Clique para conhecer o livro internamente

Transcrição

Clique para conhecer o livro internamente
Letícia Lanz
(Geraldo Eustáquio de Souza)
Psicanalista, Mestra em Sociologia e Especialista em Gênero e Sexualidade
Uma introdução aos Estudos Transgêneros
O Corpo da Roupa
© 2015 by Companhia Paracrescer/Editora Transgente.
Todos os direitos reservados. Reprodução proibida.
T
www.paracrescer.com
1ª edição – setembro de 2015
Capa, edição, diagramação e montagem: Letícia Lanz.
Revisão de Texto: Adilson Fernandes Alves.
Foto de Letícia Lanz: Lucas Pontes, fotógrafo.
Imagem da capa: sete bonecas para vestir, cabeças de biscuit. Alemanha,
cerca de 1900, leiloadas no site da Theriault’s Dollmasters.
Geraldo Eustáquio de Souza é o nome civil de Letícia Lanz.
Os nomes de pessoas cujos depoimentos eventualmente aparecem neste livro foram
alterados para nomes fictícios, a fim de se preservar suas respectivas identidades.
Lanz, Letícia
O corpo da roupa : a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Uma introdução aos estudos transgêneros./ Letícia Lanz. / Curitiba : Transgente,
2015 .
456 p.
1. Identidade de gênero. 2. Transgeneridade. 3. Pessoas
transgêneras. 4. Transexuais. 5. Travestis. I. Título.
CDD 306.77
Letícia Lanz
www.leticialanz.org
www.facebook.com/leticialanz
email: [email protected]
Movimento Transgente
www.transgente.com.br
www.facebook.com/grupos/transgente
Este livro poderá ser adquirido on line através do site
www.transgente.com.br
Letícia Lanz
(Geraldo Eustáquio de Souza)
Psicanalista, Mestra em Sociologia e Especialista em Gênero e Sexualidade
Uma introdução aos Estudos Transgêneros
O Corpo da Roupa
A Pessoa Transgênera entre a Transgressão
e a Conformidade com as Normas de Gênero
Texto baseado na Dissertação de Mestrado em Sociologia,
apresentada ao Departamento de Ciências Sociais
da Universidade Federal do Paraná.
A Bandeira do Orgulho Transgênero
foi criada pela mulher trans norte-americana
Monica Helms, em 1999, e exibida pela primeira vez em uma parada em Phoenix, Arizona, no
ano 2000. A bandeira representa a comunidade
transgênera e consiste em cinco faixas horizontais: duas azul claro, duas rosa e uma branca,
no centro. Segundo Helms "as listras na parte
superior e inferior são em azul claro e rosa, as
cores tradicionais para meninos e meninas,
respectivamente. A listra no meio é branca,
representando as pessoas intersexuadas, as
que se encontram em transição ou que consideram seu gênero neutro ou indefinido. O
padrão é tal que, não importa o lado que a
bandeira tremular, ela sempre estará correta,
como corretas são as vidas das pessoas transgêneras".
Para Angela Autran Dourado,
companheira amorosa, sensível e verdadeira de muitas décadas,
cujo apoio incondicional tornou possível a família, o mestrado, esse livro
e a minha travessia.
Para Rachel, Raphael e Samuel,
filhos que certamente toda pessoa, transgênera ou não, gostaria de ter.
Para Helena, Davi e Vitor
a fim de conhecerem e entenderem melhor a história do seu avô,
quando chegar o momento.
À memória do meu pai, Geraldo,
o melhor homem que conheci em toda a minha vida,
que sempre me aceitou e me amou de todo o coração,
apesar do esforço que teve que fazer, desde o começo,
para me entender com a cabeça.
À População Transgênera do Brasil,
especialmente às nossas travestis históricas,
cuja luta para viver com dignidade, tendo os seus direitos civis
reconhecidos e respeitados pela sociedade, tem sido o meu grande estímulo
para levar adiante o Movimento Transgênero no Brasil.
À minha mãe, Adir,
para que ela possa compreender melhor a pessoa que eu sou.
Agradeço a todas as pessoas que, durante os quatro anos em que estive mais
diretamente empenhada na elaboração deste trabalho, compartilharam comigo um
pouco do seu tempo, do seu conhecimento, da sua criatividade e do seu carinho,
facilitando e viabilizando a sua realização. Em especial, agradeço o meu anjo da
guarda, Profª Drª Maria Rita César, por ter me acolhido e ajudado num dos momentos mais difíceis da elaboração da minha dissertação de mestrado; à Profª Drª Marlene Tamanini, por ter me ajudado a compor uma dissertação suficientemente boa,
dentro dos padrões metodológicos que ela conhece e domina com tanta maestria e à
Profª Drª Miriam Adelman, por ter me aceito como sua orientanda no programa de
pós-graduação do Departamento de Ciências Sociais da UFPR. Também quero agradecer ao Adilson Fernandes, por suas competentes e oportunas revisões de texto e ao
Lucas Pontes, pela linda foto e por autorizar o seu uso na capa do livro.
Agradeço também, de todo o meu coração, às pessoas do meu círculo de amizades, que continuam a gostar de mim, a me acolher, a me aceitar e a conviver comigo e com a minha família, independentemente da forma com que eu passei a me
apresentar no dia a dia. Agradeço, por fim, aos meus clientes de consultoria e analisandos, que continuaram me prestigiando, permitindo que eu exercesse os meus
ofícios, num relacionamento de confiança e respeito, sem jamais confundirem a minha mudança de identidade de gênero com a minha competência profissional.
Letícia Lanz, julho de 2015.
Entradas
Introdução 11
Prólogo: Viajando ao Território Transgênero 17
Nem Homem, Nem Mulher, Nem Outro Gênero Qualquer 25
Pratos Principais
Objeto e Campo dos Estudos Transgêneros 33
Sexo, Gênero e Orientação Sexual 37
Discussão Crítica sobre Sexo, Gênero e Orientação Sexual 47
A Abordagem Essencialista 49
A Abordagem Construtivista 54
A Abordagem Pós-Estruturalista 59
Especial Judith Butler 63
Transgênero e Cisgênero 69
Um Breve Histórico de Transgênero 79
O Uso do Termo Transgênero no Brasil 93
Desvio Social de Conduta 101
A Transgressão como Matriz da Transgeneridade 111
Especialidades da Casa
A Formação das Identidades Transgêneras 121
1. Corpo 135
1.1 Homem e Mulher Já Tiveram o Mesmo Corpo 140
1.2 Corpo Não Existe e Gênero Não Está no Corpo 144
1.3 Simbologia, Significados e Transformações do Corpo 147
1.4 Corporificação e Corporalidade 155
2. Roupa 171
2.1 Roupa e Expressão de Gênero 179
2.2 Travestilidade: a Roupa no Corpo Errado? 187
2.3 Travestismo Ritual 196
3. Identidade de Gênero e Sexualidade 203
4. Status Socioeconômico 225
5. Família e Socialização 231
6. Escola 247
7. Armário e Transição 257
7.1 Autodepressão e Autoaceitação 267
7.2 Assumir-se, Revelar-se e Transformar-se 271
8. Passabilidade 285
9. Visibilidade Social da Pessoa Transgênera 297
Complementos
Dialogando com os Estudos Existentes no Brasil 309
Estudos sobre a Identidade Travesti 313
Estudos sobre a Identidade Transexual 329
Origens da Transexualidade 332
A Identidade Transexual no Brasil 339
Estudos sobre a Identidade Crossdresser 353
Identidades? Para que identidades? 365
Sobremesas
(in)Conclusões 373
Epílogo: O Corpo da Roupa 383
Dicionário Transgênero 399
Bibliografia Geral 433
Notas 446
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Introduçao
O exótico expõe, da maneira mais óbvia possível, a artificialidade do convencional.
O convencional, por sua vez, parece tão natural que mascara
a sua própria condição de mera construção social.
Shari L. Thurer, em The End of Gender1
E
xpressões transgêneras são cada vez mais explícitas e visíveis na
paisagem do mundo contemporâneo. Apoiadas nos avanços sociais dos últimos tempos, particularmente nas conquistas do Movimento Feminista, mais e mais pessoas transgêneras, de ambos os sexos,
em todas as faixas etárias e classes sociais, estão abandonando seu autoexílio no armário e assumindo publicamente suas identidades gênerodivergentes, até agora mantidas em estrito, vergonhoso e sofrido sigilo.
Em toda a história da humanidade sempre existiram identidades
gênero-divergentes, mas, com raríssimas exceções, sempre permaneceram na penumbra, à margem da vida sociopolítico-cultural, sem direitos
civis e profundamente marcadas por um forte estigma.
Somente a partir do final do século XX, na esteira das conquistas
feministas, pessoas transgêneras começaram a sair do armário em maior
número, desafiando abertamente a dicotomia homem-mulher que caracteriza o sistema binário de gênero em vigor na sociedade.
Como nunca aconteceu antes, em nenhuma outra época, a cada dia,
nesta segunda década do século XXI, mais pessoas de todas as idades,
etnias, crenças religiosas e classes sociais, estão se abrindo para o mundo,
revelando a sua condição transgênera para suas famílias, amigos, colegas
de escola e de trabalho. As pessoas transgêneras definitivamente estão se
tornando cada vez mais visíveis na sociedade.
Esse crescente convívio entre os padrões clássicos de homem e
mulher e toda uma multiplicidade de expressões de gênero não convencionais, tende a agravar ainda mais as inevitáveis tensões já existentes
entre valores e estilos de vida tradicionais e reivindicações de inclusão
social de um extenso segmento de pessoas gênero-divergentes, a quem
historicamente sempre foi negado lugar e voz na ordem social.
11
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Um dos reflexos do ganho de visibilidade da diversidade de gêneros na sociedade contemporânea é o crescente interesse social, político e
cultural pelas identidades transgêneras. As representações populares de
pessoas transgêneras são cada vez mais frequentes em novelas, programas de variedades e reality shows. Do ponto de vista acadêmico, o tema
da transgeneridade também tem sido tratado exaustivamente, das mais
variadas formas e sob os mais diversos enfoques, dentro da trilha dos
estudos relacionados a gênero, inaugurada pelo Movimento Feminista.
Contudo, do ponto de vista prático, pouca coisa está sendo alterada
na mecânica social de aceitação e inclusão das pessoas transgêneras como resultado do ganho de visibilidade da sua própria condição. Na realidade, a despeito do interesse cada vez maior pelo tema e dos significativos avanços em termos de aumento da sua visibilidade social, as pessoas
transgêneras ainda padecem de níveis altíssimos de preconceito, discriminação e exclusão social. A segregação e a intolerância continuam muito
presentes no dia a dia dessas pessoas, tanto nas suas relações familiares,
interpessoais e grupais (hostilidade nas ruas, incompreensão doméstica,
isolamento no trabalho, etc), quanto na legitimação e legalização de seus
direitos (tratamento amplamente desigual perante instituições públicas e
privadas, impedimento do direito da escolha do gênero no ato de emissão
de documentos oficiais, repressão ao exercício pleno da liberdade de expressão assegurada pela Constituição, etc).
Enfim, ao trocarem a invisibilidade social do armário pelo contato
direto e permanente com o mundo real, travestis, transexuais, crossdressers, andróginos, dragqueens, transformistas e inúmeras outras identidades gênero-divergentes, isto é, fora do binômio oficial masculino/feminino, vão perdendo a mística de exóticas, perversas e bizarras
criaturas que povoam o imaginário popular para tornar-se um dos focos
de maior potencial de conflito dentro da sociedade contemporânea.
De onde vêm, o que fundamenta, como se explica e por que se justifica o estigma, a invisibilidade social, a privação de oportunidades e a
indigência legal e moral a que estão condenadas as pessoas transgêneras
na nossa sociedade? Por que, em pleno século XXI, continua sendo prática
corrente a interdição e a negação aos direitos civis dessa população, direitos esses que são amplamente assegurados, sem nenhuma restrição, a
homens e mulheres cisgêneros?
12
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Vivendo há muito tempo em regime de tempo integral no gênero
oposto àquele em que fui classificada ao nascer, sempre me intrigou, de
um lado, o caráter transgressivo da condição transgênera em relação aos
rígidos padrões socioculturais das normas binárias de gênero e, de outro,
o caráter patológico que a sociedade impõe às pessoas transgressoras,
mediante a inserção das diversas identidades e expressões transgêneras
nos códices internacionais que descrevem e classificam os distúrbios físicos e mentais (DSM-IV e V e CID-10). Ou seja, é lícito pensar que rotular
pessoas que infringem as normas de gênero como delinquentes, perversas ou doentes mentais é uma forma que a sociedade encontrou, não só
de punir sua transgressão, mas também de dissuadir novos potenciais
candidatos de cometer infrações semelhantes? Afinal de contas, muitos
regimes totalitários ao redor do planeta recorrem aos argumentos de
subversão da ordem e de doença mental como forma de punir e retirar de
circulação pessoas consideradas como ameaça à ordem vigente.
Este trabalho é uma resposta a muitas dessas indagações. Trata-se
de uma investigação da transgeneridade como fenômeno de desvio das
normas sociais de conduta de gênero, ressaltando a sua natureza essencialmente sociopolítico-cultural e localizando-o fora do domínio dos saberes médicos, onde, infelizmente, continua sendo tratado como perversão,
causadora de delinquência social, e de doença mental, na forma de transtorno de identidade de gênero, distúrbio recentemente “amenizado” para
“disforia” de gênero. O DSM-V – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, finalmente publicado pela APA – American Psychiatric Association em meados de 2013, passou a denominar o antigo GID – Gender
Identity Disorder como GID – Gender Identity Disphoria. Como se vê, a rigor, nem a sigla foi alterada. Ainda há a esperança de que o CID, Classificação Internacional de Doenças, publicado pela OMS – Organização Mundial de Saúde, em sua 11ª versão, a ser publicada possivelmente a partir
de 2015, elimine da sua lista de patologias mentais o item F.64, no qual
as identidades gênero-divergentes são listadas como transtornos mentais.
O âmbito do nosso estudo é o território transgênero, composto por
identidades gênero-divergentes ou identidades transgressoras do dispositivo binário de gênero. Entende-se por identidades transgêneras aquelas identidades de gênero que se constituem a partir de alguma forma de
13
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
transgressão, desvio ou violação das normas de conduta estabelecidas
pelo dispositivo binário de gênero masculino-feminino. Em vez de se conformarem tacitamente com essas normas como, pelo menos teoricamente, acontece com a maioria cisgênera da população, as pessoas transgêneras se caracterizam pela sua não conformidade a essas normas, por afrontá-las ou transgredi-las, confrontando-as de muitas e de variadas maneiras, praticando atos considerados delituosos pela sociedade, que vão
desde faltas muito superficiais, como vestir-se, eventualmente, com roupas culturalmente designadas para o gênero oposto ao delas, até a total
insubmissão à ordem binária de gêneros, com total repúdio ao enquadramento de gênero recebido ao nascer e a consequente busca pelo reenquadramento na categoria de gênero oposta àquela na qual a pessoa foi
originalmente classificada.
Na condição de pessoa transgênera, minha primeira justificativa
para o desenvolvimento deste trabalho é necessariamente de ordem pessoal. Para mim é uma questão ética da maior importância poder compreender – e discernir – sobre a humanidade que reside debaixo da minha
própria pele.
Acredito, porém, que este trabalho também se justifica em outras
dimensões, muito mais significativas até do que esse meu pleito de ordem
pessoal. Trata-se de um estudo voltado para a afirmação da disciplina de
Estudos Transgêneros no Brasil, cujo objeto é o “T” do acrônimo LGBT
que, internacionalmente, está para transgênero. O uso desse termo ainda
sofre grandes restrições aqui no Brasil, principalmente de alguns autodenominados “movimentos organizados”, que hoje se apresentam como
representantes oficiais e interlocutores das identidades travesti e transexual, especialmente MtF, em organismos municipais, estaduais e federais,
e que ignoram, pura e simplesmente, a existência de quaisquer outras
identidades gênero-divergentes além dessas duas.
Apesar das resistências, totalmente irracionais, indevidas e desnecessárias, sob a alegação vaga e absurda de que a adoção do termo transgênero “sufocaria” as “lutas históricas” das travestis e transexuais, acredito no enorme potencial do guarda-chuva transgênero para agregar e representar o amplo espectro das identidades gênero-divergentes no Brasil,
como já ocorreu em muitos outros lugares do mundo. A tendência que se
afigura como irreversível é que o termo transgênero também se torne
14
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
entre nós um elemento fortemente catalizador, mobilizador e desencadeador de um movimento social robusto, capaz de sensibilizar a sociedade,
fazer reivindicações junto aos poderes públicos e resgatar o respeito aos
direitos civis da população transgênera.
Ainda que o seu alcance não seja tão amplo como eu gostaria, é
possível identificar neste trabalho interfaces e desdobramentos da maior
importância para a realização de estudos futuros, que focalizem a condição transgênera como um todo, sem vinculações específicas a essa ou
àquela identidade gênero-divergente. Dessa forma, ele poderá servir como estímulo para que a condição transgênera passe a ser estudada no
meio acadêmico brasileiro dentro de uma perspectiva mais ampla e inclusiva, sem os vieses produzidos por enfoques fortemente influenciados
por movimentos identitários com tendências hegemônicas, como ainda é
fato comum hoje em dia.
Letícia Lanz
julho de 2015.
15
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
16
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Pro logo: Viajando ao Territorio Transgenero
É só como história contada que podemos existir. Por isso, escolhi buscar os invisíveis,
os sem voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, aqueles à margem da narrativa.
Eliane Brum, em Meus Desacontecimentos – A história da minha vida com as palavras 2.
D
os meus sessenta e três anos de vida, cinquenta foram passados
no armário. Por meio século, vivi reprimida e recalcada, sentindo-me vigiada e aterrorizada por normas de conduta da “masculinidade”, com as quais eu jamais me identifiquei, mas às quais, por falta
de estrutura psíquica, acabei me submetendo no início da fase adulta. De
um lado, premida pela sensação de impotência em lutar numa guerra que
eu via como perdida antes mesmo de ser iniciada. De outro, para conseguir sobreviver, com um pouco de segurança e dignidade, em um mundo
absolutamente cisgênero, heteronormativo, patriarcal e machista.
Sem compreender quem eu era, e desconhecendo inteiramente de
onde vinha o mal-estar que eu sentia em relação ao rótulo de “menino”
que me havia sido dado ao nascer, por cinco décadas eu me resignei a
viver como homem, mesmo tendo a clara percepção íntima de não pertencer ao universo masculino, de não ter nada a ver com ele.
Na minha infância, tudo que eu sabia de mim era aquela necessidade incontrolável de fazer coisas que os adultos imediatamente repeliam e censuravam, dizendo tratar-se de “coisa de mulherzinha”. Sendo
apenas uma criança, eu não entendia como podia ser censurada por coisas que eu fazia com tanta naturalidade, como se tivessem sido feitas sob
medida para mim – ou eu para elas. Como se fossem parte de mim e eu,
delas. Mas eu sentia um prazer enorme fazendo aquelas coisas porque eu
sabia, intuitivamente, que, através delas, eu conseguia expressar externamente a pessoa que eu sentia ser por dentro.
Passar tanto tempo no armário não me fez esquecer nem um pouquinho de quem eu sempre fui. Mesmo confinada naquele vácuo de espaço e de tempo, inteiramente desempoderada para me assumir de corpo e
alma, nunca deixei de esperar por mim mesma, de procurar, ainda que
sem esperança, uma chance de algum dia conseguir expressar livremente
quem eu realmente era.
17
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Obrigada a ser e a agir “como homem”, tive que conter desde muito
cedo a irresistível atração que eu sempre senti pelo universo feminino.
Pouco a pouco, fui entendendo, desolada, que só fêmeas biológicas, isto é,
pessoas que nasciam com uma vagina, podiam ter acesso àquele mundo
que me fascinava. E eu tinha nascido com um pênis.
No meio dos meus tormentos de adolescente, sem ter nenhum conhecimento ou informação a respeito do que se passava comigo, e sem
me sentir segura para me abrir com outras pessoas, por gostar tanto de
coisas de mulher eu cheguei a pensar que eu fosse viado3, embora jamais
tivesse sentido atração física ou emocional por homens.
Como acontece ainda hoje, viado, naquela época, designava, indistintamente, todo homem que parecesse diferente dos outros homens, que
saísse fora, o mínimo que fosse, dos rígidos padrões e normas de conduta
da masculinidade. E não existia nada mais “diferente”, nada mais fora da
conduta socialmente esperada de um homem, do que um menino que
sonhava em ser menina.
Isso me deixava confusa,
ao mesmo tempo deprimida e
revoltada, pois eu vivia permanentemente atraída pelas mulheres, não só pela companhia delas,
que eu queria para tudo, inclusive para fazer sexo, mas também
pelo desejo, intenso, imenso, rigidamente controlado, duramente reprimido e recalcado, de me
tornar uma delas.
Demorou muitas décadas
para que “a minha ficha caísse” e eu finalmente compreendesse que não
era nem homem nem mulher, mas uma outra categoria qualquer, para a
qual a sociedade até hoje não tem nome nem definição exatos.
Levou tempo demais até que eu me descobrisse, me compreendesse e me aceitasse como uma pessoa “transgressora” do dispositivo binário de gênero, socialmente desviada das normas de conduta da masculinidade, categoria de gênero em que fui enquadrada ao nascer em razão
de ter um pênis.
18
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Hoje, que posso finalmente me considerar dona da minha própria
história, brinco dizendo que não sou homem, nem mulher, nem trans,
mas Letícia Lanz, estágio atual de uma longa e interminável construção
de mim mesma.
Dar nome e definir a identidade de gente como eu implica mexer –
e mexer profundamente – no imenso castelo social que está erguido sobre o dispositivo binário de gênero, do qual a sociedade, tal como conhecemos, depende para o seu “perfeito funcionamento”, para continuar de
pé. Por colocar em risco esse mesmo dispositivo, ameaçando a estabilidade de toda a imensa estrutura social, política, cultural e econômica sobre
ele erguida, gente igual a mim tem sido considerada infratora da ordem
vigente, tratada como doente mental e rotulada de coisas como perversa,
depravada e delinquente.
É sobre essa gente que eu vou falar. É a essa gente, à qual eu pertenço, que eu desejo dar voz.
Muito se escreveu e ainda se escreve no Brasil sobre travestis,
transexuais, crossdressers, dragqueens e transformistas, mas praticamente não há registro escrito a respeito da pessoa transgênera – ou
transgeneridade –, como é internacionalmente conhecido o fenômeno
sociológico de desvio ou transgressão do dispositivo binário de gênero,
fato que caracteriza todas as identidades anteriormente enumeradas e
que faz com que elas sejam marginalizadas, excluídas e estigmatizadas
pela sociedade.
O que caracteriza a pessoa transgênera é a transgressão de normas
do dispositivo binário de gênero – homem/mulher ou masculino/feminino. Tal desvio, não importa em que grau ou de que forma ocorra, é sempre duramente rechaçado, reprimido e castigado por atingir
frontalmente o principal pilar da organização sociopolítica do mundo em
que vivemos: a divisão dos seres humanos em dois e somente dois grupos
de pessoas, homens e mulheres. Essa divisão, conhecida como “divisão
por gênero”, é antes de tudo um sistema de controle dos indivíduos e,
como tal, quem escapa da sua órbita coercitiva será “gentilmente convidado” a voltar para a “normalidade”, ou seja, para o cumprimento cego e
totalmente acrítico das normas de conduta vigentes. Nesse sentido, um
homem usando saias é prontamente considerado como sociodesviante,
por descumprir ou afrontar o código de vestuário estabelecido para a
19
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Nem Homem, Nem Mulher, Nem Outro
Genero Qualquer
Penso que estamos vivendo os últimos dias
do que poderia muito bem ser chamado de "era da identidade".
Kate Bornstein, em My Gender Workbook 7.
O
que é ser homem? O que é ser mulher? O que distingue uma
identidade da outra? Indigestas, incômodas e totalmente sem
respostas definitivas, essas perguntas têm estado cada vez mais
na pauta do dia da sociedade contemporânea. Talvez você faça parte da
grande maioria de pessoas que, em virtude do condicionamento sociopolítico-cultural recebido até antes do seu próprio nascimento, acredita que
ser homem ou ser mulher é algo inexoravelmente associado ao órgão
genital que traz entre as pernas. Praticamente todo mundo acredita que
alguém é homem porque nasceu macho, ou seja, com pênis, ou que é mulher porque nasceu fêmea, isto é, com vagina.
Por mais rústico e primitivo que seja esse método – e é – o órgão
genital continua sendo usado como único referencial na hora de definir o destino de uma
pessoa durante sua vida neste planeta. Diante
da fartura de conhecimento, no mundo de hoje, sobre a complexa constituição e funcionamento da pessoa humana, chega a ser ridículo
e grotesco a sociedade continuar se valendo de
um simples órgão genital como critério de
diferenciação, classificação, hierarquização e
atribuição de papéis e funções sociopolíticoSerá justo que a sociedade
culturais. Assim, como acontece há milênios, defina o destino de uma pesem pleno século XXI, se a pessoa tiver um pê- soa exclusivamente em função
do seu órgão genital?
nis, será classificada no gênero masculino ou
homem, da mesma forma que uma vagina determinará sua classificação
como membro do gênero feminino, ou mulher.
Assim é que, por preguiça, ultrassimplificação e excesso de conservadorismo a sociedade continua praticando o exagero de colocar em dois
25
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
únicos órgãos – a vagina e o pênis – a responsabilidade pela origem e a
manutenção de um vasto arsenal de diferenças existentes entre o homem
e a mulher, a maioria delas totalmente irreais e sem fundamento. Diferenças que incluem desde coisas ingênuas e prosaicas, como cores e tipos
de roupa “próprios” e “impróprios” para cada categoria de gênero, até
complexos e refinados atributos físicos, comportamentos, atitudes, estilos
de vida e papéis e funções na família e na sociedade.
Todo o vasto conhecimento que adquirimos a respeito de nós
mesmos e do nosso funcionamento como seres humanos mais do que nos
autoriza a concluir que ser mulher ou ser homem está longe de ser um
dado inexorável da natureza, como a ordem (ainda) vigente prefere acreditar, tendo em vista a manutenção das estruturas sociais construídas
sobre essa divisão arbitrária e espúria dos seres humanos em dois grupos, radicalmente opostos e totalmente irreconciliáveis, com base exclusivamente no pênis e na vagina.
Em uma palestra sobre FeminiHOJE EM DIA JÁ NÃO É TÃO FÁCIL
lidade, no ano de 1933, Freud afirmaShari Thurer
va, com absoluta convicção, que,
Houve um tempo em que havia apenas
dois gêneros: masculino e feminino. “quando a gente encontra uma pessoa,
Homens eram, tipicamente, sujeitos a primeira distinção que fazemos é se
grandes e peludos que não necessitaela é homem ou mulher. E estamos
vam abaixar o assento do vaso sanitário. Mulheres eram as pessoas meno- acostumados a fazer tal distinção com
res e menos peludas, que abaixavam o certeza absoluta”8. De acordo com
assento do vaso sanitário para usá-lo.
Os membros desses dois grupos só esse testemunho do pai da psicanálise,
tinham olhos uns para os outros. Era naquela época devia ser perfeitamenfácil distinguir quem era quem. Hoje
te possível distinguir um homem de
em dia deixou de ser tão fácil. Homens
usam rabo de cavalo e brincos e fre- uma mulher sem nenhum esforço e
quentam cursos de como cuidar de com absoluta certeza quanto ao acerto
bebês; mulheres exibem tatuagens e
bíceps fortes e fumam charutos. Onde dessa diferenciação.
quer que a gente olhe – na TV, no
No mundo atual, isso tem se
cinema, em revistas, em livros de
tornado uma tarefa cada vez mais
autoajuda – vemos não dois gêneros,
mas algo mais próximo de um cruza- difícil e complexa. Hoje em dia, é muimento entre eles, um ponto qualquer to pouco provável que o próprio
dentro de um “continuum”. (THURER,
Freud tivesse tanta certeza que uma
2005, p. 1)
pessoa é homem ou mulher, apenas
por uma rápida inspeção visual.
26
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Objeto e Campo dos Estudos Transge neros
Tentar ocupar um lugar como sujeito falante dentro do quadro tradicional
de gênero é tornar-se cúmplice do discurso que se pretende desconstruir.
Susan Stone13
O
objeto dos Estudos Transgêneros é a pesquisa e a análise sistematizada das múltiplas dimensões do fenômeno transgênero,
considerado como transgressão das normas de conduta do dispositivo binário de gênero, fato que, sociologicamente, configura a gênese
da pessoa transgênera ou gênero-divergente.
De acordo com o Núcleo de Estudos Transgêneros da Universidade
do Arizona (University of Arizona Transgender Studies Faculty Cluster14),
os Estudos Transgêneros se ocupam com a diversidade e a contingência
de gênero, sexualidade, identidade e corporalidade ao longo do tempo, do
espaço, linguagens e culturas, dedicando especial atenção às consequências sociopolíticas, legais e econômicas da não conformidade com as
normas de gênero; às narrativas de vida e organização social de pessoas e
comunidades transgêneras; às formas de produção cultural que representam ou expressam a diversidade de gênero; à medicalização das identidades transgêneras e despatologização das diferenças corporais; assim como ao surgimento de novas formas de subjetividade corporificada dentro
de ambientes tecnoculturais contemporâneos.
