Santos Dumont.p65

Transcrição

Santos Dumont.p65
DANS L’AIR
A VIA SANTOS-DUMONT
OU
SANTOS-DUMONT/O FILME
Mario Drumond Editor
mcmxcvi
Copyright©1995 Mario Drumond
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Este é um original preparado pelo autor para futura edição, comercial ou fora-de-comércio, e não o
projeto gráfico de um livro.
.
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DANS L’AIR
A VIA SANTOS-DUMONT
OU
SANTOS-DUMONT/O FILME
UM ROTEIRO DE INVENÇÃO
para filme de longa metragem
Mario Drumond
Rio de Janeiro, 22 de abril de 1995
Registrado na Bibilioteca Nacional
Prot. 002791 de 22.05.95
Reg. 98.001 livro 139 fls. 22
“Quando a lenda supera a realidade, imprima-se a lenda.”
(in “The man who shot Liberty Valence”, de John Ford)
Considerações do autor
A narração de uma história real através da linguagem cinematográfica impõe,
necessariamente, a utilização de recursos de estilo e de construção para viabilizar
um filme como esse, que é proposto para uma produção de grande porte
destinada ao grande público internacional do cinema comercial.
O autor optou por estruturar esse roteiro fazendo da verdadeira e fantástica obra
de invenção, projeto e construção aeronáutica pioneira de Alberto Santos-Dumont,
a sua espinha dorsal. Essa obra magnífica de gênio criador e experimentação
cientifica, realizada toda ao longo de uma só década, foi fartamente documentada
pela imprensa da época, e está descrita em minúcias nas diversas e excelentes
biografias dedicadas ao seu autor, com que a História nos tem presenteado. E foi
aqui integralmente respeitada em sua verdade histórica, até porque não há motivos
para não fazê-lo.
O grande mistério que resulta da análise aprofundada dessas biografias, seria a
explicação de como um homem só, sem parcerias técnicas ou científicas
conhecidas, pode realizá-la toda em tempo tão breve e em tal magnitude. Nem
mesmo os recursos financeiros com os quais realizou tão grande e vitoriosa obra numa competição internacional da qual participavam as mais poderosas nações da
época - ficam convincentemente explicados pela disponibilidade propiciada por
uma herança, por maior que ela fosse. Todos os seus biógrafos ficam
impossibilitados de desvendar esses mistérios, uma vez que o próprio SantosDumont destruiu toda a sua documentação, e, com isso, as revelações nelas
contidas. Eis aí o grande mote para a liberdade narrativa que o cinema permite aos
seus autores, pela necessária inclusão dos ingredientes de fantasia, magia, licença
poética, dramaticidade, intriga e ficção, que fazem dessa arte a grande atração que
é para o seu imenso público.
A vida do homem Alberto Santos-Dumont, em si, e sua forte componente trágica,
não poderia, evidentemente, ser desprezada nesse roteiro. E a personagem, tal
como existiu, é perfeita para a construção de uma boa trama cinematográfica.
Porém, a concisão que o cinema impõe à narrativa, obriga ao roteirista algumas
alterações e criações ficcionais (fakes) na sua ambientação na época e nas estórias
das personagens coadjuvantes, das quais o autor utilizou-se para dar relevo a
grandeza da sua principal personagem.
Mas este roteiro é, antes de tudo um projeto de vingança, no melhor sentido que
essa palavra possa ter. Vingar Santos-Dumont é, de fato, uma emergência histórica
da nacionalidade, além de se fazer justiça a verdade histórica universal.
Os norte-americanos criaram a lenda dos irmãos Wrigth e impuseram-na ao mundo
pela força de seu poder de comunicação. Essa lenda, porém, não resiste nem às
mais breves e superficiais verificações isentas da História. E nesse caso pelo menos,
a realidade supera, e em muito, a lenda que ainda tentam imprimir.
PERSONAGENS PRINCIPAIS
(pela ordem de entrada)
Alberto Santos-Dumont (SD) - Pai da Aviação
Jorge - sobrinho de SD
Georges - jornalista-caricaturista e melhor amigo de SD
Adrien - Editor-chefe do jornal "Les Temps"
August - Mordomo de SD
Embaixador Antonio Prado (Pradô) - Embaixador do Brasil na França e amigo de família
Lachambre e Machuron - mecânicos-proprietários de uma oficina de balonismo
Deutsch de la Meurthe e Príncipe Bonaparte - incentivadores da pesquisa aeronáutica
Chapin - mecânico-chefe da equipe de SD
Archdeacon - incentivador da pesquisa aeronáutica
Gasteau e Dazon - mecânicos da equipe de SD
Princesa Izabel - Princesa do Brasil exilada em França
Dr José Carlos Rodrigues - da alta sociedade carioca
Lazare - funcionário e depois diretor do jornal "Les Temps"
Levavasseur - mecânico de motores
Aida D'Acosta - bailarina e atriz
Cap. Ferber - militar e aeronauta francês
Voisin - aeronauta francês
Advertência
Considerando-se a superstição numerológica em relação aos números 8 e 13, muito
respeitada pelos nautas em geral, houve por bem o autor deste roteiro - à maneira de
Santos-Dumont ao numerar seus projetos aeronáuticos - saltar as Sequências que
receberiam tais perigosos números.
PARTE 1
A CONQUISTA DA TORRE
(NA NOVA BABEL)
PARTE 1
O garçom entra na ante-sala do apartamento
e começa a arrumar a mesa do café. Jorge
observa-o.
SEQUÊNCIA 1
JORGE
- Não vejo meus cigarros...
Intenso tiroteio;
balas zunindo no
cinema escuro. Sons
e ruídos de homens
armados correndo,
atirando e gritando.
A câmera inicia em
macro no olho
direito da figura
desenhada no cartaz
da Revolução de
1932 (acima). Aos poucos vai abrindo o
ângulo, mostra todo o cartaz (uma bala atinge
a testa da figura do cartaz) e em seguida o
cenário de uma rua de cidade do interior, na
qual tropas antagônicas travam acirrados
combates. Rebeldes constitucionalistas
fortemente armados correm em frente ao
cartaz, escondem-se numa barricada de
tapumes e carroças reviradas, e respondem
ao fogo. A infantaria varguista, que os
perseguia, protege-se como pode, e replica.
Fumaça, granadas, tiros, guerra.
SEQUÊNCIA 2
Vista aérea (olho de pássaro) de uma praia
paradisíaca do litoral brasileiro orlada por
uma pequena e pacata vilazinha. (Legenda:
Praia do Guarujá, Santos, 23 de julho de 1932)
A câmera penetra no interior do Hotel de La
Plage. Movimento tranqüilo de portaria. Sobe
a escada junto com garçons e camareiras
apressados nos afazeres matinais. Entra num
corredor e segue um garçom empurrando
um carrinho de café-da-manhã até o
apartamento número 8. O garçom bate na
porta. Jorge Villares abre-a, ainda arrumando
sua gravata.
JORGE
- Entre, por favor.
O GARÇOM
- Estamos sem cigarros, doutor Jorge. Após
o movimento da manhã, posso buscá-los à
venda do português.
JORGE
- Obrigado. Eu o chamo, se precisar. (e dá
ao garçom uma pequena gorjeta)
O garçom agradece e sai. Jorge pega um
envelope, que veio junto aos jornais na
bandeja do café, endereçado ao “Ilmo Sr
Alberto Santos-Dumont”. Lê o remetente:
“Governador Pedro Manuel de Toledo, São
Paulo, Capital”. Ao fundo a porta do quarto
abre-se e surge Santos-Dumont, ainda no
desfoque, aproximando-se, entrando em
foco, dando o laço no cinto de seda de um
fino robe-de-chambre. Está envelhecido, mas
com bom humor e banho recém tomado.
Jorge interpela-o.
JORGE
- Olá, tio Alberto. Como se sente? Parece estar
bem hoje!
SD
- Razoavelmente, Jorge. Os pesadelos
começam a deixar-me em paz. Dormi bem e
meu apetite voltou. O que temos para o café?
JORGE
- O de sempre... A novidade é esta carta do
Embaixador Pedro de Toledo.
SD
- Já a resposta? Estou curioso... (pega o
envelope das mãos de Jorge e senta-se na
poltrona frente à mesa do café. Começa a
abrir o envelope).
JORGE (intervindo e, carinhosamente,
tomando-lhe a carta)
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
- Ahn, ahn! Uma coisa de cada vez, tio.
Primeiro vamos atender ao seu belo e raro
apetite matinal.
JORGE
- Mas, quem ficaria com o Senhor? A essa
hora será difícil conseguir uma camareira...
Jorge põe a carta sobre a mesa e serve cafécom-leite para ambos. SD, com alguns
muchochos, concorda passivamente com o
sobrinho, e passa geléia no pão.
SD (interrompendo-o)
- Meu caro sobrinho! Sei que estou inválido
e perturbado, mas não sou tão perigoso
assim. Enquanto saboreio mais uma torrada
com essa deliciosa geléia e releio a carta do
Toledo, Você já foi e voltou! Fique tranqüilo;
seu tio não é um menino traquinas... E traganos guloseimas da venda. É para as
camareiras. Tem sido gentis conosco. Vá...
JORGE (após sorver de um só gole o suco
de laranja, pega novamente a carta)
- Posso ler para o Senhor?
SD
- À vontade, sobrinho. Não é nenhum
segredo de estado.
JORGE (aquiescendo apesar de não
completamente convencido)
- Está bem, meu tio, mas o Senhor não vai
sair dessa poltrona até que eu volte.
Combinados?
JORGE (rasga o envelope e retira a carta
colocando-a diante dos olhos)
- “A Santos Dumont, o povo paulista, por seu
gover nador, agradece as eloqüentes
palavras...etc “
(lê toda a pequena carta)
SD (com um sorriso, e passando geléia em
outra fatia de pão)
- Tenho muito o que fazer diante desta mesa,
querido sobrinho. De fato, meu apetite hoje
está surpreendente.
SD toma seu café-com-leite, indiferente às
palavras lidas pelo sobrinho.
Jorge vai até a escrivaninha, abre uma gaveta,
retira sua carteira, confere-a e coloca-a no
bolso do casaco. Pega o chapéu e dirige-se
à porta.
SD
- Muitos elogios... coisas de políticos.
(comenta, após devorar outra fatia de pão
com geléia)
JORGE
- São dois minutos e já estou de volta.
Lembre-se da sua promessa! Sem sair dessa
poltrona.
JORGE
- Porém parece-me sincera, tio Alberto. (e
procurando alguma coisa no bolso do
casaco) - Diabos, meus cigarros.
SD sem poder responder, com a boca cheia
de torrada com geléia, faz um gesto com a
mão para que o sobrinho saia logo.
SD
- Ainda o velho vício...
JORGE
- É verdade, tio Alberto... E o garçom só vai
poder buscá-los às dez. Bem, o que fazer!
Corte para Jorge caminhando pela rua, de
chapéu.
Corte para SD tomando café-com-leite. Ele
tenta alcançar a carta do outro lado da mesa,
mas não consegue. Com esforço levanta-se
da poltrona para contornar a mesa. Ouvese, então, um ruído distante de motores de
avião. Ia pegar a carta quando percebe o
ruído e paralisa o gesto para tentar ouvi-lo
SD
- Porque não vai Você mesmo buscá-los à
venda, Jorge? Não chegam aos 500 metros
uma boa caminhada até lá... Não fosse meu
lamentável estado de saúde eu o
acompanharia; o dia parece excelente!
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PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
melhor. O ruído aumenta progressivamente.
SD volta-se na direção da janela, e caminha
até lá para observar as aeronaves.
vendo três aeronaves de guerra passando
bem à sua frente, voando em direção a
Santos. Seu olhar é apreensivo e seu humor
não é mais o mesmo. As aeronaves
distanciam-se sob seu olhar reprovador e,
bem ao longe, despejam bombas sobre a
cidade de Santos. As violentas explosões são
ouvidas, reboando, em terríveis ecos.
Corte para Jorge, na rua, ouvindo também
os motores aéreos. Pára pensativo e indeciso.
Continua ou retorna? Decide continuar, mas
a passos rápidos, bem rápidos.
Corte para SD chegando na janela. Vê três
biplanos vindos do norte, voando em baixa
altitude.
Corte para Jorge, ainda na venda, aguardando
o seu troco. Olha assustado em direção às
explosões. O Português, ainda de costas,
fazendo o troco na caixa registradora, apenas
balança a cabeça, sem se virar.
Corte para Jorge entrando afobado na venda.
Agitado, pede seus cigarros e já tira a carteira
e conta o dinheiro. O português, dono da
venda, porém, não tem pressa.
Corte para close do rosto de SD atônito,
apoplético, furibundo.
O PORTUGUÊS
- Estes aeroplanos, estes aeroplanos... já
andam por toda parte, ora pois...
SD (balbuciando, trêmulo)
- Eles... eles... não podem! Eles, não podem...,
eles, eles, não podem, não podem...
JORGE (afobado, entregando o dinheiro)
- Por favor, dois maços de Continental; e seja
rápido, eu lhe peço.
SEQUÊNCIA 3
Sobre o seu rosto aflito uma sequência de
O PORTUGUÊS (pegando o dinheiro, fusões de bombardeios aéreos se sucedem,
contando-o e arrumando-o calmamente)
com tiros, bombas, explosões, estilhaços,
- Vamos com calma, meu senhor, o dia nuvens de fumaça. Começa com primitivos
apenas começa... (os ruídos dos motores biplanos da primeira guerra mundial, passa
aumentam) - Porque tanta pressa, homens?!... por pesados bombardeiros e caças da
(berra o português para os barulhentos Segunda Guerra, pelos caças-a-jato e os Baviões, como se os pilotos pudessem ouvi- 52 no Vietnam, jatos de última geração
lo)
despejando mísseis no
Iraque; hospitais, escolas,
JORGE (apressando-o,
cidades, tudo voando
nervoso)
pelos ares em estilhaços e
- Senhor, senhor...
fogo; os Quatro Cavaleiros
do Apocalipse surgem
O PORTUGUÊS
num fogo horrendo,
- Já me vou, já me vou, já
queimando florestas,
me vou...(entrega a Jorge os
ardendo edifícios, aos sons
dois maços de cigarros e vai
de tiros, explosões, chuvas
em direção ao fundo da
de bombas, metralhadoras;
venda onde está a caixa
fumaça,
destruição,
registradora para fazer o
mortes; tudo passando
troco) ...- Já trago-lhe o
diante
do
olhar
troco.
ensandecido de SD, que,
Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse
às vezes, surge e
Xilografia
de
Durer
Corte para SD na janela,
desaparece em meio às
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SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
fusões sempre balbuciando “Eles não
podem!, eles não podem!, eles, eles...”, até o
desfecho de tudo, numa cataclísmica
explosão nuclear, e o seu monumental
cogumelo abrindo espetacularmente o
poderoso raio de devastação, num tremendo
e sonoro reboar.
Ribeirão Preto, 20 de julho de 1880) Ao
fundo, muitas crianças, sons, ruídos e música
de festa na roça.
A câmera aproxima-se lentamente do centro
incandescente do cogumelo atômico
enquanto o som e a imagem do rosto de SD
vão diluindo até o desaparecimento. Tudo é
pura luz e silêncio. Ouve-se uma voz infantil.
ALBERTINHO (categórico)
- Voa!
A CRIANÇA MESTRE (em off, pois a câmera
continua em Albertinho)
- Albertinho, homem voa?
E sai em corrida desabalada, separando-se
do grupo de crianças, correndo por entre as
pessoas e arranjos da festa ao ar livre em
direção à casa-grande de fazenda, a poucos
metros de uma bela e grande gameleira. À
sombra dela as crianças brincavam de “seu
mestre” na festa de aniversário de Albertinho.
SEQUÊNCIA 4 (plano-sequência/sem cortes)
O foco da câmera sai da pura luz, que revelase o centro de uma branca nuvem no céu, e
desce lentamente para a terra durante o
tempo das falas infantis.
A câmera eleva-se, passa por cima da copa
da árvore numa grua alta, e acompanha, do
alto, a trajetória do pequeno Albertinho até
que ele abrace as pernas de seu pai, que
vem saindo da casa. Em seguida, passa pelos
telhados do grande casarão e mostra, por
trás da casa, os imensos cafezais sem fim.
Ainda em movimento contínuo a câmera vai
subindo seu foco para o céu, até às nuvens.
Entra a titulagem:
CRIANÇA MESTRE
- Tamanduá voa?
CRIANÇAS EM CORO
- Não voa!
CRIANÇA MESTRE
- Macaco voa?
DANS L’AIR
CRIANÇAS EM CORO
- Não voa!
A VIA SANTOS-DUMONT
CRIANÇA MESTRE
- Pato voa?
OU
SANTOS-DUMONT/O FILME
CRIANÇAS EM CORO
- Voa!
SEQUÊNCIA 5
CRIANÇA MESTRE
- Homem voa?
No mesmo céu, como se não houvesse corte,
ouve-se o ruído de um primitivo motor de
explosão a petróleo, aproximando-se por trás
do espectador. De repente, corta a tela o
dirigível SD N 6, em ângulo surpreendente
(foto),
UMA VOZ SOLITÁRIA DE MENINO
(Albertinho)
- Voa!
Todas as crianças riem e debocham. A câmera
está no rosto tímido e desconcertado de
Albertinho, de sete anos de idade. (Legenda:
Corte para a câmera no próprio dirigível,
focalizando, de frente, o jovem SD, que opera
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PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
Paris, 20 de outubro de 1901). Um “foca”
aproxima-se.
O “FOCA” (o jovem Lazare)
- O Senhor Adrien pediu-me para avisá-lo
que o espera em seu gabinete.
GEORGES
- Obrigado, rapaz.
Georges põe a caricatura dentro de uma pasta
de cartolina, levanta-se e sai por entre o
tumulto de oficiais e máquinas gráficas em
plena função do dia, na apertada oficina do
“Le Temps”. A câmera acompanha-o até a
porta envidraçada do editor onde se lê
“ADRIEN HÉBRARD, EDITEUR”. Bate e abre
a porta. Adrien está aos berros num primitivo
aparelho de telefone.
"...corta a tela o dirigível SD Nº 6
em ângulo surpreendente."
complicados sistemas de contrapesos e
manetes de comando, com movimentos
precisos, equilibrando-se, com facilidade, na
pequena barquilha da aeronave.
ADRIEN (aos berros)
- Sim, sim, já ouvi,...já ouvi! (e desliga o
aparelho lançando maldições). - Malditas
máquinas! (acalma-se e indica uma poltrona
do seu entulhado gabinete a Georges) Sente-se, Georges. (e, indo direto ao assunto)
- A Comissão Julgadora hesita em conceder
Corte para a câmera no solo da cidade de
Paris enquanto o Número 6 circunda a Torre
Eiffel. Bengalas e chapéus agitam-se e são
jogados ao alto nos aplausos do povo
aglomerado. (foto).
O POVO DE PARIS (aplaudindo)
- Viva “le petit Santos”!
- Viva “le petit Santos”!
Num certo momento (o momento exato dessa
foto), o quadro “congela” e a câmera
aproxima-se do Número 6 ao lado da Torre
Eiffel. Ao enquadrá-los, a cena estática fica
em P&B.
SEQUÊNCIA 6 (O "Le Temps")
A câmera volta a abrir o ângulo e vai
mostrando a foto P&B estampada na primeira
página do jornal "Le Temps", que
está na mesa do jornalistacaricaturista Georges Goursat.
O desenhista está dando os
últimos retoques na caricatura
de SD (ao lado). Ao terminá-la,
ele a assina: Sem. (Legenda:
"...Viva le Petit Santos! Viva le Petit Santos!"
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SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
o Prêmio Deutsch ao nosso “petit Santos”.
Sinto o cheiro do velho chauvinismo
francês...
usá-la em seu favor. Mas preserva princípios
mais comuns aos santos e aos ingênuos. Sou
testemunha de que ele joga limpo e só
descansará quando estiver convicto de que
foi cumprida a missão que o destino lhe
impôs.
GEORGES
- Você soube que Alberto abriu mão do
dinheiro do Prêmio em favor de sua equipe
de mecânicos e dos operários pobres de
Paris?....
ADRIEN
- Você e ele cultivam uma boa amizade...
ADRIEN
- Sim, ele foi esperto. Eis que o nosso herói,
além de engenhocas e dirigíveis, entende
também de publicidade, não? A opinião
pública ficou toda com ele.
GEORGES
- Sim, de fato desde que Alberto começou
suas aventuras em Paris, despertou-me uma
dupla curiosidade: a do jornalista e a do
caricaturista. Comecei a acompanhá-lo de
perto e tornei-me seu amigo pessoal. É um
gentleman, um bon vivant refinado e
discreto apesar de toda a
publicidade que desperta.
É também uma pessoa
reservadíssima...
GEORGES
- Não é isso. Alberto não age
por meio de artimanhas
e
truques.
Seu
desprendimento é
sincero. Se quisesse,
estaria multimilionário
só com as patentes
que legou ao domínio
público...
ADRIEN (em tom
solene e circunspeto)
- Meu caro Georges,
posso introduzir-lhe num
segredo que não pode sair desta
sala?
ADRIEN
- Eis aí, meu caro Georges, um caso
raro, raríssimo! Fale-me mais sobre ele.
GEORGES (um pouco desconcertado)
- Se é algo que eu possa ajudar...
GEORGES
- Herdou fortuna suficiente para viver bem e
inventar o que quiser. Pode ser considerado
louco ou gênio. Essas virtudes costumam
trazer consigo o sentimento de predestinação.
