a crise mundial de alimentos viola o direito humano à alimentação

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a crise mundial de alimentos viola o direito humano à alimentação
TEXTO PARA DISCUSSÃO
A CRISE MUNDIAL DE ALIMENTOS VIOLA O
DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO
A ABRANDH é uma entidade da sociedade civil, sem fins lucrativos, que luta para
que direito humano à alimentação adequada seja uma realidade para todos(as), no
Brasil e no mundo.
Brasília, junho de 2008
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A CRISE MUNDIAL DE ALIMENTOS VIOLA
O DIREITO HUMANO Á ALIMENTAÇÃO
*
O tema atual das manchetes relaciona-se à chamada “crise mundial dos alimentos”. Definese a “crise” pelo aumento expressivo no preço de produtos alimentícios (trigo, milho, arroz,
leite, carne, soja etc.). Segundo o Banco Mundial, nos últimos três anos, os preços dos
alimentos subiram em média 83%. O Índice de Preços de seis commodities da FAO elevouse em 38% entre 2004 e 2007, sendo que o ritmo de crescimento acelerou-se nos últimos
meses. Essa inflação tem impacto direto nas famílias pobres, especialmente aquelas que
vivem em países importadores de alimentos e que costumam gastar a absoluta maioria de
seu orçamento doméstico na aquisição de alimentos. As dramáticas conseqüências já se
fazem sentir em diversos lugares do mundo: populações revoltadas foram às ruas em
cidades como Porto Príncipe, Cabul, Manila, México e Cairo. De acordo com informações da
FAO, datadas de abril de 2008, 37 países estão à beira de uma crise alimentar grave. A
ONU foi a público alertar que se nada for feito, faltarão alimentos para milhões de pobres no
mundo. Parece que o problema é de escassez da oferta quando, na realidade, trata-se da
expressão mais perversa da injustiça distributiva global. A maior prova disso é que são as
populações mais pobres, em especial dos países mais pobres, as que já estão diretamente
afetadas pela crise.
Atualmente, o mundo produz alimentos em quantidade suficiente para todos. O que ocorre é
que muitos não têm acesso a eles. Milhões de pessoas não possuem rendimentos ou outros
meios para comprar ou produzir os alimentos que necessitam para viver com dignidade. No
mundo todo, estima-se que 800 milhões de pessoas têm o seu direito humano à
alimentação adequada violado, isto é, convivem diariamente com o flagelo da fome, em
situação de insegurança alimentar permanente.
A alta dos preços dos alimentos é a face mais visível de um conjunto de fatores que vem,
historicamente, promovendo a exclusão social e a sistemática violação do direito humano à
alimentação adequada de expressivos contingentes populacionais. É fundamental lembrar
que já no começo da década de 1970 o Clube de Roma1 alertou sobre os “limites do
crescimento” e a ameaça de colapso de uma civilização se nada fosse feito. Nada de novo,
portanto. Por tratar-se de uma forma insustentável de produzir e consumir, o atual modelo
está fazendo água e suas conseqüências começam a assustar as minorias dos países ricos.
Finalmente, a insegurança alimentar e nutricional, há tanto tempo denunciada, por diferentes
organizações tanto de âmbito internacional como nacionais, virou uma questão mundial , um
problema a ser enfrentado pela comunidade global.
Quais são os principais fatores que explicam a atual “crise”?
É muito importante, em primeiro lugar, enfatizar que as políticas de desenvolvimento têm se
pautado em interesses do mercado financeiro e não na garantia de direitos e na dignidade
humana. Nesse contexto, o alimento é visto como mercadoria e não como um direito
humano cuja implementação é obrigação dos Estados. Essa é a questão de fundo que
agrava os fatores naturais e geram e acentuam outros fatores, como, por exemplo:
*
O presente texto expressa a opinião da ABRANDH a respeito da atual ”crise mundial dos alimentos”.
A esse respeito, ver www.clubofrome.org
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1. Um modelo de produção e comercialização das commodities alimentares
altamente baseado nos combustíveis fósseis. Com isso, a contínua elevação do
preço do petróleo, que passou de cerca de U$ 30.00 por barril, em 2003, para mais
de U$ 120.00 em 2008 teve impacto direto na inflação dos alimentos tendo em vista
o uso intensivo do petróleo e seus derivados em toda a cadeia: nos insumos, devido
aos fertilizantes e pesticidas químicos, no plantio em decorrência da mecanização
crescente e no transporte dos produtos.
