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I Fórum de Pesquisa CCL Mackenzie - 25 de outubro de 2011
Abrindo os primeiros livros impressos: algumas considerações sobre cor e forma 1
Regiane CAIRE SILVA2
Maria Helena ROXO BELTRAN3
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP
Resumo
No decorrer século XV a tipografia passou a ser usada na Europa e com ela foram
produzidos os primeiros livros impressos ilustrados com xilogravuras.
Escolhemos dois livros impressos, ricamente ilustrados com a técnica de reprodução
xilográfica: o Liber Chronicarum de 1493 do autor Hartmann Schedel4 e o Liber de arte
distillandi... de Hieronymus Brunschwig publicado pela primeira vez em 15005.
Analisamos no primeiro livro as relações imagem-texto, e verificamos que as ilustrações
coloridas à mão seguem os padrões dos manuscritos iluminados; no segundo, também
enfocando as relações imagem-texto, analisamos o afastamento do modelo ditado pelos
manuscritos e a construção de novas formas de leitura favorecidas pelo livro impresso.
Palavras-chave
Destilação; Incunábulo; Tipografia; Xilogravura.
Reprodução da imagem: a xilogravura
Não se sabe ao certo quando a xilogravura começou a ser praticada, mas, é
possivelmente “ o veículo mais antigo gerador de imagens e que deu origem a todo o
processo multiplicador hoje existente no campo da impressão”(MARTINS,1987, p.30).
O conhecimento mais antigo da xilogravura impressa sobre papel, encontra-se em um
exemplar ilustrado de oração budista, na China, por volta de 868 d.C. Acredita-se que
antes dessa data a Índia já usava a técnica para estampar tecidos.
Etimologicamente a palavra xilografia é composta por xilon e por grafó ambas
de origem grega. Xilon significa madeira e grafó , gravar ou escrever .
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Trabalho apresentado no I Seminário de Pesquisa CCL – Mackzenzie - São Paulo, 25 de outubro de 2011.
Doutoranda em História da Ciência na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-SP [email protected]
Doutora em Historia da Ciência PUC-SP [email protected]
O livro pode ser acessado no site da USP na Biblioteca de Livros Raros no link
http://www.obrasraras.usp.br/livro.php?obra=000192
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Várias edições dessa obra encontram-se no acervo da Biblioteca Digital do CESIMA/PUCSP
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A técnica chega à Europa,
por volta do inicio do século XIV onde observamos
desenhos figurativos estampados em tecidos e jogos de cartas de baralho xilografados.
As origens da impressão com blocos de madeira na Europa estão envoltas em
mistério. Depois que as Cruzadas abriram a Europa a influencia oriental, a
impressão em relevo chegou na trilha do papel. Baralhos e estampas de imagens
religiosas foram as manifestações iniciais (MEGGS, 2009, p.91).
Nesse período são editados livros xilográficos nos quais toda a produção,
imagem e um pequeno texto, são esculpidos lado a lado na mesma matriz de madeira.
Esses livros de baixo custo, dirigidos a um público pouco letrado ou mesmo analfabeto,
eram, em geral, vendidos em feiras e traziam temas geralmente religiosos.Também com
esse formato foram produzidas gravuras soltas, trazendo imagens de santos e paisagens,
que os visitantes das feiras poderiam levar como recordação (IVINS, 1975).
Com a generalização do uso dos tipos móveis na Europa, as xilogravuras
passaram a participar nas ilustrações dos livros impressos. Existem controvérsias sobre
o primeiro livro impresso a se valer da técnica xilográfica para a reprodução das
imagens. Segundo Ivins (1975, p.42) teria sido o livro Edelstein de Ulrich Boner,
impresso em Bamberg por Ultrich Pfister em 1461. Já para Meggs (2009, p.107), o
livro seria Der Ackerman aus Bohmen de Johannes von Tepl, publicado em 1460 pelo
mesmo Pfister . Não podemos destacar os primeiros ou os pais em processos que pela
sua natureza foram aparecendo em muitos lugares ao mesmo tempo, o que temos certo
é que com a produção mais quantitativa do livro impresso a imagem que antes era feita
manualmente, a iluminura, também deveria ser produzida com mais rapidez, nesse
sentido o uso da xilogravura foi adotado em meados do século XV como técnica de
reprodução da imagem dentro dos livros.