Creio que, interiormente, Alberto acreditase um predestinado. Comporta-se como se
sua missão fosse dada pelos deuses, que o
enviam à Terra para ensinar os segredos da
aeronáutica. Só por isso vive, pensa, estuda,
gasta e trabalha. Mulheres, farras, finanças,
patentes, heranças, são para os mortais
comuns. Para ele a luta e o diálogo é com os
deuses. Uma espécie de Aquiles ou Prometeu
moderno, protegido por uma facção do
Olimpo e combatido por outra. Suas armas
são o talento para a mecânica, a audácia, o
dinheiro e, é claro, a publicidade. Dessa
última intui bem a sua importância, e como
ADRIEN
- O Herald de Nova York mandou um repórter
para acompanhar o nosso “petit Santos”. Há
tempos desconfio desse interesse do Bennett
pela viação aérea. De repente, tornou-se um
mecenas do metier! Gasta fortunas com
prêmios, financiamentos, experiências, o
diabo. E Gordon Bennett não preserva, com
a publicidade e a imprensa, os mesmos
princípios que o seu amigo; e muito menos
quanto ao dinheiro! Acionei meu agente em
Nova York para saber o que se passa na
cabeça dele. Ontem recebi esse dossier.
Bennett está investindo pesado; contratou
estudiosos e doutores de História da
Civilização para desenterrar tudo quanto fora
tentativa humana de alçar-se aos ares com
ajuda de máquinas e outros artifícios. O que
14
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
tenho aqui é apenas
um resumo.
Bennett quer chegar?
Georges faz uma expressão interrogativa
Mostra o espesso
dossier a Georges que
começa a examiná-lo
f o l h e a n d o - o
superficialmente.
ADRIEN (prosseguindo)
- Conhece meu faro
para notícia, uma
espécie de sexto
sentido no qual
sempre confio. Há
dias, visitou-me o
Coronel Charles
R e n a r d .
Delicadamente
sugeriu-me atenção
maior para as
experiências dos
franceses
na
aerostática e, à sua
maneira, queixouse do excesso de publicidade que temos
dado ao seu amigo. Fez a mesma coisa no
L’Illustration, no Petit Journal, no Figaro, e,
em outros jornais. Com o dossier do Herald,
o que eu suspeitava confirmou-se: começou
a batalha chauvinista, entre as nações, para
disputar a glória da primazia na conquista
dos ares. E as suas patentes, é claro. Alemães,
ingleses, franceses, russos, italianos e
americanos já estão nela, Georges, e
apostando tudo o que têm. Bennett está
preparando o troféu para os americanos. E
o coronel Renard o quer para os franceses.
Todos se mexem, percebeu?
ADRIEN (continuando
em off sobre a iconografia citada, em imagens
estáticas ou em movimento animado)
- Georges, eles foram longe nessa pesquisa.
Rebuscaram os antigos textos do
Mahabharata, onde se lê que imensas
aeronaves povoavam os céus cobrindo
grandes distâncias. Foram aos chineses e seus
planadores de alguns séculos antes de Cristo.
Aos mitos gregos de Ícaro e deuses alados; à
idade média com suas bruxas voando em
cabos de vassouras, e monges beneditinos
em planadores; resgataram histórias de um
alemão exibindo-se em vôo planado perante
o imperador no século XV; Roger Bacon e
Leonardo da Vinci
com suas idéias
visionárias;
um
saltimbanco
atirando-se
do
Palácio
Saint
Germain, diante de
Luiz XIV e sua corte;
máquinas e inventos
de toda espécie;
barcas voadoras;
pernas e cabeças
quebradas; tudo
com detalhes, documentos, testemunhos.
Nos dois últimos séculos, a coisa cresce e se
espalha pelo planeta com todo o tipo de
experiências inacreditáveis. Até um outro
brasileiro voador, um tal Bartolomeu
Gusmão, localizaram em Portugal no Século
XVIII, a tentar vender ao rei barcas voadoras
de guerra. (e, em in) - Hoje, onde tem alguém
tentando voar nalguma máquina louca, tem
alguém do Herald bisbilhotando. E o que o
Herald publica de tudo isso? Nada! Ou quase
nada! Uma ou outra notícia, que todos nós
publicamos. Então me pergunto: onde
GEORGES
- Talvez, mas ainda não o meu papel nessa
história.
ADRIEN
- Sim, hoje acordei
com uma
nova
"... eles foram longe nessa pesquisa."
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SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
idéia e o meu sexto sentido a aprovou. Você
passa a ter uma saleta exclusiva, com chaves
na porta, na escrivaninha e no armário. Vai
acompanhar de perto o seu amigo e suas
aventuras aéreas. Algo me diz que o “petit
Santos” é que vai decidir essa parada. Ele é
o homem! E, pensando bem, seria o melhor
para todos nós: resolveria essa pendenga
idiota e pueril de quem, diabos, foi o primeiro
a voar com uma máquina, e capaz de dirigila. Nem franceses, nem ingleses, nem
americanos, nem italianos, nem alemães, nem
russos: - um brasileiro! Não seria perfeito? E
é só o que os brasileiros desejariam; - a glória!
Nós outros queremos essas máquinas para
nos metralharmos mutuamente, e incorporar
os céus aos sangrentos campos de batalha.
E ganhar dinheiro, meu caro, muito dinheiro,
deixando as demais nações a reboque de
patentes bem asseguradas. (e, refletindo) Diga-me, Georges, ele é comunista? Essas
idéias de patrimônio da humanidade para o
saber intelectual, distribuição de dinheiro
para operários... Li coisas do gênero em
recentes manifestos de comunistas...
vem a calhar! Espero que haja aumento de
salário e despesas pagas, Alberto é habitué
do Maxim’s...
ADRIEN
- Sim, mas com moderação. Você sabe que o
"Le Temps" nunca foi grandes coisas em suas
finanças. Cá estão as suas chaves. Na
escrivaninha encontrará uma cópia do dossier
do Herald. E sigilo total sobre tudo! Vou fazer
saber que o promovi a redator- assistente.
GEORGES (pegando as chaves)
- Negócio fechado, chefe. Ah, aqui está a
caricatura do jornal de amanhã; o que acha?
ADRIEN (olhando atentamente o desenho)
- Perfeita, Georges! Vamos guardá-la para
depois da decisão da Comissão Julgadora.
Publicá-la agora seria contraproducente. Falei
com o Deutsch, o Aimé e o Bonaparte.
Apesar das forças contrárias, o provável é
que o prêmio venha para o nosso herói. E
que o merece; porque não? Mas lembre-se:
estamos em França, a velha, boa e madrasta
França, onde o importante é preservar as
aparências...
Bem,
ao
trabalho.
(cumprimentam-se)
GEORGES (interpelando risonho)
- Nem de longe, Adrien. Já disse o que ele é,
ou acredita ser: um predestinado. Pelo seu
comportamento estaria mais próximo até de
um monarquista do que de um republicano.
Talvez nem saiba da existência de Marx,
Engels e seus discípulos...
SEQUÊNCIA 7
Por volta das duas da tarde, Georges caminha
pelo Champs Elysées em direção à rua
Washington. Entra num luxuoso prédio de
apartamentos grã-finos e dirige-se até a porta
do número 3 do andar térreo. Toca a
campainha. August, o mordomo austríaco de
SD, atende com solicitude e o introduz no
hall.
ADRIEN
- Pois bem, Georges, quero que Você me
traga a vida dele nos detalhes. Vou pôr um
fotógrafo para acompanhá-lo. A partir de hoje
o "Le Temps" vai cuidar mais desse assunto.
Minha aposta, porém, é no “petit Santos”. Por
isso quero-o inteiro; e guardado a sete
chaves, para a hora certa! Enquanto isso vou
administrando os concorrentes, os políticos
e os militares. Concorda com o trabalho?
Descrição cenográfica: o hall é decorado com
quatro litografias de Debret e duas de
Rugendas, mostrando aspectos do interior do
Brasil, e um conjunto de móveis feitos em
jacarandá da Bahia, composto de um
cabideiro, um pequeno canapé e um porta
revistas, todos do mesmo e curioso artesanato
brasileiro, e um tapete arraiolo, de centro,
confeccionado em Diamantina, interior de
GEORGES
- Não vejo porque recusá-lo. Também
acredito muito em Alberto. Perto dele me
sinto na presença de um gênio; - um gênio
da mecânica! Também para ele, esse trabalho
16
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
Minas Gerais, terra de Henrique, pai de SD.
amigo, mas o perdôo.
Aguarde-me ao salão.
O Pradô lá se
e n c o n t r a .
Também recusou
meu
convite.
Mandarei servir
sobremesa
a
Vocês e logo
estarei lá para o
licor. August,
leve
o
Sr
Georges até o
salão.
August pede a Georges que o aguarde.
Desaparece por uma porta e, alguns
segundos depois, retorna.
AUGUST
- O Sr Santos-Dumont vai recebê-lo na sala
de jantar, Sr Georges. (e, baixinho no ouvido
de Georges) - Por favor, não se assuste com
o que vai ver. O senhor já conhece o patrão.
O mordomo introduz Georges na ampla sala
de jantar. Georges parece não acreditar no
que vê. Sentado no alto de uma cadeira com
os quatro pés de dois metros e meio de altura,
frente a uma mesa de jantar igualmente
pernalta, está o jovem SD, impecavelmente
vestido e calmamente almoçando, com sua
cabeça a poucos centímetros do lustre da
sala. Uma escada, aberta ao lado da mesa,
dá acesso a um dos criados que a sobe,
temeroso e mal equilibrando a bandeja, para
servir a sobremesa ao seu patrão. SD olha lá
de cima a cara estupefata de Georges.
G e o r g e s
"Georges parece não acreditar
a c o m p a n h a no que vê"...
August saindo
por outra porta e atravessando o largo
corredor.
Descrição cenográfica: o corredor é decorado
com duas raras gravuras de Dürer (a
calcografia Melencoliae, onde se vê um sábio
medieval com seus instrumentos, a pedra
filosofal e um quadro numerológico, ao
fundo, no qual todas as somas dos números
que o compõem, nas verticais, horizontais e
diagonais, perfazem 34 e a famosa
xilogravura alada dos “Quatro Cavaleiros do
Apocalipse”); uma sanguínea atribuída a
Bosch (mostrando uma composição também
alada e surrealista) e
duas peanhas ao
fundo, uma de frente
para outra, a da
esquerda sustentando
um pequeno fauno de
Rodin e a outra uma
bailarina de Degas.
SD
- Como vai, Georges, por favor não se assuste
e não tema. O metier obriga-me à
convivência com as alturas. Aceita
acompanhar-me? Há uma outra cadeira para
um eventual conviva que, infelizmente,
nunca aparece. O
vinho está excelente e
a comida... ora, Você já
conhece as habilidades
do
meu
valioso
François.
GEORGES (com a voz
um pouco trêmula de
pasmo)
- Sinto declinar do
convite, Alberto, mas
hoje estou um tanto
sem apetite...
SD
- Já esperava essas
desculpas, meu caro
Chegam até a porta do
luxuoso salão de
visitas, iluminado por
grandes
janelas
envidraçadas, que dão
para o Arco do Triunfo.
Melencoliae - Calcografia de Durer
17
Descrição cenográfica:
o amplo salão tem, no
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
centro da sua parede principal, uma das de três pequenos cálices de cristal. Coloca a
pinturas mais apreciadas de Gauguin: a “Ta bandeja sobre a mesa de centro e sai. Prado
Matete”, na qual o genial artista compõe, com o agradece, passa uma sobremesa a Georges
as cores fortes dos trópicos e suas belas e pega a outra para si.
morenas, uma requintada composição no
estilo egípcio, com as figuras perfiladas e GEORGES (após provar um bom naco do
dispostas coreograficamente no quadro; à seu doce)
frente dela, na parede oposta, contracenam - E como vai o grande Brasil, essa terra que
uma pintura de Rousseau, “O Por do Sol na todos cantam com os mais exuberantes
Selva”, também de forte coloração e tema adjetivos e predicados?
tropicalista, dois quadrinhos pontilhistas de
Signac e um outro, também pequeno, de PRADO (também provando um naco do seu)
Seurat, um gouache de Toulouse Lautrec e - Maravilhosa! Como sempre foi e será, meu
duas sanguíneas, uma aquarela e um óleo caro Georges, maravilhosa! Quando teremos
do pintor, seu conterrâneo e amigo, Elyseu a honra de recebê-lo lá?
Visconti. Na parede do fundo, um altarzinho
barroco, trazido de Cabangu, com um GEORGES
pequenino oratório atribuído ao famoso - Talvez mais breve do que imaginamos,
escultor que atendia
Embaixador. Minha
pela alcunha de
irmã ordenou-se
“Aleijadinho”. O
freira e foi para um
salão é mobiliado
mosteiro
em
em três ambientes,
Petrópolis.
Está
dois com jogos de
encantada com o seu
confortáveis sofás,
país. Em breve
um de couro e outro
pretendo visitá-la.
de veludo, ambos
em tons e cores
PRADO
claras, feitos nas
- Mas que bela
Detalhe do Ta Matete de Gauguin
mais finas capotarias
notícia, Georges!
de Paris, com respectivas mesas de centro, e Faço questão de visitá-la quando retornar ao
o terceiro com uma mesa redonda de Brasil, se possível levando Você ao encontro
carteado e seis cadeiras de palhinha.
de sua irmã e das delícias tropicais brasileiras.
Vai se sentir em pessoa no próprio paraíso,
Antonio Prado está distraído lendo jornais e, acredite.
ao perceber Georges, levanta-se para abraçálo.
Ambos deixam as sobremesas e Prado
oferece charutos. Georges aceita um e
GEORGES
caminham em direção à janela acendendo
- Fico feliz em revê-lo, Embaixador. Fez boa os charutos.
viagem?
PRADO (após a primeira baforada)
PRADO
- Muito bem situado este apartamento de
- Excelente, meu bom Georges, excelente! Alberto; bem diante do Arco do Triunfo.
Vim no Lutéce! Também estou contente em
vê-lo.
GEORGES (também fumando e pensativo)
- Sim, uma ótima escolha. Alberto não
Entra o criado trazendo uma bandeja com descuida os detalhes. Seu gênio parece estar
duas sobremesas servidas de torta de maçã sempre à procura dos símbolos em tudo o
e sorvete, e a garrafa de licor acompanhada que faz. Aqui, ele quer conviver com o
18
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
símbolo do triunfo. Eis o nosso bom Alberto,
o predestinado... Oh! ei-lo.
Prêmio Deutsch.
SD
- Mas isso seria desnecessário, Pradô. Não
quero tornar-me mais um problema às já
combalidas finanças públicas de nossa pátria.
SD entra no salão e começa a servir os cálices
de licor.
SD (brincalhão)
- Amigos, vamos brindar a esse encontro.
(serve a todos, brindam e bebem) - Pradô,
vou pedir ao governo brasileiro que desafie
a França em armas caso não me concedam
logo esse prêmio. O que acha? Não é uma
afronta? Está me saindo mais difícil receber
o Prêmio do que o foi para conquistá-lo!?
PRADO
- Não é que estejam lá muito boas. Não nos
faltam crises. Vai mal o comércio, a indústria...
Mas estamos longe de uma quebra. E
desejamos o seu sucesso em Paris, que tanto
prestígio tem trazido ao Brasil e ao nosso
povo. É o mínimo que podemos fazer, não
recuse, Alberto. O povo brasileiro iria
considerá-lo um snob.
GEORGES (após o brinde e de sorver o licor
de um só gole)
- Amanhã, com certeza, teremos o fim dessa
novela. E com final feliz. O povo parisiense
não aceitará mais uma protelação.
SD
- Não recusarei, Pradô. Como sabe concedi
o Prêmio Deutsch aos meus mecânicos e aos
operários pobres de Paris. E o fiz por
merecimento e compaixão. Depois de amigos
como Você e Georges; os meus mecânicos e
o povo pobre de Paris tem sido os meus
maiores aliados desde que aqui cheguei...
mas, Georges, o que está a anotar neste
caderno?
SD
- Pudera, já estamos a 3 de novembro. Já se
vão quase 15 dias... Mas confio nos sábios
do Instituto de Paris, eles me salvarão!
GEORGES
- Pelas contas do jornal já temos 10 votos
certos a seu favor. E sabemos que outros dois
também serão nossos. Esses já lhe garantem
a vitória.
Georges havia tirado de sua pasta um
caderno de notas e um lápis e fazia ali
algumas anotações.
Sentam-se todos nos confortáveis sofás do
ambiente principal do salão.
GEORGES
- Temos aqui uma notícia mais fresca do que
as croissants da boulangerie de la place, meus
amigos. E eu sou um repórter, lembram-se?
(termina a anotação e guarda o caderno) Mas hoje não tenho notícias só a anotar;
tenho-as também a dar: Adrien promoveume a seu redator-assistente no "Le Temps".
PRADO
- Falei por telefone ao Deutsch. Ele garante
que o Aero Clube de Paris não lhe recusará
o prêmio. Deutsch estava lá naquele grande
momento da história que, infelizmente, perdi,
nas atribulações do meu cargo. Campos Sales
chamou-me ao Rio justamente quando tudo
estava para acontecer. (e, dirigindo-se a SD)
- Pelo menos pude ser útil à sua luta, Alberto.
Convencemos Sales e o Congresso, com a
ajuda do senador e aeronauta Augusto
Severo, cuja atuação no Parlamento foi
fundamental para o nosso pleito, de que,
independente do que aconteça, o Brasil lhe
pagará um prêmio no mesmo valor do
PRADO
- Considero Maurice Talmeyr e Adrien
Hébrard os dois mais brilhantes jornalistas
que o novo século revelou. Você está de
parabéns, Georges.
SD (enchendo novamente os cálices com
licor)
- Sim, Adrien faz jus à estirpe dos
19
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Por isso os convidei hoje. (e levanta-se
caminhando em direção ao corredor) - Por
favor, dêem-me a honra! Serão os primeiros
a conhecer o meu atelier, este pequeno
caldeirão onde remexo minhas bruxarias.
Sigam-me. (os dois, movidos pela surpresa,
o seguem)
“informadíssimos Hébrards”. Eis aí um bom
motivo para novo brinde. Um brinde ao
nosso amigo Georges. Sucesso e felicidades
para ele. (brindam) - Me sinto orgulhoso de
Você, Georges (e bebem).
GEORGES (põe o cálice na mesa)
- Para mim é o último. Prefiro não beber
enquanto trabalho.
SEQUÊNCIA 9 (A Oficina secreta de SD Descrição cenográfica)
PRADO
- Como assim, trabalho, Georges? Vai sair
agora?
O final do amplo corredor é arrematado por
uma parede forrada de madeira negra e
maciça. Perto dela, na lateral, uma peanha
apóia a pequena e delicada bailarina de
Degas. SD gira a bailarina, e a peanha revelase a portinhola de um mecanismo
escamoteado, composto de uma pequena
alavanca e um segredo numérico semelhante
aos dos cofres. SD gira o segredo para as
posições certas, aciona a alavanca, e a
“parede” do fundo do corredor denuncia-se
uma imensa porta de madeira maciça que
corre suavemente para a direita, deslizando,
sem qualquer ruído, sobre bem lubrificadas
rodilhas. A um sinal de SD os dois amigos
estupefatos penetram o recinto, descendo por
uma pequena escada de três degraus,
SD
- Sim, explique-se, Georges.
GEORGES
- Não, não pretendo sair. Minha primeira
missão em meu novo trabalho é Você,
Alberto.
SD
- Ora, não diga que acabo de perder um
amigo e ganhar um jornalista. Já tenho-os
aos montes, seguindo-me nas esquinas, nos
cafés, nas oficinas, com seus fotógrafos e suas
anotações. Amigos, porém, os tenho poucos.
E a Vocês farei uma distinção muito especial.
Espaço destinado à planta baixa
da Oficina Secreta
20
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
sistema de grandes luminárias e holofotes
elétricos reguláveis, pendurados ao forro e
manejáveis do chão por sistemas de correntes
pendentes; que garantiam perfeita
luminosidade, com intensidades reguláveis
por reostatos, em qualquer ponto do seu
interior.
A temperatura ambiente era mantida em
amenos e permanentes 23 graus centígrados
(marcados em um grande e visível
termômetro instalado num dos pilares) por
um sistema de ar renovado e
temperaturizado, idealizado pelo inventor,
que era distribuído por tubulões condutores
aéreos, de seção retangular, feitos em latão,
embrulhados em mantões de lã, e
sustentados por cabos pendidos à estrutura
superior do telhado, um pouco acima do pédireito. Eram interligados a um complexo
sistema de aquecimento elétrico e
refrigeração a gás freon, feito de serpentinas
metálicas por onde passava água em
temperatura controlada, e acoplados a
poderosos ventiladores, com hélices de
chapas metálicas planas, que recolhiam o ar
ambiente, renovava-o, filtrava-o, refrigeravao ou aquecia-o, e soprava-o novamente pelos
tubos que o distribuíam pelas nove bocas
do sistema, nos diversos ambientes do
galpão. Um sistema de chaves e reostatos
engenhosamente conectados a termômetros
e barômetros, mantinham o funcionamento
automático de toda essa parafernália e
garantiam pressão atmosférica, temperatura
e umidade do ar constantes em qualquer
época do ano e a qualquer hora do dia.
seguidos de SD que, antes de entrar, aciona
novamente a alavanca para que a porta,
lentamente, se feche por detrás dele.
O ambiente era fantástico: um grande galpão,
de 30 metros de comprimento por 20 de
largura, adaptado de uma desativada garagem
de carruagens e diligências, contígua ao
apartamento de SD: sem divisões internas,
possuía o pé-direito de cerca de 6 metros,
telhado de ardósia forrado de tábua corrida,
sustentado por estrutura metálica artnouveau apoiada nas laterais e em quatro
pilares simetricamente dispostos, que
formavam um grande quadrado central,
iluminado, de dia, por uma bela cúpula no
centro do telhado, feita em vidro colorido e
ferro fundido, no mesmo estilo da estrutura
de sustentação. Além da porta secreta que o
ligava ao apartamento, o edifício tinha duas
grandes portas de correr, jamais vistas
naquela época, para entrada e saída de
materiais, equipamentos, máquinas, inventos
inteiros ou em partes, que dava para o pátio
externo. Apesar da inexistência de divisórias
em seu interior, o ambiente era perfeitamente
dividido em nove diferentes espaços de
trabalho ou seções, como demonstra a planta
baixa, na página ao lado.
