a crise mundial de alimentos viola o direito humano à alimentação
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a crise mundial de alimentos viola o direito humano à alimentação
TEXTO PARA DISCUSSÃO A CRISE MUNDIAL DE ALIMENTOS VIOLA O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO A ABRANDH é uma entidade da sociedade civil, sem fins lucrativos, que luta para que direito humano à alimentação adequada seja uma realidade para todos(as), no Brasil e no mundo. Brasília, junho de 2008 1 A CRISE MUNDIAL DE ALIMENTOS VIOLA O DIREITO HUMANO Á ALIMENTAÇÃO * O tema atual das manchetes relaciona-se à chamada “crise mundial dos alimentos”. Definese a “crise” pelo aumento expressivo no preço de produtos alimentícios (trigo, milho, arroz, leite, carne, soja etc.). Segundo o Banco Mundial, nos últimos três anos, os preços dos alimentos subiram em média 83%. O Índice de Preços de seis commodities da FAO elevouse em 38% entre 2004 e 2007, sendo que o ritmo de crescimento acelerou-se nos últimos meses. Essa inflação tem impacto direto nas famílias pobres, especialmente aquelas que vivem em países importadores de alimentos e que costumam gastar a absoluta maioria de seu orçamento doméstico na aquisição de alimentos. As dramáticas conseqüências já se fazem sentir em diversos lugares do mundo: populações revoltadas foram às ruas em cidades como Porto Príncipe, Cabul, Manila, México e Cairo. De acordo com informações da FAO, datadas de abril de 2008, 37 países estão à beira de uma crise alimentar grave. A ONU foi a público alertar que se nada for feito, faltarão alimentos para milhões de pobres no mundo. Parece que o problema é de escassez da oferta quando, na realidade, trata-se da expressão mais perversa da injustiça distributiva global. A maior prova disso é que são as populações mais pobres, em especial dos países mais pobres, as que já estão diretamente afetadas pela crise. Atualmente, o mundo produz alimentos em quantidade suficiente para todos. O que ocorre é que muitos não têm acesso a eles. Milhões de pessoas não possuem rendimentos ou outros meios para comprar ou produzir os alimentos que necessitam para viver com dignidade. No mundo todo, estima-se que 800 milhões de pessoas têm o seu direito humano à alimentação adequada violado, isto é, convivem diariamente com o flagelo da fome, em situação de insegurança alimentar permanente. A alta dos preços dos alimentos é a face mais visível de um conjunto de fatores que vem, historicamente, promovendo a exclusão social e a sistemática violação do direito humano à alimentação adequada de expressivos contingentes populacionais. É fundamental lembrar que já no começo da década de 1970 o Clube de Roma1 alertou sobre os “limites do crescimento” e a ameaça de colapso de uma civilização se nada fosse feito. Nada de novo, portanto. Por tratar-se de uma forma insustentável de produzir e consumir, o atual modelo está fazendo água e suas conseqüências começam a assustar as minorias dos países ricos. Finalmente, a insegurança alimentar e nutricional, há tanto tempo denunciada, por diferentes organizações tanto de âmbito internacional como nacionais, virou uma questão mundial , um problema a ser enfrentado pela comunidade global. Quais são os principais fatores que explicam a atual “crise”? É muito importante, em primeiro lugar, enfatizar que as políticas de desenvolvimento têm se pautado em interesses do mercado financeiro e não na garantia de direitos e na dignidade humana. Nesse contexto, o alimento é visto como mercadoria e não como um direito humano cuja implementação é obrigação dos Estados. Essa é a questão de fundo que agrava os fatores naturais e geram e acentuam outros fatores, como, por exemplo: * O presente texto expressa a opinião da ABRANDH a respeito da atual ”crise mundial dos alimentos”. A esse respeito, ver www.clubofrome.org 1 AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS SHCN Quadra 215, bloco D, salas 13/17 - CEP 70874-540 - Brasília/DF – Brasil Tel/Fax: +55 (61) 3340.7032 – e-mail: [email protected] http://www.abrandh.org.br 2 1. Um modelo de produção e comercialização das commodities alimentares altamente baseado nos combustíveis fósseis. Com isso, a contínua elevação do preço do petróleo, que passou de cerca de U$ 30.00 por barril, em 2003, para mais de U$ 120.00 em 2008 teve impacto direto na inflação dos alimentos tendo em vista o uso intensivo do petróleo e seus derivados em toda a cadeia: nos insumos, devido aos fertilizantes e pesticidas químicos, no plantio em decorrência da mecanização crescente e no transporte dos produtos. 