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Manuscrito e tipografia: uma passagem longa e
branda.
Ao contrário do que afirmam alguns estudiosos
atuais, a difusão do livro impresso na Europa não foi tão
drástica quanto se poderia pensar (EISENTEIN,1979).
De fato, não parece ter existido uma ruptura com o
manuscrito e, de inicio, os livros impressos procuravam
O gravador de madeira-gravura
de Jost Amman
imitar os manuscritos (BUHLER,1977) .
Evidência das estreitas relações entre as formas impressa e manuscrita de
reprodução de textos é que as diferentes técnicas de gravura, impressão, iluminura e
rubrica foram indistintamente utilizadas na ornamentação e na ilustração, tanto de livros
impressos, quanto de manuscritos (BELTRAN, 2000, P.27).
A caligrafia feita por escribas experientes foi imitada no tipo móvel, o que
chegava a confundir o leitor. Já as imagens que nos manuscritos eram as iluminuras,
pintadas uma a uma primorosamente, no livro tipográfico foram substituídas por
xilogravuras que poderiam ser posteriormente coloridas dentro do contorno das linhas
impressas, ou seja, iluminadas uma a uma. Isso tornava a edição mais cara, porém, mais
parecida com o manuscrito. É interessante observar que na mesma edição de um livro
alguns exemplares que chegaram aos nossos dias
apresentam imagens
coloridas
(iluminadas), enquanto que outros não. Isso indica que a pintura das imagens era feita
por encomenda após a impressão.
No Liber Chronicarum a proximidade visual das imagens impressas e
iluminadas como as iluminuras dos manuscritos é muito grande, chamando a atenção o
modo com que as imagens invadem o texto e emolduram as páginas tentando ser livres
como na pintura dos manuscritos. Sabendo da dificuldade de fazer uma matriz em
madeira com tantos detalhes e de ajustá-la com os tipos móveis para a impressão vemos
o quão complexa deve ter sido a fatura das ilustrações do Liber Chronicarum.
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No processo de gravura colorida cada cor necessitaria de uma matriz ( bloco de
madeira) que deve ser colocada na prensa cuidadosamente para não haver erros de
registro, uma dificuldade técnica muito grande. Assim, colorir a mão foi uma boa saída
para imitar o efeito visual das iluminuras, como mostram os fólios reproduzidos a
seguir.
Detalhe, São Miguel e o dragão – 1548 – manuscrito
Pagina impressa do Líber Chronicarum 1493
A produção tipográfica que foi adaptando a passagem do manual para o
impresso e os primeiro livros produzidos com essa técnica , apenas nesse período do
século XV, chamou-se incunábulo da palavra latina incunabula que significa “berço”.
Foi no século XVII que historiadores começaram a utilizar esse termo para designar os
livros impressos desde Gutenberg até o término
do século XV, sendo uma data
arbitrária (MEGGS, 2009, p.105).
Os incunábulos foram os livros impressos que mais se aproximaram dos
manuscritos tanto em forma como em cor, também vamos notar no Liber de Arte
Distillandi de Hieronymus Brunschwig de 1500, o amadurecimento da impressa e de
sua formação estética “começou a ser rompido as relações com os manuscritos através
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de introduções de modificações que levaram o livro impresso a adquirir seu aspecto
próprio” (BELTRAN, 2009, p.27).
O livro Liber Chronicarum de 1493 conhecido também por Crônica de
Nuremberg é um incunábulo , este livro foi escrito em duas versões, latim e em alemão,
do autor Dr. Hartmann Schedel projeto ambicioso e de fôlego que procurou nesse livro
tratar de diversos assuntos desde a criação do mundo até os dias em que foi finalizado .
Foi impresso por Anton Koberger (c.1440-1513) proprietário de importante casa
editorial germânica.
