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Armário sem Portas © Karla Lima & Pya Pêra Revisão de Texto Luiz Teodoro Capa Fernando Fernandes Alves Projeto Gráfico e Editoração Cia. de Desenho Impressão Assahi 06-5836 Lima, Karla Armário sem portas / Karla Lima e Pya Pêra. -- São Paulo: Ed. do Autor, 2006. 1. Casais homossexuais femininos 2. Lima, Karla 3. Mulheres Relacionamentos - Humor, sátira etc. 4. Pêra, Pya I. Título. 1. Mulheres homossexuais: Relatos autobiográficos: Sociologia ......................... 306.7663 CDD-306.7663 Não acredito em amor por meros laços de sangue. Minha parte deste livro eu dedico à Karina, a quem eu amaria mesmo que não fosse a melhor irmã do mundo. Karla Amigos são a família que a gente escolhe. Minha parte deste livro eu dedico à família que não escolhi, mas que amo incondicionalmente, e à família numerosa e afetuosa que nomeei como consangüínea. Pya Agradecemos ao imenso número de pessoas que indiretamente contribuíram para a realização do Armário sem Portas. Muitos são os amigos, os parentes, os conhecidos e até desconhecidos que fizeram parte de nossa história. Coadjuvando ou protagonizando, eles nos engrandeceram e tornaram suas vidas uma parte da nossa. Aos que estão por vir: sejam muito bem-vindos! Aos responsáveis diretos, fazemos questão de agradecer individualmente. Famintas, esperamos não ter comido bola. Muito obrigada, Angela Abreu, Bebete, Bell Marcondes, Cristina Klenquen, Cristian, Dani Galego, Dani Sato, Débora Macedo, Denise Nanica, Edu Lima, Edwin Perez, Hanna M., Iara Viana, Karina, Laura Bacellar, Marilia Reis, Mê Takayama, Mônica Mello, Pati Ribeiro, Renatinho, Rodrigo Faria, Sandra K., Sérgio Brasileiro, Sonia, Tatá e Toty pela leitura crítica do original. Suas avaliações imparciais e gratuitas orientaram o formato final do Armário: tamanho, número de portas e disposição das gavetas. Muito obrigada, Dra. Liamara Soliani L. de Castro, por sua paciência e esclarecimentos jurídicos precisos, isentos de ônus. Muito obrigada, Fer, pela fabulosa direção de arte da capa, muito além de nossas expectativas. Muito obrigada, Luiz Teodoro, pelas muitas horas que dedicou a nós e pela revisão impecável. Muito obrigada, Rodrigo Faria, pelo capricho da orelha, muito mais bem delineada que as nossas próprias. Muito prazer!, 11 Meu nome é Pya com P, 13 Meu nome é Karla com K, 15 Preliminares, 17 O poder transformador da visibilidade, 19 Só mais uma coisinha antes de começar de verdade, 25 Fizemos porque pudemos, 27 Um pouco de cada uma de nós, 31 Karla Lima antes de Pya Pêra, 33 Pya Pêra antes de Karla Lima, 37 A divina arte de não se assumir, 42 A terrena ciência de se assumir, 49 Karla Lima e Pya Pêra by Karla Lima, 54 Pya Pêra e Karla Lima by Pya Pêra, 59 Um pouco de nós duas, 65 A primeira impressão nem sempre é a que fica, 67 CUCOSOPAPYA, 71 O vai-e-vem, o volta-e-vai, 76 O casamento das laranjas maduras na beira da praia, 83 O final feliz de uma história de amor improvável, 92 A transição imobiliária, 95 Nossa Senhora, Fátima!, 100 Pequenas evidências de um grande amor, 109 Rasgar seda fortalece os bíceps, 114 Jogar confete entope o ralo, 119 Apostas canceladas, concurso adiado, 122 A revelação universitária, 126 Karla Lima, 32 anos, drogada e prostituída, 129 Nem tudo são flores, 133 Santo André, 138 Um pouco de um tudo, 143 A Acústica do lar, 145 Utilidade pública, 147 Istria, 153 "Cartas, 1956 -1961", 154 Warheads, 156 Brainstorm, 158 Só o amor constrói, 161 Amélia, 162 Ai, meus peitinhos!, 164 Zélia na parada, 166 Xixi engarrafado, 170 Xixi amordaçado, 174 Suelen, 176 Ooops!, 177 Hay que envelhecer, pero sin perder la ternura jamás, 179 Jade, 182 Três tropeços que a língua me dá, 184 Quatro histórias de que ainda me lembro, 187 Duas piadas que não perdi, 194 Desnorteando o sul, o leste e o oeste, 196 Duas faces da mesma moeda, 198 + Q.T.A., 201 "Se você fosse sincera…", 204 Troco miúdo, 206 Você é assim?, 216 Purificação, 218 Não pegue no colo nenhum humano que você possa carregar, 221 Maravilhas da tecnologia moderna, 224 Alerta aos desavisados, 227 Explicação, conclusão, resultado e apêndice, 235 Esquisitices de duas normais, 237 Perguntas de Karla, respostas de Pya, 240 O fim, finalmente, 245 É o fim!, 246 Papo de ponta-cabeça, 258 Ser e estar, 256 Ex-publicitária, ex-infeliz, 255 O malbatizado casamento gay, 253 O mundo dá voltas e os conceitos giram, 250 Meu nome é Pya com P Nasci Patricia Yury Assumpção, por livre e espontânea vontade de meus pais. Aos 13 anos fui apelidada de Patyury, e isso durou outros 13. Os menos íntimos corriqueiramente escrevem meu nome com y ou, ainda pior, com dois t e um y. Até hoje faço inúteis esforços para convencer esses seres de que prefiro Pati. Rejeito e abomino qualquer outra grafia. Numa viagem a Buenos Aires o i foi substituído pelo o. Na terra dos amantes do tango, o apelido de Patricia é Pato. Variações amorosas da ave se tornaram minha identidade a partir de então: Patolina, Patola, Patolee. Sorte a minha não ter havido variação entre espécies. Já pensou, gansa ou marreca? Recentemente, me enfronhei no mundo musical e fundei uma banda de samba composta por nove mulheres. Como não podia deixar de ser, precisava de um nome artístico – escolheram Pati Cavaquinho. Ok!, foi a melhor das três alternativas propostas. Pior seria Pati Meio Metro ou Pati Pagodinho. 13 Acompanhando o giro de 175º de minha vida, decidi rebatizar-me. Escolhi Pya Lima. Todos sem exceção me questionam: “Pya Lima?” É, Pya Lima: P de Patricia, Y de Yury e A de Assumpção. “E o Lima?” Lima de Karla Lima, minha mulher. Romântico, relevante e consistente, esse é então meu novo nome. Os mais observadores devem estar-se perguntando: “Por que então este indefinível projeto está assinado por Karla Lima e Pya Pêra?” Tudo na vida é uma questão de harmonia ajustada ao contexto. Acho que assinar Pya Lima e Karla Lima é um tanto quanto redundante e pouco estético. Antes que alguém me ponha contra a parede (e não que eu não goste de sê-lo, mas depende da forma e da pessoa), eu explico o porquê. Pya Pêra é o resultado de um exercício de livre associação. Veja: Sol? Lua. Feira? Fruta. Lima? Laranja. Laranja? Pêra. Capisco, chuvisco? Lima? Pêra. Aproveitando o ensejo e o prazer que o autobatismo vemme concedendo, criei mais um codinome: Pya Melancia, para assinar alguns textos que ando desenvolvendo para o público infantil. Conclusão: em mim existem Pya Lima, Pya Pêra e Pya Melancia. Para completar o pomar falta pouco e, no ritmo que as coisas andam, tudo parece conspirar para a criação de uma horta: Pya Abobrinha, Pya Pimenta e Pya Chuchu – o único entrave será a convivência pacífica das múltiplas personalidades que terei que administrar em meu dia-a-dia. 14 Meu nome é Karla com K “Meu nome é Karla com K.” Essa sempre foi minha fala oficial de apresentação. Um dia, na quarta série, uma menina da classe me perguntou: “Seu nome é com M ou com N?” Eu, que desde aquela época já era muito impaciente, disparei um irritado “Como assim?” e em resposta ela, que deve ser muito paciente até hoje, me entregou um papel com duas opções: “Carla Comcá” e “Carla Concá”. Acabou comigo. Meu nome não tem propriamente uma história: não foi escolhido por admiração a uma atleta, cantora ou atriz, e também não é resultado de promessa feita durante gestação de risco – até porque, até onde eu sei, não existe uma Santa Karla (e minha passagem pela Terra não vai mudar isso, conforme vocês verão adiante). O nome é com K para manter algo da ascendência alemã (meu avô materno se chamava Kurt) e é Karla para homenagear o melhor amigo de meu pai, Carlos. Graças a Deus, ele não era Ermenegildo, cujo equivalente seria feio, porém inofensivo; nem Anaclêto, muito pior pelas rimas no feminino que poderia invocar. Tive poucos apelidos. Meus pais dizem que foi de propósito que escolheram para as filhas nomes que inibissem 15 abreviações, pois não queriam suas preciosidades chamadas de Bia, Fafá, Sil, Tuta etc. Mal sabiam eles que o nome de minha irmã, Karina, viraria marca de armários de cozinha a shampoo de quinta categoria, e que eu seria associada a coisa muito pior. Mas minha babá, ignorando as precauções de meus pais, me apelidou de Petinho – assim, sem o r, no diminutivo e no masculino. Ela era índia e nunca explicou a origem disso, mas quero crer que, em seu idioma nativo, significasse qualquer coisa como “menininha lindinha de meu coração”, e não uma premonição tipo “você é um curumim de saias que vai virar sapatão”. Minha irmã é outra que me deu um apelido – com a diferença de que o dela tem um significado óbvio. Embora prefira acreditar que, quando ela era criancinha, tivesse dificuldade em pronunciar Karla, no fundo suspeito que já havia um julgamento de valor quando ela passou a me chamar de Káka. Pelo que me lembro, houve pouca reclamação parental sobre isso. A Patricia, por motivos que serão esclarecidos mais adiante, me chama de Bicho, o que enterrou definitivamente as esperanças de meus pais. Quando terminar o livro, talvez você também tenha alguma idéia de um apelido para mim. Não me mande por e-mail. 16 O poder transformador da visibilidade “Armário sem Portas” é o título deste projeto indefinível. Trata-se de uma prosa cômica de cunho autobiográfico, disposta em contos românticos, não-fictícios e tampouco cronológicos. Não há pretensão literária, mas sim ambição de entretenimento geral de quem se despir de preconceitos. Antes de qualquer coisa, aponto três premissas, duas ponderações, uma sugestão, nenhuma conclusão e ponto final: Premissa um: Aconselha-se ler introduções antes da obra em si, assim como, normalmente, rola uma preliminarzinha básica antes da consumação da cópula. Premissa dois: Pela lógica, o princípio começa no início e o término acaba no fim. Premissa três: Cada um é cada um, ninguém é igual a ninguém. Ponderação um: Conselho e lógica são relativos. Ponderação dois: Tudo depende do ponto de referência. 19 Uma sugestão: Siga os bons conselhos de acordo com sua própria lógica. Nenhuma conclusão: Você pode dar seguimento a sua leitura a partir deste ponto, ou virar o livro de pontacabeça, começar por lá e depois retornar. Tanto faz. Ponto final: Vire, desvire e revire. Como meu Bicho tem mais propriedade, consistência de argumentos e desenvoltura lingüística, cabe a ela a missão de dissertar sobre o propósito deste projeto: Historicamente, os homens heterossexuais, vivendo numa sociedade por eles construída e regida, sempre tiveram muito menos a reivindicar que as mulheres. Tendo feito as leis e sendo as autoridades políticas, comandando as igrejas e sendo as autoridades religiosas, tendo acesso aos estudos e se tornando as autoridades médicas, detendo o capital e formando o grosso do empresariado do País, o máximo contra o que os homens tiveram que lutar foram suas próprias regras. Assim, quando lhes pareceu que o divórcio era necessário, ele deixou de ser uma “ameaça à ordem institucional”. Quando quiseram unir-se a mulheres diferentes de si, o casamento inter-racial subitamente não iria mais provocar o “desmantelamento da sociedade”. É claro que, num exemplo como no outro, houve indignação, revolta, previsões catastróficas. Mas quem fomentava isso eram homens também, de modo que a adoção ou a rejeição dos novos padrões tinha um caráter predominantemente masculino: suas regras, suas lutas para mudá-las. 20 Todas nós com 60 anos ou menos crescemos com uma porção de direitos já assegurados. Nós os aceitamos como naturais, estabelecidos e óbvios, e raramente pensamos na batalha que nossas mães e avós travaram por sua conquista. E que batalhas! Da luta pelo voto feminino à abolição da virgindade matrimonial compulsória, da minissaia ao cigarro em público, das calças compridas ao trabalho fora de casa, todo novo comportamento feminino, antes de ser aceito e incorporado como direito, passou por uma transição lenta, cheia de revezes e pressões contrárias. Algumas poucas almas iluminadas compreendem rapidamente os ciclos evolutivos a que os padrões sociais estão sujeitos, e não precisam de tanto tempo para acolher a nova realidade. Mas não é dessas raridades que se vai tratar aqui. O que queremos abordar é o poder difusor que cada indivíduo tem no estabelecimento mais rápido e pacífico dessa nova realidade. Nossa tese: a visibilidade é o princípio da aceitação. Quanto mais você debater o assunto, quanto mais de acordo com sua natureza viver, quanto mais der às pessoas a oportunidade de conviver com você – enfim, quanto mais aberta e completamente sair do armário, melhor para si mesmo e para a sociedade. Pois é só na freqüência e na qualidade do contato com gays que as pessoas conseguem evoluir a nosso respeito. Espontaneamente, nenhum heterossexual vai achar que é chegada a hora de promover qualquer tipo de mudança. De uma maneira geral, eles não querem nem têm como sair de um raciocínio mirim, mas estabelecido; de uma lógica risível, mas confortável; de seus conceitos prévios e negativos. Cabe a nós ajudá-los nessa superação. 21 Por acreditarmos nisso, a Patricia e eu nunca disfarçamos nossa condição de casal. Se por um lado seria contraproducente chocar gratuitamente nossos vizinhos, trocando beijos apaixonados no parquinho do prédio, por outro seria contrário a nossas crenças escondermos nosso afeto em público. Assim, estabelecemos um código de conduta que não nos agride e, ao mesmo tempo, mostra para a sociedade que não representamos um perigo. Resumidamente, ele estabelece que: a. apelidos carinhosos são permitidos em qualquer circunstância; b. na ausência de crianças e velhinhos, são permitidos mãos dadas e toques nos cabelos, rosto e ombros; c. abraços e beijos são permitidos dentro do carro, na vida noturna GLS e em eventos diurnos como a Parada Gay. Assim, somos vistas como um casal, respeitadas e muito bem atendidas por um grupo enorme e variado de pessoas, que vai dos atendentes da locadora aos porteiros de nosso e outros prédios; de nossa manicure aos garçons; das recepcionistas de pousadas e consultórios aos caixas do supermercado; dos entregadores de água e gás até as depiladoras sem medo de nos excitarem nem receio de serem agarradas. Eventualmente, esses exemplos não serão suficientes: haverá um cínico a ironizar que, estando na posição de clientes, é natural que sejamos frontalmente bem tratadas, ainda que pelas costas exista muita maledicência. Então peço desculpas a quem já se enfadou e encomprido 22 a lista para incluir meus próprios clientes (da época em que era diretora de contas em agência de propaganda), subordinados, chefes e colegas do trabalho, colegas da faculdade e professores, familiares distantes e desconhecidos que nos sorriem, sem motivo aparente, durante o jogging dominical. Quanto ao maldizer fortuito, não tenho como nem por que rebater sua ocorrência: é um fato da vida que diz respeito a nós tanto quanto diz respeito a você, homem, branco, de classe média, destro, heterossexual, com filhos, carta de habilitação e carro, empregado na iniciativa privada, que teme o chefe, mas não o respeita, que esquece o aniversário de casamento, pula o banho uma vez ou outra, que tem um time do coração e vê novela, que já teve um caso extraconjugal, que começa a ter uma pancinha cervejeira; você que reclama do governo, mas não sabe em quem votou nas últimas legislativas; que acusa o prefeito de ladrão, mas não devolve o troco recebido a mais; você que adora ser o centro das atenções no churrasco de seu cunhado, que reprime o choro e se importa com o que pensam sobre você. Você que se considera a salvo e normal, mas é apenas comum – e está tão vulnerável quanto nós. 23 Fizemos porque pudemos O processo de criação deste livro foi, como diria a Patricia, “muito louco”. Um dia cheguei da faculdade contando uma história engraçada e ela comentou, não sei se despretensiosamente ou já com segundas intenções, que aquilo merecia ser registrado. Eu respondi trazendo à tona outras passagens, assumidamente querendo colocar em prática o velho plano de escrevermos nossas memórias. Quando nos demos conta, fazia três dias que não saíamos de casa, só rindo, tomando café, fumando, vendo fotos e escrevendo. Usando letra grande e abrindo espaços generosos, sem esforço chegamos à 60ª página. Daí nos empolgamos de vez. Passamos longas madrugadas debatendo e produzindo. Ela queria que o livro fosse cômico, eu queria que fosse sério. Um a zero. Ela queria contar desde a gravidez de nossas mães, eu queria iniciar por nosso primeiro encontro. Ninguém pontuou. Ela é fã de obras abertas em permanente construção, eu queria terminar logo. Um a um. Apostei que teríamos umas poucas folhas grampeadas distribuídas gratuitamente aos amigos, ela apostou num 27 calhamaço de três quilos com capa dura e que conseguiríamos vender. Jogo em andamento. Eu detesto que mexam em meu texto, mesmo sendo a Patricia. Reclamo, digo que está subestimando a inteligência do leitor, que está assassinando meu ritmo e que o encadeamento do raciocínio se perdeu. Ela não se importa que eu mexa em nada, acata a maioria das sugestões e ainda usa essa flexibilidade contra mim. Resumindo, houve muita discordância, muita negociação e intermináveis remendos de estilo, tamanho, linguagem e conteúdo. No entanto, concordamos em alguns pontos desde o início. Só chegamos até aqui porque moramos numa cidade como São Paulo, nossa condição econômica nos permitiu, não sofremos pressões religiosas e crescemos num ambiente familiar saudável. Viver numa pequena cidade conservadora torna impossível o anonimato das primeiras incursões. Usar apelidos carinhosos no restaurante do bairro ou ficar de mãos dadas no cinema traz constrangimentos. Há pouca abertura para se revelar no trabalho, na escola, no prédio, no clube – para não falar da dificuldade de encontrar seus semelhantes! Não existem a Parada Gay e boates GLS. Mas numa metrópole como São Paulo há espaço e oportunidade para a criação de vínculos, para se inserir, ser aceito e sentir-se pertencente. Esse é o lado bom de viver num ambiente enorme, impessoal e cosmopolita, que nos permite levar a vida que levamos, e registrá-la em livro. Em nosso país, ter uma condição financeira privilegiada faz toda a diferença. É muito difícil que um indivíduo se desenvolva completamente se todos os dias forem uma 28 luta pela sobrevivência. Não sobra tempo, dinheiro nem disponibilidade mental para nada além. Nós duas temos apenas um mérito parcial pelo que conquistamos – a outra metade deve ser creditada às circunstâncias externas que nos permitiram um desenvolvimento pleno. A ausência de repressão religiosa e o desenvolvimento em um ambiente familiar saudável também nos favoreceram. São freqüentes os casos de gays e lésbicas para quem o processo de reconhecimento e aceitação é incrivelmente traumático. Sentir-se diferente pode ser mais confortável ou mais penoso; identificar-se como homossexual pode ser mais fácil ou mais difícil; revelar-se pode ser mais leve ou mais angustiante. Para o bem e para o mal, a fé religiosa e a estrutura familiar desempenham um papel fundamental nesse processo. A maioria dos lares repudia a homossexualidade com base em crenças religiosas e valores morais. Pode ser ignorância, estreiteza de horizontes, falta de discernimento. Mas, geralmente, quando as famílias reprimem e tentam “curar” um membro homossexual, estão agindo com base em amor e instinto de proteção: elas acreditam de verdade que o homossexual está em perigo e precisa ser salvo. Pais e irmãos se esforçam por resgatar os gays do mau caminho porque prevêem sofrimentos e discriminação em vida e, no caso dos religiosos, também suplícios após a morte. Ainda que usem métodos condenáveis, como chantagem emocional e violência física, é preciso entender que os familiares normalmente são movidos por boas intenções. Como as igrejas não se cansam de ressaltar o caráter desviante e pecaminoso da homossexualidade, e a sociedade impõe restrições muito severas, não é de estranhar 29 que as famílias usem todos os recursos para libertar seus membros de tanto castigo e opressão. Os caminhos percorridos por um homossexual (descobrimento – aceitação – revelação) e por seus familiares (suspeita ou surpresa – confirmação – aceitação) tendem a ser mais suaves e menos traumatizantes quando as diferenças são admitidas e as dificuldades, respeitadas. O empenho precisa ser mútuo, pois não é razoável esperar que apenas a família se ajuste à situação: se a ela cabe acatar e proteger, a nós cabe dar informação e exemplo para que ela aprenda a lidar com a nova realidade. A Patricia e eu crescemos em ambientes sem dogmas: temos famílias religiosas que vivem na prática as teorias sobre tolerância e acolhimento, e cujas relações são baseadas em respeito. Num primeiro momento, ouvir “eu sou homossexual” não deixou nossos pais e irmãs saltitando de alegria, mas eles não usaram Deus para nos rejeitar; buscaram n'Ele inspiração para nos compreender. Com seu amor e carinho, eles nos ampararam, e se uniram a nós para enfrentar as adversidades. Em acréscimo ao texto da Karla, eu gostaria de expor minha brilhante conclusão: “Somos duas rabudas que nasceram com a bunda virada pra Lua.” Não conseguimos lembrar-nos de nenhum episódio em que a discriminação ou o preconceito nos tenha atingido de forma que não pudéssemos administrar. Talvez sejamos muito afortunadas; quem sabe, pouco rancorosas, ou simplesmente desatentas ao extremo! Em meu caso específico, talvez sejam os lapsos de memória trabalhando a meu favor. 30 Karla Lima antes de Pya Pêra Como quase tudo em minha vida, a descoberta de minha sexualidade foi um processo muito tranqüilo e tremendamente racional. Num sábado de sol, durante um prosaico banho, pensei: “Quando eu for grande, vou gostar mais de mulher.” A frase veio assim, pronta como uma conclusão técnica. Tudo tão claro, organizado e sem dramas que nem parecia emoção autêntica, parecia uma decisão. Eu tinha 12 anos. Nessa época, interessei-me por uma menina pela primeira vez. Ela era muito branquinha e às vezes aparecia na classe com umas manchas roxas no braço. Vinha de uma família desestruturada e enlouquecida: pai ausente, mãe saudável vivendo de pensão por invalidez, duas irmãs mais velhas vulgares e cruéis e uma irmã mais nova cujos cuidados eram responsabilidade dela. Com esse ambiente doméstico delirante, não era de estranhar que tivesse notas baixas. Em minhas fantasias, eu a resgatava daquele inferno, curava com beijos dedicados cada cicatriz e ferimento e ela, renascida, não tirava mais notas vermelhas. Como se vê, eu tinha sentimentos tripartites: queria protegê-la, possuí-la e lhe ensinar português. Minha primeira transa foi aos 15 anos. Namorava o rapaz desde os 11. Não foi nada de extraordinário: nem dor 33 nem maravilhamento, nem traumas nem vontade de fazer de novo. Não transei por pressão do grupo (nunca tive um grupo e nunca liguei pra pressão), não me arrependi depois e contei tudo para minha mãe, espontaneamente. Ela me aconselhou a tomar pílula, se dali em diante pretendesse ser sexualmente ativa, e foi comigo ao ginecologista. Minha mãe é uma mulher extraordinária. Durante meus 16 anos de vida hétero, considerei sexo uma atividade bastante desagradável. Era estafante, durava muito e acontecia vezes demais. E, adivinhe só, nada prazeroso. Um pouco por causa disso, um pouco pelo clima que tinha em casa e um pouco por temperamento, eu dizia a quem quisesse ouvir que não podia morrer sem ficar com uma mulher. Contava pra todo mundo sobre meus desejos: no colégio de freiras, no trabalho, pros parentes distantes. Meu segundo namorado, com quem fiquei dez anos, cansado de minha má vontade com o sexo e tipicamente doidinho pra participar, chegou até a me arranjar uns encontros com umas moças – que não resultaram em nada. Eu o deixei pelo homem com quem viria a me casar. E quando ele quis que nos casássemos, eu lhe disse, textualmente: “Olha, eu já falei isso várias vezes e vou repetir mais uma: eu acho que sou lésbica. Pode ser que eu nunca experimente, pode ser que eu experimente e não goste, e pode ser que eu experimente e conclua que essa é realmente a minha, e daí será o fim de nosso casamento. Não responda nada agora, pense direitinho, falamos amanhã.” Parece frio e de fato é, um pouco. “That’s me.” Mas, além de evitar futuras acusações sobre omissão de informação gravíssima, eu reforcei também porque achava que nunca iria acontecer nada mesmo, tantos anos já se 34 tinham passado desde minha descoberta durante aquele banho que o aviso era pouco mais que uma formalidade. Nosso casamento durou quatro anos e fomos bem felizes. Em agosto de 2002, aos 31 anos, tive um affair de poucas semanas com uma moça. Não foi bom: achei o sexo apenas sofrível – para estar comigo ela traiu a namorada e, ao contrário do que tínhamos combinado, foi-se gabar pra uma pessoa de nosso trabalho. Nunca me importei com o que pensam de mim, de modo que o problema não era ter minha vida comentada nas ondas curtas da “rádio peão”; o que achei intolerável foi o descumprimento de nosso acordo. Eu teria eliminado até o mais protocolar bom-dia se tivesse sabido disso na época. Mas, como as boas almas de plantão resolveram me preservar da boataria, mantive com ela um relacionamento cordial, quase afetuoso, durante mais de dois anos. Por favor, nunca seja uma boa alma comigo. Uma semana depois, meu marido e eu estávamos em casa preparando o jantar quando ele me enlaçou, perguntou se eu estava feliz, e se queria continuar casada. Caí no choro. Agradeci que ele tivesse tomado a iniciativa da abordagem que eu mesma, por covardia, não tomara, e contei toda a verdade. Meu ex-marido é um homem muito especial, por quem tenho admiração e respeito profundo. Não sei de outro homem que agiria com a hombridade que ele demonstrou. Por mais dois meses continuamos morando juntos, fraternalmente. No final de novembro daquele ano, fui com uma conhecida a uma boate GLS. Do último xixi antes de irmos embora 35 ela voltou acompanhada e sorridente: “Fiz uma amiga na fila, posso te apresentar?” A pergunta certa, eu descobriria em breve, era: “Quer conhecer a mulher da sua vida?” 36 Pya Pêra antes de Karla Lima Nasci gay. Algumas evidências, já na infância, descortinavam o futuro que poucos pais desejam. Brincadeira bacana era carrinho de ferro, bolinha de gude e bater figurinha. Roupa, não podia ser vestido. A tão almejada camisa do São Paulo Futebol Clube só ganhei quando ameacei meu pai de passar a torcer pro Corinthians. Hoje não torço nem pra um nem pro outro – não gosto de futebol. Minha primeira paixão foi a matemática e a segunda foi a professora da terceira série. Eu acordava mais cedo e apressava minha irmã para ser a primeira da fila. Minha mãe não entendia nada, mas achava ótima essa disposição, até me premiando com aumento de mesada. Agora eu explico: na hora de entrar, a professora ia de mãos dadas com o primeiro da fila até a sala de aula. O percurso era de curtíssimos 50 metros e eu, instintivamente, diminuía o passo, retardando o fim daquele momento mágico. O ano passou e outra mão passou a conduzir os alunos à classe. Eu não tinha mais pressa de chegar à escola, minha mãe lamentou o retorno à normalidade e a vida seguiu. Até hoje números me fascinam. Minhas amigas relatavam o primeiro beijo como sendo uma glória. O meu foi um show de horror, protagonizado 37 pelo Rodriguinho. Ele enfiava a língua em minha boca em movimentos brutos e repetitivos de entra-e-sai, entra-esai. Segurando minha cabeça para que eu não escapulisse, ele tentava a todo custo criar um vácuo que sugasse minha língua para dentro de sua boca. Na vã tentativa de que ambas não se encontrassem, eu jogava minha língua para o fundo da garganta, enquanto a dele continuava perseguindo a minha, freneticamente e cada vez mais fundo. Provavelmente não durou mais de 30 segundos, mas minha sensação foi de eternidade. Quando ele desgrudou de minha boca, o que ficou foi uma irritação cutânea absurda, provocada pelos 35 fios pontiagudos de um bigodinho ralo. O abismo entre a glória e o show de horror deveria estar na habilidade e no sexo do ser beijado. Ninguém parecia sentir o que eu sentia. O universo é infinito, mas eu me sentia uma figura sem par. Procurava, em vão, localizar pessoas com a mesma inquietação. Atenta, notei que no mundo dos esportes as coisas eram mais próximas de minha realidade. Feeling quase absoluto de marinheira de primeira viagem. Aos 12 anos, freqüentava assiduamente o clube. Meus pais sempre me advertiam: “Patricia, cuidado no vestiário! Lá tem mulher que gosta de mulher.” Agradeci a dica. Entrava e saía, ansiosamente, à procura dessas tão sonhadas mulheres. Nunca encontrei nenhuma... Milhas marinhas adiante, acabei constatando que minha intuição estava correta. Tomei gosto pelo esporte e pelas atletas, li as biografias da jogadora de vôlei Jacqueline Silva e da tenista Martina Navratilova e pasmei. É isso que sou, é isso que sinto! Pratiquei meu esporte com paixão, 38 por meio dele cresci e venci, e nesse mundo encontrei meu primeiro par. As cobranças por comportamento socialmente aceito eram enormes. De um lado, meus pais observavam minhas novas amigas: “Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és.” Do outro, cantadas e mais cantadas juvenis de moçoilos reféns de seus hormônios em polvorosa. Acabei não resistindo à pressão e, usando uma técnica muito condenável, ludibriando as partes. Enrolava um rapaz e me justificava com as atletas. Dura missão: segurar a empolgação da testosterona por quase um ano e arrumar desculpas esfarrapadas para as “colegas”. Condenável! Merecia prisão perpétua. Faltou dignidade, que procuro compensar hoje em dia. Ele era um ótimo rapaz, por quem sinto muito carinho e remorso. Namorar convencionalmente gerava um enorme desconforto interno, mas tinha lá suas vantagens. Era uma resposta pronta e crível para outras abordagens masculinas: “Sou comprometida, tenho namorado.” Para a família, um grande alívio. Neste caso, a dúvida é melhor que a certeza. Vivia presa ao mundo dos esportes, acreditava que não havia lésbicas fora dali. Achava que, para ser gay praticante, eu tinha que estar confinada nessa redoma. Dando continuidade à saga da esportista lésbica, me inscrevi num curso pré-vestibular. A intenção era me preparar para a Fuvest, curso de Educação Física. Qual mais seria? Logo no primeiro dia, fui abordada por uma “sócia” com um papo insinuante. Esquisito... eu não me considerava 39 uma figura típica, minha estrutura mignon e meu jeito espevitado sempre me fizeram escapar ao estereótipo. No banheiro do cursinho, minha diversão predileta me aguardava. Eu adorava admirar os surtos de emoção, muitas vezes talhados com estilete, nas portas de madeira: caricatos pênis penetrando bundas em forma de W, desenhados com Bic azul; ofensas chulas escritas com hidrográfica vermelha e suas retaliações em grafite: “O Celso é um veado.” “Veado é seu pai.” “Celso, liga pro Bruno, ele gosta de rola.” “Ana x Roberta.” “Sai fora, sapatão, e vai pra boate da esquina!” Boate da esquina?! Saí dali voando e dei três voltas no quarteirão. A única coisa que palidamente se parecia com uma “boate de sapatão” era um estabelecimento esverdeado, sem janelas, com um logotipo bigodudo – Mustache. Passava ali todos os dias, mas nunca conseguia descobrir nada. O que eu pensava descobrir sobre uma boate de sapatão das sete ao meio-dia? Devidamente motorizada, seis meses depois, mudei o turno da vigília. Passei tantas vezes em frente ao local que na 13ª vez o segurança gesticulou como quem diz: “E aí, minha filha? Vai ou não vai?” Naquele dia não fui. Na semana seguinte, “A Porta da Esperança” se abriu. Mesmo não sendo uma pessoa de poucas palavras, não sei como descrever o que senti. Foi um misto de liberdade, êxtase e ar puro, apesar da espessa nuvem de fumaça de cigarro que flutuava no local. Com aquele novo mundo recém-descoberto, abandonei a faculdade de Educação Física e iniciei então Administração de Empresas, pois havia descoberto um universo que nunca pensei existir. Aquela boate me levou a um bar. No bar conheci uma menina, essa menina me apresentou a umas tantas. E a 40 tantas outras eu me apresentei. Conheci inúmeras pessoas, namorei muito e casei algumas vezes. E vamos mudar de assunto porque a Karla com K não gosta de desenterrar defunto. Além do mais, o propósito do capítulo me coíbe de prosseguir ou esmiuçar minha biografia. 41 A divina arte de não se assumir Eu conheço há muito tempo a história que vem a seguir e, mesmo assim, tive imensa dificuldade de compreender a maneira como a Patricia a transcreveu. Além de prolixa, ela é muito apegada a detalhes, mesmo os irrelevantes, e acredita que a linguagem escrita é mais eficiente quanto mais próxima está da língua falada – daí, né, você sabe, fica tudo assim, tipo meio confuso, tá me entendendo? Dessa forma, em solidariedade a quem, como eu, precisa de um mínimo de método e organização para entender enredos, providenciei um resumo esquemático: Charles: gay não-assumido para a família – melhor amigo da Patricia. Antônio Carlos: namorado de Charles, não-assumido para a família nem no trabalho – dividia o apartamento com a Patricia. Geni: colega de trabalho de Antônio Carlos, também gay não-assumida para a família nem no trabalho. Fazer a linha: mostrar-se, comportar-se e agir como heterossexual nos ambientes em que sua homossexualidade não é conhecida. Prima, colega, sócia: gírias sinônimas de lésbica. 