2. Políticas agrícolas européias e norte-americanas protecionistas que inviabilizam o acesso ao mercado de alimentos produzidos em países em desenvolvimento. Em decorrência disso, muitos desses países, incapazes de competir com uma agricultura altamente subsidiada e protegida por tarifas e outras barreiras comerciais, passaram a ser compradores de alimentos. Como resultado, hoje, com a inflação dos alimentos em alta, seus custos de importação vêm aumentando assustadoramente, sem contar a fatura crescente da conta petróleo. As conseqüências desses gastos nos orçamentos dos países são claras: diminuição de recursos para a implementação de políticas públicas sociais básicas além de pressão inflacionária nas suas economias que, por seu turno, desequilibra o orçamento público. As principais vítimas são as populações pobres desses países que gastam mais da metade de seus rendimentos para alimentarem-se. 3. A liberalização e a desregulação dos mercados são fatores que também vêm contribuindo para aumentar a fome no mundo. O enfraquecimento dos Estados nacionais, especialmente dos países em desenvolvimento, resultante das medidas de desregulamentação amplamente preconizadas por organizações como o Banco Mundial e o FMI. Tais medidas dificultaram a efetiva implementação de políticas públicas de soberania e segurança alimentar e nutricional, tais como, a reforma agrária, o fortalecimento da agricultura familiar, o abastecimento alimentar, a formação de estoques de alimentos, as compras públicas, a extensão rural, a realização de pesquisas e o desenvolvimento de tecnologias voltadas para a agricultura familiar, dentre outras. O exemplo mais emblemático desse processo devastador é o impacto do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN/NAFTA) na alimentação básica dos mexicanos, especialmente na “tortilla” de milho. Incapazes de competir com o milho americano, altamente subsidiado, os mexicanos deixaram de produzir esse alimento básico e o país passou a ser importador do mesmo. Com a recente inflação do milho, o preço da “tortilla” aumentou em cerca de quatro vezes impossibilitando seu consumo por importantes parcelas da população. A desregulação dos mercados globais também possibilitou o crescimento do agronegócio e a livre atuação das Transnacionais da Cadeia agro alimentar (TNCs)que são hoje as grandes lucradoras da “crise da fome”, pois são elas que controlam a cadeia, desde os insumos necessários à produção das commodities alimentares até a sua comercialização. Ademais, as TNCs impõem sua lógica de produção e distribuição destruindo, assim, os sistemas agrícolas locais bem como os hábitos alimentares dos países em desenvolvimento. Esse processo resulta não somente em desemprego crescente, mas, igualmente, no desenraizamento de grande parte da população mundial rural que hoje se encontra sem qualquer esperança de viver do que produz ou de ser absorvida pelo mercado de trabalho das cidades. Como se não bastasse, a falta de regulamentação em nível global tem possibilitado a especulação em torno dos alimentos. Diante da alta do preço desses produtos, investidores têm apostado na manutenção dessa tendência e, portanto, comprado nas bolsas de futuro de commodities. Essas operações, por seu turno, reforçam o ciclo vicioso da inflação alimentar. AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS SHCN Quadra 215, bloco D, salas 13/17 - CEP 70874-540 - Brasília/DF – Brasil Tel/Fax: +55 (61) 3340.7032 – e-mail: [email protected] http://www.abrandh.org.br 3 4. Políticas irresponsáveis de