Santos Dumont.p65
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DANS L’AIR A VIA SANTOS-DUMONT OU SANTOS-DUMONT/O FILME Mario Drumond Editor mcmxcvi Copyright©1995 Mario Drumond Advertência Este é um original preparado pelo autor para futura edição, comercial ou fora-de-comércio, e não o projeto gráfico de um livro. . Instruções para impressão em papel (autorizada pelo autor para uso exclusivo do leitor e sem fins comerciais): Formato: A4 Papel: alta alvura 75 g/m2 (papel comum de copiadoras) Impressão: P&B - frente e verso Capa Papel: 180 g/m2 (branco) Impressão: a cores ou P&B (opcional) - frente Última capa Papel: 180 g/m2 (branco) s/ impressão Encadernação: espiral transparente ou colada à quente (opcional) Proteção externa (capa e última capa): acetato transparente Esta página não precisa ser impressa. Se o for, será o verso da capa. DANS L’AIR A VIA SANTOS-DUMONT OU SANTOS-DUMONT/O FILME UM ROTEIRO DE INVENÇÃO para filme de longa metragem Mario Drumond Rio de Janeiro, 22 de abril de 1995 Registrado na Bibilioteca Nacional Prot. 002791 de 22.05.95 Reg. 98.001 livro 139 fls. 22 “Quando a lenda supera a realidade, imprima-se a lenda.” (in “The man who shot Liberty Valence”, de John Ford) Considerações do autor A narração de uma história real através da linguagem cinematográfica impõe, necessariamente, a utilização de recursos de estilo e de construção para viabilizar um filme como esse, que é proposto para uma produção de grande porte destinada ao grande público internacional do cinema comercial. O autor optou por estruturar esse roteiro fazendo da verdadeira e fantástica obra de invenção, projeto e construção aeronáutica pioneira de Alberto Santos-Dumont, a sua espinha dorsal. Essa obra magnífica de gênio criador e experimentação cientifica, realizada toda ao longo de uma só década, foi fartamente documentada pela imprensa da época, e está descrita em minúcias nas diversas e excelentes biografias dedicadas ao seu autor, com que a História nos tem presenteado. E foi aqui integralmente respeitada em sua verdade histórica, até porque não há motivos para não fazê-lo. O grande mistério que resulta da análise aprofundada dessas biografias, seria a explicação de como um homem só, sem parcerias técnicas ou científicas conhecidas, pode realizá-la toda em tempo tão breve e em tal magnitude. Nem mesmo os recursos financeiros com os quais realizou tão grande e vitoriosa obra numa competição internacional da qual participavam as mais poderosas nações da época - ficam convincentemente explicados pela disponibilidade propiciada por uma herança, por maior que ela fosse. Todos os seus biógrafos ficam impossibilitados de desvendar esses mistérios, uma vez que o próprio SantosDumont destruiu toda a sua documentação, e, com isso, as revelações nelas contidas. Eis aí o grande mote para a liberdade narrativa que o cinema permite aos seus autores, pela necessária inclusão dos ingredientes de fantasia, magia, licença poética, dramaticidade, intriga e ficção, que fazem dessa arte a grande atração que é para o seu imenso público. A vida do homem Alberto Santos-Dumont, em si, e sua forte componente trágica, não poderia, evidentemente, ser desprezada nesse roteiro. E a personagem, tal como existiu, é perfeita para a construção de uma boa trama cinematográfica. Porém, a concisão que o cinema impõe à narrativa, obriga ao roteirista algumas alterações e criações ficcionais (fakes) na sua ambientação na época e nas estórias das personagens coadjuvantes, das quais o autor utilizou-se para dar relevo a grandeza da sua principal personagem. Mas este roteiro é, antes de tudo um projeto de vingança, no melhor sentido que essa palavra possa ter. Vingar Santos-Dumont é, de fato, uma emergência histórica da nacionalidade, além de se fazer justiça a verdade histórica universal. Os norte-americanos criaram a lenda dos irmãos Wrigth e impuseram-na ao mundo pela força de seu poder de comunicação. Essa lenda, porém, não resiste nem às mais breves e superficiais verificações isentas da História. E nesse caso pelo menos, a realidade supera, e em muito, a lenda que ainda tentam imprimir. PERSONAGENS PRINCIPAIS (pela ordem de entrada) Alberto Santos-Dumont (SD) - Pai da Aviação Jorge - sobrinho de SD Georges - jornalista-caricaturista e melhor amigo de SD Adrien - Editor-chefe do jornal "Les Temps" August - Mordomo de SD Embaixador Antonio Prado (Pradô) - Embaixador do Brasil na França e amigo de família Lachambre e Machuron - mecânicos-proprietários de uma oficina de balonismo Deutsch de la Meurthe e Príncipe Bonaparte - incentivadores da pesquisa aeronáutica Chapin - mecânico-chefe da equipe de SD Archdeacon - incentivador da pesquisa aeronáutica Gasteau e Dazon - mecânicos da equipe de SD Princesa Izabel - Princesa do Brasil exilada em França Dr José Carlos Rodrigues - da alta sociedade carioca Lazare - funcionário e depois diretor do jornal "Les Temps" Levavasseur - mecânico de motores Aida D'Acosta - bailarina e atriz Cap. Ferber - militar e aeronauta francês Voisin - aeronauta francês Advertência Considerando-se a superstição numerológica em relação aos números 8 e 13, muito respeitada pelos nautas em geral, houve por bem o autor deste roteiro - à maneira de Santos-Dumont ao numerar seus projetos aeronáuticos - saltar as Sequências que receberiam tais perigosos números. PARTE 1 A CONQUISTA DA TORRE (NA NOVA BABEL) PARTE 1 O garçom entra na ante-sala do apartamento e começa a arrumar a mesa do café. Jorge observa-o. SEQUÊNCIA 1 JORGE - Não vejo meus cigarros... Intenso tiroteio; balas zunindo no cinema escuro. Sons e ruídos de homens armados correndo, atirando e gritando. A câmera inicia em macro no olho direito da figura desenhada no cartaz da Revolução de 1932 (acima). Aos poucos vai abrindo o ângulo, mostra todo o cartaz (uma bala atinge a testa da figura do cartaz) e em seguida o cenário de uma rua de cidade do interior, na qual tropas antagônicas travam acirrados combates. Rebeldes constitucionalistas fortemente armados correm em frente ao cartaz, escondem-se numa barricada de tapumes e carroças reviradas, e respondem ao fogo. A infantaria varguista, que os perseguia, protege-se como pode, e replica. Fumaça, granadas, tiros, guerra. SEQUÊNCIA 2 Vista aérea (olho de pássaro) de uma praia paradisíaca do litoral brasileiro orlada por uma pequena e pacata vilazinha. (Legenda: Praia do Guarujá, Santos, 23 de julho de 1932) A câmera penetra no interior do Hotel de La Plage. Movimento tranqüilo de portaria. Sobe a escada junto com garçons e camareiras apressados nos afazeres matinais. Entra num corredor e segue um garçom empurrando um carrinho de café-da-manhã até o apartamento número 8. O garçom bate na porta. Jorge Villares abre-a, ainda arrumando sua gravata. JORGE - Entre, por favor. O GARÇOM - Estamos sem cigarros, doutor Jorge. Após o movimento da manhã, posso buscá-los à venda do português. JORGE - Obrigado. Eu o chamo, se precisar. (e dá ao garçom uma pequena gorjeta) O garçom agradece e sai. Jorge pega um envelope, que veio junto aos jornais na bandeja do café, endereçado ao “Ilmo Sr Alberto Santos-Dumont”. Lê o remetente: “Governador Pedro Manuel de Toledo, São Paulo, Capital”. Ao fundo a porta do quarto abre-se e surge Santos-Dumont, ainda no desfoque, aproximando-se, entrando em foco, dando o laço no cinto de seda de um fino robe-de-chambre. Está envelhecido, mas com bom humor e banho recém tomado. Jorge interpela-o. JORGE - Olá, tio Alberto. Como se sente? Parece estar bem hoje! SD - Razoavelmente, Jorge. Os pesadelos começam a deixar-me em paz. Dormi bem e meu apetite voltou. O que temos para o café? JORGE - O de sempre... A novidade é esta carta do Embaixador Pedro de Toledo. SD - Já a resposta? Estou curioso... (pega o envelope das mãos de Jorge e senta-se na poltrona frente à mesa do café. Começa a abrir o envelope). JORGE (intervindo e, carinhosamente, tomando-lhe a carta) SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND - Ahn, ahn! Uma coisa de cada vez, tio. Primeiro vamos atender ao seu belo e raro apetite matinal. JORGE - Mas, quem ficaria com o Senhor? A essa hora será difícil conseguir uma camareira... Jorge põe a carta sobre a mesa e serve cafécom-leite para ambos. SD, com alguns muchochos, concorda passivamente com o sobrinho, e passa geléia no pão. SD (interrompendo-o) - Meu caro sobrinho! Sei que estou inválido e perturbado, mas não sou tão perigoso assim. Enquanto saboreio mais uma torrada com essa deliciosa geléia e releio a carta do Toledo, Você já foi e voltou! Fique tranqüilo; seu tio não é um menino traquinas... E traganos guloseimas da venda. É para as camareiras. Tem sido gentis conosco. Vá... JORGE (após sorver de um só gole o suco de laranja, pega novamente a carta) - Posso ler para o Senhor? SD - À vontade, sobrinho. Não é nenhum segredo de estado. JORGE (aquiescendo apesar de não completamente convencido) - Está bem, meu tio, mas o Senhor não vai sair dessa poltrona até que eu volte. Combinados? JORGE (rasga o envelope e retira a carta colocando-a diante dos olhos) - “A Santos Dumont, o povo paulista, por seu gover nador, agradece as eloqüentes palavras...etc “ (lê toda a pequena carta) SD (com um sorriso, e passando geléia em outra fatia de pão) - Tenho muito o que fazer diante desta mesa, querido sobrinho. De fato, meu apetite hoje está surpreendente. SD toma seu café-com-leite, indiferente às palavras lidas pelo sobrinho. Jorge vai até a escrivaninha, abre uma gaveta, retira sua carteira, confere-a e coloca-a no bolso do casaco. Pega o chapéu e dirige-se à porta. SD - Muitos elogios... coisas de políticos. (comenta, após devorar outra fatia de pão com geléia) JORGE - São dois minutos e já estou de volta. Lembre-se da sua promessa! Sem sair dessa poltrona. JORGE - Porém parece-me sincera, tio Alberto. (e procurando alguma coisa no bolso do casaco) - Diabos, meus cigarros. SD sem poder responder, com a boca cheia de torrada com geléia, faz um gesto com a mão para que o sobrinho saia logo. SD - Ainda o velho vício... JORGE - É verdade, tio Alberto... E o garçom só vai poder buscá-los às dez. Bem, o que fazer! Corte para Jorge caminhando pela rua, de chapéu. Corte para SD tomando café-com-leite. Ele tenta alcançar a carta do outro lado da mesa, mas não consegue. Com esforço levanta-se da poltrona para contornar a mesa. Ouvese, então, um ruído distante de motores de avião. Ia pegar a carta quando percebe o ruído e paralisa o gesto para tentar ouvi-lo SD - Porque não vai Você mesmo buscá-los à venda, Jorge? Não chegam aos 500 metros uma boa caminhada até lá... Não fosse meu lamentável estado de saúde eu o acompanharia; o dia parece excelente! 10 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME melhor. O ruído aumenta progressivamente. SD volta-se na direção da janela, e caminha até lá para observar as aeronaves. vendo três aeronaves de guerra passando bem à sua frente, voando em direção a Santos. Seu olhar é apreensivo e seu humor não é mais o mesmo. As aeronaves distanciam-se sob seu olhar reprovador e, bem ao longe, despejam bombas sobre a cidade de Santos. As violentas explosões são ouvidas, reboando, em terríveis ecos. Corte para Jorge, na rua, ouvindo também os motores aéreos. Pára pensativo e indeciso. Continua ou retorna? Decide continuar, mas a passos rápidos, bem rápidos. Corte para SD chegando na janela. Vê três biplanos vindos do norte, voando em baixa altitude. Corte para Jorge, ainda na venda, aguardando o seu troco. Olha assustado em direção às explosões. O Português, ainda de costas, fazendo o troco na caixa registradora, apenas balança a cabeça, sem se virar. Corte para Jorge entrando afobado na venda. Agitado, pede seus cigarros e já tira a carteira e conta o dinheiro. O português, dono da venda, porém, não tem pressa. Corte para close do rosto de SD atônito, apoplético, furibundo. O PORTUGUÊS - Estes aeroplanos, estes aeroplanos... já andam por toda parte, ora pois... SD (balbuciando, trêmulo) - Eles... eles... não podem! Eles, não podem..., eles, eles, não podem, não podem... JORGE (afobado, entregando o dinheiro) - Por favor, dois maços de Continental; e seja rápido, eu lhe peço. SEQUÊNCIA 3 Sobre o seu rosto aflito uma sequência de O PORTUGUÊS (pegando o dinheiro, fusões de bombardeios aéreos se sucedem, contando-o e arrumando-o calmamente) com tiros, bombas, explosões, estilhaços, - Vamos com calma, meu senhor, o dia nuvens de fumaça. Começa com primitivos apenas começa... (os ruídos dos motores biplanos da primeira guerra mundial, passa aumentam) - Porque tanta pressa, homens?!... por pesados bombardeiros e caças da (berra o português para os barulhentos Segunda Guerra, pelos caças-a-jato e os Baviões, como se os pilotos pudessem ouvi- 52 no Vietnam, jatos de última geração lo) despejando mísseis no Iraque; hospitais, escolas, JORGE (apressando-o, cidades, tudo voando nervoso) pelos ares em estilhaços e - Senhor, senhor... fogo; os Quatro Cavaleiros do Apocalipse surgem O PORTUGUÊS num fogo horrendo, - Já me vou, já me vou, já queimando florestas, me vou...(entrega a Jorge os ardendo edifícios, aos sons dois maços de cigarros e vai de tiros, explosões, chuvas em direção ao fundo da de bombas, metralhadoras; venda onde está a caixa fumaça, destruição, registradora para fazer o mortes; tudo passando troco) ...- Já trago-lhe o diante do olhar troco. ensandecido de SD, que, Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse às vezes, surge e Xilografia de Durer Corte para SD na janela, desaparece em meio às 11 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND fusões sempre balbuciando “Eles não podem!, eles não podem!, eles, eles...”, até o desfecho de tudo, numa cataclísmica explosão nuclear, e o seu monumental cogumelo abrindo espetacularmente o poderoso raio de devastação, num tremendo e sonoro reboar. Ribeirão Preto, 20 de julho de 1880) Ao fundo, muitas crianças, sons, ruídos e música de festa na roça. A câmera aproxima-se lentamente do centro incandescente do cogumelo atômico enquanto o som e a imagem do rosto de SD vão diluindo até o desaparecimento. Tudo é pura luz e silêncio. Ouve-se uma voz infantil. ALBERTINHO (categórico) - Voa! A CRIANÇA MESTRE (em off, pois a câmera continua em Albertinho) - Albertinho, homem voa? E sai em corrida desabalada, separando-se do grupo de crianças, correndo por entre as pessoas e arranjos da festa ao ar livre em direção à casa-grande de fazenda, a poucos metros de uma bela e grande gameleira. À sombra dela as crianças brincavam de “seu mestre” na festa de aniversário de Albertinho. SEQUÊNCIA 4 (plano-sequência/sem cortes) O foco da câmera sai da pura luz, que revelase o centro de uma branca nuvem no céu, e desce lentamente para a terra durante o tempo das falas infantis. A câmera eleva-se, passa por cima da copa da árvore numa grua alta, e acompanha, do alto, a trajetória do pequeno Albertinho até que ele abrace as pernas de seu pai, que vem saindo da casa. Em seguida, passa pelos telhados do grande casarão e mostra, por trás da casa, os imensos cafezais sem fim. Ainda em movimento contínuo a câmera vai subindo seu foco para o céu, até às nuvens. Entra a titulagem: CRIANÇA MESTRE - Tamanduá voa? CRIANÇAS EM CORO - Não voa! CRIANÇA MESTRE - Macaco voa? DANS L’AIR CRIANÇAS EM CORO - Não voa! A VIA SANTOS-DUMONT CRIANÇA MESTRE - Pato voa? OU SANTOS-DUMONT/O FILME CRIANÇAS EM CORO - Voa! SEQUÊNCIA 5 CRIANÇA MESTRE - Homem voa? No mesmo céu, como se não houvesse corte, ouve-se o ruído de um primitivo motor de explosão a petróleo, aproximando-se por trás do espectador. De repente, corta a tela o dirigível SD N 6, em ângulo surpreendente (foto), UMA VOZ SOLITÁRIA DE MENINO (Albertinho) - Voa! Todas as crianças riem e debocham. A câmera está no rosto tímido e desconcertado de Albertinho, de sete anos de idade. (Legenda: Corte para a câmera no próprio dirigível, focalizando, de frente, o jovem SD, que opera 12 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME Paris, 20 de outubro de 1901). Um “foca” aproxima-se. O “FOCA” (o jovem Lazare) - O Senhor Adrien pediu-me para avisá-lo que o espera em seu gabinete. GEORGES - Obrigado, rapaz. Georges põe a caricatura dentro de uma pasta de cartolina, levanta-se e sai por entre o tumulto de oficiais e máquinas gráficas em plena função do dia, na apertada oficina do “Le Temps”. A câmera acompanha-o até a porta envidraçada do editor onde se lê “ADRIEN HÉBRARD, EDITEUR”. Bate e abre a porta. Adrien está aos berros num primitivo aparelho de telefone. "...corta a tela o dirigível SD Nº 6 em ângulo surpreendente." complicados sistemas de contrapesos e manetes de comando, com movimentos precisos, equilibrando-se, com facilidade, na pequena barquilha da aeronave. ADRIEN (aos berros) - Sim, sim, já ouvi,...já ouvi! (e desliga o aparelho lançando maldições). - Malditas máquinas! (acalma-se e indica uma poltrona do seu entulhado gabinete a Georges) Sente-se, Georges. (e, indo direto ao assunto) - A Comissão Julgadora hesita em conceder Corte para a câmera no solo da cidade de Paris enquanto o Número 6 circunda a Torre Eiffel. Bengalas e chapéus agitam-se e são jogados ao alto nos aplausos do povo aglomerado. (foto). O POVO DE PARIS (aplaudindo) - Viva “le petit Santos”! - Viva “le petit Santos”! Num certo momento (o momento exato dessa foto), o quadro “congela” e a câmera aproxima-se do Número 6 ao lado da Torre Eiffel. Ao enquadrá-los, a cena estática fica em P&B. SEQUÊNCIA 6 (O "Le Temps") A câmera volta a abrir o ângulo e vai mostrando a foto P&B estampada na primeira página do jornal "Le Temps", que está na mesa do jornalistacaricaturista Georges Goursat. O desenhista está dando os últimos retoques na caricatura de SD (ao lado). Ao terminá-la, ele a assina: Sem. (Legenda: "...Viva le Petit Santos! Viva le Petit Santos!" 13 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND o Prêmio Deutsch ao nosso “petit Santos”. Sinto o cheiro do velho chauvinismo francês... usá-la em seu favor. Mas preserva princípios mais comuns aos santos e aos ingênuos. Sou testemunha de que ele joga limpo e só descansará quando estiver convicto de que foi cumprida a missão que o destino lhe impôs. GEORGES - Você soube que Alberto abriu mão do dinheiro do Prêmio em favor de sua equipe de mecânicos e dos operários pobres de Paris?.... ADRIEN - Você e ele cultivam uma boa amizade... ADRIEN - Sim, ele foi esperto. Eis que o nosso herói, além de engenhocas e dirigíveis, entende também de publicidade, não? A opinião pública ficou toda com ele. GEORGES - Sim, de fato desde que Alberto começou suas aventuras em Paris, despertou-me uma dupla curiosidade: a do jornalista e a do caricaturista. Comecei a acompanhá-lo de perto e tornei-me seu amigo pessoal. É um gentleman, um bon vivant refinado e discreto apesar de toda a publicidade que desperta. É também uma pessoa reservadíssima... GEORGES - Não é isso. Alberto não age por meio de artimanhas e truques. Seu desprendimento é sincero. Se quisesse, estaria multimilionário só com as patentes que legou ao domínio público... ADRIEN (em tom solene e circunspeto) - Meu caro Georges, posso introduzir-lhe num segredo que não pode sair desta sala? ADRIEN - Eis aí, meu caro Georges, um caso raro, raríssimo! Fale-me mais sobre ele. GEORGES (um pouco desconcertado) - Se é algo que eu possa ajudar... GEORGES - Herdou fortuna suficiente para viver bem e inventar o que quiser. Pode ser considerado louco ou gênio. Essas virtudes costumam trazer consigo o sentimento de predestinação. Creio que, interiormente, Alberto acreditase um predestinado. Comporta-se como se sua missão fosse dada pelos deuses, que o enviam à Terra para ensinar os segredos da aeronáutica. Só por isso vive, pensa, estuda, gasta e trabalha. Mulheres, farras, finanças, patentes, heranças, são para os mortais comuns. Para ele a luta e o diálogo é com os deuses. Uma espécie de Aquiles ou Prometeu moderno, protegido por uma facção do Olimpo e combatido por outra. Suas armas são o talento para a mecânica, a audácia, o dinheiro e, é claro, a publicidade. Dessa última intui bem a sua importância, e como ADRIEN - O Herald de Nova York mandou um repórter para acompanhar o nosso “petit Santos”. Há tempos desconfio desse interesse do Bennett pela viação aérea. De repente, tornou-se um mecenas do metier! Gasta fortunas com prêmios, financiamentos, experiências, o diabo. E Gordon Bennett não preserva, com a publicidade e a imprensa, os mesmos princípios que o seu amigo; e muito menos quanto ao dinheiro! Acionei meu agente em Nova York para saber o que se passa na cabeça dele. Ontem recebi esse dossier. Bennett está investindo pesado; contratou estudiosos e doutores de História da Civilização para desenterrar tudo quanto fora tentativa humana de alçar-se aos ares com ajuda de máquinas e outros artifícios. O que 14 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME tenho aqui é apenas um resumo. Bennett quer chegar? Georges faz uma expressão interrogativa Mostra o espesso dossier a Georges que começa a examiná-lo f o l h e a n d o - o superficialmente. ADRIEN (prosseguindo) - Conhece meu faro para notícia, uma espécie de sexto sentido no qual sempre confio. Há dias, visitou-me o Coronel Charles R e n a r d . Delicadamente sugeriu-me atenção maior para as experiências dos franceses na aerostática e, à sua maneira, queixouse do excesso de publicidade que temos dado ao seu amigo. Fez a mesma coisa no L’Illustration, no Petit Journal, no Figaro, e, em outros jornais. Com o dossier do Herald, o que eu suspeitava confirmou-se: começou a batalha chauvinista, entre as nações, para disputar a glória da primazia na conquista dos ares. E as suas patentes, é claro. Alemães, ingleses, franceses, russos, italianos e americanos já estão nela, Georges, e apostando tudo o que têm. Bennett está preparando o troféu para os americanos. E o coronel Renard o quer para os franceses. Todos se mexem, percebeu? ADRIEN (continuando em off sobre a iconografia citada, em imagens estáticas ou em movimento animado) - Georges, eles foram longe nessa pesquisa. Rebuscaram os antigos textos do Mahabharata, onde se lê que imensas aeronaves povoavam os céus cobrindo grandes distâncias. Foram aos chineses e seus planadores de alguns séculos antes de Cristo. Aos mitos gregos de Ícaro e deuses alados; à idade média com suas bruxas voando em cabos de vassouras, e monges beneditinos em planadores; resgataram histórias de um alemão exibindo-se em vôo planado perante o imperador no século XV; Roger Bacon e Leonardo da Vinci com suas idéias visionárias; um saltimbanco atirando-se do Palácio Saint Germain, diante de Luiz XIV e sua corte; máquinas e inventos de toda espécie; barcas voadoras; pernas e cabeças quebradas; tudo com detalhes, documentos, testemunhos. Nos dois últimos séculos, a coisa cresce e se espalha pelo planeta com todo o tipo de experiências inacreditáveis. Até um outro brasileiro voador, um tal Bartolomeu Gusmão, localizaram em Portugal no Século XVIII, a tentar vender ao rei barcas voadoras de guerra. (e, em in) - Hoje, onde tem alguém tentando voar nalguma máquina louca, tem alguém do Herald bisbilhotando. E o que o Herald publica de tudo isso? Nada! Ou quase nada! Uma ou outra notícia, que todos nós publicamos. Então me pergunto: onde GEORGES - Talvez, mas ainda não o meu papel nessa história. ADRIEN - Sim, hoje acordei com uma nova "... eles foram longe nessa pesquisa." 15 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND idéia e o meu sexto sentido a aprovou. Você passa a ter uma saleta exclusiva, com chaves na porta, na escrivaninha e no armário. Vai acompanhar de perto o seu amigo e suas aventuras aéreas. Algo me diz que o “petit Santos” é que vai decidir essa parada. Ele é o homem! E, pensando bem, seria o melhor para todos nós: resolveria essa pendenga idiota e pueril de quem, diabos, foi o primeiro a voar com uma máquina, e capaz de dirigila. Nem franceses, nem ingleses, nem americanos, nem italianos, nem alemães, nem russos: - um brasileiro! Não seria perfeito? E é só o que os brasileiros desejariam; - a glória! Nós outros queremos essas máquinas para nos metralharmos mutuamente, e incorporar os céus aos sangrentos campos de batalha. E ganhar dinheiro, meu caro, muito dinheiro, deixando as demais nações a reboque de patentes bem asseguradas. (e, refletindo) Diga-me, Georges, ele é comunista? Essas idéias de patrimônio da humanidade para o saber intelectual, distribuição de dinheiro para operários... Li coisas do gênero em recentes manifestos de comunistas... vem a calhar! Espero que haja aumento de salário e despesas pagas, Alberto é habitué do Maxim’s... ADRIEN - Sim, mas com moderação. Você sabe que o "Le Temps" nunca foi grandes coisas em suas finanças. Cá estão as suas chaves. Na escrivaninha encontrará uma cópia do dossier do Herald. E sigilo total sobre tudo! Vou fazer saber que o promovi a redator- assistente. GEORGES (pegando as chaves) - Negócio fechado, chefe. Ah, aqui está a caricatura do jornal de amanhã; o que acha? ADRIEN (olhando atentamente o desenho) - Perfeita, Georges! Vamos guardá-la para depois da decisão da Comissão Julgadora. Publicá-la agora seria contraproducente. Falei com o Deutsch, o Aimé e o Bonaparte. Apesar das forças contrárias, o provável é que o prêmio venha para o nosso herói. E que o merece; porque não? Mas lembre-se: estamos em França, a velha, boa e madrasta França, onde o importante é preservar as aparências... Bem, ao trabalho. (cumprimentam-se) GEORGES (interpelando risonho) - Nem de longe, Adrien. Já disse o que ele é, ou acredita ser: um predestinado. Pelo seu comportamento estaria mais próximo até de um monarquista do que de um republicano. Talvez nem saiba da existência de Marx, Engels e seus discípulos... SEQUÊNCIA 7 Por volta das duas da tarde, Georges caminha pelo Champs Elysées em direção à rua Washington. Entra num luxuoso prédio de apartamentos grã-finos e dirige-se até a porta do número 3 do andar térreo. Toca a campainha. August, o mordomo austríaco de SD, atende com solicitude e o introduz no hall. ADRIEN - Pois bem, Georges, quero que Você me traga a vida dele nos detalhes. Vou pôr um fotógrafo para acompanhá-lo. A partir de hoje o "Le Temps" vai cuidar mais desse assunto. Minha aposta, porém, é no “petit Santos”. Por isso quero-o inteiro; e guardado a sete chaves, para a hora certa! Enquanto isso vou administrando os concorrentes, os políticos e os militares. Concorda com o trabalho? Descrição cenográfica: o hall é decorado com quatro litografias de Debret e duas de Rugendas, mostrando aspectos do interior do Brasil, e um conjunto de móveis feitos em jacarandá da Bahia, composto de um cabideiro, um pequeno canapé e um porta revistas, todos do mesmo e curioso artesanato brasileiro, e um tapete arraiolo, de centro, confeccionado em Diamantina, interior de GEORGES - Não vejo porque recusá-lo. Também acredito muito em Alberto. Perto dele me sinto na presença de um gênio; - um gênio da mecânica! Também para ele, esse trabalho 16 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME Minas Gerais, terra de Henrique, pai de SD. amigo, mas o perdôo. Aguarde-me ao salão. O Pradô lá se e n c o n t r a . Também recusou meu convite. Mandarei servir sobremesa a Vocês e logo estarei lá para o licor. August, leve o Sr Georges até o salão. August pede a Georges que o aguarde. Desaparece por uma porta e, alguns segundos depois, retorna. AUGUST - O Sr Santos-Dumont vai recebê-lo na sala de jantar, Sr Georges. (e, baixinho no ouvido de Georges) - Por favor, não se assuste com o que vai ver. O senhor já conhece o patrão. O mordomo introduz Georges na ampla sala de jantar. Georges parece não acreditar no que vê. Sentado no alto de uma cadeira com os quatro pés de dois metros e meio de altura, frente a uma mesa de jantar igualmente pernalta, está o jovem SD, impecavelmente vestido e calmamente almoçando, com sua cabeça a poucos centímetros do lustre da sala. Uma escada, aberta ao lado da mesa, dá acesso a um dos criados que a sobe, temeroso e mal equilibrando a bandeja, para servir a sobremesa ao seu patrão. SD olha lá de cima a cara estupefata de Georges. G e o r g e s "Georges parece não acreditar a c o m p a n h a no que vê"... August saindo por outra porta e atravessando o largo corredor. Descrição cenográfica: o corredor é decorado com duas raras gravuras de Dürer (a calcografia Melencoliae, onde se vê um sábio medieval com seus instrumentos, a pedra filosofal e um quadro numerológico, ao fundo, no qual todas as somas dos números que o compõem, nas verticais, horizontais e diagonais, perfazem 34 e a famosa xilogravura alada dos “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”); uma sanguínea atribuída a Bosch (mostrando uma composição também alada e surrealista) e duas peanhas ao fundo, uma de frente para outra, a da esquerda sustentando um pequeno fauno de Rodin e a outra uma bailarina de Degas. SD - Como vai, Georges, por favor não se assuste e não tema. O metier obriga-me à convivência com as alturas. Aceita acompanhar-me? Há uma outra cadeira para um eventual conviva que, infelizmente, nunca aparece. O vinho está excelente e a comida... ora, Você já conhece as habilidades do meu valioso François. GEORGES (com a voz um pouco trêmula de pasmo) - Sinto declinar do convite, Alberto, mas hoje estou um tanto sem apetite... SD - Já esperava essas desculpas, meu caro Chegam até a porta do luxuoso salão de visitas, iluminado por grandes janelas envidraçadas, que dão para o Arco do Triunfo. Melencoliae - Calcografia de Durer 17 Descrição cenográfica: o amplo salão tem, no SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND centro da sua parede principal, uma das de três pequenos cálices de cristal. Coloca a pinturas mais apreciadas de Gauguin: a “Ta bandeja sobre a mesa de centro e sai. Prado Matete”, na qual o genial artista compõe, com o agradece, passa uma sobremesa a Georges as cores fortes dos trópicos e suas belas e pega a outra para si. morenas, uma requintada composição no estilo egípcio, com as figuras perfiladas e GEORGES (após provar um bom naco do dispostas coreograficamente no quadro; à seu doce) frente dela, na parede oposta, contracenam - E como vai o grande Brasil, essa terra que uma pintura de Rousseau, “O Por do Sol na todos cantam com os mais exuberantes Selva”, também de forte coloração e tema adjetivos e predicados? tropicalista, dois quadrinhos pontilhistas de Signac e um outro, também pequeno, de PRADO (também provando um naco do seu) Seurat, um gouache de Toulouse Lautrec e - Maravilhosa! Como sempre foi e será, meu duas sanguíneas, uma aquarela e um óleo caro Georges, maravilhosa! Quando teremos do pintor, seu conterrâneo e amigo, Elyseu a honra de recebê-lo lá? Visconti. Na parede do fundo, um altarzinho barroco, trazido de Cabangu, com um GEORGES pequenino oratório atribuído ao famoso - Talvez mais breve do que imaginamos, escultor que atendia Embaixador. Minha pela alcunha de irmã ordenou-se “Aleijadinho”. O freira e foi para um salão é mobiliado mosteiro em em três ambientes, Petrópolis. Está dois com jogos de encantada com o seu confortáveis sofás, país. Em breve um de couro e outro pretendo visitá-la. de veludo, ambos em tons e cores PRADO claras, feitos nas - Mas que bela Detalhe do Ta Matete de Gauguin mais finas capotarias notícia, Georges! de Paris, com respectivas mesas de centro, e Faço questão de visitá-la quando retornar ao o terceiro com uma mesa redonda de Brasil, se possível levando Você ao encontro carteado e seis cadeiras de palhinha. de sua irmã e das delícias tropicais brasileiras. Vai se sentir em pessoa no próprio paraíso, Antonio Prado está distraído lendo jornais e, acredite. ao perceber Georges, levanta-se para abraçálo. Ambos deixam as sobremesas e Prado oferece charutos. Georges aceita um e GEORGES caminham em direção à janela acendendo - Fico feliz em revê-lo, Embaixador. Fez boa os charutos. viagem? PRADO (após a primeira baforada) PRADO - Muito bem situado este apartamento de - Excelente, meu bom Georges, excelente! Alberto; bem diante do Arco do Triunfo. Vim no Lutéce! Também estou contente em vê-lo. GEORGES (também fumando e pensativo) - Sim, uma ótima escolha. Alberto não Entra o criado trazendo uma bandeja com descuida os detalhes. Seu gênio parece estar duas sobremesas servidas de torta de maçã sempre à procura dos símbolos em tudo o e sorvete, e a garrafa de licor acompanhada que faz. Aqui, ele quer conviver com o 18 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME símbolo do triunfo. Eis o nosso bom Alberto, o predestinado... Oh! ei-lo. Prêmio Deutsch. SD - Mas isso seria desnecessário, Pradô. Não quero tornar-me mais um problema às já combalidas finanças públicas de nossa pátria. SD entra no salão e começa a servir os cálices de licor. SD (brincalhão) - Amigos, vamos brindar a esse encontro. (serve a todos, brindam e bebem) - Pradô, vou pedir ao governo brasileiro que desafie a França em armas caso não me concedam logo esse prêmio. O que acha? Não é uma afronta? Está me saindo mais difícil receber o Prêmio do que o foi para conquistá-lo!? PRADO - Não é que estejam lá muito boas. Não nos faltam crises. Vai mal o comércio, a indústria... Mas estamos longe de uma quebra. E desejamos o seu sucesso em Paris, que tanto prestígio tem trazido ao Brasil e ao nosso povo. É o mínimo que podemos fazer, não recuse, Alberto. O povo brasileiro iria considerá-lo um snob. GEORGES (após o brinde e de sorver o licor de um só gole) - Amanhã, com certeza, teremos o fim dessa novela. E com final feliz. O povo parisiense não aceitará mais uma protelação. SD - Não recusarei, Pradô. Como sabe concedi o Prêmio Deutsch aos meus mecânicos e aos operários pobres de Paris. E o fiz por merecimento e compaixão. Depois de amigos como Você e Georges; os meus mecânicos e o povo pobre de Paris tem sido os meus maiores aliados desde que aqui cheguei... mas, Georges, o que está a anotar neste caderno? SD - Pudera, já estamos a 3 de novembro. Já se vão quase 15 dias... Mas confio nos sábios do Instituto de Paris, eles me salvarão! GEORGES - Pelas contas do jornal já temos 10 votos certos a seu favor. E sabemos que outros dois também serão nossos. Esses já lhe garantem a vitória. Georges havia tirado de sua pasta um caderno de notas e um lápis e fazia ali algumas anotações. Sentam-se todos nos confortáveis sofás do ambiente principal do salão. GEORGES - Temos aqui uma notícia mais fresca do que as croissants da boulangerie de la place, meus amigos. E eu sou um repórter, lembram-se? (termina a anotação e guarda o caderno) Mas hoje não tenho notícias só a anotar; tenho-as também a dar: Adrien promoveume a seu redator-assistente no "Le Temps". PRADO - Falei por telefone ao Deutsch. Ele garante que o Aero Clube de Paris não lhe recusará o prêmio. Deutsch estava lá naquele grande momento da história que, infelizmente, perdi, nas atribulações do meu cargo. Campos Sales chamou-me ao Rio justamente quando tudo estava para acontecer. (e, dirigindo-se a SD) - Pelo menos pude ser útil à sua luta, Alberto. Convencemos Sales e o Congresso, com a ajuda do senador e aeronauta Augusto Severo, cuja atuação no Parlamento foi fundamental para o nosso pleito, de que, independente do que aconteça, o Brasil lhe pagará um prêmio no mesmo valor do PRADO - Considero Maurice Talmeyr e Adrien Hébrard os dois mais brilhantes jornalistas que o novo século revelou. Você está de parabéns, Georges. SD (enchendo novamente os cálices com licor) - Sim, Adrien faz jus à estirpe dos 19 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Por isso os convidei hoje. (e levanta-se caminhando em direção ao corredor) - Por favor, dêem-me a honra! Serão os primeiros a conhecer o meu atelier, este pequeno caldeirão onde remexo minhas bruxarias. Sigam-me. (os dois, movidos pela surpresa, o seguem) “informadíssimos Hébrards”. Eis aí um bom motivo para novo brinde. Um brinde ao nosso amigo Georges. Sucesso e felicidades para ele. (brindam) - Me sinto orgulhoso de Você, Georges (e bebem). GEORGES (põe o cálice na mesa) - Para mim é o último. Prefiro não beber enquanto trabalho. SEQUÊNCIA 9 (A Oficina secreta de SD Descrição cenográfica) PRADO - Como assim, trabalho, Georges? Vai sair agora? O final do amplo corredor é arrematado por uma parede forrada de madeira negra e maciça. Perto dela, na lateral, uma peanha apóia a pequena e delicada bailarina de Degas. SD gira a bailarina, e a peanha revelase a portinhola de um mecanismo escamoteado, composto de uma pequena alavanca e um segredo numérico semelhante aos dos cofres. SD gira o segredo para as posições certas, aciona a alavanca, e a “parede” do fundo do corredor denuncia-se uma imensa porta de madeira maciça que corre suavemente para a direita, deslizando, sem qualquer ruído, sobre bem lubrificadas rodilhas. A um sinal de SD os dois amigos estupefatos penetram o recinto, descendo por uma pequena escada de três degraus, SD - Sim, explique-se, Georges. GEORGES - Não, não pretendo sair. Minha primeira missão em meu novo trabalho é Você, Alberto. SD - Ora, não diga que acabo de perder um amigo e ganhar um jornalista. Já tenho-os aos montes, seguindo-me nas esquinas, nos cafés, nas oficinas, com seus fotógrafos e suas anotações. Amigos, porém, os tenho poucos. E a Vocês farei uma distinção muito especial. Espaço destinado à planta baixa da Oficina Secreta 20 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME sistema de grandes luminárias e holofotes elétricos reguláveis, pendurados ao forro e manejáveis do chão por sistemas de correntes pendentes; que garantiam perfeita luminosidade, com intensidades reguláveis por reostatos, em qualquer ponto do seu interior. A temperatura ambiente era mantida em amenos e permanentes 23 graus centígrados (marcados em um grande e visível termômetro instalado num dos pilares) por um sistema de ar renovado e temperaturizado, idealizado pelo inventor, que era distribuído por tubulões condutores aéreos, de seção retangular, feitos em latão, embrulhados em mantões de lã, e sustentados por cabos pendidos à estrutura superior do telhado, um pouco acima do pédireito. Eram interligados a um complexo sistema de aquecimento elétrico e refrigeração a gás freon, feito de serpentinas metálicas por onde passava água em temperatura controlada, e acoplados a poderosos ventiladores, com hélices de chapas metálicas planas, que recolhiam o ar ambiente, renovava-o, filtrava-o, refrigeravao ou aquecia-o, e soprava-o novamente pelos tubos que o distribuíam pelas nove bocas do sistema, nos diversos ambientes do galpão. Um sistema de chaves e reostatos engenhosamente conectados a termômetros e barômetros, mantinham o funcionamento automático de toda essa parafernália e garantiam pressão atmosférica, temperatura e umidade do ar constantes em qualquer época do ano e a qualquer hora do dia. seguidos de SD que, antes de entrar, aciona novamente a alavanca para que a porta, lentamente, se feche por detrás dele. O ambiente era fantástico: um grande galpão, de 30 metros de comprimento por 20 de largura, adaptado de uma desativada garagem de carruagens e diligências, contígua ao apartamento de SD: sem divisões internas, possuía o pé-direito de cerca de 6 metros, telhado de ardósia forrado de tábua corrida, sustentado por estrutura metálica artnouveau apoiada nas laterais e em quatro pilares simetricamente dispostos, que formavam um grande quadrado central, iluminado, de dia, por uma bela cúpula no centro do telhado, feita em vidro colorido e ferro fundido, no mesmo estilo da estrutura de sustentação. Além da porta secreta que o ligava ao apartamento, o edifício tinha duas grandes portas de correr, jamais vistas naquela época, para entrada e saída de materiais, equipamentos, máquinas, inventos inteiros ou em partes, que dava para o pátio externo. Apesar da inexistência de divisórias em seu interior, o ambiente era perfeitamente dividido em nove diferentes espaços de trabalho ou seções, como demonstra a planta baixa, na página ao lado. A parte barulhenta do sistema, composta de pesados motores elétricos e geradores de energia elétrica a petróleo e respectivos tanques de combustível, jogos de chaves automáticas, roldanas, polias, correias e ventiladores, era mantida isolada numa casinhola de alvenaria feita com paredes duplas e com revestimento interno de feltro grosso, que abafavam completamente todos os ruídos ali produzidos, e, a tal ponto, que, vistas pela escotilha de espesso vidro da igualmente espessa portinhola de inspeção, A oficina era hermeticamente fechada e iluminada artificialmente por um engenhoso 21 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND com as luzes internas acesas, pareciam silenciosas e serenas máquinas em perfeito e celestial funcionamento. [Aberta, porém, a portinhola, uma violenta orquestra de ruídos ensurdecedores toma conta da oficina, para susto dos visitantes que só destapam seus ouvidos quando o inventor cerra novamente a portinhola e faz retornar a paz anterior.] especialíssimas finalidades, as maquetes e modelos, etc.] No quadrado central, - entre os pilares feitos de ferro fundido e bordados com vinhetas art-nouveau em relevo - , ficava a grande prancheta de trabalho de SD (equipada com um suntuoso tecnígrafo) de tampo maciço feito em tábua única de ipê emoldurado em pinho de riga, suspenso do teto em balanço, acima de um armáriomapoteca de seis gavetas, por um complexo sistema de cabos e roldanas, manejáveis por correntes pendentes, podendo ser facilmente posicionado e inclinado em qualquer ângulo, verificáveis nas bolhas de prumo acopladas nos sentidos lateral e longitudinal do tampo suspenso. Frente ao tampo, uma barquilha de vime, idêntica às utilizadas por SD em suas aeronaves dirigíveis, era também suspensa do chão por semelhante sistema, só que acoplado a um carrinho com rodilhas, equipado com motor elétrico, e instalado num sistema de trilhos firmemente suspensos e fixados na estrutura inferior do telhado, logo abaixo do pé-direito, como se fosse uma espécie de mini-ferrovia aérea. Esse sistema, operado de dentro da barquilha, permitia levá-la e elevá-la, com o seu ocupante, a qualquer ponto ou altitude dentro da oficina, de modo que, ao trabalhar em sua criações, o inventor simulava também a situação tridimensional de vôo e exercitava o seu equilíbrio. As tubulações principais de renovação e distribuição do ar encanado subiam da casinhola pela parede até o teto, como uma chaminé de lareira, também isolada com feltro grosso e parede dupla de alvenaria; e os tubulões de distribuição, isolados com mantões de lã, não só impediam a troca de calor, como também eliminavam todo o ruído produzido pelas máquinas na casinhola, antes da saída do ar nas bocas de distribuição. De sorte que, no interior do galpão, ouviase apenas, e no silêncio total, um leve e sutil rumorejar de exalação aérea contínua, distribuindo ar puro e temperaturizado em todo o vasto ambiente. Uma outra casinhola, contígua à anterior, do mesmo porte e de semelhante construção, igualmente isolada dos ruídos e equipada com um sistema de filtragem de gases e aeração própria, servia de cabine de testes dos motores criados pelo inventor, que podiam nela ser introduzidos através de uma tampa superior, e se sustentavam, no interior, em bancadas apropriadas e conectadas por cabos e fios aos instrumentos de medição instalados externamente, embaixo de um grande visor retangular de vidro espesso, pelo qual podia-se acompanhar também visualmente o desempenho das máquinas em teste. Em frente à prancheta, um grande espaço vazio servia esporadicamente para a colocação dos moldes de confecção dos invólucros de balões e dirigíveis, e montagem parcial ou integral de protótipos para testes. À esquerda situava-se, de trás para frente, a marcenaria completa, servida de mangas de aspiração e reaproveitamento de serragem, pendentes do teto, para todas as máquinas; a serralheria, a tornearia e a usinagem de precisão, igualmente completíssimas, com seus sistemas de soldas e maçaricos de todos [SD caminha pela oficina seguido pelos amigos, mostrando, com orgulho, os seus mínimos detalhes, os controles de luz e atmosfera por ele inventados, as ferramentinhas que criou e suas 22 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME os tipos existentes, protegidos por boxes de cortinado de percalina e borracha isolante, e servidos de coifa de exaustão de gases; e a seção de montagem e mock-up, equipada com máquinas de costura elétricas e prensas de colagem, onde amontoavam-se, organizadamente, do chão ao forro do telhado, pendurados ou apoiados em caixas, caixotes e pedestais próprios, uma infinidade de modelos, protótipos, maquetes e miniaturas de todo o tipo de engenhos aéreos e terrestres que a imaginação do inventor pode conceber até então. algumas. Atrás, no canto de fundo, a parte molhada, com tanques e pias servidas de torneiras e mangueiras diversas e um pequeno laboratório de química, onde podia-se produzir e testar colas, vernizes, tintas, graxas, lubrificantes e até combustíveis, também servido de coifa de exaustão exclusiva e box cortinado de pesada lona de isolamento. E um lavatório servido de água aquecida, vasos sanitários com descarga hidráulica e armários de escaninhos para guardar pertences pessoais dos mecânicos. No canto dessa seção, via-se uma bizarra reunião de meia dúzia de bonecos articulados, feitos de borracha, em escala humana natural, que eram usados para testar posições de pilotagem e condições de comando nos mock-ups e protótipos. Atrás do inventor, quando em sua barquilha pendurada no quadrado central, ficavam instalados todos o sistemas de controles de iluminação e atmosfera, junto às casinholas de máquinas. Perto dele, um enorme ventilador, preso à parede do fundo por um braço mecânico ajustável, olhava para um grande tubo ou manilha feita em latão, de diâmetro igual ao da hélice do ventilador, estruturado num engradado de madeira fixado ao piso. Dentro do tubo estavam pendurados alguns modelitos de m e c a n i s m o s aerodinâmicos produzidos em papel ..."uma bizarra reunião de meia dúzia de bonecos"... de seda e bambu. À frente, por onde se entrava lateralmente pela porta secreta do corredor do apartamento, uma confortável e portentosa biblioteca, provida de armários e estantes com portas de correr envidraçadas até a altura do pé direito, dentro dos quais podia-se observar as grossas lombadas de obras científicas de todo o mundo, obras de referências indispensáveis e obras-primas da literatura universal e contemporânea, com luxuosas encadernações e organizadamente dispostas; e, ao rés do chão, um armário de escaninhos fundos arquivava um sem número de rolos de desenhos, plantas e projetos do inventor. À direita, ao lado, um almoxarifado, sempre repleto de materiais oriundos dos quatro cantos do mundo, e que poderiam ser utilizáveis em projetos do inventor. Tudo bem armazenado, conservado e guardado em prateleiras, armários e recipientes de várias espécies, com etiquetas de identificação e fichas de controle de estoque presas à pranchetilhas de mão e penduradas em cabide de madeira fixado à parede. Ao seu lado, uma bela ferramentaria, especialmente projetada para guardar, com visibilidade, do mais pequenino e delicado instrumentinho, até as possantes marretas e poderosas alavancas de ferro fundido, passando por tudo quanto é tipo de ferramenta pequena, média ou grande, possível e existente, fabricadas por quem quer que as fabrique e pelo próprio inventor que as inventou [Prado, esmerado bibliófilo, dirige-se à parte central da Biblioteca, feita de madeira especial, forrada por dentro de veludo azul da pérsia e com uma porta de cristal bizotado 23 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND com o desenho do Ex-Libris do inventor, criado por Sem (Georges), e, tendo abaixo, em plaqueta de cobre, o nome da seção: “Cimélios”. Abre a porta e começa a farejar as preciosidades ali conservadas. Logo reconhece as do falecido Henrique, algumas das quais adquiridas por ele mesmo, a pedido do amigo, em leilões europeus. Lá estavam a princeps d”Os Lusíadas”, em primorosa encadernação de anônimo, feita em pergaminho com relevos secos e aplicações de cinábrio e ouro verdadeiro, um incunábulo editado por Aldus Manutius, a “Hypnerotomacchia Poliphili”, do dominicano Francisco Colona, de 1499, com cerca de 200 gravuras atribuídas a Mantegna, a primeira edição da “Divina Comédia” ilustrada por Gustave Doré, de 1868, um dos volumes da completa de Cícero editada por Aldus, o moço, em 1583, e o pequenino volume da primeira edição de “Hamlet”, datado de 1605, com restauração e encadernação posterior atribuídas a Roger Payne. de 1673, do português Luiz Serrão Pimentel, com autógrafo do autor e, orgulhoso, folheia delicadamente algumas páginas de um raríssimo exemplar do Séc. XVI, impresso em bistre e com primorosa encadernação feita em marroquim carmesim, da “Historia Naturalis et Experimentalis”, na qual o visionário Roger Bacon faz várias e proféticas previsões científicas, entre elas, as máquinas voadoras.] Toda a Biblioteca era uma vasto painel que abrigava entre 3000 a 5000 volumes com subdivisões assinaladas em pequenas plaquetas de bronze. Além da “Cimélios”, com plaqueta