Como cadeira independente e autônoma, os Estudos Transgêneros
começaram a ser introduzidos nas universidades americanas em princípios da década de 1990, apoiados principalmente nos Estudos Feministas
e na Teoria Queer15. Segundo a acadêmica transgênera Susan Stryker, da
Universidade do Arizona, e uma das principais representantes desta nova
disciplina, o propósito central dos Estudos Transgêneros é “mudar as
condições da produção de conhecimento sobre o fenômeno transgênero e
ampliar o escopo do que é considerado como conhecimento especializado
nessa área”16.
33
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Acompanhando o aumento da visibilidade de identidades e expressões transgêneras na cultura popular, através de uma crescente participação de pessoas trans em shows de TV, concursos de beleza, jornais,
revistas, filmes, tirinhas cômicas e, naturalmente, na internet, a área dos
Estudos Transgêneros está se
A MATURIDADE DOS ESTUDOS
TRANSGÊNEROS
tornando rapidamente um imporBettcher & Garry
tante campo de pesquisa acadêOs Estudos Transgêneros surgiram no mica nos EUA, no Canadá e na
início dos anos noventa em estreita cone- Europa.
xão com a teoria queer. Essa disciplina
Em sua obra The Transgenpode ser melhor caracterizada como o
ganho-de-voz de (algumas) identidades der Studies Reader (2006), Stryker
gênero-divergentes que, há muito tempo,
vinham sendo objetos de pesquisa da sexo- esboça os principais fundamentos
logia, psiquiatria, psicanálise e teoria femi- dos Estudos Transgêneros definista. O texto pioneiro de Sandy Stone, “O
nindo-os como uma área acadêImpério Contra-ataca: Um Manifesto Póstransexual” (1991), buscou ir além do mica inter e multidisciplinar com
conhecimento até então existente mediante objeto próprio, que são o corpo, as
a introdução do olhar de uma
(pós)transexual. Reconhecendo as pessoas memórias e as subjetividades das
trans como gente de carne e osso e tendo pessoas transgêneras, surgida a
as próprias experiências de transgeneridapartir dos Estudos Feministas e
de e opressão transfóbica como ponto de
partida, os Estudos Transgêneros objeti- como um desdobramento natural
vam abrir um caminho para a teorização da e necessário dos estudos LGBT,
condição transgênera capaz de resistir aos
mecanismos de transfobia, em vez de re- particularmente a Teoria Queer.
forçá-los. A publicação da obra The TransNascidos sob a égide da
gender Studies Reader, em 2006, evidencia
despatologização da condição
o notável crescimento e amadurecimento
dessa área de estudos. (BETTCHER & GAR- trans, os Estudos Transgêneros
RY, 2009, p. 1)
partem corajosamente da premissa de que ser uma pessoa transgênera não significa ser portadora de
transtorno mental. Isso significa a rejeição total e absoluta da transgeneridade como condição clínica e transtorno mental, mantida sob a tutela da
medicina desde o final do sec. XIX e, de forma ainda mais acentuada, a
partir da década de 1950, com os estudos de Harry Benjamim, John Money e Robert Stoller, que impuseram critérios extremamente rígidos para
diagnóstico e tratamento das pessoas transgêneras. Essa posição, desenvolvida e sustentada dentro da academia por acadêmicas transgêneras do
porte de Susan Stone, permitiu o empoderamento das pessoas trans para
34
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
reivindicarem a posse e o uso dos seus corpos sem a intervenção da medicina.
Na prática, portanto, o Movimento Transgênero e os Estudos
Transgêneros se completam e se superpõem para todos os efeitos e
em todos os sentidos, de modo que podemos afirmar que os Estudos
Transgêneros são o Movimento Transgênero dentro da Academia,
assim como o Movimento Transgênero são os Estudos Transgêneros
na rua, engajados na luta pelos direitos civis da população gênerodivergente. Esse aspecto revolucionário dos Estudos Transgêneros denuncia claramente a sua origem e filiação radical ao Movimento Feminista e à Teoria Queer. Em termos estritamente acadêmicos, os Estudos
Transgêneros podem ser considerados como um lugar de fala das pessoas
trans dentro da Universidade.
Os Estudos Transgêneros vieram conferir identidade própria às
identidades gênero-divergentes, estabelecendo, na teoria e na prática, a
separação crucial que deve existir entre gênero e orientação sexual. Nem
uma determina a outra, nem a outra determina a uma. Entretanto, antes
do Movimento Transgênero e dos Estudos Transgêneros, como já mostramos, a tendência era de as identidades e expressões gênero divergentes serem vistas pelo grande público – e abordadas em estudos e pesquisas da própria academia – como simples corolário da homossexualidade.
Uma vez constituídos como campo de conhecimento autônomo, é
justo e necessário que os Estudos Transgêneros se apropriem e passem a
concentrar temas de estudo e pesquisa até hoje dispersos em diversas
outras áreas de conhecimento. Temas como conformidade e transgressão
de gênero, identidades e expressões gênero-divergentes, travestilidade,
transição, passabilidade, inclusão/exclusão das identidades transgêneras
no DSM e CID, etc., devendo ainda incorporar, como patrimônio próprio,
os numerosos estudos e pesquisas já realizados por diversos especialistas
sobre questões relacionadas à transgeneridade.
Embora ainda muito pouco divulgada, é fato notório que, na esteira
dos grandes debates, conquistas e avanços feministas, a área dos Estudos
Transgêneros está ganhando importância crescente no meio acadêmico
brasileiro. Prova disso é a recente e até então inédita realização do I Congresso “Des-fazendo Gênero”, promovido pelo Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio Grande Norte, em agosto de 2013,
35
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
na cidade de Natal-RN. Esse foi o primeiro evento acadêmico, realizado
no país, inteiramente dedicado a estudos, análises e debates a respeito
das identidades transgêneras.
Os Estudos Transgêneros constituem uma área de pesquisa e ensino acadêmico praticamente desconhecida e muito pouco difundida no
Brasil. Tratando-se de uma disciplina ainda muito recente, não há registro de representação significativa no meio acadêmico brasileiro. Pelo que
pudemos apurar, a disciplina de Estudos Transgêneros ainda não aparece
oficialmente em nenhuma ementa de curso universitário do país, nem
como matéria curricular, nem como matéria opcional.
Por sua vez, a bibliografia da área de Estudos Transgêneros também é ainda muito pouco conhecida e divulgada no Brasil, embora contenha títulos que, isoladamente, já são bastante conhecidos em outras áreas
do conhecimento. É o caso de autores importantíssimos, como Susan
Stryker, Kate Bornstein, Virginia Prince, Leslie Feinberg, David Valentine,
Sandy Stone, Patrick Califia, Rita Felski, Viviane Namaste, Patricia Soley
Beltran, dentre outros, cujos estudos em grande medida forneceram as
bases teóricas para a realização deste trabalho.
Os Estudos Transgêneros abordam, dentre outros, temas como
transgressão e conformidade de gênero; sexo, gênero e orientação sexual;
assumir e transicionar; roupa como veículo de expressão de gênero; subjetivação; corpo e corporalidade; travestismo; passabilidade e visibilidade social das pessoas gênero divergentes. Tendo como referência o enfoque que esses temas têm adquirido dentro da área de Estudos Transgêneros, iremos, em seguida, abordar cada um deles, olhando simultaneamente a questão central deste trabalho, que é a compreensão da pessoa
transgênera como alguém em permanente conflito entre a transgressão e
a conformidade com as normas de conduta do dispositivo binário de gênero.
36
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Sexo, Ge nero e Orientaça o Sexual
Uma coisa é uma coisa e outra coisa não é a mesma coisa que a coisa.
Letícia Lanz
S
exo não é nada disso que andam dizendo por aí. E o problema maior é que todo mundo está convencido de que já sabe tudo a respeito de sexo. Sabe tanto, que não é preciso perguntar nem comentar
nada de sexo com ninguém, uma vez que todo mundo já deve saber tudo
sobre sexo também. Tanto quanto a própria pessoa sabe...
Apesar da “extraordinária bagagem de conhecimento sobre sexo”
que cada pessoa acha que tem, é preciso reconhecer que um dos maiores
não ditos a respeito de sexo é exatamente que ninguém sabe nada sobre
sexo. Ou, pelo menos, que saiba algo minimamente consistente e verdadeiro, pois todo esse vasto “conhecimento generalizado” não passa de lixo
informativo da pior espécie, criado e mantido por fantasias, crenças absurdas, preceitos religiosos sem fundamento, preconceitos e superstições
de toda ordem.
Assim, apesar de estar direta e indiretamente presente na maioria
das nossas conversas diárias (junto com as “condições do tempo”, sexo
pode ser considerado como “assunto universal”...), ninguém fala realmente sobre sexo, mas sobre o que acha que sexo é, com base em um monte
de informações absolutamente distorcidas e inverídicas.
Em qualquer ambiente em que seja pronunciada, sexo é uma palavra pesada, não apenas pelo conteúdo pornográfico imediatamente
deduzido pelos interlocutores, mesmo quando não há nada de libidinoso
na fala, mas também por trazer embutido uma multidão de significados
que, uma vez dissecados, não guardam nenhuma relação direta com o que
sexo realmente é. No entanto estão lá, firmes e vigilantes, transformando
a fala num labirinto incompreensível, que todo mundo finge entender só
para não deixar transparecer que não sabe nada a respeito de sexo, o que
parece ser uma vergonha imperdoável para a maioria das pessoas.
Apesar de grande parte das conversas girarem em torno de sexo,
nada é dito nem falado sobre sexo: apenas conjecturado. E talvez o sexo
37
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
não seja muito mais mesmo do
que uma grande conjectura. Embora a cara de todo mundo seja
Vamos combinar uma coisa, de novo e de
sempre a de “perfeitos entendenovo e quantas vezes ainda forem necessárias: sexo é uma coisa, gênero é outra coisa e dores e entendidos”, a realidade
orientação sexual é outra coisa ainda. Sexo é é que ninguém sabe o que está
genital: macho e fêmea (além de intersexuado e nulo). Gênero é social: homem e mulher falando ou o que está ouvindo.
ou masculino e feminino. Orientação sexual é
Da multidão de significaerótico-afetivo: homo, hetero, bi, assexual,
dos
embutidos
e naturalizados
pansexual, etc. Não é porque alguém nasceu
macho (i.e., com um pinto) que tem que ser na palavra “sexo”, vamos analisar
homem (gênero masculino) e querer a com- três, cujas características, muito
panhia de mulher (heterossexual), como
consta da regra chamada heterossexualida- especiais, definem os próprios
de compulsória, em pleno vigor na nossa contornos do nosso estudo: sexo
sociedade. A pessoa pode nascer com um
pinto e descobrir (identidade de gênero) que biológico, gênero e orientação
não tem a menor afinidade com o gênero sexual.
masculino pessoa transgênero = transgresQuando se fala de sexo, o
sora de gênero) no qual, por possuir um
pinto, a pessoa é compulsoriamente classifi- primeiro significado que está
cada ao nascer e, ainda assim, gostar de embutido na fala e, de longe, o
mulher para namorar e fazer sexo. Assim
como há muitos machos de nascimento (por- mais poderoso e influente de
tadores de pintos) que se sentem bem en- todos, é o sexo biológico ou gequadrados na condição de homem mas que
nital de cada pessoa, represensentem atração não por mulheres (como
estabelece a regra da heterossexualidade tado principalmente pelo órgão
compulsória, já mencionada antes) mas por genital que cada pessoa traz enhomens. Da mesma forma, se um macho
sente atração por outro macho não quer tre as pernas ao nascer.
dizer que ele está necessariamente em confliA natureza fornece o sexo
to com a sua categoria de gênero (homem) e
genital em quatro diferentes verque, portanto, deve mudar de gênero.
sões:
a) Macho, a pessoa que nasce com pênis;
b) Fêmea, a pessoa que nasce com vagina;
c) Intersexuado, a pessoa que nasce com pênis e vagina, siVAMOS COMBINAR?
Letícia Lanz
multaneamente;
d) Nulo, pessoa que nasce destituída de qualquer traço genital
definido.
Além do órgão genital que o bebê traz entre as pernas ao
nascer, indicador supremo e soberano da sua condição de macho
ou de fêmea biológica, o sexo genital também é representado pelas
38
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Discussao Crí tica sobre Sexo, Ge nero
e Orientaçao Sexual
Se esperamos que as mulheres façam as mesmas coisas que os homens,
elas devem ser educadas da mesma maneira que os homens.
Platão, em A República
O
conceito de gênero como categoria analítica, assim como a diferenciação entre sexo biológico, gênero e orientação sexual, dois
debates fundamentais introduzidos pela Teoria e pelo Ativismo
Feminista, constituem um importante ponto de partida para o pensamento e o ativismo transgênero.
Os Estudos Transgêneros, assim como o Movimento Transgênero
já nasceram como grandes beneficiários do Feminismo, tanto como um
corpo de ideias quanto como uma bem sucedida estratégia de abordagem
política da questão das desigualdades entre homens e mulheres, a qual se
aplica integralmente à compreensão e ao combate das desigualdades
existentes entre pessoas transgêneras e cisgêneras.
O propósito deste capítulo é fazer uma retrospectiva da evolução
dos debates Feministas sobre sexo, gênero e orientação sexual, do seu
surgimento até os dias atuais.
Em geral, o feminismo é dividido em três momentos distintos,
chamados de “ondas”.
Para o feminismo da primeira onda, tanto o sexo quanto o gênero
têm origem biológica e, portanto, as diferenças existentes entre homens e
mulheres são resultantes de fatores naturais, ou seja, de atributos geneticamente herdados e imutáveis, responsáveis tanto pelas características
físicas quanto pelas características sociopsicológicas que distinguem indivíduos machos de indivíduos fêmeas.
O feminismo da segunda onda separa “gênero” de “sexo”, afirmando que gênero é social e sexo é biológico. Embora as feministas da segunda onda tenham introduzido o conceito de gênero como construção social, conferindo importância capital à socialização como mecanismo central
47
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
AS TRÊS ONDAS DO FEMINISMO
Krolokke & Sorensen
O feminismo da primeira onda vai do
final do século XIX até o final da primeira
metade do século XX e está relacionado
basicamente com os movimentos pelos
direitos civis da mulher, nos Estados
Unidos e na Europa. Focado essencialmente na igualdade de direitos e oportunidades iguais da mulher em relação ao
homem, o feminismo da primeira onda
continuou a influenciar sociedades ocidentais e orientais durante todo o século
XX e sua influência deve se estender por
muito tempo, uma vez que em muitas
sociedades a luta por direitos iguais
ainda nem começou. O feminismo da
segunda onda emergiu nas décadas de
1960 e 1970 dentro de sociedades ocidentais que atingiram alto nível de bemestar social no pós-guerra, onde outros
grupos oprimidos como negros e homossexuais estavam se mobilizando e a Nova
Esquerda (New Left) estava em ascensão.
Essa segunda onda está intimamente
relacionada com as vozes radicais pelo
empoderamento da mulher na sociedade.
Nos anos oitenta e noventa, a segunda
onda conheceu a luta das mulheres não
brancas e das mulheres do terceiro mundo para se diferenciar seus pleitos e
demandas dentro do próprio movimento
feminista, constituído até então a partir
da ideia de uma “mulher universal”. A
terceira onda feminista se instala a partir
da metade dos anos noventa em diante,
na esteira da nova ordem pós-colonial e
pós-socialista do mundo e no contexto da
sociedade da informação e da política
neoliberal global. O feminismo da terceira onda se apresenta a si mesmo com
uma retórica forte, que busca superar a
questão teórica da igualdade ou diferença
e a questão política da evolução ou revolução, ao mesmo tempo em que desafia a
noção de uma “liga universal das mulheres” e abraça a ambiguidade, diversidade
e multiplicidade numa teoria e política
transversal. (KROLOKKE, 2006, p. 1-2)
48
na criação e na manutenção das
diferenças entre os gêneros, elas
não dispensam e, pelo contrário,
reforçam, a necessidade de um
“corpo físico”, de macho ou de
fêmea, sobre o qual se dará a
“incorporação” do gênero através de aprendizado social.
Por sua vez, no pensamento feminista da terceira onda,
tanto gênero quanto sexo são
considerados como meros discursos normativos, artifícios de
linguagem que dão sustentação
ao dispositivo binário de gênero,
o qual é, em si, um mecanismo de
hierarquização e controle social.
Sexo e gênero, portanto, não
estão diretamente ligados a nenhum inexorável determinismo
biológico, mas a um previsível e
bem calculado determinismo
político-cultural.
Examinaremos a seguir
esses três modos de abordagem
de sexo e gênero que, em nossa
exposição, associamos ao pensamento feminista, mas que,
naturalmente, encontram raciocínios paralelos, semelhantes e
também opostos em outras correntes do pensamento contemporâneo, nas diversas ramificações da atividade acadêmica.
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
A Abordagem Pós-Estruturalista
As duas abordagens anteriores – essencialismo e construtivismo
social – são amplamente contestadas pelo pensamento pós-estruturalista,
que exerce uma enorme influência no feminismo da terceira onda, do
qual a filósofa Judith Butler é uma das figuras de maior expressão.
As ideias pós-estruturalistas, em grande parte enfeixadas pela Teoria Queer, defendem que sexo e gênero não têm qualquer base biológica,
sendo conceitos política e culturalmente construídos na sua totalidade,
ou seja, apenas “discursos normalizadores” de condutas sociais. Assim,
em vez de considerar o sexo como biologicamente determinado e o gênero como culturalmente aprendido, a corrente pós-estruturalista sugere
que deveríamos ver o gênero – e também o sexo – como meros discursos,
social, cultural e politicamente construídos.
Para o pós-estruturalismo, não apenas o gênero é um discurso
normatizador sem nenhuma base ou essência material, mas também o
sexo e até o próprio corpo. Todas essas entidades não tem nenhuma existencia em si próprias, estando sujeitas a forças sociais que, de muitas e de
variadas formas, modelam permanentemente a sua configuração.
Nem o sexo, nem o corpo, nem a própria biologia existem ou funcionam fora dos seus significados culturais. Tal como o gênero, também são
discursos normatizadores e estão sujeitos ao agenciamento humano e às
escolhas que as pessoas realizam, individual e coletivamente, em diferentes épocas e contextos sociais.
Gênero e sexo constituem um verdadeiro campo de batalha ideológica, em que se trava a luta pela desconstrução de seus significados sociopolítico-culturais. Embora construídos a partir de fatores biológicos,
físicos, sociais, psicológicos e culturais múltiplos, variáveis e inteiramente
heterogêneos, esses dois conceitos são mantidos e reverenciados pela
sociedade como um conjunto discursivo unitário, fixo e livre de contradições e problematizações, tendo em vista a sua função precípua de ordenar, normatizar e manter os indivíduos dentro dos trilhos comportamentais ditados pela ordem vigente.
Constituindo o núcleo central do dispositivo binário de gênero, o
discurso sexo/gênero é responsável pela criação, naturalização e manutenção de diferenciações artificiais e arbitrárias entre homens e mulheres
59
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Especial Judith Butler
Antes de entrarmos nesse resumo básico sobre alguns conceitos
fundamentais de Judith Butler é preciso frisar que o esforço intelectual
dessa notável pensadora contemporânea nunca foi dirigido para destruir
a noção de gênero como construção sociopolítica-cultural, mas para problematizar esse conceito, tão caro quanto necessário ao desenvolvimento
do feminismo como um corpo de ideias e uma práxis, dentro do mais puro
espírito do processo crítico de
Gênero não é algo que a pessoa é, mas
desconstrução42 proposto por algo que a pessoa faz: uma ação. Um
Jacques Derrida.
“fazer”, em vez de um “modo de ser”.
A ideia de corporificaJudith Butler (em “Problema de Gênero”)
ção social da norma de gênero
está no centro do pensamento Ser uma categoria de gênero é um efeida filósofa feminista Judith to. Aceitar esse caráter de gênero como
Butler. Em um trecho do seu efeito é concordar que uma identidade
ensaio Criticamente Queer de gênero nada mais é do que a própria
(1997), a autora afirma que “a expressão desse gênero.
formulação do corpo como
Judith Butler, 1999, p. 28
um modo de dramatizar ou
ratificar possibilidades oferece um modo de entender como uma norma
cultural é personificada e ordenada”43.
Com efeito, Butler estende o pensamento de Foucault sobre a relação entre sujeito, poder e sexo à questão da relação sujeito, poder e gênero. Aliás, para Butler, sexo sempre foi gênero, uma vez que os padrões de
conduta de gênero são impressos no corpo, que os incorpora e os repete
mecânica e compulsoriamente, do berço ao túmulo.
Argumentando que não há nada que possa ser chamado de “sexo
verdadeiro” por trás da identidade de gênero, que possa ser tomado como a causa e a base biológica do gênero, Butler afirma que, muito ao contrário, a identidade de gênero, construída como um ideal normativo e
regulatório nas redes de poder/saber, é que seria a base da existência do
sexo.
Gênero não está para a cultura como o sexo está para a natureza; gênero é o meio discursivo/cultural pelo qual a “natureza sexuada” ou o “sexo natural” é construído e estabelecido como “pré63
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
68
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Transge nero e Cisge nero
Transgênero é, antes de mais nada, um termo politicamente engajado,
nascido na luta pelos direitos civis das pessoas gênero-divergentes,
que são aquelas cuja identidade de gênero assumida
não corresponde à classificação recebida ao nascer.
Letícia Lanz
Q
uando falamos de transgênero e cisgênero falamos necessariamente de gênero, conceito do qual essas duas palavras se originam e ao qual estão inextricavelmente associadas.
A palavra transgênero (do latim trans = do lado oposto, além) conceitua e descreve o comportamento da pessoa gênero-divergente, isto é,
aquela cuja identidade e/ou expressão de gênero apresenta algum tipo de
divergência, conflito ou não conformidade com as normas socialmente
aceitas e sancionadas para a categoria de gênero em que foi classificada
ao nascer. Essas normas estabelecem, por exemplo, que homens não devem vestir-se, maquiar-se ou comportar-se socialmente como mulheres.
Diante dessa interdição, independentemente dos motivos que o levam a
isso ou da frequência com que o faz, um homem que se veste como mulher, buscando expressar-se como mulher, está claramente transgredindo
as normas de conduta do dispositivo binário de gênero.
Assim, o que identifica e distingue a pessoa transgênera dentro da
sociedade é a transgressão de gênero, a sua ousadia, insistência e determinação em confrontar o dispositivo binário de gênero, instituído e
mantido pela sociedade como forma de classificação e hierarquização dos
seres humanos, tendo como referência única e exclusiva o órgão genital
que cada indivíduo traz entre as pernas ao nascer.
Esse fenômeno de desvio social de gênero é conhecido como
transgeneridade e é capaz de causar sérios transtornos à saúde física e
mental das pessoas gênero-divergentes, cuja superação inclui a adoção de
canais de expressão que lhes permitam elaborar e manifestar pelo menos
os aspectos mais conflituosos da sua transgeneridade. Em casos extremos, a eliminação do sofrimento psíquico das pessoas transgêneras poderá exigir a cirurgia de reaparelhamento genital. A transgeneridade é
69
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
um fenômeno extremamente amplo, podendo apresentar uma imensa
variedade de manifestações.
Transgênero não é uma caLeslie Feinberg, transhomem e ativista tegoria identitária de gênero,
transgênero norte-americano, autor do
mas a condição sociopolíticaManifesto Transgênero, também aponta
para a “transgressão” do dispositivo cultural do indivíduo que transbinário de gênero como sendo o “deslize” gride o dispositivo binário de
de comportamento que coloca a pessoa
transgênera no epicentro de um verda- gênero, ou seja, que se desvia das
deiro “terremoto existencial”:
normas oficiais de conduta de
gênero, - homem/mulher ou
Estamos falando de pessoas que desafiam
os limites artificiais e arbitrários de gêne- masculino/ feminino. O termo
ro. Gênero diz respeito a autoexpressão, transgênero pode ser visto como
não a anatomia. A vida inteira a sociedade
tem nos ensinado que sexo e gênero são um imenso guarda-chuva para inúsinônimos. Homens são "masculinos" e meras (des)identidades de gênero,
mulheres são “femininas”. Cor-de-rosa
constituídas a partir da negação, do
para as meninas e azul para os meninos.
Essas coisas “são naturais”, é o que dizem. desvio e/ou da afronta ao dispositiMas na virada do século XIX, o azul era vo binário de gênero, oficialmente
considerado cor de menina e rosa, de
menino. Códigos de gênero, rígidos e sim- estabelecido, legitimado e legalizaplistas, não são nem eternos, nem naturais. do pela sociedade. Nesse conceito
São eles que estabelecem e fixam conceitos
e comportamentos sociais. São eles que guarda-chuva se abrigam todas
manifestações
gênerodeterminam que não há nada de errado as
com homens que são considerados "mascu- dissidentes que se conhece, deslinos" e mulheres cuja autoexpressão está
dentro da faixa do que é considerado de o CD de armário até a transe"feminino". O problema é que as tantas xual operada, passando pela trapessoas que não se encaixam nesses estreitos parâmetros sociais sofrem uma gama vesti e pela dragqueen. Justade perseguições e violências. Isso levanta a mente por abrigar, indistintaquestão: quem decidiu qual é a "norma" mente, todas as identidades gêque deve prevalecer? Por que algumas
pessoas são punidas pela expressão da sua nero-divergentes, transgênero é
identidade de gênero? (FEINBERG, 2006, internacionalmente adotado copp. 205-206)
mo o “T” da sigla LGBT.
O termo transgênero também vem sendo utilizado para classificar
pessoas que de alguma forma, não se reconhecem e/ou não podem ser
socialmente reconhecidas nem como homem, nem como mulher, pois a
sua identidade de gênero não se enquadra em nenhuma das duas categorias disponíveis.
70
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Um Breve Historico de Transge nero
Desde muito tempo, a população transgênera é confundida
ou simplesmente tratada como homossexual. Em razão disso,
a principal meta das pessoas transgêneras deveria ser
o resgate da sua própria história, da Antiguidade até o presente.
Leslie Feinberg 59
C
omportamentos que bem podem ser considerados como manifestação de transgeneridade sempre fizeram parte da história da
civilização. Contudo, as reações da sociedade sempre estiveram
(como ainda estão) muito longe de ser homogêneas. Enquanto em diversos locais e épocas as pessoas transgêneras foram naturalmente incluídas
e aceitas pela ordem social vigente, sendo até mesmo reverenciadas como
interlocutoras das divindades, em outros foram duramente rechaçadas,
combatidas e punidas pela sua transgressão de gênero.
Ao longo da história, têm sido registradas, inúmeras culturas nas
quais prevalece a diversidade de gênero, ou seja, nelas as pessoas não
estão confinadas a apenas duas categorias de gênero – homem e mulher
ou masculino e feminino: outras categorias de gênero são aceitas de maneira absolutamente natural. A Índia, onde as hijras foram recentemente
reconhecidas oficialmente como uma 3ª categoria de gênero; as tribos
norte-americanas, em que os berdaches ou two-spirit people ainda hoje
continuam a ser considerados como pessoas com dons especiais e as ilhas
Samoa, com seus fa’afafine60, são exemplos de sociedades em que o gênero não acompanha o sexo genital.
Em muitas dessas culturas, inclusive, outras categorias de gênero
além do binário masculino-feminino têm sido celebradas e veneradas
como representantes de uma ligação direta com os deuses. Ao contrário,
na nossa cultura ocidental, pessoas que não se ajustam à categoria de
gênero que lhes foi designada ao nascer em função do seu sexo genital
são consideradas sociodesviantes, ou seja, transgêneras – transgressoras
da ordem social, em franca dissonância com as pessoas cisgêneras, que
são aquelas pessoas bem-ajustada à categoria de gênero que receberam
ao nascer.