A parte barulhenta do sistema, composta de
pesados motores elétricos e geradores de
energia elétrica a petróleo e respectivos
tanques de combustível, jogos de chaves
automáticas, roldanas, polias, correias e
ventiladores, era mantida isolada numa
casinhola de alvenaria feita com paredes
duplas e com revestimento interno de feltro
grosso, que abafavam completamente todos
os ruídos ali produzidos, e, a tal ponto, que,
vistas pela escotilha de espesso vidro da
igualmente espessa portinhola de inspeção,
A oficina era hermeticamente fechada e
iluminada artificialmente por um engenhoso
21
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
com as luzes internas acesas,
pareciam silenciosas e serenas
máquinas em perfeito e celestial
funcionamento. [Aberta, porém,
a portinhola, uma violenta
orquestra
de
ruídos
ensurdecedores toma conta da
oficina, para susto dos visitantes que
só destapam seus ouvidos quando
o inventor cerra novamente a
portinhola e faz retornar a paz
anterior.]
especialíssimas finalidades, as
maquetes e modelos, etc.]
No quadrado central, - entre os
pilares feitos de ferro fundido e
bordados com vinhetas art-nouveau
em relevo - , ficava a grande
prancheta de trabalho de SD
(equipada com um suntuoso
tecnígrafo) de tampo maciço feito em
tábua única de ipê emoldurado em
pinho de riga, suspenso do teto em
balanço, acima de um armáriomapoteca de seis gavetas, por um
complexo sistema de cabos e roldanas,
manejáveis por correntes pendentes,
podendo ser facilmente posicionado e
inclinado em qualquer ângulo, verificáveis
nas bolhas de prumo acopladas nos sentidos
lateral e longitudinal do tampo suspenso.
Frente ao tampo, uma barquilha de vime,
idêntica às utilizadas por SD em suas
aeronaves dirigíveis, era também suspensa
do chão por semelhante sistema, só que
acoplado a um carrinho com rodilhas,
equipado com motor elétrico, e instalado
num sistema de trilhos firmemente suspensos
e fixados na estrutura inferior do telhado,
logo abaixo do pé-direito, como se fosse uma
espécie de mini-ferrovia aérea. Esse sistema,
operado de dentro da barquilha, permitia
levá-la e elevá-la, com o seu ocupante, a
qualquer ponto ou altitude dentro da oficina,
de modo que, ao trabalhar em sua criações,
o inventor simulava também a situação
tridimensional de vôo e exercitava o seu
equilíbrio.
As tubulações principais de renovação
e distribuição do ar encanado subiam da
casinhola pela parede até o teto, como uma
chaminé de lareira, também isolada com
feltro grosso e parede dupla de alvenaria; e
os tubulões de distribuição, isolados com
mantões de lã, não só impediam a troca de
calor, como também eliminavam todo o ruído
produzido pelas máquinas na casinhola,
antes da saída do ar nas bocas de distribuição.
De sorte que, no interior do galpão, ouviase apenas, e no silêncio total, um leve e sutil
rumorejar de exalação aérea contínua,
distribuindo ar puro e temperaturizado em
todo o vasto ambiente.
Uma outra casinhola, contígua à anterior, do
mesmo porte e de semelhante construção,
igualmente isolada dos ruídos e equipada
com um sistema de filtragem de gases e
aeração própria, servia de cabine de testes
dos motores criados pelo inventor, que
podiam nela ser introduzidos através de uma
tampa superior, e se sustentavam, no interior,
em bancadas apropriadas e conectadas por
cabos e fios aos instrumentos de medição
instalados externamente, embaixo de um
grande visor retangular de vidro espesso, pelo
qual podia-se acompanhar também
visualmente o desempenho das máquinas em
teste.
Em frente à prancheta, um grande espaço
vazio servia esporadicamente para a
colocação dos moldes de confecção dos
invólucros de balões e dirigíveis, e montagem
parcial ou integral de protótipos para testes.
À esquerda situava-se, de trás para frente, a
marcenaria completa, servida de mangas de
aspiração e reaproveitamento de serragem,
pendentes do teto, para todas as máquinas;
a serralheria, a tornearia e a usinagem de
precisão, igualmente completíssimas, com
seus sistemas de soldas e maçaricos de todos
[SD caminha pela oficina seguido pelos
amigos, mostrando, com orgulho, os seus
mínimos detalhes, os controles de luz e
atmosfera por ele inventados, as
ferramentinhas que criou e suas
22
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
os tipos existentes, protegidos por boxes de
cortinado de percalina e borracha isolante,
e servidos de coifa de exaustão de gases; e a
seção de montagem e mock-up, equipada
com máquinas de costura elétricas e prensas
de colagem, onde amontoavam-se,
organizadamente, do chão ao forro do
telhado, pendurados ou apoiados em caixas,
caixotes e pedestais próprios, uma infinidade
de modelos, protótipos, maquetes e
miniaturas de todo o tipo de engenhos aéreos
e terrestres que a imaginação do inventor
pode conceber até então.
algumas.
Atrás, no canto de fundo, a parte molhada,
com tanques e pias servidas de torneiras e
mangueiras diversas e um pequeno
laboratório de química, onde podia-se
produzir e testar colas, vernizes, tintas,
graxas, lubrificantes e até combustíveis,
também servido de coifa de exaustão
exclusiva e box cortinado de pesada lona
de isolamento. E um lavatório servido de
água aquecida, vasos sanitários com descarga
hidráulica e armários de escaninhos para
guardar pertences pessoais dos mecânicos.
No canto dessa seção, via-se uma bizarra
reunião de meia dúzia de bonecos
articulados, feitos de borracha, em escala
humana natural, que eram usados para testar
posições de pilotagem e condições de
comando nos mock-ups e protótipos.
Atrás do inventor,
quando
em
sua
barquilha pendurada no
quadrado
central,
ficavam instalados todos
o sistemas de controles
de
iluminação
e
atmosfera, junto às
casinholas de máquinas.
Perto dele, um enorme ventilador, preso à
parede do fundo por um braço mecânico
ajustável, olhava para um grande tubo ou
manilha feita em latão, de diâmetro igual ao
da hélice do ventilador, estruturado num
engradado de madeira
fixado ao piso. Dentro
do tubo estavam
pendurados alguns
modelitos
de
m e c a n i s m o s
aerodinâmicos
produzidos em papel
..."uma bizarra reunião de meia dúzia de bonecos"... de seda e bambu.
À frente, por onde se entrava lateralmente
pela porta secreta do corredor do
apartamento, uma confortável e portentosa
biblioteca, provida de armários e estantes
com portas de correr envidraçadas até a altura
do pé direito, dentro dos quais podia-se
observar as grossas lombadas de obras
científicas de todo o mundo, obras de
referências indispensáveis e obras-primas da
literatura universal e contemporânea, com
luxuosas encadernações e organizadamente
dispostas; e, ao rés do chão, um armário de
escaninhos fundos arquivava um sem
número de rolos de desenhos, plantas e
projetos do inventor.
À direita, ao lado, um almoxarifado, sempre
repleto de materiais oriundos dos quatro
cantos do mundo, e que poderiam ser
utilizáveis em projetos do inventor. Tudo bem
armazenado, conservado e guardado em
prateleiras, armários e recipientes de várias
espécies, com etiquetas de identificação e
fichas de controle de estoque presas à
pranchetilhas de mão e penduradas em
cabide de madeira fixado à parede. Ao seu
lado, uma bela ferramentaria, especialmente
projetada para guardar, com visibilidade, do
mais pequenino e delicado instrumentinho,
até as possantes marretas e poderosas
alavancas de ferro fundido, passando por
tudo quanto é tipo de ferramenta pequena,
média ou grande, possível e existente,
fabricadas por quem quer que as fabrique e
pelo próprio inventor que as inventou
[Prado, esmerado bibliófilo, dirige-se à parte
central da Biblioteca, feita de madeira
especial, forrada por dentro de veludo azul
da pérsia e com uma porta de cristal bizotado
23
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
com o desenho do Ex-Libris do
inventor, criado por Sem
(Georges), e, tendo abaixo, em
plaqueta de cobre, o nome da
seção: “Cimélios”. Abre a porta
e começa a farejar as
preciosidades ali conservadas.
Logo reconhece as do falecido
Henrique, algumas das quais
adquiridas por ele mesmo, a
pedido do amigo, em leilões
europeus. Lá estavam a
princeps d”Os Lusíadas”, em
primorosa encadernação de
anônimo, feita em pergaminho
com relevos secos e aplicações de cinábrio
e ouro verdadeiro, um incunábulo editado
por Aldus Manutius, a “Hypnerotomacchia
Poliphili”, do dominicano Francisco Colona,
de 1499, com cerca de 200 gravuras atribuídas
a Mantegna, a primeira edição da “Divina
Comédia” ilustrada por Gustave Doré, de
1868, um dos volumes da completa de Cícero
editada por Aldus, o moço, em 1583, e o
pequenino volume da primeira edição de
“Hamlet”, datado de 1605, com restauração
e encadernação posterior atribuídas a Roger
Payne.
de 1673, do português Luiz
Serrão Pimentel, com
autógrafo do autor e,
orgulhoso,
folheia
delicadamente algumas
páginas de um raríssimo
exemplar do Séc. XVI,
impresso em bistre e com
primorosa encadernação feita
em marroquim carmesim, da
“Historia Naturalis et
Experimentalis”, na qual o
visionário Roger Bacon faz
várias e proféticas previsões
científicas, entre elas, as
máquinas voadoras.]
Toda a Biblioteca era uma vasto painel que
abrigava entre 3000 a 5000 volumes com
subdivisões assinaladas em pequenas
plaquetas de bronze. Além da “Cimélios”,
com plaqueta diferenciada em cobre, havia
a “Scientifica”, abrangendo obras do
pensamento científico universal desde Tales,
Pitágoras, Aristóteles, Arquimedes, Ptolomeu
e outros gregos, egípcios e romanos, passava
pelos medievais Avicena, Paracelso, e outros,
os modernos Da Vinci, Copérnico, Newton,
Leibnitz, Cavendish, etc até aos atuais Hertz,
Edson, Marconi, Langley, e muitos outros.
Com várias exclamações ora de espanto, ora
de prazer de expert, Prado constata um
prodigioso crescimento do acervo que
conhecia, na atual gestão de Alberto. Captura
de imediato um bem encadernado
manuscrito autógrafo de Ticho Brahe, de
1564, no qual o sábio relata a observação da
sua “Stela Nuova”, na época do
seu aparecimento, quase que
como um novo sol, na
constelação de Cassiopéia, por
ocasião do nascimento de
William Shakespeare. Outro
volume que também o
entusiasma é um exemplar da
princeps da “Sciencia Nuova”,
de Giambaptista Vico, datado
de 1725. Vê também um
exemplar
genialmente
encadernado da famosíssima
“Prática da Arte de Navegar”,
a “Referência” onde se viam as imponentes
lombadas góticas dos “Corpus Gregarum
Scriptorum” e “Corpus Romanum
Scriptorum”, a famosa “Encyclopédie” de
Diderot e D’Alembert, a
recente “Britânica” de Adam e
Charles Black, já com 24
volumes, de 1888, e um sem
número de dicionários de
Artes, Ciências, Ofícios e
Línguas;
a “Brasiliana”, carregada das
pérolas da fase heróica de São
Luiz do Maranhão, então
chamada a “Atenas Brasileira”,
das obras de Pedro II,
Machado de Assis, Bernardo
24
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
Guimarães, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Rui
Barbosa, Tobias Barreto, Castro Alves e
inúmeros contemporâneos e alguns
estrangeiros que escreveram sobre o Brasil
como Villegagnon, Agassiz, Bates, Lund e o
conde italiano Ermano Stradelli, entre outros;
cronológica, da esquerda para a direita, as
existentes ocupando quase a metade do
espaço disponível.
A Biblioteca era servida de uma confortável
mesa de leitura com quatro parrudas cadeiras,
um divã e um jogo de sofá e poltronas
forrados em couro fino, e dispostos em torno
de uma mesa de centro sobre um vasto tapete
persa (outra raridade do Séc. XII,
confeccionado por encomenda de família
nobre veneziana da época que, como era
costume, exigia dos artesãos que fosse tecido,
num dos cantos do tapete, suas armas e
brasões),
tudo
isso
compondo
harmonicamente com um grande globo
terrestre e uma coleção-mostruário de
instrumentos de navegação marítima e
terrestre: sextantes, astrolábios, bússolas e
réguas de cálculo de diversos tipos, épocas
e procedências.
a “Universal”, que chamou a atenção de
Georges onde encontrou, surpreso, um
exemplar, autografado pelo autor “Au jeune
genie de Ka Ban Gu, Brésil”, da rara edição
do “L’Aprés- midi d’un faune”, de Mallarmé,
com ilustrações de Manet e diversas
maravilhas da obra poética de Baudelaire,
Hugo, Apollinaire, além de Marlowe, Voltaire,
Rousseau, Goethe, Flaubert, Balzac, Dickens,
Byron, Swift, Wilde e o diabo, e edições
recentes e caprichadas da “Ilíada” e da
“Odisséia”;
a “Periódicos”, de largas e altas prateleiras
especiais, onde se conservavam em
cuidadosa encadernação e metódica
organização, páginas e recortes de jornais e
revistas sobre aeronáutica e os aeronautas
de todas as épocas, inclusive o próprio
Santos-Dumont, e organizavam-se, ainda nos
seus começos, as coleções da “National
Geographic Society”, desde a sua primeira
edição de 1888, a “Popular Mechanical”,
também desde sua primeira edição, a “La
Vie au grand Air” , a "L"Aerophile" e outras
revistas do gênero.
Na parede frontal, uma estante de largas
prateleiras baixas, ostentava um completo e
moderno sistema de comunicações por
interfones, telefones, telégrafos e cabogramas
internacionais, equipados com todos os
dispositivos, aparelhos e acessórios mais
recentes que a ciência moderna e o dinheiro
podiam oferecer ao homem para que se
comunicasse com o mundo naquela época.
Acima, perto da cúpula, uma grade metálica
parruda, na horizontal, com sistema de
elevação por manivela, sustentava e servia
de piso de um observatório astronômico
equipado com duas boas lunetas, uma mais
delgada, de Galileu, e a outra bojuda, de
Newton. Para acessá-lo, o inventor subia até
lá em sua “barquilha” e alçava-se por uma
escadinha soldada à grade. Para a cúpula,
havia dois mecanismos de acionamento: um
que a abria em dois, para observação das
estrelas e da atmosfera; e o outro que fechava
totalmente a base da cúpula através de um
mecanismo em forma de diafragma de
câmera fotográfica, que impedia a passagem
de qualquer luz, uma vez fechado.
No topo da estante, ocupando toda a
extensão horizontal superior do enorme
móvel, e com acesso somente possível pela
“barquilha” do inventor, ficava a
“Philosophica”, que, além dos já conhecidos
filósofos gregos e teólogos da alta idade
média, abrigava volumes considerados
perigosos
de
alguns
filósofos
contemporâneos, entre eles os perigosíssimos
Hegel, Dilthey e um certo Nietzsche, ainda
vivo e, diziam, enlouquecido. Numa outra
prateleira logo acima desta, e de igual
tamanho, SD guardava os seus registros de
cálculos, as anotações pessoais, científicas e
de projetos, arquivadas em pastas de couro
etiquetadas, e dispostas na ordem
[O inventor faz essa demonstração; fecha o
25
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
grande diafragma e apaga todas as luzes da
oficina numa chave-geral. O ambiente fica
tão escuro e, de tal maneira, que se pode,
sem problemas, abrir-se ali, uma caixa de
chapas fotográficas virgens.]
GEORGES
- Simplicidade não é exatamente a palavra
que eu escolheria para definir esta oficina.
Fiquei imaginando que, ao entrar aqui à
noite, Você se multiplica por vinte SantosDumonts e trabalha freneticamente até o raiar
do dia, quando volta a transformar-se num
ser normal e vivente na velha Terra. Digame, Alberto, porque todas essas maravilhas
que vejo aqui, Você não dá também ao
conhecimento público?
Um grande painel de fotografias dos feitos
do inventor, com previsão de espaços para
fotos futuras, feito em cortiça e preso na
parede frontal, ao lado das portas de correr;
e um pequeno bar com adega própria e
delicada cristaleira, ao lado da Biblioteca,
completavam a equipagem daquela
inacreditável oficina individual.
SD
- Porque a maioria ainda está em fase de
testes. E depois, porque essa oficina foi criada
para projetar e construir novos tipos de
aeronaves; e são elas que pretendo exibir
em primeiro lugar. Porém, no futuro,
pretendo transformá-la numa escola para
formar novos profissionais dedicados à
aeronáutica.
SEQUÊNCIA 10
Os dois amigos olham tudo aquilo e
entreolham-se assombrados. Prado pega uma
charuteira sobre a mesa de centro, examina
os charutos, aprova-os e oferece-a a Georges
(que aceita um) e a SD.
GEORGES
- Compreendo; e o que é aquilo naquela
espécie de túnel? Um papagaio celular?
SD (com um gesto de recusa)
- Eu não fumo. Aeronauta não fuma.
SD
- É um dos meus novos ensaios
aerodinâmicos.
PRADO
- Desculpe-me, Alberto, eu sei que não fuma.
Mas por um momento parece que esquecime até de quem sou eu. (e, voltando à sua
estupefação) - É inacreditável, é
impressionante! Quantos operários mantém
trabalhando aqui?
PRADO (apontando para o quadrado central)
- E porque estes móveis, se é que são móveis,
ficam assim, pendurados do teto?
SD
- Chapin, Gasteau e Dazon, meus três oficiais
mecânicos de confiança. August e os criados
só vêm para o meu serviço, quando chamo
por interfone, e para as tarefas de limpeza.
Tudo aqui é muito simples... Podemos fazer
as nossas criações com autonomia e autosuficiência de meios. Somente a fundição dos
blocos dos motores encomendamos fora; mas
os moldes já vão prontos e a fundição é
acompanhada pessoalmente por Dazon, que
é um dos melhores artífices ferreiros de Paris.
SD dirige-se até a sua “barquilha” e entra
dentro dela. Em seguida aciona uma caixa
de botões que pende de um cabo de fiação
vindo de cima. A barquilha move-se para
cima e para o lado. Enquanto fala, SD faz
um passeio pelo espaço aéreo da oficina, às
vezes lá no alto, outras vezes quase no chão.
Num determinado ponto, ele está bem diante
da prateleira mais alta de sua biblioteca, de
onde retira um volume de papéis e retorna
para o quadrado central. Ao terminar a sua
fala, a barquilha está pousando suavemente
no lugar de onde saiu.
SD continua a caminhar pela oficina seguido
pelos amigos.
SD (falando bem alto para ser ouvido de
longe enquanto passeia na “barquilha”)
26
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
- Aqui, ao mesmo tempo em que
desenho, calculo e supervisiono o
trabalho dos meus mecânicos,
treino o meu equilíbrio. Equilíbrio
é tudo em aeronáutica, é a palavrachave; o segredo maior! Falando
cientificamente, o centro de
gravidade, ou baricentro, do
conjunto homem-máquina que
voa. (ele faz uma delicada manobra
de curva em descida como se
estivesse
fazendo
uma
demonstração) - O sofisma de
Napoleão que afirmava não ser
possível voar numa máquina mais
pesada do que o ar, porque no céu
não há ponto de apoio; eu contesto
afirmando que o ponto de apoio no céu é o
domínio do equilíbrio das forças e o controle
da direção de sua resultante. (faz outra
manobra em curva, desta vez ascendente,
chegando ao final, na prateleira mais alta da
Biblioteca) - E, como, por enquanto, o
homem é o elemento mais pesado do
conjunto aéreo homem-máquina, ele tem de
ser preciso nos seus movimentos; e saber
posicionar-se em
perfeito equilíbrio
durante o vôo,
enquanto maneja
comandos
e
mecanismos de
direção
e
sustentação
do
veículo aéreo. (pega
o maço de papéis no
alto da biblioteca e retorna em “vôo
descendente” ao ponto de partida) Qualquer desequilíbrio do piloto, meu caro
Pradô, pode por abaixo todo o conjunto
aeronáutico. (pousa suavemente, a poucos
centímetros do chão) - Ah, um momentinho,
amigos, veio-me uma idéia que devo anotar...
coloca-o rápida e suavemente bem
à sua frente, na posição desejada
e, quase sem curvar-se, em
movimentos soltos do braço e da
mão direita, faz cuidadosos
cálculos e demoradas anotações
sobre um dos quatro desenhos e
plantas coladas ao tampo,
movimentando com precisão o seu
azeitado tecnígrafo, sem que com isso,
provocasse algo mais do que um
imperceptível balanço milimétrico do
conjunto “barquilha-tampo” suspenso
no ar, e debaixo dos olhares apatetados
dos amigos.
SD (olhando para Prado, e brincalhão)
- Viu como é simples? Quer experimentar?
(sai com facilidade da “barquilha”)
PRADO (sem se dar conta do logro e do que
haveria de fazer)
- De fato, parece mais fácil do que eu
pensava. Se ficarem por perto, vou tentar.
Ato contínuo, o barrigudo Prado mete para
dentro
da
“barquilha” uma de
suas pernas e tenta
apoiar-se no tampo
da prancheta para
colocar a outra.
Tudo
balança
perigosamente e ao
tentar voltar atrás é
o desastre. Se
Georges e SD não acodem “no susto” para
ampará-lo, ele se estatelaria com os traseiros
no chão, de pernas para o ar. Todos, inclusive
ele, riem gostosamente e SD sai catando os
lápis, papéis e o charuto de Prado que
rolaram ao chão no seu atabalhoamento.