soberania energética dos países desenvolvidos, especialmente, da Europa (UE) e dos Estados Unidos (EUA) que, de um lado, incentivam a qualquer custo, a produção de agrocombustíveis com produtos oriundos de sua agricultura e, de outro, se negam a discutir a forma de produzir e consumir alimentos. Preocupados unicamente em minimizar sua dependência em relação aos combustíveis fósseis e buscando aumentar a autonomia no que diz respeito aos agrocombustíveis, UE e EU têm implementado uma série de medidas que vêm contribuindo para a alta do preço dos alimentos, especialmente daqueles que são matéria prima para agrocombustíveis, como é o caso do milho para o etanol americano e dos óleos de soja e canola para o biodiesel europeu. Além de ter resultado no aumento direto do preço desses produtos, tais medidas apresentam efeitos-cascata tendo em vista que esses produtos são insumos para outros bens alimentares, tais como, carnes, ovos, leites e derivados. Ademais, tem-se observado, nos Estados Unidos, a migração das culturas de soja e de trigo para o milho o que, por sua vez, contribui para aumentar ainda mais o preço da soja e do trigo e, consequentemente, os demais produtos de sua cadeia alimentar. O mais grave é que essas políticas em momento algum questionam a necessidade de se alterar a maneira como se produz e consome energia que é, na realidade, o cerne da crise. Trata-se de um progressivo processo de substituição de uma fonte de energia pela outra, do petróleo pelos agrocombustíveis. Os europeus e americanos parecem pouco preocupados com a crise, pois cultivam a firme convicção de que, em breve, deterão a tecnologia para agrocombustíveis de segunda e terceira gerações que, provavelmente, os tornarão independentes em relação a países em desenvolvimento produtores de energia a partir da biomassa, como, Brasil, Indonésia e Malásia. 5. Uma frágil solidariedade internacional associada à redução da ajuda ao setor agrícola tem contribuído para o enfraquecimento da agricultura familiar dos países em desenvolvimento. Segundo dados da OCDE, a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) concedida pelos países mais ricos, se mantém em torno dos 0,3% do seu PIB há mais de 15 anos, longe de alcançar, portanto, a modesta meta de 0,7% para 2015. Além disso, pouco ou nada tem sido investido no desenvolvimento de pesquisas que combinem os conhecimentos locais e tradicionais com o saber formal, que visam a desenvolver insumos e tecnologias agrícolas apropriadas aos diferentes biomas e às distintas culturas existentes nos países em desenvolvimento. Some-se a isso a fragilidade das políticas públicas de infraestrutura rural bem como de saúde, educação, crédito e assistência técnica. Isso tem contribuído para a diminuição global do ritmo de crescimento da produtividade da agricultura. 6. O enorme desperdício de alimentos é mais um fator estrutural da maior gravidade num mundo onde milhões de pessoas ainda passam fome. Estima-se que cerca de 30% dos alimentos sejam desperdiçados durante as fases de colheita/criação/abate, transporte, processamento, embalagem, armazenamento, distribuição, manuseio e consumo. No Reino Unido, o Ministério do Meio Ambiente publicou, em 2007, os resultados de um estudo que marcou as comunidades nacional e internacional: naquele país, anualmente, são desperdiçadas 6,7 milhões de toneladas de alimentos, ao custo de 200 a 400 libras por família, o que equivale a um terço de todo o alimento consumido no país. Considerados todos os custos (transporte, embalagem, manuseio, refrigeração, descarte, etc.) o desperdício custa 8 bilhões de libras ao ano. No Brasil não é diferente: segundo o IBGE, em 1999, o país desperdiçou 39 milhões de toneladas de alimentos, quantidade suficiente para alimentar 19 milhões de pessoas. A essa quantidade de alimentos jogada fora é AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS SHCN Quadra 215, bloco D, salas 13/17 - CEP 70874-540 - Brasília/DF – Brasil Tel/Fax: +55 (61) 3340.7032 – e-mail: [email protected] http://www.abrandh.org.br 4 associada