79
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Ao mesmo tempo em que
pessoas transgêneras puderam
A natureza contemporânea do termo desempenhar papéis de destaque
"transgênero" e sua especificidade cultural nos rituais religiosos do antigo
tornam complicadas e complexas quaisquer tentativas de escrever a “história Oriente Médio, em diversas cultutransgênera". Devemos incluir ou não ras indígenas norte-americanas e
indivíduos de séculos passados que poderiam ser classificados como transgêneros, nas populações nativas da Oceafavorecendo o nosso ponto de vista, mas nia, na Europa católica foram enque do ponto de vista deles jamais conceberam seu modo de vida sob tal perspecti- viadas para a fogueira, deportadas
va? E o que dizer de pessoas que hoje estão ou simplesmente atiradas aos
perfeitamente enquadradas como transgêmastins, como fizeram os colonineras, mas que por inúmeras razões rejeitam tal classificação, incluindo a percepção zadores espanhóis com nativos da
de ser um termo ocidental e “branco de
América Central e do Norte.
classe média”? Essas pessoas devem ficar
De acordo com estatísticas
de fora da "história transgênera", porque
não se identificam especificamente como
61 - International Lesbian,
da
ILGA
transgêneros? Tendo em vista as ricas
histórias de indivíduos que se perceberam Gay, Bisexual, Trans and Intersex
e foram percebidas por suas sociedades e Association, em pleno século XXI, a
épocas como gênero-divergentes, não seria
adequado limitar a "história transgênera" transgressão de gênero, ao lado de
para pessoas que viveram em um tempo e transgressões da “heterossexualilugar onde o conceito de "transgênero"
esteve disponível e foi por elas utilizado. dade compulsória”, continua senMas, ao mesmo tempo, também seria ina- do crime sujeito a penas que varipropriado assumir que pessoas "transgêneras", dentro da concepção atual do ter- am de prisão, castração química,
mo, existiram ao longo da história açoites físicos e até pena de morte
(BEEMYN, 2013, p. 113).
em mais de 80 países, dentre os
quais estão incluídos a Rússia, a Indonésia, o Paquistão, Cingapura e Arábia Saudita. Mesmo em países onde não existe especificamente uma legislação antitransgênera, e até mesmo naqueles em que já existe uma legislação de proteção às identidades gênero-divergentes, os usos e costumes
que sustentam as normas culturais podem ser tão arraigados que simplesmente desconhecem os limites impostos pela lei.
Na maioria das tribos nativas da América do Norte, identidades sexuais e de gênero que hoje conhecemos como transgêneros, gays, lésbicas
e bissexuais eram reverenciadas como pessoas-de-dois-espíritos (two
spirit people). Apelidadas pelos colonizadores espanhóis de berdaches,
desempenhavam, como ainda desempenham, importantes funções de
curandeiros-xamãs, conselheiros e interlocutores com os deuses. Essas
ESCREVER A HISTÓRIA TRANSGÊNERA
Genny Beemyn
80
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
pessoas, tanto machos quanto fêmeas, tinham autorização cultural para
misturar categorias de gênero, podendo livremente vestir roupas de gêneros opostos ou de ambos e se engajarem livremente em relações homossexuais. Na maioria das culturas nativas norte-americanas, estavam
associados a mitos da criação e lendas de origem da tribo. Um mito da
criação da tribo Zuni, do Novo México, relata que na origem dos tempos
as primeiras criaturas eram de dois espíritos, nem macho nem fêmea,
mas ambas as coisas. Fortemente ancorados na moral cristã da santa inquisição (a mesma que "despachou" para o Brasil, em regime de desterro,
centenas de homossexuais condenados nos processos guardados na Torre do Tombo...), os colonizadores espanhóis trataram os berdaches com
total desprezo e violência, sem levar em conta o status altamente respeitável, de natureza mágico-religiosa, que essas pessoas desfrutavam em
suas tribos.
Em um posicionamento radicalmente oposto
ao
das tribos norteamericanas, a lei mosaica
que governava as tribos
israelitas estabelecia severas proibições a quaisquer
manifestações de transgeneridade, condenando abertamente o travestismo, como sendo uma prática abominável aos olhos de Jeo- Junto aos seus cortesãos, o colonizador espanhol
Vasco Nuñez de Balboa (1475-1519) assiste um
vá62. Diversos historiadores grupo de berdaches ser destroçado pelos seus masdestacam que essa abomi- tins. (Gravura de Theodore de Bry)
nação bíblica do travestismo está claramente relacionada à afirmação do
patriarcado que, através do colérico e guerreiro deus Jeová, lutava para
se impor e substituir o culto à Deusa-Mãe, extremamente difundido e
muito popular em todo o Oriente Médio, no qual os sacerdotes homens se
travestiam e até mesmo se castravam para servir à Deusa63.
Apesar do fenômeno da transgeneridade ser, hoje em dia, muito
mais focado em pessoas MtF, ao longo da história sempre predominaram
os casos de mulheres que transicionaram para o gênero masculino. Esse
81
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
O Uso do Termo Transge nero no Brasil
Embora a sua aceitação venha crescendo substancialmente nos últimos tempos, especialmente em setores mais bem informados e politizados da população, ainda há uma expressiva oposição ao uso de transgênero como termo guarda-chuva, abrigando todas as identidades gênerodivergentes no país. Prova disso, é a aborrecida e incômoda repetição de
“tês” na sigla internacional LGBT. É comum ver-se a sigla ser grafada aqui
no Brasil como LGBTT, LGBTTT, LGBTTI e até LGBTTIQ (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais, intersexuados e queer). Isso comprova
a recusa sutil e ostensiva que há no Brasil ao reconhecimento de transgênero como termo designativo de todas as identidades gênerodivergentes. Ademais, mesmo quando o termo transgênero é utilizado,
seu significado sociopolítico original é quase sempre adulterado. Assim, a
palavra transgênero é frequentemente empregada como sinônimo de
transexual, como sinônimo de crossdresser e até adotada por travestis,
geralmente na forma contraída "trans", como maneira de se apresentarem à sociedade sem o pesado estigma que a palavra travesti possui entre
nós.
Seria mesmo preferível que os movimentos oficiais de travestis e
transexuais, assim como os órgãos e serviços públicos que executam políticas públicas relacionadas com esses grupos, como é o caso do SUS, omitissem por completo qualquer referência ao termo transgênero, em vez
de o empregarem de maneira totalmente inadequada, escrevendo “travestis, transexuais e transgêneros”, como se transgênero fosse uma simples identidade gênero-divergente e, é claro, travestis e transexuais não
fossem categorias de pessoas transgêneras.
Há grupos nas redes sociais que se intitulam “travestis, transexuais
e transgêneros”, sem que seus membros ao menos expliquem o significado que dão à palavra transgênero, como de resto tampouco conseguem
fornecer definições minimamente consistentes para “travesti” e “transexual”. Na mídia, onde transgênero é frequentemente traduzido como
transexual – como faz, por exemplo, o utilizadíssimo tradutor do Google –
muitas vezes o termo chega a ser confundido até com “transgênico”, demonstrando o descuido jornalístico e o descaso pela correta utilização do
termo. Até mesmo ilustres representantes do meio médico desconhecem
93
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
e desprezam o uso do termo transgênero no Brasil. Ouvi, recentemente,
um renomado “especialista” em transexualidade, dizer que o termo
transgênero nem sequer existe oficialmente no vocabulário médico, sendo apenas um termo de uso “popular”. Com essa afirmação, o renomado
“especialista” demonstra desconhecer até mesmo a existência do WPATH
–
World
Professional
Association
for
Transgender
Health
(www.wpath.org), conhecido até recentemente como Harry Benjamin
International Gender Dysphoria Association. Com efeito, é fato amplamente conhecido que essa associação, de cuja fundação, em 1979, participou o
próprio Dr. Harry Benjamin, congrega médicos e outros profissionais de
saúde do mundo inteiro, especialistas no atendimento de pessoas transgêneras. Sua importância é tão grande no meio médico que ela é a responsável pela emissão dos chamados protocolos de tratamento de pessoas transgêneras (Standards of Care), periodicamente atualizados e atualmente na sua sétima versão.
Para os autodenominados “movimentos organizados”, que direta e
indiretamente influenciam a mídia e a população em geral, transgênero
parece significar uma palavra altamente ameaçadora ao status sociopolítico adquirido por essas entidades. Elas insistem que a introdução desse
termo, em vez de fortalecer a defesa dos direitos civis de travestis e transexuais iria destruir sua luta histórica, confiscando-lhes o mérito das
conquistas obtidas a tão duras penas. Essa defesa, intransigente e obstinada, da hegemonia identitária de travestis e transexuais, com a exclusão
sumária de qualquer outra expressão de identidade gênerodivergente, constitui um dos principais pontos de resistência ao
avanço do Movimento Transgênero no Brasil. Essa ostensiva e inoportuna resistência conta muitas
vezes com o respaldo dos poderes
públicos, de um grande número de
profissionais de saúde e até de
pesquisadores do meio acadêmico.
Surgidos na esteira dos esforços governamentais para dar combate à epidemia de HIV-AIDS, no
94
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Desvio Social de Conduta
As pessoas são socializadas no sentido de alcançarem uma plena compreensão das normas e valores da sua sociedade. Mas elas nunca são 100% socializadas. Isso significaria que nenhum membro da sociedade jamais
tivesse sequer um único pensamento divergente, e isso não é possível.
Èmile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico
D
esde o seu surgimento como disciplina independente, a sociologia tem se dedicado a estudar as causas dos desvios de comportamento, buscando pesquisar e entender a fundo por que algumas pessoas se conformam às normas e expectativas sociais e outras,
não.
Nas suas Regras do Método Sociológico (1895), Emile Durkheim, o
pai da sociologia, concebe todos os tipos de desvio de comportamento
como violações das normas sociais. Para ele, qualquer desvio de conduta,
inclusive o crime e, por extensão, a doença mental, não têm substância
real em si mesmos, ou seja, não existem fora das normas culturais que
são, precisamente, aquilo que define a sua existência, a partir do momento em que sofrem
transgressão90. Aquilo que é estabelecido como
transgressivo ou criminoso independe do comportamento do indivíduo em si, mas dos sistemas
de valores de cada coletividade, que compreendem as normas de conduta consideradas apropriadas e não apropriadas, assim como os critérios
de aplicação e as formas de sanção aos seus eventuais infratores. Assim, um mesmo tipo de comportamento, manifestado em diferentes contextos
e condições socioculturais, pode ser avaliado de
maneiras totalmente distintas e até antagônicas,
dependendo de como esse comportamento está
posicionado no sistema de classificação de condutas próprio de cada sociedade em particular91.
101
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Durkheim oferece uma importante contribuição aos Estudos
Transgêneros ao deixar de focalizar a ação individual de cada sujeito como causadora dos desvios, para focalizar as definições políticas
e culturais que estabelecem a noção de desvio em cada sociedade
em particular, ou seja, movendo, do plano individual para o plano
coletivo, o objeto de análise dos estudos sobre desvio social.
AS REGRAS SOCIAIS DE CONDUTA
Emile Durkheim
O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em
minhas relações comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc., funcionam
independentemente do uso que faço deles. Que se tomem um a um todos os membros de
que é composta a sociedade; o que precede poderá ser repetido a propósito de cada um
deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais. Esses tipos de conduta
ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de
uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira,
quer não. Certamente, quando me conformo voluntariamente a ela, essa coerção não se
faz ou pouco se faz sentir, sendo inútil. Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses fatos, e a prova disso é que ela se afirma tão logo tento resistir. Se tento
violar as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver em
tempo, ou para anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal, se tiver sido efetuado e
for reparável, ou para fazer com que eu o expie, se não puder ser reparado de outro
modo. Em se tratando de máximas puramente morais, a consciência pública reprime
todo ato que as ofenda através da vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e
elas penas especiais de que dispõe. Em outros casos, a coerção é menos violenta, mas
não deixa de existir. Se não me submeto às convenções do mundo, se, ao vestir-me, não
levo em conta os costumes observados em meu país e em minha classe, o riso que provoco, o afastamento em relação a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os
mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coerção, mesmo sendo
apenas indireta, continua sendo eficaz. (DURKHEIM, 2007. p. 2)
A partir da década de 1960, foi a vez do médico psiquiatra Thomas
Szasz, um dos expoentes da luta antimanicomial, mostrar que uma das
formas utilizadas pela sociedade moderna para “punir” pessoas sociodesviantes era classificá-las como portadoras de doença mental.
Szasz desafiou abertamente a psiquiatria tradicional afirmando que os sintomas psiquiátricos deveriam ser vistos muito
mais como transgressões de normas sociais do que como distúrbios
intrapsíquicos do indivíduo. Criticando duramente os fundamentos
morais e científicos da psiquiatria, Szasz argumentou que a psiquiatria
havia assumido um papel eminentemente de controle de conduta dos
indivíduos, sob um disfarce de atendimento e tratamento médico.
102
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
A Transgressao de Genero como Matriz da
Transgeneridade
O que vamos dizer então? Que a própria lei é pecado? É claro que não! Mas
foi a lei que me fez saber o que é pecado. Pois eu não saberia o que é a cobiça se a lei não tivesse dito “não cobice”.
Romanos, 7:7
O
que há em comum entre uma caixa de fósforos, um isqueiro e
uma lupa refletindo o sol na palha seca? Embora diferentes um
do outro, todos esses três recursos são capazes de acender uma
fogueira. O que há em comum entre uma transexual, uma dragqueen, uma
travesti e um crossdresser? Jocosamente, poderíamos responder que
essas pessoas também têm potencial para atear fogo na ordem vigente.
Em se tratando de identidades gênero-divergentes elas realmente
são capazes de causar incêndios na sociedade que, dentre outras interdições bestas, proíbe terminantemente aos machos biológico, classificados,
em função disso, como homens, ao nascer, de se apresentarem publicamente vestidos “com roupas de mulher”. Todas aquelas personagens se
comportam de modo socialmente divergente, destoante, desviado e
transgressivo em relação às normas de gênero que regem – e regem com
a máxima rigidez – a vida das pessoas no seu dia a dia. Esse é o núcleo
comum entre todos esses rótulos de pessoas gênero-divergentes: a natureza transgressiva em relação às normas de gênero que regulam o comportamento socialmente esperado de homens e mulheres.
Quando a pessoa, pelo motivo que for, apresenta algum tipo
de não conformidade104 com as normas de conduta que lhe são impostas pelo dispositivo binário de gênero, independentemente da
profundidade, extensão, frequência ou gravidade do seu delito ou
violação, comete um desvio social denominado transgressão de gênero. A origem do fenômeno transgênero é essa transgressão do
dispositivo binário de gênero: nenhum estudo sobre identidades
transgêneras pode ignorar esse fato.
111
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
De todas as maneiras e
para todos os efeitos, a pessoa
transgênera é, antes de tudo,
O que marca e diferencia a pessoa transgêne- alguém que viola normas, que se
ra, e marca de maneira tão drástica e radical desvia do que é considerado
na sociedade, não é ser uma profissional do
sexo, como é o caso da identidade travesti no “normal”, que subverte e transBrasil; nem o seu suposto “transtorno men- gride a ordem social, política e
tal”, rótulo pesadamente colado na testa da cultural vigente. Por isso mesmo,
identidade transexual por um grande número de psiquiatras e psicólogos clínicos; nem o representa uma clara e evidente
ato de montar-se como mulher da forma ameaça à estabilidade do dispomais requintadamente exagerada possível,
como ocorre com a identidade dragqueen; sitivo binário de gênero que está
nem vestir-se de mulher “pelo prazer de ser na base da nossa organização
mulher”, que hipocritamente caracteriza a
sociopolítica e cultural. Em razão
identidade crossdresser entre nós. Nenhum
comportamento ou traço específico de per- disso, por mais que a pessoa
sonalidade é capaz, por si só, de construir e transgênera apresente atestados
manter o estigma que paira sobre as pessoas
transgêneras. Independentemente das iden- de sanidade mental, inteligência
tidades e/ou das expressões de gênero com e lucidez, será considerada
que as pessoas transgêneras se apresentam
“anormal” por transgredir os
socialmente – travesti, transexual, homem
trans, crossdresser, dragqueen, transformis- parâmetros de normalidade dita, etc., etc., etc. –, o que as caracteriza é a tados pela ordem instituída. Justransgressão das normas de conduta do
dispositivo binário de gênero. É esse desvio tamente por subverterem o par
da norma que marca e diferencia a pessoa sagrado homem-mulher ou mastransgênera.
culino-feminino, é que as identidades transgêneras são social, política e culturalmente repudiadas pela
ordem vigente.
O prefixo trans vem de transgressão, fato que marca, distingue e
separa a população transgênera da população cisgênera, sempre de maneira tão cruel e radical. A intolerância e a discriminação existentes contra a pessoa transgênera confirmam e atestam essa origem totalmente
transgressiva do prefixo trans. Se o prefixo trans, de transgênero, viesse
de coisas sublimes como transcendência, transbordamento e transformação, como sugerem algumas cabeças mais românticas e deslumbradas,
nenhuma pessoa transgênera seria tratada como transviada ou transtornada pela sociedade. Ao contrário, seria reconhecida e louvada como fenômeno de perfeita transfiguração humana. Trans-gênero não vem tamÉ O DESVIO DA NORMA QUE MARCA
E DIFERENCIA A PESSOA TRANSGÊNERA
Letícia Lanz
112
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
A Formaça o das Identidades Transge neras
Ninguém nasce transgênero. A pessoa descobre que é,
ao descobrir que não é o que a sociedade diz que ela é
e exige que ela seja, custe o que lhe custar,
até mesmo a sua própria identidade social.
Letícia Lanz
A
reconfiguração, pelo próprio indivíduo, da identidade de gênero
recebida ao nascer, resulta de um processo de subjetivação dos
modelos identitários de gênero que são estabelecidos pela sociedade, de tal forma que, pelo menos em parte, há uma escolha consciente e
deliberada da pessoa em adotar essa identidade, em lugar daquela que
lhe foi imposta, sobretudo quando a transição ocorre em fases mais tardias da vida adulta.
Discutiremos aqui os principais fatores pessoais e sociopolíticoculturais que interagem nesse processo a fim de que aconteça na prática
tal reconfiguração, da descoberta da inadequação do indivíduo ao modelo
identitário que lhe foi imposto ao nascer à implementação da mudança.
Não vamos nos deter em levantar hipóteses sobre por que aparece tal
comportamento de não conformidade e sim sobre como ele aparece e
quais são as variáveis que o influenciam. Examinaremos, também, por
que ele é considerado perversão ou transgressão e por que combatê-lo é
algo que a sociedade enxerga como tão crucial para a estabilidade e o
funcionamento dos processos sociais dentro da ordem vigente, ao ponto
de ser classificado como transgressão – ou perversão – e, em função disso, tornar-se proscrito, sendo duramente repelido, estigmatizado e punido pelo establishment.
Todo comportamento humano, e o comportamento transgênero
não seria uma exceção, é influenciado por inúmeros fatores, das mais
diversas e variadas naturezas: genética, linguística, psicológica, sociológica, antropológica, histórica, política, religiosa, etc., etc.
Ninguém “se transforma” em transgênero, nem esse processo
ocorre da noite para o dia, de modo totalmente imprevisível e aleatório. Cada pessoa transgênera tem uma história e uma trajetória de vida
absolutamente únicas. Embora não haja nenhuma explicação conclusiva a
121
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
respeito dos fatores que causam a transgeneridade, uma coisa é certa:
ninguém escolhe ser ou não transgênero, como se escolhe uma profissão
ou um lugar para passar férias. Da mesma forma, ninguém pode influenciar ninguém a se tornar ou a deixar de ser transgênero. O simples convívio com uma pessoa transgênera (transexual, travesti, crossdresser,
dragqueen, etc.) não faz com que alguém também se torne assim.
Identidade de gênero é algo apreendido e elaborado subjetivamente, através da combinação da pessoa original que cada um de
nós é com os modelos de gênero que nos são oferecidos pela sociedade.
Num certo sentido, a pessoa transgênera já nasce transgênera.
Não no sentido de estar presa em um corpo oposto ao que ela “deveria
ter”, como reza o mito que circula por aí, mas no sentido de que só a própria pessoa sabe, sente e percebe a transgeneridade como parte integrante do seu próprio ser.
Cada pessoa que chega a este mundo traz consigo algo muito
especial que, na falta de outro nome, chamaremos de “essência de si
mesma”. Ao contrário do que supõe o senso comum, tal essência não
é nem feminina nem masculina e tampouco está ligada ao sexo genital da pessoa. Essa essência é simplesmente humana, atributo da
própria natureza humana.
A sociedade vai fazer de tudo para reduzir e enquadrar essa essência, única em cada pessoa, em alguma categoria inteligível de identidade.
Assim, a partir do momento que somos concebidos, essa essência única
que trazemos dentro de nós é continuamente forçada a enquadrar-se nos
modelos identitários que a sociedade determina.
Não se trata de uma opção, mas de uma imposição: quem nasce
com um pênis é obrigado a se enquadrar como homem, ainda que sua
essência individual não tenha nenhuma afinidade, simpatia ou atração
pelo modo masculino de ser.
É assim que nos tornamos homens e mulheres.
A maioria não tem a menor consciência de que é através da comparação da sua “essência interior” e suas características físicas individuais com os estereótipos socioculturais de gênero que consegue descobrir
o quanto está sendo ou deixando de ser homem ou mulher.
122
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
1. Corpo
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.
Carlos Drummond de Andrade, As contradições do Corpo.
N
inguém nasce um corpo: torna-se um. Para viver em sociedade, é preciso ter um corpo e para ter um corpo, é preciso
construir um. Ninguém nasce com um corpo “pronto pra ser
usado”. Cada pessoa nasce um organismo biológico, da espécie homo sapiens, à qual pertencemos todos nós seres humanos. Para tornar-se um
corpo, o organismo biológico terá que se submeter a um longo processo
de adaptação e aprendizado, mediante o qual deixará de ser um mero
“organismo biológico” para tornar-se um “organismo cultural”, ou um “corpo”. Durante esse
processo, o organismo biológico terá que se capacitar para preencher uma lista interminável de
quesitos, que vão desde a maneira de se vestir,
andar, gesticular e tomar atitudes no dia a dia,
até o completo “espelhamento” dos “estereótipos de corpo” em vigor na sociedade, tendo para
isso que lançar mão muitas vezes da cirurgia
plástica, uma vez que a natureza não tem compromisso de atender nenhuma disposição estética na produção dos seus organismos biológicos.
Até que possa ser reconhecido e aceito
como um corpo de homem ou de mulher, o organismo biológico precisará passar por um severo e contínuo adestramento sociopolítico-cultural, assim como sofrer inúmeras e drásticas
adaptações físicas, éticas, estéticas, psíquicas e atitudinais. Em primeiríssimo lugar, deverá dominar uma linguagem, sem a qual não será possível
expressar o que a sociedade quer que o organismo biológico seja. A lin135
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
guagem é o meio através do qual o corpo é construído a partir do organismo biológico, memdiante a literal “incorporação” dos diversos discursos sociopolítico-culturais existentes sobre o corpo.
Dessa forma, podemos afirmar que o corpo não existe a priori. Ao contrário, ele vai se formando, surgindo com o tempo, como
resultado do ajustamento do organismo biológico aos modelos socioculturais de corpos masculinos e corpos femininos, estabelecidos
pela sociedade de uma determinada época e lugar.
Ninguém nasce com um corpo de
homem ou de mulher: constrói um, aprendendo a ser um. Embora aparente ter a mesma substância material do organismo biológico, o corpo é basicamente imaterial, sem nenhuma substância. Ou melhor, sua substância
é inteiramente discursiva: histórica, sociopolítica e cultural. Enquanto o organismo biológico
é obra da natureza, o corpo é uma construção
social, um conjunto de discursos normativos
que existem a priori aos indivíduos, traduzidos
num sem número de conceitos, atributos, estereótipos e práticas culturalmente definidas.
Enquanto o organismo biológico é uma estrutura neuro-anatômica e fisiológica, o corpo é uma sequência de comportamentos e práticas estereotipadas, continuamente repetidas pelas pessoas, o que produz nelas a ilusão da existência de uma "substância material". Ainda que se valha da base material propiciada pelo organismo, o
corpo em si não passa de uma criação do campo da linguagem. Como
aquela série de desenhos isolados que, quando folheados juntos, de forma
acelerada, produzem a ilusão de movimento nos desenhos animados.
O organismo biológico é classificado como macho ou fêmea exclusivamente em razão da existência de um pênis ou de uma vagina na hora
do nascimento. Hoje em dia, esse procedimento de verificação é feito em
momento ainda mais precoce, no útero da mãe, através do exame de ultrassom. Essa, porém, que parece ser uma inocente diferenciação do organismo biológico em função do seu papel no processo reprodutivo hu-
136
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
1.2 Corpo Não Existe e Gênero Não Está no Corpo
Ninguém se torna homem simplesmente pelo fato de nascer
um organismo biológico macho, assim como ninguém se torna mulher por ser um organismo biológico fêmea. Essa crença tenta reduzir
o gênero a um simples (e simplório) determinismo biológico universal
que, no caso dos seres humanos, há O CORPO HUMANO ESTÁ SUJEITO AO
muitos milhares de anos foi radi- ASSÉDIO DAS FORÇAS SOCIAIS
Anthony Giddens
calmente substituído pelas disposições da cultura. Tal como o corpo, Conforme se segue nesta argumentação,
não somente o gênero é uma criação
gênero é uma construção social de puramente social, que carece de uma
natureza político-cultural, histórica essência estabelecida, mas o próprio
corpo humano está sujeito a forças socie local, isto é, um discurso normali- ais que o moldam e alteram de várias
zador da conduta humana. Como formas. Podemos dar aos nossos corpos
significados que desafiem o que é norJudith Butler enfatiza em toda a sua malmente visto como natural. Os indivíobra, não há nenhuma identidade duos podem escolher entre construir e
reconstruir seus corpos como bem deseou essência anterior à expressão jarem - por meio de exercícios, dietas,
ou performance de identidade: é piercings, adotando um estilo pessoal,
a cirurgias plásticas e
sendo mulher que alguém se tor- submetendo-se
operações de mudança de sexo. A tecnologia está confundindo as fronteiras de
na mulher.
corpos físicos. Portanto, conforO corpo é uma criação do nossos
me se segue nesta argumentação, o corcampo do simbólico, continuamente po humano e a biologia não estão “damas estão sujeitos ao agenciamento
reificado no campo do imaginário dos”,
humano e às escolhas pessoais no intericoletivo. É uma sequência de ações or de diferentes contextos sociais.
estereotipadas,
exaustivamente (GIDDENS, 2005, p. 106)
repetidas pelos indivíduos, produzindo a ilusão de substância ou de coisa
original. Ao desconstruirmos o corpo em todas as suas camadas discursivas sobrará, no final, apenas um organismo biológico, de um lado – o corpo da roupa - e um monte de disposições psicossociais, políticas e culturais que ensejam a criação do "corpo": a roupa.
O corpo é modelado, portanto, segundo as disposições do contexto
sociopolítico-cultural em que vive o indivíduo, materializando-se de
acordo com a identificação de cada pessoa com os modelos de conduta
relativos à categoria de gênero em que ela foi classificada ao nascer.
Ao mesmo tempo em que o corpo vai se formando a partir do ajustamento do organismo aos modelos de corpos fornecidos pela cultura, a
144
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
identidade de gênero, é formada da interação entre o eu subjetivo de cada
pessoa e a sociedade. Segundo Hall120, o “sujeito” tem um núcleo ou essência interior que ele considera o seu “eu real”, mas mesmo esse núcleo
interno é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos
culturais à sua volta, em conformidade com os modelos identitários que
esses mundos lhe oferecem.
Nós nos projetamos nos modelos culturais de identidade que
a sociedade nos oferece, e é a partir dessas projeções que criamos
em nós a noção da pré-existência de uma dada identidade. Através da
socialização, internalizamos os atributos, significados, valores e expressões dos modelos identitários que a cultura tem para nos oferecer, tornando-os parte de nós ou, melhor ainda, nos transformando no próprio
modelo que nos serviu de inspiração. Mais uma vez revisitando Simone
de Beauvoir (por mais enfadonho que seja), ninguém “nasce” mulher;
aprende a ser. A gente se torna mulher ou homem através da repetição
reiterada e contínua de gestos, práticas, atitudes, uso de vestuário, exercício de papéis sociais, etc., especificados nos modelos identitários de
homem e de mulher que nos é fornecido pela sociedade numa determinada época e local.
Gênero não é um “atributo natural” do organismo humano,
herdado biologicamente através do órgão genital que a pessoa traz
entre as pernas, como acredita o grande público, inteiramente despreparado, preconceituoso e desinformado sobre assuntos relacionados a sexo, gênero e orientação sexual. Gênero não resulta, portanto, da presença física de um pênis ou de uma vagina. Está no cérebro, na
cabeça, entre as orelhas e resulta da identificação de cada pessoa com um
dos dois grandes discursos identitários “oficiais” – masculino e feminino –
ou com ambos ou com nenhum deles. Gênero é um atributo que não se
estabelece a partir de dotes físicos, mas a partir da subjetividade de
cada indivíduo.
Diferentemente do sexo genital, que é uma contingência biológica,
herdada geneticamente, o gênero é discursivo, produzido culturalmente.
Uma construção sociopolítico-cultural compreendendo, na prática, um
elenco de papéis, atribuições e normas de conduta que devem ser aprendidas e performatizadas (representadas) pelo indivíduo ao longo de toda
a sua existência.
145
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
1.3 Simbologia, Significados e Transformações
do corpo
Nós nos acostumamos com a ideia de que, como seres humanos, somos basicamente corpóreos, isto é, todos possuímos corpos.
Mas o corpo não é algo que possuímos intrinsicamente, como decorrência
de sermos organismos biológicos. Tampouco o corpo pode ser considerado algo físico, existindo fora de contextos político-culturais e históricos
de uma da sociedade. Por trás da sua aparente “materialidade”, não
existe nada mais social, político, econômico e cultural – numa palavra: discursivo – do que o corpo. São os discursos sobre o corpo que
produzem o que chamamos de corpo.