A Crônica de Nuremberg é constituída por 600 páginas adornadas com 1809
xilogravuras. Segundo Meggs, muitas imagens foram repetidas no livro sendo que
foram feitas apenas 645 matrizes diferentes. Assim, por exemplo, de acordo com o
mesmo estudioso, 598 retratos de papas, reis e outros personagens foram impressos a
partir de apenas 96 matrizes de madeira. (MEGGS, 2009, p 110).
Os ilustradores Michael Wolgemuth e seu enteado Wilhelm Pleydenwurff
usaram muita imaginação na concepção das imagens e o empenho de expressar toda a
história da criação. Também estavam incumbidos de criar amostras, manuscritos,
gravar, corrigir e preparar as matrizes para a impressão. Outros artistas participaram dos
croquis e vários escribas, comparando o original com o impresso podemos notar a
preocupação com a
diagramação, o texto manuscrito tem a mesma contagem de
caracteres que a linha de tipos para garantir uma conversão impressa precisa.
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Manuscrito do Líber Chronicarum
Página do livro impresso
È interessante notarmos como o ilustrador usou um recurso empregado em
manuscritos, onde para a criação do layout , um estudo era feito manualmente
definindo a diagramação e ilustração, neste caso, para orientar a impressão tipográfica.
Nota-se que alterações eram feitas na composição final em relação ao original.
A página de rosto do índice é uma xilogravura de
caligrafia, mais uma vez recurso visual
aproximar aos manuscritos,
atribuída a
para se
em página inteira
George Alt (c.1450-1510), “escriba que
ajudou Hartmann Schedel no desenho de letras da
amostra em latim e que traduziu o manuscrito do latim
para o alemão para essa edição” (MEGGS, 2009,
p.112) .
Folheando o livro observamos que não existe a
monotonia visual ditada por um padrão editorial. Ao
Fig. 3 Página de rosto
contrário,
a
cada
momento
as
imagens
nos
surpreendem, por sua relação ao mesmo tempo
complexa e harmônica com o texto, como pode ser notado nos fólios reproduzidos a
seguir.
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Na seqüência mostraremos
como visualmente a composição ilustrada do Liber
Chronicarum se relaciona com as iluminuras.
MANUSCRITOS:
Hours of Catherine of Cleves, c. 1440
Livro das horas
Páginas do Liber Chronicarum
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No índice, logo nas primeiras páginas encontramos uma construção em
retângulo, com duas colunas simétricas, muitas com letras capitulares próximas ao
manuscrito.
Texto manuscrito
Texto impresso
É importante salientar que neste período, mesmo com uma maior difusão do
livro, muitas pessoas ainda não sabiam ler, e os editores não querendo perder esse
público, decidiam por livros com muitas ilustrações.
A difusão dos livros ilustrados, uma iniciativa dos editores em busca de novos
mercados, contribuiu para a formação de uma nova gama de leitores que,
mesmo analfabetos ou semi-analfabetos, poderiam compreender o texto
acompanhando as ilustrações. Por isso, particularmente os humanistas
desprezavam os livros ilustrados, preferindo edições latinas impressas em tipos
romanos ( BELTRAN, 2000, p.31).
Assim, seria possível supor que a Crônica de Nuremberg seria dirigida a esse
público mais amplo e inculto. Entretanto, sua aproximação com o manuscrito projetada
deliberadamente pelo editor, indicaria exatamente o contrário. A Crônica de Nuremberg
poderia ter como objetivo valorizar o próprio livro impresso, mostrando seu potencial
de substituir o manuscrito, mantendo a elegância e o requinte, inclusive nas imagens, o
que favoreceria a aceitação dos produtos das primeiras prensas européias.
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De fato, como já mencionado, a aceitação do livro impresso na Europa do século
XV não foi imediata, nem tampouco consensual. Muitos proprietários de bibliotecas
decidiram por não introduzir livros impressos em seus acervos. Um dos motivos para
isso seria a pouca elegância dos livros produzidos pela “arte de escrever
artificialmente”, como era então conhecida a arte de imprimir.