um imenso desperdício de água que contribui, por seu turno, para encarecer ainda mais os alimentos. Com efeito, alimento também é água: um quilo de carne bovina, por exemplo, “inclui” de 10 a 20 mil litros de água e um quilo de arroz de mil a dois mil litros de água, consideradas todas as fases de produção. Neste sentido, o desperdício de alimentos é também um gigantesco desperdício de água e estes estão entre os maiores problemas que se apresentam para as sociedades neste começo de século XXI. A esses fatores estruturais somam-se outros que vêm agravar a crise, tais como: o crescimento da demanda por alimentos vindo de países como Brasil2, China e Índia3, a ocorrência de quebras de safra devido a más condições climáticas em países produtores de alimentos (como é o caso da Austrália que é um dos maiores fornecedores de trigo) e a desvalorização do dólar que faz com que outras moedas tenham seu poder de compra aumentado, elevando, assim, a procura por alimentos (o dólar é a moeda utilizada para a cotação das commodities). Como se não bastassem todos esses elementos, diante do risco de desabastecimento, grandes países produtores de alimentos estão restringindo suas exportações (Ucrânia, Argentina, Índia e Vietnam), o que contribui para elevar ainda mais a inflação alimentar. Diferentemente do que afirmam alguns analistas, que acreditam que a crise será resolvida nos próximos 12 meses pelas mãos do mercado4, entendemos que a mesma é a expressão de um complexo e profundo problema de iniqüidade global. Nos dias de hoje, a pobreza e a miséria do mundo não conseguem mais ser “administradas” como até recentemente: a fratura social está exposta e o mundo assustado. Tanto é assim que organizações internacionais defensoras dos interesses das elites nacionais e globais, como o FMI, o Banco Mundial, a OCDE e o Fórum Econômico Mundial estão se dando conta que exageraram na mão e que algo precisa ser feito para conter os efeitos perversos de suas políticas, especialmente diante de um futuro que se anuncia sombrio5. Com efeito, as incertezas pairam tendo em vista que: 2 • o preço do petróleo manterá sua tendência de elevação. Mesmo com a descoberta de novas reservas, as mesmas encontram-se em localidades de difícil acesso, encarecendo os processos de extração. O aumento do preço do petróleo, como foi visto, tem impacto direto na inflação alimentar além de continuar pressionando a expansão da produção de agrocombustíveis que, por seu turno, contribui para a elevação do preço dos alimentos; • as conseqüências do aquecimento global – estiagens e inundações – comprometerão a produção agrícola global, especialmente nos países que hoje são No Brasil, nos dois últimos anos, mais de 20 milhões de pessoas saíram das classes D e E e alcançaram a classe C, que se constitui, atualmente e em caráter inédito, o estrato social mais numeroso do país. São 86,2 milhões de brasileiros, o equivalente a 46% da população total (em 2005, a proporção era de 34%). Já as faixas D e E, que representavam 51% da população em 2005, agora tiveram sua fatia diminuída para 39%. Isso é o que revela a pesquisa O Observador Brasil 2008, feita pela financeira francesa Cetelem com o instituto de pesquisas Ipsos Public Affairs. Na terceira edição da enquete, foram ouvidas 1.500 famílias em 70 cidades e nove regiões metropolitanas do país em dezembro de 2007. Os entrevistados foram classificados não só pela renda, mas também pelo nível educacional e pela posse de bens, este o item de maior peso. Ver http://www.estado.com.br/editorias/2008/03/27/eco-1.93.4.20080327.31.1.xml 3 A titulo de ilustração, na China, o consumo per capita anual de carne passou de 20 Kg, em 1980, para 50 Kg nos dias de hoje (FAO, 2008). 4 A esse respeito, ver entrevista à Carta Capital, em 11/05/2008, de Nouriel Roubini, professor da Universidade de Nova York. No seu entendimento a solução passa pelo mercado: o ajuste se fará em pouco tempo na medida em que os fazendeiros irão responder rapidamente a alta dos preços com aumento significativo da produção. 