diferenciada em cobre, havia a “Scientifica”, abrangendo obras do pensamento científico universal desde Tales, Pitágoras, Aristóteles, Arquimedes, Ptolomeu e outros gregos, egípcios e romanos, passava pelos medievais Avicena, Paracelso, e outros, os modernos Da Vinci, Copérnico, Newton, Leibnitz, Cavendish, etc até aos atuais Hertz, Edson, Marconi, Langley, e muitos outros. Com várias exclamações ora de espanto, ora de prazer de expert, Prado constata um prodigioso crescimento do acervo que conhecia, na atual gestão de Alberto. Captura de imediato um bem encadernado manuscrito autógrafo de Ticho Brahe, de 1564, no qual o sábio relata a observação da sua “Stela Nuova”, na época do seu aparecimento, quase que como um novo sol, na constelação de Cassiopéia, por ocasião do nascimento de William Shakespeare. Outro volume que também o entusiasma é um exemplar da princeps da “Sciencia Nuova”, de Giambaptista Vico, datado de 1725. Vê também um exemplar genialmente encadernado da famosíssima “Prática da Arte de Navegar”, a “Referência” onde se viam as imponentes lombadas góticas dos “Corpus Gregarum Scriptorum” e “Corpus Romanum Scriptorum”, a famosa “Encyclopédie” de Diderot e D’Alembert, a recente “Britânica” de Adam e Charles Black, já com 24 volumes, de 1888, e um sem número de dicionários de Artes, Ciências, Ofícios e Línguas; a “Brasiliana”, carregada das pérolas da fase heróica de São Luiz do Maranhão, então chamada a “Atenas Brasileira”, das obras de Pedro II, Machado de Assis, Bernardo 24 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME Guimarães, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Rui Barbosa, Tobias Barreto, Castro Alves e inúmeros contemporâneos e alguns estrangeiros que escreveram sobre o Brasil como Villegagnon, Agassiz, Bates, Lund e o conde italiano Ermano Stradelli, entre outros; cronológica, da esquerda para a direita, as existentes ocupando quase a metade do espaço disponível. A Biblioteca era servida de uma confortável mesa de leitura com quatro parrudas cadeiras, um divã e um jogo de sofá e poltronas forrados em couro fino, e dispostos em torno de uma mesa de centro sobre um vasto tapete persa (outra raridade do Séc. XII, confeccionado por encomenda de família nobre veneziana da época que, como era costume, exigia dos artesãos que fosse tecido, num dos cantos do tapete, suas armas e brasões), tudo isso compondo harmonicamente com um grande globo terrestre e uma coleção-mostruário de instrumentos de navegação marítima e terrestre: sextantes, astrolábios, bússolas e réguas de cálculo de diversos tipos, épocas e procedências. a “Universal”, que chamou a atenção de Georges onde encontrou, surpreso, um exemplar, autografado pelo autor “Au jeune genie de Ka Ban Gu, Brésil”, da rara edição do “L’Aprés- midi d’un faune”, de Mallarmé, com ilustrações de Manet e diversas maravilhas da obra poética de Baudelaire, Hugo, Apollinaire, além de Marlowe, Voltaire, Rousseau, Goethe, Flaubert, Balzac, Dickens, Byron, Swift, Wilde e o diabo, e edições recentes e caprichadas da “Ilíada” e da “Odisséia”; a “Periódicos”, de largas e altas prateleiras especiais, onde se conservavam em cuidadosa encadernação e metódica organização, páginas e recortes de jornais e revistas sobre aeronáutica e os aeronautas de todas as épocas, inclusive o próprio Santos-Dumont, e organizavam-se, ainda nos seus começos, as coleções da “National Geographic Society”, desde a sua primeira edição de 1888, a “Popular Mechanical”, também desde sua primeira edição, a “La Vie au grand Air” , a "L"Aerophile" e outras revistas do gênero. Na parede frontal, uma estante de largas prateleiras baixas, ostentava um completo e moderno sistema de comunicações por interfones, telefones, telégrafos e cabogramas internacionais, equipados com todos os dispositivos, aparelhos e acessórios mais recentes que a ciência moderna e o dinheiro podiam oferecer ao homem para que se comunicasse com o mundo naquela época. Acima, perto da cúpula, uma grade metálica parruda, na horizontal, com sistema de elevação por manivela, sustentava e servia de piso de um observatório astronômico equipado com duas boas lunetas, uma mais delgada, de Galileu, e a outra bojuda, de Newton. Para acessá-lo, o inventor subia até lá em sua “barquilha” e alçava-se por uma escadinha soldada à grade. Para a cúpula, havia dois mecanismos de acionamento: um que a abria em dois, para observação das estrelas e da atmosfera; e o outro que fechava totalmente a base da cúpula através de um mecanismo em forma de diafragma de câmera fotográfica, que impedia a passagem de qualquer luz, uma vez fechado. No topo da estante, ocupando toda a extensão horizontal superior do enorme móvel, e com acesso somente possível pela “barquilha” do inventor, ficava a “Philosophica”, que, além dos já conhecidos filósofos gregos e teólogos da alta idade média, abrigava volumes considerados perigosos de alguns filósofos contemporâneos, entre eles os perigosíssimos Hegel, Dilthey e um certo Nietzsche, ainda vivo e, diziam, enlouquecido. Numa outra prateleira logo acima desta, e de igual tamanho, SD guardava os seus registros de cálculos, as anotações pessoais, científicas e de projetos, arquivadas em pastas de couro etiquetadas, e dispostas na ordem [O inventor faz essa demonstração; fecha o 25 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND grande diafragma e apaga todas as luzes da oficina numa chave-geral. O ambiente fica tão escuro e, de tal maneira, que se pode, sem problemas, abrir-se ali, uma caixa de chapas fotográficas virgens.] GEORGES - Simplicidade não é exatamente a palavra que eu escolheria para definir esta oficina. Fiquei imaginando que, ao entrar aqui à noite, Você se multiplica por vinte SantosDumonts e trabalha freneticamente até o raiar do dia, quando volta a transformar-se num ser normal e vivente na velha Terra. Digame, Alberto, porque todas essas maravilhas que vejo aqui, Você não dá também ao conhecimento público? Um grande painel de fotografias dos feitos do inventor, com previsão de espaços para fotos futuras, feito em cortiça e preso na parede frontal, ao lado das portas de correr; e um pequeno bar com adega própria e delicada cristaleira, ao lado da Biblioteca, completavam a equipagem daquela inacreditável oficina individual. SD - Porque a maioria ainda está em fase de testes. E depois, porque essa oficina foi criada para projetar e construir novos tipos de aeronaves; e são elas que pretendo exibir em primeiro lugar. Porém, no futuro, pretendo transformá-la numa escola para formar novos profissionais dedicados à aeronáutica. SEQUÊNCIA 10 Os dois amigos olham tudo aquilo e entreolham-se assombrados. Prado pega uma charuteira sobre a mesa de centro, examina os charutos, aprova-os e oferece-a a Georges (que aceita um) e a SD. GEORGES - Compreendo; e o que é aquilo naquela espécie de túnel? Um papagaio celular? SD (com um gesto de recusa) - Eu não fumo. Aeronauta não fuma. SD - É um dos meus novos ensaios aerodinâmicos. PRADO - Desculpe-me, Alberto, eu sei que não fuma. Mas por um momento parece que esquecime até de quem sou eu. (e, voltando à sua estupefação) - É inacreditável, é impressionante! Quantos operários mantém trabalhando aqui? PRADO (apontando para o quadrado central) - E porque estes móveis, se é que são móveis, ficam assim, pendurados do teto? SD - Chapin, Gasteau e Dazon, meus três oficiais mecânicos de confiança. August e os criados só vêm para o meu serviço, quando chamo por interfone, e para as tarefas de limpeza. Tudo aqui é muito simples... Podemos fazer as nossas criações com autonomia e autosuficiência de meios. Somente a fundição dos blocos dos motores encomendamos fora; mas os moldes já vão prontos e a fundição é acompanhada pessoalmente por Dazon, que é um dos melhores artífices ferreiros de Paris. SD dirige-se até a sua “barquilha” e entra dentro dela. Em seguida aciona uma caixa de botões que pende de um cabo de fiação vindo de cima. A barquilha move-se para cima e para o lado. Enquanto fala, SD faz um passeio pelo espaço aéreo da oficina, às vezes lá no alto, outras vezes quase no chão. Num determinado ponto, ele está bem diante da prateleira mais alta de sua biblioteca, de onde retira um volume de papéis e retorna para o quadrado central. Ao terminar a sua fala, a barquilha está pousando suavemente no lugar de onde saiu. SD continua a caminhar pela oficina seguido pelos amigos. SD (falando bem alto para ser ouvido de longe enquanto passeia na “barquilha”) 26 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME - Aqui, ao mesmo tempo em que desenho, calculo e supervisiono o trabalho dos meus mecânicos, treino o meu equilíbrio. Equilíbrio é tudo em aeronáutica, é a palavrachave; o segredo maior! Falando cientificamente, o centro de gravidade, ou baricentro, do conjunto homem-máquina que voa. (ele faz uma delicada manobra de curva em descida como se estivesse fazendo uma demonstração) - O sofisma de Napoleão que afirmava não ser possível voar numa máquina mais pesada do que o ar, porque no céu não há ponto de apoio; eu contesto afirmando que o ponto de apoio no céu é o domínio do equilíbrio das forças e o controle da direção de sua resultante. (faz outra manobra em curva, desta vez ascendente, chegando ao final, na prateleira mais alta da Biblioteca) - E, como, por enquanto, o homem é o elemento mais pesado do conjunto aéreo homem-máquina, ele tem de ser preciso nos seus movimentos; e saber posicionar-se em perfeito equilíbrio durante o vôo, enquanto maneja comandos e mecanismos de direção e sustentação do veículo aéreo. (pega o maço de papéis no alto da biblioteca e retorna em “vôo descendente” ao ponto de partida) Qualquer desequilíbrio do piloto, meu caro Pradô, pode por abaixo todo o conjunto aeronáutico. (pousa suavemente, a poucos centímetros do chão) - Ah, um momentinho, amigos, veio-me uma idéia que devo anotar... coloca-o rápida e suavemente bem à sua frente, na posição desejada e, quase sem curvar-se, em movimentos soltos do braço e da mão direita, faz cuidadosos cálculos e demoradas anotações sobre um dos quatro desenhos e plantas coladas ao tampo, movimentando com precisão o seu azeitado tecnígrafo, sem que com isso, provocasse algo mais do que um imperceptível balanço milimétrico do conjunto “barquilha-tampo” suspenso no ar, e debaixo dos olhares apatetados dos amigos. SD (olhando para Prado, e brincalhão) - Viu como é simples? Quer experimentar? (sai com facilidade da “barquilha”) PRADO (sem se dar conta do logro e do que haveria de fazer) - De fato, parece mais fácil do que eu pensava. Se ficarem por perto, vou tentar. Ato contínuo, o barrigudo Prado mete para dentro da “barquilha” uma de suas pernas e tenta apoiar-se no tampo da prancheta para colocar a outra. Tudo balança perigosamente e ao tentar voltar atrás é o desastre. Se Georges e SD não acodem “no susto” para ampará-lo, ele se estatelaria com os traseiros no chão, de pernas para o ar. Todos, inclusive ele, riem gostosamente e SD sai catando os lápis, papéis e o charuto de Prado que rolaram ao chão no seu atabalhoamento. PRADO (recompondo-se e pegando de volta o seu charuto) - Ufa! Definitivamente, a pilotagem aérea não é para a minha geração. Prefiro o velho e bom sofá. Posso? (e dirige-se ao grande sofá onde se senta aliviado e confortavelmente) Ainda dentro da “barquilha”, e jeitosamente, deposita o maço de papéis no gaveteiro abaixo da prancheta, abre-lhe uma gavetinha de onde retira um lápis bem apontado e uma régua de cálculo, pega nas correntinhas de controle do pesado tampo da prancheta, 27 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Georges segue-o e SD, logo atrás, vem arrumando o seu maço de papéis trazidos dos píncaros da Biblioteca. Senta-se por último na poltrona e depõe o maço sobre a mesa de centro. ninguém sabe como tudo começou. Então que tal não começarmos Você com o Pradô? SD - São anotações para o livro que pretendo editar, Georges. Talvez lhe sejam úteis. Pode levá-las por empréstimo, até porque desejo muito a sua opinião. Já o batizei com uma expressão lugar - comum, mas que Mallarmé usou de maneira genial, aérea mesmo, eu diria, em seu “L’Aprés Midi dun faune”: “Dans L’Air”... Bem, que tal uma bebida? PRADO (ainda no bar, enchendo duas taças de vinho tinto) - Não sei o quanto poderia ajudar. Mas não se pode falar dos começos das aventuras de Alberto, sem lembrarmos o grande e saudoso Henrique Dumont, seu pai, e que foi, para mim, também um pai. Daí porque trato Alberto como um irmão mais novo e mais querido... GEORGES - Já desconfiava do seu cultivo pelo melhor das nossas letras, Alberto. Belo título! Quanto à bebida, prefiro distanciar-me dela enquanto trabalho; - se não os aborreço, claro. GEORGES (já anotando e comentando) - Sim, muitos homens importantes começaram pelos seus pais. GEORGES - Estamos de acordo, senhor Prado? (A partir de agora, o filme passa a usar largamente a linguagem de flash-backs; com narrações em off, ou com seus próprios diálogos) PRADO (já diante do bar) - Claro que não nos aborrece, Georges, mas não estamos nós, Alberto e eu, a trabalho. Portanto... bem, vejamos o que temos por aqui... O que Você deseja, Alberto? SEQUÊNCIA 11 SD - À sua escolha, Pradô. Sirva-nos ao seu gosto, por favor. E, Georges, estou ao seu inteiro dispor. O que manda? PRADO (narrando em off sobre as cenas de flash-back) ...Conheci Henrique numa atribulada negociação de café na City londrina, com a presença de uns trinta fazendeiros brasileiros. O governo inglês pediu ajuda à Embaixada porque a maioria dos brasileiros não falava inglês e por isso criava um grande tumulto. Na época eu era jovem funcionário graduado da Embaixada em Londres e fui escalado para ir até a City ver o que se passava. De fato, havia um princípio de caos; ninguém se entendia ali. Henrique estava entre os poucos que sabia bem o inglês e o francês, e logo o tive ao meu lado ajudando-me a desfazer os imbroglios que se formavam. Felizmente tudo acabou bem e, por sorte, as cotações de café subiram muito em poucos dias, e os fazendeiros ganharam fortunas em libras esterlinas. Terminado tudo, todos debandaram a gastar suas libras à tripa forra GEORGES (um tanto confuso) - Estou sob impacto dessa fantástica caverna secreta! Nem sei por onde começar... SD (em tom de caçoada) - Meu pai dizia que devemos começar pelo começo... GEORGES (também caçoando) - Ah, sim, ótimo, o começo. (e, de sopetão) - Como começou? SD (voltando à seriedade e franzindo os sobrolhos) - Eis aí a mais difícil pergunta que ouvi de um jornalista. Como comecei, Pradô? Sim, Pradô... ótima idéia! Pradô, melhor que 28 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME pela Europa e só Henrique permaneceu em técnicos e doutores; embarque de carga num Londres, usando a sua disponibilidade navio com várias caixas enormes carimbadas financeira, para construir a estrada do seu "Ribeirao Preto - Brazil"; Henrique futuro. Foi à Embaixada pedir auxílio para cumprimentando os homens que contratou conhecer e se colocar em contato com as ao subirem a escada do navio; a fazenda de inovações da mecânica e da ciência e como Henrique sendo arada, cultivada e operada aplicá-las ao bem de sua propriedade em por máquinas agrícolas e ferrovias, etc; os Ribeirão Preto. Queria saber dos usos da cafezais de Henrique; ele em seu gabinete máquina a vapor, queria comprar uma diante de estatísticas de crescimento de ferrovia inteira, queria isso, queria aquilo... produção; e exibindo-as a Prado) E nós tínhamos muito a informá-lo pois o Gover no Pedro II exigia-nos atualização SEQUÊNCIA 12 permanente de tudo que se inventava e se PRADO (continuando a fazia nos campos da narração em off) ciência e da indústria - Alberto, porém, só vim nos países em que tinha a conhecê-lo quando já representação. Para era moço de dezoito resumir, Henrique anos. Foi numa viagem embarcou para o Brasil, para cá, já no governo alguns meses depois, Floriano, quando fui levando quase um nomeado Secretário da navio inteiro lotado de Embaixada em Paris. motores, máquinas e equipamentos O flash-back mostra um agrícolas; e um batalhão embarque festivo no de cientistas, doutores e porto do Rio de Janeiro. Henrique Dumont técnicos ingleses de (Legenda: Rio de todas as especialidades que precisava para Janeiro, março de 1891). O “Elbe” já soltara melhor preparar e adubar a sua terra, semear as amarras e separava-se do cais em lento o café, colhê-lo, limpá-lo, separá-lo, refiná- movimento, e sonoros apitos. No convés da lo, conservá-lo, armazená-lo, transportá-lo e primeira classe estão o jovem SD, Henrique, vendê-lo. Começou aí a grande amizade e muito envelhecido, numa cadeira de rodas, admiração que, durante toda a minha vida, e Prado, despedindo-se em meio à festa de dediquei a esse grande homem. E, de fato, serpentinas e confetes. Muita banda de duas ou três safras depois, Henrique já estava música em terra. A câmera acompanha o trio entre os maiores produtores de café do Brasil caminhando pelo convés, SD empurrando a e era um homem rico e realizado. cadeira de rodas do pai com Prado ao seu lado, em direção ao salão de fumar. (Sob a narrativa de Prado sucedem-se as imagens correspondentes: a confusão de brasileiros na City; o encontro do ainda jovem Prado com Henrique; os dois atuando juntos para acalmar os ânimos; Henrique visitando a Embaixada e sendo recebido por Prado; funcionários da Embaixada orientando Henrique; Henrique visitando fábricas, oficinas e universidades; em conversa com HENRIQUE (para Prado) - Pensamos que perderia o navio, Pradô. Chegou um minuto antes de soltar as amarras. Arre, foi a conta! PRADO (ainda suando e passando o lenço em volta do rosto) - Contratempos burocráticos, Henrique. É o velho ditado: santo de casa não faz milagres. 29 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND A embaixada esqueceu-se de renovar meu passaporte, Você acredita? Coisas do Brasil... Mas, enfim, tudo resolvido; cá estou. saúde não me permita desfrutá-lo como gostaria. PRADO - Não fale assim, Henrique. Vai melhorar logo, é forte e duro na queda. E a medicina na Europa está muito avançada. Em Paris, logo ficará bom. Onde está o nosso Alberto? HENRIQUE - Quero apresentar-lhe o meu filho Alberto, de quem tanto falo... Prado e Alberto cumprimentam-se. HENRIQUE - Foi à cabine de comando. Passa as manhãs lá. Ele e o comandante tornaram-se amigos e Alberto está tomando lições práticas de navegação, cálculos de distâncias e rotas, análise de cartas e mapas, essas coisas... Já conhece o navio nos detalhes, sabe como tudo funciona, cada mecanismo, em teoria e prática. É um fenômeno esse meu rapaz... PRADO - Alberto, saiba que me sinto tão próximo de Você, como se fosse um irmão. Henrique não esconde a predileção pelo seu caçula, e sempre se gaba da sua inteligência, do seu talento e sua aplicação nos estudos. SD - Vai muito de exagero e bondade de pai nisso, Sr Prado. Papai crê que o futuro do mundo está na mecânica e prefere que a ela eu me dedique, ao invés de tornar-me doutor. Não terei dificuldades em atendê-lo; também penso assim. PRADO - Sim, Henrique, e sem favores. Estou tornando-me seu amigo e admirador. Ontem à noite fomos até altas horas numa boa prosa sobre a Europa e Paris. Fiquei surpreso: não quis saber de mulheres, cabarets, Quartier Latin, ou farras de rapaziada. Argüiu-me dos progressos e inovações da ciência; queria saber de eletrificação urbana, redes de telefonia e telégrafo, teatrofones, indústria de máquinas, aerostática... Esse último assunto parece interessar-lhe amiúde... Fiquei apertado; como sabe não sou chegado aos riscos e às aventuras. Falou-me que deverá ficar morando em Paris... PRADO (em off, na oficina, narrando a Georges) - Na viagem percebi que Alberto era muito mais do que um caçula mimado. Maduro, responsável, era sério até demais para a sua idade. Também já era disciplinado, fino e educado. Seu desvelo para com o pai adoentado sensibilizava todo o navio, passageiros e tripulação... HENRIQUE - É sobre isso que desejo falar-lhe, Pradô, por isso mandei chamá-lo. Perdoe-me se o incomodei, sei que acorda tarde. Mas precisava falar-lhe sem a presença de Alberto... A imagem mostra Henrique todo agasalhado na sua cadeira de rodas com SD e um garçom a preparar-lhe a mesa de desjejum no convés. Finda sua tarefa SD despede-se do pai com uma série de recomendações e sai. Ato contínuo, aparece Prado por uma das portinholas do convés. PRADO - Ora, por favor, Henrique. Saiba que um chamado seu, faz-me sentir honrado por ter um homem como Você precisando de mim. Poucas vezes, na minha vida fútil, tenho a sensação de ser útil. Diga- PRADO - Bom dia, Henrique, belo dia, não? HENRIQUE - Sim, Pradô, um belo dia. Pena que minha 30 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME me, em que posso servi-lo? dele. Inclusive Você, Henrique, abandone esse pessimismo. Nós três seremos inseparáveis na velha Paris. HENRIQUE - Pradô, depois de meus filhos e esposa, Você é a pessoa em quem eu mais confio neste mundo. O fato é que pressinto o meu fim. Não, não me interrompa. Não se trata de achaques de velho amargurado. Considerome um homem feliz. Mas minhas forças estão no fim e sei que não haverá ciência que possa impedir a morte dos homens. Ela é a única certeza da vida! (faz uma pausa) - Antes de partir, levei Alberto ao cartório e emancipeio. Escrevi-lhe também uma carta para que guarde como lembrança minha. Hoje, ele é senhor de si mesmo e vai a Paris tornar-se um homem. Não lhe faltará dinheiro, graças a Deus, e essa providência deixo bem assegurada. Mas, por mais que confie em Alberto, um pai não pode deixar de temer as armadilhas da vida. Você, meu bom Pradô, estará também em Paris. Conhece do mundo e da vida, bem mais que o meu Alberto. Peçolhe, não o deixe em abandono. Temos parentes lá, mas prefiro confiá-lo a Você. E direi isso a ele. SEQUÊNCIA 14 PRADO (narrando em off para Georges) ... Mas em Paris chegamos apenas Alberto e eu. Henrique desembarcou em Portugal para retornar ao Brasil. Estava, de fato, muito mal; e queria morrer em sua pátria. (cena de Prado e SD desembarcando no Havre.) - E, pouco meses depois, recebemos a notícia de sua morte... (SD mostrando a Prado o telegrama e abraçando-se a ele em prantos) ...Durante cinco anos em Paris, Alberto alternava os estudos de mecânica com a observação do progresso das máquinas. Conseguimos que o famoso Prof. Garcia lhe desse aulas particulares de física, química, matemática e mecânica. Cedo, Alberto descobriu o automóvel e revelou seu espírito inventivo, modificando motores e mecanismos. Participou, e foi organizador, das primeiras corridas de automóveis deste planeta, mas não ganhou nenhuma; o que o deixava de muito mal humor. (cenas de Alberto tendo aulas com o Prof. Garcia e disputando corridas de automóveis nas estradas francesas) - Conseguimos-lhe, graças a Garcia, o ingresso como aluno assistente na Universidade de Bristol (SD chegando a Bristol e assistindo aulas acadêmicas) Depois de uma breve viagem ao Brasil, para PRADO (dando uma boa risada) - É apenas isso que me pede, Henrique? Velar por Alberto em Paris? Mas que missão mais fácil e deliciosa! Recebo-a como prêmio de reconhecimento, não como tarefa de responsabilidade. Pelo que conheço de Alberto, sei que não dará trabalho em Paris. Desconfio até que teremos grande orgulho Paris 1897 31 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND visitar o túmulo do pai, na qual levou o primeiro automóvel que toda a América do Sul viu rodar por suas ruas e estradas, (SD chegando de automóvel ao túmulo do pai no Brasil) - Alberto então, começou... SEQUÊNCIA 15 (Primeira ascensão) Uma estranha charrete, puxada por um único e enorme avestruz (foto), dispara por uma estradinha arborizada na linda paisagem do Bois de Boulogne. (Legenda: Paris, 1887) Ao chegar ao destino, um edifício-garagem construido em madeira, SD, o cocheiro da surrealista charretinha, estaciona-a, salta de dentro dela e amarra o cabresto do seu avestruz num gancho. Entra na oficina de Lachambre e Alexis Machuron, que acabavam de abri-la com os seus dois auxiliares. "Uma estranha charrete..." O balão começa a subir, na bela manhã. O chão vai se afastando aos pés de seus passageiros, os detalhes se diluem, a paisagem se transforma. A subida é rápida e as casas diminuem de tamanho, como se fossem de brinquedo. MACHURON (para SD) - O equilíbrio do aparelho é sensível às mínimas variações. O hidrogênio dentro do invólucro de tecido escapa aos poucos devido à porosidade do material; e o sol, aquecendo todo o conjunto, expande o gás. A pressão dentro do balão aumenta fazendo com que o conjunto se torne cada vez mais leve. LACHAMBRE - O senhor chegou cedo, Sr Santos. A ascensão está prevista para as 8 horas e são apenas 6. Temos preparativos a fazer antes de subir... SD - São esses preparativos que não quero perder, Sr. Lachambre. Se não incomodo, gostaria de acompanhá-los desde o início. E tenha-me à disposição para ajudar no que puder. O balão pára de subir, estabilizando-se numa determinada altura muito elevada. MACHURON - A umidade do ar é condensada na superfície envernizada e isso torna o conjunto mais pesado. Há um compromisso que tem de ser perfeito: a saída de gás pelo tecido e o acréscimo de peso devido à umidade são compensados pela dilatação do hidrogênio aquecido. O balão fica sujeito às pequenas alterações atmosféricas e se move em completa integração com o ar. MACHURON - Não há nada de especial a ser feito, Sr Santos, seja bem-vindo. Espero que não se aborreça com as tarefas de preparação. Sequência rápida de cenas de preparação do balão. SD acompanha tudo nos mínimos detalhes. Aponta aqui e ali, fazendo perguntas e anotações numa cadernetinha de mão. Finalmente o balão está cheio e pronto para a ascensão. Machuron e SD entram na barquilha. Uma nuvem passa por cima do balão e este parece despencar vertiginosamente. Machuron pega um saco de areia e despejao no ar. MACHURON - Lachez tout! 32 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME MACHURON - Para compensar a perda de altura, causada pela nuvem, que esfriou o balão, só há um jeito: largar lastro. Quando, ao contrário, o balão estiver subindo mais que o desejado por causa do calor, é preciso soltar o gás sob pressão. Nosso vôo terá de terminar quando acabar o gás ou o lastro que somos obrigados a perder ao longo do tempo. comprimento da corda-guia no solo, e a conseqüente diminuição de peso faz com que a descida não seja brusca. Nesse equilíbrio contínuo chegamos ao solo suavemente. O balão pousa com suavidade, Machuron libera todo o resto de gás, e eles saltam imediatamente da barquilha, segurando-a para que a brisa não levasse o balão. Alguns lavradores das imediações acorrem curiosos e Machuron logo os arregimenta para ajudar nas tarefas de dobrar o invólucro e guardar o conjunto para transporte até a estação ferroviária mais próxima. O balão penetra no interior de uma espessa nuvem branca, no topo de um belo cumulus algodoado que se projetava numa quilométrica vertical a partir de sua base. A visibilidade torna-se nula. Machuron começa a despejar muito lastro. SD (para um dos lavradores) - Onde estamos? MACHURON - Dentro de uma nuvem, não podemos perceber a velocidade de descida. Mas é certo que estamos descendo muito rapidamente, porque o resfriamento do conjunto é tal que pode levá-lo ao chão, se não nos anteciparmos no despejo de lastro. O LAVRADOR - Nas terras do Castelo La Ferriére, propriedade do Senhor Alphonse de Rothschild. SD arma a sua câmera fotográfica e explica ao lavrador como deve proceder para bater uma chapa dele ao lado de Machuron e o balão sendo guardado. O improvisado fotógrafo não teve dificuldades em batê-la. Ao sair da nuvem pela sua base, o até então impassível SD chega a se assustar com a repentina proximidade do solo aos seus pés. Nesse momento, ouve-se o som distante de um alegre carrilhão. Logo o sol volta a esquentar o balão e voltam a subir para uma altura mais reconfortante. Ouvem-se os latidos de cachorros, marteladas e apitos distantes de locomotivas. Enfim o vôo encerra-se num belo descampado adredemente escolhido por Machuron, ao lado de uma ferrovia. A descida foi tranquila, e, durante ela, o competente piloto Machuron explicava ao embevecido SD as funções da corda-guia. SEQUÊNCIA 16 SD (agora com a palavra, em lugar de Prado, e narrando em off para Georges) - Nessa primeira ascensão percebi que teria de me conhecer melhor em altitudes elevadas. Fiz uma viagem aos alpes suíços, em seus pontos mais altos. Lá aprendi a esquiar (cena de SD chegando a Lucerna, numa pousada para esquiadores nas montanhas geladas dos Alpes) - para testar meus reflexos naquelas condições, e até mesmo em situações de queda. Numa aterrissagem forçada, o aeronauta não pode perder o controle absoluto das suas ações, pois somente elas podem salvá-lo de uma precipitação fatal. (cenas de SD esquiando e despencando pelas descidas nevadas dos Alpes) MACHURON - A corda guia, ou o “cabo pendente”, funciona como lastro de equilíbrio para a aterrissagem. Ao jogá-la, a parte que toca o solo deixa de ser peso e faz com que se diminua a velocidade de descida. Então vamos liberando o pouco gás que nos resta para que o balão não volte a subir, e desça ainda mais. Ao fazê-lo aumentamos o 33 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SEQUÊNCIA 17 (O “Le Brésil”) desaprovação. SD chega pela mesma estradinha arborizada na oficina de Lachambre e Machuron, só que agora a bordo do seu triciclo motorizado, que rebocava um pequeno vagonete de carga. Pára em frente à porta da oficina e todos saem para ver o seu veículo MACHURON - Aqui está escrito seda japonesa? SD (já impaciente, pegando a maleta e abrindo-a) - Sim, já a trouxe. (retira um volume embrulhado em papel) - Ei-la. UM AUXILIAR (para o outro) - Ele chega a fazer 35 quilômetros por hora! MACHURON (abre o embrulho e pega a seda com as duas mãos, avaliando o seu peso) - Mas, é muito leve! E muito fina!? Como resistirá à pressão? Onde já se viu um balão com um invólucro tão leve assim? O OUTRO (mais velho) - Mas isso é loucura! Não tenho mais idade para isso. SD retira seus óculos de piloto e o capacete de couro, desce do triciclo e vai até ao vagonete, do qual abre o tampo. Retira de dentro dele alguns rolos de papel, uma pequena maleta de viagem e o seu chapéu. Em seguida guarda os óculos e coloca o chapéu na cabeça. Pega os rolos e a maleta e entra na oficina cumprimentando a todos. Lachambre e Machuron recebem-no em volta de uma mesa. SD abre sobre ela os rolos de papel que se revelam plantas e desenhos do seu futuro balão, o “Le Brésil”, completamente detalhado em projeto. Os três mergulham nos desenhos. SD perde a paciência. Toma-lhe a seda, embrulha-a e recolhe-a de volta à maleta. Reenrola os seus desenhos, coloca o chapéu e começa a calçar as luvas para sair, enfezado. SD - Se os senhores permitem, devo retirar-me. LACHAMBRE - Acalme-se, Sr Santos. Não temos porque nos desentender. Todos aqui aprendemos a gostar do senhor. Não nos condene só porque fazemos perguntas e damos sugestões. Faremos tudo o que o senhor pretender, e como o desejar. LACHAMBRE - Hum... mas, apenas cem metros de encubagem?! SD (relaxando e voltando a descalçar as luvas) - Certo, Sr Lachambre, desculpe-me o mau gênio. Trabalhei neste projeto os últimos dez dias, quase sem dormir. Está todo calculado e desenhado. Gostaria que começassem a c o n s t r u i - l o imediatamente, se possível. SD - Eu peso cinquenta quilos, de sapatos. Quero um balão de cem metros... LACHAMBRE - Por favor, Sr Santos, a vida é a sua e o senhor pode fazer dela o que bem quiser. Mas não nos obrigue a colaborar para um suicídio. MACHURON (pegando novamente a seda dentro da maleta) - Quanto ela pesa? SD faz uma cara de 34 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME SD - 3,5 quilos. Envernizada pesará 14 quilos e duzentos gramas. Bem senhores, devo ir-me. Um bom trabalho para todos. - Como conseguiu essa façanha? Decidimos agora há pouco vir aqui! Não foi planejado?! Como então a reserva? SD - Pago mensalidade à casa para ter sempre uma mesa à disposição nesse horário. Aborrece - me ter de aguardar, e acabo perdendo o apetite...Olhe, aquele senhor acena para Você... Lachambre e Machuron observam SD afastando-se em “alta” velocidade com o seu barulhento triciclo. MACHURON - Nós vamos mesmo construir essa maluquice? Prado volta-se e vê uma mesa de cinco convivas, dois casais e um solteiro. O solteiro era Georges, que fazia os sinais para cumprimentar Prado a distância. Prado retribuiu os cumprimentos e acenou para que Georges chegasse até ele. Georges aceitou o convite. LACHAMBRE - Sim, e porque não? Está nos pagando bem e, além do mais, esse balãozinho de cem metros nunca há de voar em dias da minha vida. GEORGES (aproximando-se com alegria e cordialidade) - Embaixador, como vai passando? Há tempos não o vejo no jornal. Anda emburrado com alguns de nós? SEQUÊNCIA 18 Porta do Maxim’s agitada. Pessoas aguardam mesas. SD e Prado descem duma cupê. Sem nada perguntar, SD vai passando por todos os que aguardam, acompanhado do espantado Prado, até chegar à presença do maitre. Este, solícito, recebe SD com alegria. SD - Não, Charles, apenas o Embaixador Prado e eu jantaremos hoje. Obrigado. PRADO - Não é isso, meu caro Georges! Os últimos dois meses passei-os a ciceronear senhoras distintas de políticos brasileiros nas suas compras em Paris. (e, falando baixinho, quase ao ouvido de Georges) - Vou lhe confiar um segredo: a primeira dama, em pessoa, chefiava o grupo! Veio incógnita, identificada com nome falso e com ordens para que o assunto fosse tratado como segredo de estado! Vê porque desapareci da roda do "Le Temps". Deixam casacos e chapéus com a chapeleira e seguem-no pelo interior do restaurante repleto até a mesa por ele indicada. O maitre retira o cartão de reserva e faz um sinal para um dos garçons. GEORGES - Não se preocupe, Embaixador. Como vê, não estou a trabalho, mas festejando com alguns amigos. Mas que seria uma bela nota social, lá isso seria... O MAITRE - Estejam à vontade, senhores. Gerard os atenderá no que desejarem. Bom apetite. (retira-se) PRADO (pondo o indicador sobre os lábios) - Shhhh! Nunca existiu nota alguma, meu amigo! Nunca! (e, fazendo uma pausa) - Bem, Georges, chamei-o para apresentá-lo ao meu melhor amigo e patrício, o Sr Alberto SantosDumont. (apresenta-os e ambos O MAITRE - Boa noite, Sr Santos. Sua mesa está reservada, como combinado. Alguém mais o acompanha, além do cavalheiro? PRADO 35 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND cumprimentam-se) Georges) - Você não acha uma loucura essa idéia de voar? Se Deus não deu asas ao homem é porque o queria quieto aqui na terra... GEORGES - Eu o conheço de vista, Sr Santos-Dumont, e tenho imenso prazer em apertar-lhe a mão. Cobri uma reunião no Automóvel Clube, na qual o senhor propôs a fundação de um Aero Clube em Paris, lembra-se? Nosso fotógrafo registrou, a meu pedido, um bom instantâneo do senhor ao lado dos senhores Ernst Archdeacon e o Marquês de Dion. GEORGES - No jornal sou da opinião de que devíamos dar mais atenção aos avanços e experiências no campo da aeronáutica. E não acho que seja loucura. Deus não deu asas aos homens mas deu-lhes um cérebro privilegiado. Agora, que os ature! Queremos voar, ora essa!... (e, para SD) - Por ventura esse balão é o que Lachambre e Machuron estão a construir? SD - O prazer é o mesmo, Sr Goursat. Lembrome do senhor. Não sabia é que tratava-se da mesma pessoa que acompanho pelos jornais em excelentes reportagens e caricaturas. Seus amigos consentiriam em que nos desse o prazer de sua companhia, por alguns momentos? SD - Já o construíram. Está perfeitamente pronto. Hoje fizemos os últimos testes em terra. Amanhã, se tudo correr bem, vou voá-lo. GEORGES (irônico, para Prado) - Espero que não seja outro segredo de estado brasileiro, Embaixador. (e, para SD) - O Sr se importa que a imprensa cubra esse acontecimento memorável? Estou duplamente interessado; como jornalista e caricaturista. Quando Lachambre falou-me do seu balão, ressaltou o fato de o senhor ter levado os materiais para construi-lo numa pequena valise de mão! Achei o mote perfeito para uma charge. Espero que não se ofenda com charges e caricaturas, Sr Santos... GEORGES (olhando para o seu grupo de amigos) - Meus amigos já divertem-se bastante sem minha presença, senhores. Vou aceitar esse amável convite; me sentindo honrado por compartilhar a companhia de dois ilustres brasileiros. (senta-se na cadeira que SD lhe oferece) O garçom chega com champagne e duas taças. SD pede-lhe que traga mais uma antes de servir. Servidas as taças os três brindam e bebem. SD - De modo algum me ofenderia com as suas, senhor Goursat. Não as perco nunca quando estampam-nas nos jornais de Paris. Acho-as de excelente espírito e elevado humor. Devem contribuir bastante para despertar o interesse dos leitores. Seria uma honra ter sua presença no meu vôo de estréia. Considere-se meu convidado. A ascensão está prevista para as oito horas. PRADO - Recomendo esse brinde ao primeiro vôosolo de Alberto. (e, falando para Georges) Amanhã Alberto vai fazer sua primeira ascensão-solo em balão. Um balão que ele mesmo projetou e desenhou. Quando cheguei a Paris com Alberto, achava que não ia ter dores de cabeça por sua causa. Estava certo até hoje. Com essa loucura aérea elas começam a atormentar-me. As últimas noites passei-as rezando, pedindo a proteção do meu bom amigo Henrique, pai de Alberto (e, como se falasse para os céus) - Henrique, não há o que eu possa fazer por Alberto aí nas alturas! Espero que Você possa... (e, para GEORGES - Eu agradeço-lhe, Sr Santos. Gostaria de reprisar o brinde do Embaixador Prado. Um brinde, senhores (brindam e bebem, Georges levanta-se despedindo-se) 36 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME SD - Por favor, Sr Gousart, trate-me Alberto. entanto, nada mudou. Não vejo porque vá mudar... LACHAMBRE - Todos estão de acordo em adiar a ascensão, Sr Santos. Tem de reconhecer que não é um aeronauta de ofício; está apenas começando. É preciso aguardar tempo mais seguro... GEORGES - Desde que o senhor aceite tratar-me Georges... SD - Então, até amanhã, Georges. GEORGES - Estarei lá às oito em ponto, Alberto. E levo comigo um fotógrafo. Até lá. SD (já impaciente) - O que o senhor está a temer, Sr Lachambre? Afinal, não é esse balãozinho que nunca haveria de subir em dias da sua vida? Então por quê essa discussão? (e, para os auxiliares) - Lachez tout! SEQUÊNCIA 19 (Primeira ascensão-solo) Oficina de Lachambre e Machuron. (Legenda: Paris, 4 de julho de 1898) Algumas cupês, landaus e primitivos automóveis estacionados. Uma pequena multidão rodeava a barquilha do “Le Brésil” completamente cheio de gás e pronto para largar. (foto) O tempo, porém, não estava nada bom. Não havia vento ou chuva, mas nuvens ameaçadoras e negras cobriam parte do céu com relâmpagos insistentes ora aqui, ora ali. No centro da pequena multidão, travava-se uma discussão. Os dois entreolharam-se e olharam para Lachambre SD (irado) - Não é para ele que Vocês têm de olhar, imbecis! É para mim! Eu é que comando esse balão e dou as ordens! (e, repetindo) - Lachez tout! Um silêncio absoluto tomou conta de todos. Os auxiliares olharam mais uma vez constrangidos para Lachambre e depois para o furioso comandante que ameaçou repetir a ordem. Soltaram. SD (já dentro da barquilha e pronto para largar) - Preciso largar. LACHAMBRE - Vamos adiar a ascensão, Sr Santos. É imperativo. São dez horas e o tempo está piorando... SD - Se tivesse largado às oito estaria aterrissando a essa hora, sem problemas, Lachambre. Se não o fiz, foi por ouvir suas ponderações sobre o tempo. No No silêncio e no pasmo geral, o “Le Brésil” alçou-se com leveza e graça, em ascensão contínua, quase numa perfeita linha vertical, com um ligeiro deslocamento à leste. Todos, sem sair de suas p o s i ç õ e s , acompanharam o balão a subir e a diminuir, até que um vento o apanhou, levando-o com rapidez na direção leste, a perigosa direção ..."travava-se uma discussão"... das nuvens, dos pesados 37 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND cumulus nimbus que lá se formavam, num medonho cinza-chumbo, a relampejar e reboar ao longe. E lá, o pequeno pontinho negro no céu, em que havia se transformado o “Le Brésil”, desapareceu. no escritório. O MORDOMO - Uma ligação interurbana da Bélgica, senhor. No aparelho do salão. PRADO (saindo para atender, com impaciência) - Da Bélgica? Quem será que, diabos, quer falar-me da Bélgica nessa hora?... SEQUÊNCIA 20 (P.M.N.D.N.) SD na barquilha do “Le Brésil”, dentro da nuvem, enfrenta uma terrível tempestade. Chove grosso, venta muito, relampeja por todos os lados violentamente. A barquilha sacode muito, mas o conjunto é resistente e não afronta as forças que o assediam; ao contrário, submete-se a elas. SD segura-se e tenta cobrir-se com o seu impermeável. Seu rosto é impassível. Georges permanece apreensivo no escritório. De repente ouve a voz de Prado aos berros, do salão. PRADO (falando em português) - Alberto! Alberto! Onde Você está, meu filho? Oh, bom Deus (e voltando a falar em francês ao ver Georges que se aproximava correndo) - Você está bem? Precisa socorro? Machucouse? (de novo, em português) - Fale, homem de Deus! Corte para Prado e Georges andando de um lado para o outro no escritório de Prado, na Embaixada Brasileira em Paris. Roem as unhas e esfregam as mãos de aflição e ansiedade. Na parede, o relógio, num impiedoso tic-tac, mostra dezoito horas em Paris. De repente toca o telefone. Prado atende imediatamente. Corte para SD falando ao telefone do interior da Bélgica, na casa do chefe do trem. A casa está repleta de camponeses, e SD está diante de uma mesa servida com fartura de iguarias rústicas. Ao seu lado, um grande caixote guardava o “Le Brésil” bem acondicionado. PRADO (com voz de decepção) - Sim, sim, está. É Adrien, Georges. SD (aos berros pelo telefone) - Estou ótimo, Pradô! Foi uma viagem e tanto. Você não vai acreditar. E deixou-me com um apetite de glutão. Estou falando da casa do chefe de trem em Virton, na Bélgica. Estão sendo muito amáveis comigo. Devo pegar o comboio que passa aqui às 22 horas para Luxemburgo. De lá volto a ligar para dar previsão da minha chegada a Paris. GEORGES (atendendo) - Não, não; nada até agora. O que? 20 horas? Não pode ser um pouco mais tarde? Certo, certo. Ainda não sei o que escrever, vou aguardar até às 19 e em seguida sigo para o jornal. Sim, até já. (desliga e, para Prado) Adrien vai fechar a edição às 20 horas; não pode esperar mais. Conseguiu que o Figaro nada publicasse, mas não há qualquer notícia até o momento. PRADO (com Georges ao seu lado fazendo sinal de que também desejava falar) - Só acredito quando apertar seus ossos pessoalmente, Alberto. Venha logo para cá! E cuide-se, hein? O nosso Georges deseja falar com Você. Vou passar a ele. PRADO (enxugando, sem parar, o seu rosto suado, com um enorme lenço) - Checamos todas as províncias de França, as cidades e vilas que possuem telégrafo e telefone, e nada. E essa tempestade que desabou em Paris o dia todo, meu Deus!... Prado estava radiante. Enquanto Georges fala com SD, ele chama o mordomo. Batem à porta. O mordomo de Prado entra 38 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME PRADO (em português, esfregando as mãos de alegria e contentamento) - Albério, traga o champagne. Vamos precisar. - Bem, Alberto, felizmente tudo correu bem dessa vez, ufa! Agora, de volta à velha vida civilizada, querido amigo. Passamos um mau pedaço, acredite! Parecia que o céu ia cair nas nossas cabeças ontem à tarde, precisava ver. Fiquei em pânico com Você lá em cima. Espero que tenha ficado satisfeito, aeronáutica é assunto para muito estudo, na tranqüilidade das sólidas bibliotecas. Praticála ainda não é o momento. É preciso esperar... GEORGES (ainda no telefone) ... sim, sim, estávamos todos ansiosos e sem notícias. Tudo está bem? Precisa de alguma coisa? Temos amigos aí... SD (sempre em in) - Estou com um monumental apetite, Georges; e muito bem servido de amigos, esses bondosos camponeses daqui. Acabam de por à mesa um javali assado ao ponto! Estou disposto a devorá-lo inteiro, como Vocês faziam na velha gália quando eram bárbaros. SD não emite um só comentário. PRADO (continuando) - Andei conversando com o Doutor Genésio Lisboa, que veio para planejar a nossa participação na Grande Exposição de 1900. Ele é da opinião que, sendo Paris a capital do mundo, é justo que a embaixada mantenha um quadro técnico-consultor para as ciências e a mecânica. Pensamos que Você seria a pessoa certa para esse cargo, Alberto. O que acha? Não o obrigaria com tarefas enfadonhas e burocráticas; e Você trabalharia à vontade num metier que nenhum brasileiro conhece tão bem... Alberto! Alberto! Está me ouvindo, homem?... GEORGES - Amanhã, quando chegar a Paris estará nas primeiras páginas, meu caro. Boa viagem. Grandes abraços à Você e à Bélgica inteira! SEQUÊNCIA 21 Na estação de Paris, Prado aguarda a composição que estaciona lentamente ao seu lado, olhando por todas as janelas. Caminha até a saída do vagão de primeira classe do qual já começam a descer passageiros. SD está entre os primeiros que saltam do trem. Abraçamse. Prado tem nas mãos o "Le Temps". SD (como se estivesse despertando de um sono profundo) - Ah, sim?! Bem, Pradô, preciso de uma propriedade exclusiva para mim em Paris. Nessa viagem, o que mais preocupou-me foram os meus parentes, que hospedam-me tão generosamente. Ontem, prometi-lhes retornar para o jantar e fiquei sem meios de avisá-los. São pessoas conservadoras, e nem possuem telefone. Você teria alguém na Embaixada que pudesse ajudar? PRADO (mostrando-lhe o jornal) - Aí está Você, Alberto. Em todas as primeiras páginas de hoje. Ufa! Que aventura! SD - Boa a blague do Georges! Ele de fato é muito bom! PRADO (um pouco desanimado com a desatenção do amigo em relação à sua proposta) - Quem cuida disso na Embaixada é o Flores. Vou falar com ele. Foi-nos muito útil na vinda Entram na landau de Prado que sai a trote em direção ao 15eme. PRADO 39 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND das senhoras a Paris...Ah, chegamos, seus parentes já o aguardam... (os parentes de SD esperavam-no na calçada, ansiosos) - E, quanto à minha proposta, que tal pensar... GEORGES - E então foi lá, intrometendo-se na fúria dos elementos e numa conversa com deuses desatinados, que Você recebeu a chave da dirigibilidade dos balões? Bem mais difícil do que Arquimedes, que teve o seu “Eureca!” numa sólida e confortável banheira. SD - Proposta? Que proposta? (desce da landau e começa a abraçar os parentes) SD - Bem, se aquilo foi mesmo uma conversa, não posso afirmá-lo. O que sei, com certeza, é que seria um tipo de conversa que um homem só pode ter uma vez em cada vida; e olhe lá! A cena retorna à oficina de SD onde os três amigos conversam. SD renova o vinho de Prado, e continua a sua narração. SD - Aquela ascensão levou-me onde homem algum jamais esteve antes: ao centro de uma furiosa tempestade, em pleno céu. Fui totalmente subjugado àquelas poderosas forças com as quais a Natureza podia ter-me feito em picadinhos. Conheci in loco o significado do verso de Camões, o poeta épico da minha raça (e diz em português): “Por Mares Nunca Dantes Navegados”. Algo que só se compara ao relato dos grandes odisseus das lendas e narrativas trágicas. Senti o que provavelmente sentiram os Ulisses, os Dantes, os Vascos-da-Gama, os Cristóvãos Colombos, homens que se atreveram a penetrar regiões somente permitidas aos deuses e às fantasias do imaginário. (e, em off, sobre as imagens da viagem) - Eu ia, ia, nas trevas. Sabia que avançava a grande velocidade, mas não sentia nenhum movimento. Ouvia e recebia a procela; e era só. Tinha consciência de um grande perigo, mas este não era tangível. Uma espécie de alegria selvagem dominava meus nervos. Como explicar isso? Lá no alto, na solidão negra, entre o fulgor dos relâmpagos que a rasgavam e o faiscar dos raios, eu me sentia como parte integrante da própria tempestade! (e, em in) - Foi lá, em pleno cataclisma, de tal ordem que nem o medo consegue manifestar-se, que percebi a urgente necessidade de acoplar um motor ao balão, de modo que eu pudesse conduzilo para longe dali. Posso jurar, que não pensei, uma única vez, na possibilidade de morrer. Cheguei até a pensar que havia morrido; mas não que iria morrer. O filme retorna ao flash back. SEQUÊNCIA 22 Uma grande mesa no Maxim’s, tendo SD à cabeceira, comemora o retorno do herói e a sua aventura. Deutsch de la Meurthe e o Príncipe Bonaparte conversam entre si. DEUTSCH - Ele falou em colocar um motor para guiar o seu balão... Isso é impossível! Motores a vapor são muito pesados para ascender... BONAPARTE - Meu caro Deutsch, Você estava desatento; ele referia-se ao motor de explosão a petróleo. Do tipo que estão começando a usar nos automóveis, muito mais leves... DEUTSCH - Um motor à explosão! O nome já diz! Aquilo solta fagulhas para todos os lados! O balão explodiria antes de sair do chão. Se não, a vibração do motor destruiria o balão. Lachambre já me falou a respeito. BONAPARTE - Lachambre também arrotou para todos os lados que o “Le Brésil” jamais sairia do solo. No entanto, não somente voou até a Bélgica, como também enfrentou tempestades em plena atmosfera. O Sr Santos já fez por merecer um crédito, não? 40 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME SEQUÊNCIA 23 Chapin pega um pedaço de papel e passa-o por cima do cano de escapamento. Nada. Um bosque nos arredores de Paris. Debaixo de uma troncuda galhada horizontal de um pitoresco carvalho, estão SD, François e Chapin, seu novo mecânico. Sob a orientação de SD, eles montam, no tronco, um sistema de cordas capaz de levantar o seu triciclo do solo até uma altura desejada. SD entrega a Chapin um cano curvado em ângulo reto e manda prendê-lo com a boca para baixo na saída de escape do motor através de uma presilha fortemente ajustável que inventara. Em seguida, ajudado por François, SD sobe no triciclo pendurado e acomoda-se no assento. SD - Perfeito. Desçam-me. (desamarraram as cordas e seguraram-nas para que o triciclo pousasse suavemente) - Como calculei as vibrações do motor são menores no ar do que em terra. E o dispositivo de escape funcionou. Podemos começar a montar o Número 1. SEQUÊNCIA 24 (O Número 1) Jardin d’Acclimatation, no Bois de Boulogne. (Legenda: Jardin d’Acclimatation, Paris, 18 de setembro de 1898) Chapin, Lachambre e Machuron e alguns auxiliares, comandados por SD, fazem os preparativos para vôo do Número 1. Um multidão forma-se ao redor. Chegam vitórias, tilburis, cupês, landaus, automóveis, triciclos, homens a cavalo, de bicicleta e a pé. Muitas senhoras e senhoritas curiosas. O grande charuto é inflado, elevando-se sobre o aglomerado humano. SD dá ordens, verifica detalhes, testa cordames, não pára. Machuron e ele desentendem-se e discutem por qualquer coisa. Enfim, o motor é posto a girar e SD, na barquilha, dá ordens para soltar. O Número 1 eleva-se com lentidão sobre as cabeças das pessoas atentas e começava sua ascensão quando uma rajada de vento fezse sentir, empurrando-o em direção a um denso arvoredo nas proximidades, sem tempo para qualquer manobra. Em seguida, chocou-se com as árvores desastradamente, e o invólucro rasgou-se, murchando diante da platéia boquiaberta. Prado suava, passando o seu enorme lenço o tempo todo em volta do rosto, tentando achar Alberto no meio do arvoredo. Finalmente ele aparece, descendo de uma árvore, de galho em galho, lépido, até no chão, de onde acena para a multidão. Todos aplaudem. Os mecânicos correm em sua direção. SD - Atenção, afastem-se. Vou dar a partida no motor. Se eu cair tentem segurar-me. Os dois afastam-se um pouco e SD dá a partida no pedal. Ao fazê-lo o conjunto balança perigosamente mas logo se equilibra com um movimento de corpo de SD. O motor pega e dispara. Tudo bem. Gira macio, quase sem vibrações. SD - Ótimo, Chapin, verifique se há escape de fagulhas para cima. Outra posição do mesmo local, dois dias depois. (Legenda: Jardin d’Acclimatation, O Nº1: "...elevando-se sobre o aglomerado humano..." 