PRADO (recompondo-se e pegando de volta
o seu charuto)
- Ufa! Definitivamente, a pilotagem aérea não
é para a minha geração. Prefiro o velho e
bom sofá. Posso? (e dirige-se ao grande sofá
onde se senta aliviado e confortavelmente)
Ainda dentro da “barquilha”, e jeitosamente,
deposita o maço de papéis no gaveteiro
abaixo da prancheta, abre-lhe uma gavetinha
de onde retira um lápis bem apontado e uma
régua de cálculo, pega nas correntinhas de
controle do pesado tampo da prancheta,
27
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Georges segue-o e SD, logo atrás, vem
arrumando o seu maço de papéis trazidos
dos píncaros da Biblioteca. Senta-se por
último na poltrona e depõe o maço sobre a
mesa de centro.
ninguém sabe como tudo começou. Então
que tal não começarmos Você com o Pradô?
SD
- São anotações para o livro que pretendo
editar, Georges. Talvez lhe sejam úteis. Pode
levá-las por empréstimo, até porque desejo
muito a sua opinião. Já o batizei com uma
expressão lugar - comum, mas que Mallarmé
usou de maneira genial, aérea mesmo, eu
diria, em seu “L’Aprés Midi dun faune”: “Dans
L’Air”... Bem, que tal uma bebida?
PRADO (ainda no bar, enchendo duas taças
de vinho tinto)
- Não sei o quanto poderia ajudar. Mas não
se pode falar dos começos das aventuras de
Alberto, sem lembrarmos o grande e saudoso
Henrique Dumont, seu pai, e que foi, para
mim, também um pai. Daí porque trato
Alberto como um irmão mais novo e mais
querido...
GEORGES
- Já desconfiava do seu cultivo pelo melhor
das nossas letras, Alberto. Belo título! Quanto
à bebida, prefiro distanciar-me dela enquanto
trabalho; - se não os aborreço, claro.
GEORGES (já anotando e comentando)
- Sim, muitos homens importantes
começaram pelos seus pais.
GEORGES
- Estamos de acordo, senhor Prado?
(A partir de agora, o filme passa a usar
largamente a linguagem de flash-backs; com
narrações em off, ou com seus próprios
diálogos)
PRADO (já diante do bar)
- Claro que não nos aborrece, Georges, mas
não estamos nós, Alberto e eu, a trabalho.
Portanto... bem, vejamos o que temos por
aqui... O que Você deseja, Alberto?
SEQUÊNCIA 11
SD
- À sua escolha, Pradô. Sirva-nos ao seu gosto,
por favor. E, Georges, estou ao seu inteiro
dispor. O que manda?
PRADO (narrando em off sobre as cenas de
flash-back)
...Conheci Henrique numa atribulada
negociação de café na City londrina, com a
presença de uns trinta fazendeiros brasileiros.
O governo inglês pediu ajuda à Embaixada
porque a maioria dos brasileiros não falava
inglês e por isso criava um grande tumulto.
Na época eu era jovem funcionário graduado
da Embaixada em Londres e fui escalado para
ir até a City ver o que se passava. De fato,
havia um princípio de caos; ninguém se
entendia ali. Henrique estava entre os poucos
que sabia bem o inglês e o francês, e logo o
tive ao meu lado ajudando-me a desfazer os
imbroglios que se formavam. Felizmente
tudo acabou bem e, por sorte, as cotações
de café subiram muito em poucos dias, e os
fazendeiros ganharam fortunas em libras
esterlinas. Terminado tudo, todos
debandaram a gastar suas libras à tripa forra
GEORGES (um tanto confuso)
- Estou sob impacto dessa fantástica caverna
secreta! Nem sei por onde começar...
SD (em tom de caçoada)
- Meu pai dizia que devemos começar pelo
começo...
GEORGES (também caçoando)
- Ah, sim, ótimo, o começo. (e, de sopetão)
- Como começou?
SD (voltando à seriedade e franzindo os
sobrolhos)
- Eis aí a mais difícil pergunta que ouvi de
um jornalista. Como comecei, Pradô? Sim,
Pradô... ótima idéia! Pradô, melhor que
28
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
pela Europa e só Henrique permaneceu em técnicos e doutores; embarque de carga num
Londres, usando a sua disponibilidade navio com várias caixas enormes carimbadas
financeira, para construir a estrada do seu "Ribeirao Preto - Brazil"; Henrique
futuro. Foi à Embaixada pedir auxílio para cumprimentando os homens que contratou
conhecer e se colocar em contato com as ao subirem a escada do navio; a fazenda de
inovações da mecânica e da ciência e como Henrique sendo arada, cultivada e operada
aplicá-las ao bem de sua propriedade em por máquinas agrícolas e ferrovias, etc; os
Ribeirão Preto. Queria saber dos usos da cafezais de Henrique; ele em seu gabinete
máquina a vapor, queria comprar uma diante de estatísticas de crescimento de
ferrovia inteira, queria isso, queria aquilo... produção; e exibindo-as a Prado)
E nós tínhamos muito a informá-lo pois o
Gover no Pedro II
exigia-nos atualização
SEQUÊNCIA 12
permanente de tudo
que se inventava e se
PRADO (continuando a
fazia nos campos da
narração em off)
ciência e da indústria
- Alberto, porém, só vim
nos países em que tinha
a conhecê-lo quando já
representação. Para
era moço de dezoito
resumir, Henrique
anos. Foi numa viagem
embarcou para o Brasil,
para cá, já no governo
alguns meses depois,
Floriano, quando fui
levando quase um
nomeado Secretário da
navio inteiro lotado de
Embaixada em Paris.
motores, máquinas e
equipamentos
O flash-back mostra um
agrícolas; e um batalhão
embarque festivo no
de cientistas, doutores e
porto do Rio de Janeiro.
Henrique Dumont
técnicos ingleses de
(Legenda: Rio de
todas as especialidades que precisava para Janeiro, março de 1891). O “Elbe” já soltara
melhor preparar e adubar a sua terra, semear as amarras e separava-se do cais em lento
o café, colhê-lo, limpá-lo, separá-lo, refiná- movimento, e sonoros apitos. No convés da
lo, conservá-lo, armazená-lo, transportá-lo e primeira classe estão o jovem SD, Henrique,
vendê-lo. Começou aí a grande amizade e muito envelhecido, numa cadeira de rodas,
admiração que, durante toda a minha vida, e Prado, despedindo-se em meio à festa de
dediquei a esse grande homem. E, de fato, serpentinas e confetes. Muita banda de
duas ou três safras depois, Henrique já estava música em terra. A câmera acompanha o trio
entre os maiores produtores de café do Brasil caminhando pelo convés, SD empurrando a
e era um homem rico e realizado.
cadeira de rodas do pai com Prado ao seu
lado, em direção ao salão de fumar.
(Sob a narrativa de Prado sucedem-se as
imagens correspondentes: a confusão de
brasileiros na City; o encontro do ainda jovem
Prado com Henrique; os dois atuando juntos
para acalmar os ânimos; Henrique visitando
a Embaixada e sendo recebido por Prado;
funcionários da Embaixada orientando
Henrique; Henrique visitando fábricas,
oficinas e universidades; em conversa com
HENRIQUE (para Prado)
- Pensamos que perderia o navio, Pradô.
Chegou um minuto antes de soltar as amarras.
Arre, foi a conta!
PRADO (ainda suando e passando o lenço
em volta do rosto)
- Contratempos burocráticos, Henrique. É o
velho ditado: santo de casa não faz milagres.
29
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
A embaixada esqueceu-se de renovar meu
passaporte, Você acredita? Coisas do Brasil...
Mas, enfim, tudo resolvido; cá estou.
saúde não me permita desfrutá-lo como
gostaria.
PRADO
- Não fale assim, Henrique. Vai melhorar logo,
é forte e duro na queda. E a medicina na
Europa está muito avançada. Em Paris, logo
ficará bom. Onde está o nosso Alberto?
HENRIQUE
- Quero apresentar-lhe o meu filho Alberto,
de quem tanto falo...
Prado e Alberto cumprimentam-se.
HENRIQUE
- Foi à cabine de comando. Passa as manhãs
lá. Ele e o comandante tornaram-se amigos
e Alberto está tomando lições práticas de
navegação, cálculos de distâncias e rotas,
análise de cartas e mapas, essas coisas... Já
conhece o navio nos detalhes, sabe como
tudo funciona, cada mecanismo, em teoria e
prática. É um fenômeno esse meu rapaz...
PRADO
- Alberto, saiba que me sinto tão próximo
de Você, como se fosse um irmão. Henrique
não esconde a predileção pelo seu caçula, e
sempre se gaba da sua inteligência, do seu
talento e sua aplicação nos estudos.
SD
- Vai muito de exagero e bondade de pai
nisso, Sr Prado. Papai crê que o futuro do
mundo está na mecânica e prefere que a ela
eu me dedique, ao invés de tornar-me doutor.
Não terei dificuldades em atendê-lo; também
penso assim.
PRADO
- Sim, Henrique, e sem favores. Estou
tornando-me seu amigo e admirador. Ontem
à noite fomos até altas horas numa boa prosa
sobre a Europa e Paris. Fiquei surpreso: não
quis saber de mulheres, cabarets, Quartier
Latin, ou farras de rapaziada. Argüiu-me dos
progressos e inovações da ciência; queria
saber de eletrificação urbana, redes de
telefonia e telégrafo, teatrofones, indústria
de máquinas, aerostática... Esse último
assunto parece interessar-lhe amiúde... Fiquei
apertado; como sabe não sou chegado aos
riscos e às aventuras. Falou-me que deverá
ficar morando em Paris...
PRADO (em off, na oficina, narrando a
Georges)
- Na viagem percebi que Alberto era muito
mais do que um caçula mimado. Maduro,
responsável, era sério até demais para a sua
idade. Também já era disciplinado, fino e
educado. Seu desvelo para com o pai
adoentado sensibilizava todo o navio,
passageiros e tripulação...
HENRIQUE
- É sobre isso que desejo falar-lhe, Pradô,
por isso mandei chamá-lo. Perdoe-me se o
incomodei, sei que acorda tarde. Mas
precisava falar-lhe sem a presença de
Alberto...
A imagem mostra Henrique todo agasalhado
na sua cadeira de rodas com SD e um garçom
a preparar-lhe a mesa de desjejum no convés.
Finda sua tarefa SD despede-se do pai com
uma série de recomendações e sai. Ato
contínuo, aparece Prado por uma das
portinholas do convés.
PRADO
- Ora, por favor, Henrique. Saiba que
um chamado seu, faz-me sentir
honrado por ter um homem
como Você precisando de
mim. Poucas vezes, na
minha vida fútil, tenho a
sensação de ser útil. Diga-
PRADO
- Bom dia, Henrique,
belo dia, não?
HENRIQUE
- Sim, Pradô, um belo
dia. Pena que minha
30
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
me, em que posso servi-lo?
dele. Inclusive Você, Henrique, abandone
esse pessimismo. Nós três seremos
inseparáveis na velha Paris.
HENRIQUE
- Pradô, depois de meus filhos e esposa, Você
é a pessoa em quem eu mais confio neste
mundo. O fato é que pressinto o meu fim.
Não, não me interrompa. Não se trata de
achaques de velho amargurado. Considerome um homem feliz. Mas minhas forças estão
no fim e sei que não haverá ciência que possa
impedir a morte dos homens. Ela é a única
certeza da vida! (faz uma pausa) - Antes de
partir, levei Alberto ao cartório e emancipeio. Escrevi-lhe também uma carta para que
guarde como lembrança minha. Hoje, ele é
senhor de si mesmo e vai a Paris tornar-se
um homem. Não lhe faltará dinheiro, graças
a Deus, e essa providência deixo bem
assegurada. Mas, por mais que confie em
Alberto, um pai não pode deixar de temer
as armadilhas da vida. Você, meu bom Pradô,
estará também em Paris. Conhece do mundo
e da vida, bem mais que o meu Alberto. Peçolhe, não o deixe em abandono. Temos
parentes lá, mas prefiro confiá-lo a Você. E
direi isso a ele.
SEQUÊNCIA 14
PRADO (narrando em off para Georges)
... Mas em Paris chegamos apenas Alberto e
eu. Henrique desembarcou em Portugal para
retornar ao Brasil. Estava, de fato, muito mal;
e queria morrer em sua pátria. (cena de Prado
e SD desembarcando no Havre.) - E, pouco
meses depois, recebemos a notícia de sua
morte... (SD mostrando a Prado o telegrama
e abraçando-se a ele em prantos) ...Durante
cinco anos em Paris, Alberto alternava os
estudos de mecânica com a observação do
progresso das máquinas. Conseguimos que
o famoso Prof. Garcia lhe desse aulas
particulares de física, química, matemática e
mecânica. Cedo, Alberto descobriu o
automóvel e revelou seu espírito inventivo,
modificando motores e mecanismos.
Participou, e foi organizador, das primeiras
corridas de automóveis deste planeta, mas
não ganhou nenhuma; o que o deixava de
muito mal humor. (cenas de Alberto tendo
aulas com o Prof. Garcia e disputando
corridas de automóveis nas estradas
francesas) - Conseguimos-lhe, graças a
Garcia, o ingresso como aluno assistente na
Universidade de Bristol (SD chegando a
Bristol e assistindo aulas acadêmicas) Depois de uma breve viagem ao Brasil, para
PRADO (dando uma boa risada)
- É apenas isso que me pede, Henrique? Velar
por Alberto em Paris? Mas que missão mais
fácil e deliciosa! Recebo-a como prêmio de
reconhecimento, não como tarefa de
responsabilidade. Pelo que conheço de
Alberto, sei que não dará trabalho em Paris.
Desconfio até que teremos grande orgulho
Paris 1897
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SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
visitar o túmulo do pai, na qual levou o
primeiro automóvel que toda a América do
Sul viu rodar por suas ruas e estradas, (SD
chegando de automóvel ao túmulo do pai
no Brasil) - Alberto então, começou...
SEQUÊNCIA 15
(Primeira ascensão)
Uma estranha charrete, puxada por um único
e enorme avestruz (foto), dispara por uma
estradinha arborizada na linda paisagem do
Bois de Boulogne. (Legenda: Paris, 1887) Ao
chegar ao destino, um edifício-garagem
construido em madeira, SD, o cocheiro da
surrealista charretinha, estaciona-a, salta de
dentro dela e amarra o cabresto do seu
avestruz num gancho. Entra na oficina de
Lachambre e Alexis Machuron, que acabavam
de abri-la com os seus dois auxiliares.
"Uma estranha charrete..."
O balão começa a subir, na bela manhã. O
chão vai se afastando aos pés de seus
passageiros, os detalhes se diluem, a
paisagem se transforma. A subida é rápida e
as casas diminuem de tamanho, como se
fossem de brinquedo.
MACHURON (para SD)
- O equilíbrio do aparelho é sensível às
mínimas variações. O hidrogênio dentro do
invólucro de tecido escapa aos poucos
devido à porosidade do material; e o sol,
aquecendo todo o conjunto, expande o gás.
A pressão dentro do balão aumenta fazendo
com que o conjunto se torne cada vez mais
leve.
LACHAMBRE
- O senhor chegou cedo, Sr Santos. A
ascensão está prevista para as 8 horas e são
apenas 6. Temos preparativos a fazer antes
de subir...
SD
- São esses preparativos que não quero
perder, Sr. Lachambre. Se não incomodo,
gostaria de acompanhá-los desde o início. E
tenha-me à disposição para ajudar no que
puder.
O balão pára de subir, estabilizando-se numa
determinada altura muito elevada.
MACHURON
- A umidade do ar é condensada na superfície
envernizada e isso torna o conjunto mais
pesado. Há um compromisso que tem de
ser perfeito: a saída de gás pelo tecido e o
acréscimo de peso devido à umidade são
compensados pela dilatação do hidrogênio
aquecido. O balão fica sujeito às pequenas
alterações atmosféricas e se move em
completa integração com o ar.
MACHURON
- Não há nada de especial a ser feito, Sr
Santos, seja bem-vindo. Espero que não se
aborreça com as tarefas de preparação.
Sequência rápida de cenas de preparação do
balão. SD acompanha tudo nos mínimos
detalhes. Aponta aqui e ali, fazendo
perguntas e anotações numa cadernetinha
de mão. Finalmente o balão está cheio e
pronto para a ascensão. Machuron e SD
entram na barquilha.
Uma nuvem passa por cima do balão e este
parece despencar vertiginosamente.
Machuron pega um saco de areia e despejao no ar.
MACHURON
- Lachez tout!
32
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
MACHURON
- Para compensar a perda de altura, causada
pela nuvem, que esfriou o balão, só há um
jeito: largar lastro. Quando, ao contrário, o
balão estiver subindo mais que o desejado
por causa do calor, é preciso soltar o gás
sob pressão. Nosso vôo terá de terminar
quando acabar o gás ou o lastro que somos
obrigados a perder ao longo do tempo.
comprimento da corda-guia no solo, e a
conseqüente diminuição de peso faz com
que a descida não seja brusca. Nesse
equilíbrio contínuo chegamos ao solo
suavemente.
O balão pousa com suavidade, Machuron
libera todo o resto de gás, e eles saltam
imediatamente da barquilha, segurando-a
para que a brisa não levasse o balão. Alguns
lavradores das imediações acorrem curiosos
e Machuron logo os arregimenta para ajudar
nas tarefas de dobrar o invólucro e guardar
o conjunto para transporte até a estação
ferroviária mais próxima.
O balão penetra no interior de uma espessa
nuvem branca, no topo de um belo cumulus
algodoado que se projetava numa
quilométrica vertical a partir de sua base. A
visibilidade torna-se nula. Machuron começa
a despejar muito lastro.
SD (para um dos lavradores)
- Onde estamos?
MACHURON
- Dentro de uma nuvem, não podemos
perceber a velocidade de descida. Mas é certo
que estamos descendo muito rapidamente,
porque o resfriamento do conjunto é tal que
pode levá-lo ao chão, se não nos
anteciparmos no despejo de lastro.
O LAVRADOR
- Nas terras do Castelo La Ferriére,
propriedade do Senhor Alphonse de
Rothschild.
SD arma a sua câmera fotográfica e explica
ao lavrador como deve proceder para bater
uma chapa dele ao lado de Machuron e o
balão sendo guardado. O improvisado
fotógrafo não teve dificuldades em batê-la.
Ao sair da nuvem pela sua base, o até então
impassível SD chega a se assustar com a
repentina proximidade do solo aos seus pés.
Nesse momento, ouve-se o som distante de
um alegre carrilhão. Logo o sol volta a
esquentar o balão e voltam a subir para uma
altura mais reconfortante. Ouvem-se os
latidos de cachorros, marteladas e apitos
distantes de locomotivas. Enfim o vôo
encerra-se num belo descampado
adredemente escolhido por Machuron, ao
lado de uma ferrovia. A descida foi tranquila,
e, durante ela, o competente piloto Machuron
explicava ao embevecido SD as funções da
corda-guia.
SEQUÊNCIA 16
SD (agora com a palavra, em lugar de Prado,
e narrando em off para Georges)
- Nessa primeira ascensão percebi que teria
de me conhecer melhor em altitudes
elevadas. Fiz uma viagem aos alpes suíços,
em seus pontos mais altos. Lá aprendi a
esquiar (cena de SD chegando a Lucerna,
numa pousada para esquiadores nas
montanhas geladas dos Alpes) - para testar
meus reflexos naquelas condições, e até
mesmo em situações de queda. Numa
aterrissagem forçada, o aeronauta não pode
perder o controle absoluto das suas ações,
pois somente elas podem salvá-lo de uma
precipitação fatal. (cenas de SD esquiando e
despencando pelas descidas nevadas dos
Alpes)
MACHURON
- A corda guia, ou o “cabo pendente”,
funciona como lastro de equilíbrio para a
aterrissagem. Ao jogá-la, a parte que toca o
solo deixa de ser peso e faz com que se
diminua a velocidade de descida. Então
vamos liberando o pouco gás que nos resta
para que o balão não volte a subir, e desça
ainda mais. Ao fazê-lo aumentamos o
33
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SEQUÊNCIA 17 (O “Le Brésil”)
desaprovação.
SD chega pela mesma estradinha arborizada
na oficina de Lachambre e Machuron, só que
agora a bordo do seu triciclo motorizado,
que rebocava um pequeno vagonete de
carga. Pára em frente à porta da oficina e
todos saem para ver o seu veículo
MACHURON
- Aqui está escrito seda japonesa?
SD (já impaciente, pegando a maleta e
abrindo-a)
- Sim, já a trouxe. (retira um volume
embrulhado em papel) - Ei-la.
UM AUXILIAR (para o outro)
- Ele chega a fazer 35 quilômetros por hora!
MACHURON (abre o embrulho e pega a seda
com as duas mãos, avaliando o seu peso)
- Mas, é muito leve! E muito fina!? Como
resistirá à pressão? Onde já se viu um balão
com um invólucro tão leve assim?
O OUTRO (mais velho)
- Mas isso é loucura! Não tenho mais idade
para isso.
SD retira seus óculos de piloto e o capacete
de couro, desce do triciclo e vai até ao
vagonete, do qual abre o tampo. Retira de
dentro dele alguns rolos de papel, uma
pequena maleta de viagem e o seu chapéu.
Em seguida guarda os óculos e coloca o
chapéu na cabeça. Pega os rolos e a maleta
e entra na oficina cumprimentando a todos.
Lachambre e Machuron recebem-no em volta
de uma mesa. SD abre sobre ela os rolos de
papel que se revelam plantas e desenhos do
seu futuro balão, o “Le Brésil”,
completamente detalhado em projeto. Os três
mergulham nos desenhos.
SD perde a paciência. Toma-lhe a seda,
embrulha-a e recolhe-a de volta à maleta.
Reenrola os seus desenhos, coloca o chapéu
e começa a calçar as luvas para sair, enfezado.
SD
- Se os senhores permitem, devo retirar-me.
LACHAMBRE
- Acalme-se, Sr Santos. Não temos porque
nos desentender. Todos aqui aprendemos a
gostar do senhor. Não nos condene só
porque fazemos perguntas e damos
sugestões. Faremos tudo o que o senhor
pretender, e como o desejar.