5 Nesse particular, é interessante observar a quantidade de análises alarmistas que essas organizações vêm publicando nos últimos meses, como se nada tivessem a ver com isso. AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS SHCN Quadra 215, bloco D, salas 13/17 - CEP 70874-540 - Brasília/DF – Brasil Tel/Fax: +55 (61) 3340.7032 – e-mail: [email protected] http://www.abrandh.org.br 5 os mais vulneráveis à insegurança alimentar castigando ainda mais as populações em situação de pobreza; • as reservas de água estão se esgotando, e o atual modelo de uso da água tanto nas cidades como no campo é insustentável ambientalmente, o que irá representar um sério entrave à agricultura, uma das principais consumidoras desse bem público; • a inexistência de uma organização pública internacional, supra-estatal, capaz de regular a produção e comercialização dos alimentos, por meio de zoneamentos agroecológicos globais, de critérios justos de comércio, de promoção de políticas públicas que fortaleçam a agricultura familiar dentre outras medidas. A falta de mecanismos regulatórios internacionais irá facilitar a expansão dos transgênicos que encontrarão na crise uma excelente oportunidade para apresentar-se como solução rápida e eficiente à insuficiência de alimentos; a falta de mecanismos regulatórios também irá promover o enriquecimento crescente do setor financeiro e das transnacionais da cadeia agro - alimentar, que são os grandes ganhadores dessa crise. Os bancos devido à especulação nos mercados futuros das commodities e as multinacionais pelo seu domínio da cadeia e que, portanto, se apropriam desses ganhos; • a dificuldade dos países em desenvolvimento de promover uma aliança Sul/Sul que seja capaz de efetivamente enfrentar os interesses de determinados setores econômicos dos países desenvolvidos, tanto nas políticas comerciais como nas de investimentos. As respostas à crise podem ser de diversas ordens como se tem visto nos receituários contidos em inúmeros documentos de organizações internacionais que vêm circulando ultimamente, desde aumentar a eficiência da agricultura global até implementar, nos países em risco de insegurança alimentar, redes de proteção social que aumentem o acesso aos alimentos de consumidores pobres, urbanos e rurais. No entanto, essas medidas serão, apenas, paliativas se não forem articuladas no bojo de um projeto global de desenvolvimento6 que se paute, primordialmente, na garantia de direitos humanos, e no caso em particular, do direito humano à alimentação adequada. Recentemente, o Secretário Geral das Nações Unidas reuniu, em Berna, na Suíça, mais de 20 agências do Sistema ONU bem como a OMC e o Banco Mundial, para discutir a crise. Infelizmente, além de superficiais, as medidas sugeridas ficaram, no geral, no campo das ações compensatórias. Perdeu-se uma excelente oportunidade para dar início a um processo de construção de um crescimento planetário com inclusão sócio-ambiental. Essa é uma tarefa urgente diante da iminente barbárie que nos espreita. A miséria, a pobreza e a violência social oriundas do processo de exclusão há décadas praticado no planeta, da qual a crise dos alimentos é apenas uma de suas facetas, não são mais questões que afligem somente os países em desenvolvimento; elas já estão presentes nas nações ricas que vêm vivenciando, por exemplo, o esgarçamento de seu tecido social7, atos terroristas e revoltas de jovens das periferias dos centros urbanos. 6 Entendemos que o “desenvolvimento” é um processo multidimensional que contempla as diversas dimensões da vida em sociedade, a saber: econômica, social, ambiental, cultural, política, institucional, técnico - cientifica, regional, comunitária etc. Nessa perspectiva, o “desenvolvimento” não comporta qualificativos. 