41 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Paris, 20 de setembro de 1898) Os preparativos para ascensão do Número 1, consertado, estão prontos e SD prepara-se para ordenar a largada. dois. Mal tinha saído da barquilha, SD vê a landau de Prado chegando a todo o galope em Bagatelle, seguida de outros veículos. Prado desce da landau e é o primeiro a chegar até ele. PRADO (suando com seu lenço na mão) - Ufa! Alberto, Você está bem? Por favor, é preciso parar; não sei se resisto a essa maratona... SD (para Chapin) - Dessa posição garanto-lhe que não terei problemas para decolar, Chapin. Esses balonistas enfim vão entender as diferenças entre o dirigível e o balão esférico. Uma pequena multidão se forma em torno de SD. Ele abraça e beija os garotos que o salvaram e tira do bolso algum dinheiro que oferece a eles para comprar guloseimas. Depois, em meio ao burburinho que se formou, SD sobe na barquilha e, equilibrando-se em pé sobre ela, pede silêncio a todos. Menos pessoas em volta do que na vez anterior. O Número 1 eleva-se bem, ultrapassa o topo das árvores sob os aplausos da pequena platéia, e ganha altura já em manobras. A câmera pega detalhes de SD a pilotar o seu dirigível que passeia por cima de bosques e campos subindo sempre, até atingir 400 metros de altitude. Ao descer caminha para o pouso em Bagatelle, mas o invólucro começa a murchar perigosamente. SD percebendo o perigo, joga a corda guia perto de um grupo de garotos que jogavam bola e grita para eles. SD (de pé, no alto da barquilha) (foto) - Henry Giffard, com a coragem tão grande quanto a sua ciência, já tinha demonstrado, há mais de 40 anos e de maneira magistral, a possibilidade de dirigir um balão. Hoje eu o comprovei mais uma vez, e utilizando pela primeira vez um motor a petróleo. Desejo aqui homenagear esse grande precursor que foi Henry Giffard. SD - Segurem a corda! Segurem a corda! Atenção, todos Vocês; segurem bem firme e não deixem que ela os arraste. SEQUÊNCIA 25 Os surpresos garotos obedecem prontamente a ordem e juntam-se para segurar a corda, com toda a força que possuem. Festa de gala em Paris. Os Rothschild recebem a alta sociedade e a intelectualidade francesa. Nos grandes salões repletos SD, uma das estrelas da festa, está envolto numa roda de amigos e curiosos. Georges aproxima-se, abre passagem, trazendo consigo uma outra estrela da festa: o jovem escritor e revelação das letras modernas de França, Marcel Proust. Ele apresenta-o a SD e ambos trocam impressões e elogios mútuos, numa conversa rápida. Depois cumprimentam-se e despedem-se. Após a saída de Proust, um dos amigos lhe pergunta o que achou dele. SD - Isso; isso mesmo; firme; bem firme! Neste momento o Número 1 passou a ser uma imensa pipa segura pela meninada e vai lentamente caindo até o solo com o seu charuto dobrado em 42 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME SD - Uma personalidade muito interessante, mas um tanto mundano. uma premiação, cujos termos ainda decidiremos, para acelerar o progresso de experiências e testes em aeronaves. Marcel Proust, retornando à sua roda de amigos é indagado da mesma forma sobre SD. Georges aproxima-se do grupo ao lado de Adrien. GEORGES (sempre brincalhão e animado) - Senhores, desculpem-nos pela interrupção, mas as danças já começaram. Não é justo que tão belas senhoritas esquentem sofás e cadeiras enquanto os cavalheiros tratam negócios! PROUST - Interessante e exótica figura, a do Sr Santos. Porém, um tanto aérea... Num outro momento da mesma festa, SD está junto ao Príncipe Rolland Bonaparte, o Sr. Deutsch de La Meurthe, o Marquês de Dion e o advogado Ernst Archdeacon. Todos concordam e dirigem-se ao salão de danças. ARCHDEACON - Achamos que chegou o momento, Sr Santos, de fundarmos o Aero Clube de Paris. Sua sugestão do Campo de St. Cloud foi aprovada. E temos adesões suficientes para a aquisição dos terrenos. Mas, o mais importante, é que temos, no senhor, o nosso primeiro aeronauta motorizado. No salão, outra estrela da festa: a atriz Sarah Benhard, cercada de um grupo do qual fazem parte o General André e o Sr. Rothschild. Adrien apresenta SD a Sarah. A música começa. SD (para Sarah) - A Senhora concede-me a honra dessa dança? SD - Fico feliz em sabê-lo, Doutor Archdeacon, pois espero que o Aero Clube estimule novos aeronautas. Penso que a França tem essa missão perante a humanidade. Daqui será dada a partida para o novo século. E a aeronáutica, estou convicto, será a ciência desse novo século, e o seu maior avanço sobre os anteriores. SARAH - Mas com muito prazer, Sr Santos-Dumont. Com o Senhor quem sabe vou ter a sensação de estar dançando nas nuvens... Começam a dançar. Todos observam o famoso par e admiram-se da destreza de SD ao girar garbosamente com a grande dama pelo salão. DEUTSCH - Através do Aero Clube, pretendo instituir Festa de gala em Paris: entre as celebridades, Sarah Benhard, SD e o Gen. André. (do centro para a direita) 43 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SEQUÊNCIA 26 (O Número 2) mostraram equivocados quanto aos dirigíveis. O Número 3, porém, foi desenhado e projetado segundo os meus próprios cálculos e teorias. Até hoje, minhas inovações bem sucedidas tiveram origem em deduções teóricas, apoiadas em bases científicas. Aeronautas empíricos dizem que a ciência pouca coisa vale quando se trata de voar. Isso não é verdade, e vamos agora demonstrá-lo. Tempo chuvoso no Jardin d’Acclimatation. O Número 2 está sendo preparado para voar. Muitos guarda-chuvas e impermeáveis no agrupamento que se forma em torno dele. (Legenda: Jardin d Acclimatation, Paris, 11 de maio de 1899) As discussões de sempre repetem-se entre Lachambre e SD. Voa ou não voa? O tempo, etc. SD está impaciente e acaba rompendo com Lachambre, despedindo-o definitivamente. Lachambre aceita a demissão e sai enfurecido. Oficina da Vau Girard, no 15eme. (Legenda: Paris, 12 de novembro de 1899) SD e seus mecânicos, com Chapin, pela primeira vez à LACHAMBRE frente, preparam sozinhos, num grande pátio - É um cabeçudo! fechado, o Número 3. Tudo pronto, SD entra na barquilha, manda girar o motor e dá a SD tira o chapéu e experimenta a chuva. Não ordem de largada. O Número 3 eleva-se firme está tão forte. Entra na barquilha e manda e tranqüilo na bela manhã de primavera. SD largar. Nessa hora a chuva aperta e, ainda a manobra-o à vontade; sobe, desce, evolui. alguns metros do chão, o frio faz com que o (foto) Tudo sai perfeito. Dali, ele sobrevoa invólucro comece a murchar. De repente, o Champ de Mars, entre a Torre Eiffel e a uma inesperada ventania arroja todo o École Militaire, executa manobras, brinca no precário conjunto para cima das árvores. ar. Embaixo, Paris está paralisada e Outro desastre. Susto geral. Prado em pânico. boquiaberta. Os exercícios dos alunos da escola militar interrompem-se sem qualquer PRADO (com as mãos postas para o céu) comando e alunos e instrutores olham para - Henrique, meu bom amigo, Você está aí? o céu, para ver aquela única nuvem artificial, Peça a ele que pare com essa loucura, por de cor bege claro, que evoluía sobre suas favor! cabeças ao comando de seu piloto. Bondes param e seus passageiros descem para observar o fenômeno. Os cafés e as boulangeries SEQUÊNCIA 27 esvaziam-se repentinamente (O Número 3) de seus clientes, empregados e proprietários que correm às SD e seus mecânicos calçadas e olham o céu. O reúnem-se na oficina em Vau mesmo acontece com as Girard, no 15eme. É uma repartições públicas, os reunião tensa. SD exibe as escritórios, o comércio e pranchas de projeto do as fábricas. No alto de Número 3. uma das torres da Catedral de Notre Dame, um certo SD corcunda horroroso - Amigos, nos projetos desentoca-se e olha para anteriores, a minha o céu, com o seu único inexperiência permitiu os olho protegido do sol por aconselhamentos de uma das mãos. O pipocar aeronautas de balões do motor do Número 3 "Outro desastre. Susto Geral." esféricos, que se passa a ser o ruído que 44 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME todos ouvem passando sobre suas cabeças, precedido da grande sombra que projetava-se nos telhados e ruas da cidade anunciando o grande charuto do Número 3, que logo surgia imponente, como se fosse uma nuvem feita à compasso, geométrica e que não esvanecia. E que trazia, pendurado por uma teia de cabos e cordas que traçavam o seu delicado cordame, a pequena barquilha motorizada, deixando um leve rastro de fumaça à ré, com o seu piloto de chapéu já conhecido e copiado em Paris, hasteando orgulhoso uma vasta bandeira do Brasil a tremular ao vento. O Número 3 dirige-se à Torre Eiffel, ultrapassa-a, ruma ao Parc des Princes, onde crianças e suas babás pasmam em vê-lo e segue para Bagatelle, onde aterrissa suavemente, paralisando uma acirrada partida de pólo que ao lado se disputava entre homens a cavalo fotógrafo e comecei a seguilo, no seu automóvel. Agora sei por que não quis que eu o devolvesse ontem. Tramava tudo isso, não é? SD - Houve também uma certa coincidência. Passei a noite O "Número 3" em claro na Vau Girard e não podia encontrar-me consigo. Queria sigilo total nos preparativos. E o Número 3 ficou uma beleza! Todos os meus cálculos verificaram-se corretos. Outros veículos vinham chegando com jornalistas, membros do AeroClube, amigos, curiosos. Prado, dos amigos, foi o último a chegar e abraçou SD eufórico. A pequena multidão pegou SD e levou-o sobre os ombros fazendo um passeio da vitória em Bagatelle. SEQUÊNCIA 28 Georges foi o primeiro a chegar, pilotando o automóvel elétrico de SD. Os mecânicos de SD já estavam lá, aguardando-o, como combinado. Georges tinha-o seguido por toda a Paris, com o fotógrafo do "Le Temps" e bateram várias chapas. Estava em transe. GEORGES - Vitória! Vitória! (abraça SD) Grande vitória! E não avisou ninguém, hein, seu malandro! Eu estava no jornal quando começou o rebuliço. Corremos para fora e lá estava Você, sobre as nossas cabeças. Chamei o No dia seguinte, pela manhã, acontecia, como previsto, a sessão solene de fundação do Aero Clube de Paris. Todos os membros fundadores lá chegavam trazendo diferentes jornais debaixo do braço, que exibiam na primeira página o mesmo assunto: o vôo surpresa do Número 3. SD foi dos últimos a entrar no auditório do Automóvel Clube e foi imediatamente aplaudido de pé por todos os presentes. O advogado Ernst Archdeacon, que presidia a sessão, convidou-o para compor a mesa, mas ele educadamente d e c l i n o u , preferindo sentar-se "O Número 3 eleva-se firme e tranquilo..." na platéia. Após as formalidades SD 45 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND levanta-se e pede a palavra. inusitadas: 30 metros de comprimento, 7 de largura e 11 de altura, com duas imensas portas de correr, ainda fechadas. SD - Amigos, esta data me traz tão grande felicidade que não posso deixar de registrála em breves palavras. Desejo anunciar que, amanhã mesmo, darei início à construção de uma estação-garagem para meus dirigíveis em St. Cloud. E prometo realizar lá todas as minhas próximas experiências. Tenho a convicção de que St Cloud está destinado a ser o primeiro ninho da aeronáutica do mundo! Muito obrigado. (todos o aplaudem, e Deutsch pede a palavra) UM DOS PRESENTES (comentando para um outro, ao seu lado) - Que prédio mais esquisito! E essas portas de correr enormes? Serão empurradas por máquinas? Ou por gigantes? O Príncipe Bonaparte corta com uma tesoura uma fita de seda que lacrava as duas portas. Gasteau e Dazon, recentemente contratados por SD, encarregam-se de abrir as portas usando apenas uma das mãos, num movimento feito sem qualquer esforço. Lá dentro, bem guardado e cheio de gás, estava o Número 3, pronto para voar, em toda a sua imponência. DEUTSCH - Aproveito esse momento para anunciar que estou depositando nos cofres do Aero Clube a importância de 100 000 francos. Eu os ofereço ao aeronauta que conseguir, partindo do Campo de St. Cloud, levar sua aeronave, em vôo por ele controlado, até a Torre Eiffel, contorná-la, e voltar ao ponto de partida, num tempo igual ou menor do que trinta minutos. Tenho dito. (novos aplausos, seguidos de comentários) SD (para Bonaparte e os demais que o acompanhavam na visita ao interior do hangar) - Agora não preciso mais desperdiçar o valioso hidrogênio enchendo e esvaziando o invólucro a cada vôo. Posso guardá-lo muito bem aqui, e em segurança, sempre pronto para partir. UM DOS PRESENTES (para um outro, ao seu lado) - Prêmio fácil de oferecer; pois é impossível ganhá-lo! A seguir, SD orienta os seus mecânicos para retirar o Número 3 para fora do hangar. Eles o fazem e SD entra na barquilha, dá o sinal e alça-se aos ares, fazendo várias evoluções em baixa altitude, subindo e descendo, manobrando à vontade, sob a admiração de todos. Enfim, decide pousá-lo e o faz com a b s o l u t a perfeição exatamente no lugar de onde saíra. Depois, sai da barquilha, sob os aplausos da entusiasmada platéia. O OUTRO - Pelo que vi ontem, não é tão impossível assim. Mas o Sr Santos é o único concorrente. SEQUÊNCIA 29 Inauguração do hangar de SD no campo de St. Cloud. Uma p e q u e n a multidão se aglomera diante daquele estranho e d i f í c i o , projetado por SD, com dimensões O 1º hangar do mundo: "Que prédio mais esquisito!"... 46 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME SEQUÊNCIA 30 (O Número 4) finalmente montadas e testadas em vôo. Reunião de SD e seus mecânicos na nova oficina secreta, ainda incompleta, anexa ao apartamento de SD nos Champs Elysées. SD percorre os espaços vazios com a planta por ele desenhada do seu projeto de ocupação e os seus planos de trabalho, mostrando-os a Chapin, Gasteau e Dazon, maravilhados. Depois, sentam-se em volta da mesa da Biblioteca, e SD abre um novo rolo de plantas e desenhos do seu novo projeto. DAZON - Não seria mais prático fazer tudo lá, ou em Vau Girard, como vínhamos fazendo? SD - Amigos, somente Vocês terão acesso a esta oficina e sob o juramento de sigilo. Aqui vamos ter a oficina mais completa e segura para projetar e construir as nossas futuras aeronaves, a começar pelo dirigível Número 4 que projetei, calculei e desenhei nestas plantas. Somos os primeiros e, por enquanto, os únicos concorrentes ao Prêmio Deutsch. Com base na experiência dos anteriores, calculei um novo balão dirigível com aerodinâmica e propulsão mais eficientes, para ganhar essa prova. Se conquistarmos essa vitória prometo-lhes que concederei boa parte do seu valor em dinheiro a Vocês e seus auxiliares. CHAPIN - Sim, agora entendo. O Senhor decidiu-se por registrar patentes de seus inventos... SD - Talvez, Dazon, mas lá não teríamos a disponibilidade de recursos que aqui vamos ter e, o que é mais importante, poderemos prosseguir nossos trabalhos em perfeito sigilo. SD - Não, Chapin, não é esse o motivo do sigilo. Com a inauguração da Grande Exposição no próximo mês, o mundo inaugura uma nova era: a era da competição. Diversos prêmios estão sendo divulgados com objetivos científicos e industriais, inclusive no campo da aeronáutica. O estímulo e a atração que eles provocam atinge muitas pessoas, honradas ou não. Vamos ter muitos concorrentes, a maioria dispostos a qualquer expediente para vencer. E, desses, nos protegeremos aqui.. Por isso construi essa oficina em pleno coração de Paris. Por fora, vê-se apenas um galpão abandonado e em desuso, e ninguém suspeitaria que o carroceiro Louis, surdo mudo - que toma conta dessa propriedade há anos, e é meu amigo leal e de confiança - seja o seu guardião. Trabalharemos aqui sossegados, sem perigo de ser roubados ou aviltados... Vamos ao Número 4. CHAPIN - Mas, senhor, qual a razão dessa honra? O senhor nos paga tão bem ... SD - Meu caro Chapin, não desejo de Vocês apenas a eficácia e a competência. Queroos competindo também, juntamente comigo. Sem Vocês não sou nada! É justo que participem dele tanto quanto eu, com espírito de equipe, de fato estimulada para a vitória. SD (narrando a Georges e Prado na oficina, sobre as cenas da construção do Número 4 e sua montagem no hangar de St. Cloud, até a preparação para o primeiro teste de vôo) - O Número 4 foi desenhado para ganhar o Prêmio Deutsch ainda no ano da Grande Exposição o que, infelizmente, não foi possível. Dei forma mais esbelta e aerodinâmica ao invólucro e motor bem mais potente de 7 HP e dois cilindros, que inventei GASTEAU - Vamos construi-lo aqui? SD - Aqui vamos construir e testar cada elemento, cada peça, cada sistema de comando e funcionamento das aeronaves. Depois levaremos para St. Cloud, onde serão 47 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND para propulsão de dirigíveis. Para ganhar peso, abri mão da barquilha de vime, e a substituí por um quadro e celim de bicicleta sobre o qual voei assentado, com os pés nos pedais, e que permitiam dar partida ao motor no solo ou em vôo. (foto) Eu ficava exatamente no baricentro do dirigível, com todos os controles à mão. Georges deve lembrar-se de quando o mostrei pela primeira vez, em St Cloud. Estavam presentes Jauré e Rochefort, inimigos políticos figadais, e a eximperatriz Eugênia... ..."abri mão da barquilha de vime, e a substituí por um quadro e celim de bicicleta"... ROCHEFORT - Bem, nesse caso já não estaremos mais aí para vê-lo... SD mostra o seu Número 4. (Legenda: Campo de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 1 de agosto de 1900) JAURÉ - Certamente que não. O que fazemos agora é construir o futuro; assim como também o faz o Sr Santos-Dumont. ROCHEFORT - Sr Jauré, mas que surpresa! Um socialista frequentando a elite parisiense! SEQUÊNCIA 31 (A Grande Exposição) JAURÉ - Não creio que o senhor pense assim, Sr Rochefort. Reputo-o homem inteligente e sagaz. Estou aqui pelo mesmo motivo que o senhor; venho ver de perto o ovo da indústria que ajudará ao proletariado libertar-se da ganância de seus patrões. Ela assinala o progresso irreversível da humanidade. O Número 4 desliza no ar em direção à Grande Exposição, numa perfeita linha reta. Uma sombra corta os pátios externos da Grande Exposição, super lotada de visitantes, que fazem enorme fila na bilheteria do cinematógrafo Lumière para assistir ao famoso “Viagem à Lua”, realizado pelo Sr ROCHEFORT George Meliés. Alguém grita: “é o petit - Quanto ao primeiro ponto não discordo, Santos” ! Todos olham para o céu. Fotógrafos Sr Jauré, mas suas prospecções quanto ao buscam posições e ângulos. Surge então, futuro não seriam por demais otimistas? Crê rasante, sobre os grandes portões artque apenas um século seja suficiente para nouveau da Exposição, o Número 4, como por abaixo tradições que levaram milênios se fosse uma nave de outro planeta, com o consolidando-se? seu motor rugindo bem mais forte do JAURÉ que o antigo - E por que não, Sr pipocar do Número Rochefort? Em 3, e a bandeira do Política, como nas Brasil tremulando Artes, o novo é que abaixo do leme. prevalece. Não diria Todos acenam para para o seu início; o piloto que mas posso prever um corresponde com grande governo outros acenos, socialista na França gentilmente, para o para o último quartel público. Em ..."O Nº 4 se vai, em direção ao seu "ninho"."... do Século XX... seguida, realiza 48 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME várias manobras. Destaque para os membros do Congresso Internacional de Aeronáutica, especialmente o respeitável Prof. Langley, do Smithsonian Instituition. Depois de diversas manobras nas quais sobe até quase desaparecer e desce até a poucos centímetros do solo, e circundando todo o espaço da exposição, o Número 4 se vai, com os aplausos da multidão, em direção ao seu “ninho”. Um verdadeiro show! soluções para obter melhor rigidez dos invólucros, com o motor de dois cilindros, com a aplicação de cordas de piano aos cordames, com as estruturas flexíveis de bambu e madeira, enfim, uma luta permanente contra preconceitos que só criam quimeras anti- científicas, e retardam os experimentos do progresso. Cada aeronave que ponho em vôo enriquece-me de novos problemas cujas soluções vou encontrar, em primeiro lugar, nos livros e estudos teóricos competentes, como os do Prof. Langley, que tanto nos honra com sua presença. (aplausos) - Eles fornecem luzes e princípios sobre os quais trilham o saber, o raciocínio e a intuição do inventor. Estou no meu dirigível Número 4, com o qual pretendia conquistar, ainda neste ano muito especial, o Prêmio tão oportunamente oferecido pelo Sr Deutsch de La Meurthe, também honrando-nos com sua presença. (mais aplausos) - Porém, a sorte não me foi favorável e novos problemas surgiram, mas que espero tê-los resolvidos no Número 5, em projeto na minha prancheta. Mas, contudo, este foi um ano de fundamental importância, pois fez-se por merecer ao título de “Portal do Século XX”, que se abre em Paris, e pelo qual haverá de passar todo ser humano civilizado que tiver a sorte de viver e gozar dos confortos e privilégios que os gênios pioneiros de Marconi, Edson, Pasteur, Grambell, Freud, Hertz, Lumière, Lilienthal e muitos outros nos concederam. (aplausos prolongados) - E para encerrar, senhoras e senhores, devo dizer que o mundo necessita de cérebros preparados pela ciência para cuidar dos misteres e das variáveis que a Natureza nos apresenta, a fim de buscar-lhe os modelos teóricos, físicos, químicos, matemáticos e biológicos. Eles serão a matéria prima do inventor do futuro, cujo papel será o de dar a aplicação industrial aos benefícios que a ciência moderna oferece à Humanidade. Muito obrigado. (muitos aplausos) 15 dias depois, todos os jornais, de todo o mundo, vendidos nas bancas da exposição, mostravam na primeira página o show aéreo do Número 4. Uma bela mulher (Aida D’Acosta), com o "Le Temps" numa das mãos, compra um ingresso na bilheteria do auditório, e entra no hall de um salão onde se anuncia: “Congresso Internacional de Aeronáutica. Hoje: Palestra do eminente Aeronauta Santos-Dumont”. Entrega o bilhete ao porteiro e entra atrasada na sala repleta onde SD já começara a sua palestra, e sentase numa poltrona da última fila. SD (no pódium de palestras do auditório, falando de improviso) ... então, senhoras e senhores, enfatizo a importância do estudo teórico-científico, do cálculo matemático e do projeto técnico para a construção das máquinas do futuro, especialmente as aeronaves. Tudo que se fez até pouco tempo, com raras exceções, é fruto de puro empirismo, de tentativas de melhor ou pior intuição. A série de dirigíveis que concebi e construí, e os demais inventos que vieram-me para solução dos problemas que surgiam a cada passo, demonstram-no com clareza. Quando substitui as pesadas lonas dos balões pelo levíssimo tecido de seda japonesa, fui admoestado pelos empíricos, mas não dei-lhes ouvidos porque meus cálculos e testes garantiam-me a certeza da escolha. O mesmo se deu quando propus pôr em vôo um motor de explosão a petróleo. Os empíricos afirmavam que a trepidação produzida espedaçaria a estrutura da aeronave. Há poucos dias, todos puderam vê-lo, em pleno funcionamento, sobre suas próprias cabeças. Também com minhas 49 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SEQUÊNCIA 32 (O Número 5) meio da rua entre as árvores e os prédios de um pequeno largo. (foto) SD ainda trepado em seu celim responde às perguntas dos repórteres e pousa para os fotógrafos. Começam a chegar, enfim, os seus convidados. SD acompanhado de um grupo de senhores de cartola, senhoras e senhoritas muito bem vestidas, numa demonstração do Número 5, no seu hangar em St. Cloud. (Legenda: Campo de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 12 de julho de 1901) SD (para os repórteres) Desculpem-me, senhores, tenho convidados para um CHAPIN (como se drink, permitem-me? fizesse uma palestra (desce do Número 5 dá ..."tenho convidados para um drink"... para atentos alunos) o braço a uma das - O Número 5 da série do Sr Santos-Dumont, moças e abre caminho na multidão, em é, em verdade, um aperfeiçoamento do direção ao Café Trocadero, seguido por Número 4. O motor retornou à popa, pois todos) essa posição configurou-se a mais adequada ao vôo e ao conforto do piloto. Aumentamos também a potência para 16 HPs e o número SEQUÊNCIA 33 de cilindros para quatro. O cordame foi alterado com a inclusão de cordas de piano, Os membros da Comissão Julgadora do e demos-lhe uma estrutura mais rígida em Prêmio Deutsch chegam ao Campo de St. madeira. Também o invólucro ganhou mais Cloud. (Legenda: Campo de St. Cloud, Aero alongamento, passando de 27 para 33 metros Clube de Paris, 13 de julho de 1901) O Sr. de comprimento. Deutsch lê a convocação de SD, em voz alta. SD (ao público, já “montado” no Número 5) - Vou fazer alguns testes sobre os Campos de St. Cloud e Longchamps, e sobre a cidade de Paris, onde, se o tempo permitir, desejo fazer uma aterrissagem de precisão nas ruas da cidade (exclamações de espanto) - Escolhi um local próximo ao Hotel Trocadero. Convido - os para tomar um aperitivo em algum estabelecimento das imediações. Até lá, senhoras e senhores. DEUTSCH - “Em obediência ao regulamento do Prêmio Deutsch e seus acréscimos de fevereiro de 1901, venho, pela presente, convocar VExas para presenciar uma prova que pretendo realizar no dia de amanhã, 13 de julho de 1901, às 8 horas, no Campo de St Cloud. Mui respeitosamente, (ass) Alberto SantosDumont.” SD já está pronto para largar, e posa para fotógrafos. O Presidente da Comissão, Príncipe Rolland Bonaparte, olha para o seu cronômetro Patec Philip e acerta-o com os dos demais membros da Comissão. Georges também acerta o seu relógio e repara que SD mexe numa pulseira esquisita, colocada no seu pulso esquerdo. O Número 5 sobrevoa Paris, perto da Torre Eiffel. SD manobra-o com precisão e lentamente vai descendo até desaparecer, com invólucro e tudo, entre os telhados dos prédios. Corte para a rua em frente ao Trocadero, com uma multidão embaixo do Número 5 tranqüilamente estacionado no 50 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME BONAPARTE - Largar! olhando ao largar, no seu pulso esquerdo. O que é? O Número 5 projetou-se em linha reta, na direção da Torre Eiffel. Ao chegar perto, a câmera está no seu interior. SD contorna a Torre Eiffel e olha o seu relógio de pulso: 9 minutos se passaram. Tudo bem. Faz o contorno e percebe o vento de proa que o retém. De repente, o motor parou bruscamente. O dirigível passou a ser um simples balão à mercê dos ventos e começa a perder altura. Sem perder a calma, SD dirige-o como pode até os jardins do Sr. Edmond de Rothschild, mas não consegue ultrapassar as copas das árvores mais altas que se entrelaçam aos cordames, seguram o conjunto e perfuram o invólucro que vai diminuindo gradativamente, perdendo a imponência, caindo lentamente, até que SD possa agarrarse a um dos galhos das árvores a poucos metros do chão. Os guardas do Sr. Rothschild são os primeiros a chegar e ajudam-no a descer até o solo. Depois começam a chegar os repórteres, fotógrafos e os membros da Comissão. SD mantém-se impecavelmente vestido, com sua grande gravata vermelha sobre a imaculada camisa branca de mangas compridas e o seu chapéu panamá. Ele posa para os fotógrafos ao lado do Sr Deutsch. (foto) Quando chegam Georges e Prado (Prado, como sempre aflito, suando e enxugando o rosto com seus enormes lenços brancos) SD já está dando orientações para seus mecânicos, para o resgate de seu dirigível. GEORGES (sorridente) - Como pode-se notar, está tudo bem, claro. Minha curiosidade agora é por aquela esquisita pulseira que o observei SD (rindo, mostrando o pulso esquerdo com o relógio e desabotoando a sua fivela) - É um relógio que inventei, Georges. Foi a solução que achei para acompanhar o tempo de vôo durante a prova. Guarde este como lembrança. Encomendei meia dúzia ao Cartier. GEORGES (olhando admirado aquela maravilhosa invenção) - Mas que idéia genial, Alberto, um relógio de se por no pulso! Fico lisongeado com o presente! Sou o segundo homem deste mundo a usálo, não? (prendeu-o ao seu pulso e ficou a olhar para o relógio, encantado) SD - Com certeza, Georges, e Pradô deverá ser o terceiro. Mandei fazer seis em ouro, um para cada um de nós, e meus mecânicos. Usarei o meu no próximo vôo, quando conquistaremos o Prêmio Deutsch. GEORGES - Esse Você patenteou! Tem de patentear! É um absurdo não fazê-lo! O Cartier vai ganhar uma fábula com ele! SD - Já entreguei a patente ao domínio público no escritório de registros. Cartier vai produzi-lo em série com o nome Dumont. Me dou por honrado, é um grande relojoeiro. PRADO (quase chorando para SD) - Alberto, eu o ouvi referirse a um próximo vôo?... ..."Como pode-se notar está tudo bem!"... 51 Nesse momento, surgem dois criados, um deles SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND carregando um pequeno cesto de vime. (e, olhando para a própria gravata) - Tenho de providenciar uma outra gravata... essa gravata vermelha pode ser tomada como uma afronta... é um símbolo republicano no Brasil... (SD ficou pensativo. Enfim, decidiuse, retirou um dos guardanapos bege da cestinha e improvisou rapidamente ao pescoço uma nova gravata, dando, com perfeição, um laço elegante) - Que tal? Está melhor? UM DOS CRIADOS - Senhor Santos-Dumont, somos criados da Princesa Izabel, do Brasil, e vizinha do Sr. Edmond de Rothschild. Ela soube do acidente e mandou-nos ter notícias. Mandoulhe também esse pequeno lunch, este envelope e um convite para o senhor almoçar com ela, em uma hora, na sua casa. (entregou a SD o envelope, que o abre e começa a ler) PRADO - Sim, bem melhor. Vou aceitar o convite. Você tem alguma razão... Mas não devo demorar- me. Sales chamou-me e amanhã embarco no Arcona. SD (comentando enquanto lê o bilhete) - É muita delicadeza da Princesa Izabel. Digalhe que está tudo bem e que o convite foi aceito e... o que é isso? Ah, sim, uma medalhinha... (e lê para Prado o bilhete) “Senhor Santos-Dumont..- Envio-lhe uma medalha de São Benedito que proteje contra acidentes. Aceite-a e use-a na corrente de seu relógio, na sua carteira ou no seu pescoço. Ofereço-lhe pensando na sua boa mãe e pedindo a Deus que lhe socorra sempre e lhe ajude a trabalhar para a glória de nossa pátria. Izabel, Condessa D’Eu”. - E então, Pradô? Tenho fome! (abre a cestinha e retira um bom sanduíche) - Aceita um? (Prado recusa) - Que tal se me acompanhasse à casa da Princesa? SEQUÊNCIA 34 (A Princesa Izabel) A landau de Prado chega à casa da Princesa Izabel. SD e Prado conversam. PRADO - Tenho certeza de que a medalhinha é obra do Henrique, lá no céu, Alberto. Por Você ele faria tudo! Não deve estar aguentando suas traquinagens aéreas. Pediu ajuda a São Benedito. É a única explicação! PRADO - Sempre gostei da Princesa Izabel, Alberto. Também foi amiga de minha mãe. Mas, não acha que um Embaixador da República seria mal recebido na casa de uma princesa exilada? E ela convidou apenas a Você... SD - Acalme-se, Pradô, as coisas não são tão perigosas!. O dirigível é seguro; em casos de pousos forçados cai muito lentamente. E o piloto ainda tem recursos, se tiver experiência e sangue frio. Me sinto bem preparado. SD - Ora, Pradô, não seja incivilizado. A Princesa, além de muito educada, é brasileira. E na mesa de uma senhora brasileira sempre terá lugar para um patrício, ou qualquer um que apareça na boa hora. Não é como na França, lembre-se. E não seria dever de um bom Embaixador aproveitar oportunidades que contribuam para a diminuição das tensões entre adversários políticos? Eis aí a sua chance de tentar moderar os ataques da nobreza brasileira exilada aos governos republicanos! A landau estaciona. A Princesa está na porta para recebê-los. PRADO - Já desisti de pedir-lhe que pare com essas loucuras, Alberto. Só me resta pedir a Deus, a São Benedito e a Henrique que o protejam lá de cima. Aproximam-se da sorridente Princesa. SD - Princesa, fiquei sensibilizado com 52 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME as suas gentilezas e o seu convite, e quero agradecê-la em nome de minha mãe, no do meu falecido pai e no meu próprio. Tomei a liberdade de trazer o Embaixador Prado, inseparável companheiro das minhas aventuras nos céus de Paris. Sua função é pedir por mim na Embaixada do Reino de Deus. Espero que a Senhora não se importe... vivo! Num governo como o de papai, Alberto teria grande ajuda do estado para prosseguir nos seus inventos. PRADO - Madame, o Brasil passa por uma fase difícil e problemática. Crises se sucedem ameaçando o equilíbrio das finanças, do comércio, da indústria... E somos poucos para dar conta de tudo. Eu, pessoalmente, faço o que posso para que nada falte a Alberto. Já no Governo as coisas se complicam. Num sistema democrático-republicano todos falam e apitam. Cada decisão é lenta, difícil. Coisas dos novos tempos! Mas, prometo-lhe, o Brasil e o seu Governo não estarão cegos aos sucessos de Alberto, e suas repercussões pelo mundo. Pelo contrário, uma das minhas missões, na viagem que faço ao Brasil amanhã, é levar subsídios para um apoio firme a Alberto, que está se tornando um herói nacional. PRINCESA IZABEL - De modo algum, meu menino Alberto. Nossa casa em Paris nunca fechou as portas aos nossos patrícios, sejam eles republicanos ou não. Seja bem-vindo a essa modesta morada de exílio, Sr. Antonio Prado, sua adorável mãe e eu éramos grandes amigas quando solteiras. Ela passa bem? PRADO - Um pouco atormentada pela artrite, madame, obrigado pela acolhida e pela lembrança. É com humildade e grande prazer que acompanho o meu amigo, peralta dos céus, até essa nobre residência. Aqui sou apenas um patrício, um amigo, e, também, com toda a sinceridade, um admirador exaltado daquela que tornou livres os escravos da nossa pátria, cuja condição tanto nos envergonhava. Receba as minhas saudações. PRINCESA IZABEL - Acredito no senhor, Sr Prado. Mas tudo está muito demorado e lento no Brasil. O tempo urge! As necessidades não esperam! Alberto tornou-se uma das maiores esperanças do nosso país. Mas, no concerto das nações, ele surge como solista isolado e desamparado. Se o Governo brasileiro fosse mais presente nas questões do progresso, outros Albertos não apareceriam? Temos muitos por lá. E nem todos com a chance que o Dr Henrique deu ao seu caçula. Eu mesma conheci rapazes estudiosos e aplicados que não a tiveram e alguns abandonaram os estudos para viver, ou a pátria e, até, a nacionalidade; porque a República nada faz para estimulá-los e ampará- los. Nos tempos de papai isso não acontecia. Pelo contrário, os Albertos daqui iam para lá! PRINCESA IZABEL - Entrem, senhores, por favor. Minha cozinheira é brasileira e pedi-lhe que nos preparasse uma das nossas especialidades: um franguinho ao molho pardo! Gostam? Na mesa, já almoçando as iguarias da Princesa. PRINCESA IZABEL - O senhor não acha, Sr. Prado, que o Brasil deveria dar maior apoio oficial e demonstrar mais interesse pelas experiências do nosso Albertinho? Tantas glórias tem ele propiciado à nossa pátria, neste século do progresso... Quando vejo a bandeira do nosso Brasil sobrevoando Paris em seus balões, meus olhos se enchem de lágrimas... Pedro, meu pai, ficaria tão orgulhoso dele, se estivesse PRADO - Madame, a senhora dificilmente vai encontrar admirador mais entusiasmado de seu pai, do que este que vos fala. Fui seu funcionário, ainda jovem, mas leal e dedicado e, sou, até hoje, um leitor assíduo de tudo o que escreveu. Minha opinião é a de que a 53 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND senhora tem toda razão. Mas a República ainda não teve um estadista como o seu saudoso pai, e temos de concordar que estadistas do porte do excelentíssimo senhor seu pai não são fáceis de se encontrar! Quanto a Alberto, também ele é difícil e único. Não é muito fácil tentar ajudar o Alberto, estou errado Alberto? foram esvaziadas. SD acaba de limpar o seu prato e, enquanto comia, esteve indiferente à conversa. PRADO (lembrando-se aterrorizado) - Graças a Deus eu não estava aqui! Graças a Deus! Foi a medalha de São Benedito, senão ele, em pessoa, que salvou Alberto desse acidente. No Brasil só nos chegou a versão dos jornais. Agora é a sua vez de falar, Georges. Sabe o que os jornais não publicam, e é o que mais costuma interessar. Sugiro inverter os papéis. Eu sou o jornalista e Você o entrevistado. Conte-nos como foi! Agora que passou, estou curioso. No Brasil, dava um soco no primeiro que viesse dizer-me alguma coisa. PRADO - Bem, chegou a vez do Número 6. GEORGES - Não, ainda temos o episódio do acidente do Trocadero. SD - Senhora Princesa, que delícia de manjar! A senhora permitiria que o meu cozinheiro viesse buscar-lhe a receita? Gostaria de cumprimentar a autora dessa perfeição, posso? PRINCESA IZABEL - Oh, e por que não? Ela ficará satisfeitíssima! Adora o senhor! Quando então o Sr passa em seus dirigíveis ninguém a segura na cozinha... (e, baixinho) - certa vez ela disseme que suas evoluções aéreas fazem-na lembrar os grandes pássaros do nosso Brasil. (e, para o criado, em português) - Altamiro, chame a Maria. (logo ela aparece, como se já aguardasse atrás da porta; é uma negra retinta e belíssima) - Maria, o Sr Alberto vai mandar o seu cozinheiro pegar-lhe a receita deste prato. Está autorizada a passar-lhe, sim? GEORGES - De fato, eu acompanhei tudo, cada passo... SD - Essa vou ouvir deitado no divã. Nada posso acrescentar ao que Georges sabe. E estou ansioso para ouvi-lo tanto quanto Pradô. (levanta-se e deita-se, confortavelmente, no divã) SD levanta-se e beija a mão da sorridente e bela figura, que, no seu deslumbramento, não consegue pronunciar uma só palavra. GEORGES (narrando em off) - Na tarde anterior ao acidente, Adrien e eu cobrimos a apresentação do novo embaixador dos EUA, o Sr. Henry White, no Palácio do Governo. Por coincidência, passamos aqui em frente quando íamos para lá, numa vitória do governo francês, e vimos Alberto e Chapin entrando na garagem do edifício, no automóvel elétrico de Alberto. A enfadonha solenidade foi muito demorada e Adrien saiu cedo, deixando-me para terminar o trabalho. Ao encerrá-lo, passei minhas anotações ao fotógrafo para levá-las ao jornal e decidi vir a pé até aqui para encontrar-me com Alberto e, talvez, jantarmos juntos. SD - Maria, Você só pode ser uma santa afilhada de Nossa Senhora Aparecida! Permita-me reverenciá-la e agradecê-la. Muito obrigado! SEQUÊNCIA 35 (Acidente do Trocadero) A cena retorna do longo flash-back à oficina de SD onde os três amigos conversam. Georges está com um caderno repleto de anotações. Três garrafas de vinho e três de água mineral já 54 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME Georges bate à porta do apartamento de SD. August atende. sente-se à mesa. O serviço virá em seguida. GEORGES (narrando em off) - Observando August dar as ordens na cozinha, com a porta entreaberta, percebi Pierre secando louça fina e cheguei a pensar que abusavam de Alberto, na sua ausência, usando a sua louça. AUGUST - Como vai, senhor Georges. Deseja entrar? GEORGES - Sim, August. Estou um pouco cansado. Alberto está? François entra com o vinho e o cálice de cristal. Traz também queijos e pães. Serveos a Georges que o agradece. AUGUST - O patrão não se encontra, senhor. Marcaram algum compromisso? GEORGES (ainda narrando em off) - Nesse momento tocou o telefone e August atendeu. Era Alberto. August falou ao meu respeito. Ouviu Alberto e desligou. Fiquei aborrecido com August por não ter me dado chance de falar a Alberto, mas ele logo se explicou. GEORGES (já no hall) - Não, August. Passei por acaso, e, quem sabe, para jantarmos juntos e combinar as coisas para a prova de amanhã. AUGUST - Creio que será difícil encontrá-lo, senhor. Nas vésperas de provas ele costuma chegar muito tarde. Quanto ao jantar, se o senhor nos der a honra, temos algo pronto na cozinha. AUGUST - Desculpe-me, Senhor Georges. O patrão está atarefado e pediu-me que me explicasse ao senhor. Disse que tudo corre como previsto e que o aguarda amanhã em St. Cloud às sete horas. GEORGES - Até que seria prático, August, se não os atrapalho... Assim ganho tempo e durmo mais cedo. Não temos tido folga para sonos mais prolongados ultimamente. GEORGES (em off) - Depois do jantar, August providenciou-me um tilburi e, ao sair do edifício percebi que o automóvel de Alberto estava na garagem, ao lado do triciclo e a velha charretinha que ele fazia puxada por um avestruz. Estranhei, perguntando-me quem teria levado Alberto à St Cloud, mas não dei importância. Agora sei que Alberto estava mesmo é aqui, na sua caverna secreta, não é Alberto? AUGUST - De modo algum nos atrapalha, senhor Georges. Queira vir comigo até a sala de jantar. Entram na sala de jantar (ainda com os móveis “normais”) SD (no divã, rindo) - E testando um motor que, fora da cabine de testes, poderia ter sido ouvido por toda a Paris. AUGUST - Temos pernil de carneiro assado, senhor. O que deseja beber? GEORGES - Aceitaria um bom vinho tinto, August. Talvez ajude-me a ter sono. Obrigado. GEORGES (voltando à narrativa em off) - No dia seguinte chegamos cedo a St Cloud. (Legenda: Campo de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 8 de agosto de 1901) Com a movimentação do dia anterior, não pude fazer a preparação que AUGUST - Pois não, senhor. Fique à vontade, 55 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND desejava para pelo telefone, cobrir a prova. Fui do outro lado apenas com um da linha) fotógrafo, deixando a equipe de VOZ DE ELISE prontidão no jornal, (por telefone) e Elise, nossa nova - Ele caiu, ele jornalista, dentro da caiu... uma Torre Eiffel, com t e r r í v e l ligação direta, por explosão... não telefone, para o há fogo... todos jornal e para St. correm para lá... Cloud. O Número 5 estava reformado e G E O R G E S parecia per feito. (aflito, ao Pensávamos que o telefone) ..."O Nº 5 indo em direção à Torre Eiffel como uma flexa"... Prêmio seria ganho - Elise, Elise, naquele dia. Toda a Comissão estava Você pode vê-lo? presente. ELISE SD - Ainda não, vejo apenas os cordames e os - “Lachez tout!” (e parte com o Número 5 pedaços rasgados do balão sobre o telhado... em vôo rasante em subida.) ele caiu para o outro lado... Oh, meu Deus... GEORGES (em off) - O vôo começou soberbo, com o Número 5 indo em direção à Torre como uma flecha. Tinham-se passado nove minutos quando Elise anunciou-o ao seu lado, na metade da altura da Torre, iniciando manobras de retorno. GEORGES (aflitíssimo, com muita gente ao seu redor tentando escutar o relato) - Mas são quase vinte metros de altura... Alguém do jornal está escutando? É preciso mandar alguém para lá imediatamente. ADRIEN (no telefone, olhando pela janela) - René está lá, Georges. Espere, está me fazendo sinais... ele está rindo, parece que está tudo bem. Sim, René faz sinal positivo, tranqüilize-se, creio que não se machucou... os bombeiros estão chegando, posso vê-los... ELISE (observando o Número 5 de dentro da Torre Eiffel) - Minha impressão é de que as coisas não vão bem. O invólucro está murcho e o motor falha ; mas ele tenta a manobra de volta... parece que há problemas... o invólucro murcha mais e mais... o motor falha... o motor parou... está com a hélice presa nas cordas frouxas do balão. O dirigível aproxima-se muito da Torre, empurrado pelo vento; posso ver o senhor Santos a poucos metros de mim; parece calmo e tenta soltar as cordas que prendem a hélice... está perdendo altura... o motor não funciona apesar das tentativas do piloto... ele está em perigo... está caindo... Oh, meu Deus!, vai cair em cima do Hotel Trocadero... bateu no telhado... (o balão explode com um estrondo que Georges ouve A câmera mostra SD pendurado na parede lateral do Hotel, a uns quinze metros de altura, salvo, literalmente, por um fio do cordame que embaraçou-se no seu corpo e prendeu-se em algum lugar do telhado. (foto) SD não se afoba; dá ordens e orientações lá de cima para os bombeiros, demonstrando perfeita tranqüilidade e presença de espírito. Finalmente um bombeiro o alcança. A multidão aplaude vigorosamente. Sobre essa cena a voz de Prado é ouvida em off. PRADO (em off) 56 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME - Foi São Benedito! Foi ele! Henrique conseguiu! Consegue o que quer, aquele danado, até no céu! Foi São Benedito, Georges! Posso garantir. PRADO - Isso torna tudo duplamente perigoso. Já não é fácil voar sem sabotagem. Com sabotagem, é melhor desistir logo... A cena volta para a oficina, com Prado ainda falando. SD - Isso é o que os sabotadores querem que todos pensem, Pradô. E, de fato, não deixa de ser verdade. Por isso começamos a estudar alter nativas e estratégias para evitar sabotagens. PRADO (suando e passando seu enorme lenço no rosto) ... Essa eu não resistiria! Meu coração não aguenta... sabem... PRADO - Como assim? Melhor, conte-me primeiro o que está se passando... (e enche uma taça de vinho, até a boca, e limpa o suor do seu rosto com o lenço) GEORGES - Aqui entre nós, Prado, e isso é assunto para não sair daqui. Mas Alberto, seus mecânicos e eu, temos certeza de que houve uma sabotagem... GEORGES (em off sobre a repetição do vôo em outros ângulos) - Alberto fez essas provas com o Número 5 em vôo de baixa altitude para proporcionar SD um espetáculo melhor à multidão. Todos em - Shhhh! Não se fala mais nisso... Paris sabiam que o Prêmio Deutsch já tinha o seu ganhador. Inclusive Alberto, e por isso PRADO fez um vôo para espetáculo. Quando passou - Como, não se fala?! por Longchamps, Querem matá-lo e não pouco acima da copa se fala mais nisso? das árvores, ele ouviu Estão malucos? Quero um ruído semelhante a polícia investigando ao dessas garruchas tudo amanhã mesmo. de ar comprimido que Nem que tenha de ir começaram a fabricar oficialmente ao Palácio recentemente. do Governo; ao (filmagem em câmera Primeiro-Ministro, se lenta, do dirigível preciso for... passando perto da copa de uma árvore e GEORGES parece ter alguém - Calma, Sr Prado. Não entre as ramagens era o caso na época, e com uma garrucha muito menos agora. como no assassinato Sem provas concretas e de Kennedy - ouve-se irrefutáveis é o tipo do um ruído e o assunto que só invólucro dá uma prejudica o trabalho de ligeira sacudidela) Alberto. O que temos Em seguida ele são suspeitas; mas percebeu a perda de suspeitas sérias... gás no balão, mas ..."salvo, literalmente, por um fio"... ainda pouca e PRADO - O que? Sabotagem?!... 