Apesar do gigantesco esforço das abordagens deterministasbiologizantes para provar que o corpo é uma imutável e inexorável criação da natureza, ele não passa, na verdade, de uma criação cultural, resultante do processo civilizatório. “Nossos corpos são profundamente afetados por nossas experiências sociais, assim como pelas normas e pelos
valores dos grupos a que pertencemos”121, afirma Anthony Giddens. Essa
ideia do corpo como um portador de normas de conduta é compartilhado
por Judith Butler em seu ensaio Criticamente Queer (1997), onde a autora
escreve que “a formulação do corpo como um modo de dramatizar ou
ratificar possibilidades oferece um modo de entender como uma norma
cultural é personificada e ordenada”122.
A antropóloga inglesa Mary Douglas
chamou o corpo de “um microcosmo do
corpo social, uma poderosa forma simbólica, um recipiente no qual são inscritas e
permanentemente reforçadas as normas
centrais, as hierarquias e até os comprometimentos metafísicos de uma cultura através
do exercício diário da linguagem corporal”123. Segundo ela, os símbolos ancorados
no corpo humano são usados para expressar a experiência social, e vice-versa: o corpo humano é ensinado pela sociedade a
expressar a sua individualidade124.
147
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Toda cultura força o corpo humano a incorporar e representar significados sociais, ao mesmo tempo em que o naturaliza, a fim
de que tal incorporação de sentidos pareça ser um puro e simples
determinismo biológico. O corpo jamais poderá ser revestido com significados universais porque o seu simbolismo está sempre a serviço dos
dispositivos sociais de controle de determinada época e lugar.
O aprendizado dos usos e significados
corporais acontece intensamente durante a
infância, mas não se restringe somente a
essa fase da vida. As pessoas continuam a
transformar e a ressignificar seus corpos
incessantemente, ao longo de toda a sua
existência, dispensando velhos modos de ser
por novos estilos de vida, todos socialmente
construídos a partir das matrizes culturais
de inteligibilidade em vigência numa determinada época e local.
Através do corpo, o homem se apropria da substância da sua vida, traduzindo-a
para os outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com
os membros da comunidade, nos mostra Le Breton em A Sociologia do
Corpo125. Segundo ele, do corpo nascem e se propagam as significações
que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação da pessoa com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Para Le Breton, o
corpo não existe; não podemos visualizá-lo. O que podemos vislumbrar
são homens e mulheres, pois essa visão do corpo enquanto elemento isolado da pessoa a quem corporifica, ao contrário do que ocorre em comunidades tradicionais, é recorrente em sociedades individualistas, onde o
corpo coloca os limites e é isolado do sujeito a quem dá fisionomia126. Le
Breton nos sugere, ainda, atentar para a ambiguidade e a efemeridade do
elemento corpo pois, mais do que um construto de onde se extraem fontes de certezas, ele é, sobretudo, capaz de produzir questionamentos.
Foucault127 afirma que o corpo é resultado do jogo do poder, e o
poder penetra na própria essência dos indivíduos, tocando seus corpos e
inserindo-se nas suas ações e atitudes, nos seus discursos, nos seus pro-
148
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
1.4 Corporificação e Corporalidade da Pessoa
Transgênera
Minha pele foi a primeira roupa que eu vesti, antes mesmo de chegar a esse mundo e
que aqui deixarei, ao deixar a vida, quando essa roupa não me servir mais.
Letícia Lanz
O que constitui a fixidez do corpo, os seus contornos, os seus movimentos,
é totalmente material, mas essa materialidade deve ser repensada
como efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder.
Judith Butler140
Nascer com o órgão genital de macho é o primeiro requisito para
alguém ter acesso ao “adestramento sociopolítico-cultural” que vai transformá-lo em homem, assim como nascer com o órgão genital de fêmea é o
critério básico para alguém ser matricu- Meu corpo é meu território
lado na escola onde se aprende a ser mu- Faço dele o que eu quiser
lher. Machos são educados para se com- Não me venha impor suas regras
para eu ser homem ou ser mulher
portarem e interagirem na sociedade de
acordo com as normas do gênero mascu- Um órgão genital não define
o ser que existe em mim
lino, ou seja, para serem homens. Fêmeas Mas se quiser mudar meu corpo
são educadas para se comportarem e in- Eu mudo na boa, sim!
teragirem na sociedade de acordo com as Não estou atrás de rótulos
normas do gênero feminino, isto é, para Só desejo ser feliz
Deixe-me viver como eu quero
serem mulheres. É assim que funciona.
vá cuidar do seu nariz!
Entretanto, em que pese sua lógica
cartesiana, esse processo não é absoluta- Letícia Lanz
mente infalível nem está isento de inúmeras tensões e contradições. Muitos indivíduos, ainda em criança, não se submetem de forma passiva,
tranquila, confortável, natural e espontânea a esse “processo compulsório” de capacitação sociopolítico-cultural que os obriga a viver como homem ou como mulher. Embora a maioria dos “descontentes” simplesmente se omita de qualquer confrontação, muita gente reage, recusando
terminantemente adotar, na prática, a identidade de gênero que a sociedade lhe reservou, em função do seu sexo biológico. É daí que advêm todos os intermináveis conflitos vividos pelas pessoas transgêneras ao longo de suas vidas.
155
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Pelos motivos mais variados, as pessoas transgêneras simplesmente não se encaixam nem se reconhecem, de forma plena ou, pelo menos,
suficientemente confortável, nos papéis e nos estereótipos da categoria
de gênero em que foram classificadas ao nascer, ou seja, não se submetem às expectativas sociais de desempenho, criadas em razão do seu sexo
biológico. Seu comportamento, de forte atração pelos papéis e estereótipos do gênero oposto ao seu (ou, dito de outra forma, de forte repulsa às
normas de conduta da categoria de gênero em que foram enquadradas ao
nascer), é uma prova contundente da inexistência de relação direta, natural e espontânea entre sexo (biológico) e gênero (sociopolítico-cultural).
A incorporação das normas de conduta associadas à categoria
de gênero em que uma pessoa foi classificada ao nascer dá a ela uma
estabilidade sociopsíquica e uma segurança absoluta para se apresentar socialmente como homem ou como mulher. Quando, entretanto, essa incorporação se torna problemática, quando surgem conflitos entre o enquadramento de gênero recebido ao nascer, o sexo
biológico e os interesses existenciais da pessoa, o resultado é um
permanente clima de incerteza, insegurança e tensão entre a identidade de gênero individualmente percebida e o desempenho socialmente cobrado da pessoa.
Para ser homem, não é absolutamente imprescindível ter “corpo de homem”, e sim agir sociopsíquica, cultural e politicamente como homem, o que significa performatizar o discurso social do homem. A identidade de gênero do
sujeito não é de maneira nenhuma dependente do seu corpo
físico, mas da repetição contínua
e reiterada de atos socialmente
atribuídos a identidades sociais
específicas.
156
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
PESSOAS TRANS NÃO TÊM VOZ NESTA TEORIZAÇÃO
Susan Stone
Os corpos são as telas onde vemos projetados os ajustamentos momentâneos que emergem das lutas em curso entre crenças e práticas defendidas por diferentes comunidades
acadêmicas e médicas. Essas lutas se desenrolam em arenas sempre muito distantes do
corpo. Cada uma delas é uma tentativa para se ganhar um terreno mais elevado, de caráter profundamente moral, no sentido de dar uma explicação oficial e definitiva para a
forma como as coisas são e, consequentemente, para a forma como elas devem continuar
a ser. Em outras palavras, cada uma dessas contendas é a cultura falando através da voz
de um indivíduo. As pessoas que não têm voz nesta teorização são as próprias pessoas
trans. Tal como acontece com os homens, que teorizam sobre as mulheres desde o início
dos tempos, os teóricos de gênero têm visto as pessoas trans como uma gente destituída
de agência. Como no caso das mulheres genéticas, as pessoas trans são infantilizadas,
consideradas muito ilógicas ou irresponsáveis para alcançar a verdadeira subjetividade
ou clinicamente apagadas por critérios de diagnóstico; ou então como se tivessem sido
construídas por algum teórico feminista radical, como robôs de um insidioso e ameaçador patriarcado, um exército alienígena projetado e construído para se infiltrar, perverter e destruir as mulheres “reais”. Também nessa construção as pessoas trans têm sido
resolutamente cúmplices, ao não desenvolverem um contradiscurso eficaz. Aqui, nas
fronteiras de gênero no final do século XX, com a hegemonia falocrática vacilando e a
arrogância das linguagens e terminologias de origem heteroglóssica, as epistemologias
da prática médica masculina branca, a raiva das teorias feministas radicais e o caos do
gênero como experiência vivida encontram-se todas no campo de batalha do corpo transexual: um lugar muito contestado de inscrição cultural, uma máquina para a produção
de um tipo ideal. Representação no seu nível mais mágico, o corpo transexual é memória
aperfeiçoada, inscrito com a “verdadeira” história de Adão e Eva como a conta ontológica
da diferença irredutível, uma biografia essencial que é parte da natureza.
(STONE, 1993, p.10-11).
Se ainda somos lembradas como fantasmas permanentemente
ameaçando a ordem “natural” das coisas, é porque a nossa existência
“abjetada” cumpre a função de
dar materialidade aos corpos
que a nossa cultura reconhece
e legitima como normais e
inteligíveis, devidamente sexuados e generificados dentro do
dispositivo binário de gênero.
Para desespero da ordem vigente, a “normalidade”
depende essencialmente da
“anormalidade” para existir.
Sem bruxa, não há fada.
170
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
2. Roupa
O hábito não faz o monge,
Mas faz com que o monge
apareça de longe
Letícia Lanz
Não há nenhum gênero primário que uma drag esteja imitando
porque gênero é uma espécie de imitação para a qual não existe nenhum original.
Judith Butler
C
orpos humanos são, antes de tudo, corpos vestidos: decorados
com desenhos, cobertos com peles, folhas ou penas, usando roupas tribais ou os últimos lançamentos da São Paulo Fashion Week,
enfeitados com adornos dos mais diversos tipos e materiais. A roupa é
um fato básico da vida social de todas as culturas até hoje conhecidas.
Todas elas decoram o corpo de alguma maneira, seja com tecidos, peles
de animais, penas de pássaros, folhagens, roupas, tatuagens, cosméticos
ou outras formas de ornamento corporal149.
O que vestimos – ou deixamos de vestir – é resultado de inúmeros fatores e condicionantes sociopolíticos, econômicos e culturais. A escolha da roupa que vestimos resulta de uma combinação entre o
nosso desejo individual de expressar ao mundo o nosso eu e a observância de regras sociais de conduta. A roupa afeta e reflete a percepção que
cada um tem de si mesmo, atuando como um filtro e fazendo a conexão
entre o nosso eu interno e o nosso eu social, isto é, entre o nosso eu individual e o meio que nos cerca. Como Bell assinalou, nossas roupas são tão
parte de nós que é muito difícil alguém ficar indiferente a elas: é como se
o tecido fosse uma extensão natural da pele, ou até mesmo da alma150.
O fato de a nudez ser considerada um ato rebelde e perturbador da
ordem social indica o quanto a roupa é um aspecto fundamental nas nossas relações interpessoais. Mas a roupa é tão fundamental para a apresentação social do corpo que até os nossos modos de ver e representar a
nudez são dominados pelos códigos de vestuário151.
171
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Por outro lado, existe também a gigantesca e onipresente
Gilles Lipovetsky
pressão social para a conformidaEnquanto as mulheres têm acesso em de, permanentemente exercida
massa aos trajes de tipo masculino e os sobre os corpos e que age sobre
homens reconquistam o direito a uma
eles como um imperativo moral. Se
certa fantasia, novas diferenciações surgem, reconstituindo uma clivagem estru- estivermos vestidos de modo inatural das aparências. A homogeneização da dequado para um dado ambiente,
moda dos sexos só tem existência para um
olhar superficial; na realidade a moda não vamos nos sentir não apenas desdeixa de organizar signos diferenciais, por confortáveis, mas também como se
vezes menores, mas não supérfluas, num
fôssemos alvos de crítica e reprosistema em que precisamente é “o nada
que faz tudo”. Da mesma maneira pela vação social.
qual um traje está fora de moda, agrada ou
De acordo com Bell, usar as
desagrada por uma nuança mínima, assim
também um simples detalhe basta para roupas “certas” é tão importante
discriminar os sexos. Os exemplos são que mesmo as pessoas que não se
inúmeros: homens e mulheres usam calinteressam por aparência procuças, mas os cortes e muitas vezes as cores
não são semelhantes, os sapatos não têm ram vestir-se de maneira adequada
nada em comum, um chemisier de mulher a fim de evitar algum tipo de cense distingue facilmente de uma camisa de
homem, as formas dos maiôs de banho são sura social. Toda regulamentação
diferentes, assim como as das roupas de das peças de vestuário que pobaixo, dos cintos, das bolsas, dos relógios,
dem/devem ser usadas exclusivados guarda-chuvas. Um pouco em toda
parte, os artigos de moda reinscrevem, por mente por um dos dois gêneros
intermédio dos pequenos “nadas”, a linha oficiais funciona, a priori, como
divisória da aparência. É por isso que os
cabelos curtos, as calças, paletós e botas mecanismo de exclusão, opressão,
não conseguiram de modo algum dessexu- censura e reprovação à livre manializar a mulher; são, antes, sempre adapfestação das identidades de gênetados à especificidade do feminino, reinterpretados em função da mulher e de sua ro152.
diferença. (LIPOVETSKY, 1989, p. 131)
Assim, os códigos sociais de
vestuário (dress codes), junto com medidas disciplinares legais relacionadas a desempenho de gênero, restringem enormemente o âmbito de ação
individual, aumentando a pressão sobre as pessoas para que elas se ajustem aos padrões de aparência e comportamento de gênero.
Os códigos de vestuário transformam o corpo em um objeto não
apenas significativo mas perfeitamente reconhecível de uma cultura,
além de ser também as referências pelas quais os corpos se orientam
para se tornar apropriados, “decentes” e aceitáveis dentro dos contextos
A CLIVAGEM ESTRUTURAL
DAS APARÊNCIAS
172
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
2.1 Roupa e Expressão de Gênero
We all came to this world naked. The rest is drag.
(A gente nasce nu, e o resto é montagem.)
Rupaul161
Corpos que não se conformam, corpos que desrespeitam as convenções da sua cultura e se apresentam sem as roupas apropriadas subvertem os códigos sociais de conduta mais
básicos que existem, arriscando-se a serem excluídos, humilhados ou ridicularizados.
Joanne Entwistle162
Eu sou o que eu visto ou o que eu visto é que me faz ser quem
eu sou? Desde criança que ouço alguém render-se à ladainha de que “essa roupa não é para o meu cor- A ROUPA É QUE NOS USA
po”. Esse lamento, particular- Virginia Woolf
mente comum entre pessoas
Embora parecendo simples frivolidades, as
cuja anatomia não corresponde roupas, dizem alguns filósofos, desempenham
às proporções dos corpos idea- mais importante função que a de nos aquecerem, simplesmente. Elas mudam a nossa opilizados pela cultura, indica que nião a respeito do mundo, e a opinião do
é necessário ter (ser?) um cor- mundo ao nosso respeito. [...] Assim, bem se
po específico para poder vestir pode sustentar a tese de que são as roupas
que nos usam, e não nós que usamos as roudeterminado tipo de roupa. Ou pas; podemos fazê-las tomar o molde do braço
seja, de forma objetiva e direta, ou do peito; elas, porém, modelam nossos
corações, nosso cérebro, nossa língua, à sua
não é a pessoa que usa a rou- vontade. [...] O homem encara o mundo de
pa, mas a roupa é que usa a frente como se ele fosse feito para seu uso e
de acordo com o seu gosto. A mulher lança-lhe
pessoa.
um olhar de esguelha, cheio de sutileza, e até
A roupa não é apenas o de desconfiança. Se usassem as mesmas rouconjunto de vestes, acessó- pas, é possível que sua maneira de olhar tivesse vindo a ser a mesma. [...] A diferença entre
rios e adornos que cobrem o os sexos tem, felizmente, um sentido muito
corpo das pessoas, mas, so- profundo. As roupas são meros símbolos de
coisa profundamente oculta. [...] Embretudo, um conjunto de alguma
bora diferentes, os sexos se confundem. Em
normas de conduta que nos cada ser humano ocorre uma vacilação entre
são impostas em razão do um sexo e outro; e às vezes só as roupas conservam a aparência masculina ou feminina,
nosso sexo genital.
quando, interiormente, o sexo está em comDentre os signos distinti- pleta oposição com o que se encontra à vista.
(WOOLF, 1978, p. 104-105)
vos de gênero que a pessoa
transgênera busca se apropriar no seu processo de transição para a categoria de gênero com a qual se identifica, a roupa constitui sempre o re-
179
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
curso que está mais à mão, a possibilidade mais imediata de incorporação
e vivência das normas do gênero oposto ao seu, que deseja materializar e
representar no próprio corpo, mesmo sendo este corpo considerado como um container inadequado para tal fim. Essa atitude mostra claramente que roupa não serve simplesmente para “cobrir o corpo”.
Muito ao contrário, é o corpo que “habita” a roupa. É através da roupa que o corpo incorpora uma parcela muito representativa dos discursos sociopolítico-culturais sobre o corpo sexuado e generificado.
Ao contrário dos “corpos vestidos” que se submetem de maneira mecânica e inconsciente aos códigos de
vestuário, a pessoa transgênera vive na
contramão dos códigos de vestuário,
desconstruindo-os e subvertendo-os
de modo totalmente consciente e deliberado. A roupa da pessoa transgênera
é a roupa proibida, a roupa deslocada
do corpo, a roupa reservada ao gênero
oposto, indevidamente usada pelo “gênero posto”, o que configura na
nossa cultura a milenar transgressão social chamada travestismo.
A maioria das pessoas transgêneras descobre, ainda na infância,
que não é qualquer corpo que está autorizado a entrar em qualquer roupa: é preciso ter o corpo especificamente requerido por uma roupa específica. E isso não tem nada a ver com questões estéticas, mas com normas
de conduta de gênero.
A partir daí, a luta da pessoa transgênera é com (contra) o seu
próprio corpo, a fim de ajustá-lo à "roupa" sociopolítico-cultural. Roupa
que é muito mais do que vestuário e adereços. Roupa que é norma de
funcionamento da sociedade, dispositivo de conduta, imagem e reconhecimento público. Roupa que encontra um corpo quase sempre incongruente com ela, no caso da maioria das pessoas transgêneras. Usar aquelas
roupas definitivamente fazia com que eu me sentisse mulher. Era como se
eu estivesse entrando para um mundo ao qual eu já sentia que pertencia,
mas cujo acesso me era permanentemente negado. Essa fala da transexual
Fernanda N. deixa claro o quanto a roupa, enquanto discurso de gênero,
“materializa” o corpo transgênero.
180
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
2.2 Travestilidade: A Roupa no Corpo Errado?
Travestilidade não é algo que a gente é, mas algo que a gente faz,
a primeira e mais básica tentativa de expressar ao mundo quem a gente é.
Letícia Lanz
A forma mais comum e imediata de se reconhecer a identidade de gênero de uma pessoa é através da sua expressão de gênero,
isto é, do modo como ela se apresenta publicamente: a roupa que
está vestindo, o modo de andar, falar, gesticular e se comportar em
situações específicas. Gênero representa um código de conduta social que se utiliza de símbolos específicos para construir uma linguagem própria com a qual determina, fiscaliza e controla modos
específicos da pessoa ser e estar no mundo em função da genitália
que ela traz entre as pernas ao nascer. Expressar uma identidade de
gênero é, portanto, conduzir-se de acordo com o código de conduta social
específico para a categoria de gênero na qual a pessoa deseja se expressar. Desse ponto de vista, o gênero pode ser visto como um avatar ao qual
a pessoa empresta seu corpo para a plena manifestação desse mesmo
avatar.
Embora ninguém precise necessariamente travestir-se para expressar sua transgeneridade (há muitas outras formas de se
fazer isso), a verdade é que a travestilidade
(travestismo, transvestismo ou crossdressing)
é a mais comum de todas as práticas de expressão das identidades transgêneras. Essa
prática chega a ser emblemática da própria
transgeneridade, ao ponto de transgêneros
MtF serem vulgar e pejorativamente chamados
de “homens vestidos de mulher”.
Por ser a forma mais visível de transgressão das normas de conduta de gênero e
por representar, ao mesmo tempo, a primeira
oportunidade de reinserção nessas mesmas normas, há milhares de anos
o travestismo tem sido o veículo clássico de expressão da pessoa transgênera, a maneira dela expressar o seu senso de pertencimento ao gênero
187
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
oposto ao seu ou, em última análise, a um gênero diferente daquele em
que foi enquadrada ao nascer e com o qual não se identifica nem se sente
confortável.
A travestilidade é uma presença constante na história da humanidade, sendo provavelmente tão velha quanto a própria divisão da sociedade em dois gêneros. Ao longo da história, desde tempos imemoriais e,
naturalmente, em sociedades que instituíram vestuário diferenciado para
cada um dos sexos, sempre houve homens e mulheres que ousaram
transgredir essas normas, a despeito das pesadas sanções estabelecidas
para os infratores na maioria dessas sociedades.
Travestir-se significa, literalmente, vestir roupas do gênero
oposto ao da pessoa que se traveste. Travestilidade, portanto, é uma
prática que só tem sentido numa sociedade rigidamente estratificada em
duas categorias opostas de pessoas e com vestuário criteriosamente especificado para cada uma delas.
Como afirmava a ativista transgênera norte-americana Virginia
Prince, referindo-se ao uso indiscriminado da palavra transvestite em
países anglo-saxões: “hoje em dia a palavra travesti está sendo usada de
maneira tão indiscriminada que, em síntese, tudo que ela nos diz é que
alguém está se travestindo. Em resumo, ela nos diz que alguém está se
travestindo, não quem a pessoa é”165. Através dessa fala, Prince afirma
muito apropriadamente que travestilidade não é algo que uma pessoa
é, mas algo que ela faz. E faz motivada pelas mais variadas razões, desde
188
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
2.3 Travestismo Ritual
O travestismo ritual é uma das práticas religiosas mais antigas da
humanidade170. Seus registros já são encontrados em cultos do altoneolítico, dedicados à Deusa-Mãe. Ainda que muitas culturas de culto à
Deusa reverenciassem as mulheres e as virtudes femininas, o culto à Deusa-Mãe aconteceu até mesmo em culturas essencialmente patriarcais,
como a grega e a romana. Onde ocorresse o culto à Deusa-Mãe, ele sempre vinha acompanhado de alguma forma de travestismo masculino – isto
é, de homens se vestindo e se portando como mulheres 171.
Como Merlin Stone tão bem descreve em sua obra When God Was a
Woman (1978), há cerca de 10.000 anos os homens começaram a tentar
se apropriar de uma parcela do conhecimento mágico-religioso, até então
domínio exclusivo das mulheres. Seu objetivo era apossar-se dos poderes
mágicos atribuídos à mulher, e o método mais comumente usado para
isso era trajar-se com roupas de mulher, ou seja, travestir-se, de tal forma
que os espíritos os considerassem aceitáveis para o recebimento dos seus
favores e bênçãos vindos do além.
Tacitus descreveu os sacerdotes de certas tribos germânicas como
muliebri ornatu172, isto é, homens vestidos de mulher. Os sacerdotes escandinavos que comandavam os rituais do nascer e do pôr-do-sol em
honra do Haddingjar (Castor e Polux, os Gêmeos Celestes) também se
apresentavam usando roupas e penteados femininos. Mesmo Thor, o deus
do trovão na mitologia nórdica, só
recebeu o seu martelo mágico e foi
ungido com poderes especiais depois
de vestir as roupas e adereços da deusa Freya e fingir ser uma noiva.
Na Argólia, antiga região da
Grécia, durante a celebração da Hubritska, os homens se transformavam
em mulheres usando vestidos e véus
femininos, de forma a assumirem temporariamente os poderes mágicos femininos, numa clara violação de uma
196
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
interdição específica: – o domínio exclusivo da mulher nas artes mágicas
e nas práticas religiosas. A Hubritska era uma “Festa da Devassidão”, semelhante ao carnaval atual, na qual o travestismo e as orgias eram presença constante.
Os sacerdotes cretenses de Leukippe, a Mãe Égua-branca, sempre
usavam vestes femininas. O mesmo faziam os sacerdotes de Héracles, em
honra à deusa Omphale, personificação do omphalos. O filósofo judaico
Moisés Maimonides disse que os homens no seu tempo vestiam roupas de
mulher para invocar a ajuda da deusa Vênus.
Um dos exemplos mais conhecidos de
travestismo ritual são os Gallae (ou Galli)173
sacerdotes que, na Roma Antiga, se autocastravam em sangrentos rituais públicos e se
travestiam de mulher para dedicar-se integralmente aos serviços do culto à deusa Cybele, a Magna Mater.
Também é fato notoriamente reconhecido que, desde tempos imemoriais, o travestismo masculino sempre foi uma prática altamente erótica, largamente usada para fins
erótico-sexuais. Onde quer que apareça ao
longo da história, o “erotismo travesti” adiciona uma nova dimensão às práticas sexuais
sagradas. Templos pagãos em todo o Oriente
Médio obtinham fundos para a sua manutenção através da hospedagem
de prostitutas femininas e masculinas chamadas respectivamente de gedeshim174 e gedeshoth. As prostitutas masculinas sagradas sempre se vestiam como mulheres. Esta prática foi particularmente objeto de perseguição pelos judeus monoteístas. A maioria das passagens no Velho Testamento que condenam a atividade homossexual são especificamente dirigidas contra os qedeshim, um fato que se perdeu nas sucessivas traduções
e adaptações da bíblia, resultando hoje em dia na cruel perseguição que
cristãos fundamentalistas movem contra a população de gays e transgêneros.
O travestismo era também um fato corriqueiro nos ritos romanos
de Lupercalia e os Idos do Janeiro. Esse costume prevaleceu até a época
197
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
202
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
3. Identidade de Genero e Sexualidade
Eu sou aquele que sou.
Êxodo, 3:14
Ser ou não ser: eis a questão.
Shakespeare, em Hamlet, ato 3, cena 1
A
socióloga transgênera Raewyn Connel, responsável por alguns
dos mais importantes estudos sobre masculinidades183, viveu até
recentemente, tal como eu por muitas décadas, em uma categoria
de gênero com a qual ela não se identificava. O depoimento de Raewyn é
o nosso ponto de partida para uma investigação bastante delicada sobre
identidade de gênero, expressão de gênero e sexualidade das pessoas
transgêneras.
Desde que eu me lembre, lá na infância eu já me identificava como
mulher, mas tinha plena consciência de que tinha um corpo masculino. Essa é a grande contradição da experiência transexual das pessoas. Da mesma maneira que todos têm suas contradições. Talvez
seja essa a minha versão de multidão queer. Considero sexualidade
e gênero inerentemente contraditórios, embora as contradições tenham intensidades diferentes e formas diferentes. E na minha vida
eu assumi esta forma. (Raewyn Connel em entrevista a Miriam
Adelman, 2013).
A identidade de gênero da pessoa trans é formada a partir da sua
profunda identificação com estereótipos, símbolos culturais e códigos de
conduta relativos ao gênero oposto àquele em ela foi classificada ao nascer. Com efeito, a pessoa transgênera pode ser tomada como prova viva e
cabal de que ninguém nasce homem ou mulher.
A rigor, esse processo de subjetivação, que dá origem à identidade
transgênera, em nada difere do processo de subjetivação que produz a
identidade cisgênera, exceto pelo fato de ele ocorrer num corpo que a
sociedade considera como “errado” para tal fim, uma vez que, dentro das
normas oficiais de gênero, a incorporação de signos femininos só pode
ser feita “no” e “pelo” organismo da fêmea, assim como a incorporação de
203
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
signos masculinos necessita de um organismo macho. Embora esses sejam mitos que a visão pós-estruturalista põe por terra, como já mostramos, ainda permanecem completamente ativos e causando estragos .
Os caminhos e as razões que levam as pessoas a constituírem
sua identidade de gênero estão profundamente instalados dentro da
psique de cada uma, muito mais do que em algum determinismo da
natureza ou em pressões da sociedade. Ao romperem os limites entre o homem e a mulher enquanto categorias oficiais de gênero, as
pessoas transgêneras rompem os seus próprios limites existenciais,
friamente estabelecidos pelos rótulos de identidade de gênero que
cada uma recebe ao nascer, em função da sua genitália, e que são
permanentemente ratificados pelos discursos oficiais que compõem
o imenso e todo-poderoso arsenal do dispositivo binário de gênero.
A identidade de gênero protagoniza a maior parte dos conflitos vividos pelas pessoas transgêneras. A modelagem da identidade da pessoa
transgênera é um processo extremamente conflituoso, uma vez que
grande parte das escolhas e ações que ela deve realizar nesse sentido está
invariavelmente em franco desacordo com as normas de conduta do gênero em que foi classificada ao nascer.
