, com quem praticamente todos os sujeitos iniciaram a carreira
profissional e depois com seus superiores imediatos nas várias atividades desenvolvidas
até chegar ao cargo atual.
Essa forma de construção do papel de líder tende a valorizar o conhecimento
técnico como essencial para ocupar o cargo. Além disso, a confiança de ambos os lados
– patrão e subordinados –, é condição essencial para o desenvolvimento da liderança.
Tal confiança que aparece por meio da fidelidade e dedicação ao trabalho.
Assim, a liderança revela-se de forma mais objetiva nas tentativas de solução
dos problemas de relação que ocorrem no interior da organização. Só então, que a
subjetividade emerge, sendo que cada um dos líderes pode se conhecer e, a partir disso,
construir uma forma de lidar com os subordinados e com os problemas da organização,
ampliando as possibilidades de bem estar e, consequentemente, de maior produtividade.
... não esqueçamos, que como escrevia A . Schoutzler “a alma é uma terra
estrangeira/estranha” e que, pois, apesar de numerosas armadilhas semeadas
pelas estruturas estratégicas, levantar-se-ão sempre indivíduos que,
conscientes de sua estranheza, do aspecto labirintico de sua alma, preferirão
as alegrias (e as angústias) que expressam o fato de serem sujeitos pensantes
e falantes, ao invés desses “balões” um pouco já murchos que lhes revelam as
estruturas estratégicas. (ENRIQUEZ, 2000, p.38).
Mesmo com as dificuldades que o indivíduo enfrenta, devido às numerosas
armadilhas das estruturas organizacionais, ele sempre renasce em busca de vida. E é por
meio desse movimento que a organização também deverá atingir um novo lugar, uma
nova forma de sentir, de ver e lutar pela continuidade. É um renovar sempre.
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REFERÊNCIAS
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Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CHANLAT, J. F. Por uma antropologia da condição humana nas organizações. In:
CHANLAT, J. F. (Coord.). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas.
Tradução Ofélia de Lanna Sette Tôrres. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1992. v. I, p. 24-45.
DEJOURS, C. Uma nova visão do sofrimento nas organizações. In: CHANLAT, J. F.
(Coord.). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. Tradução Arakcy
Martins Rodrigues. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1992. v. I, p. 151-173.
. Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional.
v. 14, n. 54, p.82, 1986.
EIGUER, A. Um divã para a família. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
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F. C.; FREITAS, M. E. (Org.) Vida psíquica e organização. Rio de Janeiro: Ed. FGV,
2000.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. (1930 [1929]). In: Obras completas. Tradução
Jaques Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago. v. XXI. p. 65-148, 1996.
GAULEJAC, V. Psicossociologia e sociologia clínica. In: ARAÚJO, J. N. G. &
CARRETEIRO, T. C. (Org.) Cenários sociais e abordagem clínica. São Paulo: Escuta,
Belo Horizonte: Fumec, 2001.
LAPIERRE, L. Imaginário e Liderança. São Paulo: Atlas, 1995.
MIZUMOTO, A. I. Outono em uma organização: convivendo com as crises.
Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade
Estadual Paulista, Assis, 2003.
PÁGÈS, M. et al. O poder das organizações. São Paulo: Atlas, 1987.
PELLEGRINO, H. Pacto Edípico e Pacto Social. In: PY, L. A. et al. Grupo sobre
61
grupos. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.