57 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND acreditou que daria para concluir. Já na Torre Eiffel, sem poder ganhar altura, o motor começa a falhar e pára, ainda antes das cordas embaraçarem-se na hélice. Exames posteriores demonstraram que havia mistura de vernizes não- combustíveis na gasolina. Nos pedaços que sobraram do invólucro foram achados dois pregos dobrados, com duas pontas. Podem ter sido do telhado do Hotel, mas achamos que foram expelidos da garrucha criminosa, do alto de alguma árvore em Longchamps. SD - Passei a processar a gasolina aqui, Georges, isso Você ainda não sabia. GEORGES - Sim, somente hoje conheci essa oficina secreta. Mas nisso confio inteiramente em Você, Alberto. Minha parte é a imprensa, a publicidade, e o uso dela no esquema antisabotagem. PRADO - Esquema anti-sabotagem? PRADO - E como conseguiram evitar a sabotagem no vôo do Número 6? SEQUÊNCIA 36 (O Número 6) GEORGES GEORGES (agora em off sobre as imagens - Não somente nós desconfiamos de correspondentes) sabotagem. Muita gente em Paris não engoliu - Adrien também suspeitava de sabotagem e este acidente com facilidade. Ninguém ousa deu-me carta branca para agir. Cedeu-me falar, é claro. Mas todos têm acompanhado mais um fotógrafo para acompanhar Alberto. de perto, e razoavelmente bem informados, Quando o Número 6 ficou pronto (SD e os as experiências e os progressos de Alberto. mecânicos tirando o Número 6 do hangar) Acidentes com mau tempo, ventos fortes ou, combinamos fazer algumas demonstrações até mesmo, alguns erros de cálculo, como públicas em baixa altitude, em locais no caso do Número 1, são naturais, podem diferentes, sob pretextos diversos. A primeira acontecer. Mas os dois acidentes do Número foi no hipódromo de Longchamps a pretexto 5, sem nenhuma causa externa aparente, de medir a velocidade em vôo. Enquanto tornam-se, de fato, suspeitos. É conhecido o Alberto dava o máximo de velocidade no cuidado com que Alberto Número 6, Maurice e seus mecânicos Farman, no seu constroem e preparam as automóvel, seguia a suas máquinas e balões. corda guia. Medimos Cada milímetro quadrado uma velocidade de 35 dos invólucros é revisado, km/hora, naquele dia. um a um, antes de voar. O meu segundo Os motores são fotógrafo ocupava-se construídos com as em fotografar pessoas melhores ligas e materiais que assistiam. Nesse e testados à exaustão. dia houve pouca gente. Além disso, o povo de Outra vez foi sobre o Paris não esconde a sua Café Le Cascade. simpatia e a sua torcida Alberto fez várias pelas vitórias de Alberto. evoluções e depois Por isso, quando o desceu em frente ao Número 6 ficou pronto, Café e chamou a todos Alberto e eu combinamos para um aperitivo. uma estratégia para a Nesse dia houve muitos O Número 6. próxima prova. curiosos. Ao retornar 58 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME para St. Cloud, a corda guia agarrouse numa árvore e Alberto teve de soltar gás para desgarrá-la. Isso impediu-o de subir e teve de voar bem baixo. Então, o povo que assistia pegou a corda guia e puxou o Número 6, numa folia coletiva, até seu hangar em St. Cloud. Esse episódio demonstra bem a popularidade de Alberto em Paris. que sempre acompanhava essas provas. Aquele dia amanheceu com mau tempo e somente cinco membros da Comissão Julgadora compareceram à convocação de Alberto. (Legenda: Campo de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 19 de outubro de 1901) Os Srs Deutsch de La Meurthe, de Dion, de Fonvielle, Besaçon e Aimé. Os demais não acreditaram que haveria prova e não foram. Mesmo preocupado com as condições atmosféricas, Alberto decidiu levantar vôo... PRADO - Bem, e então? GEORGES (continuando em off) - Comparamos as fotografias e descobrimos dois senhores desconhecidos presentes em todas elas, inclusive na procissão que puxou o Número 6 até o hangar. Não eram franceses, via-se, e Adrien pediu a seus amigos na polícia para investigá-los. Até hoje não obtivemos resposta. Mas, para o dia da prova, toda a equipe do "Le Temps" estava sabendo que, se os vissem, deveriam avisar imediatamente, dando a sua localização. Consegui, com a ajuda de Adrien, a colocação de dois repórteres e fotógrafos, em posições intermediárias entre St. Cloud e a Torre Eiffel, uma nos Bois de Boulogne e outra no Sena, ambos ligados à Elise, no alto da Torre Eiffel, à mim, no Aero Clube e a Adrien, no jornal, por uma linha telefônica exclusiva. No Aero Clube e no Champ des Mars montamos sistemas de cornetas alto-falantes para que nossas vozes fossem ouvidas pelo grande público, SD - “Lachez tout!” GEORGES (no seu telefone) - Largou. Está subindo bem alto e parte em direção ao seu alvo. São 14 horas e 44 minutos. A multidão no Champ des Mars, ouvindo isso pelas cornetas alto-falantes, aplaude. No Aero Clube, idem. GEORGES (continuando ao telefone) - Dessa vez o Sr Santos preferiu um vôo em maior altitude. E lá se vai, bem alto. O PRIMEIRO REPÓRTER (ao telefone, no Bois de Boulogne, frente a uma grande vara fincada no chão) - Já aproxima-se da minha marca, deve cortála a qualquer momento...sim, passou-a, são 14 horas e 47 minutos, portanto, 3 minutos decorridos, e o dirigível segue à toda numa perfeita linha reta, muito alta. Tomadas do dirigível em vôo, do Aero Clube e do Champs de Mars. O SEGUNDO REPÓRTER (ao telefone, numa ponte sobre o Sena, com uma vara presa ao chão para marcar a posição) ..."Está subindo bem alto e parte em direção ao seu alvo"... 59 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND ... agora aproxima-se da minha marca. Vai passá-la em breve. São 5 minutos da largada, lá vem ele, o Número 6 do Sr Santos... atenção... quase chegando... vai passar... passou!, a 6 minutos de vôo e permanece firme e veloz em direção à Torre Eiffel. Agora é com Você, Elise. balão com vigor contra o vento. O Senhor Santos vai lentamente agora de volta para St Cloud, buscar o seu prêmio. Como estão os cronômetros oficiais, Georges? No meu relógio já se passaram 12 minutos, mas não tenho ponteiros de segundos como nos cronômetros... ELISE - Já o vejo daqui, vindo bem de frente e bem alto em minha direção. Vejo o dirigível aumentando de tamanho a cada instante... Parece que vai contornar a Torre pelo topo, bem cá em cima... sim, está chegando aqui... GEORGES (em off, para Prado) - Percebi, pela primeira vez, a necessidade de ponteiros de segundos em relógios. O mesmo aconteceu com todos, pois aglomeravam-se em volta da Comissão Julgadora, sempre perguntando pelos segundos. Pressentíamos que a prova seria decidida nos segundos e não nos minutos. Creio que nem Alberto contava com isso, pois o relógio que inventou também não possui esse ponteiro. Ao apelo de Elise, fiz sinal para o fotógrafo e pedi-lhe que chamasse o Maurice Farman ou o Pedro Guimarães, que tinham Patecscronômetros iguais aos da Comissão, e ajustados com os dela. Maurice atendeume, e chegou para perto, quando olhei, pela primeira vez, o tempo com os segundos: tinham-se passado 15 minutos e 43 segundos. Havia um silêncio geral. Cortes para o povo, para as cornetas altofalantes, etc. ELISE ... Sim, Georges, são 8 minutos decorridos e ele cruza a Torre Eiffel e começa a contorná-la, numa rota em círculo, perfeita. Os comandos parecem obedecer-lhe bem, vejo-o na sua barquilha... ele acena para o povo, lá em baixo... Cenas do povo aplaudindo. ELISE (continuando) ... ele começa a apontar para o rumo de retorno, são 9 minutos aqui, bem marcados. Cenas de expectativa em todos os lugares. Silêncio total, até nas cornetas. Alguém do povo grita. A cena da foto do início do roteiro. O POVO (jogando para o alto chapéus e bengalas) - Viva “le petit Santos”! Viva “le petit Santos”! ALGUÉM DO POVO (aflito, para a corneta alto-falante mais próxima) - Como é, não vai dizer o tempo?!... ELISE (continuando) ... a velocidade reduziuse muito, o vento, à sua proa, quase o parou no ar. Mas o motor parece muito bom, seu ruído está firme e ele empurra o GEORGES (retomando a locução por telefone) - Elise, conseguimos a presença do Sr Maurice Farman, que traz um Pateccronômetro ajustado 60 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME com o da Comissão. São... algumas senhoritas dão gritinhos de alarme) - Já o estamos vendo bem perto... se nada acontecer pode chegar a tempo... mas... o que é isso?... parece uma falha do motor?... sim, parece-me que o motor está falhando... (pessoas roem as unhas) - não, recuperou! recuperou!... ouço muito bem o ruído do motor vindo direto em nossa direção... temos... 28 minutos e 40 segundos, senhoras e senhores,... 28 e 50... 29... cravados, falta apenas um minuto..., está perto, muito perto, aqui vem ele... 29 e 15... está quase na linha de chegada, senhoras e senhores,... 29 e 22... vai passar... vai passar a tempo... 29 e 28... vai, ... passou!, ele passou!... ele ganhou! ... ele ganhou o Prêmio Deutsch, senhoras e senhores!... O SEGUNDO REPÓRTER (interrompendo) - Ele já vai passar agora a minha marca de retorno. Ele começa a inclinar a proa para um vôo em descida, provavelmente para ganhar tempo... vai passar agora... passou... Corte para SD, na barquilha, olhando o relógio. Parece tenso. GEORGES - São 19 minutos e 39 segundos... O SEGUNDO REPÓRTER - Com a descida ele consegue mais velocidade... mas o vento contrário continua forte e ele já está sobre o Bois de Boulogne... Pulos de alegria em todos os cantos, chapéus voam para todos os lados. O PRIMEIRO REPÓRTER - Sim, está vindo para a minha marca. Está descendo muito, e em breve estará aqui. Está atento ao tempo, Georges? GEORGES (continuando a eufórica locução) - O Senhor Alberto Santos-Dumont é o vencedor do Prêmio Deutsch, nessa tarde que vai entrar para a história da Humanidade, senhoras e senhores, os seus mecânicos já puxam a corda. O Número 6 está estacionado, cercado pela multidão... GEORGES - Sim, no momento em que ele passar a sua marca, Você diz e eu dou o tempo... O PRIMEIRO REPÓRTER - Está quase chegando, está bem baixo agora. O senhor Santos manobra o seu dirigível e altera a posição da proa, perto de Longchamps... ele dá uma violenta guinada e ganha mais altura...espero que não esteja com algum problema... Corte para SD, dentro da barquilha, com uma multidão em sua volta. SD - Ganhei? O povo aplaudindo e entusiasmado retira-o de dentro da barquilha e o carrega nos ombros, em comemoração pela vitória. Tensão geral em todos os rostos, inclusive de SD, vendo já o seu hangar em St Cloud e uma multidão perto dele. GEORGES (continuando a narração eufórica) ... é o primeiro homem deste planeta a conduzir pelos ares uma máquina, senhoras e senhores, com um percurso e tempo predeterminados, de ida e volta. Elise, aqui é uma grande festa, uma grande comemoração... o povo carrega o Senhor Santos nos ombros numa grande demonstração de carinho. E aí, no Campo de Marte? O PRIMEIRO REPÓRTER ... atenção... vai passar.... passou!... GEORGES (já aflito) - 23 minutos e doze segundos. Agora está bem perto de St. Cloud. Está fazendo uma perigosa manobra de recuperação de altura, consertando a proa do seu dirigível (SD passa raspando num prédio do Bois de Boulogne, dando um susto aos que o viam de St. Cloud, 61 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND ELISE - Aqui outra festa, Georges. Nunca tantos chapéus voaram ao mesmo tempo em Paris. Todos se abraçam numa grande alegria coletiva, felizes com a vitória de seu herói, o nosso “petit Santos”! Uma vitória difícil, mas digna dos grandes homens! popular... GEORGES - Mas, por quê? O que houve?... Para onde foram? PEDRO - Ouvi uma conversa de novas regras que não foram cumpridas na prova, Alberto. Acho que foi isso que ouvi. Sabe alguma coisa sobre mudanças de regras? GEORGES - Todos estamos muito emocionados, Elise, e toda a Paris estará em festa por este importante acontecimento. Nós, do "Le Temps", prometemos para a edição de amanhã um trabalho completo de reportagem dessa emocionante corrida do homem e a máquina contra o tempo e os cronômetros. Vamos encerrar aqui. Boa tarde para todos e para Você Elise, e os repórteres que nos acompanharam a cada minuto, digo, a cada segundo. Desligo. SD - Mudanças de regras? Não, não deve ser isso. No caso de mudança de regras eu teria de ser avisado. Afinal sou o único competidor desse prêmio?! GEORGES - Disseram para onde foram? Precisamos ir até eles. Quero saber o que aconteceu. Georges desliga e vai em direção a SD, no meio do povo, para abraçá-lo. Abraçam-se. MAURICE - Não nos disseram. Havia uma bela discussão entre Deutsch e Fonvielle. Foi o Besaçon que nos passou o recado enquanto empurrava o Aimé e o De Dion para dentro da landau. Deutsch e Fonvielle foram no automóvel, discutindo aos berros, quase a trocar bengaladas. Parecia uma fuga. Apesar de que o Deutsch e o Aimé mais me pareciam estar sendo sequestrados... O que se passa, afinal?... GEORGES (quase chorando) - Uma grande vitória! Parabéns! Grande vitória! Porém, por cima do ombro de SD, ele vê duas landaux e um automóvel saindo de St. Cloud com os membros da Comissão. GEORGES (surpreso, e mostrando a SD) - Ora, onde estarão indo? Preciso entrevistálos... A cena retorna para a oficina de SD. Maurice Farman e Pedro Guimarães aproximam-se. Pedro cochicha algo no ouvido SD e Maurice no ouvido de Georges. Ambos pedem licença aos circunstantes e saem em direção ao hangar, onde o Número 6 já está sendo guardado pelos mecânicos de SD. Escolhem um local sem ninguém por perto e Maurice começa a falar. GEORGES (para Prado) ... o fato é que, naquele dia, todos os membros da Comissão, inclusive os que não estiveram em St. Cloud, não foram encontrados em parte alguma de Paris. Hoje temos informações não confirmadas de que o “esconderijo” foi em Neully, na casa de campo do general André. Mas ele não estava lá. Quem estava era o Coronel Renard. MAURICE - A Comissão não quis homologar de imediato a conquista do Prêmio. Por isso saíram e pediram a mim e ao Pedro para avisá-los discretamente, pois temem a reação PRADO - Na casa do general André? Deus meu, a coisa foi mesmo complicada... Alberto, acho que Você estava certo naquela estória de 62 PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME desafiar a França em armas. (SD nada responde do divã) - Mas, conte-nos, Georges, e então? comunicado das novas regras. Ao que ele respondeu simplesmente - e nunca foi tão Alberto como naquela resposta: - Não! GEORGES - Bem, o Figaro, vespertino, atrasou, mas saiu, no mesmo dia, com a notícia da vitória. E fazia a ressalva de que nenhum dos membros da Comissão fora encontrado para homologála. Em matéria curta, o jornal especulou que o motivo devia ser a redação da ata da reunião, “pois não houve qualquer dúvida, para todos os que acompanharam a prova, da vitória do Senhor Santos-Dumont”. O fato é que a população de Paris foi dormir, no dia 19, com a certeza da vitória. Mas acordou no dia 20 com o "Le Temps" - com o dobro da tiragem normal esgotada em menos de uma hora, e, como os demais jornais noticiando apenas a indecisão da Comissão. Só o L’Illustration deu a fuga da Comissão e os fatos tais como ocorreram. O mau humor tomou conta de Paris, como eu nunca havia visto antes. Chegamos a pensar que a vitória não seria homologada. Forças poderosas estavam envolvidas para impedi-la. À tarde, porém, volta o Figaro com a declaração de Alberto, aliás, genial, e na hora certa, da distribuição do Prêmio para seus mecânicos e os pobres de Paris. E com o testemunho de Chapin, que é gaulês ancestral e de reputação ilibadíssima, de que o trato havia sido feito com muita antecedência. PRADO (um tanto arrependido) - E eu não estava aqui. Poderia ter ajudado Alberto... GEORGES (em off sobre imagens de cenas e jornais que ilustram o texto)) - O anoitecer do dia 20 foi terrível para os membros da Comissão e para o Aero Clube. Telegramas e telefonemas de protestos choviam sobre eles e os jornais de Paris. Edson, Marconi, Langley e vários cientistas reputados enviavam congratulações a Alberto, com cópias para os jornais e o Aero Clube. Os mendigos de Paris anunciaram, com o apoio de alguns sindicatos, que iam apedrejar a sede do Automóvel Clube. Uma telefonação desenfreada sucedeu-se entre editores, membros da Comissão e autoridades. Uma confusão! O jeito foi protelar a decisão. E começaram a chegar as repercussões do exterior. As piores possíveis! Os grandes jornais moderaram, mas os menores bateram sem perdão, e até conseguiram grande repercussão, pois todos queriam ler o que publicavam. Ao ponto de um editorial do boletim de um Clube de Xadrez da Espanha, assinado por um grande enxadrista russo, ser reproduzido no Times de Londres, que não resistiu à tentação de ver as pauladas do mestre no amor próprio dos franceses, publicadas em suas páginas. O enxadrista alegava que os desclassificados dessa competição eram a Comissão e a própria França, que perdia a credibilidade para liderar o mundo na era do progresso. E arrematava com um cheque mate: regras não podem ser mudadas após o início do jogo; e esse jogo começou no dia em que foi inscrita a primeira aeronave para disputá-lo. Esse editorial saiu no Times do dia 25 e, para humilhação da xenofobia francesa, foi reproduzido no L’Illustration. PRADO - Essa é boa! GEORGES - O Figaro também publicou as desconexas declarações da Comissão. Bonaparte falou em levar aos tribunais essa infâmia, se o Prêmio não fosse concedido imediatamente. Mas os outros só falavam nas tais novas regras que não foram obedecidas. O dirigível teria de estar estacionado antes dos 30 minutos e não apenas cruzar a linha de chegada. Então, para que aquela linha? Deutsch estava mudo. Realmente a coisa estava preta. A salvação foi a declaração de Alberto que o Petit Journal publicou quando perguntado se havia sido PRADO (in) - Barbaridade! 63 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND GEORGES (em off, sobre as imagens da Comissão) - Finalmente as coisas começaram a modificar-se. Os membros da Comissão, favoráveis à concessão do Prêmio, começaram a sair do limbo. No dia 27 o "Le Temps" publicou um declaração enfática de Deutsch: GEORGES - Só penso agora como sair daqui sem ele? PRADO - Eis aí uma boa pergunta. Como sair daqui? Vamos ver (chegou perto da porta e começou a apalpá-la tentando achar algum mecanismo de abri-la. Nada. Deu-lha então, como quem não quer nada, duas pequenas batidas. Ela abriu-se e surgiu August) DEUTSCH (em in, cercado de jornalistas no restaurante do Automóvel Clube) - “Digam o que disserem, não há dois dirigíveis voando no mundo, senão apenas um; e é preciso vir até Paris para vê-lo”. AUGUST - Ah, senhores. Eu aguardava aqui esperando para abri-la às dez, como determina o patrão, caso não me chame. Às vezes ele dorme no divã e eu preciso vir acordá-lo. Ele dormiu? GEORGES (continuando, in) - Para mim essa declaração é duplamente feliz; pois sai do xeque do enxadrista: restaura a França e a vitória de Alberto ao mesmo tempo, tornando-as indissociáveis. Amanhã, não tenho dúvidas, Alberto será consagrado vencedor. PRADO - Sim, August, mas depois Você cuida dele. Leve-nos até a porta para que possamos providenciar uma condução... AUGUST - Eu já providenciei, senhor. Consegui apenas uma cupê para os dois, se não se importam. Nessa hora não é fácil consegui-las. Está esperando na porta. Desejam sair agora ou aceitam um lanche? Está servido na mesa... PRADO - Ufa! Estou perplexo, Georges. Pobre Alberto, sem um patrício para apoiá-lo no meio dessa intriga! Bem falou a Princesa Izabel. Se isso não o comprometesse, Georges, o estado brasileiro estaria a lhe dever um agradecimento formal. Mas poderia prejudicá-lo; o chauvinismo na França é muito forte. (e, tirando o relógio) - Puxa, quase dez horas! É hora de sairmos. E estou à pé, vim com Alberto... PRADO - Para mim já está tarde, August. E Você, Georges? GEORGES - Obrigado, August, mas prefiro aproveitar a carona do senhor Prado. Tenho também de ir agora. Muito obrigado. (e saem conversando pelo corredor) GEORGES - Eu também. E a essa hora começa a ficar difícil uma condução. Acho melhor irmos logo. Alberto... Alberto!... Ora, Alberto dormiu... FIM DA PRIMEIRA PARTE SD dormia placidamente no divã. PRADO - Melhor o deixarmos como está. Vê-se que está cansado. Esses dias devem ter sido difíceis para ele. Vamos? Georges arrumando seus papéis, concordou 64 PARTE 2 A VINGANÇA DE ÍCARO PARTE 2 E apareceu SantosDumont SEQUÊNCIA 37 (Brasil, 1903) (estribilho) Salve, Brasil Terra adorada A mais falada Do mundo inteiro! À bordo do Atlantique, SD e Prado observam a entrada da Baía da Guanabara. (legenda: Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1903) Os contornos das belas montanhas, com o Pãode-Açúcar (ainda sem o bondinho) em primeiro plano, e o Corcovado (ainda sem o Cristo) por trás, vendo-se ao fundo a Pedra da Gávea e os Dois Irmãos enchem de alegria e de lágrimas o rosto do inventor. Prado porém estava triste e taciturno. SD - O que há com Você, Pradô. Até parece que está enjoado da velha pátria... PRADO - Não é isso, Alberto. Pressinto que essa será a nossa última viagem juntos de Paris para cá. Já começo a ficar saudoso da nossa convivência em Paris. Rodrigues Alves quer mudar tudo e devo ir para Washington. Nabuco deverá assumir Paris... Ouve-se o ribombar de morteiros de cima do Pão-de-Açúcar, justamente quando passavam perto dele. Uma enorme bandeira do Brasil é desfraldada e uma tela ainda maior surge abaixo dela com os dizeres: “SALVE SANTOS-DUMONT”. Lá de cima, um grupo de alunos da Escola Militar acenava para o navio. Começa a chover leve. O navio inicia as manobras de atracação, comboiado por dezenas de embarcações de todos os tipos com diversas faixas hasteadas homenageando o inventor. Ouve-se, na trilha sonora, a modinha de Eduardo das Neves, composta para o inventor, com letra e tudo: A Europa curvou-se ante o Brasil E clamou parabéns em meigo tom Brilhou lá no céu mais uma estrela Guarda teus filhos Lá nessa altura Mostra a bravura De um brasileiro Assinalou p’ra sempre o Século Vinte O herói que assombrou o mundo inteiro; Mais alto do que as nuvens, quase Deus, É Santos-Dumont, um brasileiro. (repete estribilho) Sob a música uma sequência de imagens: SD descendo do navio em meio à multidão de autoridades. Discursos empolados. Desfile na landau do Presidente da República, ao lado de Prado e do Prefeito, pela Rua do Ouvidor lotada, em festa, com serpentinas, carros alegóricos, batuques de negros, etc. Discursos exaltados. Encontro com o Presidente da República no Palácio do Catete. Almoço-banquete no Clube dos Democráticos para 500 talheres. Discursos alucinados. Festa na Federação dos Estudantes do Brasil, com milhares de moços e donzelas. Outra festa, mais grã-fina, na residência do Prefeito. Mais discursos. Dois homens de fraque e cartola conversam. O PRIMEIRO HOMEM - Mas ele não trouxe mesmo o seu dirigível? O SEGUNDO HOMEM - Claro que não. É um snob. Só voa na Europa; SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND já no Brasil... do meu país está aí fora desejando prestarme uma homenagem? Se assim é, eu peçolhe que faça-os entrar; faço questão de recebê-los... Jornalistas cercam SD UM REPÓRTER - É verdade que o Senhor não trouxe o seu balão dirigível? RODRIGUES (tentando convencê-lo) - Desculpe, Sr. Santos-Dumont, mas imaginei que estivessem cansados depois de tantas festas e homenagens, por isso... SD - Como já disse em várias oportunidades, precisávamos ter uma usina de hidrogênio, um hangar bem equipado, um grupo de mecânicos com excelente formação técnica e um Aero Clube em local apropriado. Pessoalmente, o que eu mais desejaria em minha vida, seria poder realizar minhas experiências aqui, junto aos meus compatriotas. SD (interrompendo-o) - Sim, meu amigo, estou exausto, arrasado, mas dos discursos intermináveis, dos fraques e cartolas, das sobrecasacas e dos chapéus de coco nesse calor infernal. E de jornalistas impacientes e um sem número de autoridades que passaram o dia a amarrotarme e a apertar-me pelo Rio afora. Agora, o Sr me diz que tem aqui um grupo de seresteiros, gente boa de viola debaixo do braço. O que eu mais queria, desde que cheguei, é poder abraçá-los, amarrotar-nos juntos e sentir o calor do verdadeiro afeto e carinho da nossa gente. Mais uma vez eu peço-lhe, Dr. Rodrigues, desejo recebê-los! E sirva-lhes do bom e do melhor. Não se preocupe com as despesas. Essas eu faço questão... OUTRO REPÓRTER - Mas temos informações de que os seus balões dirigíveis são tão pequenos que chegam a caber numa maleta de viagem... SD - Isso é apenas uma brincadeira... À noite Teatro Lírico. O Fausto. Toda a sociedade carioca presente. Discursos loucos. Discursos sóbrios. No intervalo da peça, discursos. Enfim, exaustos, SD e Prado chegam à casa do Dr. José Carlos Rodrigues, que os anfitrionava. Ao entrar, numa carruagem fechada, passam por um tumulto do lado de fora. Um criado cochicha algo a Rodrigues. RODRIGUES (interrompendo-o polidamente) - De modo algum, Sr Santos-Dumont, em minha casa recebo eu, se me permite. Mandarei providenciar imediatamente uma recepção com tudo o que pode haver de melhor em nossa modesta residência. Concordo com o Senhor; o povo é que traz a verdade dentro do peito. Permita-me recebê-los junto aos senhores; e não se fala mais em contas, ou ficarei ofendido. (e, para o mordomo) - José, manda entrar todo mundo. Receberemos no salão de festas. (e, para o criado) - Alemão, providencie as bebidas na adega e peça a Josefina e a Gremilda para preparar os canapés e os salgadinhos. Vamos, todos na função! SD - O que é isso? RODRIGUES (descendo da carruagem no pátio da mansão) - É um grupo de seresta querendo fazer uma serenata em sua homenagem. Mas já está muito tarde. Os senhores estão exaustos, precisam repousar. Estou mandando despachá-los. Os criados saem a cumprir as ordens. SD (acompanhando-o) - Dr. Rodrigues, o Sr está dizendo que o povo SD, Prado e Rodrigues à porta do salão de festas imenso, cumprimentam um a um do 68 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME povaréu que vai entrando, com o seu acanhamento desconfiado e os seus instrumentos nas mãos. Eduardo das Neves, elegantérrimo, é o primeiro a entrar, cumprimenta Rodrigues e Prado e abraça forte SD, como se fosse um irmão. Em seguida encarrega-se das apresentações. pedaços, ninguém sabe o que falar. SD, com uma energia fantástica, parece que está começando o dia, e, animado, quebra o gelo. Pega uma tacinha e serve ele mesmo uma cachaça e propõe um brinde ao Brasil. Todos exultam e relaxam; alguém pede música, mas SD pede a palavra; - agora é a minha vez! EDUARDO DAS NEVES - Este é o Ventura Careca, da lira; - Este é o Sátiro Bilhar, do violão baixo; - O Quincas Laranjeiras e o Chico Borges, violões; - O Mário Álvares, o Galdino, o João Ripper e o José Cavaquinho, dos cavaquinhos; - O Irineu de Almeida e o Alfredo Leite, o conhecido Timbó, dos oficlides; - O Passos, do Corpo de Bombeiros, o Geraldo, dos Correios e Felisberto Marques, flautas; - O Lins de Souza, o maior piston do Brasil; - O Lica, o rei do bombardão; - O Sinhô, nosso Sinhô, mestre-compositor, trazendo a bandeira nacional; - E o garoto Villa-Lobos, rapaz de muito futuro, da ocarina. SD - Desejo expressar a minha gratidão pelo carinho que as senhoras e senhores me proporcionam aqui. Digo-lhes, sinceramente, agora sim, estou no meu país, muito obrigado! (aplausos veementes) Forma-se a roda; começa a música: “A Europa curvou-se ante o Brasil... etc”. A câmera passeia de grua por cima da festa animada com o povo cantando feliz e SD abraçado a Eduardo das Neves e Villa-Lobos fazendo coro também. SEQUÊNCIA 38 (O novo "Le Temps") Inauguração da nova sede e da nova gráfica do "Le Temps". Clima de festa na casa. (Legenda: Paris, 3 de fevereiro de 1904) Georges está ao lado da nova e imensa rotativa de dois andares, uma Marinoni último modelo, a primeira rotativa a papel em bobina a imprimir um jornal no mundo. Ele conversa com um grupo de oficiais gráficos que aguarda a E vai passando a moçada, a turma dos morros enchendo o salão burguês. Criados servem bebidas em copos de cristal, salgadinhos servidos pelas mucamas, tudo sendo aceito com muito acanhamento e um medo que se péla de dar vexame. O pessoal não sabe como comer os bocados e deixam cair "... uma Marinoni último modelo..." 69 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND hora solene de acionar a máquina, logo depois que o Prefeito de Paris arrebentar uma garrafa de champagne na sua pesada estrutura metálica. agora! Um almofadinha! Nem cumprimenta mais os antigos colegas de oficina, reparou? Não lembra-se dele, Georges? GEORGES - Não é aquele foca que ficava só levando e recebendo recados do Adrien? GEORGES (para os atentos operários que o ouviam formando uma pequena platéia) - Foram 14 a 9! Uma vitória total! 14 votos para Santos-Dumont! O Prêmio Deutsch era dele e a alegria voltava a Paris! Nosso cálculo dava 12 a 11. Não sabemos até hoje quem recuou do outro lado. Foi um grande dia. À noite, ao entrarmos no Maxim’s, todos levantaram-se para aplaudi-lo... O CHEFE DA GRÁFICA - Ele mesmo, um puxa-saco! Nem o Sr Hébrard simpatiza com ele. Dizem que é filho de banqueiro judeu; e que o pai pediu o emprego, mas sem moleza para o garoto. Se é verdade, não sabemos, mas é a explicação que temos por não ter sido despedido. Jornais estão cada dia mais precisando dos bancos... Olha, chegaram!... Um funcionário do jornal muito alinhado, de terno de listras à la Santos-Dumont e chapéu de coco chega ao grupo e interpela Georges. O FUNCIONÁRIO (Lazare) - O Sr Adrien já está vindo com o Prefeito. Pediu para deixar tudo pronto. GEORGES (para os oficiais) - Mas parece que já está tudo pronto, não? O CHEFE DA GRÁFICA - É só mandar rodar, que disparamos na mesma hora! Lazare sai. GEORGES - Quem é ele? A porta do mezanino abrese e surge Adrien à frente do Prefeito de Paris seguido de uma vasta comitiva de senhoras e cartolas. Vinham com ele o Sr Gordon Benett, o Embaixador Henry White, um grupo de oficiais do exército liderado pelo Coronel Renard, alguns conhecidos banqueiros e autoridades, todos com respectivas esposas no rigor da moda em Paris. Na rabeira, o jovem posudo "...SD está tremendamente elegante..." Lazare Weiller. Georges dirige-se para a beira da escada de ferro por onde o grupo começa a descer. No caminho encontra SD, que entrara pela porta da gráfica em busca de Georges. SD está tremendamente elegante. O CHEFE DA GRÁFICA - É o senhor Lazare Weiller. Com a ampliação do jornal, foi promovido a assistente de redação na editoria de política. Esse já foi de tudo aqui; foca, carregador-de-galés, ajudante de tipógrafo, revisor, redator de necrológios e tradutor de telegramas em inglês. Ninguém gosta dele, o homem parece que passa uma antipatia congênita. Mas subiu muito em pouco tempo; olha só como está SD (caminhando ao lado de Georges) - Vim só para dar um abraço em Adrien e em Você. Tenho compromissos ao Teatro hoje. É a estréia da bailarina Aida D’Acosta, uma lindíssima cubana. Levo comigo alguns amigos brasileiros. GEORGES - Recebi convites para amanhã. Hoje, como 70 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME vê, não posso ir. há, hoje, uma só gráfica no mundo que não possua alguns de seus equipamentos e máquinas. Essa que agora verão rodar a próxima edição do "Le Temps" é sua última grande invenção: a primeira rotativa a imprimir em papel bobinado! Um aperfeiçoamento da rotativa que o Sr Marinoni inventou há sete anos e pôs a funcionar no Petit Journal. Tira mais de 50 000 exemplares por hora! Comprei- a na maquete, na Grande Exposição de 1900, com um pequeno sinal em dinheiro. (e, com ironia) - Ainda não sabia como iria pagar o restante... (todos riem espirituosamente) SD - Se eu gostar, é provável que repita a dose. Estou dando uma folga a mim e aos meus mecânicos por estes dias. Bem, cá estamos... Adrien desce com cuidado a escada de ferro, seguido pelo Prefeito e a comitiva, explicando em voz alta cada detalhe da nova gráfica. Ao ver SD e Georges cumprimentouos e os apresentou ao Prefeito que, ao parar para a conversa, paralisou toda a desajeitada fila que descia por traz dele na estreita escada. Mas isso não perturbaria o Prefeito. O PREFEITO - Ah, mas isso é típico de Adrien! Ele é o único francês ousado que conheço. Por isso gosto tanto dele. É um homem que acredita em si mesmo e no futuro do seu trabalho. O PREFEITO - Não precisa apresentar-me ao Senhor Santos-Dumont, Adrien. Já o condecorei junto ao Primeiro-Ministro com a Ordem de Cavaleiro da Legião de Honra. Esse moço tem levado Paris às primeiras páginas dos jornais do mundo, quase diariamente. A França é grande devedora dos seus serviços. Só espero, algum dia, ser um dos seus passageiros nos ares. ADRIEN - Costumo dizer, Sr Prefeito, que confio no meu sexto sentido. Em 97, o Sr Marinoni ofereceu-me sua primeira rotativa e achei que não era a hora. Quase arrependi-me, porque ele vendeu-a ao Petit que cresceu tanto ao ponto do seu nome tornar-se uma fantasia. Mas em 1900, quando vi a bobina de papel e percebi as potencialidades dessa máquina, não vacilei; assinei o contrato... (e, para o Chefe da Gráfica) - Está tudo pronto? SD - Sou muito grato pela sua confiança, Senhor Prefeito. Tenha toda a minha frota à sua inteira disposição. Mas, fiquem à vontade, cavalheiros, não desejo perturbar a sua preleção, Sr Hébrard; antes desejaria ouvila, se me permite... O CHEFE DA GRÁFICA - Tudo pronto, Sr Hébrard. ADRIEN - No que muito nos honra, Sr Santos. Estava há pouco referindo-me a um grande inventor no campo das Artes Gráficas. Falo do Sr Hipólito Marinoni, que infelizmente não pode estar presente por motivos de saúde. (e, continuando, enfim, a caminhar, recomeça a falar no tom em voz alta para todos) - Como eu dizia, senhoras e senhores, o Sr Marinoni tem sido o maior responsável pelos avanços da indústria gráfica nestes últimos dez anos. Desde os grandes Aldus Manutius e Claude Garamond, no Séc. XVI, e Bodoni, no Séc. XVIII, que não temos avanço tão visível nesse campo. Seus inventos são incontáveis e não Um garçom aproxima-se trazendo uma enorme garrafa de champagne amarrada pelo gargalo num barbante preso, na outra ponta, no topo da estrutura da máquina. Adrien passou-a ao Prefeito. O PREFEITO (segurando a garrafa no ponto de atirá-la em direção à máquina) - Que essa máquina imprima os melhores jornais para os parisienses, e que sejam felizes os seus proprietários... (atira a garrafa) O Chefe aciona uma alavanca e a máquina roda num grande estardalhaço de rolos e 71 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SEQUÊNCIA 39 (A “nova” imprensa) engrenagens. A câmera passeia, por cima, nos detalhes da máquina em movimento. A comitiva segue Adrien e o Prefeito até a outra ponta da máquina, onde já começam a chegar os primeiros exemplares prontos; impressos, cortados e dobrados. Adrien abaixa-se, pega um deles e exibe a sua primeira página a todos, que estampa, em grande formato, a foto do Prefeito cortando a faixa do novo prédio do "Le Temps", há poucos minutos atrás. Todos exclamam admirados, procurando-se também na fotografia. Fim de festa. Os últimos convidados despedem-se. Alguns permanecem bebericando. Funcionários encerram suas tarefas. Adrien chama Georges, que estava conversando com Lazare. Eles despedem-se e Georges segue Adrien. ADRIEN - Vamos à sua sala. Lá é mais difícil nos acharem. (encontram Louise, a sua nova secretária) - Louise, cuide de tudo; já fui embora, entendeu? (pegam um elevador) O PREFEITO (olhando a fotografia com atenção) - Mas... como, Adrien? Não foi aquela que fizemos há pouco menos de meia hora? Descem no quarto andar e vão direto à nova sala de Georges onde lê-se “GEORGES GOURSAT - EDITEUR DES ARTS ET DES SCIENCES”. Georges abre-a com sua chave. Entram na ampla sala, bem mobiliada, com uma grande escrivaninha com máquina de escrever, prancheta de desenho com iluminação própria, um jogo de sofás, armários grandes e embutidos na parede, tudo muito bem decorado e bem iluminado. Sentam-se cansados nos sofás. Adrien tira do bolso um pedaço de papel e dá a Georges. ADRIEN - Exatamente, Sr Prefeito, eis a nova imprensa. Amanhã, quando o Sr sair do Teatro e for a um restaurante, lá estará chegando as críticas do "Le Temps", sobre a peça que o Sr acabou de ver. O PREFEITO (exibindo a folha a todos) - Mas é uma maravilha, não acham? Não tenho dúvidas, Adrien, que o seu jornal foi o primeiro a chegar ao Século XX. ADRIEN - Chegou há cerca de dez dias. Preferi só falar agora por causa das atribulações de inauguração. Um jornaleiro passa distribuindo exemplares do jornal a todos. GEORGES (lendo o cabograma) - Quem são estes senhores Orville e Wilbur Wright? E que lugar é este? Dayton, Ohio? ADRIEN (como para encerrar um show) - Bem, senhoras e senhores, acabam de conhecer o coração do novo "Le Temps". Agora, aguardamos a todos no hall principal para um pequeno coquetel. Sigam-me, por favor. (e sai em direção à porta que dá para o hall) ADRIEN - Suspeito que seja coisa do Benett. Aliás, não digo apenas do Benett. A ele cabe essa parte, a publicidade. Ao passar por Georges, cochicha em seu ouvido. GEORGES - E quem viu esse vôo? É uma notícia importantíssima, Adrien, diabos! Se for verdade... ADRIEN (no ouvido de Georges) - Quero que fique até o fim do coquetel. Preciso falar com Você. ADRIEN (cortando) - Não é verdade. Nem os jornais de Benett publicaram essa balela. Apenas um balão Georges balançou a cabeça concordando. 72 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME de ensaio em jornalecos menores, só para medir a repercussão, entende? Em todo o caso, mandei meu agente até lá, nesse confins do mundo. Bem onde afirmam que voaram, passa uma linha de bonde. E, exceto alguns pássaros que costumam arribar ali há séculos, ninguém viu nada voando, muito menos uma máquina mais pesada que o ar. máxima! Essa história me cheira a balão de ensaio; estão em fase de testes, percebe? GEORGES - Não muito, Adrien; perto de Você sempre me sinto como um principiante... ADRIEN - Tenho conversado com alguns militares bem informados. A questão da aeronáutica é assunto em todos os quartéis das grandes nações. E tratado e pensado a portas fechadas, como segredo de estado. GEORGES - Bem, então isso não tem nenhuma importância; melhor é esquecê-los... ADRIEN - Aí é que eu digo não, Georges. Minhas informações e meu sexto sentido começam a montar o quebra-cabeças. Acho que os americanos, se não conseguem inventar a máquina aérea, já começam a inventar outra coisa. Estão inventando uma imprensa que dispensa os fatos reais. São práticos esses americanos, não duvide, e não os subestime. O grande problema de jornalistas como nós, que precisam encher jornais todos os dias, é, e Você sabe disso, a dificuldade de se obter a nossa matéria prima principal, isto é, os fatos. Então eles resolvem essa dificuldade criando uma imprensa que não precisa deles; simplesmente inventa-os! Ou criam lendas. Os “fakes”, como eles dizem. Quem vai conferir? GEORGES - E o que pensam os militares? O que está me dizendo é que eles agora também pensam, não é? De fato, o mundo está mudando muito... ADRIEN - O que pensam não interessa. Interessa o que decidem! São homens que vivem da guerra; com guerra ou sem guerra. GEORGES - Ótimo; então reformulemos: o que estão a decidir de tão grave? ADRIEN - Quanto à aeronáutica, posso assegurar que a ala de maior peso já descartou os mais leves que o ar. Nunca engoliram balões e dirigíveis. Acham caros, morosos, desajeitados para a guerra. É facílimo sabotálos e como alvo são excelentes, muito mais agora que os canhões ganham maior alcance e pontaria. Nisso têm razão. Nós mesmos concordamos. O problema haverá de ser resolvido com o mais pesado que o ar. GEORGES - Outros jornais; nós, sei lá; quem quiser; isso é loucura, Adrien! ADRIEN - Pode ser; mas aí está! Quantos têm recursos para mandar alguém naqueles confins, e conferir uma coisa dessas? E, uma vez conferido, de que adianta? Foi um jornaleco que publicou; o "Le Temps" não pode ficar contestando um jornaleco qualquer. Seria entrar no jogo! E dar mais publicidade ao blefe! Mas essa publicação pode valer como documento amanhã... E começa a criar ao menos uma lenda. Benett gosta de repetir uma expressão que diz ser dele, mas não creio que seja: “quando a lenda supera a realidade, imprima-se a lenda”! É uma boa GEORGES - Mas pretendem fabricá-los apenas nos noticiários de jornalecos irresponsáveis? ADRIEN - O que sabem é que está próxima a hora dessa solução. E os americanos preparam-se para abocanhar suas patentes ou contestar outras que não as suas. Daí essa balela de 73 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Ohio. Para eles não interessa quem solucione a questão. Eles a compram e dão o crédito a quem lhes convier. E é melhor que tenham alguém pronto, na realidade ou na lenda, para recebê-lo. pesado que o ar? GEORGES - Está em franca atividade. Tudo em sigilo. E procura dar a entender que está fora do páreo. Está escaldado, teme sabotagens, e com razão; americanos nem pintados de corde-rosa. Acha que o Benett está envolvido nas sabotagens, porque em Saint Louis... GEORGES - Mas terão de obter a conivência do verdadeiro inventor, e nem sempre... ADRIEN - Para os americanos não há dúvidas de que a terão. Acreditam na força do dinheiro e estão comprando tudo pelo mundo afora. A França tem sido a campeã desse leilão; está se vendendo toda para eles. ADRIEN - Não creio. Já lhe disse, a parte do Benett é a publicidade. Espionagem e sabotagem é assunto de estado. A Embaixada Americana aqui não passa de um antro de espiões. Suspeito do próprio Henry White. E... como está o nosso arquivo secreto sobre SantosDumont? GEORGES - Como assim, Adrien?! SEQUÊNCIA 40 (Álbum de retratos) ADRIEN - Os franceses são conservadores, provincianos e pouco audaciosos. Querem a segurança individual e a certeza do negócio líquido e certo. Os americanos são jogadores, blefadores e aventureiros; aceitam qualquer tipo de jogo; não se preocupam com os escrúpulos. Veja o caso do "Le Temps". Não consegui dinheiro em banco europeu algum, muito menos francês, para essa ampliação. Bastou o Benett elogiar-me para um banqueiro americano, que logo o dinheiro apareceu; e em condições irrecusáveis! Tive de fazer o negócio. E é o que está acontecendo em surdina pela França inteira. Tem dinheiro americano até nas ampliações do Moulin Rouge, Georges. Georges foi até um dos armários e, com sua chave, abriu as duas portas deixando à mostra o conteúdo repleto de pastas, arquivos fotográficos de negativos e cópias, e um cofre. GEORGES - No cofre guardo o que é confidencial, inclusive as anotações sobre o mais pesado que o ar (retira duas grandes pastas de cópias fotográficas e põe sobre a sua mesa) Georges convida Adrien para olhar os álbuns de fotografias. Abre um deles nas fotos de dirigíveis. A câmera passeia por diversas fotos enquanto Georges folheia o álbum descrevendo a Adrien o que está vendo. GEORGES - Sim, mas voltando à aeronáutica... GEORGES - Muitas lendas se criaram em Paris desde que Alberto começou a ter sucesso com seus dirigíveis, enriquecendo o imaginário popular. Dizem até que, de tanto olhar para cima, os parisienses começaram a enxergar coisas do outro mundo. Houve quem jurasse ter visto um corcunda no alto de uma das Torres da Catedral de Notre Dame!? (pára numa página)- Ah, aqui é o Número 6. Ele ADRIEN - Ainda faço fé naquela solução de quando o contratei, lembra-se? GEORGES - Claro; é nela que continuo a trabalhar. ADRIEN - E o que ele tem feito em relação ao mais 74 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME foi copiado por vários aeronautas americanos, ingleses e franceses. Na Alemanha, o Conde Ferdinand Von Zeppelin construiu um exemplar monumental. Mas o original quase encerrou seus dias em Mônaco (fotos de Mônaco) A foto do hangar de Mônaco ganha vida a cores enquanto Georges narra em off. GEORGES (em off) - No início de 1902, a convite do príncipe de Mônaco, ele foi para Monte Carlo. O governo de Mônaco providenciou-lhe tudo, conforme suas instruções, e Alberto construiu lá um hangar bem equipado para o seu Número 6. Duas crianças, netos do príncipe, de 8 e 10 anos, sob os aplausos da nobre e engalanada platéia, abrem sozinhas os grandes portões de correr do hangar, na sua festa de inauguração (Legenda: Monte Carlo, 19 de janeiro de 1902) "... o Nº 6 original quase encerrou seus dias em Mônaco..." GEORGES (ainda em off) - Lá ele fez vários vôos de exibição para o êxtase dos senhores Eiffel, Rochefort, Eugênio Higgins e, como não poderia deixar de ser, Sr James Gordon Benett. Em 14 de fevereiro deu-se um acidente, também inexplicável, mas sem maiores conseqüências, pois Alberto parece gozar de alguma proteção do demônio. Decidiu então retornar a Paris. álbum a Adrien. GEORGES (in) - Aqui é o Número 7, projetado para disputar corridas. Com ele foi para a América disputar o Prêmio de Saint Louis. Um dia antes da corrida teve o seu dirigível sabotado ainda nas caixas de transporte. (cena da mão de um homem, com um afiado estilete, a dilacerar a seda do invólucro, ainda na caixa de transporte, após arrombá-la, num depósito A cena volta para Georges mostrando o "...o Nº 7, projetado para disputar corridas, sabotado ainda nas caixas de transporte." 75 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND graciosamente sobre as tropas e praticamente estaciona diante do palanque das autoridades, nuns 30 metros de altura. Traz, desfraldada, uma faixa com as iniciais PMNDN (Por Mares Nunca Dantes Navegados), do verso de Camões. No silêncio geral que se formou, SD, da barquilha do Número 9, dispara uma salva de tiros de revólver, em posição de sentido, e com o chapéu seguro ao peito; causando um grande susto no palanque. Feito isso, liga o motor, acena ao povo, que o aplaude, e vai-se. portuário escuro) - Tudo bem debaixo das vistas da equipe de Benett que tinha exclusividade na cobertura do evento, era o seu mentor e patrocinador. Aqui temos umas belas fotos do Número 6 em performances... De novo as fotos ganham vida a cores e mostram uma sequência de planos do Número 6: voando rasante sobre o lago do jardim dos Rothschild e assustando um pescador que por ali se achava; levando o garoto Clarkson Potter, de 7 anos, para passear nos ares após pousar em meio à garotada que jogava futebol em Bagatelle; assustando moçoilas em pic-nics ao chegar silencioso, por cima, ameaçador, como se fosse um extra- terrestre; passando em vôos rasantes sobre plantações de trigo, assustando os lavradores, etc... De volta ao álbum. ADRIEN (sorridente) - Isso deu o que falar. Houve até abertura de inquérito no Exército. Dizem que o convite foi uma galhofa de alguns oficiais bêbados no Le Cascade. Volta ao álbum. GEORGES (rindo também) - Pensavam que a façanha seria impossível. Pior para eles, cada um pegou dez dias de cadeia. (continua folheando o álbum) - Essa foi uma sensação em Paris. A cidade já se acostumara ao som do motor do “Balladeuse”. De repente o motor parou em pleno ar, após falhar algumas vezes. Todos olharam para ver o que era. (de novo, a foto ganha vida a cores) GEORGES (in) - Chegamos às suas últimas vedetes; o Número 9, o menor dirigível do mundo, que Paris já apelidou “La Balladeuse”, e o Número 10, o seu “Omnibus aéreo”. Essa foto é do Número 9, sobre a parada de Longchamps, evoluindo sobre as tropas e 200 000 espectadores. Outra vez a foto ganha vida a cores (Legenda: Paris, 14 de julho de 1903) O Número 9 evolui GEORGES (continuando em off) - O dirigível estava à deriva e o seu audaz piloto saía da segurança de sua barquilha equilibrando-se na frágil estrutura do cordame, até chegar O SD Nº 9 - "La Balladeuse" e algumas de suas peripécias sobre Paris. Acima, no 14 de julho, evoluindo sobre as tropas francesas; e caminhando para consertar o motor em pleno vôo a mais de 100 metros de altura. 