42 E senta, que ela vai mandar história... Como a narrativa segue por diversas linhas e envolve muitas personagens, precisei nomear de maneira fictícia cada uma, pois a história é verdadeira e ninguém é obrigado a ter seus rolos expostos assim, sem mais nem menos... Aos 21 anos, saí da casa de meus pais e fui morar com Antônio Carlos. Ele e eu “fazíamos a linha” e simulávamos um casamento feliz, pois a proprietária do apartamento só confiaria seu imóvel a um casal. Complicado era administrar as mentiras que estão por vir. Antônio Carlos fazia a mesma linha, porém noutra agulha, com Geni, uma amiga do trabalho. Naquele ambiente, ele e a “colega” eram noivos. E noivos há tantos anos que ambas as famílias faziam parte do carretel. Era linha tanto para ela quanto pra ele. Para quebrar o galho de Charles, eu fazia a linha com ele na casa de seus pais. Isso justificava a presença diária de Charles em minha casa sem levantar grandes suspeitas, uma vez que os pais de Charles não sabiam da existência do Antônio Carlos. Justificava para os pais de Charles, mas não para a estereotipada síndica que regia o condomínio. Para complicar ainda mais a situação com D. Milu, a síndica, eu estava numa fase pouco estável. De meses em meses, uma nova “prima” chegava do interior. Complicado era explicar a estrutura da árvore genealógica de minha família: eu tinha prima loira e peituda, outra morena de pele com canelas grossas... Minha maior sorte foi não ter conhecido nenhuma ruiva nesta fase! 43 Quando o telefone tocava, era um pânico! Ninguém podia atender até que a secretária eletrônica o fizesse. Em função dos entrelaces todos, não era viável gravar uma saudação com nossas vozes. Sem outra maneira, programamos o telefone com a mensagem-padrão do equipamento, aliás de procedência duvidosa: “Sorry, we are not available right now. Please, leave your message after the tone. Thank you. Beep.” Muitas vezes ouvíamos a saudação até o beep, e depois beep-beep-beep. A pessoa não quisera deixar recado ou não falava inglês, concluíamos. Passados 36 meses, nós iríamos renovar o contrato de locação. Como o apartamento era no último andar, vários problemas de infiltração provenientes do teto fizeram do banheiro uma zona de conflito militar. Negociamos a renovação com a proprietária do imóvel mediante o conserto das avarias. Ela concordou, mas queria que o condomínio assumisse a responsabilidade por danos causados em razão da má conservação das áreas comuns – no caso, o telhado do prédio. O resultado da excelente negociação foi uma reunião com a proprietária, D. Milu e eu. Rebolei, rebolei, mas saí virgem daquele forró. Repartidas as responsabilidades, a reforma começaria no primeiro dia de minhas tão sonhadas férias. Minha intenção era relaxar e terminar meu trabalho de conclusão de curso. Não imaginava, entretanto, que seria contratada imediatamente para dois novos ofícios: chefe do empreiteiro da reforma e confidente da proprietária. Foram dias de lama! Poeira, concreto e conversa jogada fora. Os pedreiros, encanadores e eletricistas chegavam às 44 9h e trabalhavam a todo vapor. Impossível relaxar ou escrever. Às 14h, chegava a proprietária com as últimas novidades: “Meu marido isso, meu marido aquilo... Minha empregada... Meu filho... Minha sogra... Meu papagaio…” Ô, mulherzinha mal-amada! Uma das primeiras coisas que tive que explicar quando tudo começou foi: “Por que vocês têm duas camas de casal, uma em cada quarto?” Não tive muito tempo para pensar: “Antônio e eu preferimos assim... É sempre bom manter o clima independente, variar os ambientes na hora de fazer amor… não enjoa, quebra a rotina!” Interessadíssima, a proprietária batia a mão em minha coxa: “É mesmo? Vocês se dão bem? Ele é carinhoso? Você consegue gozar com facilidade?...” Minha experiência com homens até aquele momento não passava de uns apertões e duas provas dos noves. Haja criatividade! Fim da reforma. Fim das férias. Antônio e eu costumávamos emprestar nosso apartamento para Geni, que no trabalho e para as famílias deles era a suposta noiva de meu pretenso marido. Ao passar pela portaria, já com as chaves previamente entregues, Geni e sua namorada do interior se identificaram para D. Milu, que não saía da portaria, como primas do Antônio – mais duas primas minhas não seria possível. Subiram e foram tratar de exterminar a saudade que as consumia. Não mais que de repente, surge na portaria a proprietária, para entregar a tampa do vaso sanitário, última etapa da reconstrução do banheiro. D. Milu, sem maldade alguma em seu nobre coração: “A D. Patricia não está, mas tem duas primas do Sr. Antônio lá em cima. Pode subir.” D. Milu nem ao menos interfonou. 45 Segundo Geni nos contou posteriormente, a campainha soou. Com uma certa tranqüilidade, ela ajeitou a blusa e fechou o zíper enquanto dizia: “Já vai!” Ao abrir a porta, deu de cara com a proprietária: “Quem é você?” Sem pestanejar e ofendida com o tom da pergunta: “Sou a Geni, noiva do Antônio, por quê? Quem é a senhora?” Projetando a tampa da privada em direção da Geni, ela respondeu: “Sou a proprietária do imóvel. Entregue esta tampa para a mulher do seu noivo!” Virou as costas e entrou no elevador, que continuava em nosso andar. Quando voltei, Geni me contou o que ocorrera. Enquanto Antônio não chegava, o telefone tocava de dez em dez minutos. Aquela secretária eletrônica nunca falou tanto num período tão curto. Os recados eram: “Patricia, preciso falar com você, me liga.” “Patricia, é urgente!” “Patricia, você está em casa? Atende o telefone!…” Que situação! Imaginávamos que tudo o que ela mais queria era anunciar o flagra: a amante de meu marido em minha própria casa! Todos reunidos, ensaiamos minha fala nove vezes. Da próxima vez que o telefone tocasse eu deveria atender com voz mansa de corna calma: “Alô!” “Patricia?” “Oi, tudo bom? A tampa é linda! Combinou muito com o azulejo azul. Minha cunhada me entregou.” “Sua cunhada?” 46 “É, a Geni, a noiva do Antônio.” “Antônio, seu marido?” “Não, Antônio Augusto, irmão do Antônio Carlos, meu marido.” “Sei…” “Todos os filhos do Seu Antônio Pinto, meu sogro, se chamam Antônio: Antônio Augusto, Antônio Carlos, Antônio Roberto.” “Hã!…” “O Antônio Augusto é o mais velho, todos o chamam de Antônio. Antônio Carlos, meu marido, é o do meio e é chamado por sua família de Carlos. O Antônio Roberto é conhecido como Beto.” “Então, quer dizer que seu cunhado Antônio Augusto está noivo da prima dele?” “Prima dele, quem te disse isso?” “A D. Milu.” “Ela confundiu, coitadinha! A D. Milu está toda estressada com os problemas do condomínio. A prima é minha. Olha como o destino é sábio. Eles se conheceram em nosso noivado e agora estão noivos! Adorei a tampa, bem melhor que a outra, mais macia e confortável.” “Que bom que você gostou!” A proprietária nunca mais ligou. Saí da casa do Antônio antes do contrato vencer novamente e até hoje não sei que outro fim essa história levou. Qualquer dia pergunto pro Antônio. Bons tempos aqueles! Conclusão: Nunca faça a linha com mais de uma agulha! Meus comentários sobre essa patacoada: – Fatos divertidos acontecem mais com narradores 47 empolgados. Sorte de todos nós que a Patricia saiba tão bem viver quanto contar esses causos. Pois uma germânica como eu, que acorda sem despertador, organiza o armário para se vestir no escuro e jamais bateu a porta, o telefone ou a mão na cara de alguém, nunca viveria uma história dessas. – Eu me recuso a dissimular o que sou. Isso me tira o prazer de contar piadas no salão, mas evita que eu seja refém de situações constrangedoras e síndicas de má-fé. – Vivi poucas “comédias de erro”, porque evito mentir e omitir. Resultado de tantos anos em colégio de freiras ou puro exibicionismo, não sei. Seja como for, sou muito franca – independentemente de o assunto em pauta ser minha homossexualidade ou seu novo corte de cabelo. A conseqüência disso tudo é que sou péssima atriz na arte divina do disfarce, mas tenho lá algum talento para a ciência terrena de enfrentar a realidade. 48 A terrena ciência de se assumir Quando eu transei com aquela moça, a primeira pessoa a saber foi minha irmã – amiga e cúmplice de todas as horas –, para quem liguei ainda antes de chegar ao motel. Contei em seguida para meu melhor amigo, depois a meu marido. E então faltava contar a quem realmente importa. Minha mãe é uma figura muito atípica. Enquanto outras moças de boa família nascidas em 1944 aprendiam a bordar e a tocar piano, ela estudava inglês e trabalhava. Quando se esperava que os casamentos levassem em conta a situação do noivo, ela se casou por amor com um pérapado, com quem viveu por 38 anos uma tocante luade-mel. Quando foi demitida, porque o chefe considerava seu barrigão incompatível com a função de secretária da presidência, usou o dinheiro ganho no processo para montar meu enxoval e abrir uma poupança. Minha mãe foi a principal responsável por nossa educação (a bem da verdade, cuidou bastante da educação de meu pai também!). Incentivou que minha irmã e eu aprendêssemos um instrumento e um idioma, de maneira que, se no futuro “tudo o mais falhasse”, ao menos pudéssemos dar aulas e não morrer de fome. Ela fala três idiomas, só aprendeu a fazer arroz depois dos 40 (é incomível até hoje!), 49 viajou muito e realmente aproveitou cada uma dessas oportunidades para conhecer costumes e realidades diferentes dos seus. Ao contrário de tantas mães, nunca se fez de vítima ou usou de chantagem emocional contra nós. Ama-nos com um instinto protetor que beira a ferocidade e, assim, constrói todos os dias uma relação de genuína confiança. Pois bem. Um dia eu a convidei para almoçar e, entre a salada e o prato principal, anunciei que iria me separar e expliquei o motivo. A partir daquele momento, ela chorou todos os dias durante várias semanas. Nada poderia ter-me preparado para aquilo. Primeiro fiquei feliz, interpretei como emoção suas lágrimas iniciais sobre o peixe (“Que bom, minha filha, você se encontrou!”, ou qualquer coisa do gênero). Depois me revoltei. Quando é que “ser feliz sem prejudicar ninguém e fazer o bem sem olhar a quem” tinha deixado de ser o referencial de certo e errado? Eu a considerei hipócrita e reacionária; ela me achou egoísta e meio anormal. Mas, graças à ajuda de minha irmã, e a uma sólida tradição de diálogo, conversamos, conversamos, conversamos. Eu discursava interminavelmente para tirar suas dúvidas (foi uma bênção à parte o fato de ela nunca ter deixado de fazer perguntas), ela lamentava o preconceito que eu estava fadada a sofrer; ambas chorávamos o estilhaçamento de nossas mútuas expectativas e o entendimento que julgávamos para sempre perdido. Mas nunca brigamos, nunca gritamos; tudo muito prussiano, como convinha a nós duas. Em menos de seis meses, estava jogando cartas na casa dela quando ouvi, sem aquecimento nem introdução: 50 “Liga pra Patricia agora. Eu vou vestir uma roupa e nós vamos sair pra você nos apresentar.” O encontro não deu certo naquele dia, mas ocorreu na mesma semana. De lá pra cá – como dizê-lo sem descambar ainda mais para a pieguice filial? – tudo são flores. Minha mãe a chama de “genra”, refere-se a ela por “mais uma filha querida” e fica amuada se a Patricia não telefona nem aparece durante dez dias. Preparou meu pai para a conversa que eu viria a ter com ele em breve, contou aos amigos e ao resto da família. Três anos depois, ela tomava com meu pai uma cerveja de fim de tarde, no botequim em frente a sua casa, quando um cara cometeu a seguinte pérola: “É melhor ter um filho drogado, assassino ou preso do que um filho veado!” A temperança alemã também tem limites. Rubra de indignação, dedo em riste, levantou-se e proclamou, em alto e bom som (ali, numa mesinha no meio da rua, num boteco de última categoria, cercada de pinguços), que aquilo era de uma ignorância sem tamanho, que ela tinha uma filha gay maravilhosa, que namorava uma moça que era um amor de pessoa, que ambas eram muito felizes e que ela própria era feliz por tê-las próximas de si, ao passo que ele, um bêbado estúpido, não conseguia manter por perto nem o garçom, de tanto que fedia. Atravessou a rua numa marcha firme e cheia de dignidade, largando pra trás um grupo boquiaberto e estupefato. Uma verdadeira lady. O outro lado da moeda: Antes dos questionamentos mais maduros com relação a me assumir, fui desmascarada. Não sei se sou prolixa e 51 muito apegada a detalhes, como a Karla disse há pouco, ou se minhas histórias é que são enroladas mesmo. Quem tiver uma pista que solucione a dúvida, ou se alguém simplesmente desejar fazer qualquer ponderação pertinente, mesmo que irrelevante, pode me mandar um e-mail. Então senta, que lá vai mais uma... Cultivo até hoje uma grande amizade dos tempos da carochinha, orgulho-me de tê-lo apresentado a sua esposa, faço pose de cupido o tempo todo. Recentemente, estive no aniversário de seu filho, que é a cara do pai, a coisa mais linda do mundo. Pois é, acredite quem quiser, foi esse grande e formoso amigo que pôs a boca no trombone. Na época, ficamos alguns anos sem nos falar, por esse motivo e suas derivações. Freqüentando com assiduidade os bares e boates da vida, era comum, surpreendente e, às vezes, constrangedor encontrar, deste lado, pessoas do outro lado do muro. Flagrei “colegas” de infância, “primas” do segundo casamento de meu tio e “sócias” da locadora de vídeo da esquina. Foi numa dessas ocasiões que conheci a amiga da namorada de meu amigo delator. Não sabia quem ela era, investi alguns olhares insinuantes, que não surtiram efeito naquele dia. Descobri a coincidência meses depois, numa festa de aniversário tradicional, em que estávamos reunidos meu amigo delator, a namorada dele e minha paquera. Olhei de ladinho com cara de “Você, aqui?”, dei uma piscadela maliciosa e, mais uma vez, não obtive sucesso. Anos depois, acabou rolando. 52 Fez-se então a conspiração. Minha paquera contou a sua amiga, que contou a seu namorado, meu amigo: “A Pati é sapatão!” Bastou. A história correu de boca em ouvido e, em duas semanas, todos os meus amigos heterossexuais sabiam de minha dupla existência. Percebi olhares tortos, risinhos e, finalmente, chegaram os conselhos e ofertas incríveis: “Pati, você é assim porque não conhece um homem de verdade, deixa eu te mostrar!” A vida dupla cansa, exige muita memória, paciência e organização. Não sou exatamente organizada, minha memória é disléxica e meu saco não tem bolas. Basicamente, só minha família não tinha certeza. Em crise com minha dignidade, resolvi contar. Quebrei as fuças! Vou poupar os detalhes sórdidos. Dois anos depois da mais dura das revelações, saí de casa e fui morar com o Antônio Carlos. Com a ponte construída pelo tempo e o auxílio de minhas irmãs, em uma década nos abraçamos no meio do caminho. Hoje, o que guardo desse episódio é um vasto repertório de piadas. Conhecendo a origem de meus pais, orgulhome ainda mais da sabedoria com que eles administram seus sentimentos atuais. Agradeço a minhas irmãs o empurrãozinho e a todos, minha vida. Vencidas as barreiras pessoais e familiares, só me faltavam as profissionais. Nesse âmbito as coisas transcorreram de forma similar, evoluindo a cada estágio. No primeiro emprego oficial, meus superiores e subordinados pensavam que eu era casada com o Antônio Carlos; nas empreitadas seguintes, eu era uma incógnita; nessa, gastei o verbo e destrinchei o vocabulário no intuito de exterminar toda sorte de mal-entendidos e maus entendedores. 53 Karla Lima e Pya Pêra by Karla Lima Até um ano atrás, eu não consumia álcool nem para brindar – achava incrível que as pessoas espontaneamente bebessem coisas tão amargas, perdessem o controle de si e ainda achassem o conjunto uma experiência positiva. Por causa de uma dificuldade que remonta a minha infância, até hoje não sou capaz de dançar. Como meus passatempos favoritos exigem concentração, sempre fui mais amiga do silêncio que do ruído, e tenho um gosto musical atípico. Isso tudo para dar uma idéia de como eu estava me sentindo naquela boate, com minha amiga gringa, em novembro de 2002. Em cada metro quadrado da pista, espremiam-se 12 corpos brilhantes de suor, freneticamente dançantes ao som de uma música tão horrível quanto alta. Do posto de observação onde passei a noite sem arredar o pé, enxergava as pessoas distorcidas pela fumaça e pelas luzes piscantes. Dante, você de inferno sabe muito pouco! Quando estávamos finalmente prestes a sair dali, depois do último xixi de minha amiga, ela volta do banheiro querendo me apresentar uma mulher que tinha conhecido na fila! Bufei. “Mas será o Benedito ou a camisola dele?! Só uma estrangeira mesmo pra achar que eu vou ter um traço 54 sequer de interesse por alguém desse lugar...” Ela foi dançar e me largou ali, frente a frente e sem assunto com uma japonesinha que, graças a Deus, cuidava de dirigir a conversa. Foi buscar uma bebida para si e insistiu em me trazer qualquer coisa. Encomendei um suco de laranja e logo me arrependi: o bartender certamente riria dela, mas era tarde para cancelar o pedido – avançava com determinação por toda a pista e já ia alcançando o balcão. Beneficiando-me de minha própria altura, embora prejudicada pela dela, tentava não perdê-la de vista. Depois de receber sua própria bebida, virou-se para trás e gesticulou o que interpretei como sendo “Eles não têm suco de laranja.” Tínhamos acabado de nos conhecer e nossas mãos ainda não se comunicavam direito; eu pensei que tinha gesticulado de volta “Então esquece!”, mas devo ter pedido “Então traz de outro sabor.” – pois a conversa teve prosseguimento. Ela mimicou: “Com gelo ou sem gelo?” e eu retribuí, em pantomima: “Qualquer coisa.” Ela voltou à carga com “Açúcar ou adoçante?” e eu, já num nível perigoso de irritação, acenei “Tanto faz, criatura!” Muito tempo depois, ela me contou que só estava sendo gentil, que todo aquele esforço pra obter meu suco era uma maneira de dizer que estava gostando do papo – ocasião em que pude esclarecer que seu empenho tinha sido interpretado como “Minha nossa, que pessoa mais enrolada! Se não tem suco, não tem, pronto! Mas que drama por causa dum assunto sem a menor importância… Eu nem mesmo estou com sede!” Bebi o suco rapidamente e me despedi, justificando que a conversa estava boa, mas eu já estava de partida quando ela e a gringa se conheceram; portanto, se ela me desse o número, eu ligaria na quarta-feira. Não queria parecer mais bruta do que geralmente já transpareço ser, e me 55 achei supereducada por dar uma satisfação pra minha pressa, assim como, ao dizer que ligaria, julguei ter deixado claro meu interesse. Estava com minha amiga na imensa fila pra pagar quando ela ressurge, saltitante: “Eu adorei te conhecer!” Respirei fundo e dei a única possibilidade honesta de resposta: “Eu não posso dizer o mesmo, mas, se um dia eu disser, você saberá que é verdade.” Se alguém dissesse isso pra mim, eu ficaria encantada; pareceu-me que ela não ficou. Não respondeu nada, murmurou um tchau inaudível e se foi. Que pessoa estranha... Quatro dias depois, conforme o combinado, deixei o seguinte recado em sua caixa postal: “Oi, Patricia, aqui é a Karla. A gente se conheceu no sábado, eu fiquei de ligar, estou ligando. Você tem meu número, dá um retorno quando puder. Um beijo.” Combinamos jantar naquela mesma noite. Embora a Patricia goste de fazer troça de mim e relate esse episódio sempre que tem platéia, eu não vejo graça nenhuma nele: anotei o telefone porque iria de fato ligar, disse que não tinha sido especial conhecê-la porque não tinha mesmo, e telefonei no dia marcado porque levo a sério as coisas que digo. Ah!, por que a previsibilidade espanta tanto as pessoas?! O restaurante ainda estava fechado quando cheguei. Para passar o tempo, andei até uma livraria. A meio caminho de volta ao restaurante, a Patricia liga: “Já estou aqui.” Ela tinha passado em casa, tomado banho e trocado de roupa. Chegou, escolheu a mesa, pediu uma Coca, me ligou e esperou. Estava linda, perfumada e tranqüila. Eu não podia estar em mais oposta condição: ansiosa pelo 56 encontro e não querendo fazê-la esperar, apressei o passo, cheguei esbaforida e toda suada. O “cooper” pela Paulista certamente não contribuiu para uma imagem repousada e refrescante e, além disso, eu estava carregando uma malha, minha pasta de trabalho e uma bolsa imensa. Estava meio embaraçada. O jantar foi maravilhoso. A conversa fluía interessante e fácil. Deixamo-nos estar ali por muitas horas, entre antepastos e brindes, prato principal e cigarros, entre sobremesa e risos – a pequena vela central iluminando nossos olhos e uma cumplicidade nascente. Para prolongar o encontro, tomamos quatro cafés cada uma – mas chegou um momento em que ou levantávamos ou desenvolveríamos ali mesmo uma úlcera perfurada. Sugeri andarmos pela Paulista. Terminamos, imagine só, numa cafeteria. Voltamos ao restaurante pra pegar os carros. Decidimos tomar o derradeiro. No que parecia ser a despedida-de-verdade-agora-é-sério, ela faz cara de pidona: “Você vai viajar e eu não vou te ver até não sei quando. Você podia me deixar alguma coisa de lembrança...” A noite tinha sido encantadora – que se dane a breguice –, ela era adorável, eu estava pronta pra cair de paixão: inclinei, fechei os olhos e a beijei. Sua reação foi meio desconcertante: “Olha a vendedora de balas!” Bolas!, quero lá saber? Ela sugeriu darmos uma volta de carro e, no fundo de minha cabeça, um aprendizado infantil se esgoelava: “Não aceite presentes, não pegue carona, não vá com estranhos...” Entrei no carro, não pus o cinto e pedi que ela não travasse a porta. Não sei o que pensei, sou mais alta e mais forte e, de qualquer forma, não faço o tipo aventureiro que salta 57 de um carro em movimento... Mas de todo modo nada fazia muito sentido mesmo. Ela prometeu que seria apenas uma volta no quarteirão, mas o percurso me interessava pouco: eu ria de nervosismo e cobria o rosto com as mãos, pensando “Ai, meu Deus do céu! Mas o que é que eu estou fazendo?… Sou uma louca! Que irresponsabilidade! Onde já se viu? Eu perdi a cabeça… Mas que leviandade!… eu sou uma inconseqüente!” Retornadas ao ponto de origem, arrisquei: “Só viajo na madrugada de sexta, se você quiser, pode ir jantar em casa na quinta, só que moro numa ruazinha desconhecida e meio difícil de achar, eu não cozinho e, portanto, o menu é lasanha congelada, você tem um guia, sabe ler mapa, tinha outro compromisso pra amanhã?” Na noite seguinte, ela chegou trazendo um brinquedinho pra minha boxer. Ou eu não tinha dito que a Aretha era uma boxer ou a Patricia não conhecia a raça: o tal mimo resistiu menos de duas horas. Mas a Aretha retribuiu o gesto com todo o seu afeto patístico, babístico e lingüístico. Quando lhe fiz o convite para jantar em casa, não tinha planejado nada mais íntimo. Por isso, em nossa primeira noite eu não estava depilada, não tinha uma escova de dentes nova para oferecer, ela dormiu sem travesseiro e se enxugou com minha própria toalha de banho. Mas, ao observá-la da janela, partindo naquele início de sexta-feira, nossos sorrisos indicavam que nada disso tinha a menor importância. 58 Pya Pêra e Karla Lima by Pya Pêra Findo meu segundo casamento, passava dias e noites tentando afogar a frustração da derrota. Precisava resgatar a auto-estima e a todo custo queria me vingar da dor, assassinando-a. Essas são palavras poéticas que maquiam meu pé na jaca, chutando o pau da barraca. Naqueles sete anos, vividos de maneira esplendorosa, crédulas de que a prosperidade duraria até o fim de nossas vidas, fomos muito felizes. O ano posterior a esse foi marcado por tentativas mal-sucedidas de convívio pacífico. A contragosto de ambas, nós nos separamos. Dessa fase só tenho lembranças doces e afetuosas. Hoje, amigas e mais maduras, conseguimos ver o que nos cegava. Soltando a franga, fui parar numa boate na Vila Madalena. Era aniversário de uma “colega” da “sócia” da “prima” de uma amiga. Cheguei, vinda de outra festa, para cumprimentar a aniversariante, mas, antes de descobrir quem tinha nascido naquele dia anos atrás, tinha muito que ir ao banheiro. Uma fila quilométrica me afastava do alívio. Logo percebi uma gringuinha atrás de mim: ela não estava me seguindo, apenas esperava sua vez, mais tranqüilamente. Bonitinha 59 que ela era, puxei conversa. De bexigas vazias, seguimos em direção à amiga hétero-simpatizante recém-separada a quem ela queria me apresentar. Pensei: “Vixe!” Nesse instante conheci quem hoje é a razão de minha vida. A primeira impressão foi de deslumbramento. Acho até que meu queixo estava caído quando ela se apresentou: “Oi, meu nome é Karla com K.” Ma-ra-vi-lho-sa! Que mulher é essa? Que que é isso? Respondi a mim mesma: “Muito cimento pra minha caminhonete!” Intimidada com tamanha beleza, acuada por seu jeito cru, utilizei todas as técnicas de conquista que desenvolvi ao longo de 18 anos de carreira, e acabei desapontada. Ela estava com sono, o lugar era muito barulhento, e sua impaciência estava prestes a virar irritação. Quando eu não tinha mais esperanças, ela sacou seu celular e nele anotou meu número: “Ligo para você na quarta-feira na hora do almoço.” Pensei: “Hã, hã!... Tá bom!” Fui então em busca do bolo – a fome me consumia naquele momento. Procurei a pessoa que justificava minha presença na festa: “Caramba, Pati! Onde você estava?” “Nem te conto... Eu estava conversando com uma publicitária tudo de bom. Quem é a aniversariante? Já cortaram o bolo?” “O bolo já era e a aniversariante foi embora uma hora atrás.” “Olha minha publicitária ali na fila do caixa! Vou dar o último tiro, fica olhando.” 60 Fui tentar a última cartada da noite: “Adorei conhecer você, isso é raro em ambientes barulhentos.” Mais ligeira que um projétil de fuzil AR-15, Karla com K disparou: “Não posso dizer o mesmo, mas quando eu disser você saberá que é verdade.” Retornei cabisbaixa: “Você viu quem era?” “Vi. E aí?” “Metida pra caralho!...” Estava no escritório quando um aviso de recado na caixa postal de meu celular chamou minha atenção. Mecanicamente, entre uma anotação e outra, percorri os procedimentos até chegar à mensagem: “Você tem uma nova mensagem recebida hoje, quarta-feira, às 12h01: ‘Patricia, é a Karla. Nos conhecemos no sábado. Estou ligando conforme falei.’” Não é possível. Isso não existe! Liguei de volta, marcamos um jantar para aquela mesma noite. Quatro deliciosas horas entre garfadas se passaram, e saímos para mais um cafezinho. Caminhando pela Av. Paulista, quase a beijei, resisti. Prudência com Karla Lima é sempre a melhor escolha. Voltamos para o restaurante de onde saímos para mais um cafezinho. No balcão, comentávamos sobre nossas diferenças estruturais: ela 1,72 m, eu quase 1,70 m sobre 10,5 cm de salto. Passamos a comparar os comprimentos dos braços, estendidos lado a lado. Um senhor da quarta idade metido a garotão se aproximou estendendo seu braço junto aos nossos: “O meu é maior que os das duas.” 61 (Por que tem gente que não tem amor à vida?) “Quem te perguntou?” Acho que nem preciso identificar a autora dessa frase, preciso? Empapuçadas de cafezinhos, seguimos em direção aos carros, estacionados bem em frente ao local, onde uma vendedora de balas oferecia seus produtos. A Karla iria passar o final de semana seguinte fora de São Paulo. Previ que, se não tomasse uma atitude, só conseguiria algo – se conseguisse – dali a uma semana. Calculei, somando e subtraindo, todos os sinais corporais das últimas seis horas e concluí que deveria arriscar. O pior que poderia acontecer era soar algo do tipo: “Quem você pensa que é?” Pensei na resposta: “Penso que sou eu, mas posso estar errada.” Respirei fundo: “Você não vai deixar nada para que eu possa me apegar até nos vermos novamente?” Ela me beijou a boca. Um beijo safado-amoroso que me fez tremer por dentro… eu acho que tremi por fora também. Só quem pode afirmar é a vendedora de balas, mas não sei por onde ela anda. Convidei a Karla para uma voltinha no quarteirão. Sugeri meu carro, por causa dos vidros escuros. Ela titubeou, mas foi. O passeio no bosque só foi produtivo porque, ao fim dele, fui convidada para comer lasanha em sua casa. Despedimo-nos. Nem sei como cheguei viva. Vim cantando, batucando nas coxas, comemorando... não via nada a meu redor. O dia seguinte se arrastou. À noite, comemos lasanha descongelada, conversamos pouco e namoramos muito. 62 Na manhã seguinte, quando fui embora, o guardinha da rua me falou bom-dia com um sorrisinho malicioso. Localizei a posição do quarto, calculei a distância entre seu posto de observação e a janela e concluí que nós tínhamos tornado a noite dele bem divertida e barulhenta. Naquela madrugada, ele dispensou o uso de cafeína... Olhei pra cima e ela acenava. Meu Bicho estava de roupão com um sorriso maroto-amoroso nos lábios. Essa cena se repetiu em minha mente 824 vezes ao longo daquele dia, e outras tantas até mudarmos aqui pra casa. 63 A primeira impressão nem sempre é a que fica Ansiosa por apresentar a Karla a meu círculo de amigos, organizei um programinha com seleto grupo. Estávamos em seis, incluindo nós duas. Todas já tinham ouvido muito a respeito dela: elogios rasgados e declarações de amor quilométricas que, de tão açucaradas, causavam nas ouvintes certa gastura. Houve aquela falta de assunto inicial – hoje, repensando os acontecimentos, percebi que eu mesma costurei a saia justa. De um lado, dizia: “A Karla é descendente de alemães, um pouco fria, meio intelectualizada, não dança, não bebe e não está acostumada a conviver com muita gente; então, relevem qualquer contratempo… no fundo é um doce de pessoa! Ela só precisa de um tempo para se socializar.” Do outro: “Bicho, o povo que você vai conhecer é meio estabanado, adora pastelão com azeitona, não perde a novela das oito, toma todas até cair e dança até a boate fechar. Tenha um pouquinho de paciência que, no fundo, elas têm conteúdo.” Unir pessoas que amo requer um pouco de estratégia. Só amenidades... A Karla se mantinha impassível diante da piada da loira que tingiu o cabelo em busca de inteligência artificial. Morremos de rir. Assim que as gargalhadas 67 embaladas por algumas cervejinhas cessaram, ela comentou: “Não querendo substituir um apotegma por um aforismo, discordo.” Nós nos entreolhamos e não entendemos nada, mas achamos conveniente rir da piada dela também. Finalmente, meu Bicho foi ao toalete – saberia, enfim, quais eram as primeiras impressões do grupo em relação a minha nova namorada. “Nooossa, Pati! É seu número, mas não parece muito seu estilo.” “Que deusa! Ela fala várias línguas, hein? Se deu bem, hein, Pati?” “Tudo de bom, um pouco séria demais, né?” Sem saber o que Karla pensava enquanto enxugava a periquita após o xixi, e imaginando seus bufos de impaciência, sugeri às meninas que deixassem as piadas de lado e buscassem assuntos mais relevantes. “Karla, que bom que você voltou! Eu estava contando por que meu último relacionamento acabou. Minha “ex” é de Câncer com ascendente em Escorpião e sou de Áries com ascendente em Sagitário. Não conseguimos superar nossas diferenças. A Pati é de Touro com ascendente em touro, e você?” “Eu sou lesma canhota com ascendente em tamanduá alérgico. Odeio Astrologia, acho uma bobagem sem tamanho. Não sei como alguém pode levar a sério um assunto imbecil desses.” Entreolhamo-nos mais uma vez, e o silêncio tomou conta do ambiente. Foi quando alguém relinchou como jumento confinado faz quando avista uma égua no cio: “Iíííóóó…óóó!” Morremos de rir e, mais uma vez, a Karla não entendeu a piada. “Qual a graça do relincho do 68 jumento confinado?” Mais tarde, expliquei: “Não é o relincho em si, são os coices que vêm antes e depois dele.” Ela foi apelidada pelo grupo de Pit Karla e o “Iíííóóó…óóó!” virou seu hino. Em muitas ocasiões, reuniões e viagens, o passatempo predileto do povo até hoje é a gincana “Ai, minha bunda!” O jogo consiste em provocar a Karla, com muita prudência sempre, e contabilizar os coices recebidos. Vence quem ficar com a bunda mais roxa. Trocando confidências com a irmã dela, consegui descobrir o signo de meu “Bicho-do-Mato”: Aquário com ascendente em Gêmeos. Como uma típica taurina com ascendente em Touro, na primeira oportunidade fui saber onde estava pisando. Recorri à Internet e descobri que pisava em ovos! Touro & Aquário Aquário pode ser um grande auxiliar nas questões concretas e profissionais, mas afetivamente deixa muito a desejar. Seus nativos são excessivamente frios e racionais para você, taurina, que possui um enorme romantismo. Aquário preza, acima de tudo, a liberdade, o que não combina nem um pouco com a natureza possessiva da taurina. Além disso, os nativos desse signo são muito extravagantes e sentem um enorme prazer em provocar e chocar as outras pessoas, o que não tem nada a ver com Touro, que gosta de sossego. Mas talvez o que mais irrite a taurina seja o fato de que, apesar de julgar ser o dono da verdade, o aquariano vive num mundo de utopia e tem o hábito de fazer mil planos mirabolantes que não dão em nada. Na cama, as coisas também não rolam como deveriam, pois as pessoas de Aquário são excessivamente desligadas e têm dificuldade para entender as necessidades alheias. 69 Hoje, o que digo sobre esse texto e os ovos que esmaguei é: “Meu Bicho-do-Mato é a força motriz das questões concretas, afetivas e profissionais de minha vida, sem deixar nada a desejar. A frieza inicial não passou de inicial. Sua racionalidade me fortalece e ampara. A Karla preza a liberdade sim, e meu caráter possessivo fica ridicularizado diante de tanta confiança mútua. Seu enorme prazer em provocar e chocar as outras pessoas se transformou em ótimas piadas. Os astros se equivocaram no que tange a mil planos mirabolantes que não dão em nada: ela faz poucos planos e os concretiza. Pensar em planos mirabolantes é minha tarefa. Ela tem dificuldade para entender as necessidades alheias, mas, como sou parte dela, deixei de ser alheia, e na cama ela é um espetáculo; embalada por uma tempestade, então, meu Bicho enlouquece!” Após pequeno desvio no percurso do capítulo, retomo o tema em questão: como sei que meu Bicho-do-Mato sente imensa gratidão pelas pessoas que lhe concedem uma oportunidade de transformar as primeiras impressões, quase sempre desastrosas, em segundas tentativas mais bem-sucedidas, iniciei o CUCOSOPAPYA. Não entendeu nada, né? A Karla é bem mais habilidosa com a palavra escrita; sendo assim, deixo a explicação do CUCOSOPAPYA nas mãos dela. Se preferir, me ligue que eu lhe conto. 