2. Políticas agrícolas européias e norte-americanas protecionistas que
inviabilizam o acesso ao mercado de alimentos produzidos em países em
desenvolvimento. Em decorrência disso, muitos desses países, incapazes de
competir com uma agricultura altamente subsidiada e protegida por tarifas e outras
barreiras comerciais, passaram a ser compradores de alimentos. Como resultado,
hoje, com a inflação dos alimentos em alta, seus custos de importação vêm
aumentando assustadoramente, sem contar a fatura crescente da conta petróleo. As
conseqüências desses gastos nos orçamentos dos países são claras: diminuição de
recursos para a implementação de políticas públicas sociais básicas além de
pressão inflacionária nas suas economias que, por seu turno, desequilibra o
orçamento público. As principais vítimas são as populações pobres desses países
que gastam mais da metade de seus rendimentos para alimentarem-se.
3. A liberalização e a desregulação dos mercados são fatores que também vêm
contribuindo para aumentar a fome no mundo. O enfraquecimento dos Estados
nacionais, especialmente dos países em desenvolvimento, resultante das medidas
de desregulamentação amplamente preconizadas por organizações como o Banco
Mundial e o FMI. Tais medidas dificultaram a efetiva implementação de políticas
públicas de soberania e segurança alimentar e nutricional, tais como, a reforma
agrária, o fortalecimento da agricultura familiar, o abastecimento alimentar, a
formação de estoques de alimentos, as compras públicas, a extensão rural, a
realização de pesquisas e o desenvolvimento de tecnologias voltadas para a
agricultura familiar, dentre outras. O exemplo mais emblemático desse processo
devastador é o impacto do Tratado de Livre Comércio da América do Norte
(TLCAN/NAFTA) na alimentação básica dos mexicanos, especialmente na “tortilla”
de milho. Incapazes de competir com o milho americano, altamente subsidiado, os
mexicanos deixaram de produzir esse alimento básico e o país passou a ser
importador do mesmo. Com a recente inflação do milho, o preço da “tortilla”
aumentou em cerca de quatro vezes impossibilitando seu consumo por importantes
parcelas da população. A desregulação dos mercados globais também possibilitou o
crescimento do agronegócio e a livre atuação das Transnacionais da Cadeia agro alimentar (TNCs)que são hoje as grandes lucradoras da “crise da fome”, pois são
elas que controlam a cadeia, desde os insumos necessários à produção das
commodities alimentares até a sua comercialização. Ademais, as TNCs impõem sua
lógica de produção e distribuição destruindo, assim, os sistemas agrícolas locais
bem como os hábitos alimentares dos países em desenvolvimento. Esse processo
resulta não somente em desemprego crescente, mas, igualmente, no
desenraizamento de grande parte da população mundial rural que hoje se encontra
sem qualquer esperança de viver do que produz ou de ser absorvida pelo mercado
de trabalho das cidades. Como se não bastasse, a falta de regulamentação em nível
global tem possibilitado a especulação em torno dos alimentos. Diante da alta do
preço desses produtos, investidores têm apostado na manutenção dessa tendência
e, portanto, comprado nas bolsas de futuro de commodities. Essas operações, por
seu turno, reforçam o ciclo vicioso da inflação alimentar.
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4. Políticas irresponsáveis de soberania energética dos países desenvolvidos,
especialmente, da Europa (UE) e dos Estados Unidos (EUA) que, de um lado,
incentivam a qualquer custo, a produção de agrocombustíveis com produtos
oriundos de sua agricultura e, de outro, se negam a discutir a forma de produzir e
consumir alimentos. Preocupados unicamente em minimizar sua dependência em
relação aos combustíveis fósseis e buscando aumentar a autonomia no que diz
respeito aos agrocombustíveis, UE e EU têm implementado uma série de medidas
que vêm contribuindo para a alta do preço dos alimentos, especialmente daqueles
que são matéria prima para agrocombustíveis, como é o caso do milho para o etanol
americano e dos óleos de soja e canola para o biodiesel europeu. Além de ter
resultado no aumento direto do preço desses produtos, tais medidas apresentam
efeitos-cascata tendo em vista que esses produtos são insumos para outros bens
alimentares, tais como, carnes, ovos, leites e derivados. Ademais, tem-se observado,
nos Estados Unidos, a migração das culturas de soja e de trigo para o milho o que,
por sua vez, contribui para aumentar ainda mais o preço da soja e do trigo e,
consequentemente, os demais produtos de sua cadeia alimentar. O mais grave é
que essas políticas em momento algum questionam a necessidade de se alterar a
maneira como se produz e consome energia que é, na realidade, o cerne da crise.