76 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME O SD Nº 10, o "Omnibus Aéreo", o maior dirigível de SD. Abaixo evoluindo sobre o campo de St. Cloud. Ao lado, levando como passageiro e aluno o Príncipe Rolland Bonaparte. ao motor. Isso a mais de cem metros de altura! Suspense geral! Ele chegou até o motor e começou a consertá-lo em pleno ar. Enfim o motor pegou e ele percorreu de volta o perigoso caminho até a barquilha. (continuou folheando o álbum) - Este é o Número 10, o seu ônibus aéreo. Nessa foto o passageiro é o Príncipe Bonaparte. Pasquelle, por minha indicação. Nos começos estava melhor, mais profundo e revelador. Mas, com as sabotagens, Alberto retirou dados e informações que preferiu revelar em outra oportunidade. Com ele acho que Alberto encerra o ciclo dos balões. Nessa sua luta acabou por aprender alguns truques, Adrien, e não é mais o jovem ingênuo e idealista do início. Outra vez a foto ganha vida a cores. SD e Rolland Bonaparte levantam vôo em St Cloud no enorme Número 10. SD ensina a Bonaparte a comandar a aeronave. Este, de cartola, fica deslumbrado com a ascensão, admirando os bosques por cima e a cidade à sua frente. ADRIEN - Ainda bem, porque vamos precisar desses truques! Volta ao álbum. GEORGES - Seu trabalho é todo feito em sigilo na sua oficina secreta. ADRIEN - E essa, o que é? ADRIEN - Eu sei; essa oficina secreta tem dado dores de cabeça nas embaixadas e no Palácio do Governo. Todos sabem que ela existe mas não onde fica. E haja espião trabalhando, Georges... sei que Você a frequenta. GEORGES - É em Cabangu, a cidadezinha onde nasceu no interior do estado de Minas Gerais, no Brasil. Essa é a casa em que nasceu. (vira a página) - E aqui, ele com Thomas Alva Edson, nos Estados Unidos... com Langley... aqui com Marconi... com Gustave Eiffel... GEORGES - Sim, mas sob juramento. Enfim Georges fecha o álbum e mostra a Adrien um conjunto de 12 rolos de filmes guardados num compartimento do armário, abre o cofre, e retira dele um maço de papéis. ADRIEN - Diga a ele para ter cuidado. Governo algum gosta de estrangeiros fazendo experiências secretas em seu território. E Você sabe como age o poder... GEORGES - Este é o livro que Alberto vai publicar sob o título Dans L’Air. Será editado por Eugéne GEORGES - O que eu posso assegurar, 77 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Adrien, como francês e patriota, é que nada lá é feito ou pensado que possa prejudicar o estado francês, muito pelo contrário... gala aguardam o sinal para entrar. MAURICE - Ontem a estréia foi magnífica, Georges. Ela está belíssima. Parece uma figura saída de uma pintura de Gauguin. E os ritmos são fantásticos, bárbaros. Depois da Grande Exposição ninguém precisa sair de Paris para conhecer o mundo. O mundo vem até Paris! SEQUÊNCIA 41 Corte para a oficina de SD. Ele e quatro mecânicos trabalham. Além dos três já conhecidos, foi introduzido Levavasseur, especialista e construtor de motores à explosão de petróleo. Estruturas enormes, do tipo celular, são produzidas na marcenaria pelo eficiente Gasteau, observado de cima, pelo inventor, em sua barquilha suspensa. Num certo momento ele joga duas cordas que Gasteau amarra na estrutura e, ao seu sinal, faz levantar a barquilha junto com a estrutura e a transporta, suspensa no ar, até a área de montagem. Em seguida, dirige a barquilha até a cabine de testes de motores e a faz baixar bem ao lado de Levavasseur, que está testando um novo motor, observando-o pelo visor. Os dois olham atentamente a máquina e os instrumentos de medição. PEDRO - Aida D’Acosta nos traz os ritmos calientes das Américas central e do sul: a rumba, o samba, o tango, a macumba. São ritmos fortes... (toca o sinal) - Eis o sinal, vamos. GEORGES (para SD, enquanto subiam as escadas) - Hoje haverá um número especial, com o Sr Debussy ao piano, tocando uma composição feita especialmente para ela, Alberto. Cenas de Aida dançando no palco da Ópera de Paris. Cortes para a platéia e os amigos no camarote. Cenas da Dança com Debussy ao piano, tocando uma versão de “La Mer”. Ao final, aplausos de pé. LEVAVASSEUR - Já temos 38 HPs. Saída do teatro, ainda no hall. Um repórter chega alvoroçado até SD. SD - Preciso 50, Levavasseur. Vou redesenhá-lo. Penso dispor os cilindros em forma de V, para obter mais eficiência e rendimento. O REPÓRTER - Senhor Santos-Dumont! Senhor SantosDumont! LEVAVASSEUR - Teríamos de fundir um novo bloco... SD pára e aguarda curioso. O repórter aproxima-se. SD - Mandaremos fundi-lo. O REPÓRTER - Estávamos numa coletiva no camarim da Srta Aida. Perguntaram o que ela mais gostaria de fazer em Paris. Sabe o que ela disse?... SEQUÊNCIA 42 Corte para o hall de entrada da Ópera de Paris. Movimento grã-fino e elegante. SD, Georges, Pedro Rodrigues, Maurice Farman, todos em trajes de GEORGES (chegando junto a outros repórteres e interrompendo o colega) - Ela desejaria voar em seus dirigíveis, Alberto. Hoje mesmo essa declaração 78 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME SEQUÊNCIA 43 estará nas páginas do "Le Temps". O que tem a comentar? Campo de St Cloud. Uma multidão aproximase em landaus, tilburis, cupês, coches, fiacres, automóveis, triciclos, cavalos e carruagens. A Srta Aida D’Acosta chega acompanhada de seu empresário numa landau. A multidão abre o caminho para que a landau estacione junto ao Balladeuse, pronto para subir, com SD, em elegante traje esporte e chapéu panamá. Aida desce da landau sob os flash de pólvora dos fotógrafos e posa sorridente ao lado de SD. SD (cercado pelos repórteres) - É muito delicado da parte da Srta Aida. Vou escrever-lhe um bilhete e se os senhores entregassem-no eu lhes agradeceria. Me sinto honrado pela confiança da Senhorita... SD tira do bolso interno do fraque um envelope com cartão e uma caneta de ouro. Apoiado nas costas de Georges redige o bilhete e passa-o ao primeiro repórter. SD Corte para o camarim de Aida. A bailarina está desfazendo a maquiagem frente ao espelho enquanto a camareira penteia seus longos cabelos. Batem à porta. A camareira vai abri-la e os repórteres invadem o camarim. Aida retira o resto da maquiagem para atendê-los. O primeiro repórter entrega-lhe o bilhete. Aida, risonha e feliz, abre o envelope e o lê em voz alta para os repórteres que anotam tudo. - Será uma honra para mim e meu Balladeuse levarmos a Senhorita num passeio aéreo. AIDA - Minha intenção, Senhor Santos-Dumont, se não o ofendo, é a de voar sozinha em seu dirigível. Eu mesma conduzindo-o nos céus, em total liberdade. Um silêncio tomou conta da platéia. SD não se perturba. AIDA (lendo em voz alta o bilhete) - “Senhorita Aida D’Acosta. Soube que deseja voar em meus dirigíveis. Fiquei encantado com a confiança da Senhorita e estou à sua inteira disposição. Amanhã às 10 horas aguardo- a no Campo de St Cloud, e se o tempo ajudar, espero poder satisfazê-la. Tenha-me respeitosamente, Alberto SantosDumont.” (ela lê o nome de SD dando gritinhos de alegria) SD - Se é assim, o seu desejo será satisfeito. Mas antes devo dar-lhe algumas instruções para comandar essa aeronave. Aida cheira o cartãozinho e coloca-o sobre o peito, suspirando. O EMPRESÁRIO - Desculpe-me, Senhor Santos; mas tenho de fazer o meu protesto perante à minha contratada. (e, para Aida) - Srta Aida, creio que não devemos nos arriscar assim; temos muitos compromissos acertados... E começa a ensinar à bailarina como pilotar o Balladeuse, detalhe por detalhe. O empresário de Aida, impaciente e inquieto desde a manifestação de sua contratada, interrompe-os. AIDA - Almíscar!... É de muito bom gosto o Sr Santos-Dumont! Digam-lhe que estarei lá. 79 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND perfeita e retorna perdendo suavemente a altura, vindo em direção à platéia extasiada. Lentamente ele chega de volta ao ponto de partida e já pode-se ouvir as risadinhas satisfeitas da sua comandante. Ela joga a corda guia. AIDA - Peguem! Peguem! Os mecânicos de SD agarram a corda e puxam forte para segurar o dirigível. Ele pára num solavanco perigoso, ainda no ar, mas Aida não se desequilibra e nem se perturba. "...ascende suavemente com a sorridente bailarina"... AIDA - Charles, querido, não se preocupe. É apenas um pequeno vôo. O Senhor Santos-Dumont afirmou-me que é absolutamente seguro. AIDA - Devagar, devagar! Assim podem estragálo... CHARLES - Srta Aida, o Senhor Santos é um aeronauta de ofício. A Srta há de concordar que o céu não é um palco... Enfim ele é puxado até o chão, com Aida radiante dentro da barquilha, a beijar e abraçar SD que é o primeiro a recebê-la sob os aplausos efusivos da platéia. AIDA - Como não? É o mais belo dos palcos! Você conhece cenógrafo mais criativo do que o cenógrafo do céu? Quero atuar nesse palco, Senhor Charles; ao menos uma vez! Por enquanto é exclusivo do Senhor SantosDumont. (e, para SD) - Por favor, continue suas instruções. AIDA (ao sair da barquilha) - Podemos convidar o Senhor Santos-Dumont para jantar conosco hoje, não é Charles? O senhor aceitaria, Senhor Santos-Dumont? Logo após o espetáculo... SD - Senhorita Aida, hoje sou eu quem a convida em tudo. Tenho uma reserva permanente no Maxim’s. Após o espetáculo desejo levá-la para conhecer os segredos do chef Verdoux. SD olha para Charles como quem diz: - que fazer? - e continua a dar instruções à bailarina. A platéia permanece em silêncio total. Finalmente a bailarina entra na barquilha com facilidade, apesar do complicado vestido que usava. SD dá a ordem para ligar o motor. Chapin obedece. AIDA - Oh, mas que elegante! O Maxim’s! Sim, eu aceito, Senhor Santos-Dumont; eu aceito o convite! Muito obrigada! (em seguida sapecalhe um beijo quase na boca) AIDA (graciosa) - “Lachez tout!” A multidão se dispersa e SD coordena a inspeção do Balladeuse para que fique bem guardado no hangar. Georges aproxima-se. O Balladeuse ascende suavemente com a sorridente bailarina a comandá-lo, e começa a voar fazendo um largo círculo sobre a platéia, em baixa altura. Depois sobe um pouco e distancia-se voando por cima do Bois de Bolougne, como se fosse em direção à Torre Eiffel. Mas, ao longe, dá uma volta GEORGES - Parece que temos um novo romance famoso em Paris?!... 80 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME SD - Georges, eu gostaria que pensassem que eu sou viúvo e parassem de inventar histórias e me perguntar tolices... ainda no esqueleto. SD observa-o, suspenso em sua barquilha, à média altura em relação ao pé-direito, e tendo, pendurado ao seu lado, um modelo em miniatura do futuro 14 Bis. Dazon e Chapin terminam, na área de montagem, frente às portas de saída da Oficina, o Número 12, uma espécie complicada de helicóptero de duas grandes hélices. SD vai com sua barquilha aérea até eles. GEORGES - Tudo bem, mas o fato é que até hoje ninguém havia voado solo em seus dirigíveis; nem mesmo os seus mais fiéis e experientes mecânicos. E hoje Você o entrega, em público, a uma bailarina?! E ainda quer nos condenar por estar inventando histórias? CHAPIN - Está quase pronto, senhor. Mesmo com o giro contrário das hélices, não creio que vá se evitar a rotação sobre o eixo central... SD (mudando de tom e passando o braço sobre os ombros do amigo) - Georges, já lhe disse que o segredo do vôo está no equilíbrio. Observei a Srta Aida em suas apresentações. Ninguém melhor que ela conhece esse segredo. É perfeita! Vou lhe contar agora um dos meus segredos mais íntimos: tenho aulas de balé há quatro anos, todas as segundasfeiras, com a Senhorita Vestris... SD (pensativo, cofiando o queixo) - Ainda não dei com a maneira de resolver esse problema. Vou paralisar esse projeto. Sua solução definitiva exigirá algum tempo. SEQUÊNCIA 45 Amanhece em Paris, com muita neve. (Legenda: Paris, dezembro de 1905) Na Rua Washington, o Sr Louis desce do carroção e abre os portões que dão para o seu pátio. Ao entrar, dois homens que o seguiam penetram furtivamente, sem que ele possa vê-los. Súbito, o Sr Louis trava a carroça, dá duas batidas no topo da carroceria e, de dentro dela, saem dois gendarmes que dão voz de prisão aos penetras. GEORGES - A Senhorita Vestris?! Mas como consegue sem que ninguém o saiba? A Senhorita Vestris é a bailarina mais famosa de Paris!... SD - Mantenho com ela uma combinação secreta. Mando buscá-la cedo numa cupê alugada. Ela vem disfarçada de camareira particular e vai para o meu quarto onde faço as aulas. Nem August e os criados percebem a trama, Georges. Acham que é apenas um prazer pessoal, metódico e bem pago. E suas aulas têm me ajudado muito nas performances de piloto. O PRIMEIRO GENDARME - Quem são os senhores? O que desejam com o meu tio? SEQUÊNCIA 44 UM DOS HOMENS - Nada! Estamos apenas interessados na compra desse imóvel e queríamos inspecioná-lo. Oficina secreta de SD. Gasteau termina a última parte de uma grande estrutura celular, O PRIMEIRO GENDARME - Então porque estão seguindo o tio Louis? 81 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Se desejam mesmo comprar o imóvel sabem que não é ele que trata o assunto. É apenas o caseiro. O que querem? Falem, expliquemse... ao que parece... SD - Pedi ao Maxim’s que nos trouxesse um jantar, Georges. August já providenciou. Hoje é folga de Pierre e François e não posso me ausentar daqui. Um dos homens tenta sacar uma arma mas o outro Gendarme é mais rápido e mete-lhe uma cacetada na cabeça. O homem cai, o primeiro Gendarme imobiliza o outro, e apita para um carro do distrito que aproximavase. Os homens são levados presos. GEORGES - Espero que tenhamos tempo para nos falar. O assunto é urgente. SD - Podemos começar, Georges, enquanto cuido de montar essa estrutura. Ao acabar o pessoal se vai, e jantaremos aqui mesmo (e olhando o relógio de pulso) - São 21:15 h. Terminaremos às 22. O assunto ainda é o mesmo? SEQUÊNCIA 46 Intensa atividade na Oficina secreta. Várias novas máquinas, prontas e em acabamento, entulham a área de montagem e mock-up. Dois diferentes desenvolvimentos de helicópteros (Números 11 e 12), um estudo em escala de lancha-hidroavião, um enorme e comprido invólucro de balão dirigível, em plena fase de corte e costura, e estruturas celulares grandes, parecidas com enormes papagaios. GEORGES - Sim, temos informações de que o Governo Francês estuda um meio legal de inspecionar este imóvel. SD - Já sabem que é aqui? Ah, um momento, Georges (e, para Chapin, lá embaixo) - Um pouco mais para a esquerda, Chapin, isso...isso. Agora, mais à frente, assim... vou baixar, atenção, agora. (baixa a estrutura até tocar o solo) - Aí está, podem prender as ferragens. (e, para Georges) - Então, Georges?... Quando Georges entra na oficina, SD está suspenso em sua barquilha ajudando Gasteau a amarrar uma das estruturas celulares para suspendê-la presa à barquilha, e levá-la para uma outra área da oficina, liberando assim a marcenaria de Gasteau. A operação é bem sucedida, com Georges a observá-la da Biblioteca. Ao vê-lo SD faz um sinal para que falem por interfone. GEORGES - Certeza mesmo não! Mas fortes suspeitas... Nosso informante relatou coisas GEORGES (no aparelho da Biblioteca) - Pensei que jantaríamos no Le Procope, mas Uma das hélices do helicóptero Nº 12 82 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME Após algum tempo os mecânicos estão de saída vestindo os seus capotes. Levavasseur e Anzani ficam esperando SD na casinhola de testes de motores. SD sai da barquilha no quadrado central da Oficina e dirige-se até eles, após convidar Georges a acompanhálo. Os quatro observam um motor de oito cilindros em V, dentro da casinhola de testes, em funcionamento aparentemente silencioso. LEVAVASSEUR - Aí estão os seus 50 HP, senhor. É o nosso novo Antoinette: a 900 rotações por minuto! SD - Perfeito! Veja, Georges, o primeiro motor que levará o homem aos ares num mais pesado que o ar. Com ele vamos ganhar os Prêmios Archdeacon e do Aero Clube. (e, para os mecânicos) - Senhores, estão de parabéns. Divido com Vocês a glória de têlo tornado uma realidade! O 1º motor V8 do mundo: "Aí estão os seus 50 HP, senhor." inacreditáveis. Há mais de um ano vigiam este edifício!... Melhor será deixar essa conversa para mais tarde, é delicada... SD - Tenho pressa, Georges. Devo ganhar dois prêmios neste ano. Mas, concordo com Você. Por que não toma um drink? SEQUÊNCIA 47 SD - É mais do que isso, Georges. Depois explico-lhe. Trata-se do meu Número 14. Primavera radiante em Paris. (Legenda: Paris, maio de 1906) SD anda a pé pela Champs Elysées, num elegante traje de frio. Ele respira o ar puro, sorridente, satisfeito. Todos que passam cumprimentam-no cordialmente, sorrindo. Ele corresponde com gentileza. Num certo momento Chapin, dirigindo a Mercedes de SD, estaciona ao seu lado. Ele não pára e obriga Chapin a acompanhá-lo em marcha lenta. GEORGES - Número 14? Já? Pensei que... CHAPIN - O Senhor vai à pé, Senhor Santos? GEORGES - Vou aceitar alguma coisa; está um frio terrível lá fora. Mas, pelo que vejo, ainda empenha- se nos balões dirigíveis?... SD - Saltei o 13, como já fizera com o 8, lembrase? (e, para Gasteau) - Vamos começar a içar a outra asa, Gasteau, dê-me os cabos. Georges prepara uma boa taça de conhaque e senta-se à poltrona. Pega, ao lado, um exemplar do Dans L’Air e começa a folheálo. A Mercedes de Santos-Dumont 83 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SEQUÊNCIA 48 SD - Sim, Chapin, uma boa caminhada neste lindo dia só poderá ser benéfica. SD chega ao "Le Temps" após a sua longa caminhada. Não demonstra nenhum cansaço. Entra no hall, pega o elevador e desce no quarto andar, indo direto ao Gabinete de “ADRIEN HÉBRARD - EDITEUR GENERALE”. É recebido na ante-sala pela secretária. CHAPIN - Mas é grande a distância até lá, Senhor Santos. SD - Preciso exercitar-me, Chapin. Faz parte do ofício. Calculo que estarei no meu compromisso exatamente na hora aprazada, isto é, se o senhor me permitir, Sr Chapin... LOUISE (solícita, ajudando-o a tirar o sobretudo, o chapéu e o cachecol) - Eles o aguardam, Senhor Santos-Dumont. Entre, por favor. (e abre a porta do Gabinete) CHAPIN - Fechou o negócio do galpão em Neully? SD entra no Gabinete. Adrien e Georges já estavam lá. SD - Sim, Chapin, está tudo certo, amanhã Você, Gasteau e Dazon já podem começar a arrumá-lo. François e Pierre vão com Vocês. ADRIEN - Senhor Santos, nos horários o Senhor se comporta como um inglês. (e olhando o seu próprio relógio de pulso) - São exatamente 10 horas! Como tem passado? CHAPIN - Ótimo, então posso ir preparando os carretos. Avisei ao Sr Louis. Podemos fazer quatro ou cinco amanhã. SD - Bastante bem, Sr Hébrard; Georges; senhores, estou à disposição! SD - Certo, Chapin, vejo Vocês à tarde. ADRIEN (como sempre indo direto ao assunto) - Sr Santos, o que temos aqui é obviamente sigiloso. Contamos com a sua discrição. Nosso informante conseguiu-nos cópias de relatórios do serviço secreto francês sobre as suas atividades. CHAPIN - Então até de tarde, Senhor Santos. (e faz meia volta no Mercedes) SD continua a caminhar, cumprimentando a todos e chega na tumultuada travessia da Place de La Concorde. Ali, o gendarme encarregado do trânsito o reconhece e, gentilmente, com um sorriso escancarado, pára o trânsito para SD passar. SD - O Governo Francês sempre honrou-me com notáveis distinções, Sr Hébrard. Mas de todas, talvez seja essa a maior. GEORGES - Não é hora para ironias, Alberto. A coisa está ficando séria. Por isso o chamamos aqui. Ouça Adrien com atenção. O GENDARME (tirando gentilmente o seu quepe para SD) - Por favor, Senhor Santos-Dumont. SD (também tirando o chapéu e passando rápido para não atrapalhar ainda mais o trânsito) - Obrigado, Senhor Gendarme. SD - Trago-lhes uma notícia que talvez contribua um pouco para aliviar essa tensão. Comprei um galpão em Neully e amanhã transfiro minhas últimas invenções para lá. 84 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME ADRIEN - Se o problema se reduzisse apenas às suas invenções finalizadas, Sr Santos, eu diria que o senhor tem razão. Mas não são apenas seus inventos o objeto da espionagem. Há igual interesse no que se passa e como funciona a sua Oficina secreta. era. Está metido até o pescoço numa teia de interesses e poderes sem os quais não sobrevive. Minha visita à sua oficina não poderia ocorrer em sigilo; teria de reportarme a esses poderes sob pena de perder-lhes a confiança e a sustentação. Eu preferiria perguntar-lhe, Sr Santos, se não estaria disposto a abri-la para uma vistoria reservada de uma pequena comissão de autoridades. Isso os acalmaria e daria fim às especulações. SD - Porque haverá tanto interesse logo em minha oficina, Sr Hébrard? SD - Mas, Sr Hébrard, creio que, como um inventor, tenho o direito de preservar o meu laboratório e os meus experimentos no sigilo necessário, não? E não há lei que mo proíba fazê-los em minhas propriedades... ADRIEN (folheando os relatórios) - Confesso que após ler estes relatórios até eu fiquei curioso, Sr Santos. O senhor há de concordar que um edifício aparentemente abandonado, sem chaminés, sem qualquer abertura de ventilação, sem que se produza o menor ruído ou som, sem que se veja uma fresta sequer de luz durante a noite, mesmo tendo uma cúpula transparente, e sem que nada ou ninguém entre ou saia dele hora alguma do dia ou da noite, seja uma oficina capaz de criar, testar e construir máquinas tão sofisticadas e prodigiosas como os inventos que o Sr tem nos exibido em Paris. ADRIEN - Essa lei que protege a propriedade privada está por um fio, Sr Santos. Não fosse a França estar vivendo nesse caos, com uma mudança de Primeiro Ministro a cada seis meses, os militares a teriam derrubado. E já se desenha um quadro de sério conflito na Europa. O “punho de ferro” alemão começa a incomodar de fato. SD - Busco nos meus trabalhos a simplicidade e a modéstia; porque acham que os faço às escondidas? SD - O senhor sabe que coloquei a minha frota de dirigíveis à disposição do General André... GEORGES - Alberto, Adrien está do nosso lado. Vamos precisar da sua ajuda. Precisa confiar nele. ADRIEN (pegando de novo os relatórios) - Sr Santos, no natal do ano passado dois homens foram presos tentando invadir um galpão abandonado na Rua Washington. Um deles foi identificado pelo meu informante como um dos suspeitos que fotografamos por ocasião das provas do Prêmio Deutsch. No distrito identificaram-se como funcionários da embaixada americana e o caso foi para esferas superiores, como segredo de estado. Há dois anos especulase sobre a existência de sua oficina secreta, onde seria ela, e que meios e recursos extraordinários dispõe. Em 1904, no dia do lançamento do seu livro, o Sr os autografava na Livraria do Sr Pasquelle enquanto dois agentes do serviço secreto visitavam a sua residência disfarçados de inspetores do SD - Sr Hébrard, se não tive ainda a sua presença em minha oficina é porque, sinceramente, não sabia do seu interesse em conhecê-la. Considere-se, desde já, meu convidado para quando o senhor o desejar. ADRIEN - Obrigado, mas o seu convite veio no momento em que não poderia aceitá-lo, apesar da curiosidade. O Sr entenderá porque. Ultimamente a situação política vem se complicando e um editor de jornal como eu deixou de ser o simples jornalista que 85 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Corpo de Bombeiros. ADRIEN - Todos sabem que o seu objetivo é conquistar o Prêmio do Aero Clube e a Copa Archdeacon. Só que dessa vez o Sr não vai concorrer só. Os Srs Bleriot e Voisin também postulam os prêmios com suas máquinas. O próprio Sr Archdeacon também pensa em disputá-los e testou um planador, puxado por uma lancha, no Sena. Há também o Sr Esnault-Pelterie; ... e os irmãos Wright, que foram desafiados a comparecer com o seu aparelho, que até hoje só voou em cabogramas e notícias de jornalecos. SD - Sim, lembro-me, August os recebeu... ADRIEN (em off, sobre as imagens da vistoria e da espionagem) - Vistoriaram todos os cômodos do apartamento e só encontraram um escritório de trabalho com documentos pessoais e uma coleção das obras de Jules Verne. Encontraram também dois cofres; um grande nesse escritório e um pequeno, camuflado, no corredor. Ainda não suspeitavam da oficina estar bem ao lado. Essa veio com a prisão dos americanos. Passaram a vigiar a sua residência. A freqüência de seus mecânicos era diária e lá permaneciam um expediente inteiro. Fazendo o quê, Sr Santos? Foram medidas, no prédio anexo, vibrações que só poderiam ser produzidas por máquinas possantes e, num tubo protegido por uma espécie de tampa que aparece ao lado do telhado, observou-se uma saída de ar quente, pois a neve descongela à sua volta. O mesmo acontece, de dia, com a cúpula de vidro. O carroção de carga de um tal de Sr Louis, um surdo-mudo, tem sido seguido. É visto descarregando em St Cloud e em Vau Girard toda vez que o Sr apresenta um novo invento. (agora, em in) - E muitos outros detalhes. Sei que Georges sabe de tudo, mas está sob juramento. Contudo ofereço-me para intermediar uma solução, pois a justiça acabará por conceder mandato que o obrigue a abrir suas portas de um modo muito desagradável. SD - Vi os testes do Sr Archdeacon, aliás, excelentes. Foram muito úteis para todos nós. GEORGES - A idéia de Adrien é que a Comissão de Autoridades tivesse compromisso com a imparcialidade e o sigilo, visitando as oficinas empenhadas na disputa e verificando seus progressos, com vistas a aproveitá-los ao interesse público, na paz ou na guerra. O Governo e o Exército Francês estariam dispostos a colaborar financeiramente nos experimentos. SD - Não é má idéia, Sr Hébrard. Como escrevi em meu livro, a função das aeronaves se mostrará de fato nas guerras. Porém, eu não as faço para esse fim. E ainda não me inscrevi nestes prêmios e não estou certo se vou disputá-los. Em julho ou agosto devo ter uma posição mais concreta. Começo essa semana uma bateria de testes em Bagatelle. Portanto, não vejo motivos para ser incluído agora entre as oficinas visitadas. SD - Sabem que o imóvel não pertence à mim, mas ao Banco Nationalle de la Suisse? ADRIEN (consultando novamente o relatório) - Sim, aqui está. Mas isso é comum em Paris. Bancos suíços prestam-se a fazer fachada para bons clientes. E tem bons advogados e são fiéis aos seus clientes. Nada conseguiram. ADRIEN - Senhor Santos, não me leve a mal; como disse Georges, estou do seu lado. Mas devo dizer-lhe que o nosso lado é o mais fraco. Cedo ou tarde não teremos como impedilos de fazer o que desejam. SD - E o que o Sr aconselha, Sr Hébrard? SD - Por enquanto, Sr Hébrard, confio na posição 86 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME dos advogados do Banco Nationalle. Não poderão forçar-nos em nada. Com ele inscrevome oficialmente na disputa do Prêmio do Aero Clube e na Copa Archdeacon. (novos aplausos) ADRIEN - Como queira, Sr Santos, está no seu UM DOS direito; e terá o PRESENTES nosso apoio; pelo - E porque este "Cavalheiros, este é o meu Nº 14 Bis." menos enquanto for número, 14 Bis? o dono desse jornal. Mas, com a sua permissão, vou repetir uma frase que SD Lachambre, o mecânico, certa - É porque eu o desenvolvi em vez pronunciou: o Senhor é paralelo com o meu dirigível um cabeçudo! Nº 14. SEQUÊNCIA 49 (O 14 Bis) "O 14 Bis é puxado por um burrico" SEQUÊNCIA 50 Boulevard de La Seine, (Legenda: Campo de Bagatelle, Neully. No novo galpão Paris, julho de 1906) Uma trabalham freneticamente híbrida estrutura, mista de todos os homens de SD, na dirigível e aeroplano (foto), montagem do 14 Bis. SD dá com o 14 Bis preso ao dirigível ordens, inspeciona e orienta Número 14, chama a atenção em todos os detalhes. Enfim, de um grande número de à tardinha, com o sol se curiosos. SD e sua equipe pondo, ele sai do galpão, fazem os testes no novo ainda de portas fechadas, e modelo. encontra-se com um grupo de O Nº 14 sobrevoando a praia de Deauville. Verão de 1905. senhores encartolados que o Outro teste mostra o 14 Bis aguardava. SD cumprimenta os chefes do pendurado a fios presos em galhos de árvores Aero Clube e dá ordens para abrir as portas altas de Bagatelle. O 14 Bis é puxado por do galpão. Ao abri-las, os mecânicos fazem um burrico que Chapin guia pelo cabresto. surgir, solenemente, o pronto e imponente (foto) SD, dentro da “nacelle” do 14 Bis, testa o equilíbrio da aeronave. 14 Bis. Aplausos. SD pede a palavra. Na oficina secreta, SD testa, no seu “túnel de vento”, os comandos SD - Cavalheiros, este é o meu Número 14 Bis. ..."uma híbrida estrutura, mista de dirigível e aeroplano"... 87 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND laterais das asas do 14 Bis. Chapin está ao seu lado. Brasil. E Alberto gosta de valorizar datas e símbolos, por isso nos fez vir aqui. CHAPIN - Como pretende chamá-los, senhor? O 14 Bis rola no Campo de Bagatelle à vista de todos; começa a correr com o motor à toda e, por uma fração de segundo, chega a sair do solo. SD decide não prosseguir com os testes. SD - Batizei-os de “ailerons”, Chapin, e com eles creio ter resolvido o problema do equilíbrio lateral do aeroplano. SD (para o Sr Archdeacon) - Precisarei fazer modificações neste modelo, Sr Diretor da Prova, em uma semana creio que estarão prontas. CHAPIN - E como vai operá-los em vôo? Suas mãos estarão ocupadas com as manetes do motor e as alavancas de leme e profundidade... ARCHDEACON - Pode-se sentir que o empuxo do motor é suficiente para alçar o aparelho, Sr Santos. Aguardaremos os novos testes. SD - Tive a idéia de prender os cabos nos meus ombros. Desenhei uma ombreira de couro para receber a outra ponta dos cabos. Assim, apenas com um movimento de corpo, posso acioná-los. (Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 13 de setembro de 1906) Nova prova. O 14 Bis sobe a quase um metro de altura e fica no ar por mais de um segundo. SEQUÊNCIA 51 UM DOS MEMBROS DA COMISSÃO - Não há dúvidas de que o aeroplano suspendeu-se no ar pela força de sustentação de suas próprias asas. Teste de vôo no Campo de Bagatelle (Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 7 de setembro de 1906) Alguns membros da Comissão aguardam as provas. E mais jornalistas, curiosos, etc. OUTRO MEMBRO DA COMISSÃO - Sim, mas não o suficiente para conquistar um dos troféus. UM REPÓRTER (para Georges) - Georges, porque esse vôo logo hoje? Estamos com um dia cheio... Corte para Georges conversando com SD. GEORGES - Pareceu-me que havia condições para realizar a prova menor. Por quê desistiu? GEORGES - Hoje é dia da Independência do "... por uma fração de segundo, chega a sair do solo..." 88 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME SD - Georges, em aeronáutica a prudência caminha lado a lado com o progresso. O equilíbrio do 14 Bis não me convenceu. Dar um passo além do que dei, seria um risco excessivo e talvez fatal. Tenho de alterar o projeto. ARCHDEACON - O Sr é testemunha disso, Cap. Ferber? FERBER - Possuo informações seguras e de boas fontes. ARCHDEACON - O Sr faria a gentileza de nos informar quais são essas fontes, Cap. Ferber? GEORGES - Voisin e Bleriot disseram ao "Le Temps" que estão em fase final de testes do modelo que fazem em conjunto. FERBER - Só posso dizer que são oficiais respeitáveis das forças armadas daquele país, Sr Archdeacon, mas devo mantê-las em sigilo. SD - São excelentes inventores. Por isso decidi não arriscar. Se fico sem o meu aeroplano, vão-se todas as minhas chances. Já marcaram data? GEORGES (intervindo) - Minhas fontes posso revelar. Nosso agente em Nova York esteve em Dayton, no sítio de Kitty Hawk, onde disseram ter ocorrido esses vôos, e por lá não se tem notícias deles, Cap. Ferber, nem rumores foram verificados naquele pequeno lugarejo. GEORGES - Ainda não, mas estão prestes a fazê-lo. SEQUÊNCIA 52 FERBER - As experiências estão sendo feitas secretamente, Sr Georges, nem mesmo... Reunião concorrida no AeroClube. Presentes os aeronautas Voisin, Maurice e Henry Farman, Bleriot, Esnault-Pelterie, Breguet, Anzani, Jaques Fauré, Curtiss, Delagrange, Cockbun, o tenente Krebs, o coronel Renard, o capitão Ferber, Lachambre, Machuron, Chapin e SD; os membros da Comissão Paul Tissandier, René Garnier, Ernest Zens, Surcowt e Besaçon: os dirigentes do Aeroclube Ernst Archdeacon, Deutsch de La Meurthe, Marques de Dion, Príncipe Aimé, Príncipe Rolland Bonaparte e o Sr Fonvielle; e os jornalistas Georges Goursat, do "Le Temps", François Peyrey, do Herald, Maurice Talmeyr do L’Illustration, dois jovens repórteres do Figaro e do Petit Journal e muitos fotógrafos. As discussões pegavam fogo. MAURICE TALMEYR (intervindo) - Nem tão secretas assim, Cap. Ferber. Alguns jornalecos americanos, sem qualquer credibilidade ou importância, parecem ter acesso a elas; pelo menos é o que dizem nas suas páginas marrons. Mas a imprensa respeitável dos próprios americanos não publica uma só linha. Não acha estranho esse critério de sigilo, Cap Ferber? ARCHDEACON - Cap. Ferber, acredita que concederemos um prêmio destes para vôos dos quais só conhecemos cabogramas anônimos? Nós convidamos os Srs Wright a vir mostrar-nos sua máquina e não recebemos resposta, Cap. Ferber! CAPITÃO FERBER - Senhores, insisto que estes prêmios estão ultrapassados. Os Srs Orville e Wilbur Wright já bateram essas marcas nos Estados Unidos da América, com o seu “Flyer”. VOISIN - E, falando em máquinas, eu gostaria de saber que outros inventos esses senhores deram ao conhecimento público. Ou será 89 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND que o seu “Flyer” já lhes caiu diretamente dos céus? Pelo que sabemos, antes do “Flyer”, eles consertavam bicicletas!... FERBER - Como já disse, Sr Voisin, tudo que fazem é destinado à indústria e é feito secretamente. e Voisin a honra de tentar primeiro. BONAPARTE - Da nossa parte não há inconvenientes. VOISIN - Está aceito, Sr Bonaparte; não declinaremos da gentileza de um cavalheiro, uma vez que nos antecipou. (e, para SD) - Muito agradecido, Sr Santos. ARCHDEACON - O que fazemos aqui também é destinado ao progresso industrial... BONAPARTE - Então está decidido; a prova será realizada em Bagatelle, às dez horas do dia 23 de outubro. E repetindo as regras: um prêmio de 1 500 francos, oferecido pelo Aero Clube, ao primeiro aeroplano que, levantando-se por si só, fizer o percurso de 100 metros, com desnivelamento máximo de 10%; e o outro, de 3 000 francos, oferecido pelo Sr Ernst Archdeacon, ao primeiro aeroplano que, por si só, voar através de um percurso de 25 metros, com um ângulo de queda máximo de 25%. (bate o martelo) BONAPARTE (intervindo, impaciente) - Cap. Ferber, o Sr já insultou o suficiente a nossa inteligência e mais ainda a nossa paciência. Tenho informações sobre seu interesse em vender essas abstrações ao Governo Francês. Ora, Governos não compram abstrações secretas! Temos de prosseguir em nossa reunião; se os Srs Wright postulam nossos prêmios, que façam por merecê-los; e nas regras estabelecidas. E dou por encerrado o assunto! Passo à pauta dessa reunião: as provas de 23 de outubro. (aplausos e gritos de muito bem! muito bem!) O Cap. Ferber retira-se de cara amarrada. SEQUÊNCIA 53 DEUTSCH - Temos até o momento duas inscrições, Sr Bonaparte, a dos Srs Voisin e Bleriot e a do Sr Santos-Dumont. Quase noite na véspera da prova. SD chega de coche em sua residência, vindo pela Rua de Berri. Descrição cenográfica: a quadra onde situamse o apartamento de SD, sua oficina secreta e o apartamento de Pedro Guimarães é uma criação cenográfica ficcional, feita sobre a respectiva quadra existente em Paris, como mostra a planta desenhada ao lado. BONAPARTE - Faremos um sorteio para decidir quem tentará primeiro. SD - Senhores, permitam-me ceder aos Srs Bleriot Quase chegando na Av. Champs Elysées, SD percebe uma movimentação de repórteres à porta de seu edifício. Antes de ser visto manda o coche estacionar, paga o cocheiro e salta, entrando no edifício onde mora o seu amigo Pedro Guimarães. Traz consigo as chaves do apartamento e ia abrir a porta, mas decide bater. Pedro atende. PEDRO - Alberto?! Seja bem-vindo! Espaço destinado à planta da quadra em que residia Santos-Dumont 90 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME SD - Como vai, Pedro? Começo a por em prática o nosso plano. Está saindo? Izabel. Espero que agrade. SD (sem parar, andando em direção à outra porta) - Confio em Você, François. Pegou também a receita da ambrosia? PEDRO - Sim, por pouco não me pega aqui. Mas pode ficar à vontade. FRANÇOIS - Sim, Senhor. Acho que ficou boa. Aceita uma prova? (pega um pouco na compoteira com uma colher e dá a SD) SD - Repórteres cercam minha casa. Não gosto deles em vésperas de provas. Ficam como urubus na carniça. Pode ir, ficarei aqui à vontade, Pedro. SD (provando a iguaria) - Ótima, François! Que a galinha esteja à altura! O cheirinho está bom! Vou trocar a roupa e desço em 15 minutos. PEDRO - Não se preocupe. O porteiro já está avisado, e é de confiança. Descanse tranqüilo. (e sai) SEQUÊNCIA 55 SD pega o telefone e chama August. Interior do luxuoso “Le Procope”, famoso restaurante de Paris. Numa mesa de cabine sentam-se Gordon Benett e Adrien Hébrard, em trajes de gala. Após servido o champagne, Benett pede ao garçom que aguarde ser chamado e não os interrompa. Cerra o cortinado e oferece um brinde. Os dois brindam. SD - August, estou aqui no Pedro. Não recebo a imprensa hoje. Dê-lhes uma desculpa qualquer. E diga ao François que janto às nove; quando ficar pronto, avise-me. SEQUÊNCIA 54 BENETT - Chamei-o aqui, Adrien, porque, além de ser “o informadíssimo Hébrard”, agora somos sócios e creio que posso tirar uma dúvida que me inferniza há cinco anos... É noite e SD atende o chamado de August. Levanta-se do sofá e acende o abajur. Em seguida sai do apartamento de Pedro pela porta dos fundos que dá para um quintal. Dali vai até um portão que dá acesso a uma antiga servidão em desuso, no miolo do quarteirão, somente utilizada por criados para queimar lixo e por jardineiros para queimar folhas no outono, como agora acontecia. Os braseiros ainda fumegavam produzindo uma bruma de fumaça branca pela qual passava SD, desviando-se dos braseiros, até um outro portão semelhante que dava para o quintal de seu apartamento. François o esperava na porta da cozinha. ADRIEN - No que puder ser útil... BENETT - Vou fazer como Você, indo direto ao assunto: (e, de sopetão) - Quem mandou o Senhor Santos-Dumont fazer aeronaves? ADRIEN (surpreso) - Ao que eu saiba, ninguém... ele, por si mesmo... SD (ao entrar) - Morro de fome, François, acuda-me. BENETT (interrompendo-o) - Quanto aos primeiros balões eu até acredito nessa historieta romântica, Adrien. Mas agora a coisa foi longe demais. Não tente enganar- FRANÇOIS - Estou testando a receita da Sra Princesa 91 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND me; sei que Você e Georges mantêm um arquivo secreto, guardado como uma espécie de tesouro no jornal. Não sei o que contém, e prefiro sabê-lo diretamente de Você, como bons cavalheiros e sócios que somos agora. Mas se quisesse teria outros meios... Confesso que... poderosas que conhecemos, Gordon. Diabos, que interesse pode haver no primeiro homem que voou numa máquina? Seja ele africano, mulçumano ou até um inglês, como aqui costumamos debochar... BENETT - Não se faça de ingênuo, Adrien. Há muito interesse em jogo. O domínio dos ares será o domínio da guerra; e o primeiro a conseguilo terá o mundo a seus pés. ADRIEN (interrompendo-o) - Gordon, o que acabou de acontecer foi apenas uma discreta solenidade. Os papéis só serão assinados amanhã. Há tempo de voltar atrás. Não quero começar com uma briga... ADRIEN (irônico) - Santos-Dumont dominando o mundo?! Até que não seria má idéia... BENETT (com o dedo em riste) - Desfaça o negócio, Adrien, e comece a redigir a petição de falência do "Le Temps". Não me trate como um imbecil. Não pretendo brigar; precisamos de Você na direção do jornal, e sabe disso. BENETT - Não é hora para ironias, Adrien. Temos motivos para suspeitar que Santos-Dumont tem ligações com os comunistas exilados na Suíça. ADRIEN - Não comece a falar grosso, Gordon, tenho ainda o Banco da Indústria... ADRIEN - Isso só pode ser piada!... BENETT - Nas últimas greves na América tivemos experiências surpreendentes, e não pense que aqui as coisas se passam de modo diferente. Homens bons, honestos, pais de família cordiais e servis, pessoas absolutamente insuspeitas, revelaram-se líderes secretos de forte influência e carisma sobre as massas operárias. Ainda não temos indícios dessa ligação de Santos- Dumont. Ela apenas surge como uma possibilidade que pode explicar os seus sucessos. GORDON (irônico) - Que está sendo comprado por Rockfeller, e Você também sabe disso! ADRIEN (rendendo-se) - O que o interessa tanto em Santos-Dumont? BENETT - Ainda pergunta? As nações mais poderosas, as melhores cabeças e os melhores profissionais do planeta estão entornando rios de dinheiro para conseguir o vôo mecânico, diabos, e até agora nada! E SantosDumont ganhando todas?! Sozinho?! Cá entre nós, sabemos da farsa dos Wright; foi idéia minha. Mas a cúpula do poder nos Estados Unidos decidiu levá-la às últimas conseqüências, a não ser que um fato novo surja a nosso favor. E esse fato novo não é o seu “petit Santos”. ADRIEN (desdenhando) - Eu não acredito em meus ouvidos! É mesmo Gordon Benett do Herald que está me dizendo tamanha asneira?!... BENETT (sem perder a serenidade) - Um tal Lenin anda agitado na Suíça. O imperador Nicolau é um imbecil, mas representa o trono secular da Rússia, e não deixa de ser um fator de união do povo. O Kaiser quer destruir a unidade russa e por isso vai fortalecer Lenin. Nossos analistas ADRIEN - Não consigo enxergar essa ameaça a não ser na xenofobia das cabeças coroadas e 92 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME prevêem a união de ambos, no caso de guerra na Europa, para derrubar Nicolau. A América também vai apoiar Lenin, e já fazemos dele uma boa imagem por lá. Mas ambos não confiamos nele. Os motivos para apoiá-lo é que são diversos. O Kaiser quer dominar a Rússia com o seu “punho de ferro” e crê que será mais fácil no caos de Lenin. Nós queremos a derrubada da monarquia e, seja lá quem ficar no poder, terá de abrir o mercado às nossas indústrias; hoje fechado pela imbecilidade do Czar. justamente tudo isso, e alguns pequenos detalhes, que o tornam ainda mais suspeito. ADRIEN - Interessou-me o que Você chama “pequenos detalhes”. BENETT - Coisas como distribuição de dinheiro para operários, oficinas secretas, imóveis secretos, arquivos secretos e, - quem sabe - armas secretas? Jauré foi visto frequentando seus hangares... Já lhe disse, muitos homens absolutamente insuspeitos revelaram-se... ADRIEN (ainda desdenhando) - Muito bem... o Kaiser quer dominar a Rússia que Napoleão não dominou, e a América deseja comprá-la como está fazendo com a França democrática. E é o nosso “petit Santos” que paga... ADRIEN (interrompendo-o sério) - Sr Gordon Benett, peço-lhe que continuemos amanhã no jornal. Como sabe, minha esposa não passa bem e não sou de descuidar os deveres de esposo e chefe de família. Para encerrar essa cantilena devo dizer que chegaremos com facilidade a um acordo. Estou convicto de que tudo não passa de paranóia generalizada, quase às raias do delírio! Uma espécie de praga que tem assolado inteligências de homens poderosos, especialmente americanos, dados às fantasias e às avaliações apressadas. Mas não deve preocupar-se, nosso jornal vai bem graças à mim e ao senhor, e melhor ficará quando nos acertarmos. Pertenço a uma estirpe de editores de mais de um século de tradição, e sei que sou o ponto final dessa legenda. O velho jornalismo desinteressado e comprometido com a verdade e os fatos está com dias contados. Mas ainda estou aqui e na ativa. De sorte que o senhor haverá de amenizar a sua arrogância, e eu não vou jogar um grande passado nos riscos de uma defesa ingênua daquilo que, como já disse, não dou à mínima! Creio que assim estamos entendidos. (levanta-se e estende a mão para despedir-se) BENETT - Pare com bobagens, Adrien. As informações nos colocam em alerta e essas duas possibilidades podem dar com os burros n’água. Os comunistas não são idiotas desprezíveis. Devem ter algum trunfo e suas estratégias têm sido admiradas pelos experts. Há quem diga que o Kaiser faz o papel do bobo nessa aliança. E não pretendemos contracenar com ele. Segundo as últimas análises, Lenin tem boas chances de conseguir seus objetivos maquiavélicos, principalmente se tiver para si o domínio dos ares. Os comunistas têm demonstrado inusitada autoconfiança em seus discursos. E o dinheiro do Kaiser não lhes tem faltado; sem falar em outros dinheiros de milionários românticos, poetas e idealistas... ADRIEN (sempre desdenhando) - E será o aristocrata e inexpugnável apolítico, o Sr Santos-Dumont, que dará aos comunistas as chaves dos céus?!... BENETT - Peço-lhe, pela última vez, para me levar a sério, Adrien. Sei que Santos-Dumont tem dinheiro próprio, talento, intuição e ciência para fazer o que faz. Sei que o seu comportamento é insuspeito, etc. Mas é BENETT (apertando-a com um sorriso cínico) - Certamente que sim, Adrien, mas será melhor pela manhã; porque à tarde parece que teremos de ver o Sr Santos-Dumont voar, não? 93 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND ADRIEN - Como queira, aguardo-o pela manhã. E leve consigo o Sr Lazare. Já podem tornar públicas as suas relações, não? GEORGES - Não está com maus presságios, hein? Nunca o vi assim em vésperas de grandes datas, o que está havendo? BENETT - É boa idéia, Adrien, talvez precisemos do Lazare. Prometo levá-lo. SD - Já disse, minha intuição. Nada quanto ao vôo em si, mas preferiria deixar a abertura da oficina para depois de conhecer a repercussão do meu vôo na imprensa. O que acha? SEQUÊNCIA 56 GEORGES - Não deixaria de ser um bom assunto para épocas mais vazias... mas, Você... ora, como prometi, nada publicarei sem sua autorização... (pega duas laudas de texto e joga-as no lixo) - Pronto, já se foram à cesta. Dorme bem, Alberto, e descanse. Alta madrugada. No gabinete de Georges no "Le Temps" o relógio de parede indica 1:30 h. Georges está de mangas arregaçadas, sentado à sua mesa, repleta de fotografias de SD e uma pilha de laudas escritas ao lado de sua máquina de escrever. Termina de datilografar um parágrafo e passa a examinar umas fotografias e desenhos quando o telefone toca. SD - Até logo, Georges. Assim durmo mais tranqüilo. Aguardo-o lá amanhã. (desliga) GEORGES (atendendo) - Alberto? Ainda acordado?... Sim, estou fechando uma grande reportagem sobre Você. SEQUÊNCIA 57 (A Copa Archdeacon) SD (deitado em sua cama) - É sobre a idéia de abrir a oficina ao público, Georges. Acho que devemos suprimi-la. GEORGES - Por que, Alberto? Está voltando atrás em nossos planos? (Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 23 de outubro de 1906) Grande movimentação de público, veículos, fotógrafos, jornalistas, vestidos e cartolas. Archdeacon, o Cap. Ferber e os comissários do Aero Clube cercam o 14 Bis. Um dos comissários olha o seu relógio de pulso. SD (sentando-se melhor na cama) - Não é isso. É minha intuição; algo me diz... O COMISSÁRIO - São 14 horas, "... e solta-se do chão como que por algum milagre..." 