Por outro lado, a generalização do uso das prensas na Europa foi muito bem
recebida e as novas possibilidades dos livros impressos foram exploradas por aqueles
que, no ambiente de mudança social, econômica e cultural que a Europa vivia naquele
período, defendiam a divulgação dos conhecimentos e a reconsideração das artes
mecânicas. Tal foi o caso dos autores de livros de destilação e de tratados de mineração
e metalurgia que tiveram várias edições, especialmente durante o século XVI
(BELTRAN, 2000a,2000b, 2009).
Trataremos aqui especificamente do Liber de
arte distillandi..., escrito pelo cirurgião Hieronymus
Brunschwig e publicado pela primeira vez em 1500
em Estrasburgo, pelo então famoso editor germânico
Johanis Gruninger.6 Pela data de publicação pode-se
considerar que sua primeira impressão trata-se de um
incunábulo. Entretanto, como já analisado em outro
trabalho (BELTRAN, 2000), o Liber de arte
distillandi.. foi republicado mais de cinqüenta vezes
Brunschwig's Liber de Arte Distillandi
de Compositis (1512)
até o início do século XVII.
Como no livro das Crônicas de Nuremberg também podemos encontrar volumes
iluminados ou não, a cor novamente entra como fator optativo.
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Estrasburgo pertenceu às terras germânicas até o final da segunda grande guerra, quando foi anexada à
França.
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Por esse grande número de edições pode-se considerar que foi uma obra de
grande sucesso naquela época. E tal sucesso não foi à toa. De fato, em suas páginas o
leitor encontrava descrições de materiais curativos, bem como as formas de submetê-los
ao processo de destilação de modo a obter poderosas “águas curativas” que continham
apenas as partes mais puras e sutis do material de partida. Assim, nesse livro, H.
Brunschwig divulgava conhecimentos sobre o preparo de remédios a um público que
poderia abranger tanto leitores cultos, quanto pessoas pouco letradas ou mesmo
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analfabetas. Graças às inúmeras imagens apresentadas ao longo de todo o seu livro,
Brunchwig acreditava que, além de “festa para os olhos [as imagens] são auxílio para
aqueles que não sabem ler ou escrever”(BELTRAN,2000).
Ao contrário das características das imagens e das relações imagem-texto do
Liber Chronicarum, as quais, como já comentamos, faziam aproximar o livro impresso
do manuscrito, no Liber de arte distillandi... tanto as imagens quanto as relações
imagem-texto levam ao estabelecimento de uma nova forma de leitura. Assim, como
pode ser observado nos fólios reproduzidos a seguir, as imagens acompanham o texto,
lado a lado, sem mescla, como no Liber Chronicarum. Isso permitiria que o público
pouco letrado pudesse relacionar a imagem ao que estaria escrito no texto. Além disso, a
repetição das mesmas imagens ao longo do texto, o que se dá principalmente com as
imagens de aparatos destilatórios, conduziria a “leitura visual”do livro, permitindo
relacionar as operações que deviam ser realizadas com os materiais curativos
mencionados no texto.
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Quatro fólios diferentes reutilizando matrizes e anexando outros blocos, como um quebra cabeças, para
formar novas imagens
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Assim, com base na análise desses dois importantes livros publicados pelas
primeiras prensas germânicas, pode-se considerar que as imagens em sua relação com o
texto, bem como suas cores, foram empregadas tanto com a intenção de dar
continuidade à tradição dos manuscritos, quanto para possibilitar novas formas de
leitura.
Referências bibliográficas
BELTRAN, Maria Helena Roxo. Imagens de magia e de ciência: entre o simbolismo e
os diagramas da razão. São Paulo: Educ, 2000.
BUHLER, Curt F. The fifteenth-century book: the scribes, the printers, the decorators.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1960.
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and cultural transformation in early modern Europe. Cambridge: Cambridge University
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MEGGS, B. P. & PURVIS, A.W. História do design gráfico. 4 ed. São Paulo, Cosac
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SCHEDEL,Hartmann. Liber chronicarum. Nuremberg, 1493. Biblioteca de livros
raros USP. Disponível em: <http://www.obrasraras.usp.br/livro.php?obra=000192>
Acesso em: 15 set. 2011.
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