Trata-se de um progressivo processo de substituição de uma fonte de energia pela
outra, do petróleo pelos agrocombustíveis. Os europeus e americanos parecem
pouco preocupados com a crise, pois cultivam a firme convicção de que, em breve,
deterão a tecnologia para agrocombustíveis de segunda e terceira gerações que,
provavelmente, os tornarão independentes em relação a países em desenvolvimento
produtores de energia a partir da biomassa, como, Brasil, Indonésia e Malásia.
5. Uma frágil solidariedade internacional associada à redução da ajuda ao setor
agrícola tem contribuído para o enfraquecimento da agricultura familiar dos países
em desenvolvimento. Segundo dados da OCDE, a Ajuda Pública ao
Desenvolvimento (APD) concedida pelos países mais ricos, se mantém em torno dos
0,3% do seu PIB há mais de 15 anos, longe de alcançar, portanto, a modesta meta
de 0,7% para 2015. Além disso, pouco ou nada tem sido investido no
desenvolvimento de pesquisas que combinem os conhecimentos locais e tradicionais
com o saber formal, que visam a desenvolver insumos e tecnologias agrícolas
apropriadas aos diferentes biomas e às distintas culturas existentes nos países em
desenvolvimento. Some-se a isso a fragilidade das políticas públicas de infraestrutura rural bem como de saúde, educação, crédito e assistência técnica. Isso tem
contribuído para a diminuição global do ritmo de crescimento da produtividade da
agricultura.
6. O enorme desperdício de alimentos é mais um fator estrutural da maior gravidade
num mundo onde milhões de pessoas ainda passam fome. Estima-se que cerca de
30% dos alimentos sejam desperdiçados durante as fases de colheita/criação/abate,
transporte, processamento, embalagem, armazenamento, distribuição, manuseio e
consumo. No Reino Unido, o Ministério do Meio Ambiente publicou, em 2007, os
resultados de um estudo que marcou as comunidades nacional e internacional:
naquele país, anualmente, são desperdiçadas 6,7 milhões de toneladas de
alimentos, ao custo de 200 a 400 libras por família, o que equivale a um terço de
todo o alimento consumido no país. Considerados todos os custos (transporte,
embalagem, manuseio, refrigeração, descarte, etc.) o desperdício custa 8 bilhões de
libras ao ano. No Brasil não é diferente: segundo o IBGE, em 1999, o país
desperdiçou 39 milhões de toneladas de alimentos, quantidade suficiente para
alimentar 19 milhões de pessoas. A essa quantidade de alimentos jogada fora é
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associada um imenso desperdício de água que contribui, por seu turno, para
encarecer ainda mais os alimentos. Com efeito, alimento também é água: um quilo
de carne bovina, por exemplo, “inclui” de 10 a 20 mil litros de água e um quilo de
arroz de mil a dois mil litros de água, consideradas todas as fases de produção.
Neste sentido, o desperdício de alimentos é também um gigantesco desperdício de
água e estes estão entre os maiores problemas que se apresentam para as
sociedades neste começo de século XXI.
A esses fatores estruturais somam-se outros que vêm agravar a crise, tais como: o
crescimento da demanda por alimentos vindo de países como Brasil2, China e Índia3, a
ocorrência de quebras de safra devido a más condições climáticas em países produtores
de alimentos (como é o caso da Austrália que é um dos maiores fornecedores de trigo) e a
desvalorização do dólar que faz com que outras moedas tenham seu poder de compra
aumentado, elevando, assim, a procura por alimentos (o dólar é a moeda utilizada para a
cotação das commodities). Como se não bastassem todos esses elementos, diante do risco
de desabastecimento, grandes países produtores de alimentos estão restringindo suas
exportações (Ucrânia, Argentina, Índia e Vietnam), o que contribui para elevar ainda mais a
inflação alimentar.