70 CUCOSOPAPYA Quando a Patricia e eu nos conhecemos, ela viu em mim algum potencial – mas só porque tem olhos de águia. Não fosse por essa capacidade de enxergar além do alcance, como o super-herói, não teríamos passado do primeiro encontro. Todos os dias, independentemente da hora e da ocasião, eu usava os mesmos anéis: na mão esquerda eram três prateados, com golfinhos, algas e baleias, e na direita eram três dourados, sem um tema que os unificasse. De bater o olho em minhas seis falanges ela compreendeu que eu gostava de anéis, que não tinha lá muito senso estético, que não sabia ou não me preocupava em combinar os acessórios nem com a roupa nem com o programa, que misturava artesanato de latão com ouro herdado da avó e que ignorava os preceitos básicos de nãoofensa aos olhos alheios. O tempo passava e ela me dando anéis. Uma semana do primeiro beijo? Anel pra comemorar. Acordou apaixonadinha? Anel de presente no jantar. Lua cheia? Hummm... esse formato redondinho vem mesmo a calhar! Eu gostava de ganhar os anéis, de fato eram todos lindos, mas não entendia o motivo da obsessão com o assunto. Seria trauma de infância? 71 Em poucas semanas ela alcançou o objetivo: os anéis tinham tanta personalidade, e eram tão diferentes uns dos outros, que até eu percebia que deveriam ser usados separadamente (uns dos outros e todos dos meus). Foi assim que ela elevou minhas mãos de um carnaval permanente e sem estilo para uma justaposição de minha essência com o verniz dela. Viu só como ela enxerga longe? Processo semelhante viveu meu guarda-roupas. Eu me vestia para não andar por aí pelada; sempre achei que roupa não vale o que custa, que seguir moda é de uma idiotice sem tamanho e que um par de sapatos pretos basta – afinal, quantos pares de sapatos você consegue usar ao mesmo tempo? Devagar e com jeitinho, ela me deu ou me incentivou a comprar tudo novo. Tudo! Minhas calças de trabalho, fiéis companheiras de muitos empregos e que ainda me serviam perfeitamente, foram doadas para a igreja do bairro. As malhas que faziam par com elas foram depositadas nos coletores da Campanha do Agasalho. Os sapatos e as blusas ela entregou pra uma moça que tocou a campainha pedindo uma esmolinha pelo amor de Deus – ela com certeza nunca recebeu tanta coisa, tão depressa, em tão bom estado. Em menos de um minuto a Patricia esticou pra incrédula pedinte duas sacolas cheias – obviamente, dali em diante a campainha tocaria três vezes por semana: “Sobrou alguma coisa, dona?” Esse processo teve uma conseqüência ruim e uma boa: antes eu ia com qualquer coisa a qualquer lugar, e muitas vezes saía de casa sem nem me olhar no espelho; agora me preocupo com a aparência e, apesar de ter o dobro de opções, às vezes não acho “a certa”, experimento várias combinações antes de sair de casa. É uma chatice! 72 Por outro lado, reconheço que minhas roupas são realmente muito mais bonitas, e com uma freqüência surpreendente ouço elogios sobre como meu novo estilo valoriza alguma coisa. Repintada a fachada, era hora de reformar o interior. A Patricia achava positiva minha estrutura básica (“inocência, sinceridade e princípios”), mas sentia falta de acabamento. Eu era mais ou menos como uma casa sem área social, só com quarto, banheiro e cozinha. Em mim, tudo de particular, íntimo e supostamente reservado era público, e não havia flores sobre a mesa, sofá para uma visita sentar-se, nem quintal pra prender o cão de guarda. Dizem que tenho um gênio difícil, que sou arrogante, bruta e fria. Verdade ou mediocridade de quem julga, estou habituada a suscitar mais antipatia que afeto. Decorre daí que minhas amizades são geralmente fruto da perseverança do outro. Porque a maioria das pessoas se choca no primeiro contato e não tem nenhuma razão pra insistir num segundo, tenho poucos e queridíssimos amigos a quem sou profundamente grata: eles foram os que, por curiosidade, masoquismo ou pagamento de promessa, concederam uma segunda oportunidade. À persistência dessas pessoas tolerantes e de boa vontade eu devo minhas mais antigas relações sociais. E àquelas que, a exemplo de mim mesma, não tiveram paciência, interesse ou motivo pra insistir, quero só registrar que as compreendo per-fei-ta-men-te! Quando começou a se dedicar a minha face social, a Patricia conseguiu de mim a primeira colaboração ativa. Eu não fiz restrições às mudanças anteriores, mas também 73 não ajudei muito. Mas este assunto era diferente. Eu não queria que ela continuasse sofrendo de TEPANA (Tensão Pré-Apresentação a Novos Amigos), então concordei em me matricular no CUCOSOPAPYA (Curso de Convívio Social Pacífico Patricia Yury Assumpção). Agora, muitos primeiros encontros evoluem para o segundo, e quem me conhecia antes diz que a evolução é gritante – ou melhor, é marcante, que gritar eu nunca gritei. Se ela ainda me chama de Bicho, é puro hábito! O CUCOSOPAPYA é dividido em três tópicos, que podem ser assim resumidos: I. Crianças: a) São sempre bonitas para seus pais, parentes e babás. Mesmo que você as considere uns filhotinhos de cruz-credo, diga “Mas que olhos expressivos!”, ou então “Que mãozinha mais gorducha!” b) Você não precisa falar com bebês sabendo que eles não a entendem, mas não faça cara de desprezo para o adulto que fica de “tatibitate” inclinado sobre o carrinho. c) Não pegue no colo nenhum humano que você consiga carregar. II. Adultos: a) Pessoas assistem a novelas; viva com isso. b) Ao se impacientar com alguém, procure não reproduzir seus pensamentos em expressões 74 faciais ou de mãos. Só em último caso bufe ou revire os olhos. Lembre-se de jamais, jamais fazer as duas coisas simultaneamente. c) Deixe seu amor ao debate e a fúria com que defende seus argumentos para depois do oitavo encontro. d) Dê seguimento a conversas inócuas; elas podem ser o caminho para as mais profundas. III. Amenidades: a) Se não for perguntada, não opine sobre o novo corte de cabelo, a calça nova nem a nova namorada de ninguém. b) Na remota eventualidade de ser perguntada, prefira desconversar a ser honesta. (Agora você já sabe. Se à pergunta “Que tal meus peitos novos?” obtiver “Nossa!… tá calor, né?” por resposta, é porque achei o implante horrível.) Pronto, estão cumpridos os dois propósitos do capítulo: dar à Patricia o crédito pelas mudanças operadas em mim e garantir de antemão uma justificativa a quem eu eventualmente vier a agredir… Ainda estou estudando, caramba! Deixe de ser nhenhenhém! 75 O vai-e-vem, o volta-e-vai Dois lares, duas estruturas, duas possibilidades de destino a cada fim de dia. Durante mais de um ano, alternávamos um dia na casa da Karla, outro em meu apartamento. Uma verdadeira maratona de vai-e-vem, volta-e-vai. Os inconvenientes eram muitos, mas irrelevantes quando comparados ao prazer de estar ao lado dela. Quando a mudança era daqui pra lá, eu já levava a mala organizadinha. Na casa de meu Bicho, nem pêlo ficava fora do lugar. Nunca tinha visto tanta funcionalidade, perfeição e capricho reunidos num só ambiente. A cozinha parecia uma loja de meia dúzia. Tudo limpinho e arrumadinho como se vê nas vitrines: meia dúzia de copos, pratos, garfos, potes, xícaras. Meia dúzia de tudo. Ok, alguns poucos itens eram únicos, a exemplo da jarra, do bule e da concha de sopa. No início, tinha um pouco de medo, quase pânico, de mexer nas coisas e não saber onde nem como recolocálas. Aos poucos, por tentativa e erro, percebi que poderia ser um pouco mais organizada, e que meu Bicho tinha alguma tolerância a minhas limitações. 76 Um dia, pensei tê-la pego no pulo: no degrau da escada estavam um par de sapatos, uma sacola de supermercado, um copo d’água e uma pilha de livros. “Bicho, o que essas bagunças estão fazendo no meio da escada?!” “Esperando que você suba e se manque de levar uma parte.” Tomou? Método é tudo na vida da Karla com K. Ela age de acordo com os preceitos ensinados por minha sogra. Seus movimentos são friamente calculados para economizar tempo, evitar repetições e para tocar em cada objeto uma única vez, dando a ele o destino final. Com isso em mente, simule Karla com K guardando as compras do mês… Duvido que você tenha conseguido. Eu já tentei imitá-la. Mesmo tendo observado a operação diversas vezes, é sempre: cinco itens guardados, pããã!… toquei duas vezes na lata de creme de leite. Quatro itens depois, pããã!… tive que abrir a geladeira de novo. E o pããã! não pára. Quando a mudança era de lá pra cá, eu me sentia jogando em casa (literalmente). Esforçava-me para muquiar os excessos de bagunça, e sobre o restante alegava excentricidade. As mudanças eram diárias. Um transtorno para nós e um sofrimento para os respectivos bichos de estimação, que – dia sim, dia não – acabavam privados de nossa presença. Em meu caso, um schnauzer macho, quase senil; no caso da Karla, uma boxer fêmea recém-saída da puberdade. 77 Eles sofriam por nossa ausência constante. Para minimizar o drama, tentamos algumas aproximações para incluí-los na bagagem, possibilitando assim a extensão do período de permanência em cada casa, mas não fomos bemsucedidas nos intentos. Além de incompatíveis no tamanho, criação e maturidade, seus temperamentos eram absolutamente opostos: a Aretha era a cópia fidedigna de sua dona – impetuosa, estabanada, inteligente e inocentemente feroz. Os passeios diários eram verdadeiros duelos de cabo-de-guerra: de um lado ela, do outro uma de nós. A Aretha desenvolvia táticas cada vez mais aprimoradas para nos vencer. Ela fingia estar entretida com o cheiro do xixi do cachorro do vizinho e, de repente, arrancava em direção à pombinha branca: 1 x 0. Após uma bronca, vários solavancos e alguns minutos de castigo sentada na calçada, ela parecia arrependida. Evitava olhar para os lados e seguia cabisbaixa. A duração do efeito positivo da repreensão, no entanto, estava condicionada à época do ano. Explico: no inverno, na primavera e no verão, a calmaria se mantinha em média por três minutos; no outono, durava até a folha seguinte se desprender da próxima árvore. Apesar de conhecer todos os pontos críticos do passeio (o poodle da casa rosa, o pastor alemão do Sr. Fritz, o bull terrier pirata do pitboy e a pinscher da senhora mal-humorada), sempre aparecia um elemento-surpresa: dois meninos entregando panfletos, um casal fazendo jogging, o motoqueiro desavisado; enfim, o passeio terminava e o placar nunca era inferior a 9 x 0, por mais que eu me 78 preparasse. Já o Bicho voltava do passeio cantando de galo: “Hoje foi só 5 x 0.” Certa vez, a Aretha me venceu por W.O. Tudo parecia calmo quando, de repente, uma barata! Nesse caso, e só nesse único caso, isso ocorreu. Ela correu atrás da barata sem que eu oferecesse resistência nenhuma; muito pelo contrário, soltei a guia e corri em direção à calçada oposta: “Vai, Aretha, mata!” Proporcional à semelhança Karla-Aretha era a diferença Patricia-Oliver. Ele era ranzinza, rabugento, irritadiço e ligeiramente apegado ao ócio. Quando saía para passear, raramente olhava para os lados. Passava quase que indiferente a tudo, no máximo rosnava, de maneira impetuosa, se afrontado. A única semelhança entre nós era essa: apesar do tamanho, nosso rosnado impunha respeito. Assim como precisei submeter meu Bicho ao CUCOSOPAPYA, nós precisávamos submetê-los ao CUCOSOPACÃES. E assim foi: internamos os dois pupilos num canil especializado e 15 dias depois fomos apanhá-los. A eficiência do método se comprovou: saíram de lá convivendo. Não se amavam, mas coexistiam de maneira pacífica, respeitavam-se sem que nenhum deles abrisse mão de seu princípio ideológico. O diálogo é o melhor caminho ao entendimento. Voltamos para casa, desta vez os quatro no mesmo carro. A Aretha, excitadíssima, babava e pulava sem parar. Como chovia, os vidros estavam fechados e embaçaram em menos de cinco minutos. O Oliver, junto com a Aretha no banco de trás, era esmagado pela euforia da cadela ensandecida. Achei conveniente colocá-lo no banco da 79 frente e pular pro de trás. Enciumado com as lambidas frenéticas que a Aretha dava em meu rosto, ele rosnou daquele jeito e ela rosnou de volta. Ai, meu Deus!… dentro do carro fechado, na auto-estrada, vai dar bosta! “Calma, Bicho!” “Eu tô calma!” Acabou que não deu. Seguimos com o Oliver sendo esmagado, a Aretha babando, e nós concentradas na abstração dos percalços momentâneos vislumbrando as vantagens da vida a quatro. Desde então, nossas mudanças se tornaram menos freqüentes: uma semana lá no sobrado da Lapa, outra aqui. Nossa vida realmente melhorou bastante quando passamos a mudar de casa apenas uma vez por semana. Nessa fase, com os cães se dando relativamente bem, e com os itens de necessidade básica duplicados e disponíveis, tínhamos uma rotina quase tranqüila. Duro mesmo tinha sido o período anterior... Para dar as boas-vindas à Patricia, tentei equipar minha casa com as coisas que tinha visto na dela, começando pelo banheiro. Até então, em meu box havia um shampoo, um condicionador, uma bucha e um sabonete. De imediato, acrescentei um sabonete infantil (ela só usa sabonete infantil em barra), um sabonete para o rosto (que me deu um trabalhão pra encontrar), um sabonete líquido (também infantil), um óleo pós-banho, uma outra bucha, um kit de shampoo e condicionador acompanhado de desembaraçador de fios e máscara revitalizante, um esfoliante corporal e uma lixa de pé. Meu box media meio 80 metro quadrado; quando passou a abrigar todos aqueles pertences, ficou tão mais aconchegante! Sobre a pia as mudanças foram suaves: apenas mais uma escova, mais uma pasta e mais um fio dental (é claro que, só pra facilitar, usávamos marcas diferentes de tudo!). Ao gabinete, minúsculo, adicionei: discos de algodão e adstringente, esfoliante facial, regulador de oleosidade, secante em bastão, em tubo e em lápis, elásticos, grampos, pente, escova, suas marcas favoritas de absorvente externo e interno, hidratante, talco, colônia de verão e perfume. Fora esses detalhes, a única coisa que mudou no banheiro foi a altura do espelho, que teve que ser diminuída uns 30 centímetros – para que ela não precisasse usar saltos pra se enxergar. Mas as principais mudanças nem foram no aspecto físico da casa, porque eu achava de um romantismo incrível ter roupas dela em meu armário, seus instrumentos e livros de estudo na estante da sala, suas guloseimas favoritas na despensa, seu carro em frente ao portão. Mesmo quando sua presença se manifestava no rolo de papel higiênico terminado e não-substituído, quando a lata de Coca passava a noite sobre a mesinha da sala, quando eu descia pra fazer café e no último degrau da escada tropeçava num pé de tênis, e até mesmo encontrando as chaves do carro dela em cima do fogão, continuava me divertindo com nossas diferenças, recolhia e arrumava tudo, fazia um sermão terminado em beijo e saía pra trabalhar toda feliz. (Minha irmã diz que nunca me imaginou tão Amélia!) Difícil mesmo foi me acostumar a certos hábitos novos. Todas as manhãs, tínhamos que combinar onde dormiríamos naquela noite. Entre levantar da cama e 81 estar realmente acordada e lúcida, a Patricia precisa de umas duas horas. Manda a prudência que tudo o que for decidido com ela nesse intervalo seja confirmado mais tarde, quando os outros 80% de sua capacidade intelectual estiverem disponíveis e operantes. Mas eu só descobri isso algum tempo depois, quando já tinha umas três ou quatro vezes ido para um destino enquanto ela me esperava em outro. E mesmo o processo de verificação vespertina não garantia muita coisa: às vezes surgia um programa noturno e a roupa que ela fazia questão de usar estava na casa oposta, ou uma mudança brusca de temperatura me obrigava a sair do trabalho, em Pinheiros, pegar uma roupa quente em casa, na Lapa, e ir dormir com ela no apartamento a 26 km de distância. Valia a pena todas as vezes. 82 O casamento das laranjas maduras na beira da praia Poucas piadas lésbicas circulam no meio e fora dele. Uma das mais comuns é: O que uma lésbica leva no segundo encontro? O caminhão de mudança. Se a piada fosse minha, prolixa que sou, diria: Seu próprio caminhão lotado de Playboys, lembranças e bilhetinhos de outros relacionamentos, pochetes de couro, kit de manicure (Trim, escovinha e lixa), DVD pirata da série L Word, discografia completa da Ana Carolina, Zélia Duncan, Marina Lima e o que sobrou da obra da Simone depois de excessivas execuções, colônia Très Brüt de Marchand para o dia, Pólo by Kim para as tardes e Azzarro para as noites e desodorante Axe Aerosol Touch para todas as horas. Confirmando o fundo de verdade dessa piada, fomos muito breves. Salvo raríssimas exceções, quando a responsabilidade profissional falou mais alto, ela ouve meus resmungos noturnos dia após dia desde que experimentei sua lasanha descongelada. 83 Confira a cronologia: Dia 30 de novembro de 2002 fomos apresentadas pela gringuinha. Dia 4 de dezembro de 2002 ela me deu um beijo. Dia 5 de dezembro de 2002 ela me deu vários beijos. Dia 15 de dezembro de 2002 ficamos noivas. Dia 3 de março de 2003 nos casamos à beira-mar. Após 93 dias a contar da apresentação, o que equivale a 89 dias após o primeiro beijo, nos casamos. Na verdade, esses não eram exatamente meus planos, mas, como uma lésbica típica, sucumbi. Resolvemos nos presentear com uma viagem a Fernando de Noronha. Quando aceitei o presente, não imaginei o que estava por vir. Empolgada com nossa primeira luade-mel, esqueci que não éramos casadas e subestimei minha aerodromofobia. Com dor na garganta por causa do nó, coração ainda taquicárdico e a cabeça atordoada por um sem-número de palavrões proferidos mentalmente, cheguei a Natal. A Karla chegou plácida; então concluí que meus esforços não deixaram transparecer o nível da fobia. Vencida a primeira barreira, já pensava na muralha do dia seguinte: teco-teco até a ilha. Fudeu! Quando chegamos ao hotel onde passaríamos a noite até o próximo pesadelo, achei que estava sonhando: assim que entramos na suíte, duas camas de solteiro nos aguardavam. Meu coração disparou, na garganta um nó se fez e um zumbido tapou meus ouvidos, tamanha a altura e o 84 baixo calão do palavrão que meu subconsciente proferiu. “Amor, você não reservou cama de casal?” “Reservei, Bicho, reservei...” “Ah, eu vou resolver isso é agora mesmo!” A Karla saiu pisando duro, e eu atrás dela: “Calma, calma, deve ser uma confusãozinha, deixa que eu resolvo.” “Mas eu estou calma!” Ela andava simplesmente como quem tinha pressa, e eu me esforçava como quem disputa a medalha dos 200 metros rasos nas Olimpíadas. Ela chegou antes. Com o voucher em punho e o indicador sob o X que assinalava a opção double na reserva: “Você sabe o que significa um X no quadradinho ao lado da palavra double?” “Sim, senhorita.” “Então, por que motivo estamos no quarto 212, onde há duas camas de solteiro e não uma de casal?” A recepcionista, ligeiramente gaga: “É que nós achamos que a reserva estava errada. Quando vimos Srta. Patricia e Srta. Karla, presumimos que duas camas de solteiro seriam mais apropriadas.” “Não me admira, dado o nível dessa espelunca, que vocês tenham larga experiência com reservas erradas. Mas desta vez, incrivelmente, a reserva estava certa. Quarto de casal, por favor!” Dez minutos depois estávamos hospedadas no 269 – sugestivo, não? Sem muitas opções, passamos o fim daquela tarde na praia mais próxima ao hotel. No dia seguinte pela manhã já seguiríamos rumo a Fernando de Noronha. Cheguei a 85 consultar, sem a Karla saber – lógico! –, a possibilidade de alcançar a ilha a nado, mas era fora de cogitação. Grande, Prainha ou Mole. Acho que um desses é o nome da praia onde estávamos – esse é um caso em que o detalhe é muito relevante, mas eu não consigo me lembrar do nome da bendita praia de jeito nenhum. Ah! Acho que era Praia da Benedita… não, Barraca da Benedita na Praia Bendita. Sei lá! A praia não era nada de tanto assim; pelo contrário, para nosso gosto, era esquisitíssima: areia estreita, cheia de barracas com mesas e cadeiras, água não-cristalina e ambulantes desesperados por uma vendinha que fosse. A nosso favor, só a ausência de pessoas – era uma segunda-feira. Foi lá, às 17h30, que nos casamos. O cenário parecia não ser o ideal, mas se tornou. Instaladas numa barraca, sob a sombra de um guarda-sol, tomando suco de caju, brindamos. Nada foi premeditado, pensei no vôo do dia seguinte e na iminente possibilidade de enfartar. Ponderei o fato de viver uma lua-de-mel sem ao menos estar casada. Recapitulei os 93 dias mais maravilhosos de minha vida até então. Meu coração sumiu de meu peito: “Casa comigo, Bicho?” Ela desnudou meus pensamentos como se estivesse dentro de mim. Nossos olhos simultaneamente foram umedecendo entre sorrisos tímidos. Depois de um longo abraço, ela sacou sua inseparável caneta e em meia face de um guardanapo escreveu a primeira cláusula de nosso próprio contrato nupcial. Nossos olhares só se desgrudavam durante o ato da transcrição das palavras. Olhos 86 nos olhos, inundados de lágrimas, nós alternamos a formulação das cláusulas. Enquanto pensava, eu sorria, brincava com o futuro, chorava e sorria. E, enquanto ela pensava, eu admirava aquela mulher tão linda. Contrato nupcial De um lado Patricia Yury Assumpção, portadora do RG tal, e de outro Karla Barbosa Lima, portadora do RG tal, firmam no presente momento o contrato nupcial regido pelas cláusulas descritas a seguir: 1) Este casamento é baseado em amor, acima de tudo, e também em respeito, sexo, companheirismo, cumplicidade, diálogo, apoio mútuo, verdade e lealdade – esses oito itens não necessariamente nessa ordem. 2) As partes elegem, desde já, a compreensão como ferramenta principal das questões individuais, e a harmonia como cenário constante em qualquer situação. 3) As partes concordam que o desenvolvimento da outra interessa tanto quanto o seu próprio, se não mais. E, portanto, ambas se comprometem a ter esse fato como objetivo principal em todas as ações. 4) Em caso de viuvez súbita e/ou precoce, caberá à parte que ficou dar seguimento aos planos, realizações e conquistas. À parte que se foi caberá suportá-la espiritualmente nessas ações, e preparar uma grande recepção por ocasião do reencontro. 5) As partes se comprometem a diminuir a distância entre os conceitos-chave da boa convivência, 87 cada uma revendo sua parte, de modo a minimizar as diferenças entre os opostos já descobertos e os que estão por vir. 6) Eu, Patricia, espero que ela me ame apesar dos meus defeitos e por causa das minhas qualidades. E, em contrapartida, me comprometo a diminuir os “apesar dos defeitos” em freqüência e intensidade, incluindo ser menos sensível e não bufar quando ela quiser dormir. 7) Eu, Karla, espero que ela me ame apesar dos meus defeitos e por causa das minhas qualidades. E, em contrapartida, me comprometo a diminuir os “apesar dos defeitos” em freqüência e intensidade, incluindo ser menos bruta e não bufar quando ela quiser discutir a relação. § Em ambos os casos, revirar os olhos é permitido. A quebra de qualquer uma das cláusulas implica a revisão do termo ora acordado, cabendo às partes a decisão sobre a renovação ou a rescisão do presente. Natal, 3 de março de 2003. “Eu vou vomitar! Que coisa enjoativa, quanta pieguice! Como tem gente miudinha nesse mundo, ô meu Deus!” Até o final de 2002, certamente essa seria minha reação diante desse texto. Mas eu saí em férias, conheci a Patricia, começamos a namorar e, menos de um mês depois, diante do mesmo material, eu exclamaria, com voz melosa e fazendo biquinho: “Ai, mas que coisa liiinda!” 88 Os amigos do trabalho foram os primeiros a notar que alguma coisa estava acontecendo comigo. Eu não tinha ficado rica, certamente não era alegria pelo retorno ao batente – só poderia ser um novo amor! Pele viçosa, cabelos sedosos, olhos brilhantes e roupas novas? Hummm!... Gentil, paciente e com um bom humor inabalável? Não foi difícil para as seis mulheres com quem eu trabalhava acertarem em cheio e de primeira que, sim, eu estava apaixonada! Os colegas, o chefe e meus clientes se beneficiaram muito das mudanças que a Patricia operou em mim – eles só não sabiam a quem creditar o milagre. Ela tinha-me aconselhado a manter segredo sobre nós: não conhecendo nada do ambiente em agências, teve receio por mim. “Se você entrar na copa e o grupinho se calar de repente, você vai sentir-se horrível. É melhor se preservar; pela frente todo mundo aceita e diz que acha normal, mas cada vez que você sair de um ambiente vai ficar pensando nas fofocas que vão fazer pelas suas costas.” Previsivelmente, meu silêncio só contribuiu para aguçar a curiosidade geral. Muito tempo depois, fiquei sabendo que tinha existido uma bolsa de apostas sobre quem era meu novo amor. Parece até que o bolão extrapolou os limites de nosso pequeno grupo e chegou ao pessoal da cantina. Mas como as pessoas cuidam da vida alheia, não? Fiquei surpresa com tanta falta do que fazer. O diretor de criação da agência estava em primeiro lugar, com 35% dos votos; um de meus clientes recebeu quase 20%; um amigo querido de quem eu falava muito ocupava a terceira posição e, na lanterna, figurava uma 89 celebridade qualquer. Afinal, diziam os apostadores desse item, se eu escondia tanto só podia ser alguém famoso: atleta, ator ou cantor. Imaginavam-me na capa da Caras, cobrindo o rosto, e um titulão denunciando tudo: “Fulano de namorada nova; ela não é do meio.” Quando soube disso, dei muita risada. Eu não fazia idéia de quem eram aqueles ídolos, não reconhecia um único nome naquela lista de artistas! Seguindo a recomendação da Patricia, mantinha-me calada – só Deus sabe a que custo. Finalmente, a brincadeira perdeu a graça. Passaram a se referir a meu amante como ET – achavam legítimo, já que eu parecia mesmo ter sido abduzida. Isso facilitava muito as coisas para mim, pois sendo ET um substantivo masculino, eu não precisava preocupar-me em mudar pronomes possessivos, artigos e adjetivos para o outro sexo. E o fato de eu não abrir a boca não impediu a mulherada de participar, ainda que indiretamente, de meu romance. Por exemplo, quando eu estava planejando a viagem para Fernando de Noronha, elas me obrigaram a comprar uma garrafa de champanhe, me presentearam com velas coloridas e gastaram horas me instruindo sobre a criação do clima certo: “Aproveita quando o ET for tomar banho, espalha as velas por lugares estratégicos e fica deitada assim de lado, enrolada no lençol, mas pelada por baixo. Deixa as taças por perto, mas sem que ele veja...” A turma, numa animação incrível, não se conformava com os obstáculos que eu apresentava: o transtorno de carregar coisas frágeis e pesadas na bagagem, a possibilidade de o ET achar tudo e estragar a surpresa, o risco de eu incendiar o quarto do hotel – fora a breguice inominável 90 da cena: fazer charme, nua, num quarto bruxuleante! Para ser o retrato do inferno só tinha faltado recomendação de trilha sonora. Não sei como a Patricia teria reagido, mas eu, certamente, teria caído numa gargalhada incontrolável e constrangida. Não me lembro se chegamos a acender as velas, mas abrimos juntas o champanhe e nos divertimos criando histórias para eu contar na volta: “Nossa, gente, vocês tinham toda a razão! Ele ficou louco de desejo... Quando saiu do banho e me viu ali, com cara de tesão, mordiscando a ponta do indicador e toda dourada pela chama das velas, partiu para o ataque, sussurrando coisas picantes...” Dois meses depois da viagem, cheguei a meu limite. Eu nunca me incomodei com maledicências e não iria começar aos 32 anos. De qualquer forma, já falavam de mim, de modo que só haveria alteração no assunto: de “Nossa, essa Karla é uma cavala!” iria provavelmente pra “Eu sempre desconfiei, sapatão é tudo mal-humorado mesmo!” Contei. E, conforme eu suspeitava, nada mudou para ninguém em nenhum sentido. Quem não ia lá muito com minha cara continuou não indo e quem gostava de mim continuou gostando. Simples e honesto assim. 91 O final feliz de uma história de amor improvável Assim como a Patricia e eu não temos quase nada em comum, a educação que demos a nossos cães também era meio incompatível. Por isso, quando eles voltaram do treinamento conseguindo conviver, e isso permitiu um espaçamento nas mudanças, suspiramos aliviadas: “Nossa vida vai mudar!” E mudou mesmo, especialmente para eles: só o que não estranharam foram as secretárias domésticas, ambas baixinhas, gordinhas e amorosas. De resto... O Oliver era peludo e tomava banho uma vez por semana, no petshop. A Aretha tinha pêlo curto e tomava banho a cada 15 dias, no chuveirinho de casa. Ele sempre morou em apartamento e passeava de duas a três vezes por dia; enquanto ela tinha a garagem pra ver pessoas e se exercitar, e passeava uma vez só. O Oliver era mimado com toda sorte de quitutes humanos, de pipoca a queijo branco; a Aretha só comia ração seca e patê canino e não pedia comida pras pessoas. E o mais importante de tudo: o Oliver dormia no quarto da Patricia; a Aretha dormia em sua própria casinha, no quintal. Apesar do curso no canil, a personalidade de ambos não mudou: um era velhinho, gordinho, e já não ligava pra 92 brincadeiras, e a outra era uma adolescente atlética e cheia de energia que brincava com qualquer coisa, incluindo seus semelhantes em repouso inerte. Mas fechamos os olhos a isso e, nos meses iniciais, celebramos a alegria do Oliver por tomar menos banhos, a alegria da Aretha por ganhar uns petiscos, a alegria da Patricia de tê-los dormindo conosco, e a dupla alegria da D. Angelina e da Fátima por terem, cada uma, um cão a mais para paparicar. Algum tempo depois, entretanto, ficou claro que as coisas não estavam fluindo como sonhávamos. Quando estávamos no apartamento da Patricia, a Aretha sentia falta de ficar no portão recebendo os afagos da vizinhança, e a Fátima chegou a destroncar o ombro ao evitar que ela esmagasse, de brincadeira, o yorkshire do 64. Quando estávamos na Lapa, eu tinha dificuldade de dormir com ambos roncando no quarto, e o Oliver sentia falta dos cânticos evangélicos da Fátima. Em ambas as moradias, ele se ressentia de dividir as atenções e ela estava desolada pelo temperamento sedentário dele. O Oliver cochilava no sofá e a Aretha saltava sobre ele, arfando e babando, esperando que começasse uma perseguição – ele rosnava e ia perseguir um canto mais sossegado. O Oliver dormitava na casinha dela e ela começava a se coçar na entrada, fazendo toda a estrutura tremer, até que ele acordasse e partisse pra cima dela – ele acordava e partia pra almofada. O Oliver tirava uma soneca, a Aretha atirava um brinquedinho em cima dele e saía correndo – ele permanecia imóvel, dormindo com o brinquedo caído sobre o focinho e ignorando seus latidos de “Vem brincar comigo, vem brincar comigo!” Aquilo irritou a Aretha a ponto de, em represália a tanta 93 indiferença, ter começado a sabotar as propriedades dele: comeu duas camas, destruiu um comedouro, transformou um casaco de inverno em tiras bem fininhas de plush xadrez e, num ato desesperado por atenção, comeu uma verruga que ele tinha no alto da cabeça. Nada disso tendo funcionado, partiu para viver num sítio fora de São Paulo. Lá, além de brincar o dia inteiro com um outro boxer, tem todos os alunos da escola municipal batendo ponto em seu portão. 