7 Para Castel (2000), a precarização das relações de trabalho nos paises ocidentais tem levado ao que o autor chama de “desafiliação”. Tal processo se desdobra em três características: a primeira é de desestabilização dos estáveis: ou seja, os trabalhadores que ocupavam uma posição sólida na divisão do trabalho clássica e que são expelidos dos circuitos produtivos. A segunda característica é a da instalação na precariedade que se verifica com o trabalho aleatório e temporário bem como com o desemprego de longa duração. Por fim, a terceira característica é a dos supranumerários, dos “sobrantes”, daqueles que são “inúteis para o mundo”. São as AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS SHCN Quadra 215, bloco D, salas 13/17 - CEP 70874-540 - Brasília/DF – Brasil Tel/Fax: +55 (61) 3340.7032 – e-mail: [email protected] http://www.abrandh.org.br 6 Como contribuição ao debate apresentamos, a seguir, alguns elementos que poderiam ser levados em conta na construção de uma agenda global de desenvolvimento pautada em direitos humanos: 1. Fortalecer a institucionalidade pública internacional de modo que seja capaz de liderar a construção de um projeto global de desenvolvimento pactuado entre governos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil, capaz de promover a regulação global do mercado de sorte a realizar uma distribuição eqüitativa e sustentada das riquezas geradas no mundo e, assim, garantir a realização dos direitos humanos; 2. Fortalecer os Estados nacionais nas suas três dimensões: executivo, legislativo e judiciário. Somente Estados fortes e estruturados poderão implementar políticas públicas efetivas e consolidar a democracia. Isso significa por em marcha medidas de valorização da função pública, de formação e construção de competências de funcionários públicos, de adoção de mecanismos de accountability, dentre outros. É importante ressaltar que os Estados nacionais devem propor ações de enfretamento às causas da crise na perspectiva de suas obrigações, assumidas internacionalmente, de garantir os direitos humanos e uma vida digna a suas populações, respeitando inclusive suas obrigações extraterritoriais. É de suma importância que os Estados nacionais reafirmem os seus compromissos de cumprir suas obrigações assumidas com a ratificação de tratados internacionais de direitos humanos; 3. Reconhecer que o acesso pleno a uma alimentação adequada é um direito humano, o qual os Estados nacionais devem respeitar, promover, proteger e prover para toda a população. Criar e fortalecer mecanismos, internacionais, regionais, nacionais e locais para que possa ser exigida a realização do direito humano à alimentação adequada e a superação da violação a esse direito; 4. Fortalecer a democracia participativa global, envolvendo os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil nos principais centros de decisão, condição indispensável à sustentabilidade sócio-política do desenvolvimento global. Considerar, em particular, a representação dos movimentos sociais que representam as populações mais afetadas pela violação dos direitos humanos, em especial do direito humano à alimentação adequada e as organizações da sociedade civil que defendem este direito; 5. Desencadear imediatamente medidas que alterem as formas de produzir e consumir, tais como, políticas (i) de fortalecimento do transporte público e de restrição do transporte individual; (ii) de combate ao desperdiço de água, alimentos, energia e outros bens de consumo; (iii) de descentralização e localização da produção e comercialização de alimentos e de energia; (iv) de ampliação de fontes renováveis de energia, como a solar e a eólica; (v) de investimentos maciços em ciência e tecnologia voltados para a geração de emprego digno preservando o meio ambiente bem como as culturas locais; (vi) de segurança e de soberania alimentar e pessoas que não têm lugar na sociedade, que não estão integrados, ou seja, que não estão inseridos em relações de utilidade social, relações de interdependência com o conjunto da sociedade. A identidade pelo trabalho está abalada o que resulta num processo de “desafiliação”, de “déficit de integração”: A degradação do status ligado ao trabalho é acompanhada da fragilização dos suportes relacionais que, além da família, possibilitam a inserção social (relações de vizinhança, participação em sindicatos, partidos