Mas, apesar da sua incongruência com o gênero que lhe foi atribuído, a pessoa transgênera, como toda e qualquer pessoa nesse mundo,
sente necessidade e tem direito de ter
uma identidade. Como afirma De Cupis,
“o indivíduo, como unidade da vida
social e jurídica, tem necessidade de
afirmar a própria individualidade, distinguindo-se dos outros indivíduos, e,
por consequência, ser conhecido por
quem é na realidade. O bem que satisfaz
esta necessidade é o da identidade, o
qual consiste, precisamente, no distinguir-se das outras pessoas nas relações sociais”184.
Do ponto de vista sociocultural, a identidade de gênero está
inexoravelmente vinculada à genitália da pessoa. Não é de se surpreender, portanto, o esforço que muitas pessoas transgêneras rea-
204
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
224
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
4. Status Socioeconomico
Mas é preciso viver
E viver
Não é brincadeira não
Quando o jeito é se virar
Cada um trata de si
Irmão desconhece irmão
E aí!
Dinheiro na mão é vendaval
Dinheiro na mão é solução
E solidão!
Paulinho da Viola, Pecado Capital
N
o Brasil, os estudos sobre identidades transgêneras têm focalizado quase sempre pessoas oriundas de estratos socioeconômicos mais à base da pirâmide social. Com efeito, em razão da sua
grande exposição pública por sua atuação no mercado do sexo, a transgressão de gênero esteve por muito tempo associada unicamente à identidade travesti, como se esse fenômeno se tratasse apenas de mais uma
deformidade social produzida pela indigência econômica, política e cultural do nosso povo.
Transgeneridade está longe de ser um fenômeno localizado entre
pessoas do gênero masculino, com orientação homossexual, na faixa etária abaixo dos 30 anos e nos estratos socioeconômicos mais baixos da
população, espelhando baixa renda, baixa escolaridade, subemprego,
desemprego, submundo e prostituição. Transgênero não é exclusivamente homem, homossexual, jovem, pobre e com baixa escolaridade. Pode ser
homem ou mulher, pobre ou rico, jovem ou velho, analfabeto ou pósgraduado, operário ou alto executivo, assim como pode ter orientação
sexual homo, hétero, bi, pan ou assexual.
A transgressão de gênero vai muito além do mundo das travestis de rua, estando presente ao longo de toda a pirâmide social e
não apenas concentrado na base. As travestis são apenas a “ponta de
iceberg” desse amplo e complexo fenômeno de desvio social. Há pessoas transgêneras de ambos os sexos, com todos os tipos de orienta-
225
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
ção sexual, em todas as classes socioeconômicas, em todas as etnias,
em todas as faixas etárias, em todos os ofícios e profissões, em zonas
urbanas e rurais e em todas as partes do território nacional. Até
mesmo em todas as religiões, inclusive naquelas que se apressam
em declarar não possuir pessoas transgêneras entre os seus fiéis,
como se isso fosse motivo de orgulho.
Inegavelmente, é sempre mais confortável ser uma pessoa transgênera nos estratos socioeconômicos mais elevados do que na base da
pirâmide social (como, de resto é para qualquer outra coisa nesse mundo). Não que, pelo fato de a pessoa ser rica, desaparecesse instantaneamente o estigma, a discriminação, a exclusão social e todas os demais
confiscos e violências contra os seus direitos civis. Na verdade, o grau de
repressão e repúdio a pessoas transgêneras pode ser ainda mais ostensivo nas classes socioeconômicas mais elevadas. Porém, ter mais recursos
financeiros disponíveis aumenta sensivelmente o leque de possibilidades
de expressão da pessoa transgênera, seja em público, seja de modo privado, livrando-a dos enormes, constantes e onipresentes constrangimentos
a que são submetidas as pessoas transgêneras que não têm o mesmo cacife.
O grande espetáculo pirotécnico-midiático em que se transformou
a recente transição de Caitlyn Jenner é um claro exemplo disso. Em pouco
mais de dois meses, o medalhista olímpico Bruce Jenner deixou um armário de muitas décadas e sua posição de chefe do clã das Kardashians para
tornar-se uma estrela do show business, com direito a ser capa da revista
Vanity Fair192. Estima-se que sua transição relâmpago, cheia de luxo e
glamour, e completamente inacessível para a esmagadora maioria da
população transgênera do mundo, teria
custado, por baixo, cerca de US$400.000,00,
entre cirurgias, roupas, acessórios e inúmeras assessorias especializadas.
Tal como Caitlyn Jenner, que foi recebida com mais de um milhão de felicitações do público americano em sua página
no Facebook, se uma pessoa rica e/ou famosa assumir publicamente sua identidade
transgênera, no Brasil e no mundo, será no
226
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
5. Famí lia e Socializaça o
Quem realmente nos ama, é capaz de nos amar
mesmo quando não correspondemos aos modelos de pessoa
que a sociedade gostaria que a gente fosse.
Letícia Lanz
M
enino de classe média baixa, família muitíssimo católica. Com 9
ou 10 anos, eles me perguntavam insistentemente o que eu queria ser quando eu crescesse. Ao formular a questão, todos já
traziam no bolso o seu próprio "projeto de mim", de modo que a pergunta
em si era totalmente secundária. Apenas uma forma mais elegante de
introduzir as suas expectativas ao meu respeito.
- Você vai ser padre, não é? Você tem todo o jeito de padre.
- Você tem que ser professor. Tem muito jeito para ensinar.
- Acho que você vai ser advogado, pois fala e escreve muito bem.
- Se a política não fosse tão podre, eu queria que você fosse um político,
pois é muito bom pra falar e pra lutar pelas coisas.
Mal sabiam eles que, intimamente, a minha resposta era uma só,
sempre aqui, na ponta da língua:
- Eu quero ser mulher.
Teriam ficado muito infelizes. Teriam me mandado conversar com
uma dúzia de padres e irmãs de caridade, para eles avaliarem o que é que
estava acontecendo comigo. Em nome do “meu próprio bem”, teriam até
me internado, sem nenhum remorso, para eu ser tratada por “especialistas”, num sanatório para portadores de transtornos mentais. Naquela
época, não havia aparecido os tarjas-pretas, que consertam qualquer doidice, deixando a pessoa abobada. A forma mais comum de tratamento era
o choque elétrico. Como se não bastasse o permanente estado de choque
emocional em que eu vivia.
Mas o que mais me doía mesmo era imaginar que ninguém se importava com o meu projeto de vida. Por mais que elas o condenassem,
mesmo sem nunca terem sabido dele, era a minha forma de ser feliz.
Ainda chorando aqui por ter escrito esse relato. Triste e feliz por
estar conseguindo falar de feridas que não fecham, mesmo que eu já
231
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
tenha plantado um canteiro de rosas amarelas na imensa lacuna existencial que ficou dentro de mim.
A família, especialmente na figura dos pais, representa um fator
decisivo na formação – saudável ou, mais comumente, neurótica – da pessoa transgênera. Ela funciona como o primeiro e mais importante balizamento social de conduta, o primeiro grande divisor de águas entre o certo
e o errado, o bem e o mal, o pecado e a virtude e por aí afora.
Os pais (e familiares) influenciam de maneira drástica tudo que
uma pessoa será ou deixará de ser nesse mundo. Eu, como de resto todo
mundo, fui influenciada, sim e, aliás, pessimamente influenciada. No pior
SEXO E GÊNERO NÃO SÃO ASSUNTOS sentido possível do termo influên“DE FAMÍLIA”, MAS AGRESSIVIDADE É
cia, em que ele passa a significar
José Ângelo Gaiarsa
deformação, uma vez que a influênNão se trata de grandes discursos ou cia familiar se deu exatamente na
grandes condenações explícitas contra a contramão de mim mesma, me imsexualidade. Antes, é todo um conjunto
de indiretas, alusões, insinuações, caras, pedindo categoricamente de extons de voz, todos eles dizendo para a pressar ao mundo, desde cedo, a
criança, mil vezes, de mil modos diferentes: - “olha aqui, bichinho, é melhor você pessoa que eu sempre fui.
Pais heterossexuais, cisgênenão pensar nessas coisas. É melhor você
não perceber muito bem que tem pinto ros, zelosos guardiães da sociedade
ou xoxota. É melhor você não imaginar
muito, é melhor você não mexer e, sobre- patriarcal-machista, farão de tudo,
tudo – pelo amor de Deus! – não vá me- sim, para que seus rebentos sejam
xer no de mais ninguém”. [...] E Freud,
afinal, era um otimista; as crianças não iguaizinhos a eles, sem direito a
são apenas castradas, elas são decapita- nenhuma originalidade.
das. [...] No lar, sabe-se, ninguém odeia
Em toda a minha infância e
ninguém. Em família, como estamos
adolescência
fui sistematicamente
todos cansados de saber, as pessoas se
amam muito, muito, muito. Implícitas “desaconselhada” (leia-se: impedinessas tolices catastróficas vão, não uma,
mas duas negações: a da agressão e a da da, bloqueada, reprimida e interdivisão. É preciso ser cego para NÃO ver as tada) de assumir minha condição de
agressões que ocorrem em família. Japessoa transgênera como uma mamais tratamos estranhos tão mal quanto
tratamos aos membros da nossa família. nifestação absolutamente normal e
(GAIARSA, 1988, p. 21-23)
espontânea do meu “ser no mundo”.
Ao contrário, ensinaram-me a ver minha identidade de gênero como algo
vergonhoso e a me sentir culpada por querer desrespeitar as normas do
binômio masculino-feminino. Ensinaram-me a ver o meu comportamento
como reprovável, repulsivo e socialmente inadequado, que eu deveria
232
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
darem conta da “transgressão” do seu comportamento, desenvolvem sucessivas ações visando eliminar ou, pelo menos, manter sob controle a
expressão da transgeneridade dos seus filhos, maridos e namorados. A
primeira e mais óbvia estratégia será um conjunto de intervenções destinadas à dissuasão da pessoa transgênera, baseadas em técnicas de admoestação, persuasão e sedução verbal do tipo desista disso, isso não é pra
você, como é que você pode querer uma coisa dessas?, o que é que os outros
vão pensar?, é uma vergonha pra nossa família, você quer expor nossa família ao ridículo, isso é contra a lei de Deus, etc., etc., etc.
Diante da “intransigência” da pessoa transgênera em abandonar
seu comportamento gênero-desviante, serão tentadas sucessivamente
novas estratégias de domesticação do desejo: barganha de concessões,
imputação de limites, restrições, constrangimentos e humilhações de
toda espécie. O objetivo é enfraquecer de todas as maneiras a já combalida autoestima da pessoa transgênera, levando-a a desistir inteiramente
da sua almejada mudança de gênero.
A “barganha de concessões”, ou jogo do “se você fizer isso, eu faço
aquilo”, é um dos expedientes mais comumente reportados por pessoas
transgêneras nas suas relações com pais e familiares. Por mais manipuladora que possa ser, ainda assim a barganha de concessões é infinitamente
melhor, enquanto estratégia dissuasiva, do
que a aterradora sequência de ameaças,
constrangimentos, humilhações morais e
castigos físicos que fazem parte do elenco
do terrorismo familiar de gênero. Todavia, o
eminente deputado federal conservador Jair
Bolsonaro, numa inesquecível e insuportável declaração195 à mídia, dentro da ignorância e truculência que caracterizam as
suas falas, disse que “ter filho gay é falta de
porrada”, sugerindo aos pais que tratem
seus filhos LGBT com o chicote, como forma
de “curá-los”. Uma recomendação absolutamente intolerável, em pleno século XXI, quando os castigos físicos foram abolidos até mesmo das casas de correção para jovens delinquentes.
241
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
6. Escola
Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.
Paulo Freire200
Ser livre é soltar tudo que está preso.
A educação – assim chamada – prende tudo o que é ou está livre...
José Ângelo Gaiarsa201
C
onsiderando o pressuposto universal de que as instituições de
ensino, particularmente as instituições públicas, devem ser receptivas a qualquer categoria de pessoas, independentemente de sexo, gênero, classe social, credo religioso, raça ou etnia, pouquíssimas escolas reconhecem, apoiam, legitimam ou, pelo menos, toleram a manifestação de qualquer tipo de diversidade no espaço escolar.
Estudantes transgêneros não constituem exceção nessa dificuldade
estrutural da escola em lidar com a diferença. Apesar de cada vez mais
presentes em todos os graus de ensino, as pessoas transgêneras continuam completamente invisibilizadas pela escola, ainda à espera de tratamento menos preconceituoso, menos discriminatório e mais acolhedor.
No Brasil, é tabu até mesmo a escola reconhecer e aceitar a existência de
alunos transgêneros no seu corpo discente, assim como a existência de
professores e auxiliares transgêneros nos seus quadros funcionais.
Embora diretores, professores e funcionários das escolas não possam mais ignorar solenemente as pessoas transgêneras como sempre
fizeram, ainda estão muito distantes de compreender e legitimar essa
parcela da população, resistindo tremendamente até mesmo em aprender
a linguagem adequada para descrever sua forma de ser e suas experiências de vida.
A maioria das pessoas que atuam na escola, seja como diretor, professor ou funcionário, desconhece inteiramente o que vem a ser uma pessoa transgênera, desconhecimento que também atinge os próprios alunos
transgêneros, quase sempre desorientados – ou mal orientados – quanto
à sua própria identidade de gênero. Por regra, aluno transgênero é apenas um aluno homossexual que insiste em usar roupas do gênero oposto.
247
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Em geral a escola só se torna consciente da condição transgênera
quando surge uma crise interna, como um conflito envolvendo o uso de
banheiros por alunos em transição para outra categoria de gênero.
Não consta que haja no BraA ESCOLA DIVIDE, SEPARA E REFORÇA
AS DIFERENÇAS ENTRE AS PESSOAS
sil alguma instituição de ensino,
Guacira Lopes Louro
pública ou privada, que mantenha,
Diferenças, distinções, desigualdades... A de um lado, políticas de orientação
escola entende disso. Na verdade, a escola
produz isso. Desde seus inícios, a institui- e apoio aos seus alunos sobre
ção escolar exerceu uma ação distintiva. questões relacionadas à identidade
Ela se incumbiu de separar os sujeitos — de gênero e, por outro, políticas de
tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não tinham tolerância zero a manifestações de
acesso. Ela dividiu também, internamente, preconceito, discriminação e vioos que lá estavam, através de múltiplos
mecanismos de classificação, ordenamen- lência contra pessoas LGBT, em
to, hierarquização. A escola que nos foi especial contra pessoas transgênelegada pela sociedade ocidental moderna
ras, de longe as mais prejudicadas
começou por separar adultos de crianças,
católicos de protestantes. Ela também se por todas as formas de bullying,
fez diferente para os ricos e para os pobres intolerância e discriminação dene ela imediatamente separou os meninos
tro da escola.
das meninas.
Concebida inicialmente para acolher alEm se tratando de pessoas
guns — mas não todos — ela foi, lentatransgêneras, o descaso das escomente, sendo requisitada por aqueles/as
aos/às quais havia sido negada. Os novos las não só é absoluto como absolugrupos foram trazendo transformações à tamente generalizado . Para se ter
instituição. Ela precisou ser diversa: organização, currículos, prédios, docentes, uma ideia, apesar dos inúmeros e
regulamentos, avaliações iriam, explícita sucessivos apelos e recomendaou implicitamente, "garantir" — e também
ções dos poderes públicos, a maioproduzir — as diferenças entre os sujeitos.
E necessário que nos perguntemos, então, ria das escolas simplesmente descomo se produziram e se produzem tais conhecem ou não autorizam o uso
diferenças e que efeitos elas têm sobre os
sujeitos. A escola delimita espaços. Servin- do "nome social" para as diversas
do-se de símbolos e códigos, ela afirma o atividades pedagógicas, mesmo
que cada um pode (ou não pode) fazer, ela
sabendo que ele é apenas um posepara e institui. Informa o "lugar" dos
pequenos e dos grandes, dos meninos e bre substituto do nome civil, que
das meninas. (LOURO, 1997, p. 57-58)
em nada vai afetar os registros
burocráticos da escola, mas que trará um imenso alívio para os alunos
transgêneros, impedidos pela emperrada legislação em vigor de alterarem o seu nome civil de maneira fácil, simples e rápida, como ocorre em
outros países.
248
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
por professores e funcionários, demonstra o quanto a escola foi e está
organizada unicamente para atender a pessoas cisgêneras, devidamente
enquadradas (satisfeitas e confortáveis) nas identidades de homem e de
mulher. Na escola, não há espaço para expressão da diversidade de gênero: apenas para confirmação dos estereótipos da masculinidade e da feminilidade compulsórias. As pessoas transgêneras são classificadas e
tratadas na vala-comum da homossexualidade, sem nenhuma consideração pela identidade de gênero e pela própria orientação sexual de cada
uma.
Estruturalmente planejada para lidar apenas com alunos cisgêneros e heterossexuais, qualquer variação nesse arranjo é visto como transgressão às próprias normas de funcionamento da escola. Por isso ela continua sendo um ambiente basicamente hostil às identidades gênerodivergentes. Pessoas transgêneras desafiam padrões tradicionais de homem e mulher e são essas duas categorias identitárias que fundamentam
a própria existência da escola. Que o digam os banheiros escolares, tão
rigidamente divididos por categoria de gênero e sistematicamente vigiados, para que nenhum aluno cruze essa “perigosa” fronteira.
255
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
256
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
7. Arma rio e Transiçao
O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia.
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas
Quando estiver atravessando o inferno, não pare.
Winston Churchill
A
rmário é sinônimo de opressão, de exclusão, de intolerância, preconceito, medo e discriminação. Longe de ser um equipamento
de proteção individual para as pessoas que nele se refugiam, é
um dispositivo de normatização, regulação e permanente vigilância sobre
a adequação sociopolítico-cultural das condutas individuais de gênero.
Em contextos sociopolíticos altamente transfóbicos como o que vivemos, o armário se insinua como uma forma segura e até desejável de
sobrevivência individual. Mas é apenas uma terrível e muito sedutora
prisão para a qual as pessoas vão “de livre e espontânea vontade”, e de
onde exercem uma constante fiscalização sobre si próprias, poupando a
sociedade de ter que levar a cabo outros tipos mais drásticos de intervenção.
É o medo do gigantesco aparelho coercitivo de gênero montado pela sociedade que estimula a maioria das pessoas transgêneras a buscarem
a segurança e a invisibilidade social proporcionada pelo armário. Ao se
refugiar nele, um contingente enorme de homens e mulheres desidentificados com a categoria de gênero em que foram classificadas
ao nascer buscam legitimamente se defender da rejeição familiar,
escolar, profissional e religiosa, resultante do imenso estigma que
paira sobre as pessoas transgêneras no nossa sociedade. Ingressando livremente em suas próprias prisões, acabam contribuindo para
a manutenção dos valores (como a assimetria entre as duas categorias oficiais de gênero, homem e mulher) e das instituições (como o
casamento e a família tradicionais) estabelecidos pela ordem cisgênero-heteronormativa.
257
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Apesar do aparente conforto e segurança do armário, logo se descobrirá sua face sombria, que obriga a pessoa a praticar atos moralmente
reprováveis como enganar, mentir, ludibriar, dissimular, fingir, negar,
esconder, reprimir e disfarçar, dentre tantos outros expedientes que,
além de altamente estressantes, não produzem nenhum resultado prático
além de abafar temporariamente seus
O ARMÁRIO É O SIMBOLO MAIOR
conflitos íntimos e manter recalcadas
DA REPRESSÃO ÀS PESSOAS
TRANSGÊNERAS
algumas das características mais auLetícia Lanz
tênticas e naturais da sua individualiPor sua própria vontade e decisão,
dade.
toda pessoa transgênera tem o direiEm vez de conseguir levar uma
to de permanecer no armário pelo
tempo que quiser. Mas não é admissí- vida normal na sociedade, ao optar
vel que a maior parte da população
gênero-divergente permaneça no pelo armário a pessoa transgênera fica
armário a vida inteira, pressionada condenada a viver duas vidas, passanpelos valores de uma sociedade hostil
e hipócrita, que não reconhece e do a dispender uma enorme quantidamuito menos aceita o direito de cada de de energia para criar e manter uma
pessoa ser o que é e de poder expres- fachada pública que lhe permita dessar ao mundo a categoria de gênero
com a qual se identifica, sem ser frutar de aprovação, respeito e recoduramente reprimida, repudiada, nhecimento, coisas que a pessoa teme
estigmatizada e excluída do convívio
perder a todo instante, caso sua “idensocial.
tidade secreta” venha a ser revelada.
No armário, a espontaneidade da vida é substituída por uma autovigilância contínua, onde tudo deve ser controlado, onde todas as ações,
contatos e movimentos diários da pessoa devem ser rigorosamente medidos e monitorados a fim de que jamais escape nenhum sinal que denuncie a existência da sua identidade oculta.
O temor de ser descoberta impõe a necessidade de a pessoa arma205
rizada estar sempre alerta para “não dar pinta” e escorregar feio. Esse
temor é tão forte, que a maioria sucumbe e entra em pânico diante da
simples ideia de ter o seu “refúgio” revelado aos olhos curiosos, zombeteiros e ameaçadores do mundo exterior. Muitas simplesmente não resistem, tirando a própria vida ao serem descobertas ou denunciadas.
Popularmente, armário é sinônimo de covardia e incapacidade de
assumir com dignidade o seu “ser no mundo”. Mas se, por um lado, viver
no armário pode ser considerado como demonstração de fraqueza em
assumir integralmente a própria identidade transgênera, por outro não
258
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
7.1 Autorrepressão e Autoaceitação
Vá em frente, entra numa boa
Porque a vida é uma festa
Não controle, não domine, não modere
Tudo isso faz muito mal
Deixe que a mente se relaxe
Faça o que mandar o coração
Por isso canta, dança,
grita ô ô ô ô ô ô ô
Não se reprima
Não se reprima
Não se reprima
Menudo, Não se Reprima.
Temendo expor-se ao estigma e às represálias sociais reservadas
aos indivíduos que não se enquadram no binômio masculino-feminino,
grande parte das pessoas transgêneras continuará negando e adiando
indefinidamente, a maioria pela vida inteira, a expressão da sua identidade transgênera no mundo exterior.
Paradoxalmente, essa imensa parcela da população transgênera,
que vive refugiada no armário, nunca perdeu a esperança de poder expressar-se livremente à luz do dia, quando a sociedade, finalmente, compreender e reconhecer a legitimidade do seu comportamento, hoje considerado como transgressão às normas de gênero.
Enquanto não se realiza essa esperança – totalmente irrealista nas
condições do mundo atual – uma verdadeira multidão de pessoas transgêneras continua (sobre)vivendo nas sombras, alimentando, sem perceber, o mesmo monstro que tanto a aterroriza.
Trata-se do monstro da autorrepressão, sustentado pela autocensura, pelo excesso de autocrítica, pela vergonha, pela culpa, pela incapacidade de se aceitar como alguém diferente dos demais. Muito mais do
que qualquer forma de controle externo, é a autorrepressão, imposta a
nós por nós mesmos, que nos mantém escravos do modelo de conduta da
categoria de gênero – homem ou mulher – que nos foi imposta pela sociedade desde que nascemos. É principalmente por causa do mecanismo de
autorrepressão que não nos permitimos expressar a pessoa que a gente é
– e não por falta de aceitação das outras pessoas à livre expressão da nossa personalidade transgênera.
267
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
O fato de poder ser aceita ou rejeitada pelo outro cumpre, inegavelmente, um papel decisivo na maioria das nossas escolhas. Mas o que
quase nunca compreendemos é que a aceitação da gente pela gente mesma cumpre um papel muitíssimo mais importante, pois nada adiantaria o
outro me aceitar e me autorizar a levar a vida do jeito que eu quero se eu
mesma não me aceito e não me permito viver desse jeito. Ao contrário,
quando eu alcanço a minha plena autoaceitação, o outro pode me rejeitar
e até me proibir de viver do meu jeito que, de um jeito ou de outro, eu
acabo vivendo do jeito que eu quero.
Para que os demais me
aceitem e me respeitem como
pessoa transgênera é necessário,
em primeiro lugar, que eu aceite
e respeite a identidade de gênero com a qual eu me identifico e
na qual eu quero me expressar.
Os outros percebem claramente os sinais que emitimos
quando a gente não se aceita e
acabam interagindo conosco de
acordo com esses sinais. Será
muito difícil convencer quem quer que seja a me aceitar se até eu mesma
tenho vergonha e me sinto culpada de ser como sou e de ter os desejos
que tenho.
Se a gente acredita que transgeneridade, em qualquer uma das suas manifestações, é algo doentio, perverso, vexatório, ridículo e pecaminoso, postura extremamente comum no meio transgênero, tudo na gente
inevitavelmente deixará isso transparecer: – o tom da nossa voz, as palavras que empregamos, os nossos gestos, enfim toda a nossa postura física,
mental e emocional.
Do mesmo modo, se reconhecemos e aceitamos a nossa identidade
transgênera como uma componente muito especial, prazerosa e enriquecedora da nossa personalidade, isso também transparecerá para os outros em todos os nossos atos, levando-os a interagir conosco de maneira
muito mais natural e positiva. De quebra, essa reação favorável dos ou-
268
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
7.2 Assumir-se, Revelar-se e Transformar-se
I'm coming out
I want the world to know
Got to let it show
I'm coming out
I want the world to know
I got to let it show
da canção I’m Coming Out, lançada por Diana Ross em 1980
e até hoje um dos “hinos” LGBT no mundo inteiro.
Se for para entrar uma bala na minha cabeça,
que seja para destruir as portas de todos os armários.
Harvey Milk, líder LGBT dos EUA.
Não importa a fase da vida em que uma pessoa se conscientize da
sua identidade transgênera, assumir e transicionar sempre será um processo lento, difícil e complicado. De um lado, sempre estará a própria
pessoa transgênera, oscilando entre os extremos da autoaceitação e da
autorrepressão. De outro, a sociedade que, em função das suas rígidas
normas de conduta de gênero, vai considerá-la transgressora, estigmatizá-la e submetê-la às sanções e penalidades sociopolíticas e culturais por
se tratar de uma pessoa sociodesviante.
Sair do armário – desarmarizar – não é para qualquer pessoa,
não. Embora a pessoa transgênera esteja buscando somente um espaço
para ser “ela mesma” no mundo em que vivemos, sem nenhuma intenção
de ferir quem quer que seja, e muito menos de "causar" nos grupos e ambientes que frequenta, sua desarmarização vai implicar num sem número
de enfrentamentos, desde os de caráter individual, da pessoa com ela
mesma, até os enfrentamentos diretos e indiretos com as outras pessoas,
em casa, na rua, na escola, no trabalho e até em locais de recreação e lazer. Todos esses enfrentamentos produzem muito desgaste e desconforto
físico, mental e emocional, requerendo energia, coragem e determinação
incomuns para serem encarados de frente, já que não há nenhuma forma
eficiente de se fugir deles sem abortar todo o processo.
Descobrir-se, assumir-se e aceitar-se como pessoa transgênera significa, assim, sofrer expulsão sumária daquela zona de conforto representada pelo “paraíso da normalidade social”. O chão se abre
debaixo dos nossos pés a cada novo passo, a cada nova revelação
271
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
manutenção da ordem vigente, em que duas e somente duas categorias
de gênero reinam absolutas, para o sossego do patriarcado...
Finalizando, podemos concluir que, seja do ponto de vista social,
político, cultural e/ou psicológico, sair do armário é sempre uma ação
libertadora, por mais sofrida que seja. Sentir-se suficientemente empoderada para afirmar diante do mundo a própria identidade alivia o medo, a
vergonha e a culpa que afligem a pessoa transgênera, recuperando a sua
autoestima e a sua autoconfiança, abaladas pela infâmia de viver encarcerada no próprio cárcere-armário, às vezes por muitas décadas.
Pode-se dizer que a transição só se completa quando a pessoa
transgênera aprende a orgulhar-se de aspectos e atributos pessoais
considerados impróprios e abjetos pela sociedade. Essa atitude de
recuperação e proteção da autoestima, tão afetada pelas investidas
do mundo, é o único remédio capaz de produzir efeitos antidepressivos, antiparalisantes e desneurotizantes.
Do ponto de vista psicanalítico, “elaborar” a vergonha e a culpa de
ser transgênera depende de um elevado nível de autoperdão e autoacolhimento, acompanhados de uma ampla, total e irrestrita legitimação do
próprio desejo. Esse é um processo que pode levar anos, décadas ou jamais vir a acontecer na vida de uma pessoa, pois não se desenvolve dentro de um tempo cronológico, mas dentro de um tempo psicológico, político, social e cultural.
284
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
8. Passabilidade
A preocupação com transição e cirurgia objetifica a pessoa transgênera.
Laverne Cox
T
ão essencial quanto polêmico dentro dos Estudos Transgêneros, o
tema da passabilidade focaliza o quanto uma pessoa transgênera
consegue expressar os estereótipos da categoria de gênero que
deseja expressar ao mundo. Ou seja, o quanto a pessoa se parece ou não
com o que a sociedade diz que um homem, uma mulher ou outra identidade qualquer tem que ser.