94 A transição imobiliária Resolver definitivamente o vai-e-vem e o volta-e-vai demandou alguma paciência. Tínhamos problemas burocráticos que nos impediam de juntar os trapos num único teto. Casadas e desimpedidas pela burocracia inicial, enumeramos as vantagens e desvantagens das duas alternativas que tínhamos: ela vir pra cá ou o Oliver e eu irmos pra lá. Elegemos meu apartamento. Os pontos cruciais dessa decisão foram sustentados sobre 5 pilares: Pilar 1: alugar o imóvel da Karla parecia mais provável. Pilar 2: um dos carros teria que dormir ao relento caso optássemos pela Lapa. Pilar 3: havia um reduzido número de esconderijos de bagunça no sobrado, se comparado ao existente aqui. Pilar 4: baratas gostam mais de casa do que de apartamento. Pilar 5: minha pouca afeição pelo guardinha da rua. Cabe aqui a explicação e o embasamento do pilar de sustentação número 5: havia na rua dela um guardinha 95 típico desses que montam seu próprio negócio depois de ler uma das obras do renomado Dr. Lair Ribeiro. Seu Wander escolheu uma rua, foi de casa em casa, solicitou uma pequena contribuição mensal e pronto: estava fundada a Wander & Ley – Segurança Patrimonial 24 horas. Um esquema e tanto: ele fazia o turno da noite, seu sócio Ley fazia o turno da manhã e o cunhado Wal era o folguista. Enquanto eu não tinha a chave do sobrado (uma semana), só aparecia depois de ter a certeza de que minha cara não iria bater na porta. Ligava dizendo que estava a uma quadra e o Bicho me esperava no portão. Seu Wander parecia fugir quando via meu carro – pensei ser timidez inicial de quem ouvia muitos ruídos vindos do quarto, próximo demais de seu posto de vigília. Quando trocamos chaves, passei a chegar sozinha ao sobrado da Lapa. Seu Wander me olhava de canto enquanto eu girava a maçaneta e, por mais que eu procurasse tranqüilizá-lo com sorrisinhos meigos, ele me observava como se eu estivesse invadindo propriedade alheia e manchando a honra de sua empresa. Cansada de me sentir uma meliante aos atentos olhos de Seu Wander, pedi à Karla que me apresentasse oficialmente ao dono da empresa de segurança da rua, numa oportunidade propícia. Pra quê! Recém-chegadas do supermercado, com sacolas penduradas por todos os lados, completamente atrapalhadas, eu com os braços trêmulos pelo peso das compras, sinto uma movimentação esquisita. Ela, com a chave do portão na boca, grita em 96 direção ao outro lado da rua: “Seu Wander, esta é a Patricia!” E para mim, um pouco mais baixo: “Vida, esse é Seu Wander.” Não sei quem de nós ficou mais constrangido, a Karla é que não foi. Passados seis meses de convívio diário, semanalmente intercalados, eu desisti. Se Seu Wander não quer me falar boa-noite é um direito dele. Respeitei, mas isso nunca deixou de me incomodar. As coisas pioraram ainda mais quando meu carro, que dormia na rua em frente ao portão, foi arrombado. Foi a perda total da credibilidade daquela empresa. Hoje estamos aqui, o sobrado está alugado, não sabemos qual é a situação da Wander & Ley, e a vida segue exatamente como planejamos. Sim, desde há algum tempo a vida vem seguindo, de fato, conforme planejamos. Mas não foi sempre assim: quando eu me mudei para o que então era apenas “a casa da Patricia”, estranhei muita coisa. Começando por questões menores: em minha casa tinha muita luz natural, o que sempre me encantou. Da janela da sala eu via um pôr-do-sol lindo, celebrado barulhentamente pelos muitos passarinhos da rua. Eu morava perto de minha família, fazia muita coisa a pé e a vizinhança era bacana. Quando me mudei pra cá, o choque foi grande. Se o bairro já me espantava, porta adentro também era tudo muito estranho. Tratava-se, afinal, de uma casa pronta: não ajudei a escolher o apartamento, não participei da decoração, não palpitei sobre o modelo dos copos nem 97 na localização das tomadas. Era pior do que simplesmente alugar um imóvel mobiliado qualquer, pois tudo ali, da cama aos espelhos do banheiro, do sofá aos cinzeiros, havia testemunhado o casamento anterior dela. Tudo tinha permanecido, até lençóis e toalhas de banho! A mudança em si não deu muito trabalho. Entrar de uma maneira tão definitiva numa nova casa, numa nova vida deu. Eu tinha vários porta-retratos, mas não estava à vontade para expor papai, mamãe e irmãzinha na sala dela – guardei as fotos numa pasta e me desfiz das molduras. Nenhuma divisão do armário comportava minhas roupas no agrupamento que eu costumava ter, e acabei separando regatas de camisetas e juntando meias com cintos. As prateleiras da sapateira eram tão próximas que minhas botas só entravam dobradas. Equilibrar o cotidiano gastronômico foi uma diversão à parte. A Patricia, quando acorda, só toma café preto e não come nada até o almoço, quando então se alimenta como um caminhoneiro – sem trocadilho. É viciada em Coca Light (além de café), passa mal se não comer um doce depois da refeição e não costuma jantar. Pela manhã eu me alimento muito bem; no almoço faço refeições leves – e também sou viciada em café, mas não faço questão de sobremesa, não tomo Coca-Cola e não durmo sem jantar. Por fim, enquanto minha D. Angelina chegava antes das nove, a Fátima não tem como chegar antes das onze e meia. Isso significa preparar o café da manhã diante da louça suja do jantar. 98 Em poucos meses, ajeitamos tudo. Para que a casa refletisse minha chegada, a Patricia decidiu que faríamos uma reforma: mudamos a cor de algumas paredes, trocamos o piso todo, compramos um colchão delicioso e novos porta-retratos. Para que eu me sentisse em casa de verdade, decidi que ela tinha que arrumar o escritório – e não é que ela arrumou?! Acertamos a despensa pra incluir muitos litros de leite, e a geladeira pra receber frutas e verduras. Até a Fátima gostou de trocar almoços de 4.000 calorias por uns peixinhos com legumes de vez em quando! Por conta de nosso desequilíbrio no quesito altura, deixei de usar as botas altas – mas nem por isso dispenso uma massagem nos pés, aproveitando que o sofá daqui é imenso e me permite deitar escarrapachada feito uma madame. Através das janelas imensas da sala vemos quando uma tempestade se aproxima e corremos pra fazer amor. De meu novo quarto, assistir ao amanhecer é lindo. 99 Nossa Senhora, Fátima! Fátima já viu e ouviu coisas de que até Deus duvida. Por essa razão e outras tantas, dedicamos um capítulo em sua homenagem. Ela é minha fiel escudeira desde o tempo do Antônio Carlos. Conheço seus dramas tanto quanto ela conhece os meus. Somos como irmãs. Não sei definir quem é a mais velha – não importa. Se os caros leitores colaborarem com esta empreitada, divulgando para desconhecidos, presenteando amigos secretos e punindo sogras, quem sabe a Karla e eu conseguiremos manter seus proventos em dia e tê-la em nossa companhia até que ela possa montar seu próprio negócio. A Fátima é uma figura ímpar, 15 centímetros menor que eu, 15 quilos acima de seu peso ideal, radicada em São Paulo há 29 anos, proveniente de Pernambuco, mais precisamente Vitória de Santo Antão, bairro Cidade de Deus. Como fiel missionária da Assembléia de Deus, Ministério Belém, ela participa do coral da igreja. Pratica seus cantos pela casa, com sua voz de contralto, e só abaixa o volume quando digo: “Fátimaaa... Pelamordedeus!” 100 Não há como esconder intimidades de uma pessoa tão próxima: ela sabe tudo o que se passa conosco e com nossos amigos. Mas é sempre muito discreta. Outro dia ela me perguntou: “Aquela moça do olho azul já fez as paz com a dos cabelo esquisito?” “Já sim, Fatinha.” “Ai, que bênça!” Ela já flagrou beijinho na boca, cochilo em posição de conchinha no sofá: “Disculpa incomodá vocês, mais vocês querem que eu passe um cafezinho?” Trabalhar com a Fátima por perto é bem doce, mas pouco produtivo. De 30 em 30 minutos ela aparece: “Tá tudo bem aí?” “Tô lá no quarto, qualquer coisa é só chamá.” “Vô estendê as roupa, viu?” “Cês vão tomá banho agora? Eu queria lavá o banheiro.” E assim vai, sem fim. Seu bordão de despedida é sua marca registrada: “Necessita de algo?” “Não, Fátima, está tudo em ordem. Chegue bem em casa. Até amanhã.” A capacidade de socialização da Fátima é algo incrível: “Boa tarde! Por gentileza, a Srta. Karla Lima está?” “Tá não, menina, mas Patricia está. Ela tá no quarto arrumando a bagunça dela porque Karla vai chegá. E, cê sabe, Karla permite bagunça, mas não muita. Ela já devi di tá terminando… qué que eu chame ela?” “Não, não, não é necessário. Você sabe me informar a que horas consigo falar com a Srta. Karla?” “Ahhh!, dependi! Que hora é agora? Só um minutinho, queu vô vê no relógio da cunzinha...” Minutos depois: 101 “Ahhh!, agora é dez pras três, acho que Karla só vai voltá dipois que ela passá na casa di sua mãe. A mãe dela pediu foi um livro emprestado, mas num deve di demorá muito não, porque Patricia tá arrumando as coisa muito afobada, acho que Karla tá pra chegá. Num qué falá com Patricia não?” “Fátimaaa, quem é no telefone?” “Só um minutinho... Sei não, Patricia.” “Vê quem é.” “É Silvana, dum banco Pan-mericano!” Sem exceção, todos os nossos amigos adoram a Fátima, e quando alguém aparece em casa é a maior festa. Ela abraça, beija, diz que estava morrendo de saudades, e sei que estava mesmo. Assim como nós, no entanto, todos têm um certo receio de ligar aqui pra casa quando estão com pressa. Para saber se estamos em casa, paciência e espírito de perseverança são fundamentais. Quem ligou tem que contar como estão as coisas no lar, o que anda fazendo no trabalho, ouvir as boas novas sobre o almoço que Fátima patrocinou a sua família no domingo e, de quebra, ficar sabendo qual foi a tarefa interrompida para que a chamada fosse atendida. Outro dia liguei para casa desesperada: “Fatinha!” “Oiii, Patriiicia! Cê num tá em casa não? Bem que eu reparei. Tá tudo bem? Qué falá com Karlinha? Ela também num tá não. Eu estava limpando os vrídu… como tem pó aqui nessa casa! Semana passada eu limpei, mas parece que tem trêis mês que eu não limpo. Onti teve festa lá em casa. Foi uma bênça!” “Que bom, Fatinha! A Karla está comigo. Tá tudo ótimo 102 (nem estava, mas foi só para evitar um desvio maior no percurso). Estou com muita pressa. Preciso urgente do número do telefone do Dr. Mário, advogado, que está anotado na agenda esverdeada em cima da mesa de jantar.” “Agenda esverdemuada?” “Parecida com verde, mais ou menos verde.” “E é? Mais ou menos verde chama esverdemuado? Sabia não… Só um minuto que eu vou checar.” Tic-tac, tic-tac: “Tem não, Patricia. Tem uma agenda em cima da mesa de jantar, mais é cinza.” “É essa mesmo, Fatinha! Qual é o número do Dr. Mário? Rapidinho, por favor!” “Achei não... tem um monte de coisa escrita, mas não tem escrito Mário não.” “Lê o que está escrito pra mim, Fatinha!” “Ligar para Robiiinson, pagar o dentiiista… Víxe, Patricia! Você num pagô o hôme ainda?” “Não, Fatinha, ainda não paguei! O número do telefone do Dr. Mário fica no fim da agenda: lá atrás tem uma parte onde tem uma letrinha no alto… a primeira página desta parte tem um A bem grande, na segunda um B; vai até a página com a letra M e lê o que tá escrito.” “Ah, bom! Agora num tem mais erro. Acheeei!” “Qual é o número?” “Ah, peraí que eu fechei a agenda amuada! É doise, sete quatro… Víxe, Patricia!, que número é esse?” “Como é que eu vou saber, Fatinha? Você é que está com a agenda na mão!” “Pois você tem que começá a caprichá mais nas letra, tua letra tá muito ruim de entendê, acho que é o nove ou o treis, dipois é oitcho, cinco e no último é igual ao que eu falei primeiro.” “Ok, brigada, Fatinha! Depois a gente conversa.” 103 “Tá bom, então. Beeeijo! Num demora pra voltá que eu quero te amostrá uma coisa pra você.” “Tá, Fatinha!” “Mande um beijinho pra Karlinha tumbém.” “Tá, Fatinha!!” Nós e a Fátima sofremos muito com a morte do Oliver, nosso cão. Fátima preferia chamá-lo de Ólivi. Ela foi fundamental no condicionamento básico: xixi no jornal, senta, deita, e participou ativamente das decisões com relação à altura e à periodicidade da tosa. Nunca faltou papo entre eles. Algumas vezes acordava com a voz da Fátima vinda da cozinha. Cambaleante, ia conferir o que estava acontecendo e topava com ambos conversando. Sentados frente a frente, ela acariciava vigorosamente a cabeça dele a ponto de os olhos esticarem até a parte branca do globo se mostrar: “Ólivi, sua mãe tá drumindo, ela já vai acordá. Num fica assim tristinho que a Fátima ama você. Cê tá cherosiiinho! Vem aqui, meu nêgo, dá um cherinho pra Fátima.” Outras vezes, ouvia seus cânticos evangélicos vindos da área de serviço. Em busca de uma calça limpa, deparava com a mesma cena. “Fatinha, o que você tá fazendo?” “Tô calmando os nervo do Ólivi. Ele tá muito agitado hoje. Já saiu da caminha e foi drumi no sofá, largô o sofá e foi pra almofada umas trêis vez desde a hora que eu cheguei. Num pára quieto de jeito nenhum! Então resolvi cantá um pouquinho pra deixá ele mais calmo. Você não sabe, Patricia, mas essas música acalma as aflição!” “Tá certo, Fatinha!” 104 Ao fim das conversas, independentemente do assunto, ela o abraçava, mordia e amassava o pobrezinho. Era uma farra vê-los assim. Aos 12 anos ele se foi e, até hoje, eu e a Fátima choramos quando algo nos faz lembrar dele. E, por falar no Oliver, a Karla tem uns acréscimos a fazer: A Fátima sempre falava conosco por intermédio dele, e foi numa dessas que soltou mais uma pérola. Estou eu lendo jornal, está ela com ele em alegre convescote. Segue-se animado monólogo: “Então, Ólivi, daqui a pouco você vai andá de carro, visse? Que tu tá meio catinguento, cos pêlo tudo gruvinhado. Vai voltá cherôôôso! Assim que terminá com o jornal, Karlinha te leva, viu? Essa sua segunda mãe é tão boazinha!… Quer dizer, terceira – não, bom, hummm... quarta, ou melhor, sua nova mãe é tão boazinha!…” A Fátima tem um nariz muito especial. Se ficamos no escritório até tarde, mesmo que a janela fique aberta durante toda a noite, ela chega na manhã seguinte e vai logo acusando: “Mas ônti vocês fumáru que foi uma coisa, hein?!” Ao determinar os produtos de limpeza que devemos comprar, não se importa com marca nem com rendimento: é pelo cheirinho. E se minha irmã pernoita no sofá e vai embora antes que a Fátima chegue, ela se lamenta: “Poxa! Karina acabou de sair, não foi? Um minutinho antes e eu pegava ela aqui...” Para o desenvolvimento desse senso olfativo privilegiado, contou com a prestimosa ajuda da Patricia, que, ao nunca guardar as roupas limpas, nem pôr para lavar as sujas, condicionou a Fátima a cheirar tudo. Cabe a ela então dar o veredicto. Um dia, pouco depois de minha mudança, entrei no closet 105 e peguei-a cheirando minha blusa com verdadeiro ardor investigativo. “Fátima!” “Oooi, Karlinha! Qué alguma coisa?” Era a calma em pessoa, não se sentia surpreendida em ato ilícito. “Sim, quero que você pare de cheirar minha blusa! O que você está fazendo?” “Tô cheraaando! Se não, como vô sabê se precisa lavá? Cas de Patricia eu faço assim...” “Então, Fátima, ‘cas’ minhas você não precisa se preocupar não, viu? Tudo meu que precisar ser lavado eu mesma vou colocar no cesto de roupa suja. Por favor, nunca mais cheire nenhuma roupa minha, tá bom?” Sua decepção era visível: “Tá bom, se você não qué eu não chêro, mas as de Patricia vô continuá, que ela sozinha não sabe dicidir o que tem de lavá e o que dá pra usá de novo!” Cá pra mim, desconfio que até hoje ela cheire, sim, minhas roupas. A cordialidade fria de minhas primeiras interações com a Fátima deixava a Patricia de cabelos e pêlos em pé. Em minha defesa, alego que sempre a tratei com respeito e que sou naturalmente lerda para desenvolver carinho pelas pessoas – de maneira geral, acredito que educação basta. Assim, enquanto às sextas-feiras a Patricia se despede com “Tchau, Fatinha! Bom fim de semana, descansa e fica com Deus, viu? Manda um beijo pros seus filhos – aliás, faz tempo que não pergunto deles... Sua filha tá gostando da escola nova? Seu menino mais velho conseguiu arranjar outro emprego? E a lojinha de sua mãe, tá indo bem? Ah!, que bênção, né, Fatinha? Então olha, aproveita pra 106 ficar com eles, viu? Dorme bastante, fica bem descansadinha, que a gente se vê na segunda-feira, se Deus quiser. Um beijo", eu me limito a um “Tchau, Fátima, bom fim de semana.” – ainda que sincero. A Patricia acha que trabalhar com a Fátima por perto é doce, porém improdutivo. Pois eu estou certa da mais absoluta impossibilidade de fazer perto de ambas qualquer coisa que demande o trabalho conjunto de mais de dois neurônios! Ou será que meus neurônios é que são muito frescos? Cansada de ouvir sermões quinzenais sobre a maneira “correta” de me dirigir a Fátima, decidi reduzir os diálogos ao mínimo, fazendo por escrito perguntas e pedidos. Pareceu dar certo, embora as diferenças entre nossos estilos continuassem: “Fatinha, deixei umas roupas pra passar em cima do cesto de roupa limpa. Por favor, deixe separadas, pois eu vou levar pra viagem no feriado – estou muito cansada e branquela. Volto na segunda queimadinha e com cara de saúde. Um beijo. Mande um beijo também pras crianças. Obrigada. Tenha um ótimo fim de semana. Fique com Deus. Patricia. Ah!, Fatinha, escondi uma baguncinha na segunda gaveta de meu criado-mudo; pode deixar lá, a Karla não vai ver. Quando eu voltar, escondo em outro lugar. Um beijo. Fique com Deus. Patricia.” Resposta: “Ok. Beijo. Fátima.” “Fátima, favor passar e pendurar essa calça. Obrigada. Karla.” Resposta: “Ok. Beijo. Fátima.” “Fátima, por favor complete a lista, vou ao mercado amanhã. Obrigada. Karla.” 107 Resposta: “Ok. Beijo. Fátima.” A revelação sobre como, afinal, a Fátima nunca se deixou intimidar por meu estilo sério veio com a seguinte troca de bilhetes: “Fátima, minha mãe vem aqui hoje. Por favor, lembre a Patricia de deixar a sala e o escritório em ordem.” Resposta: “Não deu. Beijo. Fátima.” 108 Pequenas evidências de um grande amor Provas de amor estão contidas em mínimos detalhes cotidianos. Num domingo chove-mas-não-molha, não tive alternativa senão preparar o almoço. Fosse uma tempestade daquelas, estaria eu fazendo amor com meu Bicho enlouquecido. Não sendo, acabei de touca na cabeça cozinhando feijão. Estávamos de tagarelice pós-brunch em meio à cozinha absolutamente revirada. Ao embalar o que tinha sobrado da salada, pela quadringentésima septuagésima oitava vez, não resisti à beleza do momento: “Filme de PVC é a melhor invenção da vida moderna! Quem será que inventou essa maravilha? Olha, Bicho, que lindo!!! Não é demais?” Senti um olhar doce quando consegui abandonar o recipiente no devido compartimento da geladeira. O olhar veio acompanhado de uma declaração: “É a quadringentésima septuagésima oitava vez que você diz isso, e eu te amo.” Sem entender, mas gostando do que ouvi: “Bicho, sei que você me ama, mas como você sabe que é a quadringentésima septuagésima oitava vez? Andou contando? O que é que o cu tem a ver com a calça?” 109 “É claro que não contei, meu amor, e o cu não tem nada a ver com a calça! Hoje, me dei conta de que você já presenciou seiscentas e vinte e uma ligações que fiz pro meu banco.” Aí a ficha caiu... Sempre que a Karla faz uma operação bancária pelo telefone, ela invariavelmente desliga e declara: “Eu amo este banco! Nenhum operador usa gerúndio, nunca me ligaram pra vender nada, tudo funciona tão direitinho!… Não é o máximo?” Sem entrar nos pormenores do ciúme que o banco me causa, já respondi seiscentas e vinte e uma vezes: “É sim, meu Bicho!” Esse episódio me chamou a atenção para as pequenas provas cotidianas de amor que passam despercebidas, e não deveriam. Só para constar, e ganhar uns pontinhos, relaciono: – Quando escrevo, penso sempre no que ela vai achar. – Escondo a bagunça para não a aborrecer. – Comprei 15 pacotes de 12 caixas de fósforos cada um. Espalhei, bem escondidinhos, pela casa toda pra não sumir com o isqueiro dela. – Quando vamos dormir em horários diferentes e ela me pergunta no dia seguinte a que horas fui deitar, sempre reduzo umas duas horas para ela não se preocupar com minha falta de sono. 110 – Por preguiça de trocar, nunca acabo com o papel higiênico. Se for o último quadradinho do rolo, dou uma chacoalhadinha e tá tudo certo. Já que isso conta pontos, vou somar os meus: – Minha prova de amor relacionada ao papel higiênico é levar um rolo novo para o banheiro antes que o que está em uso acabe. Assim a Patricia não precisa ficar só na chacoalhadinha. – Desvio os olhos da bagunça que ela espalha pela casa toda. Em conseqüência, morro de dor na nuca por passar a vida olhando para o teto! – Apanho todas as moedas caídas sem que ela compreenda a relação entre o tilintar de seu despir e nosso cofrinho sempre abastecido. – Mantenho em meu carro um maço dos cigarros que ela fuma. – Se vou dormir antes, abro o lençol de seu lado para que se sinta bem-vinda quando for deitar. – Ela não come sozinha, por isso sento-me para acompanhá-la mesmo que não tenha um pingo de apetite. – Escondo bilhetinhos e telefono durante o dia só para dizer o quanto a amo. Como se vê, sofro de uma espécie de dupla personalidade: por um lado, creio na separação dos corpos e na 111 independência das mentes, gosto de fazer certos programas sozinha e a incentivo a sair sem mim; por outro, sou romântica a ponto de gerar náuseas. E o pior ainda está por vir... Muito antes de saber que isso era um hábito ligeiro entre artistas, e cada vez mais um processo reversível, pensava que tatuagens eram a última instância das provas de amor. Afinal, o que poderia ser mais categórico do que espontaneamente passar por um processo dolorido para marcar o próprio corpo com um desenho ou palavra que gritasse “eu aaamo!”? Naturalmente, queria num lugar bem chamativo. Em abril de 2003, mês seguinte a nosso casamento, minha irmã me levou ao estúdio. Substituí o lugar explícito por um outro bem escondidinho, mas o que perdi em visibilidade ganhei em simbolismo – e não doeu nada. Não fosse pelo barulho do motorzinho, bem que poderia ter dormido naquela maca. Por alguns dias, torturei a Patricia com uma gincana maluca, instigando-a a adivinhar o que eu estava prestes a fazer e oferecendo, em troca, a realização de um desejo qualquer. Tinha a certeza do que ela pediria e só comecei a brincadeira porque sabia que ela não iria adivinhar nunquinha da silva – eu, hein? Estava me achando o supra-sumo do romantismo: fiz um mistério enorme, preparei toda uma cena, coloquei-a sentada na cama de olhos fechados e tal. Postei-me a sua frente e autorizei: pode abrir. A cara dela não foi bem como eu tinha fantasiado. Ok, eu tinha Bepantol® pra todo lado, estava embalada em filme de PVC como resto de salada, a tatuagem em si não era de compreensão imediata porque era composta 112 de símbolos e não letras… Seja lá como for, o choque foi muito maior que a surpresa, e ela parecia mais aterrorizada que feliz. Esteve por uns 20 segundos congelada, de mãos espalmadas, boca aberta e olhos arregalados. Saiu do transe, leu a legenda que eu tinha providenciado para a decodificação do desenho, disse que eu era louca, pediu desculpas pela pressa e saiu às carreiras para um show que faria em Santo André! E eu que achei que estar embalada no tão admirado filme de PVC iria potencializar a reação... 113 Rasgar seda fortalece os bíceps Minha carreira como musicista profissional durou pouco mais de um ano. Na fase amadora, conciliava minha antiga profissão e a música, mas, com o avanço da carreira artística, administrar os dois ofícios era impossível. Logo, optei pelo mais divertido. Nesses dois gloriosos anos, realizei inúmeros sonhos, me emocionei, criei novos vínculos, aprofundei alguns já existentes, conheci pessoas, passei por vários apuros, cresci (ainda não superei 1,60 m, mas chego lá!), morri de rir e me acabei de chorar. Aproveitei intensamente todos os momentos mágicos que o samba me proporcionou. A pergunta que não quer calar: Por que parou? Parou por quê? Por que parou? Parou por quê? Parei por cinco motivos principais: Primeiro: vida de artista cansa. Segundo: não nasci para ser artista. Terceiro: quando um hobby vira obrigação, deixa de ser hobby. Quarto: morria de saudade de meu Bicho. Quinto: insinuante barriguinha típica de sambista. 114 Na época, a Karla trabalhava em horários regulares e típicos de publicitário; em contrapartida, meus compromissos podem ser resumidos da seguinte forma: reunião às segundas, ensaio às quartas e shows de quinta a domingo. Nos dias úteis, os compromissos eram noturnos; nos finais de semana, vespertinos e, muitas vezes, fora de São Paulo. Conclusão: restavam-nos as noites de terça. Durante a semana, quando possível, acordava só para fazer companhia para meu Bicho durante o desjejum e o banho. Mas, assim que ela saía, voltava para o berço voando. Regularmente, passava na agência para almoçarmos juntas e, no final de semana, ajeitávamos as tarefas para maximizar o tempo a duas. Quanto mais a banda evoluía, menos tempo eu tinha com a Karla. Meus sentimentos estavam muito confusos: se por um lado o sucesso era meu objetivo, por outro eu me ressentia quando a empresária comunicava mais um show agendado. Algo não parecia coerente. Ponderei e concluí que deveria voltar à posição de musicista amadora apaixonada. Já nessa posição, iniciei uma dietinha básica para sumir com aquele pneuzinho adquirido durante minha estada no mundo do samba. A aquisição foi inevitável, indesejável, mas completamente explicável: a maioria das casas onde nos apresentávamos oferecia à banda cerveja e pastel como cortesias. Quando não jantava os de carne, jantava os de queijo, e para a sobremesa reservava os de palmito. Trabalhava sentada e, para suportar o calor do momento sob a luz dos refletores, só mesmo tomando uma cervejinha gelada. Fora do palco, que fique claro, porque em cima dele a empresária não deixava. Pode ser 115 que ela venha a ler essa obra e eu não gostaria de sofrer retaliações retroativas. Durante o primeiro ano, conseguia contrair os músculos abdominais para disfarçar a calosidade, e a presença do cavaquinho junto a meu corpo facilitava um pouco minha vida. No segundo ano, tinha que manter ereta a postura e literalmente encolher a barriga até o fôlego se esvair. Com falta de ar, meu desempenho começou a despencar. Troquei o figurino e, para ocultar os excessos, passei a usar blusas mais soltinhas. Se continuasse nesse ritmo, em três anos não sei se meu banquinho iria resistir. Por falar em banquinho, eis uma das muitas histórias que vivi: Havia alguns meses que nos apresentávamos aos domingos numa casa GLS: público cativo, fiel e adorável, ao qual devemos muito e seremos eternamente gratas (digo isso em nome de todas as integrantes da banda). Depois de conceder o devido crédito e prestar a singela, porém justa, homenagem, prossigo. Ficávamos muito à vontade no ambiente, felizes e cintilantes por estarmos ali, todas reunidas, fazendo algo que muito nos orgulhava. O show era composto por quatro sets de 50 minutos cada, com 15 minutos de intervalo entre eles. Por mais absurdo e cansativo que possa parecer, o ambiente tinha tanta energia que saíamos de lá renovadas e prontas para encarar mais uma semana. Ainda no primeiro set do show, a casa se encontrava razoavelmente transitável, e aquela seria a única oportunidade 116 da noite para extravasar minha euforia. Sim, porque dali a 30min o lugar estaria tão cheio que mal conseguiria me mexer, com o agravante de o palco ser muito pequeno para abrigar todas as integrantes, o que deixava a mim e a violonista fora dele, e no corpo a corpo com a platéia. Nem sei o que me deu naquele dia. Executávamos o “Bagaço da Laranja” – música de Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, sucesso na voz de Jovelina Pérola Negra –, quando, do nada, resolvi fazer graça e esbanjar meu samba no pé. Levantei do banquinho, rebolei, chacoalhei, gastei literalmente o salto do sapato – bom, ao menos isso é o que eu acho que fiz. Muito solícita, a pandeirista da banda afastou meu banquinho, abrindo espaço para o sapateado hipnótico. Encerrado o show à parte, sentei no banquinho que não estava no lugar onde deveria. Com os resultados óbvios, nádegas roxas e doloridas, mantive o andamento sob gargalhadas daquelas que presenciaram a cena. Quem viu viu. Para quem não viu não tem replay. Para ser artista tem que ser artista. Foram dois anos absolutamente sen-sa-cio-nais! Com a banda, conheci grandes ídolos, entre eles D. Ivone Lara, Beth Carvalho, Monarco, Leci Brandão, Teresa Cristina, D. Inah, Vó Maria e Tia Surica. Na memória e para a posteridade, guardo todos os bons e inusitados momentos que vivi. A minha família do samba: OBRIGADA POR TANTA VIDA, TANTO APRENDIZADO, TANTA RECOMPENSA!!! 117 Para meu Bicho, reservo a última seda a ser rasgada antes do encerramento do capítulo: obrigada por estar a meu lado, trabalhando nos bastidores para me fortalecer, enxugando lágrimas, compartilhando sorrisos, me amparando nos momentos frágeis, transpondo comigo barreiras, sempre vibrando e me enchendo de orgulho e admiração. Sem você nada disso teria sido possível. Rasguei! 118 Jogar confete entope o ralo Ao contrário da Patricia, eu não tenho uma segunda família para quem rasgar seda – a primeira e única era composta de papai, mamãe, irmãzinha e eu até o dia 8 de abril, quando passamos a ser apenas mamãe, irmãzinha e eu. O papai de minha feliz, unida e pequena família morreu durante a elaboração deste livro. Suspeito que nosso luto será longo, proporcional ao tamanho dele, tanto em medidas físicas quanto em bom humor e generosidade. Quem teve a sorte de conhecer meu pai certamente vai concordar que a vida é muito menos alegre agora que ele foi fazer festa em outro lugar. Mas, pondo de parte famílias primárias e secundárias, vou ignorar meus bíceps atrofiados de nascença e partir para uma rasgação de seda a uns poucos merecedores: Os convidados cantaram os parabéns, o aniversariante apagou as velinhas e, para garantir o seu, pediu ao adulto que cortava o bolo: “Eu quero um pedaço com… com...” Agoniada com a amnésia temporária do menino e louca por uma fatia de Floresta Negra, ajudei: “…cereja, você quer o seu com cereja!” Eu não o conhecia – tinha sido levada a sua festa mais ou menos como penetra – e concordo que essa abordagem foi meio abrupta, mas e daí? 119 Naquele 14 de agosto de 1977, graças ao lapso de memória dele e a minha intervenção, conheci meu melhor amigo. Quase 30 anos depois, nos orgulhamos de ter 89% de nossas vidas preenchidas por essa amizade. Atualizamos os cálculos todos os anos e nem 101% seriam suficientes para registrar tudo o que eu sinto por ele. Empolgada por esse aquecimento, também rasgo uns metros para outro amigo, tão querido quanto ranzinza. Seu humor cáustico ajudou a lapidar o meu e, em mais de uma década, não sacrificou por mim nem uma única piada – sinal inequívoco de que nossa amizade não se perde. A essa altura do campeonato, meus bracinhos mirrados já estão doloridos. Mas tomo fôlego e rasgo mais uns tantos fardos, desta vez para os amigos que fizeram valer minha vida em Lisboa: tenho um carinho oceânico por duas raparigas e um gajo d’além-mar. Agora estou cercada de tirinhas de seda brilhante. Os fiapos suspensos no ar irritam meu nariz. A imagem surreal me faz lembrar da médica de loucos, a espeleóloga que há mais de dois anos conduz minhas visitas monitoradas ao interior de mim mesma. Quem a indicou foi um amigo por quem eu enxugo o suor, bebo água e retomo, animadíssima, a rasgação: uma pessoa adorável, um profissional incrível, um sujeito que já era tudo de bom muito antes de a expressão ser inventada. Pela falta de prática, estou exausta, com os pobres bíceps em frangalhos. Meus braços não poderiam nem com um último retalho, mesmo que ainda existisse alguma seda 120 intacta no mundo. Mas, ora, ora, e para que servem os dentes?! Por certas duas amigas muito, muito especiais, eu desfiaria o tecido até na unha! Com a boca ou com as mãos, não importa: para reforçar minha admiração e sublinhar meu afeto, qualquer coisa; para lhes agradecer e retribuir a amizade, tudo. Amigos antigos devidamente reconhecidos, falta quem mais importa: para o amor de minha vida, todos os sacos de confete que eu puder encontrar. Atiro ao alto milhares de pastilhas de papel colorido, cada uma simbolizando um sorriso, um momento feliz, um não tão feliz assim, mas que virou aprendizado. As moedinhas flutuantes representam piscadelas cúmplices, beijos, conversas longas, declarações, planos. O mais imediato, a propósito, é desentupir todos os ralos da casa. 121 Apostas canceladas, concurso adiado Novembro de 2005 foi marcado por uma guinada de 180 graus em nossas vidas. Meu Bicho abandonou sua carreira de publicitária e não sabia o que faria da vida. Eu desisti de minha jornada como musicista profissional e tampouco sabia o que o destino me aprontaria. Perdidas, felizes, desnorteadas e radiantes, seguimos para nossa terceira lua-de-mel. Planejamos tudo, dividimos a viagem em três fases: Primeira: uma semana em Itacaré para comemorar o encerramento das respectivas carreiras profissionais abandonadas. Segunda: três dias em Salvador para separar as fases. Terceira: uma semana na Chapada Diamantina para comemorar em grande estilo nossa nova vida de desempregadas convictas. O planejamento e a organização da viagem foram meticulosos: em se tratando de Karla com K, não deixamos escapar nada; em se tratando de Pya com P, nada correu conforme o previsto. Passamos 15 dias em Itacaré, 1 dia em Salvador e 2 dias em Imbassaí. Itacaré é paradisíaco! Que lugar é esse?! Não resistimos ao encanto, por isso os planos rolaram cachoeira abaixo. 122 Na alta temporada, porém, esse paraíso deve ser uma desventura calamitosa. Há quem goste de agito, o que definitivamente não é o nosso caso. Tínhamos a Natureza e os moradores locais como companhia e nada poderia ter sido mais perfeito, não fosse a característica comportamental dos homens itacareenses. Confesso que a beleza dos rapazes era impressionante. Traziam em seus peitos uma negritude maravilhosa; em seus sorrisos, o reflexo da bênção que Deus concedeu àquele lugar; e em seus corpos, a força esculpida pelo suor. Em contrapartida, a ausência de noção era típica de quem é explorado e/ou explora o turismo sexual. Não condeno nenhum tipo de comportamento, desde que as respostas às seguintes perguntas sejam todas afirmativas: está fazendo por opção consciente e não prejudica ninguém que não saiba defender-se? É vacinado? Já completou a maioridade? Está fazendo por livre e espontânea vontade e prazer? Sabe como prevenir DSTs? Estando tudo certo pra quem pratica, pra mim também. Eis que surgem duas “gringas” ajeitadinhas, desacompanhadas, perambulando pela cidade deserta… foi aberta a temporada de caça! Não sei se por inocência ou por condicionamento, os rapazes todos de Itacaré ofereceram seus préstimos como guias especiais e professores de forró. Alguns gentilmente ofereceram sua moradia como opção de hospedagem. Quanta solicitude! Pela quantidade de ofertas, e pelas caras de indignação que observamos quando recusávamos os serviços, notamos que a ausência de noção talvez fosse nossa. “Como assim, vêm para Itacaré sozinhas e 123 não querem provar o sabor do homem baiano?” Pois é, a gente não é muito “comum”. Agíamos como nosso código de conduta estabelece: andávamos de mãos dadas, pequenos gestos de afeto não eram reprimidos e nossos apelidos carinhosos estavam incorporados. Esse panorama, aliado às sucessivas e incansáveis recusas, não foi suficiente para afugentar os caçadores. Desenvolvemos, então, outra técnica, que se mostrou mais eficiente: ao andar pela cidade, mantínhamos o olhar perdido no horizonte. Caso uma aproximação masculina fosse notada, olhávamos para o céu: “Acho que amanhã vai chover!” Não aguardávamos a resposta e seguíamos: “Que lua linda!” Prosseguíamos: “Pena que tem poucas estrelas e muitas nuvens!” E só abandonávamos as observações sobre o firmamento quando o perigo iminente já estivesse afastado. Caso nosso olhar cruzasse eventualmente com o dos rapazes que pulavam em busca de atenção, não desviávamos: mantínhamos a troca fixa, com o queixo baixo, sobrancelha arqueada, e conseqüente testa coberta de rugas, revirávamos os olhos até que as íris sumissem sob as pálpebras. Nesse caso único, aliávamos também o bufo. Em último caso, se a aproximação fosse trás-çoeira (por trás), desconsiderávamos as regras do código de conduta e, mesmo havendo crianças e velhinhos por perto, beijávamo-nos na boca. Numa quarta-feira, na hora do almoço, entre uma praia e outra, encostamos na padaria. Permaneci no carro, enquanto meu Bicho foi comprar sorvete. De volta, estávamos decidindo qual seria o próximo destino quando um 124 itacareense se aproximou sorrateiramente do vidro e desferiu: “Nossa, que sorvete mais gostoso! Você precisa de um guia? Posso te mostrar o que Itacaré tem de melhor.” Corajoooso!