LACHAMBRE
- Hum... mas, apenas cem metros de
encubagem?!
SD (relaxando e voltando a descalçar as
luvas)
- Certo, Sr Lachambre, desculpe-me o mau
gênio. Trabalhei neste
projeto os últimos dez
dias, quase sem dormir.
Está todo calculado e
desenhado. Gostaria
que começassem a
c o n s t r u i - l o
imediatamente, se
possível.
SD
- Eu peso cinquenta
quilos, de sapatos.
Quero um balão de cem
metros...
LACHAMBRE
- Por favor, Sr Santos, a
vida é a sua e o senhor
pode fazer dela o que
bem quiser. Mas não nos
obrigue a colaborar para
um suicídio.
MACHURON (pegando
novamente a seda
dentro da maleta)
- Quanto ela pesa?
SD faz uma cara de
34
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
SD
- 3,5 quilos. Envernizada pesará 14 quilos e
duzentos gramas. Bem senhores, devo ir-me.
Um bom trabalho para todos.
- Como conseguiu essa façanha? Decidimos
agora há pouco vir aqui! Não foi planejado?!
Como então a reserva?
SD
- Pago mensalidade à casa para ter sempre
uma mesa à disposição nesse horário.
Aborrece - me ter de aguardar, e acabo
perdendo o apetite...Olhe, aquele senhor
acena para Você...
Lachambre e Machuron observam SD
afastando-se em “alta” velocidade com o seu
barulhento triciclo.
MACHURON
- Nós vamos mesmo construir essa
maluquice?
Prado volta-se e vê uma mesa de cinco
convivas, dois casais e um solteiro. O solteiro
era Georges, que fazia os sinais para
cumprimentar Prado a distância. Prado
retribuiu os cumprimentos e acenou para que
Georges chegasse até ele. Georges aceitou o
convite.
LACHAMBRE
- Sim, e porque não? Está nos pagando bem
e, além do mais, esse balãozinho de cem
metros nunca há de voar em dias da minha
vida.
GEORGES (aproximando-se com alegria e
cordialidade)
- Embaixador, como vai passando? Há tempos
não o vejo no jornal. Anda emburrado com
alguns de nós?
SEQUÊNCIA 18
Porta do Maxim’s agitada. Pessoas aguardam
mesas. SD e Prado descem duma cupê. Sem
nada perguntar, SD vai passando por todos
os que aguardam, acompanhado do
espantado Prado, até chegar à presença do
maitre. Este, solícito, recebe SD com alegria.
SD
- Não, Charles, apenas o Embaixador Prado
e eu jantaremos hoje. Obrigado.
PRADO
- Não é isso, meu caro Georges! Os últimos
dois meses passei-os a ciceronear senhoras
distintas de políticos brasileiros nas suas
compras em Paris. (e, falando baixinho,
quase ao ouvido de Georges) - Vou lhe
confiar um segredo: a primeira dama, em
pessoa, chefiava o grupo! Veio incógnita,
identificada com nome falso e com ordens
para que o assunto fosse tratado como
segredo de estado! Vê porque desapareci da
roda do "Le Temps".
Deixam casacos e chapéus com a chapeleira
e seguem-no pelo interior do restaurante
repleto até a mesa por ele indicada. O maitre
retira o cartão de reserva e faz um sinal para
um dos garçons.
GEORGES
- Não se preocupe, Embaixador. Como vê,
não estou a trabalho, mas festejando com
alguns amigos. Mas que seria uma bela nota
social, lá isso seria...
O MAITRE
- Estejam à vontade, senhores. Gerard os
atenderá no que desejarem. Bom apetite.
(retira-se)
PRADO (pondo o indicador sobre os lábios)
- Shhhh! Nunca existiu nota alguma, meu
amigo! Nunca! (e, fazendo uma pausa) - Bem,
Georges, chamei-o para apresentá-lo ao meu
melhor amigo e patrício, o Sr Alberto SantosDumont. (apresenta-os e ambos
O MAITRE
- Boa noite, Sr Santos. Sua mesa está
reservada, como combinado. Alguém mais
o acompanha, além do cavalheiro?
PRADO
35
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
cumprimentam-se)
Georges) - Você não acha uma loucura essa
idéia de voar? Se Deus não deu asas ao
homem é porque o queria quieto aqui na
terra...
GEORGES
- Eu o conheço de vista, Sr Santos-Dumont,
e tenho imenso prazer em apertar-lhe a mão.
Cobri uma reunião no Automóvel Clube, na
qual o senhor propôs a fundação de um Aero
Clube em Paris, lembra-se? Nosso fotógrafo
registrou, a meu pedido, um bom instantâneo
do senhor ao lado dos senhores Ernst
Archdeacon e o Marquês de Dion.
GEORGES
- No jornal sou da opinião de que devíamos
dar mais atenção aos avanços e experiências
no campo da aeronáutica. E não acho que
seja loucura. Deus não deu asas aos homens
mas deu-lhes um cérebro privilegiado. Agora,
que os ature! Queremos voar, ora essa!... (e,
para SD) - Por ventura esse balão é o que
Lachambre e Machuron estão a construir?
SD
- O prazer é o mesmo, Sr Goursat. Lembrome do senhor. Não sabia é que tratava-se da
mesma pessoa que acompanho pelos jornais
em excelentes reportagens e caricaturas. Seus
amigos consentiriam em que nos desse o
prazer de sua companhia, por alguns
momentos?
SD
- Já o construíram. Está perfeitamente pronto.
Hoje fizemos os últimos testes em terra.
Amanhã, se tudo correr bem, vou voá-lo.
GEORGES (irônico, para Prado)
- Espero que não seja outro segredo de estado
brasileiro, Embaixador. (e, para SD) - O Sr
se importa que a imprensa cubra esse
acontecimento
memorável?
Estou
duplamente interessado; como jornalista e
caricaturista. Quando Lachambre falou-me do
seu balão, ressaltou o fato de o senhor ter
levado os materiais para construi-lo numa
pequena valise de mão! Achei o mote perfeito
para uma charge. Espero que não se ofenda
com charges e caricaturas, Sr Santos...
GEORGES (olhando para o seu grupo de
amigos)
- Meus amigos já divertem-se bastante sem
minha presença, senhores. Vou aceitar esse
amável convite; me sentindo honrado por
compartilhar a companhia de dois ilustres
brasileiros. (senta-se na cadeira que SD lhe
oferece)
O garçom chega com champagne e duas
taças. SD pede-lhe que traga mais uma antes
de servir. Servidas as taças os três brindam e
bebem.
SD
- De modo algum me ofenderia com as suas,
senhor Goursat. Não as perco nunca quando
estampam-nas nos jornais de Paris. Acho-as
de excelente espírito e elevado humor.
Devem contribuir bastante para despertar o
interesse dos leitores. Seria uma honra ter
sua presença no meu vôo de estréia.
Considere-se meu convidado. A ascensão
está prevista para as oito horas.
PRADO
- Recomendo esse brinde ao primeiro vôosolo de Alberto. (e, falando para Georges) Amanhã Alberto vai fazer sua primeira
ascensão-solo em balão. Um balão que ele
mesmo projetou e desenhou. Quando
cheguei a Paris com Alberto, achava que não
ia ter dores de cabeça por sua causa. Estava
certo até hoje. Com essa loucura aérea elas
começam a atormentar-me. As últimas noites
passei-as rezando, pedindo a proteção do
meu bom amigo Henrique, pai de Alberto
(e, como se falasse para os céus) - Henrique,
não há o que eu possa fazer por Alberto aí
nas alturas! Espero que Você possa... (e, para
GEORGES
- Eu agradeço-lhe, Sr Santos. Gostaria de
reprisar o brinde do Embaixador Prado. Um
brinde, senhores (brindam e bebem, Georges
levanta-se despedindo-se)
36
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
SD
- Por favor, Sr Gousart, trate-me
Alberto.
entanto, nada mudou. Não vejo
porque vá mudar...
LACHAMBRE
- Todos estão de acordo em adiar
a ascensão, Sr Santos. Tem de
reconhecer que não é um
aeronauta de ofício; está apenas
começando. É preciso aguardar
tempo mais seguro...
GEORGES
- Desde que o senhor aceite
tratar-me Georges...
SD
- Então, até amanhã, Georges.
GEORGES
- Estarei lá às oito em ponto, Alberto.
E levo comigo um fotógrafo. Até lá.
SD (já impaciente)
- O que o senhor está a temer, Sr
Lachambre? Afinal, não é esse
balãozinho que nunca haveria de subir
em dias da sua vida? Então por quê essa
discussão? (e, para os auxiliares)
- Lachez tout!
SEQUÊNCIA 19 (Primeira ascensão-solo)
Oficina de Lachambre e Machuron. (Legenda:
Paris, 4 de julho de 1898) Algumas cupês,
landaus e primitivos automóveis
estacionados. Uma pequena multidão
rodeava a barquilha do “Le Brésil”
completamente cheio de gás e pronto para
largar. (foto) O tempo, porém, não estava
nada bom. Não havia vento ou chuva, mas
nuvens ameaçadoras e negras cobriam parte
do céu com relâmpagos insistentes ora aqui,
ora ali. No centro da pequena multidão,
travava-se uma discussão.
Os dois entreolharam-se e olharam para
Lachambre
SD (irado)
- Não é para ele que Vocês têm de olhar,
imbecis! É para mim! Eu é que comando esse
balão e dou as ordens! (e, repetindo) - Lachez
tout!
Um silêncio absoluto tomou conta de todos.
Os auxiliares olharam mais uma vez
constrangidos para Lachambre e depois para
o furioso comandante que ameaçou repetir
a ordem. Soltaram.
SD (já dentro da barquilha e pronto para
largar)
- Preciso largar.
LACHAMBRE
- Vamos adiar a
ascensão, Sr Santos. É
imperativo. São dez
horas e o tempo está
piorando...
SD
- Se tivesse largado às
oito estaria aterrissando
a essa hora, sem
problemas, Lachambre.
Se não o fiz, foi por
ouvir suas ponderações
sobre o tempo. No
No silêncio e no pasmo geral, o “Le Brésil”
alçou-se com leveza e
graça, em ascensão
contínua, quase numa
perfeita linha vertical,
com
um
ligeiro
deslocamento à leste.
Todos, sem sair de suas
p o s i ç õ e s ,
acompanharam o balão
a subir e a diminuir, até
que um vento o
apanhou, levando-o
com rapidez na direção
leste, a perigosa direção
..."travava-se uma discussão"...
das nuvens, dos pesados
37
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
cumulus nimbus que lá se formavam, num
medonho cinza-chumbo, a relampejar e
reboar ao longe. E lá, o pequeno pontinho
negro no céu, em que havia se transformado
o “Le Brésil”, desapareceu.
no escritório.
O MORDOMO
- Uma ligação interurbana da Bélgica, senhor.
No aparelho do salão.
PRADO (saindo para atender, com
impaciência)
- Da Bélgica? Quem será que, diabos, quer
falar-me da Bélgica nessa hora?...
SEQUÊNCIA 20 (P.M.N.D.N.)
SD na barquilha do “Le Brésil”, dentro da
nuvem, enfrenta uma terrível tempestade.
Chove grosso, venta muito, relampeja por
todos os lados violentamente. A barquilha
sacode muito, mas o conjunto é resistente e
não afronta as forças que o assediam; ao
contrário, submete-se a elas. SD segura-se e
tenta cobrir-se com o seu impermeável. Seu
rosto é impassível.
Georges permanece apreensivo no escritório.
De repente ouve a voz de Prado aos berros,
do salão.
PRADO (falando em português)
- Alberto! Alberto! Onde Você está, meu filho?
Oh, bom Deus (e voltando a falar em francês
ao ver Georges que se aproximava correndo)
- Você está bem? Precisa socorro? Machucouse? (de novo, em português) - Fale, homem
de Deus!
Corte para Prado e Georges andando de um
lado para o outro no escritório de Prado, na
Embaixada Brasileira em Paris. Roem as
unhas e esfregam as mãos de aflição e
ansiedade. Na parede, o relógio, num
impiedoso tic-tac, mostra dezoito horas em
Paris. De repente toca o telefone. Prado
atende imediatamente.
Corte para SD falando ao telefone do interior
da Bélgica, na casa do chefe do trem. A casa
está repleta de camponeses, e SD está diante
de uma mesa servida com fartura de iguarias
rústicas. Ao seu lado, um grande caixote
guardava o “Le Brésil” bem acondicionado.
PRADO (com voz de decepção)
- Sim, sim, está. É Adrien, Georges.
SD (aos berros pelo telefone)
- Estou ótimo, Pradô! Foi uma viagem e tanto.
Você não vai acreditar. E deixou-me com um
apetite de glutão. Estou falando da casa do
chefe de trem em Virton, na Bélgica. Estão
sendo muito amáveis comigo. Devo pegar o
comboio que passa aqui às 22 horas para
Luxemburgo. De lá volto a ligar para dar
previsão da minha chegada a Paris.
GEORGES (atendendo)
- Não, não; nada até agora. O que? 20 horas?
Não pode ser um pouco mais tarde? Certo,
certo. Ainda não sei o que escrever, vou
aguardar até às 19 e em seguida sigo para o
jornal. Sim, até já. (desliga e, para Prado) Adrien vai fechar a edição às 20 horas; não
pode esperar mais. Conseguiu que o Figaro
nada publicasse, mas não há qualquer notícia
até o momento.
PRADO (com Georges ao seu lado fazendo
sinal de que também desejava falar)
- Só acredito quando apertar seus ossos
pessoalmente, Alberto. Venha logo para cá!
E cuide-se, hein? O nosso Georges deseja
falar com Você. Vou passar a ele.
PRADO (enxugando, sem parar, o seu rosto
suado, com um enorme lenço)
- Checamos todas as províncias de França,
as cidades e vilas que possuem telégrafo e
telefone, e nada. E essa tempestade que
desabou em Paris o dia todo, meu Deus!...
Prado estava radiante. Enquanto Georges fala
com SD, ele chama o mordomo.
Batem à porta. O mordomo de Prado entra
38
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
PRADO (em português, esfregando as mãos
de alegria e contentamento)
- Albério, traga o champagne. Vamos precisar.
- Bem, Alberto, felizmente tudo correu bem
dessa vez, ufa! Agora, de volta à velha vida
civilizada, querido amigo. Passamos um mau
pedaço, acredite! Parecia que o céu ia cair
nas nossas cabeças ontem à tarde, precisava
ver. Fiquei em pânico com Você lá em cima.
Espero que tenha ficado satisfeito,
aeronáutica é assunto para muito estudo, na
tranqüilidade das sólidas bibliotecas. Praticála ainda não é o momento. É preciso
esperar...
GEORGES (ainda no telefone)
... sim, sim, estávamos todos ansiosos e sem
notícias. Tudo está bem? Precisa de alguma
coisa? Temos amigos aí...
SD (sempre em in)
- Estou com um monumental apetite,
Georges; e muito bem servido de amigos,
esses bondosos camponeses daqui. Acabam
de por à mesa um javali assado ao ponto!
Estou disposto a devorá-lo inteiro, como
Vocês faziam na velha gália quando eram
bárbaros.
SD não emite um só comentário.
PRADO (continuando)
- Andei conversando com o Doutor Genésio
Lisboa, que veio para planejar a nossa
participação na Grande Exposição de 1900.
Ele é da opinião que, sendo Paris a
capital do mundo, é justo que
a embaixada mantenha um
quadro técnico-consultor para
as ciências e a mecânica.
Pensamos que Você seria a
pessoa certa para esse cargo,
Alberto. O que acha? Não o
obrigaria com tarefas enfadonhas e
burocráticas; e Você trabalharia à
vontade num metier que nenhum
brasileiro conhece tão bem...
Alberto! Alberto! Está me ouvindo,
homem?...
GEORGES
- Amanhã, quando chegar a Paris estará
nas primeiras páginas, meu
caro. Boa viagem. Grandes
abraços à Você e à Bélgica
inteira!
SEQUÊNCIA 21
Na estação de Paris, Prado
aguarda a composição que
estaciona lentamente ao seu
lado, olhando por todas as
janelas. Caminha até a saída do
vagão de primeira classe do qual já
começam a descer passageiros. SD está entre
os primeiros que saltam do trem. Abraçamse. Prado tem nas mãos o "Le Temps".
SD (como se estivesse despertando de um
sono profundo)
- Ah, sim?! Bem, Pradô, preciso de uma
propriedade exclusiva para mim em Paris.
Nessa viagem, o que mais preocupou-me
foram os meus parentes, que hospedam-me
tão generosamente. Ontem, prometi-lhes
retornar para o jantar e fiquei sem meios de
avisá-los. São pessoas conservadoras, e nem
possuem telefone. Você teria alguém na
Embaixada que pudesse ajudar?
PRADO (mostrando-lhe o jornal)
- Aí está Você, Alberto. Em todas as primeiras
páginas de hoje. Ufa! Que aventura!
SD
- Boa a blague do Georges! Ele de fato é
muito bom!
PRADO (um pouco desanimado com a
desatenção do amigo em relação à sua
proposta)
- Quem cuida disso na Embaixada é o Flores.
Vou falar com ele. Foi-nos muito útil na vinda
Entram na landau de Prado que sai a trote
em direção ao 15eme.
PRADO
39
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
das senhoras a Paris...Ah, chegamos, seus
parentes já o aguardam... (os parentes de SD
esperavam-no na calçada, ansiosos) - E,
quanto à minha proposta, que tal pensar...
GEORGES
- E então foi lá, intrometendo-se na fúria dos
elementos e numa conversa com deuses
desatinados, que Você recebeu a chave da
dirigibilidade dos balões? Bem mais difícil
do que Arquimedes, que teve o seu “Eureca!”
numa sólida e confortável banheira.
SD
- Proposta? Que proposta? (desce da landau
e começa a abraçar os parentes)
SD
- Bem, se aquilo foi mesmo uma conversa,
não posso afirmá-lo. O que sei, com certeza,
é que seria um tipo de conversa que um
homem só pode ter uma vez em cada vida;
e olhe lá!
A cena retorna à oficina de SD onde os três
amigos conversam. SD renova o vinho de
Prado, e continua a sua narração.
SD
- Aquela ascensão levou-me onde homem
algum jamais esteve antes: ao centro de uma
furiosa tempestade, em pleno céu. Fui
totalmente subjugado àquelas poderosas
forças com as quais a Natureza podia ter-me
feito em picadinhos. Conheci in loco o
significado do verso de Camões, o poeta
épico da minha raça (e diz em português):
“Por Mares Nunca Dantes Navegados”. Algo
que só se compara ao relato dos grandes
odisseus das lendas e narrativas trágicas.
Senti o que provavelmente sentiram os
Ulisses, os Dantes, os Vascos-da-Gama, os
Cristóvãos Colombos, homens que se
atreveram a penetrar regiões somente
permitidas aos deuses e às fantasias do
imaginário. (e, em off, sobre as imagens da
viagem) - Eu ia, ia, nas trevas. Sabia que
avançava a grande velocidade, mas não
sentia nenhum movimento. Ouvia e recebia
a procela; e era só. Tinha consciência de um
grande perigo, mas este não era tangível.
Uma espécie de alegria selvagem dominava
meus nervos. Como explicar isso? Lá no alto,
na solidão negra, entre o fulgor dos
relâmpagos que a rasgavam e o faiscar dos
raios, eu me sentia como parte integrante da
própria tempestade! (e, em in) - Foi lá, em
pleno cataclisma, de tal ordem que nem o
medo consegue manifestar-se, que percebi
a urgente necessidade de acoplar um motor
ao balão, de modo que eu pudesse conduzilo para longe dali. Posso jurar, que não
pensei, uma única vez, na possibilidade de
morrer. Cheguei até a pensar que havia
morrido; mas não que iria morrer.
O filme retorna ao flash back.
SEQUÊNCIA 22
Uma grande mesa no Maxim’s, tendo SD à
cabeceira, comemora o retorno do herói e a
sua aventura. Deutsch de la Meurthe e o
Príncipe Bonaparte conversam entre si.
DEUTSCH
- Ele falou em colocar um motor para guiar
o seu balão... Isso é impossível! Motores a
vapor são muito pesados para ascender...
BONAPARTE
- Meu caro Deutsch, Você estava desatento;
ele referia-se ao motor de explosão a
petróleo. Do tipo que estão começando a
usar nos automóveis, muito mais leves...
DEUTSCH
- Um motor à explosão! O nome já diz! Aquilo
solta fagulhas para todos os lados! O balão
explodiria antes de sair do chão. Se não, a
vibração do motor destruiria o balão.
Lachambre já me falou a respeito.
BONAPARTE
- Lachambre também arrotou para todos os
lados que o “Le Brésil” jamais sairia do solo.
No entanto, não somente voou até a Bélgica,
como também enfrentou tempestades em
plena atmosfera. O Sr Santos já fez por
merecer um crédito, não?
40
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
SEQUÊNCIA 23
Chapin pega um pedaço de papel e passa-o
por cima do cano de escapamento. Nada.
Um bosque nos arredores de Paris. Debaixo
de uma troncuda galhada horizontal de um
pitoresco carvalho, estão SD, François e
Chapin, seu novo mecânico. Sob a orientação
de SD, eles montam, no tronco, um sistema
de cordas capaz de levantar o seu triciclo do
solo até uma altura desejada. SD entrega a
Chapin um cano curvado em ângulo reto e
manda prendê-lo com a boca para baixo na
saída de escape do motor através de uma
presilha fortemente ajustável que inventara.
Em seguida, ajudado por François, SD sobe
no triciclo pendurado e acomoda-se no
assento.
SD
- Perfeito. Desçam-me. (desamarraram as
cordas e seguraram-nas para que o triciclo
pousasse suavemente) - Como calculei as
vibrações do motor são menores no ar do
que em terra. E o dispositivo de escape
funcionou. Podemos começar a montar o
Número 1.