Passar é a mesma coisa que ser reconhecida, pela sociedade,
como alguém em conformidade com as normas de gênero. Não há
nenhum exagero em se afirmar que passar é a maior de todas as obsessões das pessoas transgêneras. Em inúmeros aspectos, passar deve ser
considerado como algo fundamental para a população transgênera, da
segurança contra ataques de violência transfóbica à satisfação pessoal de
ser publicamente reconhecida como alguém que a pessoa sente que é.
Trata-se de uma equação simples em que passar é igual a ser
reconhecida e aceita pela sociedade. Quanto mais passável, mais
habilitada ao convívio “normal” no mundo cisgêneroheteronormativo e menos a chance de ser estigmatizada e violentada como transgressora de gênero. Passar teria, assim, também uma
função protetora, na medida em que as pessoas transgêneras que não
passam convincentemente ficam teoricamente muito mais expostas à
violência real e simbólica por parte da população cisgênera. “A coisa toda
sobre passar diz respeito à sobrevivência”, afirmou a atriz e militante
transgênera norte-americana Laverne Cox em entrevista publicada em
2014. “Termos a possibilidade de transitar em segurança pelas ruas, sem
ser reconhecidas por estranhos como pessoas trans é uma questão de
segurança. Caso contrário, seremos alvos permanentes para a violência”209.
De acordo com Kaplan210, do mesmo modo que a transgressão da
norma é severamente punida, a conformidade com a norma é generosa285
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
mente recompensada, ainda que, muitas vezes, a recompensa não seja
mais do que a pessoa ser poupada da punição.
Seja a pessoa cisgênera ou transgênera, a expressão da sua identidade de gênero afeta profundamente as possibilidades de convivência e
aceitação das outras pessoas. QuanO QUE QUEREMOS DIZER COM
to mais ajustada aos estereótipos de
PASSABILIDADE
Ruth Pearce (*)
gênero vigentes na sociedade, maiHá uma série de discussões por aí sobre ores são as chances de a pessoa se
como uma pessoa transgênera pode sentir segura e aceita pelos demais.
passar como homem ou como mulher.
Elas vão desde dicas simples de como se Da mesma forma, quanto menos
montar até debates mais complexos próxima dos padrões culturalmente
sobre o valor da passabilidade, e o que
idealizados de homem e de mulher,
nós queremos dizer quando usamos esse
termo. Passabilidade para mim se refere mais dificuldades a pessoa tem de
basicamente a duas coisas: a certeza de se sentir acolhida e aceita pela socique os outros veem o nosso gênero como
nós desejamos que ele seja visto, e poder edade. Traduzindo em miúdos, se o
circular em segurança, ou seja, como entrevistador achar que uma pesquestão de sobrevivência (ficando de tal
soa “não se parece exatamente”
maneira imperceptíveis que não nos
tornemos alvos de ataques transfóbicos). com o que ela diz ou aparenta ser,
Dessa maneira, embora eu esteja inclina- especialmente em termos de idenda a argumentar que devemos tentar
minimizar a importância da passabilida- tidade de gênero, é pouco provável
de em comunidades trans - afinal, nem que o processo de admissão tenha
todo mundo consegue passar, e uma
bom termo ou mesmo que siga adipessoa pode perder tanto tempo se preocupando com isso que acaba descartando ante.
a possibilidade de sair de casa - eu acho
Existem pessoas transgêneque todo mundo tem o direito de trabalhar no sentido de conseguir passar. ras que alcançaram um nível de
Tudo que puder reduzir o perigoso e autoestima muito acima da média e
incômodo assédio público tem que ser
que, por isso mesmo, conseguem se
visto como uma coisa boa. (PEARCE,
impor socialmente, mesmo sem ter
2010)
qualquer compatibilidade com os
(*) Ruth Pearce, jovem ativista trans inglesa se
apresenta como punk, DJ, promoter e pesqui- estereótipos de gênero em vigor.
sadora pós-graduanda em Sociologia na Universidade de Warwick-UK. Publica o blog Mas elas constituem uma minoria
‘Trans Activist”.
altamente evoluída, que adquiriu a
consciência e possui os meios para lidar com os embustes, subornos e
estratagemas dos dispositivos de controle social. A aparência física de
Martine Rothblatt211, por exemplo, a executiva transgênera mais bem paga do mundo, lembra muito pouco a figura estereotipada de uma mulher.
286
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
amente cisgênero ou se se trata apenas de uma exagerada idealização do
gênero oposto – uma fantasia estética, erótica e sensual – levada às últimas consequências, de forma absolutamente obsessivo-compulsiva.
296
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
9. Visibilidade Social da Pessoa Transgenera
O essencial é invisível aos olhos.
Antoine de Saint-Exupéry, em O Pequeno Príncipe.
O que não é visto não é condenado.
Letícia Lanz
Q
ual é o tamanho da população transgênera? Como ela se distribui
em termos de idade, escolaridade, raça e etnia, estado civil, classe
socioeconômica, orientação sexual, etc.? Será que se trata realmente de uma minoria ou será que, na verdade, transgêneros representam
um número considerável de pessoas, das quais apenas uma pequena fração aparece publicamente?
A cientista e ativista transgênera norte-americana Lynn Conway
afirma que “as minorias não contam até que sejam contadas”215, mas, como ela própria reconhece, estimar o tamanho da população transgênera
do planeta é uma tarefa muito difícil. Assim mesmo, com base em estudos
existentes, a Drª Conway estima que a população transgênera corresponda a um percentual entre 2% e 5% da população em geral, sendo que
0,2% (2 em 1000) correspondem à identidade transexual216.
É sempre muito difícil e complexo fazer tal estimativa. Em nível
mundial, nenhuma organização de defesa dos direitos civis das pessoas
transgêneras arriscou dizer qual é o percentual de pessoas transgêneras
dentro da população em geral, assim como, até agora, nenhum censo oficial realizado em algum país do mundo incluiu a opção transgênero em
seus levantamentos. No dia a dia, nenhuma organização pública ou privada oferece a opção “transgênero” em suas fichas de identificação, além
das alternativas tradicionais de homem e mulher ou masculino e feminino. Por outro lado, se essa alternativa fosse oferecida, é provável que bem
poucas pessoas se identificassem como tal, uma vez que a maioria das
pessoas transgêneras não gosta de se abrir a respeito da sua condição,
muitas por “passarem” perfeitamente bem como membros do outro gênero e muitas outras por viverem armarizadas ou ainda estarem muito
inseguras de revelar publicamente a sua “outra” identidade.
297
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
O maior problema na contagem dessa população começa na sua
própria identificação: quem deve ser contado como transgênero? No
Brasil, alguns movimentos nacionais organizados em torno das
identidades travesti e transexual, na contramão da terminologia adotada
internacionalmente, não só não reconhecem o termo transgênero como
coletivo das identidades gênero-divergentes como ainda deslegitimam
abertamente toda e qualquer identidade além das suas duas
representadas. Da mesma forma, desqualificam abertamente a massa de
pessoas transgêneras que permanecem “armarizadas”, mesmo sabendo
que, caso “desarmarizassem”,
a maioria dessas pessoas iria se
reconhecer como transexual ou travesti.
As pessoas podem se descobrir e/ou
se revelar transgêneras em qualquer estágio
ou circunstância de vida: ainda como crianças ou em plena adolescência; adultos jovens, na meia idade ou já idosos; solteiros,
casados, divorciados; com ou sem filhos.
Algumas pessoas transgêneras vão se revelando naturalmente, na medida em que crescem, simplesmente adotando condutas mais
condizentes com a identidade de gênero
autopercebida, ou seja, expressando-se publicamente de modo considerado masculino, sendo mulher, ou fazendo coisas consideradas femininas,
sendo homem. Para essas pessoas transgêneras que vão se revelando ao
mesmo tempo em que vão crescendo, não existe a questão do armário e
muito menos da necessidade de revelação pública da sua condição, uma
vez que já abraçam abertamente o seu desvio do dispositivo binário de
gênero, enfrentando desde sempre toda a pesada carga de sanções sociais
por cometerem essa transgressão.
Da mesma forma, pode até ser verdade que algumas pessoas
transgêneras, como afirmam diversos crossdressers, jamais sintam necessidade de expressar suas identidades gênero-divergentes em público,
contentando-se em expressá-las de modo reservado, em ambiente fechado. As evidências, porém, demonstram que esse discurso não corresponde exatamente à verdade dos fatos. Na maioria dos casos, basta conseguir
empoderar-se um pouco mais para essas pessoas assumirem publica-
298
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Dialogando com os Estudos Existentes
no Brasil sobre Identidades Transge neras
Transgênero não é uma identidade de gênero, mas uma circunstância sociopolítica
e cultural de transgressão das normas de conduta do dispositivo binário de gênero.
Letícia Lanz
Que haja paz entre nós e que não sejamos instrumentos da nossa própria opressão.
(Let there be peace among us, and let us not be instruments of our own oppression.)
Rev. Barbara C. Harris218
Ser uma pessoa transgênera é viver dentro de um discurso onde outras pessoas estão sempre
investigando você, descrevendo você, falando por você e colocando o máximo de distância
possível entre o especialista e a pessoa gênero-divergente,
considerada por isso mesmo como alguém deficiente.
(To be differently-gendered is to live within a discourse where other people are always investigating
you, describing you, speaking for you and putting as much distance as possible between the expert
speaker and the deviant and therefore deficient subject.)
Pat Califia
Se me pedem um rótulo, digo que sou translésbica. Isso é a mesma coisa que mostrar
um vidro de maionese com o rótulo em uma língua desconhecida. Explicar para as pessoas
que eu sou um produto bio-tecnológico, autoconstruído e pós-identitário
daria muuuuuuuuito trabalho.
Jasmine Moreira219
A
s inúmeras pesquisas sobre identidades transgêneras, realizadas
no Brasil nas últimas décadas, demonstram ter havido um esforço significativo para a compreensão de como a transgressão das
normas binárias de gênero se encaixa e é tratada na nossa sociedade,
como também representam uma tentativa bem sucedida para a inauguração dos Estudos Transgêneros no meio acadêmico nacional. Esses trabalhos constituem referências obrigatórias para quaisquer novas investigações no território transgênero, ainda que nenhum deles tenha enfocado
especificamente a transgeneridade como desvio sociopolítico-cultural,
independentemente das identidades e expressões de gênero abrigadas
por esse fenômeno.
Tomados em seu conjunto, os estudos existentes apresentam como
traço característico o seu foco de interesse voltado para uma única e es309
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
pecífica identidade gênero-divergente, sem a preocupação de correlacioná-la com as demais identidades que compõem a população transgênera.
Do ponto de vista sociopolítico, essa tendência contribuiu para a criação e
a manutenção de uma visão bastante fragmentada, dispersa e muitas vezes até parcimoniosa da populaSOBRE TERMOS E DEFINIÇÕES
ção transgênera do país que, por
Juliana Gonzaga Jayme
essa e outras razões, tende a não
É importante explicitar - na definição êmica o que são travestis, transformistas, transexu- ser vista nem reconhecida como
ais e dragqueens. As travestis dizem que são um todo único.
“'mulheres” dia e noite, pois interferem no
Ao lado de serem estudacorpo por meio de roupas, maquiagem, cabelo e trejeitos femininos e através de medica- das de forma isolada umas das
mentos (hormônios femininos) e silicone em outras, nesses estudos as identipartes do corpo. No entanto, afirmam que
não desejam fazer a cirurgia de transgenitali- dades são focalizadas muito mais
zação, querem manter o órgão sexual mascu- como identidades sexuais do que
lino. A diferença entre as transexuais e as
como
identidades
gênerotravestis, é que as primeiras afirmam que
nasceram com o corpo errado. Seriam mulhe- divergentes, notoriamente transres presas em um corpo de homem. O órgão gressoras do dispositivo binário
sexual é visto como um apêndice, portanto,
algo que deve ser retirado. Assim, a transexu- de gênero, que é o que realmente
al é aquela que fez (ou deseja fazer) a cirurgia são. Esse, aliás, é o fato que consde transgenitalização. Para as transformistas
o tempo define o masculino e feminino. Di- titui a matriz sociopolíticozem: eu sou homem de dia e mulher de noite. cultural da transgeneridade, e
O corpo é modificado com maquiagem, roupa, não a sexualidade das pessoas
espuma para fazer seios e ancas. Diante de
uma transformista “montada” não é possível gênero-divergentes. Ademais, os
saber se se trata de homem, mulher, travesti estudos existentes partem semou transexual. A transformação pretende
ocultar inteiramente o masculino. A diferença pre do pressuposto que todas as
entre transformistas e dragqueens refere-se identidades gênero-divergentes
ao fato de que essas últimas não têm a preotêm orientação homossexual, o
cupação das transformistas em “parecer
mulher”. A maquiagem é recarregada, a rou- que de certa forma transforma
pa exagerada, com altas plataformas, cabelos esses trabalhos em estudos sobre
coloridos etc. O termo transgênero é utilizado
para reunir todas essas categorias tratadas casos especiais de homossexuaaqui, mas mantendo as diferenças. (JAYME, lidade.
2004, p. 2-3)
Trazendo uma visão muito
mais sexualizada do que politizada das identidades gênero-divergentes,
podemos afirmar que, no Brasil, o fenômeno transgênero vem sendo estudado de modo fragmentado e bastante despolitizado, muito mais como
simples corolário de homossexualidade220, do que como fenômeno socio-
310
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
lógico de transgressão das normas de conduta de gênero, transgressão
essa que gera o estigma e todo o elenco de sanções negativas a que a pessoa transgênera está submetida na nossa sociedade, como temos mostrado neste estudo.
Não por simples acaso, grande parte dos estudos existentes focaliza a identidade travesti. Trata-se do grupo transgênero de maior visibilidade no país, certamente pela sua ostensiva presença em ruas, praças e
avenidas de praticamente todas as cidades brasileiras, mesmo as de pequeno porte, em função da sua participação na indústria do sexo. É esse
status que, para o bem e para o mal, fez da travesti a expressão transgênera de maior tradição e destaque nosso panorama sociopolítico e cultural.
Com menor frequência, encontramos estudos sobre a identidade
transexual e a identidade crossdresser e, com frequência menor ainda,
sobre dragqueens e transformistas. São ainda muito escassos os estudos
acadêmicos sobre outras categorias transgêneras, como homens trans,
andróginos, intersexuados, dragqueens, homens femininos, mulheres
masculinas e outras identidades gênero-divergentes221.
É preciso reconhecer o pioneirismo desses estudos, absolutamente
fundamentais para o mapeamento, análise e entendimento do fenômeno
transgênero no Brasil. Em nenhum momento as críticas aqui eventualmente apresentadas têm o objetivo de diminuir a importância, a seriedade e o mérito desses estudos, destinando-se tão somente a apontar novos
rumos para a pesquisa das identidades transgêneras no Brasil.
311
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
312
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Estudos sobre a Identidade Travesti
N
a paisagem acidentada e descontínua do território transgênero,
a identidade travesti se destaca como detentora do maior número de estudos e pesquisas já realizados dentro da temática da
transgressão de gênero no Brasil.
Por vários motivos, seria mesmo de se esperar essa concentração
de interesse acadêmico na identidade travesti. Em primeiro lugar, a travesti é uma identidade gênero-divergente tipicamente brasileira, verdadeira instituição nacional.
Muita gente, inclusive, supõe que, em português, a palavra travesti
tenha o mesmo significado que transvestite, que é o seu termo correlato
em inglês. Entretanto, muito ao contrário, dentro da cultura brasileira, o
significado da palavra travesti é bem diferente do significado da mesma
palavra em inglês, em que transvestite, hoje em desuso, significa crossdresser, ou seja, que ou aquele (especialmente homem) que se veste com
roupas culturalmente próprias do gênero oposto ao seu.
Embora as características tão próprias e particulares da travesti
brasileira222, as identidades mais próximas da nossa travesti seriam shemale ou tranny que, em inglês, designam a pessoa transgênera MtF atuando na indústria do sexo. Tanto shemale quanto tranny, são hoje considerados termos altamente ofensivos por grande parte da comunidade
transgênera norte-americana223.
Ainda que, por influência do Brasil, possam ser encontradas versões assemelhadas à travesti em diversos outros países da América Latina, suas características sociológicas e antropológicas fazem dela um produto cultural único, só existente no Brasil. A travesti é o cartão de visitas
do mundo transgênero nacional, a ponta mais visível do enorme iceberg
da transgeneridade no Brasil.
Dentre as imagens mais solidamente construídas no passado, e
ainda muito presente no imaginário coletivo brasileiro, está a da travesti
de rua: transgressora, delinquente, indecorosa, imoral, obscena, anticon-
313
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
zação. O que fazer, nessa hora, tendo em vista o conceito, tão ampla e
ingenuamente aceito até nos meios acadêmicos do país, da travesti como
alguém que “convive muito bem” com sua genitália de macho? Que considera seu pênis como um importante diferencial para o seu trabalho de
profissional do sexo e, portanto, jamais pensaria em se submeter à cirurgia de readequação genital?
Nessa hora, o que ela é? Ou o que passa a ser? Transexual? Nesse
caso, será que ela esteve até agora mentindo para si mesma e para as outras pessoas? Foi precipitado ou inadequado o rótulo de travesti que ela
se deu ou que lhe deram (muitos dos estudos existentes chegam a afirmar
que a pessoa “já nasce travesti” e “já nasce transexual”)? Ou, como afirmam muitas transexuais, as identidades de travesti e crossdresser são
apenas “estágios” de descoberta e/ou aceitação da transexualidade, essa
sim, estrutural e irreversível? Ou será que também aqui se aplica a clássica (e enfadonha, de tanto que é citada) observação de Simone de Beauvoir de que “ninguém nasce mulher: aprende a ser”?245
A minha principal crítica é, portanto, quanto à imprecisão e falta de
diferenciações categóricas e inequívocas entre as definições de travesti,
transexual, crossdresser, dragqueen, etc., definições essas que, apesar da
sua inconsistência, são tratadas como verdades inquestionáveis, apesar
dos enormes conflitos e contradições existentes na sua formulação.
328
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Estudos sobre a Identidade Transexual
A
o contrário da crença popular, existente até mesmo dentro do
gueto transgênero, ser uma pessoa transexual não significa “estar
presa em um corpo que não é o seu” e, em razão disso, passar o
tempo todo pensando única e exclusivamente em mudar de corpo e, naturalmente, de sexo. Embora essa fosse também a crença comum entre
"especialistas" do século passado, ser reconhecida como uma pessoa
transexual não implica em a pessoa querer se submeter à cirurgia de reaparelhamento genital ou a qualquer outro tipo de tratamento clínico ou
cirúrgico visando a readequação do seu corpo.
Por desejo e iniciativa própria, uma pessoa transexual realmente
pode passar por cirurgias e tratamentos hormonais, mas essa não é a
regra geral. Seja por razões pessoais, econômicas ou de qualquer outra
natureza, muitas outras pessoas que se reconhecem como transexuais
não colocam nenhuma cirurgia ou tratamento hormonal nos seus planos,
preferindo manter o mesmo corpo que têm.
É preciso ficar claro que cirurgias, hormonizações ou outras intervenções médicas não são capazes de legitimar a transexualidade de ninguém. Por se tratar de um processo de identificação altamente subjetivo,
ou seja, inteiramente particular de cada pessoa, a única coisa que legitima
a identidade de alguém é a sua própria autoidentificação numa dada categoria de gênero.
Até algum tempo atrás, era também comum afirmar-se que a diferença fundamental que se via entre a identidade transexual e as demais
identidades transgêneras – travesti e crossdresser em especial – seria a
“profundidade de convicção” de cada uma dessas identidades quanto à
sua feminilidade. As “convicções” das travestis e dos crossdressers não
seriam lá “tão profundas” assim, quando comparadas à convicção da
transexual MtF...
Segundo Brierley246, a transexual expressa com total convicção a
crença de que sua personalidade é essencialmente feminina, que ela está
329
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
presa em um corpo de homem.
Que o seu sexo genital está em
Jorge Leite Jr.
conflito com a sua mente e o asA criação e a diferenciação dos conceitos pecto físico em conflito com o que
clínicos de travesti e transexual, expressos a sociedade convencionou chapelo esforço histórico de nomear distintamar de mulher. Isso a obrigaria a
mente tais categorias, parece exprimir não
apenas a lógica da especificação teórica enfrentar uma luta permanente
entre “disfunções sexuais”, “transtornos de para se livrar de todo e qualquer
identidade de gênero” e “identidades políticas” vistas como substancialmente diferen- vestígio físico, psicológico e social
tes, segundo os manuais médicos ou as de masculinidade, a fim de viver
organizações militantes, mas também a
antiga moralização do discurso científico, integralmente “a mulher que sennotada por Lanteri-Laura, da divisão entre te ser”. Nessas condições, a tranos “bons” e os “maus” desviantes sexuais. sexual buscaria não apenas o
Desta forma, aqueles que estão mais próximos dos valores sócio-morais vigentes no reconhecimento público da sua
período e sofrem com seus “transtornos” identidade de mulher, mas tamsão os perversos e os que, intencionalmente
ou não, afrontam estes mesmos valores não bém a oportunidade de se casar
considerando suas “disfunções” como um com um homem e, em alguns
problema, mas como uma característica, são
casos, ter filhos por adoção ou
os pervertidos. [...] Assim, talvez o conceito
de travesti tenha mantido boa parte da barriga de aluguel.
periculosidade do antigo pervertido sexual,
Na sua narrativa de vida, a
enquanto a noção de transexual evoca o
trágico destino do perverso. Nas próprias transexual geralmente alega ter
definições de travestismo fetichista do CID- preferido brinquedos de menina,
10 ou do fetichismo transvéstico do DSM-IV
assim como buscado a companhia
(a ordem dos termos de um manual é contrária à do outro, mas ambos concordam de meninas para suas brincadeique é uma parafilia), o foco é o prazer e a ras na infância. Embora a prática
“aparência” do sexo oposto. Já quanto ao
transexualismo do CID-10 ou o transtorno da travestilidade tenha começado
de identidade de gênero do DSM-IV, estes se muito cedo em sua vida, a transeapresentam em outra categoria específica
xual recusa a se ver como uma
de problemas, onde a questão é centrada no
sofrimento, mal-estar e desconforto, estan- travesti, por considerar-se “mudo o tema do prazer totalmente ausente do lher de verdade”, em todos os
diagnóstico. (LEITE JR., 2008, p. 191)
sentidos e para todos os efeitos.
Também faz questão de declarar que o ato de se travestir não é guiado
por nenhum desejo de produzir excitação e orgasmo, o que para ela seria
“fetichismo” caso acontecesse, mas pela obtenção de um sentimento de
alívio, felicidade, bem-estar e relaxamento de tensões.
A DIVISÃO ENTRE OS “BONS” E OS
“MAUS” DESVIANTES
330
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
recursos médicos e jurídicos. A indagação moral que permanece
pouco explorada, e que este estudo se propõe a investigar, é: quais
seriam os fundamentos éticos que justificariam as restrições ao
exercício da autonomia da pessoa transexual para o acesso às transformações corporais e de identidade desejadas? Em particular: é
moralmente legítima a tutela da psiquiatria, a medicalização e a judicialização de uma condição sexual para o acesso a direitos de cidadania, garantidos nos estatutos éticos e legais nas sociedades democráticas, para todas as pessoas, indistintamente? (VENTURA,
2010, p.11 e 12).
Quando comparados aos estudos existentes no país sobre outras
identidades gênero-divergentes, os estudos sobre a identidade transexual
apresentam maior consistência teórica na sua formulação, assim como
maior alcance prático nas suas conclusões. Ainda assim, padecem, como
todos os demais estudos, da mesma falta de uniformidade conceitual do
perfil das identidades estudadas, o que faz com que muitas vezes não se
saiba exatamente qual é a identidade que está sendo focada, dada a sua
extrema semelhança e superposição com outras identidades gênerodivergentes, estudadas por outros autores com outros nomes.
Ao contrário do foco de interesse principal estar dirigido à manifestação de uma sexualidade “devassa”, como acontece nos estudos sobre
a identidade travesti, ou de um mero e inocente hobby diletante de final
de semana, como acontece com os estudos sobre crossdressers, quando
se trata da identidade transexual o foco migra para a “dor” emocional,
que essas pessoas sentem e para a qual buscam lenitivo na própria dor
física de cirurgias de feminização (ou masculinização) e de reaparelhamento genital. Assim, enquanto a travesti tende a ser vista e
tratada como ardilosa (e escandalosa) transgressora das normas de conduta de gênero –
uma delinquente –, e crossdressers como
pessoas alegres e diletantes que cultivam “a
arte de ser mulher”, a transexual tende a ser
vista como alguém doente, exposta a um contínuo sofrimento, carente de tratamento e
cura, através de intervenções medicas, de
natureza psiquiátrica, psicológica e cirúrgica.
352
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Estudos sobre a Identidade Crossdresser
A
identidade crossdresser chegou ao Brasil na década de 1980
com a missão de ser a “salvação da lavoura” das pessoas transgêneras de classe média/média-alta, até então maciçamente armarizadas. De nova, essa nova identidade não tinha nada, uma vez que nada
mais era do que a velha identidade travesti, travestida de “menina bem
comportada” para atender os anseios de manifestação pública de gente
impossibilitada de se identificar como travesti ou transexual.
Enquanto as travestis são vistas, no Brasil, como delinquentes e as
transexuais como doentes, os crossdressers (ao contrário de outras identidades gênero-divergentes, eles preferem ser
tratados na forma masculina) desejam ser vistos como praticantes de um hobby, de um passatempo, que consiste em se vestir de mulher
da forma mais idealizada e requintada possível,
ao contrário das dragqueens que, propositalmente, exageram ao máximo as suas montagens. Se a transexual representou, no Brasil, a
separação do “bom desvio” do “mau desvio” de
gênero, personificado pela travesti, o “crossdresser” representou uma porta de entrada, um
canal de expressão até então inexistente, para a manifestação da transgeneridade de pessoas pertencentes a estratos sociais mais elevados da
população.
Em meados da década de 1990, valendo-se do aparecimento do
novo e superpotente canal de comunicação da internet, um grupo de pessoas tomou emprestado do inglês o termo crossdresser introduzindo seu
uso na língua portuguesa, com o objetivo de designar pessoas transgêneras caracteristicamente pertencentes aos estratos socioeconômicos mais
favorecidos que, em tese, teriam “a fantasia” de usar roupas femininas, ou
seja, de praticar o travestismo (crossdressing)”258, hoje chamado de travestilidade.
353
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
O termo crossdresser, portanto, foi introduzido no Brasil apenas
como um eufemismo de travesti, pois crossdressers nada mais são do que
transvestites, o que, como já explicamos, corresponderia a travestis, no
português do Brasil, não fosse a conotação altamente pejorativa que essa
palavra tem entre nós.
Em seu estudo Crossdressing Masculino – uma visão psicanalítica da
sexualidade crossdresser, tese de doutorado em psicologia clínica, apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2006, Eliane
Kogut diz preferir o termo crossdressing a travestismo, explicando a razão
da sua escolha a partir de uma abordagem histórica da identidade crossdresser:
O termo travestismo foi cunhado pelo médico alemão Magnus
Hirschfeld em 1910, para designar aqueles que, independentemente de suas inclinações sexuais, têm prazer em vestir roupas
do sexo oposto. Hirschfeld investigou inúmeros casos e discriminou as diversas incidências do travestismo, diferenciando-as
da homossexualidade. Ao longo do tempo, contudo, o termo passou a agregar significados pejorativos até tornar-se associado à
prostituição e eventualmente a comportamentos antissociais.
Assim, procurando se desvincular do estigma do termo, muitos
travestis preferem, atualmente, se autodenominar pelo termo
crossdresser. Além disto, surgiu ao longo dos anos 70 e 80 uma
“nosologia popular” na qual os próprios praticantes diferenciam
crossdresser de travesti, de dragqueen, e de transexual. Nesta
tese adotaremos, preferencialmente, o termo crossdresser (menos carregado de preconceito), advertindo ao leitor que ambos
os termos são equivalentes. (KOGUT, 2006, p. 9)
Como se vê, nos próprios pressupostos da pesquisadora há uma
perfeita equivalência entre travestismo e crossdressing. Entretanto, no
âmbito do seu estudo, ela diz que adotará o termo crossdresser, em lugar
de travesti, por ser “menos carregado de preconceito”.
O foco do estudo de Kogut é, portanto, os crossdressers ou, como
ela própria diria, “travestis de classe média/alta”, cujo perfil socioeconômico nunca se ajustaria ao perfil predominante entre as travestis. Mas
suas análises e conclusões, longe de explorarem esses importantes aspectos sociopolíticos e culturais dos crossdressers, resvala como quase todos
os demais estudos sobre identidades transgêneras no Brasil para a ques-
354
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
status sociopolítico-econômico, comprometeria de modo irreparável a
sua reputação de “homens sérios” e “machos ilibados”. Sem falar no quiproquó que estaria criado com seus familiares, colegas de trabalho, amigos e inimigos caso viesse à tona esse aspecto tão fundamental da sua
personalidade.