… “Se eu precisasse de um guia, não iria ser alguém como você.” “Ah!, mas por que não?” Burriiinho!… “Porque eu nunca escolheria alguém que oferecesse seus serviços comentando meu sorvete!” “Eu não falei nada de mais. O sorvete é gostoso mesmo.” Liiiso!… “Então compra um e vai chupar também.” Tomou? Uma semana de esforços depois, conseguimos deixar claras nossas intenções, e concluímos que fomos tão abordadas porque não havia muita opção de escolha. A aposta “Quem vai conseguir pegar uma das duas?” ficou sem vencedor. O dinheiro foi devolvido aos participantes e o concurso foi cancelado. Esclarecidas as devidas posições, permanecemos mais uma semana na cidade, e então conhecemos o melhor lado dos itacareenses. Nós nos apaixonamos! 125 A revelação universitária Por influência do namorado da época, abandonei o Magistério (no qual tinha me matriculado para fugir da Matemática) e me mudei para uma escola técnica pra cursar o colegial em Propaganda. Na ocasião, nem sabia o que era uma agência, só me certifiquei de continuar não tendo nenhuma matéria de Exatas. Fiz alguns estágios, concluído o curso arranjei um emprego e a vida seguiu sem que eu nem me realizasse na profissão, nem me interessasse por qualquer outra. Deixei-me estar como Atendimento, insatisfeita e reclamando, por 16 longos anos... Nesse intervalo, comecei três faculdades e não terminei nenhuma, cada vez por um motivo, e estava convencida de que voltar a estudar não era para mim. Mas, num dia de janeiro de 2006, a Patricia encasquetou: “Você não está trabalhando, está há anos tentando mudar de profissão, por que não aproveita e presta vestibular? Você vai ter tempo de se dedicar ao curso e já pode ir conseguindo um estágio em outro mercado, quem sabe? Já sei, você presta pra Jornalismo. Seu pai vai ficar tão feliz! Ele sempre não quis que você fosse jornalista? Então! Você adora escrever, aliás você escreve muito bem, todo mundo te fala isso, não fala? Olha, em vez de procurar emprego em agência de novo, e começar a reclamar em dois palitos, vai estudar! Passa pra cá esse classificado de 126 jornal, que você não vai mandar currículo pra lugar nenhum, vamos é ver quais faculdades ainda aceitam inscrições para o vestibular. Abre a Internet, vai!” Ai, meu Deus! Onde é que desliga essa mulher? Em parte porque ela tinha certa razão e em parte só pelo retorno do silêncio ao lar, concordei – mas impus uma condição: “Você vai estudar também. Pode ir escolhendo um curso qualquer aí!” Começamos as respectivas faculdades 15 dias depois, no mesmo campus e no mesmo horário: eu em Jornalismo, ela em Serviço Social. Combinamos agir normalmente, ou seja, nada de escandalosamente agressivo, mas nada de disfarces ou mentiras. Apesar do ambiente heterogêneo e da convivência inescapável dos quatro anos seguintes, manteríamos os mesmos apelidos amorosos e o mesmo comportamento carinhoso que temos em todos os outros ambientes. Isso, ao menos, foi no que ela me fez acreditar: na realidade, a Patricia fugiu do curso na segunda aula! Pensei que, com a ausência dela, ficaria até mais fácil manter a discrição – e, de fato, os primeiros dias transcorreram sem nenhum incidente. Mas, numa certa aula de Redação, a professora pediu aos alunos que levassem anúncios de conteúdo implícito e, para exemplificar o que era isso, apresentou uma peça da Havaianas cujo título era: Todas as vantagens de medir 1,80 m sem calçar 39. Aquilo não fazia o menor sentido para mim – nem explícito, nem implícito. Questionei. E a mestra, didaticamente: “Quem usa Havaianas desfruta todos os benefícios de ter 1,80 m de altura sem precisar ser sapatão.” Espontaneamente, soltei: “Ué?! Sapatão eu também sou, nem por isso meço 1,80 m nem calço 39! 127 De verdade, eu não estou entendendo. Bom, vai ver é porque sou parte do assunto, e estar tão próxima dificulta a compreensão, né?” Ninguém riu nem olhou em minha direção. Não houve um silêncio constrangedor. Não houve rejeição nem rodinhas fofoqueiras durante o intervalo. Teria sido civilidade de meus colegas? Indiferença? Ou mera surdez? No exercício seguinte, nós deveríamos indicar as características geográficas, etárias e de gênero do texto que ela leria. Começava com “Cara, tô azarando uma mina (...)” e terminava não importa como. Um aplicado aluno prontamente anunciou: “Bom, as gírias são dos anos 80, o texto só pode ter sido dito por um homem...” Indignada com a memória curta de meu digníssimo colega, indaguei com veemência: “Como assim, só por um homem?!” Aí, sim, a classe riu. 128 Karla Lima, 32 anos, drogada e prostituída Quando conheci a Karla, ela não consumia álcool nem por educação, não dançava nem com reza brava e tampouco gostava de fazer sexo. Muitas coisas mudaram nestes mais de três anos de convivência. A começar pelo sexo. Em outras experiências que vivi, costumava fazer sexo, amar e fazer amor. Meu relacionamento com o Bicho foi diferente: nesse caso amei, fiz amor e fiz sexo. Hoje fazemos amor com sexo amado, amamos fazer sexo com amor, e às vezes só sexo por sexo. No quesito álcool, as coisas caminharam um pouco mais lentamente: “Experimenta essa caipirinha, tá superfraquinha!” “Urgh!” “Dá uma bicadinha neste mojito!” “Blargh!” “Esta marguerita tá uma delícia, que provar?” “Não.” “Saquê nem parece álcool!” “Só se for pra você.” Percebi que, por livre e espontânea vontade ela não iria sair disso. Então comecei a roubar no jogo: fiz uma batida 129 de coco e disse que era suco e não tinha vodca. Fui desmascarada e perdi 3 pontos. Não sei explicar exatamente por que agia assim, ou melhor, eu sei. Para comemorar meu 34º aniversário pedi à Karla que me desse de presente seu corpinho ligeiramente desorientado por uma bebida alcoólica qualquer. Ela concordou, mas advertiu: “Quando te perguntarem o que te dei de aniversário, corre o risco de você dizer: ‘Deu um trabalhão, vomitou, teve dor de cabeça, virou de lado, roncou e babou a noite inteira.’” Achei melhor não arriscar e troquei o pedido sacaninha por um CD da Mart’nália. Eis que, não mais do que de repente, ela fez uma promessa de Ano Novo: “A partir do réveillon, vou começar a beber.” Faltavam oito meses para o fim do ano corrente, mas antes tarde do que nunca. Como a Karla faz tudo o que diz, ela começou a beber. Devagarzinho, e só vinho tinto suave – quando é um pouco mais seco, ela invariavelmente comenta: “Não entendo como pode você pôr na boca uma coisa líquida e ela ficar mais seca do que estava antes!” Hoje em dia, só depois de meia garrafa é que ela começa a sentir os efeitos do álcool no organismo, se levanta e anda sem tirar os pés do chão. Isso mesmo, arrasta os pés como se tivesse calçando um par de esquis. Costumo controlar a velocidade, o porcentual alcoólico da marca do vinho e a quantidade de beliscos ingeridos durante o processo, para garantir sua presença em nossa festinha. Ora funciona, ora não. Quando ela falta, preciso confessar: festejo sozinha mesmo. 130 A Karla tinha fumado maconha uma única vez e, de acordo com o relato, a experiência foi péssima: sua pressão caiu, os lábios e as pontas dos dedos ficaram roxos, suas pernas se descontrolaram e ela vomitou a noite toda. Se tem algo que eu me orgulho em dizer é: “A Karla fez inúmeras coisas inéditas comigo.” Suponho que a adrenalina dessas novas aventuras a tenha motivado a reviver experiências traumáticas e, quem sabe, superá-las. Não foi bem o caso da próxima história. Ganhamos um baseadinho de presente e incentivei que ela fumasse, já com o pensamento na festinha. Após dois tragos, ela se sentiu tonta e quis deitar-se. Tentei acalmála, sugeri um banho gelado e fui buscar uma Coca. Quando voltei, ela tinha vomitado ao lado da cama e já se sentia bem melhor. Acompanhei seu banho, ela colocou um pijama e falava sem parar… falava, falava, falava. Senti que as coisas estavam sob controle e fui tratar de limpar a bagunça do quarto. Peguei balde, pano de chão, outro balde, água, desinfetante, e ela atrás de mim sem parar de falar, falar, falar. Estava na pior parte do processo da limpeza e ela escorando a porta do aposento: “Tô com fome.” O Bicho foi para a cozinha e voltou com um pacote de Doritos Nachos – falava, falava, falava. Pensou que a porta do quarto pudesse cair e resolveu escorá-la novamente. Um Doritos, 15 frases; outro Doritos, 21 frases. “É bom isso aqui, né?” Mais um Doritos, e eu agachada limpando seu mal-estar. Como é que pode uma pessoa assim?! Esse episódio encerrou definitivamente a carreira de experimentações ilícitas de meu Bicho e, segundo ela, tudo 131 o que eu acabei de contar é a mais deslavada das mentiras que ela já ouviu. No quesito dança, as coisas andam paradas. Não há o que faça meu Bicho se soltar. Sentada, ela arrisca um chacoalhar de ombros, pequenos socos descoordenados no ar e movimentos afirmativos de cabeça. A conjunção das três oscilações é hilária e perigosa, pois seus cotovelos são pontudos e seus punhos, certeiros. Suspeito até que minhas gargalhadas venham inibindo sua evolução, mas não consigo evitar. De pé ela ainda não tentou, mas acho melhor assim. Com a força destrambelhada que tem, uma joelhada poderia ser fatal. Quero registrar minha discordância com o “prostituída” do título deste capítulo, totalmente redigido pela Patricia. Não me lembro de jamais ter sido paga por fazer sexo com ela. Ou será que ela abriu uma poupança secreta pra remunerar nossos amorzinhos, e um dia vou descobrir que nossa vida sexual, além de extremamente prazerosa, ainda me rendeu uma aposentadoria confortável? 132 Nem tudo são flores A equação perfeita para sincronizar e maximizar a produtividade de nossos encontros sexuais só aconteceu depois que limitamos o período de atuação. Nunca antes de duas horas depois de meu despertar e nunca depois de a gravidade vencer a resistência das pálpebras de meu Bicho. Logo, nossas tardes é que são quentes. Com as tardes ocupadas, revezávamos o uso do computador nos horários livres. Antes do início desta nova empreitada, conseguia esperar minha vez quase serena, depois... não conseguia conter minha compulsão ávida por digitar a tal história que me ocorrera ou buscar uma informação na Internet para concluir um raciocínio. Naquele momento eu tinha que, eu necessitava, eu carecia invadir o turno da Karla. Para pôr fim a minhas aflições e acelerar o processo evolutivo da obra, adquirimos mais um micro, ligamos em rede e, desde então, passamos horas a fio sentadas em frente a nossas respectivas máquinas, ela de costas para mim, olhando para a parede, e eu de costas para ela, olhando a paisagem. Entre nós uma impressora, e conosco a Fátima. 133 Ao redecorar o ambiente, posicionamos estrategicamente os micros sobre a mesa, de tal forma que os monitores e o vidro da janela funcionassem como espelhos, evitando assim torcicolos crônicos, e facilitando a recuperação em caso de perda súbita e momentânea de inspiração. Quando isso acontece, olho para o vidro da janela, ou a tela do monitor, em busca da imagem refletida de meu Bicho. Nestes anos de convívio, a Karla colaborou muito com meu autoconhecimento. Ela desvendou facetas de minha personalidade que eu desconhecia. Logo de cara, diagnosticou: dislexia, descoordenação e prolixidade. Tentei derrubar suas teorias, mas aos poucos tive que me render a suas constatações certeiras. Ok, sou prolixa! Quem não notou ainda notará em breve. O caminho mais curto nem sempre é o mais perfumado! A descoordenação motora só percebi quando comparei os tec-tec-tecs vindos do teclado de meu Bicho com os tec…tec…tecs vindos do meu. Ai, me dá nos “neuvos”! A mulher parece uma metralhadora desenfreada. Com relação à dislexia, o processo foi mais lento e doloroso. Quis esquivar-me dos primeiros indícios alegando fatores os mais diversos. No fim, assumi. Tudo começou com orientações de trajeto: “Bicho, vira à direita na próxima. Não… é pro outro lado!” “Caramba! Se é do outro lado, não é à direita.” “Então tá, faz a volta no quarteirão. Vira à esquerda no farol. Não, Bicho, esquerda, esquerda, esquerda!” 134 “Eu virei à esquerda!” “É, né?” Convencionamos, então: vira pro seu lado ou vira pro meu. Seguiu assim: “Putz, Bicho! Derrubei iorgurte no endrendom de nossa propiedade!” “Vidinha, derrubou iogurte no edredom de nossa propriedade?” “É, mas foi sem querer.” “Não é isso: derrubei i-o-gur-te no e-dre-don de nossa pro-pri-e-da-de!” “E o que foi que eu disse?” “Derrubei iorgurte no endrendom de nossa propiedade!” “Ah!, Bicho, isso é coisa de família! Cresci ouvindo isso; lá em casa todo mundo fala assim.” “Êita, bando de inguinorante!...” Segui evitando palavras traiçoeiras, mas meu vocabulário estava ficando um tanto quanto limitado... Continuamos: “Bicho, Bicho, encontrei a ADB na Internet. Você sabia que existe uma Associação Brasileira de Dislexia?” “AD o quê?” “ADB – Associação Brasileira de Dislexia.” “Não seria ABD mais apropriado?” “Acho que é mais apropiado mesmo, Bicho.” Por fim: Ao digitar um parágrafo, não posso desviar os olhos dos quadradinhos que identificam as letras no teclado. Sendo assim, digito e depois confiro na tela como ficou. Ficou tudo pintadinho de vermelho! 135 Se, ao digitar, a Patricia pode contar com o sublinhado rubro do corretor ortográfico, quando ela fala não há grifo verbal que me ajude. Claro que o contexto ajuda, mas eu não sou muito esperta, e às vezes tenho dificuldades, mesmo deduzindo o enredo... “Vida, o que é essa cicatriz?” “Numa Copa, eu quebrei um copo e pisei no caco.” “É mesmo? Faz tempo?” “Não sei direito... Quando que tem copo?” “O ano todo, meu amor!” “Então, fui pegar uma Coca, caí e pisei na Copa.” “Você pisou na Copa?!” “É, e entrou um copo aqui.” “Inteiro?!” “Quando eu caí no copo, entrou um caco de Coca aqui. Assim que vi, tirei a Copa do pé sozinha.” “Uau, pudera que tenha ficado uma cicatriz tão grande!” Se não sei o contexto, é ainda mais difícil – e ela não perde a oportunidade de mangar de mim, provavelmente por vingança a todas as vezes em que eu a corrigi. “Bichão, pega o coiso pra mim? Tá em cima da coisa.” “Vida, preciso de pelo menos uma pista... O coiso a ser pego é objeto, alimento…?” “Bom, eu uso pra falar com as pessoas, mas se você quiser engolir é só se preparar pra saída... Vai que a anteninha enrosca, né?” Uma vez, eu já estava deitada e ela ainda na sala, enrolando. Falei que viesse logo pra cama, queria dormir de conchinha. 136 “E quem vai ser a concha, e quem vai ser o molusgo?” “Vida, molusgo!” “Ah!, já sei... Falei uma anamolia, né? Molúsgulo, Bichão, molúsgulo.” Tive que me levantar e vir registrar isso. 137 Santo André Chamamos de primeira lua-de-mel a viagem para Noronha, em 2003, e de terceira lua-de-mel as férias em Itacaré, em 2005. Ora – estará pensando o leitor atento –, o que houve com a segunda? Houve muito sol, houve episódios incríveis e fotos belíssimas! Em 2004, nossa viagem romântica também foi para a Bahia: Santo André. No Estado de São Paulo, Santo André é um município industrial de poucos atrativos turísticos. Assim, quando o Charles (o namorado do Antônio Carlos, lembra-se?) sugeriu esse destino para nossa segunda lua-de-mel, levamos na brincadeira. Santo André? Fazer o que em Santo André, cara-pálida? Conhecer umas metalúrgicas, fazer city tour pelas montadoras? Santa ignorância, mania de paulistano achar que sua cidade é o centro do País!... Mal sabíamos que nosso aprendizado não tinha nem começado! Primeiro, conhecemos Santa Cruz Cabrália, o ponto exato onde o Brasil foi descoberto. Depois comprovamos o espírito empreendedor dos baianos da região, que mantêm letreiros, cardápios e muitas outras informações escritas em hebraico para atender ao turismo intenso de israelenses. Aprendemos de uma vez por todas que lugares 138 agitados como Arraial d’Ajuda não são para nós. Quanto a Santo André, é uma vila de pescadores com 200 habitantes, 25 km ao norte de Porto Seguro, com um hotel que é tuuudo de mais bacana. Nos primeiros dias, aproveitamos que o hotel abrigava um spa e nos divertimos com os serviços disponíveis: fizemos ofurô com essências afrodisíacas, recebemos hidratação com leite de coco e a melhor massagem ayurvédica de nossas vidas. Embora os hóspedes do hotel pudessem usufruir os serviços do spa, obviamente quem estava em tratamento lá não podia comer no restaurante do hotel. E foi assim que tomamos lições inesquecíveis sobre comportamento humano. Todos os dias, pacientes gordinhas tentavam subornar-nos pelo tráfico de um croissant, uma fatia de bolo, um copinho de batida. Eu negava peremptoriamente, mas a Patricia, entre a sacanagem e o coração mole, antes de recusar a proposta descrevia várias outras possibilidades. “Bolo de cenoura mesmo, tem certeza? Olha que a mousse de cacau é muito melhor... Lagosta? Já que é pra pecar, vai logo pra lingüiça defumada!” E negociava o preço com requintes de crueldade: “Uma cerveja vai te custar mais que a torta de limão. Sei que você vai revender lá dentro...” No quinto dia, chegamos ao meio da tarde sem nenhuma abordagem. Pensamos que tivessem desistido, e nos cumprimentamos por não ter corrompido a dieta de ninguém. Foi quando uma menina de uns sete anos se aproximou com uma história de partir o coração: seus pais tinham saído de escuna pela manhã, à espera deles 139 ela tinha perdido o horário do almoço e, se não lhe déssemos um pouco de nosso lanche, ela ficaria sem comer até que eles voltassem. Ela estava quase chorando – e a Patricia, empática como ela só, também já tinha os olhos úmidos. Ponderamos: um hotel daqueles mandaria os pais para uma atividade externa tão longa e deixaria uma criança daquela idade sem um recreador? Óbvio que não. Prova disso é que seu pai, um senhor de 174 quilos, nos espiava pela fresta do refeitório... Lição daquele dia: com fome, a ética paterna vai para o espaço! Na manhã seguinte alugamos um carro para explorar as redondezas, e os aprendizados continuaram. Na entrada de Belmonte, a placa ensinava que aquela era uma “Felizcidade”. O guia explicou, peito inflado de orgulho pátrio, que na praça central nós veríamos a maior estátua de crustáceo do mundo! Poucos metros adiante, um imenso guaiamum de concreto parecia dar-lhe razão. Em Santo Antônio nossa lição ficou incompleta, pois numa fachada lia-se: “Protético. Dentadura. Ponte. Roach.” – e nunca descobrimos o que significa roach. Em Mogiquiçaba vimos a importância que uma casa de carnes pode ter na vida de alguém. Lá a fachada do açougue informava: “Carne moída, carne de 1ª, de 2ª e carne com osso”. Nome do estabelecimento? A Força da Mulher. Num ponto de ônibus, uma placa pintada a mão anunciava os produtos de outro comerciante: “Vende-se marisco, lãmbreta, hostra e guaiamum e caramguejo. Falar com Sidnaj.” Tentamos, mas ele não estava por perto. O fato de as portas estarem fechadas sob o aviso “Aberto dia e noite” em nada diminuiu o ensinamento do Sr. Andrade: “Funerária Andrade. Venda de passagens para sua última morada.” Imbatível! 140 Na fila da balsa de volta ao hotel, um apito insistente nos chamou a atenção. Quando viramos pra trás, sentimonos obrigadas a registrar em foto o carrinho do apitador: “Milho Verde do Cabral, até banguelo come.” Assim mesmo: banguelo. Enquanto estivemos em Santo André, a Patricia quis adotar três ou quatro guris – o William, da balsa, ela quase importou de verdade, incentivada pelo fato de o menino não ter família e ter sido tão afetuoso com ela. Mas voltou à razão quando aleguei que calçá-lo, metê-lo no ambiente fechado de uma escola, fazê-lo viver num apartamento em São Paulo e tirar-lhe o sono na rede, as brincadeiras de água e rua com outros meninos seriam mais maldade que caridade. Convencida de que não seria viável trazer para São Paulo nem os cães nem os garotos, a Patricia decidiu que viveríamos em Santo André. Durante horas planejamos nossa nova vida: aos funcionários do turismo daríamos cursos técnicos e aulas de inglês; seus filhos nós iríamos alfabetizar; para jovens mães ela ensinaria costura industrial; aos pais, carpintaria; aos jovens, computação. E, com todos, promoveria animadas rodas de samba. Montaríamos fundações, ONGs, institutos, negócios, estratégias. Só com muito esforço conseguimos voltar a São Paulo. 141 A acústica do lar Absolutamente absortas com a execução desta obra, trancafiamo-nos durante o final de semana. Empolgadíssimas, transcrevíamos nossas passagens, mas um compromisso agendado dois meses antes estava a nossa espera. A Karla não gosta de ser interrompida enquanto escreve. Fez questão de fechar o capítulo antes de se aprontar, e acabou sentindo-se atrasada. Sempre pontual, foi-se arrumar no maior estresse. Eu, desencanada com o horário (dez minutos a mais, cinco horas a menos, tanto faz), interrompi o capítulo, me vesti e aguardava na sala, tranqüilamente, terminando o que tinha começado. Karla, do quarto: “Temos realmente que ir a esta festa?” Eu, da sala: “Tem um maço de cigarros no meu carro.” “Que roupa é adequada?” “Qualquer coisa, você fuma do meu.” “Não estou conseguindo escolher uma roupa sozinha!” “Prometo que não vou te deixar sozinha na festa.” “Vou colocar qualquer uma, depois não reclama!” “Nós não vamos demorar muito. Pra ser sincera, por que não cancelamos o programa?” “Eu vou assim mesmo. Já estou pronta!” “Eu também te amo, meu amor!” 145 Fomos à festa. Tudo o que mais queríamos era retornar. No carro, voltando para casa: “Bicho, por que você colocou essa calça social para uma festinha de amigos tão informal?” “Eu te avisei, agora é tarde para reclamar. Quisesse dar palpite, fizesse antes.” “Eu nem mesmo queria ir à festa!” “Então, por que fomos...?” Concluímos que foi a acústica do lar que nos obrigou. 146 Utilidade pública Neste caso, dez minutos a mais ou cinco horas a menos fizeram toda a diferença. Durante uma temporada, as meninas do samba e eu nos apresentávamos todas as quartas-feiras num famoso bar da região central de São Paulo. Passávamos o som às 18h, eu voltava para casa, tomava um banho, jantava e retornava para a apresentação às 22h. Naquele dia, tudo começou atrapalhado: o técnico chegou uma hora atrasado, a passagem de som foi complicada e a microfonia deixou dores em todas as cabeças. Cogitei a possibilidade de não voltar pra casa, mas não havia roupa para tomar emprestada e meu traje naquele momento era desaconselhável. Enchi-me de coragem e enfrentei os 25 quilômetros de trânsito no horário do rush, pós-tempestade de verão, que me separavam de casa. Tudo pa-ra-do! Pensei numa alternativa de rota, mas teria que fazer uma pequena conversão proibida: atravessar uma ilha. Assim que subi na guia, o Sr. Policial Militar estava a minha espera: “Seu guarda, eu sou artista. Pelo amor de Deus, deixa eu ir! O senhor me desculpa, por favor! Agi por impulso. Prometo que vou ser boazinha. Estou atrasada para o show. 147 A empresária vai me matar! O senhor já ouviu falar da banda? Eu preciso tomar banho. O show começa daqui a uma hora e meia. Quebra essa. Se o senhor quiser, tem um ingresso vip para o senhor e para sua namorada, esposa, enfim, pra quem o senhor quiser levar… tem também o CD. Posso pedir para todas as integrantes assinarem.” “Documento do carro e habilitação, por favor.” Ele se afastou e foi checar a papelada. Voltou: “Senhora, sinto informá-la, porém seu veículo será apreendido.” “Ok, senhor! Apreenda o carro, mas me deixe ir embora, por favor! O senhor pode ficar com ele, eu só preciso pegar o cavaquinho. Conforme lhe expliquei anteriormente, eu não posso perder a hora de jeito nenhum. Me libera, tenha piedade da classe artística, é duro viver de música! Não posso chegar atrasada, o show é muito importante. Justo hoje, o pessoal de uma gravadora poderosa irá assistir à apresentação. Nosso futuro depende disso, é uma oportunidade única. Não há outra cavaquinista na banda. O senhor sabe, né? Sem o cavaquinho, o samba perde o swing. A empresária é muito severa. Minha vida está em suas mãos! Pelo amor de Deus, deixa eu tomar banho, preciso estar cheirosa e arrumada! Eu estou toda suada e maltrapilha.” “Senhora.” “Sim, senhor. Ah! E tem mais... Eu não lhe falei, mas a ordem do repertório está comigo, sem ela o show não tem como...” “Senhora.” “Pois não, senhor!” “Só um instante que vou checar com meu comandante.” O oficial retornou com o bloquinho, inspecionou o veículo e concluiu: 148 “A senhora fez uma conversão proibida, sua seta direita não está funcionando, sua placa está ilegível, seu extintor de incêndio está vencido, seus pneus estão carecas e a película do vidro está fora da especificação permitida por lei. Seu documento será retido e a senhora tem uma semana para se dirigir ao Detran com as devidas regularizações.” “Então tá, então. Muito obrigada! O senhor não sabe, mas salvou minha vida, nem sei como lhe agradecer. Se as meninas estivessem aqui, elas também agradeceriam. A empresária pode ligar para o senhor para confirmar minha história.” “Ok, senhora. Boa noite!” “Boa noite para o senhor também! Fica com Deus, bom serviço e obrigada mais uma vez. Passa lá quando o senhor terminar.” Depois disso tudo, cheguei em casa na hora de sair e, para completar, tinha os bolsos repletos de bilhetinhos amarelos autografados pelo Sr. Guarda. Tomei banho feito gato, me arrumei, apanhei umas bolachinhas no armário e deixei para finalizar os detalhes no caminho de volta ao bar, como faz meu Bicho. A Karla tem como filosofia não desperdiçar minutos. Assim, ela costuma aproveitar o tempo perdido à espera do sinal verde hidratando as mãos, lixando as unhas, fazendo as cutículas, pondo em dia a leitura e tudo o mais que for produtivo na maximização dos segundos vividos. Seguindo seus ensinamentos, um quilômetro adiante eu já estava maquiada e com os colares no pescoço. No segundo, o cabelo se encontrava penteado. No terceiro, hidratei as mãos e passei o desodorante. Cinco metros 149 depois, comecei a sentir um cheiro insuportável. Rapidamente detectei sua origem: minhas axilas! “Como assim?!” O banho não foi dos mais caprichados da história, mas sair dele daquele jeito teria sido impossível. Nem se tivesse jantado pizza de aliche com alho e passado o maior nervoso correndo a maratona do meio-dia no Deserto do Saara eu poderia ter um décimo daquele cheiro! “Como assim?! Como assim?! Como assim?!” Sem alternativa, voltei para casa e tomei uma senhora ducha. Que cheiro era aquele! Pelamordedeus! Saí do banho sem saber se o cheiro havia desaparecido. Minha capacidade de julgamento estava abalada e minhas narinas, impregnadas com aquela catinga. Antes mais atrasada que fedorenta! De volta, a caminho do bar, eu buscava explicações que desvendassem o aparecimento daquele mau cheiro súbito que havia me acometido. Avançava sinais vermelhos e ignorava radares pensando: “Como é que pode?!” Suspeitei do desodorante e debatia a lógica comigo mesma: “Claro, deve estar vencido! Como assim, vencido? Desodorante tem data de validade? Ah, deve ter! Vai ver tomou muito sol! Muito sol? Qual é a marca desse troço? Afinal, por que é mesmo que eu tenho um desodorante em meu carro? Eu nem uso desodorante!… O Bicho usa. A Karla? Não, não pode ser! Ela adora economizar dinheiro e não liga pra marcas. Por mais barato que fosse, ela não compraria um desodorante roll-on com este perfume. Perfume? Nem a pau, Juvenal!” 150 O sinal fechou. A minha frente dois educados motoristas aguardavam a luz verde para seguir adiante, impedindo minha oitava transgressão. Como estava à mercê da situação, fui checar o dito cujo, digo, o maldito desodorante. Assim que tirei a tampa, o ar ficou denso. Eu sentia as minúsculas partículas de fedor presas entre os “dois Os” do oxigênio desembestando nariz adentro. Contive a ânsia de vômito fechando a boca com uma das mãos. Com o indicador e o polegar da outra mão, impedi a entrada de novas partículas. O farol abriu, o ar já me faltava, minhas mãos estavam ocupadas, os vidros estavam fechados e o carro estava em ponto-morto. Fudeu! Fui ovacionada por um coro de buzinas: “bibi, fonfom, pã-pãpã-pã, io-io-ióóóó”. Destemida, mais forte que a Formiga Atômica, mais rápida que o The Flash e mais poderosa que a Ísis, soltei as duas mãos, engatei a marcha, abri os vidros, joguei o inimigo janela afora e vomitei. Refeita, segui em direção a meu destino. Recapitulei a vida útil do artigo de higiene, que não era tão velho assim. Lembrei-me da última vez em que meu Bicho tinha usado o desodorante: sábado antes do almoço. “É, sábado antes do almoço!” Pois é, sábado tínhamos saído para almoçar, deixamos o veículo no estacionamento conveniado. Ao retornar, nos deparamos com o manobrista dentro de meu carro ouvindo um sambinha e remexendo no console. Quando ele percebeu minha presença, se recompôs: “Dona, estava tentando arrumar seu porta-luvas, ele não fecha! Bom esse CD do Arlindo Cruz, né? A senhora gosta de samba, né? Eu adoro! Até a próxima.” 151 Senti uma certa invasão de privacidade, mas acabei relevando para não perder o bom humor. Não imaginava, porém, arruiná-lo na quarta à noite. O cidadão trabalhador, funcionário daquele estabelecimento, querendo manter o bom serviço e preservar a imagem da referida empresa, resolveu dar um trato no visual: penteou seu cabelo com minha escova, hidratou suas mãos calejadas com meu creme e calibrou suas malcheirosas axilas com meu desodorante, deixando pra trás sinais óbvios e marcantes de sua presença. Conclusão: sempre carregue consigo seu desodorante rollon; caso não seja possível, nunca deixe de cheirá-lo antes de aplicar, ou melhor, lembre-se sempre de que nos frascos mais improváveis talvez se encontrem as piores inhacas. Só para constar: contrariando todas as expectativas, recuperei meu humor e o show atrasou só uns minutinhos. 152 Istria Numa manhã chuvosa de um sábado qualquer, ouvia os click-clicks frenéticos vindos do mouse pilotado por meu Bicho. Os estalidos eram intercalados com bufos e som de socos na mesa. Intrigada, perguntei: “O que foi?” Atenta, ouvi: “Que merda! Estou tentando descobrir onde fica Istria!” Ponderei. Não me contive: “Ah, Bicho!... na bunda, nas coxas, às vezes na barriga, depende...” Sua reação foi inversa a minha expectativa: “Na Croácia! É sério, vem ver o mapa! Fica perto de Buzet, Barbariga, Porec e Rabao.” 153 “Cartas, 1956-1961” Dia 3 de julho de 2003, aguardavam-me em casa a Patricia, um pacote em forma de livro e um bilhetinho de amor. Que meigo! Deu-se então um fato inédito em minha vida: ganhei o primeiro livro que julguei estar além de minha capacidade de compreensão! Segundo ela, quando foi à livraria escolher um presente adequado para a ocasião (quatro meses de casadas), selecionou as opções de acordo com o tamanho da letra, dando preferência às bem miudinhas. Passou então a analisar o conteúdo e separou em três categorias: pouco compreensível, nada compreensível e sânscrito. Optou por “Cartas, 1956-1961”, do Jung, achando tratar-se da dupla do Yin. Yang, Jung, Tang, Ving… sua dislexia a confunde, judiaçãozinha! Investi duas horas tentando reverter a situação e acabei me dando por vencida. Reclamei, fiz biquinho, disse que me sentia humilhada. Ela, sensibilizada com minha frustração, me reconfortou: “Quem mandou posar de intelectual?” Pedi que ela trocasse por algo mais à altura de minha verdadeira capacidade. 154 No dia seguinte ela me trouxe um gibi da Turma da Mônica... Chuif! Aqui se faz, aqui se paga! 155 Warheads Numa parada para um cafezinho, não pude resistir a um lançamento exposto de forma impecável junto ao caixa: Balas “Warheads” – embaladas uma a uma, em diversas cores e sabores. No display, uma chamada: “Experimente se puder!!!” Eu pude. A caminho de casa resolvi provar uma delas. Detalhe: o carro seguia a 70 km por hora, os vidros estavam fechados e a porta travada. Tinha uma das mãos no volante, a outra abrindo a embalagem da bala e, entre as pernas, um copo d’água pela metade e sem lacre. Pus a bala na boca e… travei. Foram os segundos mais longos de minha vida, até que recobrei as funções motoras e consegui cuspir a bala no banco do passageiro. Aquela seria minha melhor oportunidade de provar para a Karla que limão não é salgadinho e carambola verde não é amarga. Determinada, passei a conduzir o veículo a 120 km por hora. Planejei tudo, pensei até em fotografar as caretas “inguinóticas” (caretas cheias de ínguas) que a Karla certamente faria ao chupar a tal bala. Fiz a maior propaganda: 156 “Essa bala é muito louca, você tem que provar. Experimenta, vai? Por favor! Se você me ama, chupa só uminha!” Depois da chantagem de quinta, meu Bicho pôs a bala na boca. Eu salivei, meus olhos se encheram de lágrimas, minhas bochechas rosaram, um calafrio quase me derrubou, e ela: “O que é que tem de tão especial na bala?” “Bicho, ela é megaácida, azeda pra caralho!” “Não é azeda, é salgadinha! Parece bolhinha de gás de refrigerante!” Depois de degustar a bala até o fim, ela notou algo diferente na textura de sua língua, que mais parecia uma lixa. Em frente ao espelho, constatou suas papilas gustativas em pandarecos: “Nossa, acho que estou impotente por uns dias, justo hoje que você está depiladinha!” Eu, desapontada por não ter conseguido fazê-la sentir o sabor azedo, e ela, frustrada com o sexo postergado para o dia seguinte, fomos juntas pôr a língua estropiada de molho no mel. 157 Brainstorm No dia 3 de junho de 2003, retornamos ao restaurante onde ganhei meu primeiro beijo para comemorar o fim do período de experiência do contrato nupcial. Não mencionamos antes, mas, assim como nos contratos de trabalho, tínhamos que cumprir 90 dias para sermos efetivadas como esposa e mulher. Celebrando as respectivas efetivações, revivemos nossas histórias entre garfadas e gargalhadas. Após o sexto cafezinho, com cãibras nas bochechas, comentei despretensiosamente: “Ai, Bicho, isso daria um livro!” Até hoje a Karla tem certa dificuldade em entender a coloquialidade de alguns comentários. Como ela não costuma dizer nada por dizer, leva ao pé da letra tudo o que ouve. Um pequeno desvio só para ilustrar: na despedida do jantarzinho que marcou a apresentação oficial de meu Bicho-do-Mato a minha irmã do meio e meu cunhado, com o elevador já a nossa espera, despedíamo-nos no hall. Eu: “Tchau, gente! Obrigada pelo jantar. Estava tudo muito gostoso. Foi bem divertido. Vamos marcar mais vezes.” Minha irmã: “Vamos sim. Me liga que a gente combina.” O Bicho-do-Mato: “Obrigada por tudo. Até logo.” “Obrigada de quê? Foi um prazer.” Minha irmã a puxou 158 para um abraço mais carinhoso, e ao fim: “Sabe, Karla, eu gosto muito de você!” Ninguém naquele hall esperava ouvir: “Por que você está falando isso, como assim?” Achei melhor poupar a todos: “O elevador está apitando, tem alguém precisando dele.” O percurso de volta foi longo, apesar dos poucos quilômetros que nos separavam do destino final: “Bicho, não é assim que você deve se portar, ainda mais em se tratando de minha irmã. Ela quis ser agradável, e demonstrar que você é bem-vinda!” “Então por que ela simplesmente não disse ‘Você é bemvinda!’, já que era isso que ela queria?” “Porque as pessoas não são tão literais assim.” “Certo, mas ela disse ‘Eu gosto de você!’ Como pode saber? Ela mal me conhece!” “Ai, Bicho! Ela gosta de você pelas coisas que eu conto a seu respeito e pela felicidade que percebe em minha vida desde que você chegou.” Enfim... Retornando ao ponto antes do último desvio. “Ai, Bicho, isso daria um livro!” “Um livro? Mas com que objetivo?” “Sei lá, um livro sem objetivos!” “Mas por que haveria um livro sem objetivos?” “Ok, então o livro teria dois objetivos. Primeiro: divertir as autoras e... e… esse livro teria um só objetivo! Já não basta?” A Karla entrou no espírito: “É, poderia ser um seguro-velhice ou, antes, um seguroterceira-idade-tediosa. Quando tivermos vivido mais de 40 anos de boas gargalhadas, certamente não lembraremos das primeiras. Seria um desperdício não usarmos 159 nossas próprias piadas para confortar nossos invernos a partir de 2042!” “É isso, Bicho!” Adiante com a sobremesa e outros três cafezinhos, pensávamos no título de nosso livro e não imaginávamos que, muito antes de a terceira-idade-tediosa chegar, iríamos esquentar nossa segunda-idade e antecipar o seguro-velhice. Alucinadas pela cafeína e embaladas pela endorfina, cogitamos as seguintes alternativas: Bicho: “A Arte da Paz – segundo Moon Tza.” Eu: “Não, não entendi.” Bicho: “Julieta e Henriqueta.” Eu: “Antonieta e Anacleta no Reino das Etas.” Bicho: “O Castelo das Bruxas Gostosas.” Eu: “Não, muito metido.” Bicho: “Homens São de Marte, Mulheres São Demais.” Eu: “Que tal alguma coisa mais pop? ‘Ela É Aquário, Eu Sou Touro.’” Bicho: “De jeito nenhum!” Eu: “Que tal: Ela É Touro, Eu Sou Aquário.” Bicho: “Piorou!” Eu: “Ok. ‘Uma É Touro, a Outra Aquário.’ Ou ‘Uma É Aquário, a Outra É Touro.’” Bicho: “Vira o disco, criatura!” Eu: “Taurina Ternurinha & Germânica Cética.” Bicho: “Já sei! Taurina Ternurinha & Bicho Frio, Amargo e Incapaz de Amar.” Eu: “Ah, não, Bichooo!” Ao fim concordamos com: “Touro no Aquário.” 160 Só o amor constrói Durante nosso primeiro jantar, a Patricia levou mais de 40 minutos para me explicar o que fazia para ganhar a vida, e outros muitos para dizer que tocava cavaquinho. Começou dizendo que adorava choro, que a comida estava muito saborosa, que sua tia-avó era fã da Clara Nunes, que a moça da mesa ao lado era muito esquisita, que ela fazia aulas particulares de música uma vez por semana... Desembucha, criatura! Com o passar dos meses, entendi o porquê de tanto cuidado para comunicar algo tão simples. Os shows de samba a que assisti, com e por ela, superam a casa da centena. Com meu gosto musical atípico, samba nem remotamente fazia parte de meu repertório. Hoje, posso debater sobre esse gênero com alguma propriedade, reconheço o Sr. Argemiro do Patrocínio pelo timbre, Nelson Sargento pelo sotaque, até a biografia da D. Zica da Mangueira eu li. Coisas do amor! Agora, churrasco com pagode, para mim, continua sendo um binômio insuportável, tanto pelo funeral dos animais quanto pelo sacrifício dos ouvidos. 161 Amélia Em benefício de meu próprio bem-estar, diariamente contribuo com o processo de despertar da Patricia. Passo o café, faço a primeira chamada, preparo o cappuccino, sigo com a segunda chamada, leio o jornal todo e volto à carga. Tudo muito suave, para não irritá-la logo cedo (mesmo que já passe do meio-dia, o horário do despertar, pra ela, é sempre “cedo”). Mas minha suavidade nem sempre encontra correspondência no ritmo dela: apesar das duas horas necessárias para realmente acordar, a pessoa sai da cama, todas as manhãs, querendo contar tudo o que sonhou. O amor nos prega dessas também... “A gente estava em casa – não era essa casa, mas era nossa casa –, daí chegou alguém, que eu não consigo lembrar quem era, mas era alguém que a gente conhecia. Ele queria levar a gente ao aeroporto. Nós fomos premiadas no sorteio daquela viagem… sabe aquele papelzinho que a gente preencheu ontem no supermercado, até que você não quis participar e eu fiz um em seu nome? Então, daí ele disse que tinham ligado pra avisar que fomos sorteadas, mas que os organizadores tentaram ligar aqui e o telefone só deu ocupado. Por que será? Bom, daí 162 a gente tinha que arrumar a mala porque o avião iria sair em duas horas. Eu estava com um monte de tremiliques por causa do medo de avião e não conseguia fazer as malas… Sabe aquela mala verde? Eu não conseguia achar de jeito nenhum. E você ficava falando ‘Calma!’ e eu respondia ‘Eu tô calma!’ Nossa, Bicho! Normalmente é o contrário. Será que isso significa alguma coisa? Será que eu queria ser você? Bom, aí eu me lembrei de que eu tinha preenchido dois cupons, um em seu nome com a opção Caribe com acompanhante e outro em meu nome com a opção Bariloche com acompanhante, e eu perguntei pro homem pra onde era e ele só dizia ‘uma de vocês ganhou, eu não sei qual!’ Eu estava em pânico, não sabia que tipo de roupa pôr na mala. Você colocou uma calça, uma camiseta, uma calcinha, um sutiã, um par de meias, um agasalho e um biquíni, e disse que sua mala já estava pronta. Eu nem conseguia encontrar a mala verde. Sabe qual? Daí peguei a azul mesmo. Mas ela era muito pequena e minhas roupas não cabiam. Quando eu estava sentada em cima dela para fechar o zíper, você me acordou. O que você acha que este sonho significa?” Ai, o amor!... 163 Ai, meus peitinhos! Ai, meus peitinhos, digo, os peitões de meu Bicho! Nesses 18 anos de carreira nunca havia pilotado peitinhos tão empinadinhos, firmes e proporcionais. Inicialmente, senti grande dificuldade em manuseá-los, mas por fim desenvolvi uma técnica especial sem precedentes. Além de momentos prazerosos, os mamilos, digo pupilos, enriquecem o repertório de entretenimento familiar. Durante um almoço de domingo, a Karla apanhou meus queridinhos, um em cada mão: “Nossa, meus seios estão tão doloridos!” “Como assim? Nem brinquei com eles ontem!” “Acho que vou menstruar.” “Ah, então deve ser dislexia mamária!” “Vida, dislexia na mama?” “Você nunca ouviu falar?” “Em dislexia mamária não. Que tal displasia?” “Displasia, dislexia, disbulia, não bole comigo não, causa discórdia e dissabor. A gente tá comendo!” Outra vez, estávamos numa loja metida a chique, comprando uma blusa metida a chique, para uma ocasião verdadeiramente chique. A Karla já tinha provado uns oito 164 modelos e nada parecia adequado. O vendedor, não querendo perder a venda, e querendo ganhar literalmente a cliente, estava ignorando minha presença, por mais que eu me fizesse notar. Ele ajeitava a blusa no corpo dela: “Essa blusa é a sua cara, muito linda!” Eu: “Não, Bicho. Essa blusa não é tão linda como seu rosto. Acho até que ela não valoriza o que você tem de melhor.” Olhei para os seios dela. Bicho: “O que eu tenho de melhor não pode ser vestido por nenhuma blusa, é o cérebro!” Eu para o vendedor: “Viu só?” O vendedor para a Karla: “Tem uma branca decotada que vai destacar o seu colo, deixando a imaginação livre para a segunda coisa que você tem de melhor.” Eu para o vendedor, que até então me ignorava: “A imaginação é livre, mas a ação é só minha!” Relei as costas da mão bem de leve em meus dois queridinhos e saímos da loja de mãos dadas, morrendo de rir. Mesmo porque 250 reais num pedaço de pano… nem a pau, Juvenal! 165 Zélia na parada Nunca fui muito fã de televisão. Quando me separei, passaram-se semanas até que eu percebesse que ela continuava na sala. Apesar de hoje em dia eu até ver alguns programas com a Patricia, até três anos atrás raramente me lembrava da existência desse objeto. Eu adoro jornal, mas gosto de pouquíssimas revistas – três, pra ser sincera. Rádio? Os locutores me irritam muito e as propagandas, ainda mais. Ou seja, nunca sei quem são as celebridades do momento, não reconheço no discurso alheio os bordões cômicos da moda e não sei cantarolar nem o refrão do hit do momento. Confesso: eu nunca tinha ouvido falar de uma cantora chamada Zélia Duncan. Pode rir. Assim, era com grande espanto que ouvia, de vez em quando: “Nossa, você é a cara da Zélia!” Lembrando-me daquela ex-ministra da Economia de dentinhos separados, tinha que me conter pra não dar na cara do incauto. Meu queixo proeminente vem-me rendendo comparações desde sempre: Cristiane Torloni, Segourney Weaver, barracuda... Mas o que isso tinha a ver com a Zélia? Quando deixei meu cabelo crescer, os cachos acentuaram a semelhança e as frases se tornaram mais claras: “Todo 166 mundo te fala que você é a cara da Zélia Duncan, né?” Ah-há! Então a Zélia não era aquela que dançava bolero e usava mangas bufantes? Meno male! Pesquisei, e longa vida à Internet! Zélia Cristina Duncan, cantora niteroiense sobre quem o João Pimentel disse, em O Globo: “Zélia Duncan é a melhor cantora de um mundo pop cujo entorno ela recusa. Sempre teve aversão a revistas de fofoca, festas, à imagem em detrimento da arte.” Uau! E numa edição online do JB, o Tárik de Souza escreveu sobre ela um texto chamado “Na linha das cantoras pensadoras”. Nossa! Como pude desconhecer uma pessoa dessas por tanto tempo? Devidamente familiarizada com a aparência e a obra da Zélia, deixei de me importar com as comparações – apesar de ela ser sete anos mais velha. Muitas vezes me pararam pra pedir autógrafo. Obviamente, nunca tive o mau gosto de dar, apesar dos incentivos dos amigos espíritos de porco. Nem por brincadeira me apetece ser outra pessoa, donde minha resposta-padrão é categórica: “Eu NÃO sou a Zélia Duncan, eu só sou queixuda!” Se alguém achou que era mentira chiliquenta da artista, peço desculpas a ela. Mas a Patricia também lhe deve desculpas. Uma vez, estávamos no Shopping Ibirapuera quando uma menina de cabelos cor-de-laranja veio me abordar. Eu não assinei seu bloco, discursei mecanicamente sobre os cachos e queixos, desculpei-me e saí andando, sozinha. A Patricia tinha ficado pra trás, gabando-se de estar com uma artista: “É a Zélia sim, é que ela não gosta disso, é tímida...” 167 A Patricia adora as ocasiões em que me confundem. Do alto de seu 1,58 m e meio, olha pra todo mundo com ares superiores: “Eu namoro a Zélia, tá, meu bem?” Uma vez, no final de um show, postei-me perto da saída de emergência, esperando o tumulto diminuir para ir embora. Uma moça cutucou a amiga e se aproximou, caderninho em punho. Sentindo o perigo iminente, escapei rapidamente pela escada de incêndio. Mas na Parada Gay de 2005 não havia rota de fuga. Eu, de óculos escuros, ainda mais parecida com a Zélia, e a Patricia, posando de gatinha e se sentindo, não deixávamos espaço para dúvidas... Íamos pela Paulista, abraçadas, curtindo o clima e as pessoas, apreciando os carros de som e celebrando viver numa cidade como São Paulo… não mais que de repente, uma menina grita a plenos pulmões: “Olha, é a Zélia!” Assustada, corri. Pensando agora, é claro que foi a pior reação possível, mas na hora não estava raciocinando direito. A menina e suas colegas vinham em minha direção, braços ameaçadoramente estendidos, olhos muito abertos, salivando. Paniquei! Elas se aproximavam rapidamente. A Patricia, arrependida de sua postura exibicionista, tentava convencê-las do engano e, ao mesmo tempo, me segurar. O bloco perseguidor se avolumou, até quem não tinha idéia do que estava acontecendo se juntou ao grupo e saiu atrás de mim. Eu estava de-ses-pe-ra-da. Gritava “Eu não sou a Zélia, eu NÃO sou, NÃO sou a Zélia”, mas parece que todo mundo só ouvia a última palavra e pensava: “Nossa, é a Zélia!”, e juntava-se à horda. Refugiei-me bem no fundo de um café lotado, fiz um rabo-de-cavalo e fiquei de costas para a porta. Logo a 168 Patricia chegou. O funcionário serviu água, café, nos deixou fumar, serviu mais dois cafés. Apesar dos muitos clientes, não nos apressou para desocupar a mesa. Quando fomos pagar, ele me deu uma piscadinha e propôs um escambo: “Me dá um autógrafo?” 169 Xixi engarrafado Esta é mais uma daquelas. Íamos passar o final de semana com minha família no Litoral Norte de São Paulo e, desavisadas, saímos às 20h de uma sexta-feira de janeiro de 2006. Só nós e mais 558 mil infelizes tivemos a mesma brilhante idéia. Levamos uma hora até a estrada que conduz ao litoral. Por precaução, paramos num dos poucos postos de serviços que existem antes da descida da serra – nós e 824 outras pessoas. No banheiro feminino encontravam-se 25% da população flutuante do estabelecimento; portanto, não fomos ao toalete. Coca Light gelada não havia. Irritada, peguei uma garrafinha de 500 ml de água morna e levei 32 minutos no caixa. Seguimos viagem, alternando canções e prosas. Quinze quilômetros antes de Bertioga, fomos obrigadas a parar. Ficamos ali, naquele mesmo ponto, por 19 minutos, andamos dois metros, esperamos 12 minutos, andamos meio metro, e assim foi, digo, não foi. O percurso até a casa de meus pais é cumprido em uma hora e meia, respeitando-se os limites de velocidade e em condições normais de tráfego. Naquele dia, as coisas foram bem diferentes. 170 Esgotaram-se os CDs inéditos. A D. Ivone Lara cantou três vezes as canções do último trabalho, e aquela era a última música da quarta passagem do Sisters of Mercy. Graças a Deus! A próxima escolha era minha: Paulinho da Viola pela quinta vez. Em meio à torturante repetição auditiva, ora mais sentida por mim, ora pelo Bicho: “Nossa, eu preciso muito fazer xixi!” “Eu já estou sentindo o meu sair pelos ouvidos.” “Onde está a garrafinha de água?” “A água acabou faz tempo, Bicho!” “E você acha que eu quero tomar água, apertada do jeito que estou?” “Sei lá, coraçãozinho! O que mais seria?” “Vou fazer xixi na garrafa!” “Você? Xixi?… na garrafa?” Pensei melhor, e achei que ela iria mesmo! (Tudo o que ela fala que vai fazer faz...) Como pode uma pessoa séria como a Karla Lima com K, 1,72 m, pontual, cética, metódica e organizada, dignarse a fazer xixi numa garrafinha dentro de um Celta, parada numa estrada em companhia de 125 mil espectadores? Podendo. Fechamos os vidros, que por sorte são bem escuros, e ligamos o ar-condicionado. Ela se ajeitou. Abaixou as calças. Posicionou a garrafinha e nós mijamos de rir. Mijamos de rir no sentido figurado, até então. Ríamos tanto que ela não conseguia manter a garrafinha imóvel. Por precaução, forramos o banco do passageiro com uma flanelinha amarela. Silêncio absoluto. Nada. Gargalhadas. Silêncio absoluto. Nada. Gargalhadas. Achei que 171 não sairíamos desse ciclo vicioso, e as gargalhadas estavam me pondo em apuros também. Virei em direção ao outro lado e prometi não olhar nem falar mais nada. Silêncio absoluto. Pensei: “Vou dar uma forcinha.” Imitei o som de xixi saindo de periquita: “Shshshshshsh…” “Fiz! Eu fiz, eu fiz!” “Deixa eu ver, deixa eu ver! Tá quentinho? Vazou? Coube? É amarelinho ou é amarelão?” Cuidadosamente, meu Bicho tirou a garrafinha debaixo de si e colocou ao alcance de nossos olhos. A garrafinha estava VA-ZI-A, completamente vazia. Nem uma só gota de líquido amarelinho quentinho, só algumas remanescentes gotículas de água morna, absolutamente cristalinas. “Não é possível! Eu juro que fiz xixi!” “Só se foi no banco, quá-quá-quá-quá!” Passei a mão sobre a flanela, nada. “O banco não foi pro saco, deve ter escorrido no tapete.” A Karla bateu os pés no tapete e nada respingou. Incrédula, esticou os braços e passou as mãos no chão. Nada. “Eu juro, fiz xixi, juro!” Olhamos para o teto, procuramos no porta-luvas, no console e nada. “Bicho, só se subiu pra cabeça. Você vai ficar doidona!” Enfim, chegamos. Pardas. Por mais apertada que estivesse, fiz questão de conferir se havia ou não xixi na bexiga de meu Bicho. Havia. E não era pouco. Em minha vez, não pude deixar passar em branco: fiz xixi na garrafinha, mesmo tendo uma privada a minha disposição. Setecentos e trinta e poucos mililitros. Quase uma 172 garrafinha e meia de 500 ml. Pode perguntar pra Karla. Ela testemunhou o evento. Ela não mente. E, só dessa vez, falou que iria fazer e não fez. 173 Xixi amordaçado Se minha vidinha se orgulha de mim por eu realmente fazer o que falo, só posso retribuir sua admiração confessando meu orgulho por ela muitas vezes não fazer o que diz! Embora seja dois anos mais velha que eu, em muitos aspectos ela parece mais nova – bem mais nova, por volta assim de uns 30 anos a menos... Alguns exemplos concretos para evitar acusações de leviandade: ela deixa tudo para a última hora, incluindo comprar presentes na semana de Natal. Poderia ser apenas um comportamento procrastinador, mas passa à infantilidade quando se tem expectativa de encontrar facilmente uma vaga no estacionamento! Ou não? Também se assemelha a uma criança por espalhar suas coisas pela casa toda – é claro que depois, já atrasada para sair, desperdiça preciosos minutos procurando a chave de casa, a do carro, o celular, a carteira... A Patricia anota os dados mais importantes em papéis soltos encontrados ao acaso sobre a mesa: envelopes usados, o verso do cartão de visitas de uma pessoa sem nenhuma relação com o assunto, páginas de uma agenda de 2003 que ela vai passar a limpo qualquer hora dessas… Dali a algumas semanas, não lembrando mais a que se refere aquela informação, e pressionada por minhas 174 cobranças de arrumar o escritório, enfia tudo na gaveta do criado-mudo. Mas sua criança interior se manifesta de maneira mais contundente mesmo é no jogo “por quanto tempo será que consigo segurar o xixi?” Ela precisa ser lembrada de ir ao banheiro antes de sairmos de qualquer lugar; caso contrário, chega ao destino invariavelmente passando mal. Muitas vezes chegamos à casa de meus pais e ela passou direto por eles: lábios comprimidos, mal acenando um tchauzinho, fez um longuíssimo xixi e voltou à sala, como se nada fosse, para então cumprimentá-los. O caminho inverso traz as mesmas armadilhas, com a diferença de reunir mais testemunhas, visto que nosso prédio tem muitas câmeras de vigilância. Os porteiros tanto acreditavam que os tremeliques da chegada se deviam à presença de espíritos no ambiente que uma vez lhe perguntaram discretamente se faria “um trabalho” pra um deles! Respondemos educadamente que não e nunca revelamos que os trejeitos de mãe-de-santo em plena função nada mais eram que fluidos urinários retidos por tempo demais. Quando ela ameaça “Vou fazer xixi na calça… dessa vez eu vou mesmo, não tô conseguindo segurar, ferrou!”, nem me preocupo mais – sei que isso está na categoria não-cumprimento de promessas, e me consolo pensando tratar-se de puro exercício do pubococcígeo. 175 Suelen Foi um desencontro total. Enquanto eu acabava de me arrumar, a Patricia desceu até a garagem pra pegar não sei o que no carro. Quando eu saí do quarto e não a encontrei em casa, supus que estivesse a minha espera na garagem; então tomei o elevador atrás dela. Cheguei ao segundo subsolo e caminhei até o carro, mas ela não estava. O faxineiro, que havia presenciado toda a cena, veio em meu socorro: “A Suéla já subiu.” “Quem? Suelen? De quem você está falando?” “Da su... a... sué, a su... ela já subiu, já. A sua-ela subiu.” 176 Ooops! Como qualquer ser humano, Karla Lima também escorrega. A diferença entre nós é a quantidade de deslizes. Como o placar é muito desfavorável para mim, eu exalto e divulgo qualquer mínimo tropicão dela. A contagem atual é 1.526 x 9 – não podia deixar passar em branco meu oitavo ponto: 27/09/04 Amor, Se você tem guardado os últimos bilhetes, e se eles têm data, na nossa velhice vamos nos lembrar com carinho da longínqua época de gravação de seu primeiro CD, quando você chegava depois de mim com tanta freqüência que os bilhetes eram à base de três por semana. Este, por exemplo, é para dizer que: Eu te amo. Muito. Tô esperando beijo, como sempre. K. 28/09/04 Como assim? Se eu tenho guardado os últimos bilhetes? Como eu poderia? Eu tenho usado o verso dos seus para escrever os meus! 177 Quem deveria estar guardando os bilhetes para nosso futuro de recordações é você, meu grande e maior amor! Bom dia! Amo você. P. 178 Hay que envelhecer, pero sin perder la ternura jamás A primeira vez que pensamos em escrever um livro foi em 2003. Na época não chegamos a elaborar um projeto editorial, mas, como já sabíamos que seria biográfico e engraçado, começamos a anotar as passagens mais interessantes (principalmente em guardanapos e toalhinhas de bandeja, o que faz de nossas lembranças registros manuscritos respingados de molho de tomate, vinho e muito café). Durante a produção do “Armário”, três anos depois, resgatamos aqueles papéis antigos e encontramos verdadeiras preciosidades, como esta: “Preciso contar três fatos que, embora não sejam cômicos, precisam de qualquer jeito fazer parte de nossa obra. Ok, o propósito é esquentar nossos invernos quando formos velhas, mas a ternura, talvez até mais que o riso, aquece. 1) Nós nos conhecemos em 30/11/2002 e saímos para jantar em 04/12. Ou seja, quando passamos uma semana juntas no sítio, pouco antes do Ano Novo, fazia menos de um mês que nos conhecíamos. Numa refeição (não sei se café da manhã ou lanche, mas é irrelevante), a Patricia 179 me observava roer a casca duma fatia de pão de forma. Perguntou: ‘Você sempre deixa o melhor para o final?’ Fiquei muito impressionada com isso. Mal sabia que aquilo não era um insight raro e particularmente inspirado – era, na verdade, uma pequena amostra de sua aguçada percepção... 2) Andávamos num shopping que eu conhecia muito mal, perto de minha nova casa. Íamos a uma loja que eu não sabia onde ficava; portanto, andava ao lado da Patricia, um passo atrás. Eu não tinha feito careta, bufado nem revirado os olhos quando, às tantas, ela constata: ‘Você odeia quando não sabe para onde vai, né?’ Hehehe!... dois a zero pra ternurinha perceptiva! 3) Quando peguei esse papel, eu sabia quais eram as três histórias, mas contei duas e esqueci a última! Só tenho 32 anos, minha memória piora a cada dia. Ainda não é trágico, mas temo que um dia venha a ser. Well, já que minha mulher é uma palhaça, ao menos isso me torna a cada ano uma platéia melhor para suas piadas! Que, cá pra nós, nem são assim tão engraçadas, mas enfim...” Estávamos de namorico no sofá, em clima de aconchego e intimidade, relendo esses bilhetes, rindo das coisas que vivemos e tecendo conjecturas sobre nosso futuro. “Vida, você já imaginou como vai ser quando nós formos velhinhas?” “Já, e me preocupa pronunciar ‘Bicho’ usando dentadura...” “Do jeito que minha memória fica cada vez pior, você vai ter que se apresentar pra mim toda manhã!” 180 “Pois é, Bichinho, o duro é que você não dá direito na primeira vez, né?” Minutos depois: “Bicho, eu acho melhor desenhar.” “Desenhar o que, criatura?” “O mapa com a localização dos buraquinhos!” 181 Jade Um chefe muito querido estava saindo da agência e decidimos fazer-lhe uma festinha de despedida. Éramos uma equipe de sete mulheres e ele, certamente, já esperava mais esse agrado – mimado que tinha sido, por todas nós, durante mais de um ano. Organizamo-nos em duplas: a primeira cuidou dos comes e bebes, a segunda da decoração e a terceira da pintura e fantasias. Sim, porque o bota-fora era temático. A terceira dupla pediu que nós levássemos lenços e se certificou, várias vezes, de que todas os tínhamos, caso contrário alguém levaria um extra. Na hora, eu não entendi a surpresa que causei ao afirmar que pra mim não seria necessário, eu tinha lenço sim e o levaria sem nenhum problema. Eu trabalhava bastante naquela época, de maneira que tive pouco envolvimento com os preparativos: no dia seguinte ao arranjo, comprei os refrigerantes que me cabiam, guardei no armário e não pensei mais no assunto. No dia da festa, a equipe três fez a maquiagem e instruiu: ponham seus lenços e fiquem na pose, ele vai chegar daqui a pouco. “Ponham seus lenços?!” Achei estranho, mas, como precisava terminar um negócio e tinha pouco 182 tempo, foquei no trabalho e não ergui os olhos até acabar. Só faltava eu: elas já estavam prontas, imóveis em suas poses, gritando meu nome. Quando levantei a cabeça, não sabia se ria ou chorava. As cinco estavam dispostas em leque, tinham uma quantidade ridícula de delineador e – pasmem! – écharpes coloridas enroladas na cabeça, rosto e ombros. Mas o que era aquilo?! O chefe chegou e a performance foi encenada sem minha presença. Graças a Deus! Teria sido ridículo simular uma dança do ventre com o lenço branco de meu pai sobre a cabeça... 183 Três tropeços que a língua me dá Meu Bicho passa a vida corrigindo meus tropeços lingüísticos, mesmo tendo diagnosticado minha dislexia. Muito pela graça, pouco pela expectativa de que eu venha a me curar. Já expliquei dezenas de vezes que minha língua não acompanha meu raciocínio, por isso eu me enrolo. Chamo o Rodolfo de Rinaldo, a Débora de Roberta, o Seu Carlos de Dr. Oswaldo, porque ao ver uma pessoa eu enxergo mais além, e o que vejo, na verdade, é o nome que ela deveria adotar para ser mais bem-sucedida de acordo com a numerologia. Como ela não acredita nessas coisas, meu argumento fica manco. Se bem que, no quesito língua, essa é a única reclamação. Tropeço um: Apesar de ter organizado grande parte do repertório da banda, nunca tive coragem de sugerir uma de minhas músicas preferidas: “Amor e Festança”, de Toninho Gerais e Adalto Magalha. Seu refrão contém os seguintes versos: “Dodô cantou pra Nanã na Ribeira ô ô Vovó foi lá perfumar a ladeira ô ô Eu quero ver mô jogar capoeira ô ô Na festa do beira-mar” 184 Eu não consigo passar do primeiro: “Dodô nanô pra cantar na Ribeira ô ô Dodô cantou Naná na Ribeira ô ô Dodô nanô a Naná na Ribeira ô ô” E não sai disso, por nada. Acho que deve ser meu lado de compositora abelhuda falando mais alto. Tropeço dois: Num sábado feliz qualquer, estávamos passeando pela cidade: “Bicho, olha aquela menina com daddy lock!” “Que menina? Com o quê?!” “Aquela de blusa amarela com dead locks.” “De blusa amarela com dead locks?” “Ali, Bicho, encostada no murro, de blusa amarela com dread lots.” “Ah, aquela com dreadlock!” “É, com dreadlock. Você estava tirando o maior pêlo de minha cara, né, Bichão?” “E desde quando eu tenho cara de depiladora?” Tropeço três: Terça-feira de carnaval, fomos ao cinema de um shopping assistir ao filme “Brokeback Mountain”. Chegamos em cima da hora. Enquanto meu Bicho foi estacionar o carro, subi em direção à bilheteria para garantir nossos ingressos, mas antes de sair do carro me certifiquei mais quatro vezes do nome do filme: “Brokeback Mountain”. Brokeback Mountain. Brokeback Mountain. Brokeback Mountain. Antes de chegar ao primeiro subsolo, percebi que alguma coisa não soava bem: Blockback Mountain. Subindo as 185 escadas rolantes, achei que estava piorando: Breakback Mountain. No térreo, concluí que o caso não tinha mais solução: Blackback Mountain, Brokeblack Mountain... Na fila da bilheteria, eu insistia: Blokeblack Mountain, Blowbook Moutain. Chegou minha vez: “Por favor, duas entradas para o Black… Broke… Block… Back… Bloke… Book Mountain.” “Qual filme, senhora?” “Aquele um lá, daqueles dois lá, naquela montanha lá, você sabe qual.” “Ah, pois não! ‘Brokeback Mountain’.” “Isso! Tirô daqui!” 186 Quatro histórias de que ainda me lembro Credito meu problema de lapsos de memória a três fatores distintos: tudo me abstrai, o tempo passa e o mundo é grande. Esmiúço em partes: Um: minha memória imediata é quase normal, ou seja, consigo lembrar um número de telefone em tempo suficiente para discá-lo, desde que nada me abstraia. O problema é que tudo me abstrai. Dois: a passagem do tempo é inevitável, e com ele se vão os fatos. Tenho imensa dificuldade em me lembrar das coisas 30 minutos passados. Três: o mundo é grande e meu déficit de memória muitas vezes me impede de apreender novas informações. Quando conheço alguma pessoa, demoro até conseguir arquivar seu nome e suas referências. Quando reencontro alguém, não consigo ligar o nome à pessoa, o fato à circunstância e a circunstância ao evento… aí, danou-se. Como conheço muita gente, e eu quero sempre mais, não dou conta. Dou vexame. 187 A quantidade de lapsos que a memória me proporcionou nos últimos anos beira a casa dos milhares. Eles ocorrem com tanta freqüência que não consigo me lembrar do mais recente. Ocasionalmente me lembro, mas sempre mais tarde do que deveria. Quando dou conta do último lapso, ele já virou antepenúltimo. O que é que eu estava dizendo mesmo? Ah! Problemas de memória... Numa certa ocasião, fui apresentada a um ser monocromaticamente bege. A tonalidade uniforme da pessoa era composta pela tintura Koleston “louro-mate-médio” aplicada no cabelo, 250 g de pó compacto “Promessa de Charme” e uma batinha bufante amarelo-pastel com um decote em forma de abismo que deixava à mostra sua última aquisição: um par de airbags de 360 ml. Finda a conversa, pedi sua caneta emprestada para anotar o endereço de meu blog. A Shirley se foi e a caneta ficou comigo. Semanas mais tarde a reencontrei: “Shirley, fiquei com seu lápis.” Ela disse que não tinha problema, mas que seu nome não era Shirley, era Sharon. No mês seguinte, convicta, me dirigi a ela: “Oi, Sheyla!” Noutra ocasião, após um show, estava eu de bobeira na saída da casa onde a banda havia-se apresentado. Dali a pouco: “Pati, nossa, quanto tempo! Cadê a Karlinha? Vocês estão bem?” “Puxa, quanto tempo! A Karla não veio, ela está em casa. Está tudo ótimo. E com você?” 188 A conversa se estendeu, ela me apresentou sua namorada, falamos de seu trabalho, do meu, e eu contei de minhas últimas peripécias… e nada: não conseguia ligar a pessoa aos fatos que ela relatava. Ela me deu várias pistas, sabia que a conhecia e bem, e vice-versa, e nem assim as nuvens clareavam. Quanto mais o tempo passava, mais desesperada eu ficava. Pensava: “Nossa, eu estou ficando louca! Não é possível! Eu sei que a conheço, mas, de onde? Caramba! Como é o nome dela, meu Deus? Ela tem uma letrinha L pendurada no pescoço! Deve ser Laura. Será? Laís? Lois? Que merda! O que eu faço?” Minha salvação apareceu! Uma das integrantes da banda juntou-se à roda. Eu estava certa de que minha aflição iria ter fim: Integrante da banda: “E aí? Tudo?” Menina com o L no pescoço: “Tudo, e você?” Integrante da banda: “Tranqüilo. Já vou indo, estou cansada. Eu te ligo e a gente conversa. Falô, Pati Cavaquinho, a gente se vê amanhã no show.” Eu: “Espera, espera! Tenho que falar com você, só um minutinho...” Eu me afastei e cochichei no ouvido da integrante da banda: “Pelo amor de Deus, quem é essa pessoa? Estou falando com ela há mais de 30 minutos. Sei quem ela é, mas não consigo me lembrar de onde eu a conheço, nem qual é o nome dela. Me ajuda!” Integrante da banda: “Pati, você é doida. Quantas cervejas você tomou?” Eu: “Só duas. É sério. Não me conformo. Não é possível!” Integrante da banda: “Pati, o nome dela é Luiza. Ela passou o feriado do carnaval com a gente no sítio. Foram quatro dias juntas, lembra?” Eu: “Nooossa! Puta que pariu! Que foda! É lógico!!!” 189 Outro dia, num outro show da banda: “Oi, Pati! Tudo bom? Quanto tempo!” Certa, porém não muito, achei que sabia quem era a pessoa tão afetuosa que havia me abraçado. Seu nome, claro, eu não me lembraria: “Oi!… E aí? Eu estou ótima, agora sou fotógrafa da banda. E você? E a Tia Surica?” “Eu estou bem. Acho que a Tia Surica também deve estar.” “Vocês vão fazer um show no Sesc, né? Estou me programando para dar um pulinho lá...” “Vamos?” “Eu vi no jornal, semana que vem. A Tia Surica está por aí?” “Eu não vi, não...” “Deixa eu terminar com as fotos aqui, depois a gente conversa melhor. Você vai ficar até o fim?” “Vou sim, sem problemas.” Pensei: “Nossa, que esquisito! Como assim?! A pessoa é empresária da Tia Surica e não sabe nada a respeito dela? Tem alguma coisa estranha. Ou ela é relapsa ou eu sou louca. É... acho que eu não tô muito boa hoje!” Fim da sessão de fotos, achei melhor abrir o jogo: “Você não é quem eu estava pensando, né?” “Não, não sou...” “Me desculpa, quem é você mesmo?” Por fim, e antes que eu me esqueça, a quarta história: A banda se apresentava numa conhecida e tradicional casa de samba de São Paulo quando, do nada, uma menina linda subiu ao palco seguindo em minha direção, minutos antes do início do show – ato que não era permitido. Ela me abraçou com carinho: 190 “Pati, que legal você aqui!” “É. A casa é muito boa, supertradicional. Está cheio, né?” Eu não tinha a menor idéia de quem ela era. Tentei arrancar alguma coisa: “E aí? Você já conhecia a casa?” “Não. Foi a maior coincidência. Vim para o aniversário de um amigo. Quando fiquei sabendo que vocês é que iam tocar, fiquei muito feliz! Como vão as coisas? Sua irmã está aí?” Pensei: “Minha irmã? Nossa! O que minha irmã está fazendo nessa conversa? Será que ela é amiga de minha irmã? Ela parece bem mais nova que minha irmã do meio, e mais velha que minha irmã mais nova. Lá vou eu...” “Me diz, você já viu nosso show ao vivo?” “Claro, Pati! Você não lembra?” “Ah!