94 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME Sr Archdeacon. Nenhuma notícia dos Srs Voisin e Bleriot. de um café de Paris. Todos que passam cumprimentam-nos ou apontam para SD. Garotos pedem-lhe autógrafos em caderninhos escolares. Chega um jornalista. O JORNALISTA - Sr. Archdeacon, recebemos um telefonema do Sr Bleriot; o aeroplano não ficou pronto para a prova. Deixam aos senhores a decisão de adiá-la ou não. SD (passando um papelzinho a Georges) - Recebi este cabograma do Pradô. Está chateadíssimo na missão do Alaska. Disse que agora se aposenta mesmo, nem espera a compulsória. E toda vez que me passa uma mensagem ele a encerra com a mesma frase: “não dê créditos à farsa dos Wright. Sabemos que é tudo balela. E o Governo Brasileiro é um Governo de merda!” ARCHDEACON - E por que adiaríamos? Não sabem que há outro concorrente? Que a prova comece. SD entra na barquilha do 14 Bis. Chapin dá a partida no motor e o 14 Bis começa a se mover como uma pata-choca no gramado, balançando e sacudindo suas asas e seu nariz enorme. SD dá a manete à toda. O papagaio celular gigante começa a ganhar velocidade na direção do comprimento do Campo. Corre uns cem metros e solta-se do chão como que por algum milagre. Um automóvel acompanha-o, ao lado, com 3 membros da Comissão a observar o pássaro a cerca de dois metros de altura, como que apoiado pela exclamação da platéia. Em seguida, ele desce um pouco desastradamente, quebrando uma das rodas ao tocar o solo. Um membro da comissão berra: - 60 metros! GEORGES (devolvendo-lhe o cabograma) - Saudades de Prado! Saudades... Comecei a ter esse estranho sentimento após a convivência com Vocês. Minha mana escreveme que também ela já o sente sempre mais forte. E suas cartas já o trazem. Quero visitála e conhecer o Brasil, Alberto. Quando iremos? SD (passando a Georges uma pesada pasta de couro) - Assim que conseguirmos a conquista maior, Georges. O Brasil é perfeito para uma comemoração. Tem-se, porém, de ter disposição e paciência. A Eloqüência tem sido a mais trucidada das artes, naquelas bandas. Mas a ternura do povo é inigualável. UM SENHOR ELEGANTE DA PLATÉIA (estendendo a mão para o companheiro ao lado) - O “Cannard” ganhou a Copa Archdeacon, mas não levou o Prêmio do Aero Clube. Ganhei metade da aposta. GEORGES (apanhando a pasta) - E que tal está ficando a reportagem, gostou? SD - Confirma uma velha certeza minha, Georges. Você escreve tão bem quanto desenha. Quanto à mim, sabe que me acanho diante de elogios. Mas está ótima; é uma qualidade dos franceses: o domínio da arte de escrever! A documentação fotográfica também é primorosa. Por sinal, tenho uma nova: comprei um aparelho de projeção ao Sr Lumière e todos os filmes que fizeram dos meus vôos. Amanhã estará instalado na minha oficina. Não quer vir estreá-lo? UM OUTRO SENHOR ELEGANTE (contando o dinheiro e entregando-o a contragosto) - O “Cannard” não voou; ele apenas saltou! O PRIMEIRO - O choro é livre! SEQUÊNCIA 58 SD e Georges tomam um drink na calçada 95 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SEQUÊNCIA 59 (O cinematógrafo da Oficina secreta) CHAPIN - Lá estamos nós! Fim de expediente na oficina secreta. Novos modelos surgem no cenário. Georges observa atentamente o arrojo dos novos projetos, com entusiasmo. SD, sujo de graxa, com roupas de mecânico, ciceroneia-o. SD - Aí está, vai começar a mover-se. Reparem; repare as asas, Chapin! Se eu tivesse dado mais crédito aos meus ailerons poderia voar bem mais longe. Veja a asa esquerda caindo, não tive como equilibrá-la. O jeito foi voltar ao chão. (o vôo acaba e o filme mostra pessoas em volta do 14 Bis quebrado) Dazon, repita a projeção. (e, para Chapin) Percebeu, Chapin, a função dos ailerons? Aquela história do Farman de que eles poderiam causar o desequilíbrio lateral não procede. Será que nunca aprendo a confiar em mim mesmo!? GEORGES (frente ao “túnel de vento”, olhando uma miniatura ali suspensa) - Parece uma libélula, Alberto. E como é bela! Você, enfim, começou a copiar a natureza? SD - A natureza nunca foi boa mestra para a mecânica. Por ela teríamos trens com pernas de ferro e navios com barbatanas nos cascos. Mas sempre nos ensina algo. Se a observamos percebemos que quase tudo o que voa tem asas à frente e uma cauda, maior ou menor, para trás. Após voar o 14 Bis, senti necessidade de copiá-la. Mas esse projeto não competirá nesse prêmio. Temos de ganhá-lo no 14 Bis, com suas limitações. Vamos vê-lo agora nos filmes do Sr Lumière. Penso que poderão nos ajudar. (e, gritando) - Gasteau, abaixe a tela! DAZON (gritando, da cabine) - Pode soltar? SD - Pode. (o filme recomeça) - Vejam, reparem bem! Faltaram os ailerons, Chapin, amanhã quero-os instalados em Neully. A prova será em 12 de novembro. E Voisin e Bleriot dessa vez lá estarão. GEORGES - E Você continua dando a vez a eles? Enrolada acima do pé-direito da oficina, uma enorme tela branca, quase quadrada, começou a descer perto das portas de correr. Ao fundo, sobre a casinhola das máquinas de aeração, uma outra, de madeira, foi construída criando uma cabine no segundo andar para abrigar o projetor. Dazon estava lá, após subir a escadinha de grampos de ferro chumbados à parede. SD (sem tirar os olhos da tela) - Sim, Georges. Ah, vejam! Repare, Chapin... viu?.... a asa esquerda... e agora o tombo... diabos! Está bem, Dazon, por hoje chega. Todos dispensados. Amanhã todos em Neully, e até o dia 12. Não importa se Bleriot e Voisin voam antes; o certo é que vou voar! SD - Dazon, pode começar! Gasteau, apague as luzes! SEQUÊNCIA 60 (A via de Santos-Dumont) François serve um fino quitute para SD e Georges na bancada da cozinha. Todos ficaram olhando para a grande tela branca quando Gasteau desligou as luzes. Surge, na tela, o 14 Bis em vários ângulos, com pessoas agitando-se à sua volta. SD e Chapin inspecionavam o motor. FRANÇOIS - Permita-me a indiscrição, Senhor. Mas podemos assistir aos filmes na próxima vez? Chapin e Dazon, antes de sair... 96 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME SD - Claro, François, como não pensei nisso? Desculpem-me todos, diabos, só penso nessa prova! Prometo-lhes que, na próxima vez, todos assistiremos juntos. íntimos de Adrien!? E ele nada diz. SD - Também estranhei a imprensa após o 23 de outubro. Lembra-se que tive uma intuição sobre isso? O próprio "Le Temps" tem me saído acanhado, comedido... FRANÇOIS - Obrigado, Senhor. Pierre e eu temos tentado vê-los no cinematógrafo mas nunca conseguimos entrar nas sessões que exibem os filmes do Senhor. São muito comentadas. Paris inteira tem a sensação de conhecê-lo pessoalmente. Não é como antes, que as pessoas conheciam-no mais pelo nome. Somos orgulhosos em servi-lo, senhor. GEORGES - Um pouco disso pode ser estratégia do Adrien. Ele odeia imprensa ufanista, mais ainda quando percebe que algo grandioso está para acontecer. Nisso se parece com Você, Alberto. Ele chama “sexto sentido” e Você “intuição”, mas às vezes eu digo que tudo não passa de genuína superstição. Lembra-se que eu lhe avisei para não incluir a medalhinha de São Benedito em seu livro? Cientistas detestam essas crendices. Eu estava certo, concorda? SD - Obrigado, François. Há um provérbio chinês que diz: “uma imagem vale mais do que mil palavras.” O que dizer então de milhares de imagens que reproduzem, não somente a realidade, como também, o movimento?! O cinematógrafo transformará o mundo, meu bom François! Como, também, a aeronáutica! E o cinema e o aeroplano serão os veículos do futuro! Acabam de comer, levantam-se, e vão para o salão. SD (caminhando ao lado de Georges em direção ao salão) - Sim, considero o meu livro o meu maior fracasso. Seria o momento de crer mais nos outros do que em mim mesmo. Errei em não ouvi-lo, Georges. GEORGES - Sem contar as infinitas possibilidades estéticas e ficcionais que essa nova linguagem abre ao imaginário! (e, preocupado, mudando o assunto) - Como andam as pressões para inspecionar a oficina? GEORGES - Bah! Homens de gênio não erram! Seus erros são volitivos e são portais de novas descobertas. SD - Arrefeceram. Os advogados diziam-me que nossas chances estavam cada vez menores. Porém, hoje telefonaram-me para dizer que não me preocupasse por enquanto. É uma situação desagradável, Georges, mas Você é testemunha de que não fui eu que a comecei. SD - A modéstia não me permitiria aceitar tal argumento, Georges. Mas a verdade é que não me preocupam mais as opiniões de cientistas. Aprendi que, para conquistar minhas metas, devo crer em mim, antes de tudo. Somente minha intuição poderá levarme aos meus objetivos GEORGES - Tenho estranhado o comportamento da imprensa. Todos sabem dessa história mas ninguém publica uma linha. Até Adrien está esquisito... Aliás, todo o jornal! Muitos fuxicos; Benett à vontade, com o palerma do Lazare na coleira como se fosse cachorrinho... Comportam-se como se fossem GEORGES - Mas isso é válido para todos nós, não acha? Chegam ao salão e sentam-se. Georges começa a acender um charuto. 97 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SD - O fato é que o homem pioneiro está sempre no “Limite”; numa via que faz fronteira entre o mundo conhecido, material, sensível, visível; e o desconhecido, imaterial, invisível. SD (interrompendo-o) - Ao menos respeito deveria haver, Georges. Quem, como eu, viveu a experiência de desafiar poderosas forças da natureza como a da gravidade, dos ventos e das tempestades aéreas, não pode raciocinar de maneira tão simplista e cartesiana. Houve momentos em que, voando em meus dirigíveis, pensei: estou só aqui! Sou o único ser humano em todo o planeta a desafiar um tabu tão antigo quanto a própria civilização! E quem sou eu para isso?! GEORGES (ainda tentando acender o charuto) - Sobre o que está falando, Alberto? SD - Penso que a Ciência do Século XX começa a caminhar para um equívoco, Georges. Ao buscar evitar o preconceito, acaba por originar um outro ainda maior. Arte e Ciência sempre caminharam juntas ao longo da História. No entanto a Ciência que hoje se pratica começa a fomentar um desprezo pela Arte, pelas coisas da magia, da superstição, do incognoscível. GEORGES - Você disse tabu... é um fenômeno ligado à magia; e a Ciência não o reconhece... SD (outra vez interrompendo-o) - Certa vez, em Mônaco, deixei-me ser rebocado pelo iate do Príncipe Dino. A aeronave descera muito perto d’água e faziam-na baixar ainda mais, puxando-a pelo cabo a tal ponto que fiquei a poucos pés da chaminé da chalupa. Ora, essa chaminé expelia fagulhas vivas! Uma só bastaria para produzir uma queimadela no balão, inflamar o hidrogênio e reduzir-nos a pó. Do navio não entenderam minhas advertências e protestos. Vi as fagulhas passando ao meu lado e preparei-me para o pior. E não foi a Ciência que salvou-nos da catástrofe, Georges. Mas eu já usava a medalha de São Benedito... GEORGES (finalmente na primeira baforada) - Entendo onde quer chegar... SD - Não que eu seja um adepto da Arte e da Magia, ou um místico. Não sou; meu trabalho é realizado nos domínios da Ciência. Mas não desprezo o desconhecido. É um universo muito maior e mais misterioso, portanto, mais poderoso. Prefiro não bulir com ele; muito menos afrontá-lo. GEORGES - E?... GEORGES - Já é famosa em Paris essa sua sorte impressionante, Alberto. Todos comentamna. SD - Daí minha posição, muito questionada pela Ciência e seus novos adeptos, com relação aos ícones, símbolos, datas, e signos do sobrenatural, da numerologia e da magia, pelos quais não escondo o meu respeito, inclusive no que toca a questão das patentes. Em tudo isso entra, também, a medalha de São Benedito. SD - Sorte?! Tabu?! O que a Ciência pode saber delas? Ora, se são parte do desconhecido, respeitemo-las. Não se brinca com tais coisas. Muito menos quando se é um nauta. GEORGES - Nisso temos de dar-lhe razão, Alberto. Vimos o que aconteceu ao seu conterrâneo, o Sr Augusto Severo... GEORGES - Ora, Alberto, esperar que a Ciência, no estágio em que se encontra, veja com bons olhos a superstição... 98 PARTE 2 SD - Lembra-se que eu tentei avisá-lo? Não me recebeu! Ia dizerlhe, em particular, claro, que seu dirigível era bom mas a arrogância é p é s s i m a companheira de vôo. Sou o único que o sei por experiência. Também fui arrogante no início, e paguei caro. Por esse topete pseudo científico afrontei um 13 de julho e um 8 de agosto. E aprendi que o desconhecido costuma dar aos nautas apenas dois avisos. Não pude advertir Augusto de público porque seria ridicularizado pela arrogância da Ciência, que ele insistiu em levar como passageira. SANTOS DUMONT/O FILME - O que significa? Traduza... SD - Em português, como em francês, a expressão “é preciso” tem o duplo significado de “ser exato” e “ser necessário”, duas funções fundamentais à vida do navegante que se arrisca na via limítrofe entre o conhecido e o desconhecido. Traduzindo, Georges, navegar é ser exato tanto quanto ser necessário; e quanto ao viver, não é necessariamente que se seja exato e nem exatamente que se seja necessário, entendeu? A tragédia de Augusto Severo em Paris, 18 de maio de 1902. Acima, o "Pax", seu dirigível que explodiu a 400 m de altura; a queda em chamas; e o local onde cairam os destroços. GEORGES Estou acompanhando, Alberto. É genial! Prossiga... GEORGES (em off, sobre o flash-back do desastre de Augusto Severo) - Foi uma tragédia! Paris jamais esquecerá aquela bola de fogo despencando de 400 metros de altura... SD - Ora, a arrogância da Ciência, ou pseudociência, precisa ser questionada, tanto filosófica quanto eticamente. Com a pretensão de abranger todo o campo do conhecimento e o desprezo pelo desconhecido ou por tudo que não é lógico ou racional, a Ciência torna-se Ignorância e pode levar a Humanidade às catástrofes jamais testemunhadas em outras épocas. SD - A navegação, Georges, é tanto uma Arte como uma Ciência. Como a Arte ela contempla todo o incognoscível, isto é, o desconhecido, a magia, o sobrenatural; enquanto que, como Ciência, contempla apenas o insignificante mundo do conhecimento. Um poeta tão grande quanto Camões escreveu em língua portuguesa (diz em português): “Navegar é preciso; viver não é preciso”. GEORGES - Você crê então que o aeroplano poderá vir a ser um mal para a Humanidade? SD - Se será mal ou bom, não sabemos, Georges. O fato é que ele está próximo e virá para GEORGES 99 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND ficar; e vai transformar o mundo exterior dos homens. Porém, a opção pela Ciência presunçosa e arrogante é mais previsível porque ela traz mais lucros, através das patentes, apesar do número de vítimas que causa. E a Humanidade não terá meios de fazer os julgamentos porque a informação que receberá também estará no poder dos proprietários dessas patentes, como já podemos perceber. hangar de Neully. Chapin e Gasteau instalam os ailerons no 14 Bis. SD parece estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Supervisiona Chapin e Gasteau, observa Dazon instalando ferragens e manetes, discute com Levavasseur a regulagem do motor, enquanto experimenta a ombreira com um costureiro afetado, agulha e linha na boca, tentando fazer SD ficar quieto para poder dar o ponto, etc. GEORGES - Refere-se aos grandes jornais europeus e americanos?... Mas, quanto às patentes? Nunca tivemos uma boa explicação sobre essa sua polêmica posição... Corte para Georges em seu gabinete, dia e noite, a teclar a máquina, a fuçar seus arquivos, a remexer fotografias, a desenhar, a falar ao telefone. Em seu gabinete, Adrien, com Benett e Lazare, discutem com semblantes carregados. SD - Penso que o equilíbrio necessário ao campo do conhecimento coexista com o equilíbrio que intuo haver também no campo do desconhecido. Foi dele que vim ao mundo com a vida, os recursos e os meios para ser o que sou. E para lá voltarei. Não desafiarei meu destino na pretensão de mudá-lo ou controlá-lo. Patentes, por exemplo, significariam poder e dinheiro; dois estorvos ao delicado equilíbrio de que preciso para realizar minha obra. É a minha via; não devo perder-me nela. No automóvel Clube reuniões tensas entre Archdeacon e outros dirigentes, com o Coronel Renard, Cap. Ferber e outros militares. Os membros do Aero Clube balançam a cabeça negativamente resistindo às pressões. SEQUÊNCIA 62 (A Glória) (Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 12 de novembro de 1906) Uma conversa na multidão. GEORGES - Sim, a sua obra... é o que todos desejamos, sinceramente, que realize, Alberto. Já expressei em diversas ocasiões as minhas dúvidas sobre esse seu comportamento esquisito. Creio que agora começo a ter elementos para tentar decifrá-lo. UMA MULHER - Porque não fazem mais as narrações pelo alto-falante? UM HOMEM - Os franceses não estão bem cotados e o vôo é baixo. Não dá para ver de todos os lugares. SD - Desde já Você passa a ter liberdade para escrever o que quiser a meu respeito. Não preciso opinar. Erro sempre quando se trata de mim, e muitas vezes contra mim mesmo. É uma honra tê-lo como biógrafo. SD cercado por uma multidão de repórteres cede publicamente a vez a Voisin e Bleriot, pois tinha recuperado o direito de ser o primeiro. SEQUÊNCIA 61 (A Véspera) Mecânicos e ajudantes giram em torno de suas máquinas, enquanto gendarmes providenciavam o afastamento dos curiosos. Movimentação de véspera de prova no 100 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME E, ato contínuo, beijou voluptuosamente a boca estarrecida do inventor que, por cavalheirismo, não esboçou qualquer reação, apenas aceitando aquele beijo que ia até as raias da obscenidade para a época. "... o piloto tentou novamente a viragem..." Máquinas de filmar e fotografar por todos os lados. Chega a hora. Archdeacon, olhando seu relógio de pulso, autoriza o primeiro concorrente. Voisin, dentro do seu aeroplano, ouve conselhos de Bleriot ao seu ouvido. Ele manda girar a hélice, ao que o mecânico imediatamente obedece. O motor ronca. Expectativa geral. Francesada em claque pronta para aplaudir a vitória. Ao lado, o automóvel da Comissão também está pronto. Archdeacon dá o sinal. Voisin aciona a manete. Motor à toda. O aeroplano começa a se mexer, anda alguns metros e embica no chão como se fosse para voar no subterrâneo e não na atmosfera. A hélice parte-se em pedaços, o motor desloca-se do berço e pára. Decepção geral. Voisin sai do aeroplano praguejando com os mecânicos e o automóvel dos Comissários dá marcha-à-ré porque, no ímpeto, aceleraram mais do que o necessário. Archdeacon autoriza SD. Ele prepara-se para entrar na nacelle. Os gendarmes afastam as pessoas. De repente, Aida D’Acosta, a audaz bailarina, destaca-se da multidão, dribla um gendarme com um gracioso movimento do seu lindo corpo, jogando o policial desajeitadamente ao chão com as pernas para o ar, e aproxima-se de SD, que a reconhece e faz uma mesura para recebê-la, sem deixar de demonstrar a urgência da situação. A bailarina corresponde ao sorriso e chega-se até ele. AIDA - Vim trazer-lhe a energia que o seu motor não poderá dar-lhe, Sr Santos-Dumont. Tudo aconteceu em segundos. O policial ainda se levantava do seu tombo. Os fotógrafos e cinegrafistas presentes nem tiveram tempo de disparar suas máquinas, apesar de prontos para isso, mesmo porque a surpresa foi geral e atingiu também a eles, que são treinados para trabalhar justamente nos momentos de grandes emoções. Aida soltou SD com o mesmo sorriso com que o encontrou e agradeceu ao público que, mais uma vez, a aplaudia. Archdeacon, meio aturdido, repetiu a ordem. SD, como se estivesse numa outra galáxia, tardou a recebêla em seus reflexos. Assim que voltou a si, pulou para a barquilha e pôs seus mecânicos a trabalhar. A multidão afastou-se; motor roncando, o aeroplano mexe-se, posicionando-se para a decolagem. Idem para o automóvel dos Comissários. Volta a expectativa. Detalhes de hélice, motor, manetes, cabos e mecanismos. Serenamente, com o olhar impassível, SD aciona a manete à força total. O 14 Bis corre, alça-se a uns 40 centímetros do solo e pousa suavemente à frente. O Comissário berra: - 40 metros. Aplausos burocráticos e manutenção do suspense, enquanto o aeroplano retorna vagarosamente à posição original. Nova tentativa. Dessa vez o aeroplano deixa para trás o automóvel e executa dois vôos, na mesma altura do anterior, o primeiro de 40 metros e o segundo de 60 metros, com um toque no solo entre ambos. Ao final do segundo vôo, o piloto fez um teste de viragem em pleno ar, suspendendo-o devido à proximidade das árvores. Novo retorno e aumento da expectativa. Silêncio geral. 101 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND no ar vindo, em pleno vôo, na direção da multidão que se assusta e se atropela. O piloto percebe a situação e aumenta a inclinação do nariz do 14 Bis e sobe a 6 metros de altura, passando por cima da perplexa multidão assustada. Mas a velocidade de repente diminui como também diminui o ronco do motor. Rostos aflitos olham o pássaro aéreo com uma interrogação nas faces. O aparelho esboça uma curva para a direita e SD, com todo o seu sangue frio, corta o motor e pousa quase perfeitamente, apenas com um pequeno roçar da asa direita no gramado, sem quaisquer conseqüências. O Comissário berra: - mais de 200 metros! A platéia sacudiu-se em aplausos e vivas com chapéus, até de senhoritas, voando junto à bengalas, casacos e outras peças que podiam ser atiradas ao ar. Jaques Fauré foi o primeiro a chegar até SD e tirou-lhe da barquilha colocando-o sobre seus ombros, carregandoo em meio à multidão até à sorridente Aida que o aguardava. Agora era a vez de SD, todos esperavam, mas ele apenas a abraçou com ternura e beijou-lhe paternalmente a testa, sob o espocar de dezenas de fotógrafos: - era a Glória! Terceira tentativa. Outros dois vôos com um toque no solo; o primeiro de 50 metros e o segundo de 82 metros, segundo os berros do Comissário. Neste vôo o piloto tentou novamente a viragem mas susteve-a pela proximidade do campo de pólo, quando quase completava a meia volta. Aplausos para a anunciada quebra do recorde anterior. O aparelho porém não retornou à posição original. O piloto decidira fazer o vôo em sentido contrário e fora autorizado pela Comissão. CAP. FERBER - Ele vai tentar voar contra o vento? É um maluco! E também, um ignorante; está desprezando a única ajuda que a Natureza dá aos homens para voar. E ainda a desafia... BONAPARTE - Quando se trata do Sr Santos-Dumont, Cap. Ferber, é melhor pensar duas vezes antes de arrotar verdades. Aprendi por experiência e testemunho pessoal que, diante de homens como ele, tremem as verdades mais absolutas e amedrontam-se os mestres mais arrogantes. Vi verdades irrefutáveis tornarem-se asneiras consagradas por causa de uma única e pequena ação de ousadia desse homem, Cap. Ferber. Se Santos-Dumont decidiu desafiar a força dos ventos, que se cuidem os ventos!... SD - Aida D’Acosta, A Senhorita é, para mim, a própria personificação da Glória! Um Comissário observa seu relógio de pulso: 16:25 h. O dia já ia ao fim. Ouviu-se então o ronco do motor e logo o aparelho estava SEQUÊNCIA 63 Festa de arromba nos salões do Automóvel Clube. Todas as personagens do filme que estão em França presentes. Aida D’Acosta dá o seu show de dança à frente de uma banda cubana. SD entra no salão lotado debaixo de "... passando por cima da perplexa multidão assustada..." 102 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME "...carregando-o em meio à multidão até à sorridente Aida que o aguardava. Agora era a vez de SD, todos esperavam, mas ele apenas a abraçou com ternura e beijou-lhe paternalmente a testa, sob o espocar de dezenas de fotógrafos: - era a Glória!" (Desenho de Elyseu Visconti) uma chuva de confetes e serpentinas, sob aplausos gerais. A banda ataca os ritmos brasileiros. Georges, já totalmente bêbado, aproxima-se dele. GEORGES (com voz de bêbado, pegajoso e abraçado a SD) - Está tudo no prelo, Alberto! No prelo! Amanhã só vai dar Você nos noticiários, e a nossa reportagem será a melhor de todas! SD é sequestrado pela multidão eufórica e Georges fica só, trocando as pernas na porta do salão. Resolve então sair e vai até uma cupê estacionada na porta do Clube, entra nela e berra ao cocheiro. GEORGES (berrando) - Vamos pro "Le Temps"! SEQUÊNCIA 64 (Desatino) Porta do "Le Temps". A cupê estaciona e Georges desce dando ao cocheiro tudo o que tem no bolso, sem conferir, e vai cantarolando feliz em direção à porta da gráfica. Entra na oficina gráfica em meio à zoeira da rotativa à toda velocidade, passa cambaleando pelos oficiais em serviço, trombando nas mesas, arrastando cadeiras e apoiando-se aqui e ali, até chegar na boca da máquina. Ali reclina-se diante de uma pilha de jornais prontos, pega um, senta-se na cadeira do chefe da gráfica e abre o jornal. A câmera mostra o jornal aberto na página em que noticia o feito de SD com uma matéria modesta e sem expressividade. No lugar da sua reportagem havia uma grande “matéria de geladeira”, assinada pelo Coronel Renard, sobre os progressos da aeronáutica num sentido geral, sem que citasse SantosDumont. De repente, após folhear todo o jornal várias vezes, Georges parece ter-se curado do porre, ganhando uma nova e desmedida energia vital. Parte o jornal em vários pedaços, na frente dos operários, amassa os pedaços formando uma bola e atira-o na máquina. Depois levanta a cadeira do chefe e faz o 103 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND mesmo, espatifando-a no meio das engrenagens. Os oficiais imediatamente paralisam a impressão e tentam contê-lo. Mas ninguém podia segurá-lo; ele vira mesas, empastela cavaletes de tipos, ramas prontas e quebra tudo o que vê pela frente, até o esgotamento total de suas forças. A essa altura todos haviam desistido de segurá-lo e apenas assistiam ao tumulto, de braços cruzados ou protegendo-se das trajetórias perigosas de alguns tipos de chumbo atirados com ódio para qualquer lado pelo furioso jornalista. Ninguém se movia. Um silêncio toma conta do ambiente. Dois guardas chegam tardios e só podem ficar olhando, sem saber o que havia acontecido. Um gráfico chega-se a uma das gavetas mal derrubadas por Georges e acaba de virá-la ao chão e cruza os braços em sinal de solidariedade a Georges. Outros oficiais e operários o imitam, cada um derrubando ou quebrando simbolicamente um traste qualquer para em seguida cruzar os braços e ficar onde estavam. Os guardas nada puderam fazer. Nos rostos de todos a mesma revolta que Georges estampava no seu desde que abrira o jornal. jornalista e editor, capaz de farejar uma notícia com cinco anos de antecedência e nela investir sem hesitação! E agora Você mesmo a corta sem piedade, quando, como Você diz, chegara a hora certa?! O que pensa que sou? Uma máquina de escrever? ADRIEN - Nunca podia imaginar que viria ao jornal após a festa. Meu plano seria acordá-lo hoje cedo e lhe falar antes que visse o jornal. Mas, na madrugada tocou o meu telefone com a notícia desse desatino... que se há de fazer? GEORGES - Ao menos dizer-me o que se passa... ADRIEN - Na França de hoje, Georges, mais importante do que a subida de um aeroplano é a subida de uma moeda. E o dólar americano... GEORGES (pulando da poltrona, com o dedo em riste para Adrien) - Você vendeu o jornal àquele pulha do Benett, não é? E, talvez, tenha se vendido com ele... SEQUÊNCIA 65 ADRIEN (abaixando o dedo nervoso de Georges) - Acalme-se, Georges... Dia seguinte, no gabinete de Adrien. Georges é uma espécie de ser em bagaços, desconjuntado numa das poltronas. GEORGES - Você é um vendilhão! Um... ADRIEN (falando com irritação) - Decidimos passar uma borracha no que houve ontem, Georges, e em consideração a Você, saiba disso! Essa sua indisciplina infantil e alcoólatra custou-nos quase 20 mil francos de prejuízos. E por pouco não perdemos a rotativa... ADRIEN (interrompendo-o ríspido) - E o que Você quer? Que eu me arruíne na falência e passe a mendigar em Paris, esperando as esmolas do seu amigo, quando ganhar os seus prêmios? O que acha que é esse jornal? São milhões de francos empatados; mais de um século de dedicação e suor! E não devo satisfações a ninguém! GEORGES - Mas, quem Você pensa que sou, Adrien? Foram cinco anos de trabalhos! No último mês varei madrugadas apurando o texto, caprichando nas imagens e na qualidade geral do trabalho!... E que começava justamente por citar Você, com a sua visão genial, a sua admirável experiência como GEORGES - Mas, Adrien... ADRIEN - Sim, vendi parte do jornal. Não pense que 104 PARTE 2 adorei fazê-lo. Nem que tenha sido fácil para mim, Georges. Mas estou velho para emburrar com os tempos; e não pretendo arruinar-me em prol de uma verdade de merda, qualquer que seja ela, muito menos a do bom-mocismo idealista de sportmans bon-vivants... GEORGES - Cuidado, Adrien, olhe o que está dizendo... ADRIEN - Exatamente o que ouviu, Georges. O nosso amigo “petit Santos” não se preocupa com dinheiro, nem com patentes, etc; claro, não precisa, é um criador, está a serviço das divindades etc, etc. E quanto à nós? Vivemos de quê? Se o nosso amigo tivesse nas mãos o poder que suas patentes lhe dariam, talvez pudesse comprar esse jornal inteiro. Mas não, ele prefere doá-las à humanidade! Que a humanidade então o reconheça; porque o "Le Temps" tem seus compromissos e eu os meus! Não sou mais o único dono desse jornal, Georges, ponha isso na sua cabeça. A nossa hora certa chegou no momento errado! E que o Sr Santos-Dumont seja feliz com seus aeroplanos... Aliás, quem o mandou fazer aeroplanos? GEORGES (acalmando-se) - Certo, Adrien, tem seus motivos; mas não precisa atacar Alberto. É um direito, uma opção dele e de qualquer ser humano, a de não se meter nessa espoliação desatinada, de empresários desvairados, que se crêem donos do mundo e passam a vida a estocar ouro em porões suíços. A opção de dar à vida uma construção bela, humanista e criativa não pode ser simplificada numa rotulação banal de idealismo ou ingenuidade. Queiram ou não nossos míseros pasquins, coube a Alberto a glória de ser o primeiro homem a fazer o vôo mecânico, ache Você importante ou não! E esse juizo cabe à História, que não pode existir senão dando ganho de causa à verdade e condenando o embuste. ADRIEN SANTOS DUMONT/O FILME - Santos-Dumont tem contra si o fato de possuir justamente aquilo que os seres humanos mais almejam para suas vidas: independência e liberdade. Além disso, é desprendido em relação a dinheiro, e não pretende recompensas pelos seus feitos. As pessoas levam isso a mal. Os que pretendem, porque o desinteresse atrai certa sorte que não saberiam admitir despida de maquinações; os que recompensam porque os não solicitamos. E, para piorar o quadro, é um brasileiro! E onde estão os brasileiros?! GEORGES - Os brasileiros?... ADRIEN - Pelo que posso presumir, o Brasil é um paraíso tropical habitado por um povo gentil, mas dominado por uma elite grosseira e estúpida. Esta só faz aguardar, engordando em suas redes de siesta, os nossos navios que vão buscar-lhes o café, plantado e colhido pelo povo escravizado. Lá chegado o dinheiro, embarcam com ele para cá, - às vezes no mesmo navio que traz o café -, a gastá-lo nas farras sórdidas dos Moulin Rouges e Cassinos Royales da vida, enquanto seu povo chafurda na miséria e na ignomínia. Desde que transferiram Prado - e que transferência infeliz e idiota! - não se vê um único patrício de Santos-Dumont presente às suas façanhas que têm repercutido no mundo inteiro! A embaixada brasileira não mexe um dedo, não faz a menor exigência, e nem sequer pedido ou insinuação em seu favor. Enquanto isso, a embaixada americana joga pesado, com todos os seus trunfos e todo o seu poder, para garantir-lhes a sobrevivência ao menos de um embuste, que é só o que têm! Ah, se tivessem um SantosDumont! Transformá-lo-iam no Deus dos deuses, e com muito menos do que fez. GEORGES - Nisso tem razão, Adrien. Mas, e o trabalho de mais de cinco anos? Qual será seu destino? ADRIEN - Como disse o próprio Santos-Dumont, 105 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND citando um poeta seu conterrâneo, resta-nos esperar, Georges: “esperar, eis a doutrina da vida; espera e alcançarás a ansiada palma”; ou algo assim, não é? ADRIEN - Pertencemos, Você e eu, Georges, ao fim de uma era. À outra que se inicia, pertencem Benett e Lazare, este último, coitado dele! Mas isso é assunto para uma outra conversa. Por enquanto vá para casa e descanse. E acalme-se; o mundo ainda não acabou! GEORGES - Nesse caso vou prosseguir. A não ser que o "Le Temps" não o queira mais... e, então... SEQUÊNCIA 66 (O Número 15) ADRIEN - Por enquanto sou o diretor desse jornal, Georges, e, como disse, passamos a borracha. Sua função permanece, sem alterações. Novo teste com o 14 Bis, no Campo de St Cyr. Um desastre quase total. SD sai ileso por artes de uma sorte inacreditável. O interfone chama e Adrien o atende. Corte para o hangar de Neully. Fica pronto o Número 15, que recebe os últimos retoques. Chapin dá as últimas pinceladas na inscrição do seu número de batismo. ADRIEN (ao interfone) - Diga para aguardar, estou terminando. (desliga e, para Georges) - É Lazare, temos uma reunião de pauta. Corte para o Número 15 sendo levado, pelas ruas de Neully, para o Campo de Bagatelle, com a ajuda do povão. GEORGES - Esse puxa-saco tem crescido nessa casa, não é, Adrien? Teste oficial do Número 15. Multidão, etc. Um curioso passa a mão pela asa do aeroplano e fala com Chapin. ADRIEN - Não preciso apelar para o meu sexto sentido para prever que ele será meu sucessor no "Le Temps", Georges. Mas um outro "Le Temps" que, do meu, só terá o nome; se tiver. O CURIOSO - Que espécie de madeira é essa? CHAPIN (atencioso) - Madeira compensada, senhor, pela primeira vez sendo utilizada em projeto aeronáutico. GEORGES - Está derrotista, Adrien!? Deve ser a venda de parte das suas ações. Só agora percebo o quanto isso deve ter sido duro para Você. Peço-lhe desculpas, Adrien. Começam as tentativas do Número 15. Fracasso, o aeroplano corre no gramado e dá um O Número 15 106 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME "...um cavalo-de-pau antes de decolar, entortando-se todo." SEQUÊNCIA 68 (O Número 16) cavalo-de-pau antes de decolar, entortandose todo. (foto) O piloto, mais uma vez, escapa ileso de um perigosíssimo acidente. SEQUÊNCIA 67 Interior da oficina secreta onde estão sendo produzidos simultaneamente um balão dirigível e o “Demoiselle” que já começa a tomar forma. Fabrica-se também um deslizador aquático, como pré-projeto de hidroavião. SD explica a Levavasseur o seu projeto de motor de 16 cilindros em V, através de desenhos e plantas técnicas e mostra a Chapin a maquete do hidroavião, um desenvolvimento do deslizador, já com suas asas. Campo de Bagatelle. Teste do Número 16, (foto) um dirigível-avião de belíssima e proporcionadas linhas. Como sempre, curiosos em torno dele. Um homem, com aparência de artista, comenta para o outro. O ARTISTA - É uma perfeita composição, do ponto de vista estético! Um desenho que se aproxima da perfeição! Uma mulher sobe o topo de uma pequena escadinha auxiliar de três degraus e passa os dedos entre a hélice e o invólucro para acreditar que não se chocam, e comenta a Dazon. A MULHER - Mas não há perigo de a hélice furar o balão? Dazon balança negativamente a cabeça com um sorriso condescendente. "É uma perfeita composição, do ponto de vista estético!" 107 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Amanhece em Paris. O lado leste da Av SD (para August que o servia) Champs Elysées, exibe a aurora com seus - Olhe para a janela, August, e veja o futuro. róseos dedos. No cenário da cidade deserta, perto do Arco do Triunfo, um leiteiro com AUGUST (olhando pela janela, com a cara sua carroça estacionada, enche os vasilhames interrogativa e a fleuma de mordomo) para distribuir aos fregueses. Um fiacre de - E o que é o futuro, Senhor? Será o homem padeiro passa, estacionando sua lépido, na direção viatura aérea na oeste, ao longo da porta de sua bela avenida. residência para Súbito o cavalo um lanche? assusta-se, relincha e pinoteia, esperneando, SEQUÊNCIA 69 quase jogando ao chão o assustado Voisin testando o O aeroplano de Voisin pilotado por Maurice Farman. padeiro, que seu “ Voisin”, que desvia para a calçada, sem tirar o olho da ainda não consegue voar (Legenda: Campo sua direção, de onde aproximava-se uma de St Cyr, Paris, 1907 - Aeroplano de Voisin espécie de bólido aéreo, em terrível e Bleriot - Piloto: Sr Voisin) velocidade, à semelhança de uma enorme bala de canhão. O leiteiro, igualmente pasmo, Corte para a oficina secreta. O “Demoiselle” olha para o mesmo ponto, esquecendo-se está praticamente pronto . SD, dentro dele, do leite que derrama-se todo na calçada, experimenta os comandos. recebendo os reflexos magentas da bela aurora. O Número 16 vinha sereno, pelo meio Corte para um novo teste do aeroplano de da avenida, a poucos metros do solo, numa Voisin, desta vez pilotado por Maurice precisa linha reta em direção ao Arco do Farman. (Legenda: Aeroplano de Voisin e Triunfo e, sem reduzir a velocidade, Bleriot - Piloto: Maurice Farman) O aeroplano atravessa-o por dentro, quase que numa consegue levantar vôo sob os aplausos da penetração fálica. Logo em seguida, estaciona platéia e a felicidade estampada nos rostos tranqüilamente na porta da residência do seu de seu piloto e construtores. piloto. François e Pierre aguardavam-no na calçada, pegam as cordas e amarram-nas num Corte para a carroça de carga do Sr Louis hidrante. SD, como sempre elegantemente chegando ao hangar de Neully. Chapin e os trajado, desce da aeronave e vai para o mecânicos descem com cuidado as partes interior do edifício. desmontadas do “Demoiselle”. Corte para SD, tomando café-damanhã em seu salão, vendo-se, pelas grandes vidraças da janela, o Número 16 estacionado e cercado de curiosos. Repórteres começam a chegar e fotógrafos batem chapas. Jornaleiro, nas ruas de Paris, exibe manchete de jornal: “ROBERT ESNAULT-PELTERIE VOA 600 METROS NO SEU REPL”, na primeira página do "Le Temps", acompanhada de fotos. O Nº 18, um deslizador aquático com o seu V-16 108 SD, no seu Número 18, o deslizador aquático, PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME faz demonstrações no Sena, para grande multidão. Altas horas da noite no hangar de Neully. SD namora a sua maravilha pronta para voar, e oferece um champagne a todos os seus companheiros, que fazem um entusiasmado brinde. SEQUÊNCIA 70 (O Número 19, o primeiro “Demoiselle”) Reina a paz no Castelo de Wideville. Tardezinha com o sol se pondo na tranquila paisagem. (legenda: Castelo de Wideville, Davron, setembro de 1908) Um longínquo ruído de motor começa a ser ouvido no céu. Os habitantes do Castelo interrompem suas rotinas e olham na direção da origem do som. Janelas abrem-se, e surgem senhoras e crianças curiosas. O ruído vai aumentando gradativamente até que surge, cortando a tela, o “Demoiselle”, o Número 19, pilotado por SD. Ele faz um vôo rasante em volta do Castelo e vem para o pouso num longo gramado, bem à frente do edifício. Todos acodem para vê-lo. O pequenino avião pousa suavemente, corre um pouco no gramado e pára. O rugido do motor eleva-se e o “Demoiselle” segue taxiando, ágil, para debaixo de uma árvore. A fachada do Castelo convertera-se numa espécie de balcão de teatro, com todas as frisas ocupadas. SD sai do seu aparelho enquanto dois guardas da propriedade aproximam-se. SD - Venho em paz, senhores. De quem é essa propriedade? UM DOS GUARDAS - Pertence ao Conde de Gallard; e quem é o senhor? SD - Meu nome é Santos-Dumont e sou amigo do Sr Conde. Levem minhas desculpas a ele por essa invasão inesperada. Digam-lhe que foi uma emergência, e que não o incomodarei. Aguardarei aqui e só peço-lhe um único favor: que faça uma ligação para o meu mordomo em Paris ordenando-lhe, em meu nome, que tome a providência de mandar-me buscar. O OUTRO GUARDA - O senhor Conde não se encontra no momento. Mas daremos seu recado à Condessa. Aguarde-nos. (e retornam) SD começa a inspecionar seu aparelho conferindo-o para ver se não houve algum dano. Os guardas voltam a ele seguidos pela "Reina a paz no Castelo de Wideville..." 109 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Condessa, seus filhos e sua entourage. risonha) - Senhor SantosDumont, começo a sentir frio. Meus criados guardarão seu lindo aeroplano no estábulo, e em segurança. Peço-lhe que me leve de volta ao Castelo. O PRIMEIRO GUARDA - A Condessa deseja convidá-lo ao Castelo. A Condessa aproximase de SD. SD (tirando o chapéu) - Senhora Condessa (beija-lhe a mão), mil perdões por tão inoportuna invasão. Espero que seus criados tenham-lhe informado da emergência em que me encontro. SD (oferecendo-lhe o braço) - Não tenho como expressar a minha gratidão, Senhora Condessa. Caminham em direção ao Castelo e entram. A CONDESSA - Senhor Santos-Dumont, todos estamos muito felizes com essa surpresa que nos cai do céu. É uma honra recebê-lo em nossa casa. Considere-se meu hóspede. Ao longe, já de noite, surge a carruagem do Conde a todo o galope. De dentro dela, o Conde e o Cap. Ferber tentam entender uma estranha movimentação perto do estábulo. A carruagem estaciona ao lado dos criados que cercavam o “Demoiselle”. SD - Muito agradecido, senhora Condessa, tomarei o seu precioso tempo apenas o suficiente para um telefonema, se a Senhora mo permitir... A Condessa e SD saem à porta do Castelo para recebê-los A CONDESSA (radiante, para o surpreso marido) - Querido, temos uma visita para hoje que nos veio dos céus! O Sr Santos-Dumont em carne e osso. (e estende a mão para receber o beijo do Cap. Ferber) A CONDESSA - Senhor Santos-Dumont, um hóspede em Wideville é meu hóspede. E meus hóspedes não costumam ser tão apressados. Embora nunca tenhamos recebido um que chegasse voando, eu ficaria ofendida se recusasse a nossa humilde hospedagem nessa emergência. O CONDE (cumprimentando SD) - Pensávamos que havia tido um acidente, Sr Santos-Dumont. Vimos o Sr passar pela copa das árvores em St Cyr e não mais retornou! Fico feliz de vê-lo em minha casa são e salvo. SD - Oh, não, senhora Condessa! Entendeu-me mal e peço-lhe outra vez desculpas por não ter me explicado bem. É que eu me sentiria como se estivesse abusando de sua gentileza... SD Foi uma aterrissagem de emergência, Sr Conde. Descuideime da hora e, quando percebi, era quase noite... A CONDESSA (interrompendo-o 110 PARTE 2 A CONDESSA - O Sr Santos-Dumont e o Cap. Ferber serão nossos hóspedes por essa noite, querido. O CONDE (para SD) - Quer dizer que a sua pequena libélula o leva para onde quiser pelos ares? Sou seu admirador, Sr Santos-Dumont; fico honrado com essa coincidência. Creio que sou o primeiro homem do mundo a receber uma visita que me chega pela via aérea! Corte para a sala de jantar, onde todos jantam um refinado banquete. SD ... e então tive de comparecer pela primeira vez a um tribunal. Precisava garantir a invenção dos meus motores ao domínio público. Nada tenho contra se os constroem e vendem; nada cobro. Mas não posso permitir que outros cobrem direitos de patentes que eu já houvera concedido ao público. A CONDESSA - Eu simpatizo muito com esse seu desinteresse, Sr Santos-Dumont. Sempre dei razão ao Senhor. O progresso seria muito mais veloz e mais ameno para todos, não é? Os homens não precisariam criar seus inventos às escondidas e haveria menos ganância e corrupção. CAP. FERBER - Mas a Sra há de levar em conta, Sra Condessa, que nem todos possuem a mesma sorte do Sr Santos-Dumont. São altos os custos e os riscos das experiências científicas e seus autores precisam ser recompensados para continuar. É um instituto justo, o das patentes. E quem não as desejar, é só abrir mão delas, como o faz o Sr Santos-Dumont... Terminam a refeição e dirigem-se ao salão de fumar. SANTOS DUMONT/O FILME O CONDE (ao chegar ao salão) - Essa década tem sido de grandes progressos no campo da aeronáutica. Há bem pouco tempo lembro-me de uma noitada no Maxim’s em que comemorávamos o retorno do Sr Santos- Dumont, são e salvo, de uma temerária viagem no seu pequeno balão esférico. Agora o temos aqui, bem chegado numa aeronave que o leva para onde quer, fazendo em 14 minutos, o percurso que levamos duas horas e meia de carruagem. E ainda temos os progressos de Bleriot, Voisin, os Farman, Breguet e muitos outros... CAP. FERBER - Não podemos esquecer dos irmãos Wright, que chegaram há poucos dias em Paris e estarão demonstrando o seu aeroplano na semana que vem. SD - Eles trouxeram o “Flyer”, de 1903? CAP. FERBER - É exatamente o mesmo “Flyer” que voou em 1903, e sobre o qual falei, na época, numa reunião do AeroClube, lembra-se, Sr SantosDumont? Sentam-se nas grandes poltronas, servidos de licores e doces. SD recusa um charuto. SD - Sim, lembro-me. Mas..., não acha um pouco estranho, Cap. Ferber?! Estamos em 1908. De 1903 para cá, desenvolvi cerca de 10 diferentes projetos e, antes daquela data, outros tantos. Os Srs Voisin, Bleriot, Pelterie, Breguet, Farman e Archdeacon também nos expuseram nesse período, uma bela trajetória de experimentos. E, na observação mútua, houve a contribuição de uns para com os outros. Assim tem sido o progresso da ciência. Uma pequena descoberta aqui, outra ali, um pequeno novo invento, e, detalhe por detalhe, surgem as grandes invenções. Não somente conosco, mas, também, com os maiores em outros misteres, como 111 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Edson, Marconi, Grambell, Goodyear. Só com os Srs Wright é que não. Não se sabe o que fizeram antes de 1903, e agora chegam a Paris trazendo o mesmo modelo que disseram ter voado há cinco anos. Vi há pouco algumas fotos, as primeiras que até hoje nos chegaram. Não parece ser diferente dos nossos antigos modelos! Percebi que contribuições minhas e de meus colegas estão lá aplicadas. Como explica isso, Cap. Ferber? gargalhada. SD também ri. Ferber emburra). No dia seguinte, de manhã, toda a vizinhança do Castelo estava presente para ver o Número 19 decolar, de volta a Paris. SD despede-se da família, acena ao povo, dá a partida no motor e entra no seu “Demoiselle”. Aciona a manete da mistura e acelera. O pequeno aeroplano desloca-se lentamente, vai ganhando velocidade e, de repente, sai do solo, voando serenamente, em linha reta, subindo, distanciando-se. Lá na frente retorna e passa veloz sobre as cabeças de todos que o aplaudem, ganha altura e desaparece por cima das copas das árvores. CAP. FERBER - Os Wright trabalham num rigoroso sigilo. E creio que, não somente eles, não é, Sr SantosDumont? Também o Sr, sabemos, guarda grandes segredos debaixo de sete chaves... SEQUÊNCIA 71 O CONDE - Você desviou da conversa, Ferber. Não é sobre os segredos que Santos-Dumont se refere. É justamente sobre o que não é segredo. E quanto a isso dou inteira razão a ele. Repórteres entrevistam Orville Wright no hall do Grand Hotel de Paris. ORVILLE ... afirmar que o vôo de Santos-Dumont foi o primeiro da História, seria o mesmo que admitir que qualquer outro navegador, que não Colombo, tivesse descoberto a América, porque ela não foi homologada por nenhum Clube de Descobridores! CAP. FERBER - Bem, em breve estaremos vendo a máquina dos Wright voar em Paris. SD - Porque não sugere que façam um vôo de St Cyr até aqui, nesse agradável Castelo do Sr Conde? Seria um belo evento, e de muito bom gosto. Essa casa é um exemplo do que melhor possuímos em França... (o Conde dá uma gargalhada) Os mesmos repórteres entrevistam SD na porta do seu edifício no Champs Elysées . SD - Foi infeliz o Sr Orville Wright nessa argumentação porque é sabido que muitos aventureiros tentaram arrogar para si o privilégio de terem sido os primeiros a chegar na América. Mas a História só o concedeu a Colombo justamente porque o fez com muitos testemunhos e farta documentação oficial; não foi às terras ocidentais em segredo, e seus relatos, e de seus tripulantes, foram homologados pela ciência da época e a dos nossos dias, enquanto CAP. FERBER (aborrecido, mas sem dar o braço a torcer) - Não deixa de ser uma idéia. Procurarei sugeri-la. O CONDE (ainda rindo) - E diga-lhes que não se preocupem. Pedirei a Santos-Dumont que venha na frente, guiando-os, para não se perderem (e dá outra gostosa 112 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME aqueles aventureiros só tinham a seu favor os seus próprios testemunhos e documentos por eles mesmos forjados. Porém, eu fico feliz que o Sr Wright tenha arriscado este sofisma, pois assim acabou por fazer por mim o que ninguém fizera antes, nem mesmo os meus mais exaltados apologistas: ainda que sem essa intenção, o Sr Wright não fez outra coisa senão comparar-me ao grande Cristóvão Colombo. SEQUÊNCIA 72 Adrien e Georges viajam numa cupê pelas ruas de Paris. GEORGES - Não entendi bem aquele entrevero do Embaixador Henry White com o Conde de Gallard, ontem, na solenidade do Automóvel Clube, Adrien. ADRIEN - O fato é que a arrogância dos americanos já incomoda os franceses, Georges. Depois da pressão bem sucedida, mas não sem constrangimento, sobre o Aero Clube, para incluir os irmãos Wright entre os seus primeiros brevetados, tentaram transferir a demonstração de hoje para Le Mans. Pelo que sei, foi idéia do Ferber. Não sei o motivo. Mas o Conde perdeu a paciência e ameaçou boicotar o evento. White não teve saída senão ceder. GEORGES - Talvez temessem o sobrevôo do “Demoiselle” na hora da exibição. ADRIEN É plausível. Mas levaram longe demais o embuste e estão dispostos a ir com ele até o fim. Os americanos têm uma incrível capacidade de não se preocupar com o ridículo. SEQUÊNCIA 73 (“Os barqueiros do Volga”) A cupê chega a St Cyr, já com grande movimento de trânsito e pessoas. (Legenda: Campo de St Cyr, Paris, 3 de outubro de 1908) Os Wright vão finalmente exibir à França o seu aeroplano secreto. Em grande lobby da diplomacia americana, apresentavam- se todas as autoridades e personalidades civis e militares, e, é claro, toda a grande imprensa mundial e a alta sociedade em peso. Adrien e Benett conversavam. ADRIEN - O que é aquilo com um peso pendurado? BENETT - É o “pylon”. Ao soltar o peso, este puxa a corda que empurra o aeroplano no seu impulso inicial. ADRIEN - E como se faz para levantar aquele peso? BENETT - Lá estão os homens para fazê-lo. Veja, já começam a puxá-lo. Corte para os dez homens (os “barqueiros do Volga”) puxando, com esforço, a corda do “pylon”. (foto) Tudo pronto. Silêncio geral. O Embaixador Henry White prepara-se para dar o sinal. Wilbur já está posicionado, deitado dentro da estrutura do “Flyer” e Orville aguarda o sinal para girar a hélice. De repente, um O "Flyer" dos Wright e o seu imprescindível "pylon". 113 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND ruído de motor aéreo rompe o silêncio, aproximando-se. Todos voltam os pescoços em sua direção. Henry White, Benett e os Wright não escondem o aborrecimento. Surge um “Demoiselle” por cima da copa de um arvoredo. acontecera ao piloto todos aplaudem ruidosamente, comandados pelos efusivos aplausos de Benett e White. ADRIEN (para Georges) - Espero que não seja Santos-Dumont, Georges, isso não é bom. (e, procurando na multidão) - Onde está ele? WHITE (para Orville) - Uma segunda tentativa! O comissário de medição berra do automóvel: - 30 metros! ORVILLE - Sim, senhor. GEORGES (protegendo os olhos do sol para ver com clareza o aeroplano aproximandose) - Não veio... Mas... não, não é ele. É o piloto de provas do ClémentBayard, aquele russo, um tal de Kazan. Algumas tentativas depois, o público demonstrava o seu cansaço. White dá-se por satisfeito. WHITE - Ótimo cavalheiros, com este vôo de 600 metros ficam nítidas as excelentes qualidades dessa máquina e o futuro que ela nos reserva. (e, para os Wright) - Nós agradecemos aos senhores, por essa pioneira exibição de ciência e coragem reunidas; muito obrigado! (e aplaude, seguido pela platéia) O “Demoiselle” faz uma aproximação rasante perto dos homens que puxavam a corda, evolui em graciosa curva de retorno e vai-se embora, pelo mesmo caminho que veio. O constrangimento é geral. Henry White porém não dá a mínima e quebra o gelo. Os Wright agradecem ensaiadamente. WHITE - Cavalheiros, agora que se foi o “penetra”, vamos dar início à demonstração para a qual foram convidados. (e dá o sinal) SEQUÊNCIA 74 Na gráfica do "Le Temps", Georges está reunido com o grupo de operários, oficiais gráficos e alguns funcionários. Todos o cercam, ouvindo-o com atenção. Ele dá boas risadas. Orville gira a hélice e manda soltar o “pylon”. O peso cai de uma só pancada e o aeroplano é imediatamente lançado a uns dois metros de altura e segue em frente, voando instável, até pousar uns trinta metros adiante, parando abruptamente. Após ter certeza de que nada GEORGES (entre as risadas) - ... e então surgiu o Barqueiros do Volga? - Não! Apenas os puxadores do "pylon", indispensável auxílio para a partida do "Flyer". 