Concluindo, o surgimento da identidade crossdresser serviu para
que um grande número de pessoas transgêneras de classe média e média
alta deixasse os seus armários de forma “menos traumática”, uma vez
que, no seu discurso absolutamente falso e dissimulado, crossdresser se
apresenta como um homem heterossexual que quer “apenas se divertir”,
praticando o hobby de se vestir de mulher. Na prática, não é nada disso.
Grande parte dos crossdressers acaba sempre se descobrindo como pessoas transexuais, prontos a levar suas mudanças corporais às últimas
consequências, coisa que não estariam dispostos a admitir nem para si
mesmos, quando começaram a deixar seus armários para furtivas e inocentes “saídas” noturnas de fins-de-semana.
364
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Identidades? Para Que Identidades?
A maioria das pessoas são outras pessoas. Seus pensamentos são opiniões
de alguma outra pessoa, suas vidas uma imitação, suas paixões uma citação.
Oscar Wilde, em De Profundis267.
O
debate que trouxemos, a respeito da travesti que “resolve” fazer
cirurgia de transgenitalização e de crossdressers que em pouco
tempo fora do armário “descobrem-se” transexuais, mostram
como são artificiais e arbitrárias as conceituações sobre identidades gênero-divergentes, no Brasil e no mundo. O único fator comum, visivelmente concreto, entre essas identidades é a sua notória transgressão do dispositivo binário de gênero, com todas as consequências
sociopolíticas, econômicas e culturais que esse ato insurgente representa em suas vidas. O resto são “filigranas identitárias”, criadas
e mantidas por discursos médico-jurídicos de patologização e tutela
da condição transgênera e defendidas a ferro e fogo pelos movimentos organizados de representação identitária existentes no país.
Na verdade, no Brasil, as definições de
identidades gênero-divergentes têm servido
muito mais como mecanismos de opressão
do que como estratégias libertárias, na medida em que criam e ratificam hierarquias baseadas em corpos sexuados e estereotipados,
promovendo a segregação e justificando a
exclusão de pessoas e grupos dentro do próprio mundo transgênero.
Identidades transgêneras que não estão compreendidas nas rígidas definições
identitárias e delimitações territoriais fixadas pelo chamado “movimento organizado”,
que se apresenta como representante de travestis e transexuais no Brasil,
mas que, na verdade, é apenas um braço do movimento de homossexuais,
tendem a ser inteiramente invisibilizadas no cenário nacional. E junto
365
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
com elas, que naturalmente também são parte integrante da população
transgênera do país, a sua forma de ser, as suas escolhas pessoais e o seu
estilo de vida.
É notável, no meio trans, a abundância de posições pra-lá-deconservadoras e reacionárias na defesa intransigente de certos modelos identitários. O principal motivo alegado para tal fervor é “forçar” o poder público a reconhecer e legitimar sociopoliticamente
essas identidades e, em função disso, desenvolver, implantar e manter políticas públicas de interesse desses segmentos.
É inegável que tais ações políticas produziram alguns ganhos para
determinados grupos de pessoas transgêneras o que, na opinião dos
membros e das lideranças desses segmentos, mais do que justificaria a
sua continuidade e intensificação. O problema é que uma estratégia de
ação baseada na afirmação de uma dada identidade específica conduz,
necessariamente, a uma deliberada exclusão e isolamento dos demais
grupos e pessoas transgêneras cujo perfil não se enquadra nos dogmas
identitários do grupo que luta exclusivamente pela sua própria afirmação.
Pode-se até compreender a função dos rótulos identitários numa
negociação de políticas públicas, mas é totalmente indesejável que certas
identidades gênero-divergentes queiram estabelecer supremacia sobre as
demais, criando e mantendo uma hierarquia e um sistema de exclusão
dentro do próprio gueto transgênero, como acontece hoje em dia.
Excetuada a figura da travesti, cuja ostensiva presença “na pista”268,
em praticamente todas as cidades brasileiras e o pioneirismo nos movimentos sociais reivindicatórios fazem com que ela seja mais vista e identificada pela população, houve, ao longo do tempo, uma invisibilização de
outras identidades transgêneras nos relatos produzidos no país. E, tal
como ocorre com outros grupos sociais proscritos e estigmatizados, criou-se uma enorme lacuna de registros sistemáticos a respeito do perfil e
da conduta da maioria das identidades transgêneras na sociedade brasileira, completamente obscurecidas pela dupla travesti-transexual.
É decepcionante e constrangedor constatar que em pleno século
XXI ainda existam pessoas insistindo em falar de “identidades de gênero”
como se fossem entidades definitivamente prontas e acabadas, verdadeiros “enlatados”, perfeitamente definidas e completamente distintas umas
das outras. A começar das duas identidades oficiais - homem e mulher -
366
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
(In)Conclusoes
O mais importante, quando alguém tem que dar conta de uma reflexão, é que o que ele diga
não valha pelo conteúdo do que ele disser, mas pelo próprio fato de dizê-lo.
[...] Mas o que posso esperar como o melhor é que o que digo seja dito com tal força,
com tal atitude, que determine atitudes em vocês.
J.D. Nasio270, O Olhar em Psicanálise.
P
or que, em pleno século XXI, continua sendo prática corrente a
negação dos direitos civis das pessoas transgêneras, direitos de
cidadania que são assegurados, sem nenhuma restrição, aos homens e mulheres cisgêneros? O que fundamenta, explica e justifica o estigma, a invisibilização social, a privação de oportunidades e a indigência
legal-moral a que são condenadas as pessoas transgêneras em nossa sociedade?
Todos os bloqueios e interdições ao pleno exercício da cidadania
das pessoas transgêneras resultam da sua transgressão ao dispositivo
binário de gênero, da sua inobservância ao critério de classificação e hierarquização dos seres humanos com base no órgão genital presente em
cada indivíduo ao nascer.
Também mostramos que, por causa daquilo que a sociedade ainda
considera ser uma transgressão, as pessoas transgêneras são "repositórias" de um dos mais antigos estigmas da humanidade: a condenação sobre toda e qualquer forma de expressão de gênero fora do binário oficial
"masculino/feminino", tornando-se, por isso mesmo, vítimas preferenciais de inúmeras formas de violência real e simbólica.
Assim, é óbvio que eventuais distúrbios mentais numa pessoa transgênera são muito mais “efeito” – e efeito maldito – da maneira como as estruturas sociais, políticas e culturais respondem ao
comportamento transgênero do que “causa” da transgeneridade,
como ainda defende uma expressiva parcela da medicina e da psicologia.
A tendência, amplamente dominante, tanto na educação, na medicina, na psicoterapia e na justiça, quanto em muitos meios acadêmicos
brasileiros, continua sendo de tratar a condição transgênera – ou transgeneridade – como mera variação da homossexualidade e como patolo373
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
gia, mais precisamente como “transtorno mental” ou, nos termos “amaciados” do DSM V, como “disforia”.
Essa tendência reflete o
atraso da sociedade brasileira no
reconhecimento dos direitos civis
das pessoas transgêneras, como
já ocorreu em diversas partes do
mundo, inclusive na Argentina e
no Uruguai. Respaldada por um
machismo exacerbado e por
crenças religiosas fundamentalistas, a sociedade brasileira continua submetendo as pessoas gênero-divergentes a uma elevadíssima carga de estresse físico e
mental resultante do intenso e contínuo constrangimento sociopolíticocultural a que elas são expostas. Essa tortura cruel e mesquinha, praticada em nome de coisas como “cura” e “reajustamento social”, leva as pessoas transgêneras a um quadro de total esgotamento físico e mental, que
pode resultar em suicídio, modalidade eleita com muita frequência como
forma da pessoa se livrar de uma carga existencial que se tornou insuportável.
São essas pesadíssimas demandas psicossociais e políticas, permanentemente lançadas, interna e externamente, sobre os seus ombros por
uma sociedade que se considera “normal”, que fazem as pessoas transgêneras se sentirem “mentalmente atormentadas” e “socialmente desajustadas”. É muito doloroso saber-se uma pessoa desde sempre “inadequada” ao convívio social “normal”, como também é doloroso saber que, para
ser reconhecida como “adequada”, é necessário aprender a fingir, a dissimular e a esconder a sua verdadeira identidade.
A sociedade brasileira necessita muito – e urgentemente – de educação e esclarecimento a respeito da condição transgênera. Sem um nível
adequado de formação e informação, continuará prevalecendo a visão
arcaica do estigma bíblico sobre pessoas transgêneras e as consequências
absolutamente nefastas da sua aplicação.
374
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Epí logo: O Corpo da Roupa
Nas curvas do desejo heteronormatizado,
o corpo abjeto da pessoa transgênera
sempre será objeto de atração, estranhamento e violência.
Letícia Lanz
A
qui termina a viagem de observação e reconhecimento ao território transgênero” que me propus a fazer, no prólogo deste trabalho, junto com quem quisesse me acompanhar. Estou convicta de
que as pessoas que se dispuseram a vir comigo foram descobrindo, ao
longo da jornada, que o “território transgênero” é o próprio “corpo transgênero”. É a ele que eu me referia como a “costa com muitos arrecifes e
bancos de areia” onde “a navegação é basicamente cheia de surpresas”.
Onde, “mesmo em dias de águas calmas, jamais se pode confiar inteiramente no que se vê na superfície, à flor da água”. E, como também adverti
lá no início da viagem, “tal e qual o piloto de um barco numa costa acidentada, a atenção do pesquisador no território transgênero deve estar permanentemente voltada para o que permanece sob as águas, abaixo da
superfície; para o que não é visto e/ou que não se deixa ver; para as formações absolutamente transitórias, que deixam marcas nada mais do que
instantâneas e passageiras na geografia do litoral”.
Quem me acompanhou nessa jornada pôde vislumbrar alguns dos
numerosos conflitos, contradições e paradoxos existentes na complexa
cartografia transgênera, acidentes geográficos que colocam a pessoa gênero-divergente permanentemente tensionada entre transgredir ou se
conformar às normas de gênero. Em meio à forma muitas vezes caótica,
revoltada e repetitiva do meu “diário-de-bordo”, espero ter sido capaz de
descrever o enorme desespero existencial da pessoa transgênera ao constatar que não é, e que provavelmente, de forma integral como muitas desejam, nunca poderá ser “o corpo da roupa”, isto é, o corpo “perfeitamente generificado”, heteronormal-cisgênero, assujeitado e submisso ao dispositivo binário de gênero que delimita, impõe e regula todas as suas
ações como pessoa no mundo.
383
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
O corpo da roupa é um “cabide” feito para pendurar exclusivamente a roupa da categoria de gênero em que esse corpo foi classificado ao
nascer.
O corpo da roupa é o corpo vestido, isto é, “investido” de todo o
aparato institucional que transforma um organismo biológico em uma
entidade culturalmente inteligível. A roupa incorpora a norma e o corpo vestido é a norma corporificada. O corpo da roupa é o corpo
construído para atender as exigências da roupa-norma: não pode
deixar dúvidas de que ele é caNão podemos continuar a desenvolver os
corpos de acordo com as roupas que a paz de vestir a roupa e corporisociedade já tem pronta e classificada para ficar a norma. O corpo da roupa
vesti-los, de acordo com suas característi- é, assim, um corpo fabricado,
cas genitais primárias e secundárias. Está
mais do que na hora de legitimar os corpos forjado, modelado e, ao mesmo
como eles são e deixar que cada pessoa tempo, dividido e dilacerado
escolha livremente a roupa que quer usar.
As roupas, inclusive e principalmente as pelas normas que o constituem.
roupas institucionais, é que têm que se
Ao contrário de ser um tipo
adequar aos corpos, não o contrário.
de máscara ou verniz superficial,
Precisamos entender que o que não faz
sentido é gênero. Que toda e qualquer encobrindo uma suposta verdadeiclassificação baseada em gênero é fictícia e ra natureza do nosso corpo, a rouarbitrária, só servindo para criar hierarquias e desigualdades entre as pessoas. O pa tem o poder de criar tipos espefim do gênero será o fim de uma enorme cíficos de corpos, estabelecendo
chaga de separação e desigualdade entre
distinções quanto a gênero, classe
os seres humanos.
social, status econômico, religião,
Letícia Lanz
idade e subcultura, diferenças essas que, sem o concurso da roupa, dificilmente poderiam ser expressas de
maneira tão clara, visível e significativa.
Os corpos são muitos, mas a roupa-norma é uma só. Para todos. E a
sociedade não só se gaba dessa “igualdade” da “norma para todos” como
só pode existir graças a ela.
O corpo transgênero transgride o dispositivo que rege a normalidade social. Ele “não devia” estar dentro daquela roupa e, no entanto,
está, contrariando as normas binárias de gênero. Ele é o corpo que viola
os discursos normativos de gênero, que não se encaixa nas matrizes culturais de inteligibilidade, que escapa aos rígidos controles de conduta de
gênero.
384
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
que somos; não precisamos de ser reconhecidos como isso ou aquilo só
para sermos aceitas por uma sociedade que basicamente nos rejeita e nos
repele e na qual definitivamente também não vale a pena viver.
De um ponto de vista altamente idealizado, poder-se-ia imaginar a
população transgênera como sendo baluarte de um movimento de vanguarda, voltado para o fim do gênero enquanto instituição política da
sociedade. O corpo transgênero é essencialmente um corpo libertário,
mas pode ser também um corpo reacionário da pior espécie: um corpo
que busca sua readequação para inserir-se no modelo que o excluiu, fato
que certamente constitui um dos paradoxos mais evidentes e alucinantes
da transgeneridade.
Não me oponho e apoio inteiramente a transformação do corpo
enquanto território de tensões e lutas infindáveis no processo de corporificação e subjetivação da identidade transgênera. Mas o corpo abjeto que
resulta dessas transformações pode ser um guerrilheiro antigênero ou
um apologista do dispositivo binário de gênero.
Fico com a primeira opção.
395
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Yo Quisiera Ser Travesti
Pol Asenjo*
Yo quisiera ser travesti
ser batato y tener tetas
de aceite de camiones y motores asesinos
silicona industrial en mis venas
embebida lentamente hasta morir
en jeringas oxidadas
que se clavan y me inflan
y revientan los pezones
traga grasa corazón de gomería
uñas cuadradas dedos de chongo
cierra sus dedos un poco de sangre
Adiós oh adiós
a dios reptan mis pedazos
collar roto de babosas peregrinas
maldito camino de baba que lame
el polvo del piso que pisa el amado bruto
cogiéndome cogiéndose al puto
el bello camión que aplasta riendo
a perras preñadas
ese chongo magnolia lechosa oh árbol brutal
yo quisiera ser travesti
con la cara deformada por las crudas cirugías
té canasta y colágeno en la pensión
de traviesas retiradas
nos tomamos unos mates vino pastas
las travestis no conocen la anestesia
porque la belleza las achura y las carnea
y la que se acuerde de gritar no ha nacido para esto
hay que ser macho y apretar morder la bala
hay que cortar y serruchar martillar y clavar clavos
para domar esta dura carne dura
para ser esa gran yegua que es un sueño de caballos
yo quisiera ser travesti
ellas son lo que no logra la terapia
ser la carne y la sangre del deseo
396
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
la genuina eucaristía
yo quisiera ser travesti
porque las travestis son crisálidas
que se matan por vivir.
(*) Pol Asenjo é poeta e dramaturgo. Nasceu e vive em Buenos Aires.
397
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
398
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Diciona rio Transge nero
Esta é uma versão revista e ampliada do Dicionário Transgênero,
que mantenho em meu site desde 2006.
http://www.leticialanz.org/dicionario-transgenero/
A
Ponham abaixo, de uma vez por todas, as portas dos armários,
levantem-se e comecem a lutar.
Harvey Milk, ativista LGBT
ADÉ (do bajubá) – homossexual masculino; bicha.
AFEMINADO (efeminado) – diz-se do macho biológico que se comporta socialmente de
maneira considerada própria ou assemelhada aos padrões de feminilidade estabelecidos
pela cultura.
AFEMINAR (efeminar) – adquirir, particularmente estando na condição de macho biológico, formas (inclusive físicas), modos, gostos, atitudes e/ou comportamentos próprios ou
semelhantes ao que é social e culturalmente considerado como feminino.
AGÊNERO – diz-se do indivíduo que se nega a ser enquadrado em qualquer categoria de
gênero; pessoa que não se interessa por gênero ou tem aversão por quaisquer tipos de
classificações de gênero.
ALIBÃ (do bajubá) – polícia, guarda, policial.
AMAPÔ (ou amapoa) – fêmea genética (ou o órgão genital feminino), em bajubá. (veja
mona).
ANDROFILIA – termo criado por Magnus Hirschfeld, no início do século XX, para designar
a atração sexual e/ou romântica que indivíduos - fêmeas ou machos - sentem por machos
adultos. Antônimo: ginofilia. (veja orientação sexual).
ANDROGINIA MÍSTICA (ou alquímica) – o andrógino é uma presença bastante comum no
ocultismo e em textos místicos e alquímicos. A maior parte dos mitos e histórias relacionadas à androginia refere-se a uma raça de andróginos que teriam habitado o planeta em
tempos imemoriais. Esse mito foi até mesmo citado por Platão em O Banquete. Na mitologia grega, os seres andróginos eram geralmente caracterizados por possuir elementos do
Sol (masculino) e da Lua (feminina) em um corpo e alma entrelaçados. Os alquimistas
acreditavam que os seres andróginos eram divinos e detinham a capacidade de afastar o
mal. Eram frequentemente mostrados derrotando serpentes, dragões e até mesmo o demônio. Certas tradições ocultas referem-se a Adão como sendo um ser andrógino, cuja
“queda da graça” teria sido marcada exatamente pela sua divisão em sexos separados. A
Redenção ocorre quando a dualidade de sexos é transcendida e macho e fêmea são novamente reunidos num todo pleno e harmonioso. No ocultismo, o orgasmo simboliza o andrógino místico, que momentaneamente reúne almas separadas e traz os participantes de
volta para mais perto do “Absoluto”. A androginia tornou-se um tema muito popular em
399
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
textos alquímicos após a publicação do poema Sol e Lua no Rosarium Philosophorum, em
1550, um dos primeiros livros contendo imagens alquímicas. Outro fator de popularidade
da androginia como tema recorrente entre os alquimistas deve-se ao fato de que Hermes
(o deus grego da viagem e do submundo) tinha um filho hermafrodita.
ANDRÓGENO (do grego andros=homem e geno=gerador) – designação genérica dos hormônios masculinos e/ou das substâncias masculinizantes. Obs.: a palavra é usada mais
frequentemente no plural. Exemplo: hormônios andrógenos e antiandrógenos.
ANDRÓGINO (ou bigênero; do grego andros=homem e gino=mulher) – indivíduo que
apresenta, simultaneamente, características físicas e comportamentos de homem e de
mulher, obscurecendo ou eliminando, por assim dizer, a rígida divisão social existente
entre o gênero masculino e o gênero feminino. A imprecisão do andrógino pode ser considerada uma condição psíquica em que o indivíduo não se identifica nem como homem
nem como mulher, mas como os dois, como uma espécie de gênero híbrido entre os dois
ou como nenhum dos dois. Para ressaltar sua dualidade psíquica, o andrógino pode adotar
corte de cabelo, penteado e modos inteiramente dúbios, usando vestuário e adereços
femininos, no caso de homens, ou masculinos, no caso de mulheres. Isso torna muito
difícil definir a que gênero pertence uma pessoa andrógina pertence apenas pela sua
aparência. Paralelamente a isso, muitos andróginos podem apresentar também traços e
características físicas do sexo oposto ao seu, o que acentua ainda mais a sua androginia.
Não devem, contudo, ser confundidos com indivíduos intersexuados (conhecidos como
hermafroditas no passado), que são aqueles que nascem com os dois órgãos genitais (pênis e vagina). Como acontece com todo o segmento transgênero, também os andróginos
são considerados como homossexuais (ou bissexuais) pela maioria das pessoas, o que não
é verdade. A androginia (como o travestismo ou o crossdressing) é uma expressão de
gênero, nada tendo a ver com orientação sexual (ou identidade sexual). Pessoas andróginas (assim como travestis, crossdressers ou dragqueens) podem ter orientação homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual. O andrógino foi considerado uma figura sagrada em diversas culturas ancestrais, como os berdaches, (two-spirit people) entre os nativos da América do Norte e Central e os bissu, do Sulawesi. Shiva Ardanarishvara, representação andrógina de Shiva (metade homem/metade mulher) é uma das entidades mais
fortemente cultuadas na religião hindu.
Obs.: cuidado com a grafia de “andrógeno”, que significa praticamente o oposto de andrógino.
AQUÉ (do bajubá) – dinheiro, grana.
ARMÁRIO (inglês: closet) – em analogia ao local físico onde se guarda roupas e calçados, o
termo refere-se ao “estado de ocultação e resguardo”, extremamente penoso e desconfortável, em que pessoas transgêneras permanecem até assumirem sua condição para um
número maior de pessoas. Em virtude do forte estigma e consequentes represálias sociais
a homens que se travestem, pode-se supor que a maioria absoluta dos transgêneros M2F
passarão a vida inteira “trancados” em seus armários, vivendo em clima de grande sofrimento e ansiedade.
ARMARIZADO (inglês closeted) – neologismo derivado de armarizar, também um neologismo, significando estar ou permanecer no armário. Diz-se da pessoa LGBT que está ou
que permanece no armário, sem poder ou sem querer revelar ao mundo a sua condição.
ASSEXUAL – diz-se da pessoa sexualmente inativa, que não sente atração sexual por ninguém, nem do sexo oposto nem do próprio sexo, sendo, portanto, completamente desinteressada em participar de qualquer tipo de atividade sexual. Pessoa totalmente indiferente
a sexo, que não tem atração física ou romântica nem por machos nem por fêmeas.
AUTOGINEFILIA (ou autoginecofilia) – o termo autoginecofilia, que significa literalmente
“amor (atração) a si mesmo como fêmea”, foi criado por Ray Blanchard, na época psicólogo clínico do Clarke Institute of Psychiatry, em Toronto, Canadá, com o objetivo, segundo
400
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
ele, de aprimorar os critérios de classificação das pessoas transgêneras. Partindo do fator
“excitação sexual”, Blanchard dividiu a população transgênera em dois grupos aos quais
denominou, respectivamente, de autoginefílico (ou autoginecofílico) e androfílico. (veja
androfilia e orientação sexual).
B
Nem pagando ponho óculos escuros!
Óculos escuros é coisa de bicha.
Eu sou um roqueiro macho.
Nelson Gonçalves
BAJUBÁ (ou pajubá) – língua baseada em diversas idiomas e dialetos africanos (nagô,
ioruba, quimbundo, kikongo, umbundo, egbá, ewe e fon), usada inicialmente em terreiros
de candomblé e posteriormente adotada como forma de comunicação entre travestis de
rua, que acabou se estendendo a todo o universo LGBT no Brasil.
BERDACHES (ou, em inglês, two spirit people= pessoa de dois espíritos) – datam de 1530
os primeiros relatos de colonizadores europeus dando conta da existência de gêneros
alternativos na maioria dos povos nativos norte-americanos. Embora as inúmeras variantes e peculiaridades dos gêneros alternativos identificados pelos europeus, seus representantes foram genericamente denominados de berdaches, vocábulo provavelmente derivado de bardaj, termo utilizado na Pérsia para designar homens afeminados e parceiros
sexuais passivos. Sociologicamente o berdache poderia ser descrito como uma solução
elegante e generosa para acolher indivíduos desadaptados à dualidade masculino/ feminino. Contudo, muito além de solução respeitosa para o possível impasse institucional
criado por homens considerados “covardes”, relativamente aos padrões de gênero vigentes na tribo, os berdaches constituíram um segmento de pessoas tidas como abençoadas
pelos deuses. Por serem, ao mesmo tempo, homem e mulher e, portanto, estarem mais
completos e equilibrados do que um homem ou uma mulher isoladamente, os nativos
norte-americanos acreditavam (e seus remanescente ainda acreditam) que a identidade
berdache fosse o resultado da intervenção de forças sobrenaturais, de onde viriam seus
“poderes especiais”, mito sancionado pela mitologia tribal, que os tornou conhecidos
como “possuidores de dois espíritos”. Os berdaches sobreviveram até hoje em muitas
comunidades nativas norte-americanas devido à sua importância dentro da tribo, onde
sempre desempenharam, dentre outros, os papéis de aconselhadores espirituais, médicos,
adivinhos e xamãs. Embora isso já não seja mais tão comum hoje em dia, no passado os
berdaches masculinos podiam também desempenhar papéis dentro do grupo familiar,
atuando como esposas dos guerreiros, posição social em que recebiam o mesmo tratamento dado às mulheres casadas. Berdaches masculinos foram localizados em mais de
155 tribos norte-americanas. As únicas exceções documentadas foram os apaches e comanches. Em aproximadamente um terço desses grupos, um gênero alternativo também
existiu para fêmeas que desenvolveram um estilo de vida masculino, tornando-se caçadores, guerreiros e chefes. Elas também foram muitas vezes chamadas pelo mesmo nome de
berdaches e às vezes através de um termo distinto, constituindo, dessa forma, um quarto
gênero. Assim, “o terceiro gênero” geralmente refere-se a berdaches masculinos e às ve-
401
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
zes a berdaches masculinos e femininos, enquanto “o quarto gênero” sempre se refere a
berdaches femininos. Em muitas culturas tribais, os xamãs mais potentes eram “indivíduos de dois espíritos”, como dá conta o testemunho de muitos pesquisadores em seus
estudos de campo. Mesmo quando os xamãs não eram necessariamente “pessoas de dois
espíritos”, os pesquisadores os descrevem como possuindo a marca da transgeneridade,
além de terem orientação sexual basicamente homo ou bissexual. Nesses casos, a distinção entre o xamã e o berdache era semelhante à distinção entre um mago poderoso, capaz
de conjurar as forças da natureza e a de um sacerdote dedicado, um mediador, um líder
dos rituais, um cuidador ou um “revelador de verdades”. Os nativos das Américas não só
toleravam como respeitavam a transgeneridade como uma manifestação sagrada. A homofobia e a transfobia foram trazidos para as Américas pelo colonizador europeu e sua
moral judaico-cristã. Em virtude da sua crença religiosa, os europeus que vieram conquistar a América perseguiram os berdaches implacavelmente. Vasco Nunes de Balboa, por
exemplo, ao descobrir alguns berdaches no lugar onde hoje fica o Panamá, lançou-os vivos
aos seus cães, para ser devorados.
BDSM – acrônimo representando um conjunto de práticas sexuais relacionadas a dominação e submissão, criado a partir de:
- B&D – Bondage & Discipline, ou seja, escravidão e disciplina
- D&S – Dominance & Submission, ou seja, dominação e submissão
- S&M – Sadomasochism, ou seja, sadomasoquismo.
BIBA – homossexual masculino. É uma forma mais carinhosa do que bicha, viado ou boiola. Empregada geralmente na forma feminina: a biba.
BICHA (também usada na forma diminutiva: bichinha) – designação genérica de caráter
ofensivo dada, depreciativamente, a qualquer indivíduo que não se comporta estritamente de acordo com os rígidos padrões de conduta do gênero masculino. Um indivíduo pode
ser chamado de “bicha” pelo simples fato de estar usando uma roupa diferente ou apaixonar-se por uma mulher de maneira romântica. “Coisa de bicha”: diz-se de qualquer atitude, indumentária ou procedimento que a sociedade machista (incluindo uma grande maioria de mulheres conservadoras) considera “fora” dos vetustos padrões de conduta que
ainda vigoram para o gênero masculino. Pelo seu caráter pejorativo, o termo bicha equivale ao termo “queer” nos EUA. Nota: o termo “bicha” é comumente usado de maneira carinhosa entre pessoas LGBT com as quais se tem maior intimidade. (veja viado).
BIGÊNERO – o mesmo que andrógino.
BISSEXUAL (ou simplesmente bi) – diz-se da pessoa que tem atração sexual tanto por
indivíduos do mesmo sexo quanto pelos do sexo oposto. Pessoa que tem atração física
e/ou romântica tanto por machos quanto por fêmeas, indistintamente.
BOFE – na gíria LGBT refere-se ao homem em geral, não necessariamente heterossexual.
BOIOLA – designação pejorativa, de natureza depreciativa e homofóbica, dada a homossexuais do sexo masculino e, por extensão, a qualquer homem que se comporte de maneira “suspeita” tendo em vista os padrões de conduta masculina estabelecidos pela sociedade. (veja bicha, viado).
BOMBADEIRA – pessoa com prática, em geral travesti, na aplicação clandestina de silicone industrial para fazer o corpo de outras travestis. Trata-se de um recurso perigosíssimo,
capaz de provocar sérios danos ao organismo das pessoas que foram “bombadas”.
BONECA – travesti atuando na indústria do sexo, geralmente veiculada em anúncios como
“boneca transex”.
402
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
C
Crossdressing não é algo que a gente é, mas algo que a gente faz,
e faz motivadas pelas mais diversas razões.
Virginia Prince
CAÔ (ou caó) – mentira, embuste, tramoia.
CHAUVINISMO MASCULINO – Veja machismo.