SEQUÊNCIA 24 (O Número 1)
Jardin d’Acclimatation, no Bois de Boulogne.
(Legenda: Jardin d’Acclimatation, Paris, 18
de setembro de 1898) Chapin, Lachambre e
Machuron e alguns auxiliares, comandados
por SD, fazem os preparativos para vôo do
Número 1. Um multidão forma-se ao redor.
Chegam vitórias, tilburis, cupês, landaus,
automóveis, triciclos, homens a cavalo, de
bicicleta e a pé. Muitas senhoras e senhoritas
curiosas. O grande charuto é inflado,
elevando-se sobre o aglomerado humano.
SD dá ordens, verifica detalhes, testa
cordames, não pára. Machuron e ele
desentendem-se e discutem por qualquer
coisa. Enfim, o motor é posto a girar e SD,
na barquilha, dá ordens para soltar. O
Número 1 eleva-se com lentidão sobre as
cabeças das pessoas atentas e começava sua
ascensão quando uma rajada de vento fezse sentir, empurrando-o em direção a um
denso arvoredo nas proximidades, sem
tempo para qualquer manobra. Em seguida,
chocou-se com as árvores desastradamente,
e o invólucro rasgou-se, murchando diante
da platéia boquiaberta. Prado suava,
passando o seu enorme lenço o tempo todo
em volta do rosto, tentando achar Alberto
no meio do arvoredo. Finalmente ele
aparece, descendo de uma árvore, de galho
em galho, lépido, até no chão, de onde acena
para a multidão. Todos aplaudem. Os
mecânicos correm em sua direção.
SD
- Atenção, afastem-se. Vou dar a partida no
motor. Se eu cair tentem segurar-me.
Os dois afastam-se um pouco e SD dá a
partida no pedal. Ao fazê-lo o conjunto
balança perigosamente mas logo se equilibra
com um movimento de corpo de SD. O motor
pega e dispara. Tudo bem. Gira macio, quase
sem vibrações.
SD
- Ótimo, Chapin, verifique se há escape de
fagulhas para cima.
Outra posição do mesmo local, dois dias
depois. (Legenda: Jardin d’Acclimatation,
O Nº1: "...elevando-se sobre o aglomerado humano..."
41
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Paris, 20 de setembro
de
1898)
Os
preparativos para
ascensão do Número 1,
consertado, estão prontos
e SD prepara-se para
ordenar a largada.
dois. Mal tinha saído da barquilha, SD vê a
landau de Prado chegando a todo o galope
em Bagatelle, seguida de outros
veículos. Prado desce da
landau e é o primeiro a
chegar até ele.
PRADO (suando com seu
lenço na mão)
- Ufa! Alberto, Você está bem?
Por favor, é preciso parar; não
sei se resisto a essa maratona...
SD (para Chapin)
- Dessa posição garanto-lhe que
não terei problemas para
decolar, Chapin. Esses balonistas
enfim vão entender as diferenças
entre o dirigível e o balão esférico.
Uma pequena multidão se
forma em torno de SD. Ele
abraça e beija os garotos que
o salvaram e tira do bolso
algum dinheiro que oferece a eles para
comprar guloseimas. Depois, em meio ao
burburinho que se formou, SD sobe na
barquilha e, equilibrando-se em pé sobre ela,
pede silêncio a todos.
Menos pessoas em volta do que na
vez anterior. O Número 1 eleva-se
bem, ultrapassa o topo das árvores sob os
aplausos da pequena platéia, e ganha altura
já em manobras. A câmera pega detalhes de
SD a pilotar o seu dirigível que passeia por
cima de bosques e campos subindo sempre,
até atingir 400 metros de altitude. Ao descer
caminha para o pouso em Bagatelle, mas o
invólucro começa a murchar perigosamente.
SD percebendo o perigo, joga a corda guia
perto de um grupo de garotos que jogavam
bola e grita para eles.
SD (de pé, no alto da barquilha) (foto)
- Henry Giffard, com a coragem tão grande
quanto a sua ciência, já tinha demonstrado,
há mais de 40 anos e de maneira magistral, a
possibilidade de dirigir um balão. Hoje eu o
comprovei mais uma vez, e utilizando pela
primeira vez um motor a petróleo. Desejo
aqui homenagear esse grande precursor que
foi Henry Giffard.
SD
- Segurem a corda! Segurem a corda! Atenção,
todos Vocês; segurem bem firme e não
deixem que ela os arraste.
SEQUÊNCIA 25
Os surpresos garotos obedecem
prontamente a ordem e juntam-se
para segurar a corda, com toda a
força que possuem.
Festa de gala em Paris. Os Rothschild
recebem a alta sociedade e a intelectualidade
francesa. Nos grandes salões repletos SD,
uma das estrelas da festa, está envolto numa
roda de amigos e curiosos. Georges
aproxima-se, abre passagem, trazendo
consigo uma outra estrela da festa: o jovem
escritor e revelação das letras modernas de
França, Marcel Proust.
Ele apresenta-o a SD e ambos trocam
impressões e elogios mútuos, numa conversa
rápida. Depois cumprimentam-se e
despedem-se. Após a saída de Proust, um
dos amigos lhe pergunta o que achou dele.
SD
- Isso; isso mesmo; firme; bem
firme!
Neste momento o Número
1 passou a ser uma
imensa pipa segura
pela meninada e vai
lentamente caindo até
o solo com o seu
charuto dobrado em
42
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
SD
- Uma personalidade muito interessante, mas
um tanto mundano.
uma premiação, cujos termos ainda
decidiremos, para acelerar o progresso de
experiências e testes em aeronaves.
Marcel Proust, retornando à sua roda de
amigos é indagado da mesma forma sobre
SD.
Georges aproxima-se do grupo ao lado de
Adrien.
GEORGES (sempre brincalhão e animado)
- Senhores, desculpem-nos pela interrupção,
mas as danças já começaram. Não é justo
que tão belas senhoritas esquentem sofás e
cadeiras enquanto os cavalheiros tratam
negócios!
PROUST
- Interessante e exótica figura, a do Sr Santos.
Porém, um tanto aérea...
Num outro momento da mesma festa, SD está
junto ao Príncipe Rolland Bonaparte, o Sr.
Deutsch de La Meurthe, o Marquês de Dion
e o advogado Ernst Archdeacon.
Todos concordam e dirigem-se ao salão de
danças.
ARCHDEACON
- Achamos que chegou o momento, Sr Santos,
de fundarmos o Aero Clube de Paris. Sua
sugestão do Campo de St. Cloud foi
aprovada. E temos adesões suficientes para
a aquisição dos terrenos. Mas, o mais
importante, é que temos, no senhor, o nosso
primeiro aeronauta motorizado.
No salão, outra estrela da festa: a atriz Sarah
Benhard, cercada de um grupo do qual fazem
parte o General André e o Sr. Rothschild.
Adrien apresenta SD a Sarah. A música
começa.
SD (para Sarah)
- A Senhora concede-me a honra dessa
dança?
SD
- Fico feliz em sabê-lo, Doutor Archdeacon,
pois espero que o Aero Clube estimule novos
aeronautas. Penso que a França tem essa
missão perante a humanidade. Daqui será
dada a partida para o novo século. E a
aeronáutica, estou convicto, será a ciência
desse novo século, e o seu maior avanço
sobre os anteriores.
SARAH
- Mas com muito prazer, Sr Santos-Dumont.
Com o Senhor quem sabe vou ter a sensação
de estar dançando nas nuvens...
Começam a dançar. Todos observam o
famoso par e admiram-se da destreza de SD
ao girar garbosamente com a grande dama
pelo salão.
DEUTSCH
- Através do Aero Clube, pretendo instituir
Festa de gala em Paris: entre as celebridades, Sarah Benhard, SD e o Gen. André. (do centro para a direita)
43
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SEQUÊNCIA 26 (O Número 2)
mostraram equivocados quanto aos dirigíveis.
O Número 3, porém, foi desenhado e
projetado segundo os meus próprios cálculos
e teorias. Até hoje, minhas inovações bem
sucedidas tiveram origem em deduções
teóricas, apoiadas em bases científicas.
Aeronautas empíricos dizem que a ciência
pouca coisa vale quando se trata de voar.
Isso não é verdade, e vamos agora
demonstrá-lo.
Tempo chuvoso no Jardin d’Acclimatation.
O Número 2 está sendo preparado para voar.
Muitos guarda-chuvas e impermeáveis no
agrupamento que se forma em torno dele.
(Legenda: Jardin d Acclimatation, Paris, 11
de maio de 1899) As discussões de sempre
repetem-se entre Lachambre e SD. Voa ou
não voa? O tempo, etc. SD está impaciente e
acaba rompendo com Lachambre,
despedindo-o definitivamente. Lachambre
aceita a demissão e sai enfurecido.
Oficina da Vau Girard, no 15eme. (Legenda:
Paris, 12 de novembro de 1899) SD e seus
mecânicos, com Chapin, pela primeira vez à
LACHAMBRE
frente, preparam sozinhos, num grande pátio
- É um cabeçudo!
fechado, o Número 3. Tudo pronto, SD entra
na barquilha, manda girar o motor e dá a
SD tira o chapéu e experimenta a chuva. Não ordem de largada. O Número 3 eleva-se firme
está tão forte. Entra na barquilha e manda e tranqüilo na bela manhã de primavera. SD
largar. Nessa hora a chuva aperta e, ainda a manobra-o à vontade; sobe, desce, evolui.
alguns metros do chão, o frio faz com que o (foto) Tudo sai perfeito. Dali, ele sobrevoa
invólucro comece a murchar. De repente, o Champ de Mars, entre a Torre Eiffel e a
uma inesperada ventania arroja todo o École Militaire, executa manobras, brinca no
precário conjunto para cima das árvores. ar. Embaixo, Paris está paralisada e
Outro desastre. Susto geral. Prado em pânico. boquiaberta. Os exercícios dos alunos da
escola militar interrompem-se sem qualquer
PRADO (com as mãos postas para o céu)
comando e alunos e instrutores olham para
- Henrique, meu bom amigo, Você está aí? o céu, para ver aquela única nuvem artificial,
Peça a ele que pare com essa loucura, por de cor bege claro, que evoluía sobre suas
favor!
cabeças ao comando de seu piloto. Bondes
param e
seus passageiros descem para
observar o fenômeno. Os
cafés e as boulangeries
SEQUÊNCIA 27
esvaziam-se repentinamente
(O Número 3)
de seus clientes, empregados
e proprietários que correm às
SD e seus mecânicos
calçadas e olham o céu. O
reúnem-se na oficina em Vau
mesmo acontece com as
Girard, no 15eme. É uma
repartições públicas, os
reunião tensa. SD exibe as
escritórios, o comércio e
pranchas de projeto do
as fábricas. No alto de
Número 3.
uma das torres da Catedral
de Notre Dame, um certo
SD
corcunda horroroso
- Amigos, nos projetos
desentoca-se e olha para
anteriores, a minha
o céu, com o seu único
inexperiência permitiu os
olho protegido do sol por
aconselhamentos de
uma das mãos. O pipocar
aeronautas de balões
do motor do Número 3
"Outro
desastre.
Susto
Geral."
esféricos,
que
se
passa a ser o ruído que
44
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
todos ouvem passando
sobre suas cabeças,
precedido da grande
sombra que projetava-se
nos telhados e ruas da
cidade anunciando o
grande charuto do Número
3, que logo surgia
imponente, como se fosse
uma nuvem feita à
compasso, geométrica e que não esvanecia.
E que trazia, pendurado por uma teia de
cabos e cordas que traçavam o seu delicado
cordame, a pequena barquilha motorizada,
deixando um leve rastro de fumaça à ré, com
o seu piloto de chapéu já conhecido e
copiado em Paris, hasteando orgulhoso uma
vasta bandeira do Brasil a tremular ao vento.
O Número 3 dirige-se à Torre Eiffel,
ultrapassa-a, ruma ao Parc des Princes, onde
crianças e suas babás pasmam em vê-lo e
segue para Bagatelle, onde aterrissa
suavemente, paralisando uma acirrada
partida de pólo que ao lado se disputava
entre homens a cavalo
fotógrafo e comecei a seguilo, no seu automóvel. Agora
sei por que não quis que
eu o devolvesse ontem.
Tramava tudo isso, não é?
SD
- Houve também uma certa
coincidência. Passei a noite
O "Número 3"
em claro na Vau Girard e
não podia encontrar-me consigo. Queria
sigilo total nos preparativos. E o Número 3
ficou uma beleza! Todos os meus cálculos
verificaram-se corretos.
Outros veículos vinham chegando com
jornalistas, membros do AeroClube, amigos,
curiosos. Prado, dos amigos, foi o último a
chegar e abraçou SD eufórico. A pequena
multidão pegou SD e levou-o sobre os
ombros fazendo um passeio da vitória em
Bagatelle.
SEQUÊNCIA 28
Georges foi o primeiro a chegar, pilotando o
automóvel elétrico de SD. Os mecânicos de
SD já estavam lá, aguardando-o, como
combinado. Georges tinha-o seguido por
toda a Paris, com o fotógrafo
do "Le Temps" e
bateram
várias
chapas. Estava em
transe.
GEORGES
- Vitória! Vitória!
(abraça SD) Grande vitória! E
não
avisou
ninguém, hein, seu
malandro!
Eu
estava no jornal
quando começou
o
rebuliço.
Corremos para fora
e lá estava Você,
sobre as nossas
cabeças. Chamei o
No dia seguinte, pela manhã, acontecia,
como previsto, a sessão solene de fundação
do Aero Clube de Paris. Todos os membros
fundadores lá chegavam trazendo diferentes
jornais debaixo do braço, que exibiam
na primeira página o mesmo
assunto: o vôo surpresa do
Número 3. SD foi dos
últimos a entrar no
auditório
do
Automóvel Clube e
foi imediatamente
aplaudido de pé por
todos os presentes.
O advogado Ernst
Archdeacon, que
presidia a sessão,
convidou-o para
compor a mesa, mas
ele educadamente
d e c l i n o u ,
preferindo sentar-se
"O Número 3 eleva-se firme e tranquilo..."
na platéia. Após as
formalidades SD
45
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
levanta-se e pede a palavra.
inusitadas: 30 metros de comprimento, 7 de
largura e 11 de altura, com duas imensas
portas de correr, ainda fechadas.
SD
- Amigos, esta data me traz tão grande
felicidade que não posso deixar de registrála em breves palavras. Desejo anunciar que,
amanhã mesmo, darei início à construção de
uma estação-garagem para meus dirigíveis
em St. Cloud. E prometo realizar lá todas as
minhas próximas experiências. Tenho a
convicção de que St Cloud está destinado a
ser o primeiro ninho da aeronáutica do
mundo! Muito obrigado. (todos o aplaudem,
e Deutsch pede a palavra)
UM DOS PRESENTES (comentando para um
outro, ao seu lado)
- Que prédio mais esquisito! E essas portas
de correr enormes? Serão empurradas por
máquinas? Ou por gigantes?
O Príncipe Bonaparte corta com uma tesoura
uma fita de seda que lacrava as duas portas.
Gasteau e Dazon, recentemente contratados
por SD, encarregam-se de abrir as portas
usando apenas uma das mãos, num
movimento feito sem qualquer esforço. Lá
dentro, bem guardado e cheio de gás, estava
o Número 3, pronto para voar, em toda a
sua imponência.
DEUTSCH
- Aproveito esse momento para anunciar que
estou depositando nos cofres do Aero Clube
a importância de 100 000 francos. Eu os
ofereço ao aeronauta que conseguir, partindo
do Campo de St. Cloud, levar sua aeronave,
em vôo por ele controlado, até a Torre Eiffel,
contorná-la, e voltar ao ponto de partida,
num tempo igual ou menor do que trinta
minutos. Tenho dito. (novos aplausos,
seguidos de comentários)
SD (para Bonaparte e os demais que o
acompanhavam na visita ao interior do
hangar)
- Agora não preciso mais desperdiçar o
valioso hidrogênio enchendo e esvaziando
o invólucro a cada vôo. Posso guardá-lo
muito bem aqui, e em segurança, sempre
pronto para partir.
UM DOS PRESENTES (para um outro, ao seu
lado)
- Prêmio fácil de oferecer; pois é impossível
ganhá-lo!
A seguir, SD orienta os seus mecânicos para
retirar o Número 3 para fora do hangar. Eles
o fazem e SD entra na barquilha, dá o sinal
e alça-se aos ares, fazendo várias evoluções
em baixa altitude, subindo e descendo,
manobrando à vontade, sob a admiração de
todos. Enfim,
decide pousá-lo
e o faz com
a b s o l u t a
perfeição
exatamente no
lugar de onde
saíra. Depois,
sai da barquilha,
sob os aplausos
da entusiasmada
platéia.
O OUTRO
- Pelo que vi ontem, não é tão impossível
assim. Mas o Sr Santos é o único concorrente.
SEQUÊNCIA 29
Inauguração do
hangar de SD no
campo de St.
Cloud.
Uma
p e q u e n a
multidão
se
aglomera diante
daquele estranho
e d i f í c i o ,
projetado por SD,
com dimensões
O 1º hangar do mundo: "Que prédio mais esquisito!"...
46
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
SEQUÊNCIA 30 (O Número 4)
finalmente montadas e testadas em vôo.
Reunião de SD e seus mecânicos na nova
oficina secreta, ainda incompleta, anexa ao
apartamento de SD nos Champs Elysées. SD
percorre os espaços vazios com a planta por
ele desenhada do seu projeto de ocupação
e os seus planos de trabalho, mostrando-os
a Chapin, Gasteau e Dazon, maravilhados.
Depois, sentam-se em volta da mesa da
Biblioteca, e SD abre um novo rolo de plantas
e desenhos do seu novo projeto.
DAZON
- Não seria mais prático fazer tudo lá, ou em
Vau Girard, como vínhamos fazendo?
SD
- Amigos, somente Vocês terão acesso a esta
oficina e sob o juramento de sigilo. Aqui
vamos ter a oficina mais completa e segura
para projetar e construir as nossas futuras
aeronaves, a começar pelo dirigível Número
4 que projetei, calculei e desenhei nestas
plantas. Somos os primeiros e, por enquanto,
os únicos concorrentes ao Prêmio Deutsch.
Com base na experiência dos anteriores,
calculei um novo balão dirigível com
aerodinâmica e propulsão mais eficientes,
para ganhar essa prova. Se conquistarmos
essa vitória prometo-lhes que concederei boa
parte do seu valor em dinheiro a Vocês e
seus auxiliares.
CHAPIN
- Sim, agora entendo. O Senhor decidiu-se
por registrar patentes de seus inventos...
SD
- Talvez, Dazon, mas lá não teríamos a
disponibilidade de recursos que aqui vamos
ter e, o que é mais importante, poderemos
prosseguir nossos trabalhos em perfeito
sigilo.
SD
- Não, Chapin, não é esse o motivo do sigilo.
Com a inauguração da Grande Exposição no
próximo mês, o mundo inaugura uma nova
era: a era da competição. Diversos prêmios
estão sendo divulgados com objetivos
científicos e industriais, inclusive no campo
da aeronáutica. O estímulo e a atração que
eles provocam atinge muitas pessoas,
honradas ou não. Vamos ter muitos
concorrentes, a maioria dispostos a qualquer
expediente para vencer. E, desses, nos
protegeremos aqui.. Por isso construi essa
oficina em pleno coração de Paris. Por fora,
vê-se apenas um galpão abandonado e em
desuso, e ninguém suspeitaria que o
carroceiro Louis, surdo mudo - que toma
conta dessa propriedade há anos, e é meu
amigo leal e de confiança - seja o seu
guardião. Trabalharemos aqui sossegados,
sem perigo de ser roubados ou aviltados...
Vamos ao Número 4.
CHAPIN
- Mas, senhor, qual a razão dessa honra? O
senhor nos paga tão bem ...
SD
- Meu caro Chapin, não desejo de Vocês
apenas a eficácia e a competência. Queroos competindo também, juntamente comigo.
Sem Vocês não sou nada! É justo que
participem dele tanto quanto eu, com espírito
de equipe, de fato estimulada para a vitória.
SD (narrando a Georges e Prado na oficina,
sobre as cenas da construção do Número 4
e sua montagem no hangar de St. Cloud, até
a preparação para o primeiro teste de vôo)
- O Número 4 foi desenhado para ganhar o
Prêmio Deutsch ainda no ano da Grande
Exposição o que, infelizmente, não foi
possível. Dei forma mais esbelta e
aerodinâmica ao invólucro e motor bem mais
potente de 7 HP e dois cilindros, que inventei
GASTEAU
- Vamos construi-lo aqui?
SD
- Aqui vamos construir e testar cada elemento,
cada peça, cada sistema de comando e
funcionamento das aeronaves. Depois
levaremos para St. Cloud, onde serão
47
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
para propulsão de dirigíveis. Para ganhar
peso, abri mão da barquilha de vime, e a
substituí por um quadro e celim de bicicleta
sobre o qual voei assentado, com os pés nos
pedais, e que permitiam dar partida ao motor
no solo ou em vôo. (foto) Eu ficava
exatamente no baricentro do dirigível, com
todos os controles à mão. Georges deve
lembrar-se de quando o mostrei pela primeira
vez, em St Cloud. Estavam presentes Jauré e
Rochefort, inimigos políticos figadais, e a eximperatriz Eugênia...
..."abri mão da barquilha de vime, e a substituí por
um quadro e celim de bicicleta"...
ROCHEFORT
- Bem, nesse caso já não estaremos mais aí
para vê-lo...
SD mostra o seu Número 4. (Legenda: Campo
de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 1 de agosto
de 1900)
JAURÉ
- Certamente que não. O que fazemos agora
é construir o futuro; assim como também o
faz o Sr Santos-Dumont.
ROCHEFORT
- Sr Jauré, mas que surpresa! Um socialista
frequentando a elite parisiense!