114 PARTE 2 “Demoiselle” com o russo Kazan olhando tudo, muito curioso, com aquela cara meio maluca. Foi muito engraçado. Nem sei descrever a cara dos americanos. Difícil foi conter o riso na hora. E depois, soubemos que o Cap. Ferber interrogou Kazan, para saber se fora SantosDumont que planejara tudo. A cena passa para o Cap. Ferber interrogando o russo Kazan. KAZAN (sentado numa cadeira de interrogatório sob os olhares ameaçadores de Ferber e outros oficiais) - Não, seu capitão, eu tava só testando um modelo pro dotô Clemen e fui pro sul pruquê no norte, como de custume vô, tinha umas nuve danada de preta, seu capitão. Aí vim e dei com aqueles home puxando a colda qui nem meus conterrano faz lá no Vorga e pensei: será meus conterrano, os barquero do Vorga, como os senhores costuma dizê? Fiquei curioso de sabê quê queles tava fazendo ali naquela grama. Então fui dá uma ispiada. Aí queu vi aquela gente toda enfarpelada lá e vi a torre de ferro e u’a máquina qui paricia daquelas antiga de voá, o sinhô sabe, né? Ferber dá apenas um rugido e continua a fuzilar o russo com o seu olhar ameaçador. KAZAN (continuando, tentando explicar-se) - Num intindi bem mas vi que tava atrapaiando. Então fui ‘bora. É só isso, seu capitão, num foi pro mal não, seu capitão! De cima para baixo: Lilienthal, Chanut, Langley e o "Avion" de Ader. SANTOS DUMONT/O FILME A cena volta para Georges e a sua roda de ouvintes na gráfica do "Le Temps". (mais gargalhadas gerais) GEORGES (quase sem conseguir conter o riso) - E o coitado tremia que nem uma vara verde, com medo de tomar uma surra do Cap. Ferber. Essa é boa; “os barqueiros do Volga”! (e voltavam a dar gargalhadas) Marcel Duchamp, um jovem fotógrafodesenhista, novo no jornal, interpela Georges. DUCHAMP - É verdade que o aeroplano deles não tem rodas? GEORGES - Aí é que está o ponto, Duchamp, Você tocou a medula da questão. Há sete anos venho acompanhando e estudando as experiências aeronáuticas. Desde que Roger Bacon previu as máquinas de voar, foram inúmeras as tentativas realizadas. (agora em off, sobre a iconografia animada ou estática) - Já no Século XVIII, homens como Besnier, o marquês de Bacqueville Blanchard, Bartolomeu de Gusmão, Launoy, Bienvenu, Jacob Degen, Vittorio Sarti, Dubochet, Caignard de la Tour, Sir George Wiley, Henson, Stringfellow, Du Temple, e, recentemente, o príncipe Albert, Palmer, Kauffmann, Gibson, Spencer, Penaud, Tatin, Hureau de Villeneuve, Langley, Thaso, Lilienthal e ainda, Chanute, Voisin, Bleriot, Farman e os Wright; todos até poderiam ter tido êxito, se houvessem colocado rodas em seus aparelhos. Ader, que foi único desses precursores que a colocou, só não fez voar a s u a máquina p o r que não possuía motor a petróleo. Santos-Dumont já 115 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND colocava rodas em seus inventos desde seus primeiros dirigíveis. Por isso foi o primeiro a voar pelos próprios meios e capaz de retornar ao solo sem problemas. O aeroplano dos Wright, apesar dos americanos fingirem não enxergar, não passa de uma traquitana ultrapassada e catapultada. Como projeto e construção, chega a ser ingênua, além de antiquada e superada. Quando perguntei por que não utilizavam rodas em seu aeroplano, disseram-me candidamente que elas exigiriam muita pista para decolar!?... - Sim, comprei. Em cinco anos aposento-me e vou morar lá. É o fim do ciclo dos Hébrards na gráfica francesa. Um dos meus filhos é advogado e o outro filósofo na Sorbonne. GEORGES - É uma lástima, Adrien. Foram quatro belas gerações de gráficos-editores: os “informadíssimos Hébrards”! Desde os jornais revolucionários de Danton, os manifestos de Napoleão, as parcerias com Hugo, Balzac, Flaubert, até Você com Zola e o caso Dreyffus... Não se sente mal? Um foca aproxima-se ADRIEN - Por um lado, sim, é melancólico. Mas, por outro, fico orgulhoso. Para ser sincero, não me agradam os novos tempos. Desde o advento da eletricidade, tudo começou a mudar vertiginosamente. Antes fazíamos um jornal caseiro, artesanal, preocupado com os fatos e com os leitores; lembro-me que toda a família participava dos trabalhos... Então vieram o telégrafo sem fio, o telefone, as rotativas, o automóvel, o aeroplano, enfim, a indústria e a loucura da produção em série. Pressinto maus momentos para a Humanidade, Georges... O FOCA - Sr Georges, o Sr Adrien... GEORGES - Sim, ele me chama. Diga-lhe que estarei com ele em cinco minutos. Preciso ir ao toillete. (despede-se e sai) SEQUÊNCIA 75 Georges sai do elevador no 4 andar e segue para o Gabinete de Adrien. Percebe um guarda bem à frente da porta de seu Gabinete mas não dá maior importância. Louise o recebe, abrindo a porta do gabinete. GEORGES - Mas ainda não me respondeu... ADRIEN (com um aspecto aborrecido) - Pedi que viesse porque há novidades que não gostaremos de ouvir. ADRIEN - Há uma nova imprensa da qual não somos parte, Georges. Donos de jornais já não precisam ser jornalistas ou editores. São empresários; capachos do poder. Escrever bem, ter faro para notícias, responsabilidade com os fatos, compromissos com o leitor e outras coisas que os séculos de imprensa tentaram nos ensinar, são coisas do passado; como os “Hébrards”. Não são mais os leitores que sustentam as publicações diretamente, como antes, através das assinaturas dos nossos antigos e pequenos jornais. É a venda panfletária e a serviço do poder, e de produtos industriais de todos os tipos; transformando o jornal num loteamento de espaços gráficos vendidos a x francos a linha. (toca o interfone; ele atende) - Sim, pode GEORGES - Mas é preciso essa cara de enterro? ADRIEN - Benett está chegando com Chapman, o novo Presidente do Conselho de Acionistas. Hoje deixo de ser majoritário na sociedade. GEORGES - Já não me aborreço mais com essas novidades, Adrien. Comprou aquela propriedade em Avignon? ADRIEN 116 PARTE 2 entrar. (e, para Georges) - Benett e Chapman chegaram. Prepare-se, Georges. Entram Benett e Chapman. Todos cumprimentam-se formalmente. BENETT - Vamos direto ao assunto. Sr Goursat, pedimos essa reunião em consideração ao senhor e aos serviços que tem prestado ao jornal. O que vamos lhe dizer não é pessoal. GEORGES (sem perder a pose) - É tão grave assim? BENETT - Apenas negócios. Com a fusão do Herald de Paris e o "Le Temps", apoiada por grandes bancos franceses e americanos, a prosperidade dessa casa passou a ser a meta principal dos nossos acionistas, e, em breve, o "Le Temps" será o maior jornal europeu. Mas a fusão trouxe também alguns problemas. O histórico anterior de duas empresas publicamente adversárias, disputando um mesmo mercado, alimentou sobremaneira os arquivos secretos dos dois jornais com material muito perigoso para a nova realidade. Em outras palavras, Adrien andou me espionando e eu também o espionava; Você sabe disso... ADRIEN (baixinho para Georges) - É capaz de adivinhar quem era o espião dele? GEORGES (também baixinho para Adrien) - O patife do Lazare, claro. SANTOS DUMONT/O FILME cavalheiros, por quê chamaram-me aqui? BENETT - Entre os arquivos secretos do "Le Temps" que serão lacrados, estão incluídos os arquivos sobre o aeronauta... Ao ouvir isso, Georges pulou da poltrona furioso. Benett o interpelou, também levantando-se. BENETT - Acalme-se, Sr Goursat, sabemos do seu temperamento e da sua indisciplina... para não falar da bebedeira. GEORGES (avançando sobre ele) - Ora, seu... ADRIEN (retendo-o) - Georges! GEORGES (tentando safar-se) - Você também é conivente, Adrien, não toque em mim! Já entendi... meus arquivos sobre Santos-Dumont... serão destruidos... bando de patifes, eis o que são! BENETT - Ninguém falou em destruição de arquivos, Sr Goursat; peço-lhe que comporte-se como um cavalheiro, ou mandarei chamar os guardas. Os arquivos que diz serem seus pertencem, em verdade, à sociedade; isso está bem claro no seu contrato. O senhor deve entregar suas chaves ao Sr Chapman. CHAPMAN - Exatamente, cavalheiros, intrigas como essa que os senhores acabaram de perpetrar poderiam multiplicar-se causando graves danos à sociedade. Por isso, os acionistas, em decisão majoritária, resolveram lacrar os arquivos secretos dos dois jornais por um período de 20 anos. GEORGES (controlando-se e encarando Benett) - Não sou um criminoso, Sr Benett, e não tente tratar-me como tal! Não lhe devo obediência, pois não sou seu empregado, nem da sua sociedade, a partir desse momento! Portanto, não mexa na minha sala enquanto lá estiverem meus pertences pessoais. E nossos advogados é que decidirão quais são eles... GEORGES - Vinte anos?! É bastante tempo... Mas, BENETT - Faça o que bem entender, Sr Goursat, como 117 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND já disse, não é nada pessoal. Sou seu leitor e admirador. Aqui tratamos apenas negócios... GEORGES - Em nada me honra a sua admiração, Sr Benett, me sinto sufocado aqui, nesse seu mundo imundo. Vou sair, passem bem, senhores... (pega o chapéu e sai em direção à porta) BENETT - Damos-lhe 48 horas, Sr Goursat, não mais! Vá perder seu tempo com os advogados. Seu Gabinete não é mais seu e seus pertences pessoais serão retirados. Estarão à sua disposição no Departamento de Pessoal. Se não tivermos as chaves no tempo estipulado arrombaremos os armários e o cofre, fique certo. São propriedades dos acionistas e temos autorização deles para fazê-lo. GEORGES (já na porta, irônico e melancólico) - Arrombar cofres... deve ser essa a especialidade dos senhores e seus acionistas, não é? E, Adrien, Você me decepcionou; nunca pensei que se chafurdaria num covil desses. Passem bem, senhores! (bate a porta com força e sai) Dumont Nº 20 por 7500 francos. O jornal está nas mãos de Georges, sentado num banco, frente ao hangar de Santos-Dumont em St Cloud. Vários outros hangares ladeiam aquele edifício pioneiro. Oito aeroplanos de vários tipos estão dispostos à frente deles, com predominância dos "Demoiselle", com quatro exemplares estacionados e dois em vôo de instrução por sobre St Cloud. Ao lado, no hangar de Clément- Bayard, está SD dando algumas instruções aos mecânicos. Do lado oposto, está o hangar de L. Dutheil, R. Chalmers e Cia, anunciando também, numa placa, um novo modelo do "Demoiselle" por 5000 francos. SD vem na direção de Georges. SEQUÊNCIA 76 (O maior espetáculo do Século) No jornal aberto um anúncio de ClémentBayard vendendo o Aeroplane Santos- SD Nº 20 - "Demoiselle": o primeiro avião do mundo; é também o 1º a ser produzido em série e vendido ao mercado. 118 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME propriedade dos seus autores, após o prazo. Esqueçamos isso; o L’Illustration é um excelente jornal; todos lá gostam de Você... GEORGES - Por favor, Alberto, não tente consolar-me. Só agrava o meu estado. Me sinto como se tivesse sido condenado a 20 anos de prisão. SD (sentando-se no banco, ao lado de Georges) - Ora, Georges, também me aborreci. Mas como dizem na minha terra, é melhor “dar a volta por cima”. É preciso também não confundir a posição de Adrien. Compreendoa perfeitamente. Não teve escolha; os fatos nos atropelaram, e a ele também. É um grande amigo seu; a influência dele foi decisiva para a sua contratação no L’Illustration... SD (sorridente) - E então? Como foi o repouso na Cote D’Azur? Divertiu-se? GEORGES - Que nada, Alberto! Mal consegui dormir. Voltei dois dias antes do previsto. Eu o perturbo? GEORGES - Não consigo enxergar o Adrien metido nessa patifaria, Alberto, mas ele estava lá... bolas, esqueçamos tudo isso!... Pelo que vejo os "Demoiselle" vão de vento em popa! SD - É o meu sonho plenamente realizado, Georges. Vendemos já 40 exemplares. E o Chalmers está fazendo mais 30 simplificados. Passamos o dia a dar instruções aos novos pilotos e mecânicos. Você está assistindo, nesse momento, ao maior espetáculo do Século: o nascimento da aviação civil! Portanto, alegrese, homem! SD - De modo algum. É preciso esquecer o "Le Temps" e os nossos arquivos, Georges. Meus advogados analisaram o caso exaustivamente. Não temos qualquer direito sobre a decisão dos acionistas. O máximo que pudemos fazer foi acompanhar o lacre na presença do tabelião e das testemunhas, e conseguir um acordo para que os originais ..."o nascimento da aviação civil"... passem a ser 119 SEQUÊNCIA 77 Manchetes de j o r n a i s sobrepõem-se na tela: “LAHAM TENTA AT R AV E S S A R CANAL DA SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND MANCHA” “BLERIOT É O PRIMEIRO A ATRAVESSAR O CANAL NUM MAIS PESADO QUE O AR” “ G R A N D SEMAINE DE CHAMPAGNE” "LAHAM TENTA ATRAVESSAR CANAL" “AERONAUTAS DE TODO O M U N D O CHEGAM À FRANÇA” Santos-Dumont”, através do sistema de alto-falantes, provocando aplausos em toda a extensão do campo. Um enorme público acompanha os dois carros enquanto se dirigem ao h a n g a r designado p e l a Comissão. Começam as provas. "BLERIOT É O PRIMEIRO A ATRAVESSAR O CANAL" “WRIGHTS Quinhentos RECUSAM-SE A PARTICIPAR mil espectadores cercam a DO CONCURSO” pista de 10 km de extensão. Festa no ar: sete aviões em (Legenda: Grand Semaine de vôo ao mesmo tempo, Champagne, Reims, agosto anunciam os alto-falantes, de 1909) Aviões de todos os “pela primeira vez no tipos chegam embalados e mundo”! Um deles, porém, desmontados no Campo de começa a soltar fumaça e Champagne. Na desgoverna-se, caindo no movimentada manhã, as meio da platéia. Susto geral! aeronaves vão cobrindo de Duas mortes! Contrai-se o cores o grande gramado, rosto de SD. cercadas de mecânicos, aeronautas, visitantes e O alto-falante anuncia um curiosos. SD chega trazendo vôo de Bleriot. Ele decola, o seu "Demoiselle" no seu levando um passageiro. O próprio automóvel. Vem ao motor falha na decolagem e Curtis na "GRANDE SEMAINE" seu lado, Georges, e, atrás o aparelho precipita-se sobre dele, no Mercedes, Chapin, ao volante, a multidão em pânico. Sem mortes, apenas Gasteau e ferimentos. Dazon. A Ambulâncias Comissão de correm ao Recepção os local. O rosto recebe em de SD f e s t a s , aborrece-se anunciando a ainda mais. presença do “Aeronauta Anunciam pioneiro dos Delagrange, já ..."SD chega trazendo o seu Demoiselle"... ares, o Sr na decolagem. 120 PARTE 2 Ao seu lado, decola, sem autorização, E. Paulham, numa subida perigosa, choca-se de leve com Delagrange, e cai. SD está aflito. UMA SENHORA NA MULTIDÃO (bem perto de SD) - Meu Deus! Essa coisa mata! Outro desastre; o inglês George Cockburn, cai com o aeroplano de Farman. Virou um entulho de panos, madeiras e sangue. Quatro mártires só no primeiro dia! SD (lívido, suado, lacrimejante) - Chapin, não desça o "Demoiselle"; vamos voltar. CHAPIN - Mas, senhor, este é o nosso melhor modelo! Voará perfeitamente. Nunca o vi com medo de voar! SD - Não é medo, Chapin. Não pretendo tripudiar sobre os restos mortais dos nossos companheiros martirizados nessa carnificina. Vamos embora; Georges, Você vai? GEORGES - Devo ficar, Alberto. Estou em missão de trabalho. Mas dou-lhe razão. O ambiente não está bom. Vejo-o em Paris. SANTOS DUMONT/O FILME estante ocupada com as obras completas de Júlio Verne, troféus, copas e, nas paredes, diplomas, quadros de medalhas e fotos de família, esperava o advogado Romain Lelouch. SD entra calmamente, senta-se à sua mesa, que é decorada por um grande jarro de flores e a foto emoldurada de Aida D’Acosta. SD - Como vai, advogado Lelouch? ROMAIN - Muito atarefado, Sr Santos, espero poder servi-lo no que deseja. SD - Dr Romain, decidi que vou dar por encerrada as minhas atividades de inventor e aeronauta. ROMAIN - Eu ouvi bem, Sr Santos? O senhor está me dizendo... SD - Exatamente o que o senhor ouviu, Dr Romain. Chamei-o para ajudar-me a providenciar a aposentadoria do Sr Chapin, o único dos meus fiéis mecânicos que também deseja parar. Os demais não terão dificuldade em colocar-se; são os melhores de Paris... SEQUÊNCIA 78 SD está só na sua oficina secreta, vendo os filmes do 14 Bis e do "Demoiselle". Sua expressão demonstra uma profunda amargura. O interfone toca. AUGUST (in) - É o advogado Romain Lelouch, senhor, já está aqui. SD (in) - Sim, August. Leve-o ao Gabinete e peça que aguarde-me. Demoro uns cinco minutos. No pequeno Gabinete de trabalho do apartamento de SD, com uma pequena "...e a foto emoldurada de Aida D'Acosta..." 121 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND ROMAIN - Se é o seu desejo, Sr Santos, nosso escritório, como sempre, está à sua disposição. Daremos todas as providências que nos ordenar. Agora permita-me informá-lo sobre um assunto delicado... - Mas, até lá... SD - A questão das patentes do "Demoiselle"? SD (interrompendo-o) - Mantenha-os longe, Dr Romain. Temos algum outro assunto? Desculpe-me, mas estou bastante ocupado no momento. ROMAIN - Sim, até a aprovação, apesar dos altos custos que o senhor terá de desembolsar, é possível mantê-los longe. Nosso conselho porém... ROMAIN - Não, não senhor; esta causa já ganhamos e está encerrada. O domínio público foi assegurado, conforme o seu desejo. Falo sobre a questão da vistoria no imóvel anexo a este. Como já lhe informamos o processo permanece em difícil situação. Somente um acordo poderá tornar as coisas mais fáceis. Creio que agora, o senhor abandonando as atividades... ROMAIN - Apenas entregar-lhe o relatório financeiro do último semestre, Sr Santos. Aqui está (entrega-lhe os papéis que retirou da pasta) - As coisas felizmente continuam a ir bem para o senhor. Aliás, sempre andaram bem, não? O senhor é mesmo um homem de muita sorte! SD - Dr Romain, não estou disposto a abrir mão de nenhuma das minhas prerrogativas e direitos de proprietário; em hipótese alguma! SD (recebendo os papéis e olhando-os superficialmente, sem entusiasmo) - Obrigado, Dr Romain. Dê lembranças minhas ao advogado Heifetz. ROMAIN - O escritório não sabe até quando poderá manter essa situação, Sr Santos. Tenho o dever de informá-lo que é iminente a aprovação da lei de emergência. Se isso acontecer, mais nada poderá ser feito. SEQUÊNCIA 79 (Despedida) A oficina secreta está abarrotada dos modelos e pedaços de modelos que nela foram construídos desde que fora inaugurada. Numa reunião com todos os seus principais mecânicos, incluindo Anzani e Levavasseur, SD SD, seus três fiéis mecânicos, Chapin, Gasteau e Dazon e o protótipo do inacabado bimotor. 122 PARTE 2 SD despede-se. Clima de emoção e tristeza. Alguns não conseguem esconder as lágrimas. SD - Amigos, chegou o fim da minha jornada. Minha saúde não permite a continuação dos trabalhos. Além disso, enfrentamos o boicote de uma imprensa entregue a interesses inescrupulosos. Começo a duvidar se o que fizemos com tanto empenho e dedicação, reverterá mesmo em benefício da Humanidade. De mim sempre haverá o profundo reconhecimento da importância de todos nessa trajetória de mais de uma década de intensa atividade criadora. Vocês todos estão de parabéns! Desejo que sejam felizes em seus novos empregos. Muito obrigado. Comovido, SD começa a abraçar um por um, num clima de enterro. Todos, emocionados, abraçam-no demoradamente, sem conseguir emitir uma palavra, pegam suas maletas e saem da oficina, olhando-a com tristeza, pela última vez. SD fica só na oficina, prepara um drink, senta-se na mesa de leitura, abre um caderno e começa a escrever. Entra Georges. GEORGES - Houve uma reunião de cúpula no Aero Clube, Alberto. Estive lá a pedido da diretoria. Estão preparando uma grande homenagem para Você. SD - É muita gentileza deles, Georges. Não estou certo se a mereço... GEORGES - Já sentem sua falta por lá. Todos reconhecem que o Aero Clube não é mais o mesmo. Até seus adversários sentem o vazio. É natural! E essa decisão repentina de abandonar tudo, os atingiu e às suas consciências. SD - Também eu sinto saudades, Georges, daqueles tempos felizes de emulações e SANTOS DUMONT/O FILME descobertas. Mas hoje o Aero Clube parece ter perdido a sua independência, senão a dignidade. Veja o episódio da concessão dos brevets. A pressão para a inclusão dos Wright e do Cap. Ferber foi vergonhosa e demonstrou a fraqueza da nossa direção. GEORGES - Isso deu-se logo após o golpe do "Le Temps". Estava tudo articulado, desde a visita dos Wrights. E o Aero Clube precisava de dinheiro e prestígio para as ampliações. Se eu devo perdoar Adrien, como me aconselhou, perdoe Você também o Aero Clube. Estou aqui como embaixador deles, Alberto. SD - Não me consta que tenha perdoado o Adrien... GEORGES - Intimamente sim. Apesar de não o ter procurado mais, não guardo ressentimentos. SD - Eu não tenho o que perdoar em relação ao Aero Clube, Georges. Compreendo a posição da Diretoria. Ficarei muito honrado com essa homenagem, pode dizer a eles. GEORGES - Você comparecerá? SD - Sim, claro que sim. SEQUÊNCIA 80 (Apologia) Na sede do Automóvel Clube, uma grande reunião plenária do Aero Clube. Comparecimento maciço de todos os sócios. Archdeacon faz um discurso. ARCHDEACON - ... e como ressaltou o Sr Deutsch de La Meurthe, nosso Aero Clube, o pioneiro dos Aero Clubes, que hoje espalham-se pelo mundo, ressente-se da ausência voluntária 123 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND de um dos seus mais ilustres fundadores e aeronautas. Muitos de nós testemunhamos, desde os começos, e até há poucos meses, a energia com que este homem empenhou-se na construção e crescimento do nosso Clube, sem poupar esforços e recursos, como uma chama poderosa e permanente de estímulo e emulação. Foi também, seguramente, o maior orgulho dessa casa e, posso dizer, que o seu espírito, inteligente e empreendedor, foi a pedra fundamental da nossa instituição. Além disso, o Sr Santos-Dumont, foi grande aeronauta e inventor de alta brilhância, podendo figurar na constelação dos maiores, ao lado de Edson, Marconi, Grambell, Lumière, entre poucos outros. Sua obra, que ele já dá como completa, é uma obra de grande mestre, de gênio mesmo! Muitos presenciamos, em 1898, a sua temerária ascensão no pequenino balão esférico “Le Brésil”, até hoje o menor balão esférico do mundo, e agora podemos historiar uma profícua carreira de 23 projetos aeronáuticos, todos pioneiros e a maioria deles testados em vôo pelo próprio inventor. Além disso, sete novos motores a petróleo e mais de 300 invenções subjacentes e acessórias, grande parte delas já incorporando-se ao cotidiano dos projetos e oficinas, e até mesmo das pessoas, em todas as partes do mundo. Essa obra magnífica, cheia de conquistas e sucessos, numa sequência progressiva de inovações revolucionárias, encerrase no apogeu com o seu mais expressivo projeto; os pequeninos "Demoiselle", que hoje fazem parte dos céus parisienses e muitas outras cidades, formando novos pilotos e aeronautas. Essa sua pequena e última obraprima, senhoras e senhores, é nada menos do que a primeira aeronave de turismo que o homem fabricou em sua indústria! É também a matriz de todos os projetos aeronáuticos atuais e futuros, pois em essência, o Sr Santos-Dumont, ao criá-la, deu, incontestavelmente, as asas que o homem precisa para viver o seu futuro. É preciso, porém, ressaltar que, da primeira até a última criação, a obra do Sr Santos-Dumont é, antes de tudo, a obra de um grande humanista. Sim, porque saíram do coração e da mente de um homem que ama profundamente a sua própria espécie, sem nada pedir em troca. É notório o desprendimento com que o Sr Santos-Dumont legou todos os seus inventos ao domínio público. Foram humanistas como ele que deram à humanidade obras de arte como as Nove Sinfonias, a Divina Comédia, os Lusíadas, Hamlet, a Ilíada e a Odisséia! E ao conhecimento, as Proporções Áureas, as teorias da gravitação universal, as leis matemáticas e filosóficas da Natureza, os postulados e os teoremas da Ciência, e as revolucionárias invenções da nossa época. Devemos muito a eles, senhoras e senhores, e posso, com certeza, incluir, entre os grandes, o nome de Santos-Dumont. Sentimos a sua ausência em nossa casa e devemos-lhe uma homenagem. A casa Conteneau e Leliévre, por iniciativa do escultor George Colin, renomado artista de Paris, construiu-nos este belo monumento dedicado ao Sr Santos- Dumont (exibe a maquete) que comemora os seus inesquecíveis vôos de 1901 e 1906. A municipalidade de Paris consentiu-nos erigilo na Praça em frente aos portões do AeroClube, em St Cloud, que também receberá o nome do nosso ilustre companheiro e colega. Em 23 de outubro próximo estaremos inaugurando- a solenemente. Todos estão convidados. Muito obrigado. (demorados aplausos) 124 PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME SEQUÊNCIA 81 (O Monumento) Corte para a inauguração do monumento de St Cloud (foto), com Archdeacon descerrando o pano de cobertura, ao lado de SD e Deutsch, em meio à uma grande multidão encartolada. Aida D’Acosta entrega-lhe um buquê de flores e beija-o no rosto, sob os aplausos gerais. Corte para SD dirigindo sua Mercedes, saindo da solenidade encerrada, com Georges ao seu lado. Durante a sequência, percorrem as ruas de Paris. SD - Estou feliz, foi uma homenagem muito sincera. Sinto a sensação satisfeita de ter cumprido minha missão. GEORGES - Está realmente decidido a abandonar, Alberto? É definitivo? SD - Minhas forças esvaem-se, Georges. Parece uma certa doença que ataca pessoas como eu... GEORGES - O que pretende fazer da sua oficina? SD - Ia doá-la ao liceu de artes e ofícios. Mas a pressão dos últimos acontecimentos tem abalado a minha crença nos homens e na sociedade. Um forte niilismo se apodera da minha pessoa, Georges. GEORGES - Tenho de admitir que não nos faltam razões, Alberto. No meu desfecho no "Le Temps" senti um desprezo tal pela Humanidade, que alcançou até o seu Criador. SD - O punho de ferro alemão, a prepotência anglo-americana, a pusilanimidade francesa e o domínio da estupidez sobre a inteligência, agravam o quadro. Com a aprovação da lei de emergência, institui-se a lei das selvas. Minha oficina pode ser invadida a qualquer momento. Sou ao mesmo tempo, em França, homenageado por homens de bem e acusado de espionagem por pseudo-nacionalistas. Não sei que atitude tomar, Georges. GEORGES - Como? Espionagem? SD - Exato! A suspeita de que eu posso ser um espião alemão é a base da justificativa que a polícia e o exército francês utilizam para aplicar a nova lei sobre mim e conseguir a per missão legal para invadir minha Ícaro vingado: a inauguração do monumento a Santos-Dumont em St. Cloud. 125 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SD - Ainda não sei, Georges. Por enquanto, pretendo descansar um pouco. (pára o automóvel em frente ao L’Illustration; Georges desce) propriedade. GEORGES - Ora essa! Só mesmo a cabeça desses pascácios! Mas, nós sabemos o que eles querem mesmo. GEORGES - Alberto, apenas uma pergunta: quem o mandou... ou, melhor, como teve a idéia de construir aeronaves? SD - Crêem que escondo o mais importante e revelo apenas o menos importante. Talvez fosse o que fariam em meu lugar. SD - Acredito em meus sonhos! (e arranca) GEORGES - Conseguirão a ordem judicial? SD - Sim, vão consegui-la. GEORGES - E o que vai fazer? FIM DA SEGUNDA PARTE 126 PARTE 3 IMPRIMA-SE A LENDA (EPÍLOGO) *20.7.1873 †23.7.1932 PARTE 3 SEQUÊNCIA 82 SD almoça com August, François e Pierre na mesa da cozinha. Clima de última ceia, todos entristecidos, quase não falam. SD (ao terminar de comer) - Tive grande felicidade em tê-los como companheiros nessa jornada. Não tenho palavras para expressar minha gratidão. François, Pierre, terminadas as tarefas de hoje estão dispensados. August fica, como combinado. (François e Pierre quase não conseguem conter as lágrimas; August, apesar de profundamente entristecido, não perde a fleuma de mordomo) - Estarei na Oficina, August, e lá ficarei o dia todo. Está tudo pronto? AUGUST - Sim, senhor, tudo arrumado. O Senhor crê mesmo que eles virão hoje? SD - Tudo indica que sim, August. (levantam-se todos, SD aperta a mão, dá um abraço em cada um e sai) SEQUÊNCIA 83 (Mephisto) SD está só na oficina secreta, quase às escuras. Apenas a luz do abajur da biblioteca acesa. Vai até o bar, abre uma portinhola, escamoteada com segredo na pequena adega, e retira de lá uma garrafa de absinto. Servese num cálice de cristal e bebe-o de um só gole. Depois enche o cálice novamente, coloca-o sobre a mesa, ao lado do abajur, e pega o livro que ali está; o “Fausto”, de Goethe. Em seguida, recosta-se no divã e começa a ler, abrindo numa página já marcada, com um marcador de marfim. Súbito, ouve um ruído no interior da oficina. Sobressalta-se, senta-se no divã e devolve o livro ao lugar onde estava, observando atentamente o interior da oficina em penumbra. A barquilha movia-se. SD - Quem está aí? Ouve-se um risinho cínico e, saindo da penumbra, percebe-se a barquilha aproximando-se da Biblioteca, vinda do alto, em “vôo descendente”. Pilotando-a, com a mesma mestria do inventor, estava um homem alto, forte, de barbicha, rosto ovalado e lustrosa calva, elegantemente trajado e com uma grande capa negra, forrada por dentro de veludo carmin. SD (assustado) - Quem está aí; quem é Você?! A barquilha pousa suavemente sobre o belo e enorme tapete persa, como se o piloto fosse o próprio SD, e a figura imponente de Mephisto sai jeitosa e equilibradamente de dentro da barquilha, sem qualquer dificuldade. MEPHISTO (com sua voz gutural e o seu sorriso cínico, característico) - Viu como eu também sei? Aqui estou para... SD (irritado) - Em primeiro lugar quero saber quem invadiu minha oficina de trabalho? MEPHISTO (sem perder a pose) - Ora, Alberto - permita-me chamá-lo assim? - vim tratar dos nossos negócios... SD - Negócios?! (e, esfregando-se) - Como está frio aqui! - Negócios? - E por quem vos tomaria eu? MEPHISTO - Uê?! Como posso saber? Mas não ignoras quem sou, ora essa! Não tentes obstinar-te em fingir que não esperas minha visita por agora... Não queres pegar um agasalho? SD (levantando-se, pegando um capote no cabide e vestindo-o) SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND - Diabos! O que está acontecendo aqui? (olhou o grande termômetro marcando 17 graus) - Que tipo de negócios haveria eu de tratar convosco, que nem conheço? imenso balão de hidrogênio, sem proteção algo mais eficiente do que teus cálculos científicos? Já esqueceste de Augusto Severo? SD - Severo foi imprudente; eu mesmo tentei avisar-lhe... MEPHISTO - Ora, meu caro Alberto, já se passaram os 24 anos do nosso trato! Nesse período, ambos cumprimos nossas partes rigorosamente. Chegou a hora do desfecho. MEPHISTO - E tu não foste imprudente?! Essa é boa, meu caro Alberto! Não tens idéia do trabalho que nos deste, desde o teu primeiro vôo naquele balãozinho petulante. Tua audácia ultrapassou todos os limites! SD - Vinte e quatro anos? Refere-te àquele pesadelo que tive em Ribeirão Preto? Mas eu tinha apenas doze anos... SD - Ora essa! Sem audácia e ousadia, não haveria como fazer o que fiz! MEPHISTO - Não costumamos observar exigências etárias em nosso negócios, Alberto. A nós importa os tratos com aqueles que sabem exatamente o que querem. E tu eras um deles já naquela época. Até pilotavas, com perfeição, as locomotivas da fazenda do teu pai... MEPHISTO - Certamente! Mas também não precisávamos ir tão longe! O teu Número 1, o Número 5, os vôos em meio às sabotagens - nós mesmos, na Inglaterra e nos Estados Unidos, tivemos de sabotar o Número 7 em terra, para que não o fizessem em vôo. O episódio de Mônaco... E o 14 Bis; aquele mastodonte aéreo em forma de pipa? Tive de entrar em ti pela boca daquela bailarina, lembras-te? (a fala fica em off enquanto repete-se a cena do beijo demoníaco da bailarina, antes de SD entrar no 14 Bis para a glória) - Somente nós dois, juntos, pilotando, conseguiríamos fazer aquilo voar! Mais ninguém, meu caro Alberto; e não foi fácil, recordas-te? SD - Ah, falas de Vós no plural, não é? Sois uma legião. Naquele sonho, ou pesadelo, foi outro que me apareceu. Um europeu típico, com uma longa barba branca e faces coradas. Cheguei a pensar que era o próprio Papai Noel! MEPHISTO - A nossa forma é apenas uma projeção subconsciente dos nossos parceiros, Alberto. Daquela feita, tu precisavas de alguém mais bonachão e paternal. Hoje requeres algo entre o teu pai e o Dr Langley. Cá estamos... SD - Foram todos projetos bons e necessários. E cumpriram seus objetivos. SD - Nunca fiz pacto algum com Vocês. Nada devo aos senhores; tentam aproveitar-se da ingenuidade de uma criança... MEPHISTO - Ah, sim! Claro! Não fazemos tratos com medíocres ou pusilânimes. Sempre demos preferência a espíritos inquietos como o teu; destemerosos, desbravadores e visionários. MEPHISTO - Se insistes em tratar-me no plural, que seja. Mas não venhas com bobagens, tentando esquivar-te. Pensas mesmo que poderias sair voando por cima de Paris, e até por entre suas ruas e boulevards, pendurado num SD - Qualquer que tenha sido o trato com Vocês eu não corroborei. A própria tentação das patentes... 130 PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME MEPHISTO - Patentes? Ora, Alberto, essas banalidades não entram em nossos negócios. Pareces um tanto esquecido, meu caro! Absinto em excesso costuma prejudicar a memória! Devo refrescá-la. Tu querias dar asas ao Homem, ou antes, querias os segredos das máquinas de voar e dá-los aos homens. Deixamos claro que não seria fácil. Outros, no passado, não o conseguiram nem com a nossa ajuda. Mas prometemos-te tentar. E, se conseguíssemos, pedimos-te, em troca, que não amasses a ninguém e, após o prazo, entregasse-nos a tua alma. 24 anos, aliás, vencidos há pouco mais de três meses... MEPHISTO - Charlatanice? Aquele espírita que a recebeu pode ser tudo, menos um charlatão. E não se comprovaram suas previsões? Tu não duvidas disso, meu caro Alberto. Mas naquela época achaste mais seguro confiar em nós. Por isso aceitaste o pacto. SD (perdendo a fleuma) - Caluniadores! Não tenho comércio com os senhores. Não vos convidei; retirem-se! MEPHISTO (dá uma poderosa gargalhada) - Ora, Alberto, o que quiseres fazer, faças! Mas nada conseguirás. Custas e sofrimentos?! Sim, é verdade; foste tu. Fizeste quase tudo. Mas o sofrimento foi por tua opção. Foste o mais festejado dos mortais deste início de Século, meu caro. O mundo todo esteve literalmente aos teus pés! Não te faltou talento, não o negamos. Mas não te preocupes. Nossos métodos não são violentos, como dizem as lendas. Tu mesmo saberás como encontrar-nos na hora em que te convenceres disso. Mas, de agora em diante e até lá, tu não farás mais coisa alguma, serás um pária da sociedade, trarás má sorte às pessoas em tua volta e, aí sim, conhecerás, finalmente, aquilo que chamas sofrimento! MEPHISTO - Vejam só! Estás fazendo progressos! Esquentas-te. Abandonas enfim a cortesia e a esquiva. (e, aproximando-se do rosto de SD, olho a olho) - Lembraste, não é? SD - Eu era apenas um garoto sonhador. Vocês iludiram-me e agora tentam aproveitar-se disso. Não passam de escroques sórdidos; eu... MEPHISTO - Acalma-te, Alberto. Não te esqueças de que tivemos a honestidade de avisá-lo previamente de tudo. Dos antecedentes e das conseqüências. Sempre negociamos corretamente. A outra parte é que tenta trapacear. Deixamos claro que eras um escolhido. Até fornecemos-te um recorte do jornal “Reformador”, publicado em 1º de agosto de 1883, e que trazia uma mensagem profética a teu respeito, recebida quando ainda tinhas três anos! Ainda o guardas naquelas pastas de recortes, eu sei. Queres que eu o localize? SD - Aquela notícia pode ser uma charlatanice, e não diz que seria a minha pessoa que... SD - Recuso-me em reconhecê-lo. O que fiz foi às minhas próprias custas e sofrimentos. Nada devo a ninguém. E para que fique claro, decido agora contrariá-los: vou retornar à aeronáutica e às minhas invenções. Mesmo com as poucas forças que me restam... SD (furioso) - Vossas maldições não me atingirão, canalhas! MEPHISTO - Ora, ora... estás perdendo a fleuma?! Não se tratam de maldições, é a dura realidade! Nossa proteção sobre tua pessoa encerrouse; tua alma já é nossa! E tempo é o que nunca nos faltou para aguardar-te. Por isso não te chateies. Não és um cristãozinho qualquer, e não mereces o tédio que te seria o paraíso cristão. Estarás entre os grandes da nossa imensa galeria. Terás, ao teu lado, almas como a tua; muitas delas daqueles que assinam as obras que tu conservas com tanto 131 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND desvelo nessa requintada biblioteca. E não há nada que possas fazer para impedi-lo. Portanto, meu caro Alberto, aguardo-te; quando quiseres! (e desaparece) Cai sentado, exausto, no divã. Olha para a taça vazia sobre a mesa e para a barquilha sobre o tapete. Começa a chorar. - Um momento, cavalheiros, o Sr SantosDumont não se encontra. Não deve tardar. O mandato diz que não é necessária a sua presença, que podem arrombar cofres e paredes, etc. Mas nada disso será preciso, não é? Somos pessoas educadas, civilizadas. O Sr Santos-Dumont não é um espião, todos sabemos. Não desejariam entrar e aguardar um pouco enquanto tento localizá-lo por telefone? Os cavalheiros hão de convir que não eram esperados... SEQUÊNCIA 84 O COMANDANTE DO DISTRITO - Não devíamos prender logo esse alemão?... SD (gritando para o nada) - Vocês não podem!... Vocês não podem.... Noite estrelada em Paris. SD está no seu observatório astronômico, no alto da cúpula aberta, observando a sua constelação de Câncer, sobre a qual o planeta Saturno se posiciona naquele dia. Seu rosto está lívido, suas feições entristecidas. Toca o interfone. FERBER - Ele não é alemão; é austríaco. O COMANDANTE DO DISTRITO - É a mesma coisa... RENARD - Comandante, apesar de estar cumprindo atribuições legais e judiciárias, está ciente de que está sob o comando do Serviço Secreto? AUGUST (in) - Chegaram, Senhor. SD (in, calmamente) - Faça como combinamos, August. E... August, foi bom tê-lo junto. O COMANDANTE DO DISTRITO - Sim, senhor. AUGUST (quase chorando, sob os sons insistentes da campainha) - O mesmo digo eu, senhor. Vá tranqüilo. Não o esqueceremos. Somos orgulhosos de tê-lo tido como patrão. Desligo agora, devo atendê-los. (desliga) RENARD - Então peço-lhe que limite-se a fazer o que tem de fazer, e obedecer minhas ordens. August vai até a porta enxugando os olhos e abre-a. Lá estão o Cap. Ferber, o Coronel Renard e o Comandante do Distrito da Gendarmeria, que entrega-lhe um papel da justiça. August recebe o papel, coloca demoradamente os óculos de leitura e começa enfim a ler. FERBER (já entrando prepotentemente) - Quinze minutos, no máximo, August. Sirvanos um café, para começar. E para os nossos homens. Somos onze ao todo. O COMANDANTE DO DISTRITO - Sim, senhor. AUGUST (trêmulo) - Pois não, Senhor. Mas hoje é dia de folga dos criados. Terei eu mesmo de preparar o café. RENARD - Temos pressa, senhor. Por favor, o Sr SantosDumont está? RENARD - Aos diabos, com o café, August. Localize Santos-Dumont. Se achá-lo quero falar pessoalmente. E não esperaremos quinze AUGUST (ainda lendo o mandato e pedindo, com a mão, que o aguardem acabar) 132 PARTE 3 minutos. Cinco, é o que Você tem. Aguardamos aqui no hall. Vá. August, um pouco afobado, tenta pegar-lhe as capas e os chapéus mas Renard não dá tréguas. RENARD - Nós nos arranjamos, August, encontre-o. August faz uma reverência e sai. SEQUÊNCIA 85 SD já no piso da oficina aciona o comando de fechamento da cúpula e, em seguida, uma série de chaves elétricas e alavancas. Depois, acesas apenas as luzes de serviço, vai até um dos bonecos de borracha, tira-lhe o colete que vestia, pega uma bomba de encher pneu de bicicleta e vai para as grandes portas de correr que dão para o pátio. Aciona a alavanca de abertura apenas o suficiente para que abram um pouco mais de um metro e retorna-a para a posição de fechar. Enquanto elas se fecham, ele escapa para o pátio. A câmera fica na oficina e vê as portas fecharem-se e com isso acender automaticamente um grande holofote vermelho com foco direcionado para a porta que dá para o apartamento. Corte para SD no pátio, falando com as mãos com o Sr Louis. SD sobe para o alto da carroceria do carroção e o Sr Louis a dirige para que encoste perto do muro do pátio que dá para a servidão do interior da quadra. SD salta para o muro e pula para o outro lado. A câmera, em grua alta, vê o carroção saindo para a rua enquanto SD caminha pela servidão em direção aos fundos do apartamento de Pedro. Corte para o carroção do Sr Louis sendo revistado por gendarmes na rua Washington, perto do portão. Corte para SD no interior do apartamento de Pedro Guimarães inflando o colete com a SANTOS DUMONT/O FILME bomba de bicicleta e vestindo-o, cheio. Em seguida, abre o armário de Pedro e experimenta roupas do amigo, baixinho como ele, mas gordo. Corte para o Cel Renard, o Cap Ferber e os seus homens impacientes no hall do apartamento de SD. O Cel Renard abre a porta da sala de jantar e vê August, afobado, no telefone colocado improvisadamente num caixote, e os móveis cobertos com pano. RENARD - Seu tempo esgotou-se, August. Vamos entrar. Parece que estamos de mudanças, hein? Ferber, creio que chegamos bem na hora! O COMANDANTE DO DISTRITO - Sabia que o alemão estava escondendo algo... FERBER - Não é alemão; é... AUGUST (ainda ao telefone) - Não consigo encontrá-lo, senhor. RENARD (já abrindo a outra porta) - Penso que não o encontrará mais, August. Vamos, pessoal. Chegam todos pelo largo corredor até a bailarina de Degas. Renard mexe-a e a portinhola abre-se. RENARD (berrando para August que vinha atrás dos outros) - Você não sabe o segredo, não é August? AUGUST - Não, senhor. Somente o patrão o conhece. RENARD (apontando para o especialista em cofres) - Dê uma olhada. O rapaz chega-se até a portinhola e observa o mecanismo com atenção. 133 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND O ESPECIALISTA - É dos mais sofisticados, senhor. O GENDARME (liberando o cocheiro e fazendo sinal para a barreira) - Pode passar! RENARD - Quanto tempo? Corte para o especialista terminando seu trabalho, com os oficiais aflitos em volta. August vê tudo à distância, do outro lado do corredor. O ESPECIALISTA - Entre dez a doze minutos, se tivermos sorte. RENARD - Comece. (e, para o Comandante da gendarmeria) - Está tudo cercado? O ESPECIALISTA - Consegui! Posso acionar o mecanismo? RENARD (para Ferber) - Avise ao General. Vamos entrar. (e, para o especialista) - Acione! O COMANDANTE - Sim, senhor. Todo o quarteirão está policiado. Ninguém entra ou sai sem ser identificado. SEQUÊNCIA 86 O especialista começa o seu trabalho, colocando ao ouvido um auscultador de médico e aplicando a outra ponta ao mecanismo, girando-o lentamente. Pede silêncio a todos. Ao acionar a alavanca, o fundo do corredor começa a abrir-se lentamente, deixando passar uma forte luz vermelha que cega a todos. Corte para SD saindo do prédio de Pedro, com as roupas, o chapéu e o “corpo” de Pedro, e com o rosto enfaixado e engordado, como se estivesse com dor de dente. O próprio porteiro o cumprimenta como se fosse Pedro. Ligeiro, SD entra numa cupê que já o aguardava na porta. O cocheiro arranca e pára logo em seguida numa barreira de gendarmes. Um deles aproxima-se da janela da cupê, trazendo uma lanterna na mão. Corte para o detalhe interior da porta acionando um mecanismo de disparo, ao encostar no batente. Ao ser disparado, corte para um fonógrafo de rolo sendo acionado automaticamente, no observatório, perto da cúpula. Corte para a câmera no piso da oficina com várias luzes vermelhas piscando e uma campainha tocando insistentemente em alto volume, e mostrando o Cel Renard e seus homens entrando na oficina com as mãos sobre os olhos, para protegê-los do foco de luz vermelha do holofote. Ouve-se uma voz metálica, emitida por vários alto-falantes. O GENDARME - Documentos, senhor. SD entrega os documentos de Pedro. O gendarme aproxima a lanterna dos documentos e depois chega-a para perto do rosto de SD, tentando comparar o retrato. A VOZ - Atenção! Atenção! Mecanismo de autodestruição acionado! Invasores devem retirar-se imediatamente para desativação do sistema. (repete, e continua) - Trinta segundos para a autodestruição... 29 segundos... (campainhas e sirenes começam a tocar ensurdecedora e intermitentemente) O GENDARME - Está com dor de dentes, senhor? SD (falando como se não pudesse encostar os dentes) - Sim, tenho de correr ao dentista. 134 PARTE 3 O Cel Renard percebe o mecanismo disparador no batente da porta de entrada e dá um sinal para um de seus homens para que pegue rápido uma picareta que viu de relance na ferramentaria. Renard, enquanto isso, tenta observar a oficina, em meio às luzes piscando, e faz uma exclamação de deslumbramento. O homem chega com a picareta. A voz continua: 23 segundos... 22 segundos... RENARD (apontado um lugar na parede) - Quebre aqui! O homem mete a picareta na parede. Quando a voz diz “20 segundos...”, uma série de pequenos relâmpagos e coriscos elétricos começa a percorrer assustadoramente toda a extensão das estruturas, trilhos, e tubulações metálicas da oficina. Os homens ficam desnorteados dentro da oficina, amedrontados, sem saber o que fazer. O homem da picareta paralisa-se assustado. A voz continua: 17 segundos... 16 segundos... 15 segundos... Renard, o único que não perde a calma, ordena. RENARD - Quebre aí, para desativar o sistema. (o homem vacila, ele reforça) - Quebre! O homem mete outra vez a picareta na parede e ela enterra-se fundo, encostando num cano de condução de eletricidade. Imediatamente, um raio, como se saísse de dentro da parede pela sua picareta, fulmina-o e ele cai desmaiado no chão. 13 segundos... 12 segundos... RENARD (para os outros) - Peguem-no, depressa, levem-no para fora! Ao dar 10 segundos, as bocas da tubulação de ar temperaturizado começam a expelir uma grossa fumaça roxa, em grandes e densos vômitos, que vai tomando todo o ambiente rapidamente, criando uma alucinada atmosfera de luzes piscando, coriscos faiscando, campainhas tocando e SANTOS DUMONT/O FILME sirenes azucrinando e desorientando todos os homens. E a voz continua: 7 segundos... 6 segundos... FERBER (da porta) - Vamos sair daqui! Vou fechar a porta! Todos correm para a porta atabalhoadamente, trombando-se, engarrafando-se nela, carregando o corpo desacordado do homem fulminado. Renard é o último deles e vai saindo calmamente, tentando ainda observar a oficina, deslumbrado. FERBER - Fechando a porta! Fechando a porta! 4 segundos... 3 segundos... Renard passa pela porta já fechando-se quase que totalmente. 2 segundos... 1 segundo... Súbito, pequenas cargas de dinamite estrategicamente dispostas ao longo das paredes e locais chaves da oficina começam a disparar em ritmo programado, uma a uma. A porta fecha-se, cortando a poeira e a fumaça das explosões. A câmera permanece lá dentro, focalizando detalhes das explosões, numa sequência vertiginosa de pedaços de bonecos, aeronaves, máquinas, tecidos, rolos de filmes, ferramentas, livros preciosos, móveis, produtos químicos, tudo voando pelos ares, estilhaçando-se em pedaços incandescentes. Começam a ruir tubulões e pedaços das estruturas em chamas, fumaça negra misturando-se à fumaça roxa. O grande termômetro de um dos pilares centrais mostra a temperatura elevando-se rapidamente, ultrapassando os 80 graus centígrados. Em seguida explode. Corte para uma vista externa, em grua alta, com o galpão em primeiro plano e Paris noturna ao fundo. A cúpula de vidro da oficina explode violentamente e começa a deixar passar um grosso e espesso rolo de fumaça negra subindo em direção ao céu 135 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND estrelado. A câmera vai afastando-se, mostrando, na rua, carros de bombeiros aproximando-se em meio ao grande tumulto e movimentação de guardas, militares e curiosos. impermeável e segurando o chapéu, ele parece querer desafiar a fúria dos ventos, da chuva torrencial, e dos relâmpagos insistentes e poderosos. Seu rosto impassível recebe rajadas de vento e de água sem mexer um músculo. SEQUÊNCIA 86 Corte para SD passeando tranqüilamente nos jardins do Palácio Imperial em Petrópolis. Lindo dia, de luz solar fulgurante da serra. Um pequeno monoplano passa voando, cortando o céu azul. Nessa sequência, as imagens ocorrem junto com as vozes em off, de Georges, em Paris, correspondendo-se por cartas, com sua irmã freira, no Convento em Petrópolis. Duas diferentes narrativas, editadas simultaneamente, uma nas imagens a outra em áudio, aqui dispostas alternadamente, primeiro o áudio e, em seguida, as imagens correspondentes. Manchetes de jornais brasileiros: “ÁUSTRIA DECLARA GUERRA A SÉRVIA” “ALEMANHA DÁ ULTIMATUM” VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off) “Querido irmão. Já aprendi a perdoar heresias e compreender os homens e seus desatinos. Você sempre terá a minha bênção e o que ela lhe valer. Pode abrir-se comigo quando desejar; sei que enfrenta terríveis dificuldades e rezo muito por Você. Não perca a sua fé. O Sr Santos-Dumont veio visitar-nos ao Convento. Foi um alvoroço! Todas as irmãs queriam vê-lo, conhecê-lo, pois ele é o mais famoso dos brasileiros. Foi muito gentil e cavalheiro com todas nós e, especialmente comigo, dando-me uma atenção especial e particular. Pude sentir de perto os seus sofrimentos: como é atormentada a sua alma! Um pandemônio de paixões!” VOZ DE GEORGES (em off) - “Querida mana, a destruição da oficina de Santos-Dumont com todos os seus arquivos foi um segundo golpe na minha infeliz existência. A imprensa abafou o caso e o Governo Francês chegou até a pedir desculpas formais a Alberto. Porém, muito tarde. A loucura e a alucinação já tomavam conta do meu grande amigo. Longo tempo ainda tenho de aguardar para reencontrarme com os meus próprios arquivos, se é que um dia os reencontrarei. A Europa preparase para uma guerra cruel. Aleijados mentais dominam poderes bélicos de grande capacidade de destruição e não resistem ao desejo de utilizá-los sobre nossas cabeças. Escrevo-lhe para pedir sua bênção, porque todos esses fatos fazem aumentar o meu desprezo pela humanidade ao ponto de atingir o seu próprio Criador.” SD está a bordo do Lutéce, que enfrenta uma furiosa tempestade em alto mar. Sozinho no convés deserto, vestindo um SD sobe a escadinha da “Encantada”, construída de tal forma que só se pode subila começando-se com o pé direito. Pedreiros dão os últimos retoques na parte externa da pequena casa. SD observa e comenta detalhes. Um barulhento biplano passa em baixa altura sobre o telhado. A "Encantada": "construida de tal forma que só se pode subí-la começando-se com o pé direito." 