Diferentemente do que afirmam alguns analistas, que acreditam que a crise será resolvida
nos próximos 12 meses pelas mãos do mercado4, entendemos que a mesma é a expressão
de um complexo e profundo problema de iniqüidade global. Nos dias de hoje, a pobreza e a
miséria do mundo não conseguem mais ser “administradas” como até recentemente: a
fratura social está exposta e o mundo assustado. Tanto é assim que organizações
internacionais defensoras dos interesses das elites nacionais e globais, como o FMI, o
Banco Mundial, a OCDE e o Fórum Econômico Mundial estão se dando conta que
exageraram na mão e que algo precisa ser feito para conter os efeitos perversos de suas
políticas, especialmente diante de um futuro que se anuncia sombrio5. Com efeito, as
incertezas pairam tendo em vista que:
2
•
o preço do petróleo manterá sua tendência de elevação. Mesmo com a descoberta
de novas reservas, as mesmas encontram-se em localidades de difícil acesso,
encarecendo os processos de extração. O aumento do preço do petróleo, como foi
visto, tem impacto direto na inflação alimentar além de continuar pressionando a
expansão da produção de agrocombustíveis que, por seu turno, contribui para a
elevação do preço dos alimentos;
•
as conseqüências do aquecimento global – estiagens e inundações –
comprometerão a produção agrícola global, especialmente nos países que hoje são
No Brasil, nos dois últimos anos, mais de 20 milhões de pessoas saíram das classes D e E e alcançaram a
classe C, que se constitui, atualmente e em caráter inédito, o estrato social mais numeroso do país. São 86,2
milhões de brasileiros, o equivalente a 46% da população total (em 2005, a proporção era de 34%). Já as faixas
D e E, que representavam 51% da população em 2005, agora tiveram sua fatia diminuída para 39%. Isso é o que
revela a pesquisa O Observador Brasil 2008, feita pela financeira francesa Cetelem com o instituto de pesquisas
Ipsos Public Affairs. Na terceira edição da enquete, foram ouvidas 1.500 famílias em 70 cidades e nove regiões
metropolitanas do país em dezembro de 2007. Os entrevistados foram classificados não só pela renda, mas
também pelo nível educacional e pela posse de bens, este o item de maior peso. Ver
http://www.estado.com.br/editorias/2008/03/27/eco-1.93.4.20080327.31.1.xml
3
A titulo de ilustração, na China, o consumo per capita anual de carne passou de 20 Kg, em 1980, para 50 Kg
nos dias de hoje (FAO, 2008).
4
A esse respeito, ver entrevista à Carta Capital, em 11/05/2008, de Nouriel Roubini, professor da Universidade
de Nova York. No seu entendimento a solução passa pelo mercado: o ajuste se fará em pouco tempo na medida
em que os fazendeiros irão responder rapidamente a alta dos preços com aumento significativo da produção.
5
Nesse particular, é interessante observar a quantidade de análises alarmistas que essas organizações vêm
publicando nos últimos meses, como se nada tivessem a ver com isso.
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5
os mais vulneráveis à insegurança alimentar castigando ainda mais as populações
em situação de pobreza;
•
as reservas de água estão se esgotando, e o atual modelo de uso da água tanto nas
cidades como no campo é insustentável ambientalmente, o que irá representar um
sério entrave à agricultura, uma das principais consumidoras desse bem público;
•
a inexistência de uma organização pública internacional, supra-estatal, capaz de
regular a produção e comercialização dos alimentos, por meio de zoneamentos
agroecológicos globais, de critérios justos de comércio, de promoção de políticas
públicas que fortaleçam a agricultura familiar dentre outras medidas. A falta de
mecanismos regulatórios internacionais irá facilitar a expansão dos transgênicos que
encontrarão na crise uma excelente oportunidade para apresentar-se como solução
rápida e eficiente à insuficiência de alimentos; a falta de mecanismos regulatórios
também irá promover o enriquecimento crescente do setor financeiro e das
transnacionais da cadeia agro - alimentar, que são os grandes ganhadores dessa
crise. Os bancos devido à especulação nos mercados futuros das commodities e as
multinacionais pelo seu domínio da cadeia e que, portanto, se apropriam desses
ganhos;
•
a dificuldade dos países em desenvolvimento de promover uma aliança Sul/Sul que
seja capaz de efetivamente enfrentar os interesses de determinados setores
econômicos dos países desenvolvidos, tanto nas políticas comerciais como nas de
investimentos.