…” Fui salva pelo gongo, digo, pela empresária: “Vamo, gente, começa logo! Dá pra ser ou tá difícil?” “Deixa eu te falar: temos que começar. No intervalo a gente conversa. Onde você está sentada?” “Ali. Junto com aquele povo!” Ela apontou para o canto oposto, onde uma centena de meninas lindas mais outra de meninos sarados se encontravam. Passei os 45 minutos seguintes fazendo uma força incrível. Só eu sei. Assim que aquele set acabou, corri à procura de socorro: “Alguém sabe quem era aquela menina que subiu ao palco para falar comigo? Alguém viu? Alguém me ajude, por favor!” 191 Ninguém pôde. Por um instante pensei em não procurá-la, mas desisti. Além de extremamente grosseiro, eu não poderia dormir sem saber quem ela era. Segui à procura da moça, quando percebi que não me lembrava sequer de sua fisionomia: “E agora? Ai, meu Deus! Oh, eu de novo!…” Fui lentamente em direção ao local que ela havia me apontado como sendo nosso ponto de encontro. Naquele dia, todas as muitas meninas que eu encarei devem ter pensado: “Nossa! A cavaquinista da banda é um sapatão descarado!” Até que: “Pati! Que bom que você veio! Deixa eu te apresentar pro pessoal. Esta é a fulana, este é o sicrano...” Ela me apresentou a uma dúzia de pessoas. Saí dali aliviada por ela me ter abordado novamente. Não fosse sua iniciativa, eu teria passado batido por ela. Minha angústia, porém, saiu dali quadruplicada: “Quem é esta menina? Ai, meu saco!” Meses se passaram e eu não tinha conseguido associar a moça com nada, nem com ninguém. Falei com minhas irmãs sobre o ocorrido e não houve nem sinal de fumaça. Eu me dei por louca. Um ano depois, conversando com o Charles, falávamos da banda. Ele comentou despretensiosamente que a irmã de uma amiga em comum havia assistido a um show numa casa bem interessante! Bingo! A irmã de nossa amiga conheceu minha irmã num show beneficente que fizemos! Ela era a bonitinha do ano passado! Pronto! Fim do mistério! Fim do caso! Veredicto: culpada, mas inocente no fundo. Como raramente dou ponto sem nó, a inclusão deste capítulo foi pretexto para embasar minha defesa e me 192 desculpar com todos aqueles que tiveram seus nomes trocados e suas fisionomias embaçadas. Se por acaso eu, um dia, vier a lhe perguntar como vai seu pé de laranja ou se sua mosca de estimação melhorou, releve. Agradeço de antemão. 193 Duas piadas que não perdi Quando teve início a temporada dos Jogos Universitários, faltava uma pessoa no time de futebol feminino. As recusas das outras moças foram aceitas sem discussão: “Machuca muito, a gente sai cheia de mancha roxa!”, “Se não der pra tomar banho em seguida, eu não quero. Não vou ficar fedida até chegar em casa!” Mas, quando o grupo organizador veio falar comigo, nenhum de meus argumentos os convencia: “Não entendo nada de futebol. Jamais chutei uma bola na minha vida. Vai ser um vexame, nunca tive jeito pra esporte nenhum. Eu não quero!” Desistiram quando posei de educadora indignada: “Gente, presta atenção, nem toda sapatão gosta de futebol, tá? Mas que coisa!” Gargalhada geral. Adoro o humor como método de ensino. O riso desarma e os resultados são muito elucidativos. Durante um happy hour no final de 2005, as meninas da agência se divertiam matando comigo suas curiosidades sobre a vida de lésbica. Uma delas, pedindo desculpas pela indiscrição, revelou sua dúvida mais cruel: “Mas me fala: entre vocês rola um acordo antidepilação durante o inverno?” Como vantagem extra, a abordagem humorística permite uns comentários mais irreverentes e ácidos, e isso não pode ser desprezado. Se as perguntas não surgem espontaneamente, sempre se 194 pode dar um empurrãozinho. Uma vez, eu estava no carro com três amigos do trabalho quando fiz uma barbeiragem incrível. Não resisti à oportunidade de provocar uma conversa sobre estereótipos: “Pois é, rapazes, uma lésbica pode dirigir tão mal quanto as namoradas de vocês!” 195 Desnorteando o sul, o leste e o oeste A Karla carrega seu amuleto por onde quer que vá. Segundo ela, não importa o destino, sua nécessaire vai junto. Ambas já se perderam muito, mas unidas sempre encontram uma solução para os casos mais perdidos. O domínio da definição de direita/esquerda e a obediência cega às placas de trânsito auxiliam meu Bicho e sua fiel companheira a se orientarem, mas isso nunca impediu as voltas homéricas. Em frente, à direita ou à esquerda, Karla segue à risca o que as chapas verdes indicam. Elas não mentem, mas nem sempre estão por toda a cidade ou informam os destinos com a precisão necessária. Não me lembro de ter visto nenhuma sinalização com a informação “Casa da Mãe” ou “Consultório do Dentista”. Assim, meu Bicho segue à procura de instruções que a conduzam, passeando com sua sacolinha pela cidade, até que encontre uma placa amiga e servil. Só para ilustrar, cito versão curta-metragem do incidente de longa quilometragem: Karla saía da Praça João Mendes a caminho da casa de sua mãe, localizada na Pompéia (seis quilômetros, aproximadamente). Leu todas as placas 196 disponíveis, mas só reconheceu uma: Jabaquara. Seguiu, cheia de si, pois sabia que lá havia uma placa indicando Zona Oeste, onde fica a Pompéia. Resumo: Praça João Mendes–Jabaquara = 20 km, Jabaquara–Pompéia = 20 km. Total rodado = 40 km. Cansado de se perder, meu Bicho desenvolveu uma técnica infalível: iniciava o percurso sempre do mesmo ponto de partida, seu sobrado na Lapa. Com o domínio das rotas a partir de casa, independentemente do tempo e do combustível, chegava sã e salva a seu destino. Ao sair da agência em direção à casa de sua mãe, passava no sobrado; ao sair da casa de sua mãe vindo para meu apartamento, passava no sobrado; ao sair de minha casa e seguir para a agência, passava no sobrado. E o sobrado continuava em pé, à espera da próxima visita. Nestes três anos muita coisa mudou: o ponto de referência atual fica a 26 km do antigo. 197 Duas faces da mesma moeda A moeda não é de 50 centavos, nem de 25, muito menos de 10. A moeda em questão é a irmã da respectiva mulher, ou seja, a cunhada. A Karla tem duas e eu só tenho uma. A minha fez questão de avalizar o quanto antes meu ingresso na família Lima. Três dias depois do grande amasso, ela desviou sua rota e deu um jeito de fazer uma visitinha de médico. Fui pega no contrapé, não havia preparado um discurso oficial nem acendido velas para meu anjo da guarda, quando alguém girou o miolo da fechadura do portão: “Karla, tem alguém abrindo o portão!” “Eu sei, é minha irmã.” Pulei do sofá e arregalei os olhos: “Sua irmã? Por que você não me avisou antes?” “Por que é que eu haveria de avisar? É minha irmã e já está aí mesmo…” E lá estava eu, entre a Karina no portão e a Karla na cozinha. Pensei em correr para o quarto, mas eis que minha cunhada já ultrapassava a porta. “Oi! Você deve ser a Patty, né?” “É. Sou a Pati. Você deve ser a Karina, né?” “É, pois é.” “Pois é, né?” 198 Meu Bicho chegou à sala após essa conversa monossilábica, sem saber que já nos havíamos apresentado: “Patricia, esta é a Karina. Karina, esta é a Patricia. É bom que vocês se gostem.” E nós nos gostamos e muito. Hoje em dia a Kaka é minha grande (1,80 m) e melhor cunhada (Karla não tem outros irmãos). Ela é meu ouvido de todas as horas, a quem confio minha vida e propriedade (ela tem a chave de casa) e sua felicidade é premissa para meus bons dias. A outra face da moeda se deu 15 dias depois. Absolutamente preparadas, as partes se encontraram numa lanchonete perto daqui. De um lado, para meu Bicho: “Karla, minha irmã é dez anos mais nova que eu, meio destrambelhada, adora pastelão com alcaparras, não perde a novela das seis, toma todas sem cair e dança até com a boate fechada. Tenha um pouquinho de paciência, que no fundo ela tem conteúdo.” Do outro, para minha irmã mais nova: “Tatá, a Karla é descendente de alemães, um pouco fria, meio intelectualizada, não dança, não bebe e não está acostumada a conviver com muita gente, então releve qualquer contratempo, porque no fundo é um doce de pessoa. Ela só precisa de um tempo para se socializar.” Nem sei quantas vezes disse essas mesmas frases na fase inicial, foram tantas quantas as apresentações que promovi. Chegamos com bastante antecedência e, enquanto aguardávamos minha irmã e seu marido, nos divertimos lendo um texto que Karla havia desenvolvido sobre o mais Q.T.A. Mais Q.T.A.? Aguarde e saberá. Finda a leitura, ao contrário de nosso código de conduta, beijamos na boca mesmo. Se alguém viu, fingiu que não viu ou não se 199 incomodou em ter visto. Se ninguém viu foi uma pena, porque o beijo foi dos mais cheios de amor e ternura. Enfim, o casal de pombinhos chegou. A conversa estava superdesencontrada. Não sei por que nessas horas as pessoas apelam para piadas. A Karla não entendia as nossas, e eles não entendiam as dela. Finalmente, ela foi fazer o xixi que nós aguardávamos com ansiedade. “E aí, Tatá?” “Nossa, acabei de fazer uma prova cruel na Facul! Nunca precisei de tanta concentração junta como pra entender o que uma pessoa fala. Tô exausta! Pô, Dennis, colabora, presta atenção que ela fala difícil!” De bexiga vazia, ela acabou entrando no clima, mesmo sendo a protagonista das piadas. Como a maioria ela não entendia, não se ofendeu. Continuou achando o papo oco, porém, dado o grande número de gargalhadas, rendeu-se à descontração. Entre uma e outra, minha irmã soltava: “Ri, Dennis, a piada já acabou!” Ou: “Não ri, Dennis, não era uma piada!” E assim seguimos até a última da noite: “Não pega nada, Dennis, na próxima vez a gente traz o dicionário!” Em sua defesa, minha irmã alega troca mútua de conhecimentos de origem longínqua: “Se a Karla não me conhecesse, ela continuaria pensando que frescobol é um esporte com bola praticado por frescos e rave é uma ‘Reunião Amigável de Veículos Envenenados’ ou, ainda, ‘Rota Alternativa para Veículos Enguiçados’.” 200 + Q.T.A. O primeiro “eu te amo” a gente nunca esquece. Às vezes, não nos lembramos das voltas e dos dilemas que vivemos antes do anúncio em si, mas isso é só um detalhe quando comparado à paixão que nos impulsiona a oficializar. Sete dias após o grande amasso, eu queria gritar a célebre frase, mas não sem antes testar a possível repercussão do ato. Ameaçava: “Adoro você!”, “Te adoro!” e obtinha receptividade. Fui ganhando confiança e pondo minhas manguinhas de fora, até o dia em que uma mensagem de texto chegou a meu celular: “Uma mensagem no meio da tarde só para fazer sorrir a mulher que eu adoro.” Rápida como um flash, rebati: “A mulher que você adora está sorrindo, ansiosa para dizer pessoalmente que + Q.T.A.” Elocubrando sobre a sigla, a Karla gastou horas desenvolvendo uma teoria e, à noite, me entregou o resultado daquele esforço impresso num sulfite. Espero que seus superiores da época não leiam este livro, e não descubram que ela, além de ter usado o papel, a energia e a impressora da agência, passou a tarde toda pensando bobagem, ao invés de finalizar a apresentação daquela concorrência. Reproduzo a seguir íntegra do documento: 201 Tico & Teco, os neurônios da amiga da menina do banheiro, desvendam o + Q.T.A. – um enigma intelectual de alto nível! Interpretações do Tico: 1. “Mais” Que Tara Absurda! 2. “Mais” Quanto Tesão, Ave! 3. “Mais” Quem Tocou Aqui? 4. “Mais” Quem Teria Aceitado? 5. Mais Quintas Taradas Assim! 6. Mais Quocientes Transparentes Assim! 7. Mais Quedas de Tiranos Assassinos! 8. Mais Quadros Tintos de Anil! 9. “Mais” Quase Tomei Água! 10. “Mais” Que Tataravó Ansiosa! 11. Mais Quadris Tagarelas Amorosos! 12. Mais Quindins, Tatuagens e Admiração! 13. Menos quedas, mais qualidade, mais quantidade! 14. Menos tédio, mais tempestades, mais tesão! 15. Menos arrogância, mais azul, mais amor! Interpretações do Teco: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 202 “Mais” Que Tesouro Abençoado! “Mais” Quem Trouxe Ameixas? “Mais” Quando Teremos Asas? Mais Quartas Taradas Assim! (Tico alega plágio...) Mais Queijos Tortos Amassados! Mais Quilos Toráxico-Abdominais! Mais Quarentonas Tesudas Ajudando! 8. Mais Queimadas Totalmente Abandonadas... 9. “Mais” Que Tablete Azedo! 10. Mais Quebra-cabeças Terminados Antecipadamente! 11. “Mais” Que Tarefa Agradável! 12. Mais Quilometragem Terminada em Amor. 13. Menos queixumes, mais quitutes, mais química. 14. Menos teimosia, mais teatro, mais tâmaras. 15. Menos abalos, mais abraços, mais aplausos. Depois de 25 minutos de gargalhadas, entre lágrimas de risos, disse que a amava pela primeira vez: “Mais Que Te A, Karla Lima! Mais que te adoro. Eu te amo!” Seguiu-se um longo beijo e 42 testemunhas podem confirmar minha versão dos fatos. 203 “Se você fosse sincera…” Quando eu era criança, meus pais moraram fora durante seis meses, período em que vivi com meus avós maternos, alemães. Como foi nessa época que comecei a falar, acabei desenvolvendo um r meio forte, que carrego até hoje. Porque me orgulho da ascendência germânica e porque não tolero ser tomada por algo que não sou, irrita-me muitíssimo quando alguém pergunta (ou pior, afirma!) se tenho língua presa. Língua presa é a... Para mostrar ao interlocutor como ele está errado, há duas possibilidades: ou explico a história da convivência com os avós alemães ou, simplesmente, respondo com uma piada bem ferina, concluindo, com um sorriso: “Tá vendo? Minha língua pode ser tudo, menos presa!...” A Patricia ignora solenemente as origens de meu sotaque. Para ela, o que importa é o efeito e não a causa. Há mais de três anos, semanalmente, ela me pede para repetir: “A Maria foi comprar bateria na padaria do Moreira.”, “Quarta-feira vou pra praia com a Beatriz.” ou “Em Araraquara tem araras verdes que fazem cracracrá ao entardecer.” O pior é que nem sempre se trata de brincadeira privada. Imaginem o ridículo da cena: quatro adultos conversam discretamente num restaurante. Adulto um pede a adulto 204 dois: “Bicho, fala aquilo lá pra elas...” Adulto dois finge amarrar o sapato e demora a voltar. Adultos três e quatro se entreolham um pouco desconcertados. Adulto um insiste: “Ah!, fala, Bicho! É tão bonitinho!…” Adulto dois emerge das profundezas sob a mesa e fala. Adultos três e quatro sorriem amarelo. Adulto um solta uma gargalhada escandalosa. Mesas em torno olham discretamente. Adulto dois abaixa para amarrar o outro sapato. Até minha própria mãe deixou de achar isso bonitinho há uns 30 anos! A questão, portanto, era equilibrar os anseios da Patricia sem pagar os micos decorrentes do teatrinho público. Resolvi esse dilema no Natal de 2004, ajudada por minha mãe (promovida a técnica de iluminação), minha irmã (maquiadora quase profissional) e uma amiga videomaker (a única ali que sabia o que estava fazendo). Vesti um chapeuzinho de Papai Noel e registrei em VHS, tão afinadinha quanto possível: “Se você fosse sincerrra, ô ô ô ô… Aurrrooorrraaa... Veja só que bom que errra… Ô ô ô ô… Aurrrooorrraaa!” 205 Troco miúdo Conforme já está fartamente demonstrado, Patricia e eu raramente concordamos logo de cara, e o tamanho deste livro não haveria de ser uma exceção... “Quantas páginas você acha que o ‘Armário’ vai ter?” “Ah!, Bicho… pelo menos umas 200, né?” “Como assim, pelo menos 200?! Eu achei que seriam no máximo dos máximos umas 120... Como vamos preencher 200 páginas, criatura? Só se a gente usar uma tipologia imensa, espaços duplos em tudo e ainda por cima inserir páginas em branco para separar os capítulos... Amor, seja realista!” “Realismo é a sua praia, não a minha, Bichão!” Combinamos continuar escrevendo sem nos preocupar. Quando as histórias tivessem sido contadas, pararíamos, independentemente do número de páginas alcançado. Numa segunda-feira chuvosa, enquanto escrevíamos, ela pulou da cadeira e anunciou, sem nenhum contexto preparatório, que havia tido uma “idéia brilhante”: publicar alguns de nossos bilhetes. Protestei. 206 “Ei, isso é golpe baixo! E não faz o menor sentido. Você só quer fazer um livro bem gordo e ganhar a aposta. Quem vai querer ler nossos bilhetes? E, mesmo que as pessoas tenham essa curiosidade – do que eu duvido muito –, como vamos selecionar? Só eu tenho duas pastas cheias, são centenas, fora os seus! Além do mais, bilhetes são coisas meio íntimas, não sei se quero ficar expondo nossa vida desse jeito. Está certo que isso tudo já é uma exposição mesmo, mas, sei lá, é diferente...” Sem a menor cerimônia, ela me largou falando sozinha, levantou o queixo, empinou a bunda e saiu pisando duro, a desaforada! Minutos mais tarde encontrei-a sentada na cama cercada por montes de papel: brancos e coloridos, manuscritos e impressos, folhas de caderno e guardanapos de cafeteria, cartões, dobraduras e origamis… três anos de amor em retalhos de celulose. Ai, que coisa mais liiinda! Passamos dois dias num delicioso processo de ler, comentar e relembrar as histórias por trás de cada um, e eu não me rendi à publicação dos tais bilhetes. Apenas, por especial deferência, concordei em divulgar aqueles que provam o esforço em diminuir a-bagunça-dela-de-cada-dia. Em minha opinião, a questão organizacional do lar foi a mais alta e larga barreira a ser transposta. A Karla com K tem muita dificuldade em enxergar a realidade sob ângulos distintos. Credito essa deficiência ao oftalmologista que realizou a cirurgia de correção dos dois graus e meio de sua miopia. Conjecturo: “Nem toda bagunça é desorganizada – a arrumação depende da lógica, toda lógica tem uma 207 explicação, toda explicação tem fundamento, todo fundamento é válido, toda validade depende do espaço, todo espaço tem lugar, em todo lugar sempre cabe mais uma coisinha...” Depois de quatro horas de negociações e chantagenzinhas baratas, meu Bicho concordou com a divulgação dos bilhetes sobre o referido assunto. Seguem a compilação deles e a conclusão dos fatos: 09/04/04 Amore de mi vida, Você veio pra casa direitinho? A que horas quer acordar? Um beijo, e dorme bem, mulher mais amada! PS: O que sua toalha de rosto está fazendo na varanda há dois dias? Você colocou lá para ela tomar a fresca e observar a paisagem? K. 10/04/04 Bicho, Cheguei direitinho. Tenho que acordar às 9h estourando! Agora me diz: onde é que eu iria arrumar uma mulher tão inteligente e sábia como você? Garota esperta, eu te amo! P. 09/03/05 Ai, que saudade! Meu Deus, que bagunça! Nossa, como eu te amo! 208 Fui buscar minha placa no dentista. Ele já avisou que as primeiras noites vão ser desconfortáveis e que tudo vai ficar dolorido por dois ou três dias. Ela é meio grande e me impede de fechar a boca direito, provavelmente vou roncar... Vai vendo a cena de horror que te espera na cama! Estou indo dormir cedo, vou acordar às 7h40 de novo e te chamo. Parece que o tempo está virando, tem um vento esquisito, espero que tenha chegado bem em casa. O ossinho do Oliver está lá escondido. Quando eu tirei, ele não ficou procurando, nem precisei substituir por um biscoito. Tá vendo, como você acostuma mal os seres viventes a sua volta? Do cachorro a sua mulher... Eu te amo, te adoro, te infinito, vem deitar logo! Bjs. E dorme bem! K. 10/03/05 Bicho, Estou com medo da cena que me aguarda. Vou entrar no quarto de costas e pôr os tampões no ouvido. Ok? Amanhã, quando for me acordar, tire a placa antes, please. Onde você escondeu o ossinho do Oliver? Quando eu cheguei, ele ficou me pedindo a guloseima. Revirei a casa toda e não encontrei. Ele foi dormir revoltado! Foi você que bagunçou a sala ou foi ele? Beijos. Amo você, meu Frankensteinzinho! P. 24/03/05 Amor, Olha pra esse escritório e me diz, honestamente: eu mereço? 209 Daí olha pra essa mesa, pro closet, pro seu criado-mudo e repete a pergunta. Se você respondeu “não” a duas ou mais questões, toma providências! Eu já fiz minha parte e coloquei nas caixas as “fotos do passado”. Minha bagunceira amada! K. 25/03/05 Bicho, bagunça faz parte de um processo, eu chego lá. Enquanto isso, conto com sua benevolência e solicito clemência. Amo você, por isso tenho me esforçado bastante. Sei que os resultados não são satisfatórios, mas vou mudar a estratégia e adotar um novo lema de vida: “O céu é o limite, a organização é meu sonho de consumo e o método é minha nova moeda.” Será que será possível? Será que serei bem-sucedida? Só sei que sou louca por você! Saudades muitas. Amo você. Me acorde mais cedo. Quem sabe comece hoje mesmo a comprar um pedacinho do céu? P. 26/03/05 Amor, Se a bagunça é parte do processo, acho que o escritório está indo muito bem! No dia que você “chegar lá”, ao menos não haverá lixo no chão? Ou foi o Oliver que fez essa sujeira? 210 Adorei o novo repertório! O set das rainhas ficou lindo, o som estava terrível, prejudicou vocês. Na segunda entrada melhorou bastante, fui embora antes da terceira, espero que tenha corrido melhor. Estou te esperando na cama, vem me dar um beijinho. Amo você. K. 27/03/05 Bicho, Foi seu filho postiço que revirou o lixo do escritório! Quando eu saí, estava tudo limpinho! O som melhorou bastante e terminamos bem. São 4h, amanhã tenho uma reunião às 11h. Você poderia me chamar quando sair, só para ganhar um beijinho, e depois poderia me ligar às 10h pra me tirar da cama? Eu mereço? Eu te amo, meu Bichinho. PS: Estou esperando o coelhinho da Páscoa com muita ansiedade, para ganhar ovinhos e dar vááárias trepadinhas, que não precisam ser rapidinhas, mas têm que ser numerosas. P. 26/04/05 Amor, Qual foi o furacão que passou nessa sala? Foi o mesmo que passou no escritório? Passei na minha mãe, ela contou tudo a nosso respeito a meus tios. Depois te falo. Espero que o ensaio tenha sido bom. Eu te amo. Dorme bem. Me beija quando chegar. K. 211 27/04/05 Bicho, O furacão da sala se formou no Atlântico e o do escritório, no Pacífico. Aviso aos navegantes: “Está-se formando mais um furacão no Índico! Preparem-se!” O ensaio foi médio. Espero que seus tios não tenham te excomungado. Já vou te beijar, só mais um minutinho. Amo você. P. 10/05/05 Amor, que susto ao entrar. Tudo tão arrumado que, se não fosse o Oliver, eu ia achar que estava na casa errada! Muito bom, vidinha, tem quase a aparência de um lar... Minha mãe manda beijos e diz que está com saudades, a Karina está animada com o novo projeto. Estou com uma baita dor de cabeça e meio irritada, deve ser TPM... Amor, tô adorando seu método/processo/filosofia de arrumação, viu? Continue assim, boa menina! Eu te amo, eu te amo, eu te amo. Bjs. K. 11/05/05 É, Bicho... Unidos, eu e o Oliver chegaremos lá!... Amanhã vai ter reunião e não ensaio. 212 Vou me programar para almoçarmos juntas. Amo você, meu “colaçãozinho”! P. 13/05/05 Vou sair cedo, junto com você. Me acorde esfregando suas pernocas lisinhas nas minhas. Não tem show hoje à noite. Quer tomar um vinho e assistir a um vídeo ou você prefere ir ao cinema? Vê se não bagunça a casa! Não quero saber de bagunça por aqui! Eu te amo, meu Bicho! PS: Você deixou o cinzeiro sujo em cima da mesa... P. 17/05/05 Amor, Dessa vez você se superou! Me surpreendeu muito. A casa está tão vazia que quase faz eco. Não sei como dizer isso e espero que você entenda: nossa casinha, nosso lar, nosso ninho está tão arrumado que parece um apartamento-modelo decorado para venda! Tão limpo e organizado que parece desabitado! Não tem vida, falta calor humano, falta registro de presença, de existência, de energia. Espero que você esteja sorrindo dessa ironia e não brava com minha aparente incongruência. Sim, a bagunça me incomoda; sim, a casa antes era um misto de albergue e cortiço... mas assim também já é demais! Os CDs nas gavetas, a estante com os livros de música está no lugar ideal e o escritório triplicou de tamanho. Agora vê se larga bolsa, pastas e cavaquinho aqui na mesa 213 pra ver se eu volto a reconhecer o ambiente... Pode guardar esse bilhete pra me mostrar no futuro, caso eu venha a reclamar de novo do excesso de bagunça... Eu te amo. Bjs. K. Na manhã seguinte, quando acordei, quaaanta diferença! Meu amor tinha encontrado o ponto de equilíbrio perfeito entre a baderna e o excesso de arrumação. Tinha feito uma arruaça organizada! Explico: em cada superfície disponível havia um objeto fora de lugar – mas tudo combinando! Na quina do corredor com a sala, um par de calças jeans repousava sobre o chão com uma perna em cada ambiente. Em cada canto da mesa retangular, um objeto também retangular estava alinhado. Entre um móvel e outro, um pé de sapato – mas bem centralizado! As gavetas estavam alternadamente abertas e fechadas, conforme sua posição no armário... Morri de rir, morri de amor. Essa mulher não existe. Claro que tive que enfrentar meu próprio bilhete na vez seguinte em que reclamei da bagunça, mas nem me importei muito. O que são uns copos usados, umas latas vazias e uns CDs espalhados comparados à convivência sublime que temos? Até hoje, mantenho o original desse bilhete na segunda gaveta de meu criado-mudo, e uma cópia em minha bolsa. Sempre o resgato em situações de perigo iminente. “Escreveu e não leu, pau comeu – digo: escreveu e me deu, se f...” Ressalvo, porém, que meus esforços homéricos para remodelar a organização dos pertences só foram bemsucedidos porque, durante a reformulação, contei com o 214 auxílio de três mudanças estruturais: Primeira: pedi a um marceneiro que instalasse uma fechadura na segunda gaveta de meu criado-mudo. Só existem duas chaves – uma é minha, a outra é da Fatinha. Segunda: na ocasião da reforma, isolamos parte da sala, construindo duas paredes de gesso. Batizamos o cantinho de muquifo. Lá só é permitida a entrada de pessoas devidamente autorizadas, e meu Bicho não é uma delas. Terceira: delimitamos uma sólida linha imaginária que divide o escritório em duas nações. Do lado de cá eu sou a Rainha, do lado de lá ela é a Imperatriz. Sem esses subterfúgios, certamente eu estaria fadada ao fiasco. 215 Você é assim? A Patricia e seus golpes baixos!... Não que ela se incomode em perder (longe disso!), mas que ela faz de tudo pra ganhar uma aposta, ah, isso faz! Ainda insistindo no tamanho mínimo do livro, ela sugeriu, na maior cara-de-pau: “Bicho, e se a gente fizesse um teste?” “Um pré-teste? De quê? De target, de preço?” “Não, coração, de gayzice, de sapatice.” “Mas que embasamento você tem para elaborar um teste assim? Com que objetivo? E quem vai perder tempo com uma bobagem dessas?” “Eu não tenho embasamento nenhum, só alguma experiência prática. Não sei se as pessoas vão chegar a uma conclusão, nem ao menos se elas vão conseguir responder. Mas tentar todo mundo vai, coraçãozinho! Ninguém resiste a um teste.” Eu resisto. Se cai em minhas mãos um questionário chamado “Como você se enxerga?”, penso logo “Me olhando no espelho”. A Patricia, ao contrário, não perde uma oportunidade. Não se intimida nem com assuntos alheios a sua vida (“Seu filho é hiperativo?”), nem com os temas que ela já sabe que domina completamente (“Qual sua habilidade com números?”). 216 Na ginecologista, ela fez um “Você é organizada?” Dá pra acreditar?! No oftalmologista, preencheu um “O que você sabe sobre Heráldica e Numismática?”, mesmo nem sabendo o que são essas ciências! Na recepção do dentista fez o pior de todos: “Você é paranormal?” O resultado foi positivo e ela começou a ouvir vozes no mesmo instante! Pensando bem, eu é que não reparei... Todo esse tempo, achei que ela fosse uma hipocondríaca incurável, mas ela só freqüentava consultórios atrás de revistas! Maníaca por médicos, por enfermeiras ou testes, não me deixei convencer. Concordo que o livro seja de humor, mas daí a encher lingüiça com um assunto desse (baixíssimo) nível, nem pensar! 217 Purificação Convencida de que eu não concordaria de jeito nenhum em incluir testes em nosso livro, a Patricia mudou de argumento. “E se a gente falasse de cocô? É isso, Bicho! Vamos lá pro computador escrever sobre cocô. Mandei muito bem agora, hein, coração? Esse capítulo vai ficar demais, todo mundo adora falar de cocô!” “Todo mundo é muita gente. Todo mundo quem? Eu não gosto. Aliás, acho uma humilhação que seres evoluídos como os humanos ainda precisem defecar. A gente deveria comer o suficiente para sustentar o organismo e mais nada, não gerar sobras só para não haver dejetos a serem expelidos. Mas que assunto péssimo!... Imagine as pessoas lendo, descuidadas, rindo – de repente viram a página e levam com um capítulo nojento na cara. Definitivamente, uma idéia repugnante. Só poderia ter vindo de você ou de minha irmã mesmo. Se testes e fezes forem suas únicas alternativas para um livro gordo, eu me rendo à publicação até de nossos mapas astrais!” O mais triste é que as conversas sobre esse assunto não são raras. Às vezes, ela anuncia: “Bicho, vou fazer 218 cocozinho, tá?” Não entendo a razão disso. Por que, em nome de Deus, uma pessoa acha que precisa anunciar uma coisa dessas?! E eu lá quero saber? Basta avisar que o banheiro estará fechado por dez minutos – um comunicado eficiente, curto e discreto. Outras vezes, desrespeitando meu aviso, ela entra no banheiro do qual acabei de sair e faz troça: “Coraçãozinho! Como pode uma mulher tão cheirosa fazer um cocô tão fedorento? Você tá podrinha! O que a gente comeu ontem? Vem cá, meu fedozinho mais lindo, me dá um beijo!” Eu fico constrangida só de ouvir essas coisas, mas ela insiste em aprofundar nossa proximidade excrementícia até a consumação presencial do fato! Mal me vê entrando no banheiro, ela se aboleta do lado de fora e tenta me convencer a destrancar: alega que é a última fronteira da intimidade, que ama tudo o que vem de mim, que existe até um caráter romântico em fazer cocô de porta aberta! Obviamente, enquanto ela está colada à porta eu não relaxo, e no final ainda tenho de ouvir que demoro muito mais do que ela no banheiro! Humpf! Acho que a Patricia tem questões não resolvidas com sua fase anal, quer dizer, que tipo de pessoa analisa as próprias fezes e sai do banheiro comentando? E não pense que são observações genéricas (“Puxa, estava com uma dor de barriga!…”). Trata-se de apreciação analítica mesmo! Inclui descritivo de coloração, relatório de consistência, balanço sobre proporção e até, argh!, especulações sobre o cheiro! Tudo com bastante naturalidade e nenhuma noção. Ela se diverte estabelecendo relações entre os fatos e, devaneando, relembra passagens asquerosas sobre privadas entupidas, descargas quebradas, falta de 219 papel higiênico, e narrativas cômicas (cômicas?!), como aquela em que defecou sobre um formigueiro e os insetos fizeram das fezes uma ponte para lhe morder o bumbum! Pronto. Consegui preencher algumas páginas com esse tema fétido e assim me livrar da ameaça de seus puns número três. Ela ainda estica a conversa e sugere que nosso segundo livro seja sobre isso... “Nosso? Seu com quem, cara pálida?!” “Meu com quem quiser! Já tenho até o título: Uma Obra Sobre Obrar – Contos Reunidos. Como você não quer ser uma das colaboradoras, vou buscar outros parceiros.” Quem quiser participar desse consistente empreendimento editorial, mande sua experiência por e-mail ou ligue contando sua história. Deixe a Karla fora disso. Aguardo, ansiosa, seu fax. 220 Não pegue no colo nenhum humano que você possa carregar Essa parece daquelas ironias que o mundo nos proporciona. Por falta de um sobrinho, minhas irmãs providenciaram logo sete. Minha irmã do meio teve trigêmeas, quatro anos depois outros gêmeos, perfazendo cinco. A mais nova tem duas meninas e diz que não pára por aí. A Karla sempre teve pânico de crianças – ela nunca havia convivido com nenhuma. Justo, claro e compreensível. Como minhas sobrinhas são muito apegadas a mim, meu Bicho não teve muita alternativa senão se adaptar aos poucos a essa situação inusitada. O primeiro contato, não fosse trágico, seria cômico: “Meninas, venham conhecer a Tia Karla. Ela tem a língua presa e fala de um jeito muito esquisito. Pede pra ela falar: ‘O sapo-currurru comeu carrurru em Carruarru.’ Se ela não conseguir, pede pra ela falar: ‘As arrarras de Arrarraquarra estão prresas no arrame.’ Ou, ainda: ‘Na padarria da D. Aurrorra, lá em Madurreirra, não tem baterria.’” Em coro: “Tia Karla, fala isso aí que a Tia Pati falou.” “Eu tenho cara de palhaça?” Para não causar polêmicas, intervim: “A cara não é de palhaça, mas o nariz tá cheio de meleca.” 221 Meu Bicho ainda não tinha muita sensibilidade nem percepção do humor infantil: acabou sem entender a piada e foi checar a situação da limpeza da narina no espelho do banheiro. Refeição servida, todas disputavam um lugar próximo ao meu. A Karla posicionou-se na cabeceira oposta da extensa mesa. O almoço transcorria pacífico entre guerras de caroços de azeitona e cascas de uva. Foi quando seu celular tocou: “Conceição? Tás boa? Tá tudo fixe? Que giro! Estou fora de casa, chamo-te mais tarde. Muitos beijinhos. Adeuzinho, rapariga!” Todas calaram para ouvir a Tia Karla ao telefone. Assim que ela desligou, uma das meninas: “Rapariga?” “Rapariga é a maneira como se costuma falar das moças em Portugal.” Sem entender muito bem a explicação, minhas sobrinhas concluíram que o apelido da Tia Karla era rapariga. O apelido pegou em função das rimas férteis que o codinome proporciona: rapariga, cabeça de espiga. Rapariga, bumbum de formiga. Rapariga, focinho de lombriga. Rapariga tá com pum na barriga. A mais sensível de minhas sobrinhas trigêmeas é ligeiramente avessa a brincadeiras fúteis. Percebendo a Tia Karla levemente deslocada, dirigiu-se a ela e se sentou em seu colo, oferecendo sua compaixão diante de tamanho constrangimento. “Tirem essa criança do meu colo, tirem do meu colo.” Bastou. Todas, achando a maior graça, pularam no colo 222 da Rapariga. Sabendo de seu real pânico, corri em seu socorro. Um ano depois desse episódio, a Rapariga lê histórias, brinca de palavras cruzadas, ensina o significado de palavras como aristocracia, onomatopéia e circunspecção de maneira tão didática quanto inteligível. Pena nossos encontros não serem tão freqüentes como desejamos! Completamente adaptada a crianças de três a seis anos, hoje meu Bicho se especializa na fase de zero a três. Com a chegada da nova leva, ela está desenvolvendo outras habilidades. Há seis meses, após um almoço em família, encontravam-se no sofá a Rapariga e minha sobrinha de um ano. Lado a lado, a Karla tentava entretê-la com o fundo de uma caixa de quebra-cabeças, onde os modelos disponíveis estavam expostos: “Olha, é a Praça Vermelha em Moscou!” “Co-cou. Co-cou.” “Estas aqui são as Cataratas do Niágara!” “Ága, ága.” Minha irmã viu a cena, sentou-se ao lado das duas e, na tentativa de otimizar o processo de interação: “Karla, esse é o Miau! E aquele ali é o Pocotó!” 