136 É noite na “Encantada”. Na pouca luz de um PARTE 3 abajur, o atormentado SD tenta escrever. Rascunha alguma coisa, lê-a, e, nervoso, amarrota o papel e joga-o na cesta. Outra manchete de jornais brasileiros: “8 DE AGOSTO: ALEMANHA DECLARA GUERRA À FRANÇA E INVADE A BÉLGICA” SANTOS DUMONT/O FILME preparando um café com leite à sua maneira: mistura uma certa quantidade de pó ao leite quase fervendo. Espera ferver e passa o conteúdo coando-o direto para uma xícara grande. Bebe-o devagar. Ao dar um gole percebe uma sombra do lado de fora de uma das janelas. Vê o vulto de Mephisto, vai até a porta e abre-a. Aos seus pés, a luz da manhã bate sobre o jornal do dia com a manchete: VOZ DE GEORGES (em off) “Querida irmã. Sei que entende de almas mais do que eu. Quando me fala das paixões da “KAISER MANDA AVIÕES BOMBARDEAR alma de Alberto, creio que refere-se às ESCOLAS E HOSPITAIS: 2OO MORTOS!” paixões latentes, n u n c a SD estarrecido lê exteriorizadas. Pois a manchete. a aeronáutica foi a Embola o jornal e sua única e faz uma fogueira tirânica paixão! com ele na porta Nunca amou nada da “Encantada”. ou ninguém além Os passantes dãoda aeronáutica e no como doido, seus modelos, por através de gestos A casa de Cabangu, Minas Gerais, onde nasceu SD. ele mesmo com o dedo ao inventados e construídos. Não mais o vi desde ouvido. A câmera aproxima-se do fogo até que se foi. Mas sei que o Alberto que Você que as labaredas tomem conta do quadro. conheceu é um morto-vivo! Não existe Ao afastar-se novamente mostra as labaredas Alberto Santos-Dumont sem o seu próximo de uma fogueira frente ao rosto de SD, numa projeto “número tal”! Não é possível sequer animada festa junina, em Cabangu, onde imaginá-lo sem os impulsos dessa energia todos dançam, cantam e brincam, menos ele. criadora ininterrupta. Sua vida foi como a de Por trás do fogo, o sombrio semblante de SD uma flecha disparada ao alvo por um é o único infeliz da festa de São João, com poderoso Maciste. E o acertou em cheio. Ao muitos balões acesos subindo aos céus. fazê-lo, abriu as portas à humanidade para o vôo mecânico. E ninguém mais quer saber VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off) da flecha, imóvel, inútil e desgastada, após “Irmão querido. Seu ceticismo é fruto das ter cumprido o seu papel.” grandes adversidades que está passando agora; não culpe o passado. Recebi cartas de SD arruma bagagens na papai e todos em casa estão “Encantada”. empenhados em ajudá-lo nessa crise terrível. ContarCorte para SD em Cabangu, lhe-ei, por isso, um segredo, passeando a cavalo pelos que talvez o alivie um pouco. lindos grotões das gerais, Quando o Sr Santos-Dumont num belíssimo dia. Um esteve no Convento, deixou pequeno bimotor, muito com a Madre Superiora, dois barulhento, sobrevoa a envelopes. Um com uma região. expressiva quantia em dinheiro brasileiro, como SD de novo na “Encantada”, donativo ao Convento, e "... passeando a cavalo pelos grotões..." atormentado, nervoso, outro, aromatizado em 137 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND almíscar, para mim, contendo um cheque de 50 000 francos de um Banco Suíço e um bilhete pedindo-me para enviá-lo a Você, pois sabia que atravessava dificuldades financeiras. Pedia-me também que nada lhe dissesse. Enviei o dinheiro para papai, rogando-lhe que também lhe ajudasse. Você sabe, a situação tem sido difícil em nossa casa paterna. E, como vê, o Sr Santos-Dumont não é apenas uma flecha morta. Seu coração é sensível, e, apesar de dolorido, está vivo e pulsando por Você, por nós e pela fé.” ÁUSTRIA RENDEM-SE AOS ALIADOS” “CONFERÊNCIA DE VERSAILLES ESTABELECE CONDIÇÕES DE ARMISTÍCIO” SD, sempre solitário, auxiliado apenas por uma mucama, organiza uma grande bagagem para viagem. Corte para dentro do trem, na baixada fluminense, indo para o Rio. Sentado, ele observa uma esquadrilha de biplanos exercitando-se sobre o Campo dos Afonsos. Seu rosto parece de pedra. Imagens da Primeira Grande Guerra. Ataques aéreos furiosos de biplanos com bombas e metralhadoras cuspindo fogo sobre vilas e lugarejos. Bombas espatifam frágeis telhados de cerâmica, e arruínam estábulos e construções de madeira. Rostos de pilotos com óculos e capacetes de couro. Superposição com máscaras de gases. Canhões antiaéreos acoplados em vagões de trens. Esquadrilhas aéreas em vôo. VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off) “Mano. Nada disse ao Sr Santos-Dumont e Você precisa convencer-se de que ele é o seu maior e mais leal amigo. É preciso também que pare com suas lamúrias e enfrente a vida de cabeça erguida. Você não é um tolo nem um pusilânime. Todos temos orgulho de Você em nossa casa, e ninguém se queixa dos sofrimentos que estamos passando, nem o culpamos por eles. Sabemos que Você é uma vítima desses acontecimentos e da crueldade humana, que tem boa índole e, como bons cristãos, o amamos, rezamos por Você e o ajudamos com tudo o que possuímos, sem lamentar.” SD, na solidão da noite, na “Encantada”, chora copiosamente. VOZ DE GEORGES (em off) “Querida mana. Minha vida é toda uma sequência de desastres. E o maior deles é a situação em que coloquei nossa família com minhas trapalhadas. Tudo parece cair sobre minha cabeça como um terrível castigo, sem deixar-me opções. Não sou talhado para a guerra. Não possuo talento para sangrar homens e estripá-los em batalhas. Sei apenas usar o pincel e a pena. Não devia ter-me dito sobre a ajuda de Alberto. Meu orgulho agora impede-me de escrevê-lo. Nunca havia mencionado a ele minhas dificuldades, e ainda não sei como ele o soube; espero que não tenha sido Você, querida irmã, na sua boa fé e ingenuidade cristã. Sei que nosso pai assumiu a ajuda como dívida e que ela foi a salvação de um tenebroso impasse. Mas isso ainda não basta para o orgulho com que fui criado desde a infância.” SD no convés do moderno “La Bohéme”, num belo dia, aproximando-se da Ilha da Madeira. Um hidroavião sobrevoa o navio e pousa perto do cais. Sequência de um passeio solitário de SD pelo mundo: Egito, Grécia, Arábia, Itália, nos clássicos cartões postais. Sempre, um ou mais aviões interferem nos “cartões postais” em movimento. VOZ DE GEORGES (em off) “Querida irmã. Enfim acabou-se a maldita guerra. A Europa hoje é um mar de aleijados e mutilados. Músicos sem braços, escritores sem mãos, pintores sem olhos, atores sem pernas, cantores sem voz, e mais restos humanos arrasados e espalhados por todos os cantos. Mas o pior é que o aleijado mental ainda sobrevive e permanece impune depois Manchetes de jornais brasileiros: “2 DE NOVEMBRO DE 1917: ALEMANHA E 138 PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME da catástrofe que provocou. A saída que vejo para a Humanidade é a experiência de Lenin, na Rússia Soviética, mas não creio que possa durar muito tempo. Aleijados mentais proliferam-se por todas as partes e também lá já devem estar realizando o seu trabalho de destruição. Só não sou ainda um comunista porque não consigo ser ateu. Confesso-lhe que tentei, mana, e perdoe-me o desabafo. Sinto a falta de Alberto mas não concordo com Você quando diz que ele é o meu maior amigo. Ele é o meu único amigo! Peço-lhe que procure notícias dele, passelhe o meu novo endereço e as minhas lembranças. Diga-lhe que tenho saudades.” idade, abre a porta. Por trás dela, uma bruaca imunda, de uns quarenta, surge, segurando na mão uma coxa de pato, mastigando-a com a boca aberta. SD chega em Paris e vai de táxi até o seu velho endereço no Champs Elysées. Desce do automóvel e começa a refazer a pé, o percurso que gostava de fazer nos bons tempos. A Paris outonal está linda, mas as pessoas estão feias e pobres. Mutilados de guerra, em muletas, cadeiras de rodas ou pedindo esmolas a todo instante. SD ia repetir mas um voz rouca de homem, vinda de dentro do cortiço se fez ouvir. SEQUÊNCIA 87 Ao chegar na complicada travessia da Place de la Concorde, reconhece o guarda que sempre parava o trânsito para ele passar. Alegra-se, um raro sorriso começa a esboçarse em seu rosto, e, sem pensar, começa a atravessar perigosamente a rua em direção ao gendarme. Este, furioso, dá um estridente apito, faz um sinal autoritário para que se volte e olha bem nos olhos de SD. O GENDARME (vociferando) - Onde pensa que vai, velho idiota! Quer morrer? O rosto de SD transfigura-se. A tormenta o abate novamente. Corte para um táxi parando na porta de um cortiço num bairro infecto de Paris. SD, elegante, desce do carro, sobe uma pequena escada até a porta do cortiço e bate. Uma menina escrofulosa, de uns seis anos de A BRUACA (olhando SD de cima abaixo, sem interromper a barulhenta mastigação) - O que deseja? SD (olhando o envelope de uma velha carta) - O Senhor Georges Goursat reside nesse endereço? A BRUACA - Quem? A VOZ DE HOMEM - É o artista, mulher, o tal do Sem! SD balançou positivamente a cabeça. A BRUACA - Ah, sim! Mudou há tempos. Deve ter recebido algum dinheiro. Pagou o que devia por aqui e foi-se. SD - Deixou algum endereço? A BRUACA - Qual! Mal deu boa noite. Pegou suas coisas e sumiu. SEQUÊNCIA 88 Corte para SD na estação ferroviária comprando passagem para Biarritz. SD dentro do trem observa uma esquadrilha aérea exercitando-se sobre a sua conhecida paisagem das propriedades dos Rothschild, onde pousou com Machuron após sua primeira ascensão em balão esférico (a saudosa cena do passado repete-se diante dos seus olhos envelhecidos e tristes que, por alguns instantes, se tornam alegres e 139 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND rejuvenescidos). O trem chega a Biarritz. SEQUÊNCIA 89 SD desce de um táxi no Sanatório de Biarritz e entra. Prado na estação de Biarritz recebe o jovem Jorge Villares. Neva forte. Ambos estão pesadamente agasalhados. No seu apartamento privativo no Sanatório, SD, completamente enrolado nas cobertas, como se fosse uma múmia, deixando de fora apenas o nariz para respirar, acorda sobressaltado em meio aos pesadelos. PRADO (ajudando Jorge com as bagagens de mão) - O quadro não é bom, Jorge. Mas os médicos dizem que está melhorando depois que cheguei. SD (sobressaltado na cama) - Eles não podem!... Eles não podem!... JORGE Entram um médico e uma enfermeira e aplicam no trêmulo e doentio SD uma dose cavalar de calmante. Ele não opõe resistência ao tratamento. Aceita-o passivamente, balbuciando “eles não podem...” - E como ele está agora, Dr Prado. PRADO - Fraco. A doença está progredindo mas não é a maior preocupação. Mentalmente tem períodos de melhoras e recaídas. Fica a repetir “eles não podem..., eles não podem...”, mas eles quem, meu Deus?! Corte para SD sentado numa cadeira de vime ao lado de uma janela JORGE do sanatório, enrolado - Precisará companhia num cobertor. É dia e permanente. A família neva lá fora. SD está enfim começou a me catatônico e imóvel. ouvir. Não poderá ficar "... seus olhos brilham..." Batem a porta. Ele não sozinho nunca mais. Seu se move. Repetem a batida com mais força. telegrama decidiu a questão. Nada. Enfim ouve-se o ruído de uma chave e entra Prado, também envelhecido, seguido Entram no táxi e saem. por um enfermeiro. SEQUÊNCIA 90 PRADO (meio afobado) - Alberto! Alberto! A limusine de Adrien pára frente ao edifício de apartamentos onde mora Georges, num bairro pobre de Paris. (Legenda: Paris, agosto de 1928) Georges aguardava-o na calçada. A porta de trás da limusine abre-se e ele entra. Dentro da limusine, Adrien e Georges cumprimentam-se calorosamente. SD reage. Seus olhos brilham. Um sorriso chega a despontar em seus lábios. Ele levanta-se com dificuldade diante do estarrecido Prado. SD (abraçando Prado em prantos) - Pradô, meu amigo. Você não se esqueceu de mim... ADRIEN (envelhecido, mas forte e saudável) - Vinte anos, meu velho! E milhares de fios 140 PARTE 3 brancos em nossas cabeças, hein? Senti falta de Você, Georges. GEORGES (também envelhecido, mas fraco e acabado) - Eu também de Você, Adrien. Como está em Avignon? ADRIEN - Dedico-me a editar e revisar os livros do meu filho Jean Paul, o jovem filósofo revelação da Sorbonne. Mas a maior parte do meu tempo entrego-o às delícias da agricultura e do pastoreio no campo. Nunca entendi tão bem Dionisius como agora, meu caro, só faltou-me tê-lo visto em carne e osso. GEORGES - Pois, para mim, a vida tem sido uma madrasta, Adrien. Não sei quantos pecados cometi para merecer tantas desditas. ADRIEN - Ora, Georges, não fique se culpando. Nossos arquivos estão à nossa espera. Hoje é o dia do resgate, meu amigo; o resgate da História! GEORGES (amargo) - A História é um pesadelo do qual não posso despertar. ADRIEN - Trouxe comigo toda a documentação e já peguei ao tabelião o alvará de liberação. É só chegar ao jornal e pegar tudo. Contratei uma camioneta e dois homens. Vamos levar tudo para o meu castelinho em Avignon, inclusive Você. E por tempo indeterminado! Só o solto depois de vê-lo gordo e bem disposto. Enquanto isso trabalharemos nos arquivos, desenterrando os nossos tesouros. Tudo regado a bons vinhos e excelente comida do campo, hein? Que tal? SEQUÊNCIA 91 (O novíssimo “Le Temps”) A limusine estaciona em frente ao novíssimo “Le Temps”, que agora ocupa um grande SANTOS DUMONT/O FILME arranha-céu, estilo art-deco, com néons e luminosos na fachada. Começa a anoitecer em Paris. Os dois entram no imenso hall de mármore de carrara, no interior do edifício. Um funcionário uniformizado os aguarda. O FUNCIONÁRIO - Sr Adrien Hébrard? Adrien cumprimenta-o. O FUNCIONÁRIO - Sigam-me por favor, cavalheiros. Os três entram por uma porta térrea que dá para um interminável corredor interno, e, após percorrê-lo quase todo, descem dois lances de escada para o subsolo e entram por uma porta de uma sala cheia de grades e pesadas portas de cofres. Os carregadores contratados por Adrien já aguardavam. Uma funcionária do setor os atende. Adrien entrega-lhe os papéis, a moça os confere e dá ordens para os funcionários dentro do cofre. A MOÇA - Lotes número 38, 39, 40, 41... Os funcionários vão trazendo as caixas lacradas com assinaturas sobrepostas aos lacres, passam-nas ao exame de Adrien e Georges, que conferem os lacres e o sobrescrito de conteúdo, e, depois, entregamnas aos carregadores, que as levam embora. A MOÇA - Lotes 48, 49, 50, 51, 52.... Georges começa a ficar aflito. Confere várias vezes o documento que lista o conteúdo dos lotes. Seus arquivos, rotulados “Aeronáutica”, estão indicados com os números de 57 a 62. Ele ouve então a moça a ditar. A MOÇA - Lotes 63, 64, 65, 66... 141 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND GEORGES (interrompendo-a) - Espere, moça, e os lotes 57 a 62? LAZARE (presunçoso e petulante) - A que devo essa repentina visita, Sr Adrien, para não dizer invasão? A moça pega novamente a lista e confere-a. ADRIEN (quase sem se conter, abanando os papéis do tabelião na cara de Lazare) - A que deve? Sabe que dia é hoje, Sr Lazare? (e, como sempre, indo direto ao assunto) O que foi feito dos arquivos sobre SantosDumont? A MOÇA - Tem razão, Senhor, saltei esses números. É porque as caixas devem estar fora de ordem. Um momento, sim? Entrou no cofre e lá demorou-se por algum tempo. Georges e Adrien entreolhavam-se aflitos. Enfim, a moça retornou. LAZARE (cínico, com uma ponta de arrogância) - Eu não sei, Sr Adrien. Como é do seu conhecimento nada tenho que ver com esses arquivos. Eram secretos também para mim, lembra-se? A MOÇA - Não temos os lotes 57 a 62, senhores, não sei o que dizer... Georges quase desmaiou, ficou branco feito cera. Adrien avermelhou-se de ódio. ADRIEN (contendo Georges que já queria partir para cima de Lazare) - Não nos trate como idiotas, Lazare. Exijo respostas! ADRIEN - Esses patifes! LAZARE (olhando sem interesse os papéis que Adrien voltava a lhe exibir e continuando a demonstrar desprezo por Georges) - O que sei é que houve problemas nas mudanças para cá, Sr Adrien. Ouvi falar de um incêndio num dos caminhões. É tudo que sei, posso mandar averiguar; e é só o que posso fazer. Agora, se me derem licença, senhores, sou candidato a uma cadeira na Câmara de Deputados e estou em plena campanha... (toca a campainha, chamando os assessores, que entram imediatamente) Reparou que Georges preparava-se para fazer o bafafá. Conteve-o. ADRIEN - Ninguém aqui tem haver com isso, Georges. Vamos ao Lazare, siga-me. SEQUÊNCIA 92 Georges e Adrien de caras feias, sobem no elevador. No 12º andar descem e entram decididos pela porta do Gabinete onde se lia “DR LAZARE WEILLER - PRESIDENT DIRECTEUR”. A secretária tenta contê-los na ante-sala mas Adrien já havia aberto a porta do Gabinete de Lazare e entrava, seguido de Georges e da apavorada secretária. ADRIEN (sem dar bola para eles) - Sei que está metido nisso, Lazare. E vai pagar caro, eu prometo. Quem pensa que é? E quem pensa que eu sou, garoto? Vai se arrepender! Sei que Benett não precisa mais do Banco de seu pai, que, por sua vez, está se arruinado por causa das suas pretensões políticas... Lazare, agora gordo e mais velho, vestido com elegância excessiva e de mau gosto, foi pego de surpresa com dois de seus assessores, mas não perdeu a hipocrisia. Dispensou educadamente a secretária e os assessores e dirigiu-se, em seguida, a Adrien, sem sequer olhar ou cumprimentar Georges. LAZARE (interrompendo-o, com os assessores ao seu lado, todos de cara fechada) - Sr Adrien, não tenho de ficar aqui escutando suas acusações e nem sendo ameaçado por 142 PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME jornalistas fracassados. Procurem seus advogados, nós temos os nossos! Hoje as coisas resolvem-se assim no mundo civilizado dos negócios, Sr Adrien. - Ora, Hipólito, aquele patife merecia muito mais do que umas boas pancadas. Eu só achei que não valia a pena Georges sujar as mãos na cara daquele porco! ADRIEN - Isso é o que Você pensa, menino! Em pouco tempo vai ver que não é bem assim! Sim, vamos aos advogados. Mas Você pode começar a contar, nos dedos de uma mão, os seus dias aqui, seu canalhazinho insolente! Vamos Georges! Vamos ao Hipólito! (e sai arrastando Georges sob os olhares cínicos e petulantes de Lazare e seus puxa-sacos) HIPÓLITO - Aquele “patife” a que se refere é o diretor presidente do maior jornal da Europa, papai. E hoje, ser diretor de um jornal como o “Le Temps” é muito mais do que foi no seu tempo, o senhor sabe disso... SEQUÊNCIA 93 Adrien e Georges entram no luxuoso escritório de advocacia do “DR HYPPOLITE HÉBRARD”. Este já os esperava em sua sala de trabalho. HIPÓLITO - Não é um pouco tarde, papai? Não poderíamos deixar para amanhã? Hoje eu... ADRIEN - Hipólito, eu não saio de Paris sem ter resolvido esse assunto com todos os pingos em seus devidos iis, entendeu? Portanto, se quiser, pode avisar sua esposa que hoje não haverá Teatro, nem Ópera, nem festas ou seja lá o que for. Vamos sentar e trabalhar. Hipólito aquiesce, rendido. GEORGES - Não vai acreditar no que acabamos de viver, Dr Hipólito. O tipo mais sórdido de vingança que pode haver, não somente contra mim, mas contra o seu pai!... HIPÓLITO - Lazare ligou-me e deu-me a sua versão. Se verdadeira, ainda bem que meu pai o conteve, Georges, do contrário as coisas não ficariam boas para Você... ADRIEN ADRIEN - Eu sei muito bem, meu filho. Mas sei outras coisas que Você e o imbecil do Lazare não sabem, mas agora vão ter de aprender. HIPÓLITO (impaciente) - Essa discussão parece ser demorada, papai. Vamos direto ao assunto, como o senhor gosta de dizer. Lazare ofereceu um acordo de 50 mil francos para por fim nessa confusão. Penso que está sendo até generoso, diante do que ocorreu... GEORGES - 50 mil francos? Ora, Dr Hipólito, francamente! É toda uma vida que está em jogo. E não digo apenas a minha, mas também a do seu pai e a do Sr SantosDumont, essa última, principalmente. É o homem que criou a aeronáutica moderna, e naqueles arquivos estavam todas as provas incontestáveis! HIPÓLITO -Eu não confiaria muito nesses argumentos em juizo, Georges. Lembre-se que o Sr Santos-Dumont não é um francês, nem um europeu; é um brasileiro! E destruiu ele próprio os seus arquivos. Conheço juizes que a última coisa que leram sobre o Brasil foi escrita por Villegagnon há mais de três séculos. Acham que por lá habitam índios selvagens e jacarés, e não cientistas inventores e aeronautas. Quanto a ser o pai da aeronáutica, eu também conheço juizes que perderam famílias, parentes, amigos e até pedaços do corpo estraçalhados por essas máquinas na última guerra. Lamento, 143 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND Georges, ninguém mais, diabos, lembra-se de quem foi esse Santos-Dumont. número do telefone de lá. Passe-lhe também esse número. O próprio Benett vai desejar dar-me a resposta pessoalmente. Vamos Georges. (levanta-se e puxa o aparvalhado Georges pelo braço, e saem) GEORGES - Mas é justamente para isso que servem esses arquivos, para resgatar a verdade! Lá tem coisas que o mundo e o senhor precisam muito conhecer. HIPÓLITO - Mas... papai, papai! HIPÓLITO - Ao que nos consta hoje, não sabemos se esses arquivos realmente existem, Georges... SEQUÊNCIA 94 Adrien e Georges chegam ao café Diderot. Adrien vai até o maitre, orienta-o sobre o telefonema, e pede bebidas, enquanto Georges senta-se numa mesa e aguarda com a cara triste e pensativa. Adrien chega e sentase também. Durante esse diálogo Adrien ficava aborrecido, pensando com seus botões, sem prestar atenção no que falavam. Ao perceber Georges novamente irritado com Hipólito ao ponto de uma briga séria, interrompeu-os. ADRIEN - Um milhão de francos, Hipólito! Um milhão em “cash” como dizem os homens de negócios de hoje, não é?E para amanhã! Esse é o nosso acordo.Depois de amanhã será o dobro.Estes prazos são o limite da minha paciência! GEORGES - Adrien, Você está mais louco do que eu, homem?! Um milhão?! Eles querem nos ver arrasados e maltrapilhos, acha mesmo que... E o seu filho, hein? Que pustulazinha! Oh, perdoe-me, Adrien. ADRIEN - Não escolhemos nossos filhos, Georges. Você não os tem por isso não entende certas coisas. Mas é preciso que comece a entender alguma coisa desse novo mundo. Hipólito não é o canalha que pareceu a Você, acredite. É apenas um advogado, sem qualquer genialidade, admito, mas que, por isso mesmo, está se saindo muito bem. Assim como Lazare. Só que hoje, escaldei, e perdi a paciência. Até Georges surpreendeu-se HIPÓLITO - Como, um milhão?! Ora, papai, Lazare nem discutirá essa proposta. Não gastará mais de 20 mil para levar essa causa para as calendas gregas... Pondere, papai, Lazare quer negociar, mas assim... ADRIEN - Chegou a hora de Vocês, garotos, aprenderem certas coisas, Hipólito. Você vai ligar ao Lazare e dizer que não aceitamos menos de um milhão, com prazo de solução ainda para hoje, e depósito em dinheiro amanhã pela manhã. Diga-lhe para falar ao Benett agora (olha seu relógio de pulso) ainda é expediente em Nova York - e passarlhe um recado meu de três palavras: “mon petit cahier”. Precisa anotar? Então anote. Georges e eu vamos esperar a resposta no café aqui embaixo, o da esquina da boulevard Diderot, sei que Você sabe o O garçom chega trazendo champagne Don Perignon e duas taças. GEORGES - Don Perignon? comemorando? O que estamos ADRIEN - Comemoração mesmo nenhuma, Georges. A perda dos arquivos de Santos-Dumont é impagável. Mas quando se ganha um milhão de francos é justo que se beba ao menos um 144 PARTE 3 bom champagne, não? (e oferece um brinde) Georges, um pouco a contragosto, aceita o brinde. GEORGES (após sorver o conteúdo da taça de um só gole) - É, reconheço que não entendo mais nada. E que história é essa de “mon petit cahier”? Adrien dá uma sonora gargalhada. O garçom aproxima-se. O Garçom - Senhor Hébrard, o telefonema que o senhor aguardava... ADRIEN (ainda rindo e levantando-se) - Conto a Você num minutinho, Georges, não devo deixar Benett aguardando na linha, numa ligação de Nova York. Volto já. (e sai) Georges fica só, pensativo e acabrunhado, duvidando da loucura do amigo. Serve outra taça de champagne, bebe-a, e mais outra. Adrien demora-se. Mais outra taça. Enfim, Adrien retorna, com um largo sorriso nos lábios. ADRIEN - Tudo resolvido, Georges. Vamos a outro brinde! (enche a sua taça e completa a de Georges, esgotando o conteúdo da garrafa) Rapaz, c’est fini! Você enxuga mesmo, hein? Garçom, traga-nos outra garrafa! GEORGES (brindando novamente, mas ainda incrédulo) - O que está resolvido, Adrien? ADRIEN (após virar de um só gole) - O que? Ora, o dinheiro, bolas! Inclusive, Georges, (mudou o tom de voz e a expressão do rosto para dizer algo sério) tomei a liberdade de dizer a Hipólito que 500 000 devem ser pagos diretamente ao resgate da hipoteca das terras de seu pai, no Banco da Agricultura... GEORGES (interrompendo-o) SANTOS DUMONT/O FILME - Como soube disso? Só mesmo o “informadíssimo Hébrard”! A família manteve um sigilo quase sepulcral de tudo!... ADRIEN (falando baixinho, aproximando o seu rosto do amigo) - Sei tudo sobre Você e suas enrascadas, e também das que Você meteu seus pais e sua família. Desde que fui para Avignon torneime Conselheiro do Banco da Agricultura. Foi por mim que aprovaram a hipoteca das terras do seu pai naquele valor. Seu próprio pai veio agradecer-me. É um grande homem. Poucos pais que conheço dariam tudo o que tem pela liberdade de um filho, como ele fez. Georges estava completamente apatetado, não conseguia articular palavra. ADRIEN (continuando) - O resto do dinheiro é todo seu. Não preciso de mais dinheiro em minha vida. Tenho mais do que o suficiente e meus filhos estão melhor ainda do que eu. Amanhã já estará depositado, em seu nome, no Banco da Agricultura. (e, voltando a sorrir) - Vamos, anime-se, Georges, o que vai fazer com sua nova fortuna? GEORGES (ainda inteiramente surpreendido) - Eu... eu... eu..., não sei ainda. (e recuperando-se) - Ora, Adrien, diga-me, o que aconteceu? Como conseguiu? É tudo tão rápido, estou confuso... ADRIEN (brincalhão) - Até se esqueceu do “mon petit cahier”, não é, meu velho? É a chave da história. (e, baixinho) - Vou dizer-lhe o que significa: esse é o apelido que o Benett dava ao sexo da sua amante, a ex-senhora Henry White, naqueles bons tempos do “Le Temps”, lembra-se dela? GEORGES (tapando a boca de pasmo) - Martha? Sim, claro, era linda. Quer dizer que Você também, hein, seu patife?! (começou a rir, pela primeira vez) 145 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND ADRIEN (rindo também) - Sim, e só hoje Benett o soube! (gargalhadas) - Achava que era exclusiva dele. Ficou uma “arara”. Mas é hipócrita mais do que suficiente para não perder a fleuma. Sabe o que me disse ao telefone? (mais gargalhadas, o garçom e as pessoas das mesas vizinhas olhavam-nos com reprovação, mas ele não se continha e continuou rindo e imitando Benett ao telefone) - Vou lhe devolver outras três palavras que bem merece, seu grande patife: “son of bitch”! (mais gargalhadas estrondosas) se viesse à tona uma história dessas? ADRIEN - Uma história dessas nunca viria à tona, Georges, a não ser que Benett fosse louco. Só ele e eu, e agora Você, sabemos disso. Com esse acerto nos sentimos pagos e ele sabe que pode confiar nisso. Morre aqui. Quanto à Martha e Eva, são ambas belas parisienses, cosmopolitas, satisfeitas intelectualmente, cultas e soberanas de si mesmas. Iriam rir dessa história, como nós. Rir do Benett, é claro. Também elas tiveram de aturar a prepotência daquele garanhão americano, até mesmo Eva, minha esposa. Martha cedeu para se vingar de White, com quem casou por interesse familiar, e não por amor. Em verdade não suportava o marido Enfim consegue conter-se e continua. ADRIEN - O Benett é sério candidato a Presidente dos Estados Unidos. Lá ele é o pai da moral e da religião mais castiça; sua plataforma principal é dar escolas moralistas para todas as crianças americanas. (começa a rir novamente) - Já pensou se seus inimigos - que são muitos e tão poderosos quanto ele - ficam sabendo que aquele pai da moral, da religião e da educação chamava o sexo da sua amante, por sinal, então esposa de seu maior amigo, de “my little notebook”? GEORGES - E quanto aos arquivos de Santos-Dumont? Será que aqueles canalhas... ADRIEN - Benett jurou-me, e pareceu-me sincero, que foi acidente mesmo. (e, em off sobre a cena da explosão do caminhão, com a cara cínica de Mephisto dando gargalhadas, passando em 1º plano) - O caminhão estava reabastecendo quando tudo foi pelos ares. Não sabiam ainda quais arquivos tinham sido perdidos. (de novo, em in) - Ele mesmo lamentou a perda, Georges, e não estava sendo hipócrita... São artes do demônio... elas existem, sabia? Mas, diga—me, o que pretende fazer com a sua pequena fortuna? GEORGES (agora já solto nas risadas) - Começo a entender... mas Você de fato aprendeu bem nessa escola, hein? Tornou-se um canalha igual ou maior! Isso é chantagem, Adrien... ADRIEN - Prefiro dizer vingança, meu caro, e da melhor qualidade! É o grande deleite dos deuses; às vezes concedido a alguns mortais. E Você não sabe da outra: pedi também a cabeça do Lazare! Estará no olho da rua amanhã mesmo! E o filho da mãe do Benett é tão canalha que ainda me disse (volta a imitar Benett): - Nem precisava exigi-lo, meu nobre canalha, será um prazer atendê-lo; já não precisamos mais daquele palerma! (ambos dão outra grande gargalhada) GEORGES - Acho que em primeiro lugar ajeitar minha vida que está num caos. Reconciliar a família e voltar às boas com os meus pais, que estão bem velhos. São moralistas e religiosos de verdade, mas não como a pústula do Benett, mas como camponeses, legítimos franceses que são. Sofreram muito com minhas desditas. Depois quero realizar o velho sonho de ir ao Brasil visitar minha irmã e ver o nosso velho amigo e herói Santos-Dumont. GEORGES (conseguindo conter o riso) - E Martha? E Eva, sua esposa? O que diriam ADRIEN 146 PARTE 3 - Santos-Dumont!... toda essa história devemos a ele, pobre homem. Sua famosa sorte parece que não o protege mais. Há pouco participei da revisão francesa de uma grande enciclopédia editada em mais de 40 línguas e financiada por bancos americanos. Vi o verbete do seu nome; é uma bazófia! Tiraram-lhe toda a parte do mais pesado que o ar, Georges, e ainda inventaram-lhe um balão chamado “A Música”, que sei que nunca existiu. Eis no que se transformou a imprensa dita “moderna”. GEORGES - De fato procuram eliminar todos os registros dos seus feitos. E o mais grave tem sido a criminosa omissão do seu nome em tudo que diz respeito aos começos da aeronáutica. E sobre os irmãos Wright, o que publicaram? ADRIEN - Nada, meu caro, absolutamente nada. Nisso aprenderam comigo. Estão guardando-os para a hora certa, entendeu? O momento não é propício, muitos que sabem do embuste ainda vivem... E quanto a Você, Georges, e à sua arte, o que andou fazendo? GEORGES - Ao deixar o jornalismo, abracei os movimentos renovadores do surrealismo e da vanguarda modernista, com Marcel Duchamp, Picabia, Picasso, Max Ernst e muitos outros. Mas também deixei-me cair na miséria e na ruína, e creio que perdi o bonde da história, Adrien. ADRIEN - Os homens verdadeiramente profundos, Georges, não sobem; enterram-se. Muitos anos depois de suas mortes, descobre-se, de repente ou pouco a pouco, o que na realidade valiam. A consagração oficial entroniza apenas os comediantes e os fantoches da arte, meu caro, enquanto os verdadeiros criadores ficam na sombra. GEORGES - Talvez seja assim, Adrien, e o melhor exemplo certamente não será o meu, mas o SANTOS DUMONT/O FILME de Santos-Dumont. Desde que se foi não mais o vi. Mas deve estar sofrendo terrivelmente por esse injusto boicote de que é vítima. ADRIEN - Soube que andou enlouquecido e internado em Biarritz, mas a última notícia que tive já era bem melhor... Onde estará ele agora?... GEORGES - Recebi ontem uma carta de minha irmã (olhou seu relógio de pulso) - se o fuso horário não me engana e o Cap Arcona não atrasou... SEQUÊNCIA 95 A voz de Georges fica em off sobre a imagem da chegada do Cap Arcona na Baía da Guanabara numa tarde bela com o Pão de Açúcar (já com o bondinho) e o Corcovado (já com o Cristo Redentor) ao fundo. GEORGES (continuando em off) ... está entrando agora na Baía de Guanabara. Os brasileiros, um tanto arrependidos pelo descaso para com ele, quando mais precisou do apoio de sua pátria aqui em Paris, tentam recuperar tardiamente o erro dando-lhe uma estrondosa recepção, segundo minha irmã, com preparativos ainda mais retumbantes do que a de 1903... O Cap Arcona entra na Baía e segue para o cais. Vários barcos estão a comboiá-lo. Um hidroavião trimotor, da empresa Condor, batizado às pressas de “Santos-Dumont”, desliza sobre o mar decolando perto do cais, e voando rasante em direção ao navio, no convés do qual estão SD e Jorge Villares. Ao passar pelo navio jogam do avião um rolo de papel, dentro de um tubo de borracha, que cai sobre o convés. Jorge corre para pegálo, mas um marujo se antecipa e entrega-o a Jorge. Jorge abre o rolo de papel e vem sorridente na direção de SD. JORGE - É uma mensagem, tio Alberto. Vou ler para o senhor. (e começa a ler a mensagem em 147 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND voz alta, empostada, e orgulhoso do tio) - “Do alto do hidroavião que tem o seu glorioso nome, precedendo a recepção que lhe preparou o povo da Capital do Brasil, vimos apresentar ao grande brasileiro que realizando a conquista dos ares elevou o nome da pátria no estrangeiro, os nossos votos de boa vindas...” 2), com o som das explosões das bombas jogadas sobre a cidade de Santos, como se fosse também o eco, ainda em áudio, da explosão do hidroavião sobre o mar. SD (balbuciando) Quantas vidas sacrificadas por minha humilde pessoa!.... Corte para o português da Mas SD não prestava venda em Guarujá, atenção à leitura empolada voltando para o balcão do sobrinho. Seus olhos "SD vira o "Santos-Dumont" cair e naugragar..." contando o troco de Jorge, ansiosos e preocupados ainda balançando a seguiam a manobra imprudente do cabeça em sinal de reprovação pelo hidroavião ao fazer um retorno perigoso a bombardeio. poucos metros acima da linha d’água. Na manobra, o infeliz piloto permitiu uma leve O PORTUGUÊS (olhando para os lados para glissada da aeronave, fatal àquela altitude, e ver se encontrava Jorge) a ponta da asa direita tocou a água, - Senhor?! Senhor? O seu troco! (e percebendo derrubando o hidroavião que espatifou-se que já se fora) - Esses apressadinhos!... numa horrível explosão. Em poucos segundos o oceano engoliu todos os Corte para Jorge correndo pela rua da Vila destroços; alguns poucos pedaços em de Guarujá, desesperadamente, segurando o chamas ainda boiavam sobre a água. Santos- chapéu com uma das mãos, a gritar de Dumont vira o “Santos-Dumont” cair e aflição, como um louco. naufragar, diante dos olhares estarrecidos dos passageiros e da tripulação do navio e das JORGE embarcações que o comboiavam; sem deixar - Tio Alberto! Tio Alberto! dúvidas sobre a possibilidade de Corte para SD virando-se para sobreviventes. dentro do apartamento do hotel. A câmera vai aproximando-se em close do Na poltrona que ocupava rosto arrasado de SD em lágrimas até frente à mesa do café, viu enquadrar somente os Mephisto sentado confortável seus dois olhos tristes, e petulantemente, sob a forma abertos e lacrimejantes. de Albertinho, aos 12 anos de idade, porém com as feições da criança original alteradas SEQUÊNCIA 96 para uma expressão endiabrada e maliciosa, Ao afastar-se, no movimento oposto, agravada pelas agressivas aparentemente sem cortes, a câmera já s o b r a n c e l h a s encontra SD na janela do Hotel de La Plage, pontiagudas. O garoto na Praia do Guarujá, exatamente como o vestia uma roupa igual a deixara no início do filme (final da Sequência da aparição anterior com 148 SD aos 12 anos de idade PARTE 3 a indefectível capa preta forrada de veludo carmin. Sob o olhar atordoado de SD, ele tira do bolso do colete uma charuteira que estava na oficina secreta destruída. Retira dela um charuto e o acende, como um connaisseur, usando o fogo saído da ponta do dedo indicador da sua mão esquerda, acedendo primeiro o braseiro e depois mordendo o outro lado, sem perder o sorriso cínico e irreverente. SD - Vocês? ... Vocês não podem... MEPHISTO (com a mesma voz gutural) - Homem voa, Albertinho? (dá uma gargalhada, que logo interrompe com cinismo) - Então? Satisfeito com vossa obra? (outra gargalhada) - Ora, Alberto, não entristeça-te! Sabes que, por força da nossa arte, não é possível ao Homem inventar a locomotiva sem que invente, também, o descarrilhamento. SD (resoluto, como se tivesse recuperado, instantaneamente, a saúde) - Vamos embora daqui! (e sai em direção ao quarto) SANTOS DUMONT/O FILME mas essa é uma questão de estilo. Ficai agora com o seu epílogo trágico, que haverá de saciar vossa curiosidade e sede de saber. Muito obrigado. (faz uma reverência e a câmera aproxima-se em macro do seu olho esquerdo até tê-lo todo na tela, ele pisca e desaparece) Corte para Jorge subindo os degraus da entrada do hotel, esbaforido, correndo, segurando o chapéu e gritando feito louco. JORGE - Tio Alberto! Tio Alberto! Ele sobe as escadas sob os olhares dos hóspedes e serviçais que agora enchem o hall de entrada e chega ao corredor, em corrida estabanada, trombando em pessoas, em carrinhos de café, em garçons e camareiras, até chegar à porta do apto 8, que não se abre por fora. Ele procura a chave, mas não a levara. Então soca a porta com força. JORGE (aos berros) - Tio Alberto! Tio Alberto! No caminho SD retira o cinto de seda do seu robe-de-chambre, enrola-o pelas pontas nas duas mãos e dá um forte puxão, como se testasse a resistência de uma corda. Ao chegar à porta ouve a voz de Mephisto. Garçons e camareiras chegam para acudi-lo. Ele tenta forçar a porta com os ombros, mas não consegue. Uma camareira chega correndo com a chave mestra, mete-a na fechadura, abre-a e Jorge escancara a porta, entrando na ante-sala, seguido pelos outros. MEPHISTO - Não te culpes, Alberto. Esse mundo não é mais o teu. O mundo é dos boçais! (e dá outra gargalhada) A câmera mostra o primeiro alvo do olhar de Jorge: a poltrona vazia! Um vento sopra a cortina quase transparente da janela onde estava SD. SD passa pela porta e bate-a por trás dele com energia. JORGE (farejando o ar) - Hum!? Parece cheiro de tabaco?!... MEPHISTO (levantado-se e caminhando em direção à câmera) - Respeitável público! Aqui encerro minha participação nessa história que, além de verdadeira, é instrutiva e reveladora. Sinto não ter vos dado as doses de romance, sexo e violência a que estão habituados nessa sala, A CAMAREIRA (também farejando o ar e esfregando-se) - Eu não sinto cheiro nenhum, doutor, sinto apenas uma friagem esquisita... Um garçom chega perto da mesa do café, vê a charuteira com as iniciais “SD”, e embolsa149 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND SEQUÊNCIA 98 (Réquiem) a furtivamente, sem que ninguém percebesse, colocando-a dentro do bolso do paletó. Sinos dobram em todo o Brasil. Uma sequência de fusões rápidas de torres de diversas arquiteturas; neoclássicas, barrocas, góticas, rústicas, kitsch, simplórias, etc. Jorge corre até a porta do quarto, abre-a aos gritos de “Tio Alberto!”. Ninguém. Olha a porta do banheiro e corre até ela, abrindo-a. Por trás da cortina do box do chuveiro, a sombra de SD pendurado ainda balança. Corte para o cortejo fúnebre, a multidão seguindo pelas ruas do Rio de Janeiro. Em áudio o réquiem indígena “Canide Ioune”, extraído e traduzido por Murilo Araujo e orquestrado por Heckel Tavares. JORGE (já em lágrimas) - Oh, meu Deus! SEQUÊNCIA 97 RÉQUIEM DOS ÍNDIOS ARITIS O tiroteio continua intenso na rua da cidadezinha do interior de São Paulo. Do lado varguista, um homem pega um megafone e um outro hasteia uma bandeira branca. O tiroteio cessa repentinamente. Silêncio. Ninguém se mexe da posição nem baixa as armas. Tensão. CANTO (CORO DE MENINOS) (LEGENDA/TRADUÇÃO) Canide Ioune... Canide Ioune... (Ave dourada, ave dourada) Tia ua! Tia ua! (O corpo chora, o corpo chora!) SARGENTO MIRANDA (berrando ao megafone) - Aqui é o Sargento Miranda do 33º Regimento de Infantaria do Exército Federal. Recebemos pelo telégrafo a notícia do falecimento do nosso ilustre patrício Senhor Santos-Dumont, o Pai da Aviação. Tenho autorização para propor uma trégua a fim de homenagearmos em paz o grande herói da nossa pátria. Canide Ioune... Canide Ioune... (Ave dourada, ave dourada) Cemati, mamalô! (Atende a nós, oh mãe vossa) Queracarê (O escravo) ma cauê (assim sofre...) Tensão e silêncio. O outro lado confabula. Alguns segundos depois... Cecô (Tão longe) TENENTE CHUMBINHO (berrando, fazendo com as mãos o seu megafone) - Aqui é o Tenente Chumbinho do 8º Batalhão do Exército Constitucionalista. Aceitamos a trégua. Dois dos nossos sairão para encontrar dois dos seus e discutir os termos. Zoricê (As estrelas,) Anuim caui (Abelhas de luz) Os dois lados baixam as armas e os homens levantam-se descobrindo-se de suas posições e esconderijos. Aiçati acô (Matam dentro de nós) Ololi olô (As pequenas flores de ouro...) 150 PARTE 3 Canide Ioune... Canide Ioune... (Ave dourada, ave dourada) Tia ua! Tia ua! (O corpo chora, o corpo chora!) Sobre a música, em determinado momento, entra a voz da irmã de Georges, em off. VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off) “- Querido irmão. Moro há tanto tempo no Brasil e ainda surpreendo-me e enterneçome com a natureza profundamente humana do seu povo. A morte do Sr Santos-Dumont foi um verdadeiro trauma nacional, ainda que todos soubessem que ele estava fraco e doente. Repare no mapa: o Brasil tem a forma de um coração! E cada um de seus habitantes parece trazer no peito um coração tão grande quanto a sua imensa nação. (durante esse tempo a câmera passeia sobre o cortejo fúnebre e mostra detalhes do povo humilde e em lágrimas) - Aqui acontece de modo mais nítido o que também ocorre nas demais nações. O povo humilde e pobre é mais sensível, mais humano e mais delicado do que as elites, geralmente, arrogantes e grosseiras, principalmente nessa terra de fortes contrastes. É tão grande e tão elevado o coração dessa gente que pediram para guardar, como relíquia e recordação do seu maior herói nacional; justamente o seu coração! O coração do seu amigo Alberto foi então retirado e conservado num escrínio de ouro para a eternidade. (a câmera mostra o detalhe de um coroinha carregando o escrínio) - O escrínio que encerra o coração de Santos-Dumont, é uma esfera de ouro, com perfurações representando estrelas que simbolizam, no conjunto, o universo. Dentro da esfera se contém outra, hermética, de cristal; e dentro desta, em líquido adequado, se acha imerso o coração do aeronauta.” SANTOS DUMONT/O FILME corbeilles e coroas de flores, mostrando os cartões remetentes das diversas procedências, reis, rainhas, estadistas, cientistas, jornalistas, instituições, personalidades, aeronautas e aero clubes do mundo inteiro. O caixão, coberto com a bandeira do Brasil, prossegue em direção à escultura de Ícaro, réplica da de St Cloud, que ornamenta o túmulo da família do inventor. Perto dele o cortejo pára e uma sequência de oradores exaltados, como sempre em cena muda, superpõem-se em fusões rápidas. Enfim Jorge, ao lado de Prado, dá uma ordem através de um breve sinal com a mão. Dois Dragões da Independência dobram ritualmente a bandeira do Brasil e a entregam para a irmã mais velha de SD. A câmera assiste o caixão descer à tumba. SEQUÊNCIA 99 (A Dama de Negro) Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro, limpo, vazio e silencioso, num lindo dia. A câmera chega na sepultura de SantosDumont junto com um imponente RollsRoyce negro estacionando. De dentro, sai um motorista negro todo vestido de negro, abre o porta-malas e retira uma corbeille de flores e coloca-a sobre a sepultura. Em seguida, volta ao automóvel e abre a porta de trás para que saia uma mulher toda vestida de negro, com um véu sobre o rosto. Ela anda com elegância até a sepultura, trazendo nas mãos um porta-retratos com a foto autografada de Santos-Dumont. Ao chegar inclina-se, abrindo o véu para beijar o retrato. A câmera, em close lateral, revela sua identidade: Aida D’Acosta, uma artista mais madura, e sempre mais bela. Ela beija com ternura a fotografia e deposita o portaretratos sobre o túmulo, arranjando-o, em destaque, no centro da corbeille. A câmera O cortejo chega na via principal fecha em close sobre o retrato do do Cemitério São João Batista, "... e conservado num escrínio orlada por uma multidão de de ouro para a eternidade." aeronauta e depois, abrindo 151 SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND novamente, sobe até a estátua de Ícaro, e em seguida vai para o céu onde encontra umas nuvens e pára. aeronaves, sem datas. Corte para mais créditos sobre as nuvens. Ouve-se a voz cândida de Albertinho, aos 7 anos de idade, fazendo a Criança-mestre da brincadeira infantil. CRIANÇA-MESTRE (com a voz de Albertinho) - Homem voa? Corte para filmes documentários em P&B e cores mostrando os aviões de passageiros das décadas de 40 e 50, em pleno vôo, com as respectivas legendas dos nomes das aeronaves, sem datas. Túmulo de SD Corte para mais créditos sobre as nuvens. CRIANÇAS EM CORO - Voa! Corte para filmes documentários a cores mostrando os aviões turbo-hélices, de passageiros, da década de 60, em pleno vôo, com respectivas legendas dos nomes das aeronaves, sem datas. SEQUÊNCIA 100 Entram os primeiros créditos sobre as nuvens. Corte para mais créditos nas nuvens. Corte para um “Demoiselle” decolando do Campo de St Cyr, em filme documentário P&B. (Legenda: Campo de St Cyr, Paris, 1908) Corte para filmes documentários a cores mostrando os imensos aviões à jato de passageiros, da década de 70 e 80, em pleno vôo, com respectivas legendas dos nomes das aeronaves, sem datas. Corte para mais créditos sobre as nuvens. Corte para filmes documentários P&B mostrando os aviões de Bleriot, Breguet, Farman e Lindemberg em pleno vôo, com respectivas legendas com seus nomes, mas sem datas. Corte para os créditos finais, sobre as nuvens. Corte para o supersônico de passageiros, o Concorde, pousando em Orly. (Legenda: Aeroporto de Orly, Paris, 1998). Ao tocar as rodas no solo, a cena “congela”, sai a legenda e entra a palavra Corte para mais créditos sobre as nuvens. Corte para filmes documentários P&B mostrando os aviões dos primeiros correios aéreos em pleno vôo, pilotados por Saint Exupéry, Mermoz, Gago Coutinho, Sacadura Cabral e outros, com respectivas legendas nominais, sem datas. FIM 90 ANOS DA AVIAÇÃO CIVIL 1º CENTENÁRIO DA 1ª ASCENSÃO-SOLO DE SANTOS-DUMONT NO BALÃO “LE BRÉSIL” Corte para mais créditos sobre as nuvens. Corte para filmes documentários em P&B mostrando os primeiros aviões de passageiros das décadas de 20 e 30, em pleno vôo, com respectivas legendas dos nomes das Rio de Janeiro, 22 de abril de 1995. 152 PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME 153 Composto e diagramado pelo autor em PC 486 DX2, utilizando fonte True Type "Gatineau" e software Aldus PageMaker. Originais feitos em impressora jato-de-tinta marca Canon, modelo BJC - 4000 sobre papéis RENKER "Safir", cor branca, com 90 g/m2. Trabalhos encerrados em Belo Horizonte, no dia 22 de abril de 1996. L A V S D E O Destes originais foram tiradas 12 fotocópias, feitas pela N.A. COPIADORA LTDA em máquina Minolta mod. EP 5400. Os 12 exemplares, uma vez encadernados, foram numerados e assinados pelo autor. Exemplar Nº Mario Drumond Editor Rua Pouso Alto, 240. Belo Horizonte MG 30240 180 Tel/Fax 55 31 3281 8646 e-mail: [email protected]