CIRURGIA DE REAPARELHAMENTO GENITAL (inglês SRC: Sex Reassignment Cirurgy) –
a única “cura” proposta pela medicina para os casos crônicos de GID (Gender Identity
Disphoria, no DSM V ou Gender Identity Disorder até o DSM-IV). Trata-se da intervenção
cirúrgica, vulgarmente conhecida como “operação para mudança de sexo”, mediante a
qual se busca retificar o sexo de nascimento de uma pessoa transexual de modo a fazê-lo
concordar com a sua identidade de gênero. Existem duas categorias de cirurgias de redesignação sexual: a) cirurgias de reconstrução genital - que se referem especificamente ao
aparelho genital (por excelência são a vaginoplastia e a faloplastia); b) cirurgias feminilizantes ou masculinizantes - que se referem à adequação de características sexuais secundárias (como a mamoplastia ou a cirurgias faciais). Nota – A Comunidade Transgênera
Norte-Americana passou a considerar essa denominação inapropriada (e até ofensiva). A
denominação politicamente correta hoje em dia é “cirurgia de confirmação de gênero”
(gender confirmation cirurgy).
CISGÊNERO (do grego cis = em conformidade com; conforme + gênero) – a pessoa que se
encontra bem ajustada ao rótulo de identidade de gênero (mulher ou homem) que recebeu ao nascer em função do seu órgão genital (macho ou fêmea). Indivíduos cisgêneros
estão de acordo, e normalmente se sentem confortáveis, com os códigos de conduta (incluindo vestuário) e papéis sociais atribuídos ao gênero a que pertencem, ao contrário de
indivíduos transgêneros que, de muitas e variadas formas, se sentem desajustados em
relação aos rótulos de gênero que originalmente receberam ao nascer. Nota 1: cisgênero
não é identidade, mas a condição sociopolítica-cultural da pessoa que vive em plena conformidade com a classificação de gênero – homem ou mulher – recebida ao nascer em
razão da sua genitália de macho ou de fêmea. Nota 2: só pelo fato de estarem bem adaptados aos gêneros que receberam ao nascer, não significa que indivíduos cisgêneros tenham, automaticamente, orientação heterossexual como acreditaria o senso-comum. Eles
podem ter diferentes tipos de orientação sexual: hétero, bi, assexual e homossexual, a
mesma coisa acontecendo no campo transgênero. A crença generalizada é de que toda
pessoa cisgênera é necessariamente heterossexual, da mesma forma que toda pessoa
transgênera é vista necessariamente como homossexual, o que não é verdade.
CISSEXISMO (do inglês cissexism) – discriminação, de natureza transfóbica, que ocorre no
nível estrutural da sociedade. Essa é a forma de segregação de pessoas transgêneras que
existe nas leis, políticas e valores no nível macrossocial, assim como nas práticas que
privilegiam pessoas cisgêneras sobre pessoas transgêneras ou gênero-divergentes. O
cissexismo pode ser considerado como o conjunto de atitudes e comportamentos que
normalizam e valorizam pessoas cisgênero em detrimento de pessoas transgênero, em
403
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
normas oficiais de gênero, como acontece com a maioria cisgênera da população, as pessoas transgêneras se caracterizam por afrontar ou violar essas normas de muitas e de
variadas maneiras, praticando delitos que vão desde faltas muito superficiais, como vestir-se, eventualmente, com roupas culturalmente designadas para uso exclusivo do gênero
oposto ao delas, até atos que poderiam ser classificados como de total insubmissão à
ordem binária de gêneros, como o total repúdio ao enquadramento de gênero recebido ao
nascer (e a consequente busca pelo reenquadramento na categoria de gênero oposta
àquela na a qual a pessoa foi enquadrada ao nascer). Por constituir transgressão das normas do sistema binário de gênero, normas que são a base e o fundamento de toda a nossa
fabulosa estrutura sociopolítica e cultural, a condição transgênera tem sido historicamente proscrita, estigmatizada e invisibilizada pela sociedade.
UÓ (do bajubá) – pessoa, coisa ou situação feia, ruim, desconfortável, desagradável, aborrecida, etc. Termo usado frequentemente na expressão “uó do borogodó”.
V
VIADO (e não “veado”) - termo com o qual no Brasil são largamente designados machos
homossexuais e, por extensão, transgêneros em geral, como CDs, travestis, transformistas,
dragqueens e transexuais, dentre outros. O termo pode ter se originado da redução da
palavra “transviado” (que ou aquele que se transviou), de uso comum no Brasil, na década
de 1950, para designar um jovem transgressor de costumes e normas de conduta social
(ver bicha).
432
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Bibliografia Geral
ADELMAN, Μiriam. Reviews: Gender Matters: Malcolm Barnard, ed., Fashion Theory: A Reader.
International Sociology, 23, 2008, 735 – 739.
______________________. Paradoxos da identidade: a política de orientação sexual no século XXI. Revista
Sociologia Política, Curitiba, 14 : p. 163 - 171, jun. 2000.
ADELMAN, Μiriam; RUGGI, Lennita. Sociología contemporânea y el cuerpo. In Sociopedia, Isa, 2013a.
ADELMAN, Μiriam; RIAL, C. Uma trajetória pessoal e acadêmica: entrevista com Raewyn Connell.
Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril de 2013b.
ADELMAN, Μiriam; AJAIME, Emmanoelle; LOPES, Sabrina Bandeira; SAVRASOFF, Tattiana. Travestis
e transexuais e os outros: identidade e experiências de vida. In: Gênero, v. 4, n. 1, p. 65-100, Niteroi,
2º sem., 2003.
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Outra Travessia (Revista de Pós-Graduação em Literatura) nº5. UFSC, Florianópolis, 2005.
ANESHENSEL, Carol S.(ed.) ; PHELAN, Jo C. (ed.). Handbook of the Sociology of Mental Health. New
York : Springer, 1999.
APA–American Psychological Association. Answers to your Questions About Transgender People,
Gender Identity and Gender Expression. Washington-DC : American Psychological Association, 2011.
ARCHER, John and LLOYD, Barbara Bloom. Sex and gender. New York : Penguin, 1982
BABIE, Earl. The practice of Social Research. Belmont-CA : Wadsworth, 2007.
BANDURA, Albert. Social Learning Theory. Englewood Cliffs, NJ : Prentice-Hall, 1977.
BANDURA, Albert; AZZI, Roberta Gurgel; POLYDORO, Soely Aparecida. Teoria Social Cognitiva: Conceitos básicos. Porto Alegre : Artmed, 2009.
BARSTOW, Anne Llevellyn. Witchcraze – A new history of the european witch hunts. San FranciscoCA : Pandora, 1994.
BARTHES, Roland. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis : Vozes, 1976.
BASTIDE, Roger. Sociologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Editora Anhambi, 1959.
BAUMEISTER, R. F. Gender and erotic plasticity: sociocultural influences on the sex drive. Sexual and
Relationship Therapy Vol. 19, No. 2, May 2004.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Vol. II: A Experiência Vivida. São Paulo : Difusão Europeia do
Livro, 1967.
BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.
BEM, Sandra Lipsitz. The Lenses of Gender: Transforming the Debate on Sexual Inequality. New
Haven-CT : Yale University Press, 1994.
BEEMYN, Genny. A Presence in the Past: A Transgender Historiography. Journal of Women's History,
Volume 25, Number 4, pp. 113-121, 2013.
BELL, David ; BINNIE, Jon. The sexual citizen : queer theory and beyond. Cambridge-UK : Polity Press,
2000.
BELL, Q. On Human Finery. London: Hogarth Press, 1976.
BELL, Diane; CAPLAN, Patricia Wazir; KARIM, Jahan Begum. Gendered Fields: Women, Men, and
Ethnography. New York & London: Routledge, 1993.
BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro : Editora
Garamond, 2005.
BENEDICT, Ruth. Anthropology and the Abnormal. Journal of General Psychology, 10, 1934, p. 59-80.
433
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo: Sexualidade e Gênero na Experiência Transexual. Rio de
Janeiro : Garamond, 2006.
BERDAHL, Jennifer L. The sexual harassment of uppity women. Journal of Applied
Psychology, 92, 425–437.
BETTCHER, Talia; GARRY, Ann. Introduction. In: Hypatia - Special Issue: Transgender Studies and
Feminism: Theory, Politics, and Gendered Realities 24 (3), 2009.
BICCHIERI, Cristina. The Grammar of Society: the Nature and Dynamics of Social Norms, New York:
Cambridge University Press, 2006.
BLAIKIE, Norman. Designing Social Research. Cambridge-UK : Polity Press, 2009.
BOCKTING, Walter O. Transgender Coming Out: Implications for the Clinical Management of Gender
Dysphoria. In: BULLOUGH, Vern; BULLOUGH, Bonnie; ELIAS, James (eds.). Gender Blending. AmherstNY : Prometeus Books, 1997.
BOLÍVAR, A. Profissão Professor: o itinerário profissional e a construção da escola. Porto Alegre :
EDIPUCRS, 2001.
BORGATTA, Edgar F. (ed.); MONTGOMERY, Rhonda J. V. (ed.). Encyclopedia of Sociology. New York :
Mc Millan, 2000.
BORNSTEIN, Kate. Gender Outlaw: On Men, Women and the Rest of Us. New York: Routledge. 1994.
_____________________. My Gender Workbook. New York : Routledge, 1998.
_____________________. Gender Terror, Gender Rage. In STRIKER, Susan; WHITTLE, Stephen. The
Transgender Studies Reader. New York : Routledge, 2006.
BOSWELL, Holly. The Transgender Alternative [1991]. In Transgender Tapestry #98, Summer 2002.
BRIDGES, George S.; DESMOND, Scott A. Deviance Theories. In: BORGATTA, Edgar F.; MONTGOMERY,
Rhonda J. V. (ed.). Encyclopedia of Sociology, vol.1. NY : Macmillan, 2000.
BRIERLEY, Harry. Transvestism: A handbook with case Psychologists and Counsellors. Oxford-UK :
Pergamon Press, 1979.
BRUM, ELIANE. Meus desacontecimentos – A história da minha vida com as palavras. São Paulo : Leya
Brasil, 2014.
BRUNER, J. Atos de significação. Porto Alegre: Artmed, 1997.
BULLOUGH, Vern L. Homosexuality, a History. New York : New American Library, 1979.
BULLOUGH, Vern; BULLOUGH, Bonnie. Crossdressing, sex and gender. NY : Penguin, 1993.
BULLOUGH, Vern; BULLOUGH, Bonnie; ELIAS, James (eds.). Gender Blending. Amherst-NY : Prometeus Books, 1997.
BUTLER, Judith. Bodies That Matter. New York : Routledge, 1993.
__________________. Critically Queer. In Playing with Fire: Queer Politics, Queer Theories. Ed. Shane
Phelan. New York & London: Routledge.11-29, 1990a.
___________________. Cultural Identity and Diaspora. In Rutherford J. (org.). Identity. London : Lawrence
& Wishart, 1990.
___________________. Gender Performance: The TransAdvocate interviews Judith Butler by Cristan Williams, May 1, 2014. Disponível em http://www.transadvocate.com/ gender-performance-thetransadvocate-interviews-judith-butler_n_13652.htm. Acessado em 29-05-2014.
___________________. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York & London:
Routledge, 1990b.
___________________. Gender Trouble - Feminism and the Subversion of Identity. New York and London :
Routledge, 1999.
___________________. Imitation and Gender Insubordination. In ABELOVE, Henry; BARALE, Michele Aina;
HALPERIN, David M. (ed.). The Lesbian And Gay Studies Reader. New York : Routledge, 1993.
___________________. La cuestión de la transformación social. In: BECK-GERNSHEIM, Elisabeth; BUTLER,
Judith ; PUIGVERT, Lidia. Mujeres y Transformaciones Sociales. Barcelona : El Roure Editorial, 2001.
434
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
WALKER, Barbara. The Woman’s Encyclopedia of Myths and Secrets. New York : Harper & Row,
1983.
WALTERS, Suzanna Danuta. All the Rage: The Story of Gay Visibility in America. Chicago : University
of Chicago Press, 2003.
WEEKS, Jeffrey. O Corpo e a Sexualidade. In LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. in
LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado - Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte : Autêntica, 2000.
_________________. Sexuality. New York : Routledge, 1986.
WELLER, Vivian. A hermenêutica como método empírico de investigação. Caxambu/MG. XXX Reunião
Anual da ANPED. GT Filosofia, 2007.
WEST, Candace and ZIMMERMAN, Don. Doing gender. Gender and Society, June ,1987, 1(2):125–151.
WIDE, Oscar. De Profundis. Phoenix-Library.org, 2001.
WILLIAMS, Kipling D.; FORGAS, Joseph; von HIPPEL, William. The social outcast: ostracism, social
exclusion, rejection and bullying. New York : Psychology Press, 2005.
WOOLF, Virginia. Orlando. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1978.
YOUNG, Lisa. Out of the closets, into the streets. In Womenspeak, nov, 19, 1979. Disponível em
http://newspaperarchives.vassar.edu/cgi-bin/vassar?a=d&d=Womanspeak 19791119-01.2.21.
Acessado em 14-06-2014.
445
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
Notas
THURER, 2005, p. 67.
BRUM, 2014, p. 111.
3 Viado (com “i”) é a forma mais comum de designação (chula) do homossexual masculino, ou gay, no
Brasil (VIP, A.; LIB, F. 2006). Penso equivaler perfeitamente ao “queer” na língua inglesa. (N. da A.)
4 Refrão da música Walk in the wild side, de Lou Reed, do Velvet Underground, em que ele faz
uma espécie de apologia às mulheres transgêneras que fizeram parte, como ele próprio fez, do projeto “pop-libertário” de Andy Wharol. A letra da música faz alusão direta a cada uma dessas mulheres
trans, inclusive da mais famosa delas, Candy Darling: “Holly came from Miami, FLA / Hitch-hiked her
way across the USA / Plucked her eyebrows on the way / Shaved her legs and then he was a she / She
says, “Hey, babe / Take a walk on the wild side”/ She said, “Hey, honey/ Take a walk on the wild side /
Candy came from out on the Island / In the backroom, she was everybody”s darlin” / But she never lost
her head / Even when she was giving head / She says, “Hey, babe / Take a walk on the wild side” / Said,
“Hey, babe / Take a walk on the wild side”/ And the colored girls go doo do doo do doo”
5 Cissexismo: discriminação transfóbica de natureza estrutural que ocorre no próprio nível estrutural/institucional da sociedade. Essa forma de discriminação existe nas leis, políticas públicas, valores
morais e práticas da vida diária, privilegiando pessoas cisgêneras sobre pessoas transgêneras. O
cissexismo está também relacionado ao conjunto de atitudes e comportamentos que valorizam e
normatizam as pessoas cisgêneras, ao mesmo tempo em que mantêm invisíveis as pessoas transgêneras, tratando-as como inferiores e sociodesviadas (GROLLMAN, Eric. What Is Transphobia? And,
What Is Cissexism. Disponível em http://kinseyconfidential.org/transphobia/. Acessado em 02-032014).
6 Weber foi longe demais na defesa da neutralidade axiológica, recomendando que os professores ficassem restritos a apresentações estritamente científicas, abstendo-se inteiramente de expressar quaisquer tipos de comentários de natureza moral. Em seu texto clássico sobre neutralidade
axiológica (1917), enfatizou que o cientista social jamais deveria fazer doutrinação moral fingindo
estar apresentando ciência empírica pura. Quando as teorias sociais são cotejadas com a prática,
juízos de valor são necessariamente requeridos. Tais julgamentos não são proposições científicas de
natureza empírica mas apreciações críticas da realidade, baseadas em valores morais. Strauss (1953)
levantou uma objeção importante contra o imperativo de neutralidade axiológica weberiano dizendo
que se os juízos de valor não são científicos, então eles não são baseados na razão sendo, portanto,
arbitrários. Mas se juízos de valor são arbitrários, por que deveríamos obedecê-los? Dessa forma, por
que os cientistas sociais deveriam respeitar o imperativo moral da neutralidade axiológica? Além
disso, se os valores são arbitrários, a atividade científica também o é, uma vez que requer uma série
de juízos de valor nas suas formulações. Em outras palavras, se a base lógica da neutralidade axiológica for aceita, então a base racional para a formulação de juízos de valor é prejudicada e, consequentemente, a atividade científica se torna totalmente arbitrária. O ideal de neutralidade deveria proteger a ciência da interferência indevida de juízos de valor, que resultem na invalidação da própria
ciência, uma vez que a seleção de problemas científicos e a utilização prática da ciência são puramente arbitrários. De acordo com Strauss, a fim de evitar essas posições niilistas os fundamentos da
neutralidade axiológica devem ser questionados, e deve-se admitir que uma ciência dos juízos de
valor, ou seja, uma ciência da moral, é possível. (N. da A.)
7 BORNSTEIN, 1998, p. 5.
8 FREUD, 1933.
9 BEAUVOIR, 1967, p. 9.
10 Em 2008, Thomas Beattie, que nasceu mulher, mas depois de cirurgia e tratamento hormonal
passou a viver como homem, deu a luz a uma menina em um hospital do Oregon, nos EUA. Em janeiro
de 2014, o transexual Alexis Taborda, 27, que nasceu mulher, foi o primeiro homem a dar à luz na
Argentina. Casado oficialmente com a também transexual Karen Bruselario, nascida homem, para
engravidar ele aceitou parar o tratamento hormonal que fazia para ter feições masculinas. (N. da A.)
11 THURER, 2005, p. 3.
12 THURER, 2005, p. 1.
1
2
446
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
STONE, 2006, p. 230.
FORREST, Susan. Transgender Studies Faculty Cluster Hire at University of Arizona. Posted on
August 30, 2013. Disponível em http://www.learningtrans.org . Acessado em 22-06-2014.
15 If queer theory was born of the union of sexuality studies and feminism, transgender studies can be
considered queer theory’s evil twin: it has the same parentage but willfully disrupts the privileged
family narratives that favor sexual identity labels (like gay, lesbian, bisexual, and heterosexual) over
the gender categories (like man and woman) that enable desire to take shape and find its aim
(STRYKER, 2004, p. 1).
16 HUFFPOST GAY VOICES. University of Arizona Helps Transgender Studies Take a Bold Leap Forward. Posted: 09/04/2013 5:01 pm. Disponível em http://www.huffingtonpost.com/mitchkellaway/university-of-arizona-transgender-studies_b_3854427.html. Acessado em 21-09-2013.
17 FREUD, Collected Writings, 1924.
18 WEST & ZIMMERMAN, 1987.
19 BUTLER, 1990.
20 SCOTT, 1995, pp. 71-99.
21 Segundo Agamben, para Foucault dispositivo: 1) É um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e não linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios,
leis, medidas de segurança, proposições filos6ficas, etc. a dispositivo em si mesmo e à rede que se
estabelece entre esses elementos. 2) 0 dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se
inscreve sempre em uma relação de poder. 3) É algo de geral (um reseau, uma "rede") porque inclui
em si a episteme que, para Foucault, é aquilo que em uma certa sociedade permite distinguir o que é
aceito como um enunciado científico daquilo que não é científico (AGAMBEN, 2005, p. 9).
22 Segundo o Dicionário Houaiss, “que perdeu ou teve alteradas as qualidades próprias de sua espécie
(diz-se do ser vivo); abastardado”. (N. da A.)
23 KAPLAN & GREWAL, 2006, p. 32.
24 MEAD, 2000, p. 47.
25 WEEKS, 2000, p. 29.
26 MOORE, 1997, p. 813.
27 FAUSTO-STERLING, 2000. pp. 40–78.
28 FAUSTO-STERLING, 2000, pp. 40–78.
29 FAUSTO-STERLING, 1985, p. 8.
30 Obra sem tradução para o português (N. da A.)
31 FAUSTO-STERLING, 2000, p. 3.
32 FAUSTO-STERLING, 2000, p. 5
33 LIPKIN, 1999, p. 74.
34 KAPLAN & GREWAL, 2006, p. 32.
35 GIDDENS, 2005, p. 105.
36 BUTLER, 1990b, p. 273.
37 CONNELL, 1987, p. 132.
38 LAURETIS, 1994, p. 208.
39 LAURETIS, 1994, p. 207.
40 RUBIN, 1975, p. 159.
41 LAURETIS, 1994, p. 212.
42 Sobre a noção de desconstrução, ver o trabalho de Jonathan Culler, Sobre a Desconstrução: teoria e
crítica do pós-estruturalismo.
43 BUTLER, 1990b, p. 276.
44 BUTLER, 1990a, p. 7.
45 BUTLER, 1990b, p. 2.
46 BUTLER, 2001, p. 22.
47 BUTLER, 1997, pp. 19-20.
48 BUTLER, 1999, p. 43.
49 BUTLER, 1990a, p. 138.
50 BUTLER, 2004, p. 127.
51 BUTLER, 1990b.
52 BUTLER, 1997, p. 61.
13
14
447
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
BUTLER, 2001, p. 22.
VALENTINE, 2000, p. 25.
55 O termo cisgênero tem circulado na Internet pelo menos desde 1994, quando apareceu no
alt.transgendered usenet em um correio enviado por Dana Leland Defosse. Nele, Defosse não define o
termo e parece assumir que os leitores já estão familiarizados com ele. A cunhagem do termo, segundo ela, deve ser atribuída a Carl Buijs, um homem transexual da Holanda, que usou o termo em diversas publicações suas na Internet. Buijs afirmou mais tarde, em outro correio, que “quanto à origem do
termo, eu apenas o compus e coloquei em uso”. (N. da A.)
56 Fontes adicionais utilizadas na elaboração da lista de privilégios cisgêneros:
www.amptoons.com/blog/archives/2006/09/22/the-non-trans-privilege-checklist;
www.geocities.com/girlinside123/privilege.html; www.tgboards.com/articles/privilege/.
57 O Midia Reference Guide da GLAAD está disponível on line e pode ser acessado para download em
http://www.glaad.org/publications/reference.
58 Disponível em http://www.apa.org/topics/lgbt/transgender.aspx; acesso em 14-09-13.
59 FEINBERG, 1997.
60 Literalmente “o caminho da mulher”, na língua falada em Samoa. (N. da A.)
61 A lista com o nome desses países está disponível em http://76crimes.com/76-countries-wherehomosexuality-is-illegal/
62 "Não haverá traje de homem na mulher, e nem vestirá o homem roupa de mulher; porque, qualquer que faz isto, abominação é ao SENHOR teu Deus" (Deuteronômio 22:5)
63 Veja, p. ex., o excelente trabalho de Riane Eisler, O Cálice e a Espada, onde esse tema é exaustivamente trabalhado. (N. da A.)
64 BULLOUGH & BULLOUGH, 1997, p. 213.
65 BULLOUGH, 1993, pp. 204-207.
66 BULLOUGH, 1993, pp. 204-207.
67 Magnus Hirschfeld, Die Transvestiten: Eine Untersuchung uber den erotischen Verkleidungstrieb
milanfangreichem casuistuchen und historischen Material (Leipzig: Max Spohr, 1910). For an English
translation, see Transvestites: The Erotic Drive to Cross Dress, trans. Michael Lombardi-Nash (Buffalo, NY: Prometheus Books, 1991).
68 HIRSCHFELD, 2003.
69 BULLOUGH, 1993, pp. 207-215.
70 O Segundo trabalho clássico a respeito de travestismo (crossdressing) foi escrito por Havelock
Ellis, Eonism and Other Supplementary Studies (Philadelphia: F. A. Davis, 1928) e publicado como o
volume 7 dos seus Studies in the Psychology of Sex. Embora esse trabalho estivesse disponível há
muito tempo e fosse frequentemente citado pelos seus estudos de caso, seus pressupostos e fundamentos teóricos foram ignorados pela maioria dos pesquisadores americanos sobre o tema até a
década de 1970, quando houve uma reavaliação de sua contribuição (BULLOUGH and BULLOUGH,
1993, p. 368).
71 BULLOUGH, 1993, pp. 207-215.
72 Havelock Ellis, Eonism and Other Supplementary Studies, vol. 6 in Studies in the Psychology of Sex
(Philadelphia: F. A. Davis, 1926). O caso D’Eon é tratado em detalhes no capítulo 6.
73 STEKEL, W. Sexual Aberrations: The Phenomenon of Fetishism in Relation to Sex (translated from
the 1922 original German edition by S. Parker ed.). Liveright Publishing.
74 CALIFIA, 2003; HILL, 2007.
75 A polêmica envolvendo Rupall e o Movimento Transgênero foi amplamente explorada pela imprensa norte-americana. Ver, por exemplo, “RuPaul”s “tranny” debate: the limits and power of language”, May 27 2014. Disponível em http://theconversation.com/
rupauls-tranny-debate-the-limits-and-power-of-language-27220.
76 STONE, 1993.
77 RAYMOND, 1979.
78 Em 1998, Leslie Feinberg descreveu o “Trans liberation movement” como algo que vinha “varrer o
palco da história”: “we are again raising questions about the societal treatment of people based on
their sex and gender expression. This discussion will make new contributions to human consciousness. And trans communities, like the women’s movement, are carrying out these mass conversations
with the goal of creating a movement capable of fighting for justice of righting the wrongs. We are a
53
54
448
O CORPO DA ROUPA
Letícia Lanz
adas. A partir dessa pesquisa, eu tive meios para exercer um monitoramento discreto da evolução das
histórias pessoais de cada associada. (N. da A.)
267 WILDE, 2001, p. 16.
268 Por “pista” se entende genericamente o local de trabalho das travestis de rua, seja ele rua, avenida,
beco, praça, hotel, motel ou qualquer outro local onde os clientes podem ser encontrados. (N. da A.)
269 Ver LIMA, 2010; DUQUE, 2008; JAYME, 2004.
270 NASIO, 1995, p. 13.
271 “Identity categories tend to be instruments of regulatory regimes, whether as the normalizing
categories of oppressive structures or as the rallying points for a 1iberatory contestation of that very
oppression” (BUTLER, 1993, p. 308).
272 Miriam Adelman confirma essa observação: “pensamos que elas ocupam posições tanto dentro
como fora da ordem de gênero hegemônica da nossa sociedade. Fora, porque rompem com normas
sobre quem pode ser considerado homem ou mulher, masculino ou feminino. Dentro porque também
reproduzem ou ficam presas a dicotomias preestabelecidas” (ADELMAN, 2003, p. 92).
273 Essa perspectiva é apresentada por Miskolci e Pelúcio: “infelizmente, algumas pesquisas se apropriam de conceitos butlerianos, mas os distorcem por meio de uma concepção voluntarista do sujeito.
Nestes estudos, é como se o sujeito pudesse, por simples vontade, decifrar e moldar a realidade social
e histórica segundo seus desejos individuais. Isto se volta contra a visão da própria autora, para a
qual é claro o caráter distinto da realidade e o que dela poderia ser criado. A prática teórica permite
apontar o que pode ser modificado socialmente, mas apenas por meio de uma crítica do gênero como
uma modalidade de regulação das identidades. Neste sentido, a análise não pode inferir dos sujeitos –
além de seus desejos conflituosos com a ordem de gênero vigente – um plano ou mesmo a capacidade
de romper com as normas socialmente impostas. Pode, isto sim, apontar formas de subjetivação que
resistem de maneira a constituir sujeitos singulares, seres que produzem diferenças” (Miskolci, R.
Pelúcio, Larissa. Fora do sujeito e fora do lugar: Reflexões sobre performatividade a partir de uma
etnografia Entre travestis. Niterói, Revista Gênero, v. 7, n. 2, p. 255-267, 1. sem. 2007 pg. 255).
274 FOUCAULT, 1995, p. 243.
275 A polêmica Conchita Wurst, vencedora do Eurovision 2014, é a persona artística de Tom Neuwirth, cantor austríaco que faturou a Copa do Mundo da música, o Festival Eurovision, em 2014. [...]
Mas o que chama mesmo atenção em Conchita é a escolha por fazer uma apresentação em drag com
barba. [...] O movimento LGBT europeu aplaudiu a vitória não apenas como uma manifestação de
liberdade pela adoção de identidade reversa, mas por um tipo de sexualidade que adota posturas e
símbolos de ambos os sexos. [...] Para o lado conservador da Europa, foi uma bomba – manifestações
contrárias foram feitas na Áustria, Rússia, e em vários outros países. Mas a apresentação ultramoderna de Conchita Wurst não apenas chegou à sala de todos, como conquistou a grande maioria dos
votos, consagrando-se a grande vitória do ano (Rafael Losso, A polêmica Conchita Wurst, vencedora
do Eurovision 2014. Disponível em http://www.updateordie.com/2014/05/15/
polemica-vencedora-eurovision/. Acessado em 15-05-2014).
276 A crítica contundente de Judith Butler foi feita em relação a grupos representativos dentro do
movimento feminista mas pode ser perfeitamente estendida a todo e qualquer movimento social de
natureza identitária, como é o caso do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sugiro uma
leitura do tópico “women as the subject of feminism”, da obra Gender Trouble, páginas 1 a 6 da edição em inglês.(BUTLER, 1990b, pp. 1-6).
456

Documentos relacionados