223 Maravilhas da tecnologia moderna Em julho de 2003, escrevi um longo e-mail para uma amiga que mora em Londres. Como nossa correspondência não era muito freqüente, cada mensagem era o resultado de muitos meses de notícias acumuladas. Nosso último contato tinha sido no início daquele ano, por isso precisei de algum tempo para atualizá-la sobre meu emprego novo, nossos amigos em comum e, claro, sobre a Patricia. Imprimi o e-mail para mostrar pra ela – queria que soubesse o que eu andava falando sobre nós para meus amigos. Naquela sexta-feira, encerrei o expediente precisamente às 18h30, e caímos na estrada para um weekend romântico fora de São Paulo. Já íamos bem adiantadas pela estrada quando me lembrei do e-mail. Abri a bolsa toda animadinha para mostrá-lo e paniquei. Não estava lá! Relembrei os momentos anteriores a minha saída da agência e me dei conta de têlo esquecido na impressora. Oh, não! A impressora era partilhada por todo o departamento e, àquela altura, minhas mais íntimas declarações de amor deveriam estar circulando de mão em mão! Eu não me conformava com um esquecimento daquela gravidade. A Patricia ria sem parar, não sei se de vergonha, de nervosismo ou simplesmente de minha cara. 224 Telefonei pedindo a ajuda de uma colega que sempre saía tarde, uma pessoa bem próxima e gay também. Rápida e discretamente, ela recolheu minhas confissões, guardou, e ainda mandou um SMS tranqüilizador: “Circulação ao redor da impressora permaneceu normal, seu e-mail não foi afixado perto do café nem exibido no quadro de avisos. Um beijo e até segunda.” Ufa! Naquela época eu trabalhava com Marketing Direto e era uma apaixonada pelas tecnologias da comunicação. Achava o máximo que uma empresa pudesse identificar individualmente seus consumidores, comunicar-se com eles de maneira cada vez mais relevante e personalizada, com isso fazendo-os se sentirem reconhecidos e valorizados. Esse encantamento me fazia prestar muita atenção em novos meios, ferramentas, conteúdos e formatos. Pouco depois, ainda não completamente refeita do episódio, chegamos ao primeiro pedágio da estrada. Na lateral da cabine, uma plaquinha luminosa nos cumprimentava, toda simpática: “Boa noite, Patricia.” Eu estava encantada com a tecnologia por trás daquilo, e nem me passou pela cabeça que poderia ser mera coincidência entre os nomes: “Nossa, que coisa muito legal, que incrível!” “O que, Bicho?” “A concessionária da estrada cumprimentar os motoristas um a um! Você não viu? Na cabine do pedágio tinha um boa-noite com seu nome!” “Ah, claro! Impressionante mesmo, Bicho! Só fico pensando no luminoso dizendo ‘Bom dia, Cooperativa de Táxi XPTO – Qualidade, Segurança e Pontualidade’ ou, então, 225 ‘Boa tarde, Viação Intermunicipal e Interestadual de Vila dos Cachorrinhos!’” Só quando ela não resistiu mais e caiu numa sonora gargalhada foi que eu me dei conta do tamanho da bobagem que tinha acabado de dizer. Acreditando numa megaultra-supersofisticada tecnologia, ainda insistia em me explicar: “Mas não seria muito interessante se fosse possível? Imagine se existisse, como seria sen-sa-cio-nal!” 226 Alerta aos desavisados Por trás da Karla com K segura, convicta e sagaz existe um bicho cheio de tremores espasmódicos, gritinhos histéricos e fricotes descontrolados. Seu lado oculto vem à tona com pequenos estímulos: um mugido bovino fora de hora é capaz de desencadear um ataque epilético, um inocente besouro em singelo passeio vespertino provoca frenéticos movimentos como se ela pisasse sobre brasas com os pés descalços. Como essa característica comportamental beira a psicopatia caracterizada por falta de controle sobre atos e emoções, a Karla, assim que tem oportunidade, informa a todos os conhecidos e desconhecidos sobre sua impossibilidade de lidar com o inusitado. Traduzindo: ela não pode assustar-se, nem sentir cócegas. Já ocorreram alguns casos em que tanto a vítima quanto o agressor sofreram danos físicos em decorrência do distúrbio. Não sei precisar quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha, nem quem de vítima passou a agressor ou de agressor a vítima. Numa disputa juvenil pela posse de um determinado papel, Karla Lima trincou duas costelas de seu coleguinha. 227 Ela balançava o sulfite suspenso por seus já longos braços fora do alcance do baixo rapaz. Sentindo que suas chances eram mínimas, ele resolveu roubar no jogo: com seus dois indicadores rijos e mal-intencionados, Robertinho cutucou, simultaneamente, o fígado de um lado e o baço do outro. Pra quê! Um milésimo de segundo após o ato ilícito, o desavisado encontrava-se abraçado a si mesmo rolando no chão. Massagear os pés de meu Bicho requer uma técnica que vai além do deslizamento, malaxação e tapotagem. Três premissas são fundamentais para enfrentar o ousado ato: espírito aventureiro, bravura e muito queixo. Acima de tudo, o maxilar deve ser inabalável e resistente a toda sorte de pontapés. Para evitar contratempos no lar, antes de entrar em qualquer cômodo onde meu Bicho se encontra, eu anuncio minha chegada pisando duro, se estou calçada – nestas circunstâncias, os vizinhos do andar de baixo sempre sabem por onde eu ando –, ou assoviando, se descalça. Prevenir é melhor que acudir. Solidária com patologistas de plantão, descrevo alguns episódios pertinentes ao assunto. Creio que meus relatos contribuirão para o avanço da ciência, seja embasando teses de mestrado ou, simplesmente, entretendo os estudiosos nas horas vagas. Havia dois dias que a Karla tinha-me presenteado com a chave de sua casa na Lapa. Cheguei toda animada, e logo percebi que ela já me aguardava ao som ensurdecedor de uma banda barulhenta ao extremo. Ao abrir o portão, fui 228 recepcionada pela Aretha, com pulos e lambidas pra lá de úmidas e empolgadas. Dei atenção suficiente até que a cadela matasse sua feroz saudade. Como a porta estava aberta, entrei na sala: “Oi, cheguei!” Coloquei minha pequena bagagem sobre o sofá, enquanto sua voz se sobrepunha ao potente vocalista da banda. Como meu manifesto de chegada não fez a menor diferença em sua vida naquele instante, segui em sua direção. Ela se virou e gritou, digo, berrou. Não fossem o chacoalhar frenético dos braços, os olhos esbugalhados e a boca escancarada, eu teria pensado: “Nossa, como ela fica feliz quando me vê!” As pernas de meu Bicho amoleceram e ela se abandonou no chão, cobrindo seu rosto com as mãos. Tremia e chorava descontroladamente. Parecia não haver ar no planeta tamanha a força que ela fazia para inspirar. Após 15 minutos, ela se recompôs: “Que puta susto você me deu!” Não havia presenciado nada parecido em minha vida e, apesar de estar ciente dessa faceta de meu Bicho, em minha defesa só pude dizer: “Que puta susto VOCÊ me deu!” Trinta de janeiro de 2003, aniversário de 32 anos da Karla. O primeiro em que eu figurava na lista de convidados. Chamei alguns amigos próximos, porém desavisados, para participar da festa. Estávamos arrumando a mesa para acender as velinhas quando Charles chegou – aquele meu amigo, namorado do Antônio Carlos, noivo da Geni. Querendo fazer graça, talvez por conta do atraso, ele chegou sorrateiro, se posicionou atrás da Karla e cutucou suas costelas. Mais 229 uma vez: Pra quê! Um milésimo de segundo após a surpresa, encontravam-se no chão várias mesas, algumas cadeiras e diversos convidados. O bolo foi poupado e não houve ferimentos graves. Muito mais sorte que juízo! Naquele mesmo ano, num mês de que não me lembro, fomos ao cinema assistir a um filme japonês, chinês, coreano, sei lá! A protagonista fazia xixi quando gozava, e gozava o tempo todo! O líquido escorria pelo meio-fio e se juntava à água de um riacho onde havia uma ponte vermelha, roxa, cor-de-abóbora, sei lá! Não estou muito segura se o enredo era esse mesmo, mas esse é meu registro, e ponto. Xixi gozado amarelando o rio da ponte colorida que não caiu. Não sabemos qual foi o fim, mas provavelmente todos os peixes ficaram boiando por excesso de uréia na água. Saímos do cinema quando o filme deu uma guinada e os golpes inspirados no Bruce Lee dominaram a tela. Como escatologia se associa a artes marciais, só o diretor pode explicar. Responsável pela “brilhante” sugestão, meu Bicho, assim que chegamos ao carro, tentou redimir-se: “Eu te devo uma, pode cobrar.” Tentei negociar o mico do filme oriental por algumas fantasias sexuais, mas não rolou. Segundo ela, eu poderia escolher um filme que não fosse seu estilo para assistirmos juntas, e nada mais. A Karla adora cinema europeu, detesta filme chavão e obviamente foge dos suspenses e passa longe dos de terror. Dois anos depois, ao ver um outdoor anunciando o filme “Constantine”: “Bicho, vamos ver!” “De jeito nenhum! Lembra daquele trailer que me fez perder a respiração?” 230 “Lembro. Era o trailer desse filme?” “Lógico que era!” “Era?” “Era!” Após ler uma crítica favorável e ouvir diversos comentários elogiosos sobre a atuação, a direção e os efeitos especiais, a Karla resolveu saldar sua dívida antiga. Eu nem me lembrava da pendência quando ela propôs: “Sabe aquela dívida do filme japonês?” “Dívida? Filme japonês?” “É, vidinha, aquele filme que eu sugeri e nós abandonamos no meio.” “Ah, sei, sei! O do xixi venenoso. Você me deve uma!” “Então, eu vou assistir ‘Constantine’ com você.” “‘Constantine?’” “Vida, aquele do outdoor!” “Nossa, Bichão! Jura?” “Juro. Mas tem uma condição: você não pode me obrigar a ouvir o filme. A sonoplastia potencializa o susto. E tem mais: nas cenas pré-ataque vou fechar os olhos também. E outra: você está proibida de ‘mangar d’eu’.” “Combinado.” Fomos. Era um dia de semana e a sala estava com 51,53% de ocupação: em nossa fila, um casal ao lado da Karla e ninguém do meu. Transcorridos alguns minutos, ela começava a ganhar confiança, destampando os ouvidos nas cenas menos perigosas. Mais alguns e ela permanecia apenas com as mãos travadas nos braços da poltrona, e só fechava os olhos nas partes críticas, mantendo os ouvidos livres. Com o controle da situação literalmente em suas mãos, ela relaxou um pouco mais, soltando um braço da cadeira 231 e pegando em minha coxa. Eu estava num misto esquisito de apreensão e excitação: apreensiva com a possibilidade de ela surtar a qualquer instante e excitada com sua mão apertando vigorosamente minha coxa. Do nada, a filha da puta da assombração em forma de barata, abelha, mosquito, sei lá, tomou conta da tela. De novo, novamente, outra vez: Pra quê! Um milésimo de segundo após o ataque, meu Bicho foi parar no chão, como um muçulmano que cumpre seus rituais com afinco. A diferença foi o choro, a tremedeira e o ataque violento de falta de ar. Eu e o casal ao lado dela nos assustamos mais que qualquer um naquela sala. Depois que eles entenderam que se tratava de uma anomalia comportamental, prestavam mais atenção às reações da Karla ao ver o filme do que à própria película. Com certeza eles se divertiram mais com a comédia do que com o suspense. A mim restou a culpa. A ela, 15 minutos de fama. Quinze minutos de fama? Isso não é nada comparado aos 25 minutos de estrelato que protagonizei na história a seguir. Em Portugal, os caixas automáticos para saque são, muitas vezes, meros buracos nas paredes externas dos edifícios. A 1,20 m da calçada, incrustado na fachada de um prédio, fica o equipamento – não é um cubículo fechado, não tem porta. Um Joaquim vem caminhando, pára, insere o cartão, pega o dinheiro e continua andando, durante o dia ou à noite, com a mesma tranqüilidade. Admirei-me daquilo durante todo o tempo em que vivi em Lisboa. Embora essa operação ao ar livre seja muito inconveniente 232 na estação das chuvas, ela pressupõe uma segurança pública invejável e impensável para nós. A falta de privacidade, porém, sempre me incomodou – e lá interessa pro Miguel atrás de mim quanto eu estou sacando? Um dia, parei para usar o caixa de um movimentado café perto de meu trabalho. Nunca me habituei a lidar com dinheiro em público, no meio da rua, de modo que sempre ficava meio tensa com a situação. Para ajudar, naquela sexta-feira eu carregava um guarda-chuva, uma pasta cheia de layouts e minha bolsa. Mal a portinhola cuspiu as notas, senti uma pressão na costela esquerda. Tive cócegas, mas não olhei para o lado, petrifiquei-me na certeza de haver um revólver encostado em mim. Gritei, minhas pernas amoleceram e eu desabei no chão já chorando, enquanto os layouts deslizavam pra fora da pasta e o guarda-chuva voava pra longe. Formou-se uma pequena multidão murmurante (“Ê-pá! Mas o que se passa com a gaja? Com o caraças, tu viste o que houve?”). O garçom se agachou a meu lado oferecendo água com açúcar, um rapaz saiu recolhendo meus anúncios, eu batia os dentes e não conseguia respirar. Quando recobrei a consciência e a visão, não gostei nada do que vi: a culpada por aquilo tudo era só uma colega de trabalho. Mãos sobre o rosto, morrendo de constrangimento, ela só queria desaparecer dali. Antes tivesse ido embora, mas não, deixou-se estar, xingando todos os imigrantes da ex-colônia de exibidos, escandalosos e rebentos de mães promíscuas. Apesar de considerarem perfeitamente aceitável o escarro público, hábito que abrange sexagenárias de coque e unhas impecáveis, distintos senhores e executivas de tailleur e bico fino, os portugueses são discretos. Orgulham-se de não fazer em público nada que chame a atenção, odeiam ter 233 holofotes e olhos voltados para si. Depois de expô-la a tamanho vexame, a D. Conceição nunca voltou a falar comigo... No fim dessa novela luso-brasileira, ganhei uma inimiga e o garçom ainda me cobrou 150 escudos pela água com açúcar! Mas faniquitos involuntários não resultam apenas em inimizades e prejuízos financeiros. Na verdade, podem até poupar algum dinheiro. Uma vez, eu estava presa num congestionamento monstruoso. Recém-chegada da Bahia, curtia ainda um estado contemplativo: o céu azul é mais importante que o trânsito, o sol tem mais valor que o combustível que você desperdiça ali parado, e o carnaval está quase chegando. Não estressa, meu rei! Ouvindo música suave, com uma revista aberta no colo e fumando tranqüilamente, eu era a pata ideal para um ladrãozinho de ocasião. O rapaz se aproximou do carro, inclinou-se na janela e ameaçou: “Aê, na moral, passa tudo, não buzina e não acelera. Vai, rápido, senão eu te furo aqui mesmo!” Comecei a tremer e a suar, praticamente desfalecendo ao volante: “Moço, eu vou desmaiar, não posso levar susto… Ai, meu Deus, tô passando mal, não sinto as pernas!...” Indignado com minha reação e frustrado por não levar nada, o assaltante foi embora me dando a maior dura: “Ô, calma aí, dona! Segura tua onda aí… Tá loco, cê é doente? Sai fora, maluca, vai se tratá!” 234 Explicação, conclusão, resultado e apêndice Prolixidade: qualidade do prolixo. Prolixo: muito longo ou difuso; superabundante, excessivo, demasiado. Dislexia: distúrbio ou transtorno de aprendizagem na área de leitura, escrita e soletração. Disléxico: relativo a, ou que sofre de dislexia. Eu sou prolixa porque sou disléxica e só escorrego porque minha memória é manca. Explicação: poucos percebem minha comprovada e assumida dislexia porque fujo das palavras perigosas e traiçoeiras como gato foge do banho e o vampiro foge da cruz. Não consigo pronunciar lagarto, mendigo, murcha, bola de gude e tantas outras. Para não passar por “inguinorante”, eu as evito. No açougue, em vez de dizer “Um quilo de largarto, por favor!”, eu peço: “Por favor, eu gostaria de um quilo daquela carne de boi que fica entre a chã-de-dentro e a chã-de-fora, excelente para assar.” Brincando com minhas sobrinhas eu tenho duas opções: “Quem quer brincar com aquelas bolinhas pequenininhas, coloridinhas, lisinhas, de vidro?” Ou “Quem quer jogar bola de gule?” 235 Conclusão: para evitar as palavras impronunciáveis, sou obrigada a dar uma grande volta, transformando uma frase simples num longa-metragem. Resultado: prolixidade. Apêndice: algumas vezes a técnica falha e acabo escorregando, digo coisas que soam estranhas, mas a culpa é do lapso de memória! Eventualmente, escapam-me as palavras proibidas. 236 Esquisitices de duas normais Pessoas normais também têm lá suas esquisitices. Para provar essa teoria, organizamos uma lista segmentada por tópicos específicos, na qual a excentricidade de cada uma, inversamente proporcional à da outra, pode ser demonstrada. Quesito: características gastronômicas. Karla Lima: Nunca como salada em dia de chuva. Pya Pêra: Adoro figo em calda com bacon e salame com doce de leite. Quesito: lateralidade. K. L.: Apesar de ser destra, opero o mouse com a mão esquerda para exercitar o outro lado do cérebro. P. P.: Uso a mão de lá para coçar o cotovelo de cá, e viceversa. Quesito: condução de veículos de terceiros. K. L.: Estranho o banco, o acelerador, o câmbio, a embreagem, os retrovisores e principalmente os freios. Após 200 metros fico tonta e enjoada, resmungo, bufo e reviro os olhinhos. P. P.: Dirijo qualquer veículo sem olhar para a frente enquanto falo ao celular, ajeito o espelho, anoto um 237 recado, dou um gole na Coca-Cola, mudo a marcha e acendo um cigarro. Ignoro as buzinas alheias. Quesito: manias à mesa. K. L.: Quando estou com fome, como qualquer coisa, independentemente de temperatura e estado de conservação. P. P.: Para comer, equilíbrio e companhia são fundamentais – nunca sozinha, compenso o sal com alguma coisa doce e monto meu prato de forma que tudo acabe ao mesmo tempo. Nunca dá certo, e invariavelmente tenho que colocar um pouco mais disto ou daquilo. Quesito: pudor. K. L.: Despudorada, perambulo pelada pela casa. P. P.: Desesperada, saio fechando as persianas. Quesito: multifuncionalidade. K. L.: Ou assovio ou chupo cana. P. P.: Assovio, chupo cana e passo fio dental ao mesmo tempo. Quesito: excentricidade. K. L.: Simetria que beira o TOC. P. P.: Ando pela casa com um pé de meia e outro sem, lavo uma mão e não molho a outra. Quesito: método. K. L.: Só começo uma atividade quando ponho fim à anterior. P. P.: Começo 12 atividades e, mesmo sem concluir nenhuma, parto em busca de novas. 238 Quesito: organização. K. L.: Todo pêlo e fio de cabelo têm seu devido lugar. P. P.: Enquanto não defino a melhor localização, vario a estadia dos pêlos entre a segunda gaveta do criado-mudo e a bancada do escritório. Quesito: generosidade. K. L.: Economizo palavras ocas. P. P.: Adoro jogar conversa fora. 239 Perguntas de Karla, respostas de Pya Nunca entendi as pessoas que acordam de mau humor. Por mais difícil que seja sair da cama, um dia cheio de possibilidades nos espera lá fora, coisas incríveis podem acontecer... E antes que qualquer uma delas realmente aconteça uma pessoa já está de mal com a vida! Como pode? Quando nos conhecemos, a Patricia era assim. Sua rabugice matutina me indignava um pouco, mas com o tempo passei a achar até uma certa graça naquilo e, por fim, ela mudou tanto que, hoje em dia, tenho que pedir que ela tagarele um pouco menos! No começo, tinha outra coisa nela que eu não compreendia: a mania de perguntar, sem contexto específico nem razão aparente. “O que você está pensando?” Eu ficava muito desconfortável com aquilo. Achava estranhíssimo, me sentia invadida por uma bisbilhotice sem cabimento. Com a convivência, ela parou de perguntar e eu, quando me lembro, partilho algumas bobagens que vagueiam por minha cabeça. Entre os esforços de adaptação que ambas fazemos e a tolerância da outra em relação às diferenças, uma querela permanece: a Patricia nunca guarda o que tira do lugar, retarda tanto quanto pode a arrumação das coisas e arranja resposta para tudo. 240 Minhas reações a isso variam. Às vezes dou risada de tanta cara-de-pau, às vezes não vejo graça nenhuma e fico de marcação cerrada até que ela faça e, às vezes, eu bufo e resolvo pessoalmente. Quando a questiono com perguntas diretas, ainda que capciosas, obtenho respostas procrastinadoras, ainda que amorosas. Observe os exemplos a seguir e me responda, sinceramente: é muito amor, não é não? “Vida, quando você vai limpar o escritório?” “Que dia é hoje?” “Nossa, amor, seu carro está tão limpinho!… O que aconteceu?” “Choveu?!” “Amor, o que a luz do quarto está fazendo acesa?” “Iluminando a cama, ué!” “Vidinha, você sabia que tem um pé de tênis seu na sala e o outro pé do mesmo par na cozinha? O que aconteceu?” “Eu sei. Eles brigaram.” “Vida, você não vai sair do telefone?” “De qual? Do fixo? Que dia é hoje?” “Nossa, amor! Por que você comprou esta bota? Que tamanho de salto é este?” “É meu esforço pra tirar seus seios de minha boca.” “Amor, seu carro tá parecendo um chiqueiro. O que acontece?” “É tudo culpa desse monte de lixo, ué!” 241 “Vida, cadê meu isqueiro?” “Que dia foi ontem?” “Vidinha, quando você vai trocar essa lâmpada queimada?” “Que dia é hoje?” “Amor, você está comendo pizza de bacon com geléia de framboesa?!” “Pois é... Acabou o figo em calda...” “Amor, põe a mão na boca pra tossir. Você sabia que é muito feio tossir assim?” “Escapou, eu estava com a mão ocupada.” “Ocupada com o quê?” “Segurando a outra.” “Vida, você nunca dá descarga quando faz xixi. O que acontece?” “Estou ajudando a salvar o planeta.” “Vidinha, o que o fio dental usado está fazendo em cima da pia?” “Companhia para a tampa da pasta que eu deixei cair no ralo.” “Amor, você não vai tomar banho?” “Que dia é hoje?” “Amor, que dia você vai cortar seu cabelo?” “Em que lua nós estamos?” “Vidinha, arroz, feijão, macarrão e banana, como é que pode?!” 242 “É mesmo, Bicho, tá faltando a mistura!” “Amor, por que você nunca fecha a tampa da garrafa térmica?” “Pra facilitar sua vida, meu Bicho.” “Amor, o que duas chaves de fenda estão fazendo embaixo da cama?” “Fofocando?…” “Vida, quando você vai devolver o filme na locadora?” “Que dia é hoje?” “Amor, o que você está fazendo com a mão aí?” “Carinho...” “Amor, você não vem dormir?” “Só mais umas horinhas...” “Amor, por que você sempre volta do supermercado com tantos itens supérfluos?” “Su-o quê? Não, Bicho, é lan-ça-men-to. Não é ‘su...’ isso aí.” “Vida, hoje é dia 3 de março, sexta-feira. Quando você vai arrumar esta bagunça que você já prometeu arrumar três vezes?” “Que horas são?” 243 É o fim! Noventa dias depois de termos começado a escrever o “Armário sem Portas”, debatíamos Patricia e eu como haveríamos de terminá-lo. Estávamos à beira de uma depressão pós-parto. Durante esses dois meses nós nos divertimos como nunca: consumimos centenas de litros de café e Coca Light, estreitamos ainda mais nossos vínculos, rimos de nos fartar, vivemos momentos incríveis de ternura, conhecemos pessoas, aprendemos muitíssimo – enfim, construímos juntas uma obra! E eis que era chegada a hora de terminar. “Já sei, Bicho, a gente termina com aqueles seus textos do blog! A gente podia fazer mais uma parte, só para eles. Que tal? Pelo menos mais gente iria ler!” “De jeito nenhum! Em primeiro lugar, não tem pertinência, o livro é cômico e leve, meus textos são meio deprê. Além do mais, não sei se tanta gente assim vai ler o ‘Armário’... Olha que meu blog já tem mais de 73 hits, tá?” “Nossa, Bichão! Tuuudo isso? Mas que coisa, hein? Mais de 73 hits em menos de cinco meses – tenho certeza de que deve ser um recorde!” 246 Suspeitei que ela estava mangando de mim. “Ah!, vai ser tão ruim não ter mais o livro pra escrever, né?” Ficava uma tentando consolar a outra, depois a outra consolava a uma, e nada de passar a tal saudade antecipada que, verdade seja dita, já nos rondava desde a conclusão dos primeiros capítulos de “Um pouco de um tudo”. Como seria a vida depois disso? Entre celebrar o que conquistamos até então e planejar os projetos seguintes, ela filosofava: “Pois é, Bicho! Agora que a gente já escreveu um livro, só falta fazer uma árvore e plantar um filho, né?” Deixei passar sem corrigir a dislexia contaminando o ditado: “É verdade. E, por falar em plantar filhos, e se a gente fosse para o quarto e fizesse mais umas tentativas? Estou sentindo que hoje vai dar certo...” Durante algumas horas nos dedicamos com afinco, mas alguma coisa nós estamos fazendo errado, pois mais uma vez não deu certo. Ainda faltava a terceira missão da vida: “Já sei. Enquanto a gente continua tentando o filho, vamos cuidar das árvores. E, pra não deixar brecha para o azar, além de umas mudas, vamos plantar também umas surdas e cegas, que tal?” 247 O mundo dá voltas e os conceitos giram Parece-nos óbvio que os padrões e princípios de uma pessoa resultam de vários fatores, tais como contexto histórico, lugar e época em que vive, ambiente familiar, aprendizado formal e informal, experiências diversas. Uma breve vista d’olhos pela História é suficiente para mostrar que os parâmetros oscilam bastante, e que noções de certo e errado são fluidas e temporais. Não existe juízo de valor intrínseco ao ser humano: o que é escandaloso hoje pode ter sido moralmente aceitável ontem; uma proibição aqui pode não fazer sentido em outro lugar; o que causa estranheza a mim pode parecer lógico e natural para você. Portanto, quem há de determinar um certo definitivo? Quem se arrisca a definir o que é indiscutivelmente errado? Nenhuma alma que se pretenda esclarecida, nós supomos. É por essa razão que, para nós, tolerância é sinal de inteligência. Não é o caso de ter a cabeça tão aberta que nada se segure lá dentro, mas é o caso de analisar criticamente o mundo ao redor, perguntar-se “por quê?” e “por que não?” e querer verdadeiramente ouvir a opinião do outro. Nós, inclusive, adoraríamos conhecer a sua. 250 romântico, é poder adotar uma criança conjuntamente, é ser herdeiro(a) automático(a) sem que haja a necessidade prévia de testá-lo(a) como tal, é poder somar rendas para financiar a aquisição de um imóvel, é incluir o(a) parceiro(a) no plano de saúde sem ter que declará-lo(a) como dependente em seu Imposto de Renda, é participar dos programas oficiais de apoio à família, é autorizar procedimentos cirúrgicos de risco independentemente da posição dos familiares, é receber aposentadoria em caso de morte do(a) parceiro(a) sem ter que brigar por isso. Lutar pelo direito de se unir de papel passado é, acima de tudo, sair da posição de refém do entendimento de quem julga sua causa. Como o casamento gay não é reconhecido pela Constituição, e não há suficiente jurisprudência, a sentença do juiz não será favorável quando considerada a estrita legalidade. Desconsiderada, e com base na sociedade de fato, poderá ser favorável. Diferença não deveria significar desigualdade. Casais heterossexuais diferem uns dos outros em dezenas de aspectos – aliás, apenas os une, justamente, a heterossexualidade –, nem por isso são desiguais perante a lei. Enquanto todas as limitações e impossibilidades ficarem justificadas legalmente pela inexistência da figura jurídica do casal gay, não adianta a comunidade GLS brigar pelo direito ao casamento. O primeiro passo é reformular o texto constitucional, de maneira que as uniões entre homossexuais sejam equiparadas às heterossexuais – com esse nome ou outro qualquer. Pense nisso nas próximas eleições legislativas. 251 Partindo dessa origem, achamos contraproducente aplicar o termo casamento para referenciar uniões homossexuais, já que as principais igrejas cristãs condenam esses relacionamentos. Muito de vez em quando, a Igreja Católica se arrepende de erros do passado e vem a público se desculpar. Nesse intervalo, que pode levar séculos, falemos de ajuntamento gay, boda gay, parceria gay, tanto faz. Por que gastar energias com um problema que pode, simplesmente, ser evitado? Além do mais, não nos interessa aqui debater o direito canônico, e sim o direito civil em um Estado laico! Enquanto não chega o Pedido de Perdão especificamente dirigido aos homossexuais, concentremo-nos na questão jurídica. A Constituição Federal, lei maior do País, à qual todas as outras estão submetidas, não considera que duas pessoas do mesmo sexo possam ser casadas – simplesmente, não existe sociedade conjugal composta por duas mulheres ou por dois homens. Explicitamente, no § 3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988 está escrito: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Mais adiante, no § 5º, lê-se: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.” Ou seja, uniões gays não são consideradas entidade familiar, a lei não deve facilitar sua conversão em casamento e, em decorrência disso, tudo que diga respeito a um casal fica restrito às uniões heterossexuais. Essa situação de clandestinidade gera problemas e dificuldades de toda espécie. Lutar pelo direito de se unir de papel passado não é espernear por um momento 252 O malbatizado casamento gay Este foi o capítulo que mais dificuldades tivemos para escrever – aliás, o último a ficar pronto. O tema é vasto e se presta a muitas abordagens, em combinações praticamente infinitas: antropológica, econômica, religiosa, jurídica, filosófica, moral, política, histórica e cultural, entre outras. Foram muitos os questionamentos: um livro que se pretende cômico deve falar dum assunto tão espinhoso? Por outro lado, podemos ignorar uma questão desse peso? Será que este texto não vai enfadar o leitor? Mas sua ausência não poderá irritá-lo mais ainda? A missão era dura: não entediar quem comprou o livro para se divertir; não deixar de lado um aspecto importante da vida homossexual; sermos sérias e não chatas, sermos leves, mas não rasas. Ufa! Isso posto, vamos a ela: a união entre pessoas do mesmo sexo. Somos contrárias à nomenclatura “casamento” gay. A palavra casamento deriva de uma instituição que se iniciou pela Igreja, se transformou em instituto de Direito, específico para tratar da relação de direito natural: união de homem e mulher voltada à criação de família pelo fenômeno da procriação. 253 irrecorrível tem um aspecto muito conveniente. Por conclusão lógica: se não existe ex-homossexual, é de se supor que também não existam ex-heterossexuais; donde se conclui que, se você já não nasceu veadinho ou sapatinha, está “a salvo”. Que reconfortante! Obviamente, a questão não é essa. Os ditados não se aplicam igualmente às três situações porque, ao contrário de se prostituir e cometer crimes, que são comportamentos, ser homossexual é uma condição. Não é atitude, não é opção; é traço inerente, é característica inata. É por isso que nessa situação, e não nos exemplos anteriores, pode-se afirmar que, realmente, não existe um “ex”. Não podem existir ex-gays nem ex-lésbicas pelo simples fato de que, não sendo um aprendizado nem uma habilidade, a homossexualidade não pode ser alterada. Assim, independentemente de assumir sua homossexualidade para si e para os outros, um homossexual é sempre um homossexual. Um gay ou lésbica não assumido não deixa de sê-lo, por muito que durante toda a vida apenas se relacione emocional e fisicamente com pessoas do sexo oposto, que se case e tenha doze filhos. O mesmo raciocínio se aplica, naturalmente, aos heterossexuais e bissexuais: você é o que é. Parece-me que o que importa, verdadeiramente, é abandonar comportamentos prejudiciais a si ou aos outros, e nunca desistir de viver conforme aquilo que se é. O que importa, no fundo, é nunca ser um ex-feliz. 254 Ex-publicitária, ex-infeliz “Não existe ex-criminoso.” “Uma vez puta, sempre puta.” São convicções populares que você provavelmente já ouviu mais de uma vez. Os ex-bandidos podem permanecer honestos por décadas e, ainda assim, não faltará quem atribua qualquer deslize a seu passado. Se já tiverem sido fichados ou, pior, se estiveram presos, então, nem se fala: levou uma multa, atrasou a entrega do IR, teve um momento de fúria? Em outra pessoa, uma falha poderia resultar de um dia difícil, de um momento delicado na vida, mas no cotidiano do ex-criminoso o destempero é rapidamente atribuído à antiga bandidagem. Similarmente, uma mulher pode até sair da vida, mas, no imaginário social, uma certa tendência à prostituição estará sempre presente, seja sob a forma física, seja no âmbito moral: faltou com a ética, gastou além de suas possibilidades, envolveu-se num romance dramático? A interpretação comum está pronta e engatilhada: “Também, o que mais se poderia esperar duma puta?” No caso dos gays, as sentenças também são definitivas: “Não existe ex-bicha, não existe ex-lésbica”. Esse veredicto 255 Ser e estar Esteja você começando por aqui ou lendo estas páginas já tendo terminado o livro, não tem a menor relevância. Fundamental é que você vire, desvire e revire. Propositalmente, esta introdução e os três capítulos a seguir estão de ponta-cabeça. O motivo de eles estarem assim dispostos é nenhum. Quando questionadas, porém, alegaremos dinamismo, originalidade ou, simplesmente, falta de coisa melhor para fazer. A localização e a orientação podem até não importar muito, mas a existência deste papo, sim. Evidentemente, com meros três textos não temos a pretensão de esgotar o assunto – nem a paciência do leitor, como diz o ditado. Quisemos apenas registrar nossa visão sobre alguns aspectos mais sérios da vida homossexual, e escolhemos os que nos são mais próximos e familiares. 256