As respostas à crise podem ser de diversas ordens como se tem visto nos receituários
contidos em inúmeros documentos de organizações internacionais que vêm circulando
ultimamente, desde aumentar a eficiência da agricultura global até implementar, nos países
em risco de insegurança alimentar, redes de proteção social que aumentem o acesso aos
alimentos de consumidores pobres, urbanos e rurais. No entanto, essas medidas serão,
apenas, paliativas se não forem articuladas no bojo de um projeto global de
desenvolvimento6 que se paute, primordialmente, na garantia de direitos humanos, e no
caso em particular, do direito humano à alimentação adequada.
Recentemente, o Secretário Geral das Nações Unidas reuniu, em Berna, na Suíça, mais de
20 agências do Sistema ONU bem como a OMC e o Banco Mundial, para discutir a crise.
Infelizmente, além de superficiais, as medidas sugeridas ficaram, no geral, no campo das
ações compensatórias. Perdeu-se uma excelente oportunidade para dar início a um
processo de construção de um crescimento planetário com inclusão sócio-ambiental. Essa é
uma tarefa urgente diante da iminente barbárie que nos espreita. A miséria, a pobreza e a
violência social oriundas do processo de exclusão há décadas praticado no planeta, da qual
a crise dos alimentos é apenas uma de suas facetas, não são mais questões que afligem
somente os países em desenvolvimento; elas já estão presentes nas nações ricas que vêm
vivenciando, por exemplo, o esgarçamento de seu tecido social7, atos terroristas e revoltas
de jovens das periferias dos centros urbanos.
6
Entendemos que o “desenvolvimento” é um processo multidimensional que contempla as diversas dimensões
da vida em sociedade, a saber: econômica, social, ambiental, cultural, política, institucional, técnico - cientifica,
regional, comunitária etc. Nessa perspectiva, o “desenvolvimento” não comporta qualificativos.
7
Para Castel (2000), a precarização das relações de trabalho nos paises ocidentais tem levado ao que o autor
chama de “desafiliação”. Tal processo se desdobra em três características: a primeira é de desestabilização dos
estáveis: ou seja, os trabalhadores que ocupavam uma posição sólida na divisão do trabalho clássica e que são
expelidos dos circuitos produtivos. A segunda característica é a da instalação na precariedade que se verifica
com o trabalho aleatório e temporário bem como com o desemprego de longa duração. Por fim, a terceira
característica é a dos supranumerários, dos “sobrantes”, daqueles que são “inúteis para o mundo”. São as
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Como contribuição ao debate apresentamos, a seguir, alguns elementos que poderiam ser
levados em conta na construção de uma agenda global de desenvolvimento pautada em
direitos humanos:
1. Fortalecer a institucionalidade pública internacional de modo que seja capaz de
liderar a construção de um projeto global de desenvolvimento pactuado entre
governos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil, capaz de promover
a regulação global do mercado de sorte a realizar uma distribuição eqüitativa e
sustentada das riquezas geradas no mundo e, assim, garantir a realização dos
direitos humanos;
2. Fortalecer os Estados nacionais nas suas três dimensões: executivo,
legislativo e judiciário. Somente Estados fortes e estruturados poderão
implementar políticas públicas efetivas e consolidar a democracia. Isso significa por
em marcha medidas de valorização da função pública, de formação e construção de
competências de funcionários públicos, de adoção de mecanismos de accountability,
dentre outros. É importante ressaltar que os Estados nacionais devem propor ações
de enfretamento às causas da crise na perspectiva de suas obrigações, assumidas
internacionalmente, de garantir os direitos humanos e uma vida digna a suas
populações, respeitando inclusive suas obrigações extraterritoriais. É de suma
importância que os Estados nacionais reafirmem os seus compromissos de cumprir
suas obrigações assumidas com a ratificação de tratados internacionais de direitos
humanos;
3. Reconhecer que o acesso pleno a uma alimentação adequada é um direito
humano, o qual os Estados nacionais devem respeitar, promover, proteger e prover
para toda a população. Criar e fortalecer mecanismos, internacionais, regionais,
nacionais e locais para que possa ser exigida a realização do direito humano à
alimentação adequada e a superação da violação a esse direito;
4. Fortalecer a democracia participativa global, envolvendo os movimentos
sociais e as organizações da sociedade civil nos principais centros de decisão,
condição indispensável à sustentabilidade sócio-política do desenvolvimento global.