SEQUÊNCIA 31 (A Grande Exposição)
JAURÉ
- Não creio que o senhor pense assim, Sr
Rochefort. Reputo-o homem inteligente e
sagaz. Estou aqui pelo mesmo motivo que o
senhor; venho ver de perto o ovo da indústria
que ajudará ao proletariado libertar-se da
ganância de seus patrões. Ela assinala o
progresso irreversível da humanidade.
O Número 4 desliza no ar em direção à
Grande Exposição, numa perfeita linha reta.
Uma sombra corta os pátios externos da
Grande Exposição, super lotada de visitantes,
que fazem enorme fila na bilheteria do
cinematógrafo Lumière para assistir ao
famoso “Viagem à Lua”, realizado pelo Sr
ROCHEFORT
George Meliés. Alguém grita: “é o petit
- Quanto ao primeiro ponto não discordo, Santos” ! Todos olham para o céu. Fotógrafos
Sr Jauré, mas suas prospecções quanto ao buscam posições e ângulos. Surge então,
futuro não seriam por demais otimistas? Crê rasante, sobre os grandes portões artque apenas um século seja suficiente para nouveau da Exposição, o Número 4, como
por abaixo tradições que levaram milênios se fosse uma nave de outro planeta, com o
consolidando-se?
seu motor rugindo
bem mais forte do
JAURÉ
que o antigo
- E por que não, Sr
pipocar do Número
Rochefort?
Em
3, e a bandeira do
Política, como nas
Brasil tremulando
Artes, o novo é que
abaixo do leme.
prevalece. Não diria
Todos acenam para
para o seu início;
o piloto que
mas posso prever um
corresponde com
grande governo
outros acenos,
socialista na França
gentilmente, para o
para o último quartel
público.
Em
..."O
Nº
4
se
vai,
em
direção
ao
seu
"ninho"."...
do Século XX...
seguida, realiza
48
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
várias manobras. Destaque para os membros
do Congresso Internacional de Aeronáutica,
especialmente o respeitável Prof. Langley, do
Smithsonian Instituition. Depois de diversas
manobras nas quais sobe até quase
desaparecer e desce até a poucos centímetros
do solo, e circundando todo o espaço da
exposição, o Número 4 se vai, com os
aplausos da multidão, em direção ao seu
“ninho”. Um verdadeiro show!
soluções para obter melhor rigidez dos
invólucros, com o motor de dois cilindros,
com a aplicação de cordas de piano aos
cordames, com as estruturas flexíveis de
bambu e madeira, enfim, uma luta
permanente contra preconceitos que só criam
quimeras anti- científicas, e retardam os
experimentos do progresso. Cada aeronave
que ponho em vôo enriquece-me de novos
problemas cujas soluções vou encontrar, em
primeiro lugar, nos livros e estudos teóricos
competentes, como os do Prof. Langley, que
tanto nos honra com sua presença. (aplausos)
- Eles fornecem luzes e princípios sobre os
quais trilham o saber, o raciocínio e a intuição
do inventor. Estou no meu dirigível Número
4, com o qual pretendia conquistar, ainda
neste ano muito especial, o Prêmio tão
oportunamente oferecido pelo Sr Deutsch de
La Meurthe, também honrando-nos com sua
presença. (mais aplausos) - Porém, a sorte
não me foi favorável e novos problemas
surgiram, mas que espero tê-los resolvidos
no Número 5, em projeto na minha
prancheta. Mas, contudo, este foi um ano de
fundamental importância, pois fez-se por
merecer ao título de “Portal do Século XX”,
que se abre em Paris, e pelo qual haverá de
passar todo ser humano civilizado que tiver
a sorte de viver e gozar dos confortos e
privilégios que os gênios pioneiros de
Marconi, Edson, Pasteur, Grambell, Freud,
Hertz, Lumière, Lilienthal e muitos outros nos
concederam. (aplausos prolongados) - E para
encerrar, senhoras e senhores, devo dizer que
o mundo necessita de cérebros preparados
pela ciência para cuidar dos misteres e das
variáveis que a Natureza nos apresenta, a
fim de buscar-lhe os modelos teóricos, físicos,
químicos, matemáticos e biológicos. Eles
serão a matéria prima do inventor do futuro,
cujo papel será o de dar a aplicação industrial
aos benefícios que a ciência moderna oferece
à Humanidade. Muito obrigado. (muitos
aplausos)
15 dias depois, todos os jornais, de todo o
mundo, vendidos nas bancas da exposição,
mostravam na primeira página o show aéreo
do Número 4. Uma bela mulher (Aida
D’Acosta), com o "Le Temps" numa das mãos,
compra um ingresso na bilheteria do
auditório, e entra no hall de um salão onde
se anuncia: “Congresso Internacional de
Aeronáutica. Hoje: Palestra do eminente
Aeronauta Santos-Dumont”. Entrega o bilhete
ao porteiro e entra atrasada na sala repleta
onde SD já começara a sua palestra, e sentase numa poltrona da última fila.
SD (no pódium de palestras do auditório,
falando de improviso)
... então, senhoras e senhores, enfatizo a
importância do estudo teórico-científico, do
cálculo matemático e do projeto técnico para
a construção das máquinas do futuro,
especialmente as aeronaves. Tudo que se fez
até pouco tempo, com raras exceções, é fruto
de puro empirismo, de tentativas de melhor
ou pior intuição. A série de dirigíveis que
concebi e construí, e os demais inventos que
vieram-me para solução dos problemas que
surgiam a cada passo, demonstram-no com
clareza. Quando substitui as pesadas lonas
dos balões pelo levíssimo tecido de seda
japonesa, fui admoestado pelos empíricos,
mas não dei-lhes ouvidos porque meus
cálculos e testes garantiam-me a certeza da
escolha. O mesmo se deu quando propus
pôr em vôo um motor de explosão a
petróleo. Os empíricos afirmavam que a
trepidação produzida espedaçaria a estrutura
da aeronave. Há poucos dias, todos puderam
vê-lo, em pleno funcionamento, sobre suas
próprias cabeças. Também com minhas
49
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SEQUÊNCIA 32
(O Número 5)
meio da rua entre as
árvores e os prédios de
um pequeno largo.
(foto) SD ainda trepado
em seu celim responde
às perguntas dos
repórteres e pousa para
os
fotógrafos.
Começam a chegar,
enfim,
os
seus
convidados.
SD acompanhado de
um grupo de senhores
de cartola, senhoras e
senhoritas muito bem
vestidas,
numa
demonstração
do
Número 5, no seu
hangar em St. Cloud.
(Legenda: Campo de St.
Cloud, Aero Clube de
Paris, 12 de julho de
1901)
SD (para os repórteres)
Desculpem-me,
senhores,
tenho
convidados para um
CHAPIN (como se
drink, permitem-me?
fizesse uma palestra
(desce do Número 5 dá
..."tenho convidados para um drink"...
para atentos alunos)
o braço a uma das
- O Número 5 da série do Sr Santos-Dumont, moças e abre caminho na multidão, em
é, em verdade, um aperfeiçoamento do direção ao Café Trocadero, seguido por
Número 4. O motor retornou à popa, pois todos)
essa posição configurou-se a mais adequada
ao vôo e ao conforto do piloto. Aumentamos
também a potência para 16 HPs e o número SEQUÊNCIA 33
de cilindros para quatro. O cordame foi
alterado com a inclusão de cordas de piano, Os membros da Comissão Julgadora do
e demos-lhe uma estrutura mais rígida em Prêmio Deutsch chegam ao Campo de St.
madeira. Também o invólucro ganhou mais Cloud. (Legenda: Campo de St. Cloud, Aero
alongamento, passando de 27 para 33 metros Clube de Paris, 13 de julho de 1901) O Sr.
de comprimento.
Deutsch lê a convocação de SD, em voz alta.
SD (ao público, já “montado” no Número 5)
- Vou fazer alguns testes sobre os Campos
de St. Cloud e Longchamps, e sobre a cidade
de Paris, onde, se o tempo permitir, desejo
fazer uma aterrissagem de precisão nas ruas
da cidade (exclamações de espanto) - Escolhi
um local próximo ao Hotel Trocadero.
Convido - os para tomar um aperitivo em
algum estabelecimento das imediações. Até
lá, senhoras e senhores.
DEUTSCH
- “Em obediência ao regulamento do Prêmio
Deutsch e seus acréscimos de fevereiro de
1901, venho, pela presente, convocar VExas
para presenciar uma prova que pretendo
realizar no dia de amanhã, 13 de julho de
1901, às 8 horas, no Campo de St Cloud.
Mui respeitosamente, (ass) Alberto SantosDumont.”
SD já está pronto para largar, e posa para
fotógrafos. O Presidente da Comissão,
Príncipe Rolland Bonaparte, olha para o seu
cronômetro Patec Philip e acerta-o com os
dos demais membros da Comissão. Georges
também acerta o seu relógio e repara que
SD mexe numa pulseira esquisita, colocada
no seu pulso esquerdo.
O Número 5 sobrevoa Paris, perto da Torre
Eiffel. SD manobra-o com precisão e
lentamente vai descendo até desaparecer,
com invólucro e tudo, entre os telhados dos
prédios. Corte para a rua em frente ao
Trocadero, com uma multidão embaixo do
Número 5 tranqüilamente estacionado no
50
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
BONAPARTE
- Largar!
olhando ao largar, no seu pulso
esquerdo. O que é?
O Número 5 projetou-se em linha reta,
na direção da Torre Eiffel. Ao chegar
perto, a câmera está no seu interior. SD
contorna a Torre Eiffel e olha o seu
relógio de pulso: 9 minutos se passaram.
Tudo bem. Faz o contorno e percebe o
vento de proa que o retém. De repente,
o motor parou bruscamente. O dirigível
passou a ser um simples balão à mercê
dos ventos e começa a perder altura.
Sem perder a calma, SD dirige-o como
pode até os jardins do Sr. Edmond de
Rothschild, mas não consegue
ultrapassar as copas das árvores mais
altas que se entrelaçam aos cordames,
seguram o conjunto e perfuram o
invólucro
que
vai
diminuindo
gradativamente, perdendo a imponência,
caindo lentamente, até que SD possa agarrarse a um dos galhos das árvores a poucos
metros do chão. Os guardas do Sr. Rothschild
são os primeiros a chegar e ajudam-no a
descer até o solo. Depois começam a chegar
os repórteres, fotógrafos e os membros da
Comissão. SD mantém-se impecavelmente
vestido, com sua grande gravata vermelha
sobre a imaculada camisa branca de mangas
compridas e o seu chapéu panamá. Ele posa
para os fotógrafos ao
lado do Sr Deutsch.
(foto) Quando chegam
Georges e Prado (Prado,
como sempre aflito,
suando e enxugando o
rosto com seus enormes
lenços brancos) SD já
está dando orientações
para seus mecânicos,
para o resgate de seu
dirigível.
GEORGES (sorridente)
- Como pode-se notar,
está tudo bem, claro.
Minha curiosidade agora
é por aquela esquisita
pulseira que o observei
SD (rindo, mostrando o pulso esquerdo
com o relógio e desabotoando a sua
fivela)
- É um relógio que inventei, Georges.
Foi a solução que achei para
acompanhar o tempo de vôo durante a
prova. Guarde este como lembrança.
Encomendei meia dúzia ao Cartier.
GEORGES (olhando admirado aquela
maravilhosa invenção)
- Mas que idéia genial, Alberto, um
relógio de se por no pulso! Fico
lisongeado com o presente! Sou o
segundo homem deste mundo a usálo, não? (prendeu-o ao seu pulso e ficou
a olhar para o relógio, encantado)
SD
- Com certeza, Georges, e Pradô deverá ser
o terceiro. Mandei fazer seis em ouro, um
para cada um de nós, e meus mecânicos.
Usarei o meu no próximo vôo, quando
conquistaremos o Prêmio Deutsch.
GEORGES
- Esse Você patenteou! Tem de patentear! É
um absurdo não fazê-lo! O Cartier vai ganhar
uma fábula com ele!
SD
- Já entreguei a patente ao
domínio público no
escritório de registros.
Cartier vai produzi-lo em
série com o nome
Dumont. Me dou por
honrado, é um grande
relojoeiro.
PRADO (quase chorando
para SD)
- Alberto, eu o ouvi referirse a um próximo vôo?...
..."Como pode-se notar está tudo bem!"...
51
Nesse momento, surgem
dois criados, um deles
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
carregando um pequeno cesto de vime.
(e, olhando para a própria gravata) - Tenho
de providenciar uma outra gravata... essa
gravata vermelha pode ser tomada como uma
afronta... é um símbolo republicano no
Brasil... (SD ficou pensativo. Enfim, decidiuse, retirou um dos guardanapos bege da
cestinha e improvisou rapidamente ao
pescoço uma nova gravata, dando, com
perfeição, um laço elegante) - Que tal? Está
melhor?
UM DOS CRIADOS
- Senhor Santos-Dumont, somos criados da
Princesa Izabel, do Brasil, e vizinha do Sr.
Edmond de Rothschild. Ela soube do
acidente e mandou-nos ter notícias. Mandoulhe também esse pequeno lunch, este
envelope e um convite para o senhor almoçar
com ela, em uma hora, na sua casa. (entregou
a SD o envelope, que o abre e começa a ler)
PRADO
- Sim, bem melhor. Vou aceitar o convite.
Você tem alguma razão... Mas não devo
demorar- me. Sales chamou-me e amanhã
embarco no Arcona.
SD (comentando enquanto lê o bilhete)
- É muita delicadeza da Princesa Izabel. Digalhe que está tudo bem e que o convite foi
aceito e... o que é isso? Ah, sim, uma
medalhinha... (e lê para Prado o bilhete)
“Senhor Santos-Dumont..- Envio-lhe uma
medalha de São Benedito que proteje contra
acidentes. Aceite-a e use-a na corrente de seu
relógio, na sua carteira ou no seu pescoço.
Ofereço-lhe pensando na sua boa mãe e
pedindo a Deus que lhe socorra sempre e lhe
ajude a trabalhar para a glória de nossa
pátria. Izabel, Condessa D’Eu”. - E então,
Pradô? Tenho fome! (abre a cestinha e retira
um bom sanduíche) - Aceita um? (Prado
recusa) - Que tal se me acompanhasse à casa
da Princesa?
SEQUÊNCIA 34 (A Princesa Izabel)
A landau de Prado chega à casa da Princesa
Izabel. SD e Prado conversam.
PRADO
- Tenho certeza de que a medalhinha é obra
do Henrique, lá no céu, Alberto. Por Você
ele faria tudo! Não deve estar aguentando
suas traquinagens aéreas. Pediu ajuda a São
Benedito. É a única explicação!
PRADO
- Sempre gostei da Princesa Izabel, Alberto.
Também foi amiga de minha mãe. Mas, não
acha que um Embaixador da República seria
mal recebido na casa de uma princesa
exilada? E ela convidou apenas a Você...
SD
- Acalme-se, Pradô, as coisas não são tão
perigosas!. O dirigível é seguro; em casos de
pousos forçados cai muito lentamente. E o
piloto ainda tem recursos, se tiver experiência
e sangue frio. Me sinto bem preparado.
SD
- Ora, Pradô, não seja incivilizado. A Princesa,
além de muito educada, é brasileira. E na
mesa de uma senhora brasileira sempre terá
lugar para um patrício, ou qualquer um que
apareça na boa hora. Não é como na França,
lembre-se. E não seria dever de um bom
Embaixador aproveitar oportunidades que
contribuam para a diminuição das tensões
entre adversários políticos? Eis aí
a sua chance de tentar moderar
os ataques da nobreza brasileira
exilada aos governos republicanos!
A landau estaciona. A Princesa está na porta
para recebê-los.
PRADO
- Já desisti de pedir-lhe que pare com essas
loucuras, Alberto. Só me resta pedir a Deus,
a São Benedito e a Henrique que o protejam
lá de cima.
Aproximam-se da sorridente Princesa.
SD
- Princesa, fiquei sensibilizado com
52
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
as suas gentilezas e o seu convite, e quero
agradecê-la em nome de minha mãe, no do
meu falecido pai e no meu próprio. Tomei a
liberdade de trazer o Embaixador Prado,
inseparável companheiro das minhas
aventuras nos céus de Paris. Sua função é
pedir por mim na Embaixada do Reino de
Deus. Espero que a Senhora não se importe...
vivo! Num governo como o de papai, Alberto
teria grande ajuda do estado para prosseguir
nos seus inventos.
PRADO
- Madame, o Brasil passa por uma fase difícil
e problemática. Crises se sucedem
ameaçando o equilíbrio das finanças, do
comércio, da indústria... E somos poucos para
dar conta de tudo. Eu, pessoalmente, faço o
que posso para que nada falte a Alberto. Já
no Governo as coisas se complicam. Num
sistema democrático-republicano todos falam
e apitam. Cada decisão é lenta, difícil. Coisas
dos novos tempos! Mas, prometo-lhe, o Brasil
e o seu Governo não estarão cegos aos
sucessos de Alberto, e suas repercussões pelo
mundo. Pelo contrário, uma das minhas
missões, na viagem que faço ao Brasil
amanhã, é levar subsídios para um apoio
firme a Alberto, que está se tornando um
herói nacional.
PRINCESA IZABEL
- De modo algum, meu menino Alberto.
Nossa casa em Paris nunca fechou as portas
aos nossos patrícios, sejam eles republicanos
ou não. Seja bem-vindo a essa modesta
morada de exílio, Sr. Antonio Prado, sua
adorável mãe e eu éramos grandes amigas
quando solteiras. Ela passa bem?
PRADO
- Um pouco atormentada pela artrite,
madame, obrigado pela acolhida e pela
lembrança. É com humildade e grande prazer
que acompanho o meu amigo, peralta dos
céus, até essa nobre residência. Aqui sou
apenas um patrício, um amigo, e, também,
com toda a sinceridade, um admirador
exaltado daquela que tornou livres os
escravos da nossa pátria, cuja condição tanto
nos envergonhava. Receba as minhas
saudações.
PRINCESA IZABEL
- Acredito no senhor, Sr Prado. Mas tudo está
muito demorado e lento no Brasil. O tempo
urge! As necessidades não esperam! Alberto
tornou-se uma das maiores esperanças do
nosso país. Mas, no concerto das nações, ele
surge como solista isolado e desamparado.
Se o Governo brasileiro fosse mais presente
nas questões do progresso, outros Albertos
não apareceriam? Temos muitos por lá. E nem
todos com a chance que o Dr Henrique deu
ao seu caçula. Eu mesma conheci rapazes
estudiosos e aplicados que não a tiveram e
alguns abandonaram os estudos para viver,
ou a pátria e, até, a nacionalidade; porque a
República nada faz para estimulá-los e
ampará- los. Nos tempos de papai isso não
acontecia. Pelo contrário, os Albertos daqui
iam para lá!
PRINCESA IZABEL
- Entrem, senhores, por favor. Minha
cozinheira é brasileira e pedi-lhe que nos
preparasse uma das nossas especialidades:
um franguinho ao molho pardo! Gostam?
Na mesa, já almoçando as iguarias da
Princesa.
PRINCESA IZABEL
- O senhor não acha, Sr. Prado, que o Brasil
deveria dar maior apoio oficial e demonstrar
mais interesse pelas experiências do nosso
Albertinho? Tantas glórias tem ele propiciado
à nossa pátria, neste século do progresso...
Quando vejo a bandeira do nosso Brasil
sobrevoando Paris em seus balões, meus
olhos se enchem de lágrimas... Pedro, meu
pai, ficaria tão orgulhoso dele, se estivesse
PRADO
- Madame, a senhora dificilmente vai
encontrar admirador mais entusiasmado de
seu pai, do que este que vos fala. Fui seu
funcionário, ainda jovem, mas leal e dedicado
e, sou, até hoje, um leitor assíduo de tudo o
que escreveu. Minha opinião é a de que a
53
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
senhora tem toda razão. Mas a República
ainda não teve um estadista como o seu
saudoso pai, e temos de concordar que
estadistas do porte do excelentíssimo senhor
seu pai não são fáceis de se encontrar!
Quanto a Alberto, também ele é difícil e
único. Não é muito fácil tentar ajudar o
Alberto, estou errado Alberto?
foram esvaziadas.
SD acaba de limpar o seu prato e, enquanto
comia, esteve indiferente à conversa.
PRADO (lembrando-se aterrorizado)
- Graças a Deus eu não estava aqui! Graças a
Deus! Foi a medalha de São Benedito, senão
ele, em pessoa, que salvou Alberto desse
acidente. No Brasil só nos chegou a versão
dos jornais. Agora é a sua vez de falar,
Georges. Sabe o que os jornais não publicam,
e é o que mais costuma interessar. Sugiro
inverter os papéis. Eu sou o jornalista e Você
o entrevistado. Conte-nos como foi! Agora
que passou, estou curioso. No Brasil, dava
um soco no primeiro que viesse dizer-me
alguma coisa.
PRADO
- Bem, chegou a vez do Número 6.
GEORGES
- Não, ainda temos o episódio do acidente
do Trocadero.
SD
- Senhora Princesa, que delícia de manjar! A
senhora permitiria que o meu cozinheiro
viesse buscar-lhe a receita? Gostaria de
cumprimentar a autora dessa perfeição,
posso?
PRINCESA IZABEL
- Oh, e por que não? Ela ficará satisfeitíssima!
Adora o senhor! Quando então o Sr passa
em seus dirigíveis ninguém a segura na
cozinha... (e, baixinho) - certa vez ela disseme que suas evoluções aéreas fazem-na
lembrar os grandes pássaros do nosso Brasil.
(e, para o criado, em português) - Altamiro,
chame a Maria. (logo ela aparece, como se
já aguardasse atrás da porta; é uma negra
retinta e belíssima) - Maria, o Sr Alberto vai
mandar o seu cozinheiro pegar-lhe a receita
deste prato. Está autorizada a passar-lhe, sim?
GEORGES
- De fato, eu acompanhei tudo, cada passo...