e associações). Diante desse quadro, a questão é: como instaurar uma forte relação de pertencimento social para essas populações que a globalização selvagem empurra para as margens? AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS SHCN Quadra 215, bloco D, salas 13/17 - CEP 70874-540 - Brasília/DF – Brasil Tel/Fax: +55 (61) 3340.7032 – e-mail: [email protected] http://www.abrandh.org.br 7 nutricional sustentáveis; (vii) de informação e conscientização dos consumidores, urbanos e rurais, sobre sua responsabilidade na produção insustentável de bens e serviços; (viii) de combate à concentração de renda, terras e insumos; e (ix) de proteção aos recursos genéticos; 6. Ampliar, quando não implementar, sistemas públicos de proteção social nos países em desenvolvimento que incluem políticas de previdência, saúde, saneamento, assistência, educação, alimentação adequada e nutrição, habitação, trabalho e renda, segurança pública e promoção da igualdade étnica, racial, de gênero e de orientação sexual. Essas políticas devem ser elaboradas e implementadas de maneira coordenada e na perspectiva dos direitos humanos, ou seja, com a definição de procedimentos e rotinas que garantam o apoderamento e a participação ativa e informada dos titulares e a implementação de instrumentos acessíveis para a cobrança dos direitos previstos; 7. Ampliar o compromisso público internacional e destinar expressivos recursos para políticas públicas de desenvolvimento agrário que fortaleçam a agricultura familiar por meio de medidas de acesso à terra e território, à água e sementes crioulas; de crédito; de infra-estrutura e serviços; de educação, capacitação e assistência técnica que articulem o conhecimento formal com as culturas e os saberes locais; de incentivo ao associativismo e ao cooperativismo; de promoção da agroecologia e da economia solidária; e de controle de toda a cadeia alimentar, da produção à distribuição, dentre outras. A Ajuda Pública ao Desenvolvimento deve, também, fortalecer as organizações das sociedades civis dos países em desenvolvimento como forma de contribuir para a consolidação de espaços públicos plurais e a participação ativa, democrática e informada; 8. Estreitar a cooperação Sul/Sul, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais, de modo a reequilibrar a geopolítica global em favor dos países em desenvolvimento. Por fim, acreditamos que a pactuação global de um “outro mundo” que coloque a dignidade da pessoa humana como foco central do desenvolvimento econômico e social é uma tarefa que se impõe a todas e todos os habitantes do planeta. Pela ótica dos direitos humanos o desenvolvimento deve ser um processo centrado na pessoa humana cujo objetivo primeiro é respeitar, integralmente, a sua dignidade e suas potencialidades. Alguns dirão que pensar o desenvolvimento numa perspectiva global e de direitos humanos é ingênuo ou utópico. No entanto, é a utopia que nos faz avançar, conforme tão bem ilustra Eduardo Galeano: “Ela está no horizonte – me diz Fernando Birri. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.” (As palavras andantes, 1994) ABRANDH – Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (www.abrandh.org.br) AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS SHCN Quadra 215, bloco D, salas 13/17 - CEP 70874-540 - Brasília/DF – Brasil Tel/Fax: +55 (61) 3340.7032 – e-mail: [email protected] http://www.abrandh.org.br 8 Referências ABRANDH. Diretrizes voluntárias para o direito humano à alimentação adequada. Versão resumida. Brasília, DF, 2005. Disponível em: http://www.abrandh.org.br/downloads/cartilha.pdf ABRANDH. Promovendo a exigibilidade do direito humano à alimentação adequada: subsídios para o debate. Brasília, DF, 2006. Action Aid International. AAI policy brief on rising food prices. s/d. ALTIERI, Miguel A. A falência de um modelo. Artigo publicado em maio de 2008 na RTS. Disponível em: http://www.rts.org.br/artigos/a-falencia-de-um-modelo CASSEL, Guilherme. O Brasil e a crise mundial de alimentos. 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