Considerar, em particular, a representação dos movimentos sociais que representam
as populações mais afetadas pela violação dos direitos humanos, em especial do
direito humano à alimentação adequada e as organizações da sociedade civil que
defendem este direito;
5. Desencadear imediatamente medidas que alterem as formas de produzir e
consumir, tais como, políticas (i) de fortalecimento do transporte público e de
restrição do transporte individual; (ii) de combate ao desperdiço de água, alimentos,
energia e outros bens de consumo; (iii) de descentralização e localização da
produção e comercialização de alimentos e de energia; (iv) de ampliação de fontes
renováveis de energia, como a solar e a eólica; (v) de investimentos maciços em
ciência e tecnologia voltados para a geração de emprego digno preservando o meio
ambiente bem como as culturas locais; (vi) de segurança e de soberania alimentar e
pessoas que não têm lugar na sociedade, que não estão integrados, ou seja, que não estão inseridos em
relações de utilidade social, relações de interdependência com o conjunto da sociedade. A identidade pelo
trabalho está abalada o que resulta num processo de “desafiliação”, de “déficit de integração”: A degradação do
status ligado ao trabalho é acompanhada da fragilização dos suportes relacionais que, além da família,
possibilitam a inserção social (relações de vizinhança, participação em sindicatos, partidos e associações).
Diante desse quadro, a questão é: como instaurar uma forte relação de pertencimento social para essas
populações que a globalização selvagem empurra para as margens?
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nutricional sustentáveis; (vii) de informação e conscientização dos consumidores,
urbanos e rurais, sobre sua responsabilidade na produção insustentável de bens e
serviços; (viii) de combate à concentração de renda, terras e insumos; e (ix) de
proteção aos recursos genéticos;
6. Ampliar, quando não implementar, sistemas públicos de proteção social nos
países em desenvolvimento que incluem políticas de previdência, saúde,
saneamento, assistência, educação, alimentação adequada e nutrição, habitação,
trabalho e renda, segurança pública e promoção da igualdade étnica, racial, de
gênero e de orientação sexual. Essas políticas devem ser elaboradas e
implementadas de maneira coordenada e na perspectiva dos direitos humanos, ou
seja, com a definição de procedimentos e rotinas que garantam o apoderamento e a
participação ativa e informada dos titulares e a implementação de instrumentos
acessíveis para a cobrança dos direitos previstos;
7. Ampliar o compromisso público internacional e destinar expressivos recursos
para políticas públicas de desenvolvimento agrário que fortaleçam a
agricultura familiar por meio de medidas de acesso à terra e território, à água e
sementes crioulas; de crédito; de infra-estrutura e serviços; de educação,
capacitação e assistência técnica que articulem o conhecimento formal com as
culturas e os saberes locais; de incentivo ao associativismo e ao cooperativismo; de
promoção da agroecologia e da economia solidária; e de controle de toda a cadeia
alimentar, da produção à distribuição, dentre outras. A Ajuda Pública ao
Desenvolvimento deve, também, fortalecer as organizações das sociedades civis dos
países em desenvolvimento como forma de contribuir para a consolidação de
espaços públicos plurais e a participação ativa, democrática e informada;
8. Estreitar a cooperação Sul/Sul, em termos econômicos, políticos, sociais e
culturais, de modo a reequilibrar a geopolítica global em favor dos países em
desenvolvimento.
Por fim, acreditamos que a pactuação global de um “outro mundo” que coloque a dignidade
da pessoa humana como foco central do desenvolvimento econômico e social é uma tarefa
que se impõe a todas e todos os habitantes do planeta. Pela ótica dos direitos humanos o
desenvolvimento deve ser um processo centrado na pessoa humana cujo objetivo primeiro é
respeitar, integralmente, a sua dignidade e suas potencialidades. Alguns dirão que pensar o
desenvolvimento numa perspectiva global e de direitos humanos é ingênuo ou utópico. No
entanto, é a utopia que nos faz avançar, conforme tão bem ilustra Eduardo Galeano: “Ela
está no horizonte – me diz Fernando Birri. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois
passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe,
jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.” (As palavras
andantes, 1994)
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(www.abrandh.org.br)
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Referências
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resumida. Brasília, DF, 2005. Disponível em: http://www.abrandh.org.br/downloads/cartilha.pdf
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Disponível em: http://www.rts.org.br/artigos/a-falencia-de-um-modelo
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__/04/2008. Disponível em:
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CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis,
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