SD
- Essa vou ouvir deitado no divã. Nada posso
acrescentar ao que Georges sabe. E estou
ansioso para ouvi-lo tanto quanto Pradô.
(levanta-se e deita-se, confortavelmente, no
divã)
SD levanta-se e beija a mão da sorridente e
bela figura, que, no seu deslumbramento,
não consegue pronunciar uma só palavra.
GEORGES (narrando em off)
- Na tarde anterior ao acidente, Adrien e eu
cobrimos a apresentação do novo
embaixador dos EUA, o Sr. Henry White, no
Palácio do Governo. Por coincidência,
passamos aqui em frente quando íamos para
lá, numa vitória do governo francês, e vimos
Alberto e Chapin entrando na garagem do
edifício, no automóvel elétrico de Alberto. A
enfadonha solenidade foi muito demorada
e Adrien saiu cedo, deixando-me para
terminar o trabalho. Ao encerrá-lo, passei
minhas anotações ao fotógrafo para levá-las
ao jornal e decidi vir a pé até aqui para
encontrar-me com Alberto e, talvez,
jantarmos juntos.
SD
- Maria, Você só pode ser uma santa afilhada
de Nossa Senhora Aparecida! Permita-me
reverenciá-la e agradecê-la. Muito obrigado!
SEQUÊNCIA 35 (Acidente do Trocadero)
A cena retorna do longo flash-back à oficina
de SD onde os três amigos conversam.
Georges está com um caderno
repleto de anotações. Três garrafas
de vinho e três de água mineral já
54
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
Georges bate à porta do apartamento de SD.
August atende.
sente-se à mesa. O serviço virá em seguida.
GEORGES (narrando em off)
- Observando August dar as ordens na
cozinha, com a porta entreaberta, percebi
Pierre secando louça fina e cheguei a pensar
que abusavam de Alberto, na sua ausência,
usando a sua louça.
AUGUST
- Como vai, senhor Georges. Deseja entrar?
GEORGES
- Sim, August. Estou um pouco cansado.
Alberto está?
François entra com o vinho e o cálice de
cristal. Traz também queijos e pães. Serveos a Georges que o agradece.
AUGUST
- O patrão não se encontra, senhor. Marcaram
algum compromisso?
GEORGES (ainda narrando em off)
- Nesse momento tocou o telefone e August
atendeu. Era Alberto. August falou ao meu
respeito. Ouviu Alberto e desligou. Fiquei
aborrecido com August por não ter me dado
chance de falar a Alberto, mas ele logo se
explicou.
GEORGES (já no hall)
- Não, August. Passei por acaso, e, quem
sabe, para jantarmos juntos e combinar as
coisas para a prova de amanhã.
AUGUST
- Creio que será difícil encontrá-lo, senhor.
Nas vésperas de provas ele costuma chegar
muito tarde. Quanto ao jantar, se o senhor
nos der a honra, temos algo pronto na
cozinha.
AUGUST
- Desculpe-me, Senhor Georges. O patrão
está atarefado e pediu-me que me explicasse
ao senhor. Disse que tudo corre como
previsto e que o aguarda amanhã em St.
Cloud às sete horas.
GEORGES
- Até que seria prático, August, se não os
atrapalho... Assim ganho tempo e durmo mais
cedo. Não temos tido folga para sonos mais
prolongados ultimamente.
GEORGES (em off)
- Depois do jantar, August providenciou-me
um tilburi e, ao sair do edifício percebi que
o automóvel de Alberto estava na garagem,
ao lado do triciclo e a velha charretinha que
ele fazia puxada por um avestruz. Estranhei,
perguntando-me quem teria levado Alberto
à St Cloud, mas não dei importância. Agora
sei que Alberto estava mesmo é aqui, na sua
caverna secreta, não é Alberto?
AUGUST
- De modo algum nos atrapalha, senhor
Georges. Queira vir comigo até a sala de
jantar.
Entram na sala de jantar (ainda com os
móveis “normais”)
SD (no divã, rindo)
- E testando um motor que, fora da cabine
de testes, poderia ter sido ouvido por toda a
Paris.
AUGUST
- Temos pernil de carneiro assado, senhor.
O que deseja beber?
GEORGES
- Aceitaria um bom vinho tinto, August.
Talvez ajude-me a ter sono. Obrigado.
GEORGES (voltando à narrativa em off)
- No dia seguinte chegamos cedo a St Cloud.
(Legenda: Campo de St. Cloud, Aero
Clube de Paris, 8 de agosto de 1901) Com a movimentação do dia anterior,
não pude fazer a preparação que
AUGUST
- Pois não, senhor. Fique à vontade,
55
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
desejava
para
pelo telefone,
cobrir a prova. Fui
do outro lado
apenas com um
da linha)
fotógrafo, deixando
a
equipe
de
VOZ DE ELISE
prontidão no jornal,
(por telefone)
e Elise, nossa nova
- Ele caiu, ele
jornalista, dentro da
caiu...
uma
Torre Eiffel, com
t e r r í v e l
ligação direta, por
explosão... não
telefone, para o
há fogo... todos
jornal e para St.
correm para lá...
Cloud. O Número 5
estava reformado e
G E O R G E S
parecia per feito.
(aflito,
ao
Pensávamos que o
telefone)
..."O Nº 5 indo em direção à Torre Eiffel como uma flexa"...
Prêmio seria ganho
- Elise, Elise,
naquele dia. Toda a Comissão estava Você pode vê-lo?
presente.
ELISE
SD
- Ainda não, vejo apenas os cordames e os
- “Lachez tout!” (e parte com o Número 5 pedaços rasgados do balão sobre o telhado...
em vôo rasante em subida.)
ele caiu para o outro lado... Oh, meu Deus...
GEORGES (em off)
- O vôo começou soberbo, com o Número 5
indo em direção à Torre como uma flecha.
Tinham-se passado nove minutos quando
Elise anunciou-o ao seu lado, na metade da
altura da Torre, iniciando manobras de
retorno.
GEORGES (aflitíssimo, com muita gente ao
seu redor tentando escutar o relato)
- Mas são quase vinte metros de altura...
Alguém do jornal está escutando? É preciso
mandar alguém para lá imediatamente.
ADRIEN (no telefone, olhando pela janela)
- René está lá, Georges. Espere, está me
fazendo sinais... ele está rindo, parece que
está tudo bem. Sim, René faz sinal positivo,
tranqüilize-se, creio que não se machucou...
os bombeiros estão chegando, posso vê-los...
ELISE (observando o Número 5 de dentro
da Torre Eiffel)
- Minha impressão é de que as coisas não
vão bem. O invólucro está murcho e o motor
falha ; mas ele tenta a manobra de volta...
parece que há problemas... o invólucro
murcha mais e mais... o motor falha... o motor
parou... está com a hélice presa nas cordas
frouxas do balão. O dirigível aproxima-se
muito da Torre, empurrado pelo vento; posso
ver o senhor Santos a poucos metros de mim;
parece calmo e tenta soltar as cordas que
prendem a hélice... está perdendo altura... o
motor não funciona apesar das tentativas do
piloto... ele está em perigo... está caindo...
Oh, meu Deus!, vai cair em cima do Hotel
Trocadero... bateu no telhado... (o balão
explode com um estrondo que Georges ouve
A câmera mostra SD pendurado na parede
lateral do Hotel, a uns quinze metros de
altura, salvo, literalmente, por um fio do
cordame que embaraçou-se no seu corpo e
prendeu-se em algum lugar do telhado. (foto)
SD não se afoba; dá ordens e orientações lá
de cima para os bombeiros, demonstrando
perfeita tranqüilidade e presença de espírito.
Finalmente um bombeiro o alcança. A
multidão aplaude vigorosamente. Sobre essa
cena a voz de Prado é ouvida em off.
PRADO (em off)
56
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
- Foi São Benedito! Foi ele! Henrique
conseguiu! Consegue o que quer, aquele
danado, até no céu! Foi São Benedito,
Georges! Posso garantir.
PRADO
- Isso torna tudo duplamente perigoso. Já
não é fácil voar sem sabotagem. Com
sabotagem, é melhor desistir logo...
A cena volta para a oficina, com Prado ainda
falando.
SD
- Isso é o que os sabotadores querem que
todos pensem, Pradô. E, de fato, não deixa
de ser verdade. Por isso começamos a estudar
alter nativas e estratégias para evitar
sabotagens.
PRADO (suando e passando seu enorme
lenço no rosto)
... Essa eu não resistiria! Meu coração não
aguenta... sabem...
PRADO
- Como assim? Melhor, conte-me primeiro o
que está se passando... (e enche uma taça
de vinho, até a boca, e limpa o suor do seu
rosto com o lenço)
GEORGES
- Aqui entre nós, Prado, e isso é assunto para
não sair daqui. Mas Alberto, seus mecânicos
e eu, temos certeza de que houve uma
sabotagem...
GEORGES (em off sobre a repetição do vôo
em outros ângulos)
- Alberto fez essas provas com o Número 5
em vôo de baixa altitude para proporcionar
SD
um espetáculo melhor à multidão. Todos em
- Shhhh! Não se fala mais nisso...
Paris sabiam que o Prêmio Deutsch já tinha
o seu ganhador. Inclusive Alberto, e por isso
PRADO
fez um vôo para espetáculo. Quando passou
- Como, não se fala?!
por Longchamps,
Querem matá-lo e não
pouco acima da copa
se fala mais nisso?
das árvores, ele ouviu
Estão malucos? Quero
um ruído semelhante
a polícia investigando
ao dessas garruchas
tudo amanhã mesmo.
de ar comprimido que
Nem que tenha de ir
começaram a fabricar
oficialmente ao Palácio
recentemente.
do Governo; ao
(filmagem em câmera
Primeiro-Ministro, se
lenta, do dirigível
preciso for...
passando perto da
copa de uma árvore e
GEORGES
parece ter alguém
- Calma, Sr Prado. Não
entre as ramagens
era o caso na época, e
com uma garrucha muito menos agora.
como no assassinato
Sem provas concretas e
de Kennedy - ouve-se
irrefutáveis é o tipo do
um ruído e o
assunto
que
só
invólucro dá uma
prejudica o trabalho de
ligeira sacudidela) Alberto. O que temos
Em seguida ele
são suspeitas; mas
percebeu a perda de
suspeitas sérias...
gás no balão, mas
..."salvo, literalmente, por um fio"...
ainda pouca e
PRADO
- O que? Sabotagem?!...
57
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
acreditou que daria para concluir. Já na Torre
Eiffel, sem poder ganhar altura, o motor
começa a falhar e pára, ainda antes das
cordas embaraçarem-se na hélice. Exames
posteriores demonstraram que havia mistura
de vernizes não- combustíveis na gasolina.
Nos pedaços que sobraram do invólucro
foram achados dois pregos dobrados, com
duas pontas. Podem ter sido do telhado do
Hotel, mas achamos que foram expelidos da
garrucha criminosa, do alto de alguma árvore
em Longchamps.
SD
- Passei a processar a gasolina aqui, Georges,
isso Você ainda não sabia.
GEORGES
- Sim, somente hoje conheci essa oficina
secreta. Mas nisso confio inteiramente em
Você, Alberto. Minha parte é a imprensa, a
publicidade, e o uso dela no esquema antisabotagem.
PRADO
- Esquema anti-sabotagem?
PRADO
- E como conseguiram evitar a sabotagem
no vôo do Número 6?
SEQUÊNCIA 36 (O Número 6)
GEORGES
GEORGES (agora em off sobre as imagens
- Não somente nós desconfiamos de correspondentes)
sabotagem. Muita gente em Paris não engoliu - Adrien também suspeitava de sabotagem e
este acidente com facilidade. Ninguém ousa deu-me carta branca para agir. Cedeu-me
falar, é claro. Mas todos têm acompanhado mais um fotógrafo para acompanhar Alberto.
de perto, e razoavelmente bem informados, Quando o Número 6 ficou pronto (SD e os
as experiências e os progressos de Alberto. mecânicos tirando o Número 6 do hangar)
Acidentes com mau tempo, ventos fortes ou, combinamos fazer algumas demonstrações
até mesmo, alguns erros de cálculo, como públicas em baixa altitude, em locais
no caso do Número 1, são naturais, podem diferentes, sob pretextos diversos. A primeira
acontecer. Mas os dois acidentes do Número foi no hipódromo de Longchamps a pretexto
5, sem nenhuma causa externa aparente, de medir a velocidade em vôo. Enquanto
tornam-se, de fato, suspeitos. É conhecido o Alberto dava o máximo de velocidade no
cuidado com que Alberto
Número 6, Maurice
e
seus
mecânicos
Farman, no seu
constroem e preparam as
automóvel, seguia a
suas máquinas e balões.
corda guia. Medimos
Cada milímetro quadrado
uma velocidade de 35
dos invólucros é revisado,
km/hora, naquele dia.
um a um, antes de voar.
O meu segundo
Os
motores
são
fotógrafo ocupava-se
construídos com as
em fotografar pessoas
melhores ligas e materiais
que assistiam. Nesse
e testados à exaustão.
dia houve pouca gente.
Além disso, o povo de
Outra vez foi sobre o
Paris não esconde a sua
Café Le Cascade.
simpatia e a sua torcida
Alberto fez várias
pelas vitórias de Alberto.
evoluções e depois
Por isso, quando o
desceu em frente ao
Número 6 ficou pronto,
Café e chamou a todos
Alberto e eu combinamos
para um aperitivo.
uma estratégia para a
Nesse dia houve muitos
O
Número
6.
próxima prova.
curiosos. Ao retornar
58
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
para St. Cloud, a
corda guia agarrouse numa árvore e
Alberto teve de soltar
gás para desgarrá-la.
Isso impediu-o de
subir e teve de voar
bem baixo. Então, o
povo que assistia
pegou a corda guia
e puxou o Número 6,
numa folia coletiva, até seu hangar em St.
Cloud. Esse episódio demonstra bem a
popularidade de Alberto em Paris.
que
sempre
acompanhava essas
provas. Aquele dia
amanheceu com
mau tempo e
somente
cinco
membros
da
Comissão Julgadora
compareceram à
convocação de
Alberto. (Legenda:
Campo de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 19
de outubro de 1901) Os Srs Deutsch de La
Meurthe, de Dion, de Fonvielle, Besaçon e
Aimé. Os demais não acreditaram que haveria
prova e não foram. Mesmo preocupado com
as condições atmosféricas, Alberto decidiu
levantar vôo...
PRADO
- Bem, e então?
GEORGES (continuando em off)
- Comparamos as fotografias e descobrimos
dois senhores desconhecidos presentes em
todas elas, inclusive na procissão que puxou
o Número 6 até o hangar. Não eram franceses,
via-se, e Adrien pediu a seus amigos na
polícia para investigá-los. Até hoje não
obtivemos resposta. Mas, para o dia da prova,
toda a equipe do "Le Temps" estava sabendo
que, se os vissem, deveriam avisar
imediatamente, dando a sua localização.
Consegui, com a ajuda de Adrien, a colocação
de dois repórteres e fotógrafos, em posições
intermediárias entre St. Cloud e a Torre Eiffel,
uma nos Bois de Boulogne e outra no Sena,
ambos ligados à Elise, no alto da Torre Eiffel,
à mim, no Aero Clube e a Adrien, no jornal,
por uma linha telefônica exclusiva. No Aero
Clube e no Champ des Mars montamos
sistemas de cornetas alto-falantes para que
nossas vozes fossem ouvidas pelo
grande público,
SD
- “Lachez tout!”
GEORGES (no seu telefone)
- Largou. Está subindo bem alto e parte em
direção ao seu alvo. São 14 horas e 44
minutos.
A multidão no Champ des Mars, ouvindo isso
pelas cornetas alto-falantes, aplaude. No Aero
Clube, idem.
GEORGES (continuando ao telefone)
- Dessa vez o Sr Santos preferiu um vôo em
maior altitude. E lá se vai, bem alto.
O PRIMEIRO REPÓRTER (ao telefone, no
Bois de Boulogne, frente a uma grande vara
fincada no chão)
- Já aproxima-se da minha marca, deve cortála a qualquer momento...sim, passou-a, são
14 horas e 47 minutos, portanto, 3 minutos
decorridos, e o dirigível segue à toda numa
perfeita linha reta, muito alta.
Tomadas do dirigível em vôo, do Aero Clube
e do Champs de Mars.
O SEGUNDO REPÓRTER (ao telefone, numa
ponte sobre o Sena, com uma vara presa ao
chão para marcar a posição)
..."Está subindo bem alto e parte em direção ao seu alvo"...
59
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
... agora aproxima-se da minha marca. Vai
passá-la em breve. São 5 minutos da largada,
lá vem ele, o Número 6 do Sr Santos...
atenção... quase chegando... vai passar...
passou!, a 6 minutos de vôo e permanece
firme e veloz em direção à Torre Eiffel. Agora
é com Você, Elise.
balão com vigor contra o vento. O Senhor
Santos vai lentamente agora de volta para St
Cloud, buscar o seu prêmio. Como estão os
cronômetros oficiais, Georges? No meu
relógio já se passaram 12 minutos, mas não
tenho ponteiros de segundos como nos
cronômetros...
ELISE
- Já o vejo daqui, vindo bem de frente e bem
alto em minha direção. Vejo o dirigível
aumentando de tamanho a cada instante...
Parece que vai contornar a Torre pelo topo,
bem cá em cima... sim, está chegando aqui...
GEORGES (em off, para Prado)
- Percebi, pela primeira vez, a necessidade
de ponteiros de segundos em relógios. O
mesmo aconteceu com todos, pois
aglomeravam-se em volta da Comissão
Julgadora, sempre perguntando pelos
segundos. Pressentíamos que a prova seria
decidida nos segundos e não nos minutos.
Creio que nem Alberto contava com isso,
pois o relógio que inventou também não
possui esse ponteiro. Ao apelo de Elise, fiz
sinal para o fotógrafo e pedi-lhe que
chamasse o Maurice Farman ou o Pedro
Guimarães, que tinham Patecscronômetros iguais aos da Comissão, e
ajustados com os dela. Maurice atendeume, e chegou para perto, quando olhei,
pela primeira vez, o tempo
com os segundos:
tinham-se
passado 15
minutos e 43
segundos.
Havia um silêncio geral.
Cortes para o povo, para as cornetas altofalantes, etc.
ELISE
... Sim, Georges, são 8 minutos decorridos e
ele cruza a Torre Eiffel e começa a
contorná-la, numa rota em círculo,
perfeita. Os comandos parecem
obedecer-lhe bem, vejo-o na sua
barquilha... ele acena para o povo,
lá em baixo...
Cenas do povo aplaudindo.
ELISE (continuando)
... ele começa a apontar para o rumo
de retorno, são 9 minutos aqui, bem
marcados.
Cenas de expectativa em todos os
lugares. Silêncio total, até nas
cornetas. Alguém do povo grita.
A cena da foto do início do roteiro.
O POVO (jogando para o alto
chapéus e bengalas)
- Viva “le petit Santos”! Viva “le
petit Santos”!
ALGUÉM DO POVO (aflito, para
a corneta alto-falante mais
próxima)
- Como é, não vai dizer o
tempo?!...
ELISE (continuando)
... a velocidade reduziuse muito, o vento, à
sua proa, quase o
parou no ar. Mas
o motor parece
muito bom, seu
ruído está firme
e ele empurra o
GEORGES (retomando a
locução por telefone)
- Elise, conseguimos a
presença do Sr
Maurice Farman, que
traz um Pateccronômetro ajustado
60
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
com o da Comissão. São...
algumas senhoritas dão gritinhos de alarme)
- Já o estamos vendo bem perto... se nada
acontecer pode chegar a tempo... mas... o
que é isso?... parece uma falha do motor?...
sim, parece-me que o motor está falhando...
(pessoas roem as unhas) - não, recuperou!
recuperou!... ouço muito bem o ruído do
motor vindo direto em nossa direção...
temos... 28 minutos e 40 segundos, senhoras
e senhores,... 28 e 50... 29... cravados, falta
apenas um minuto..., está perto, muito perto,
aqui vem ele... 29 e 15... está quase na linha
de chegada, senhoras e senhores,... 29 e 22...
vai passar... vai passar a tempo... 29 e 28...
vai, ... passou!,
ele passou!... ele ganhou! ... ele ganhou o
Prêmio Deutsch, senhoras e senhores!...
O SEGUNDO REPÓRTER (interrompendo)
- Ele já vai passar agora a minha marca de
retorno. Ele começa a inclinar a proa para
um vôo em descida, provavelmente para
ganhar tempo... vai passar agora... passou...
Corte para SD, na barquilha, olhando o
relógio. Parece tenso.
GEORGES
- São 19 minutos e 39 segundos...
O SEGUNDO REPÓRTER
- Com a descida ele consegue mais
velocidade... mas o vento contrário continua
forte e ele já está sobre o Bois de Boulogne...
Pulos de alegria em todos os cantos, chapéus
voam para todos os lados.
O PRIMEIRO REPÓRTER
- Sim, está vindo para a minha marca. Está
descendo muito, e em breve estará aqui. Está
atento ao tempo, Georges?
GEORGES (continuando a eufórica locução)
- O Senhor Alberto Santos-Dumont é o
vencedor do Prêmio Deutsch, nessa tarde que
vai entrar para a história da Humanidade,
senhoras e senhores, os seus mecânicos já
puxam a corda. O Número 6 está
estacionado, cercado pela multidão...
GEORGES
- Sim, no momento em que ele passar a sua
marca, Você diz e eu dou o tempo...
O PRIMEIRO REPÓRTER
- Está quase chegando, está bem baixo agora.
O senhor Santos manobra o seu dirigível e
altera a posição da proa, perto de
Longchamps... ele dá uma violenta guinada
e ganha mais altura...espero que não esteja
com algum problema...
Corte para SD, dentro da barquilha, com uma
multidão em sua volta.
SD
- Ganhei?
O povo aplaudindo e entusiasmado retira-o
de dentro da barquilha e o carrega nos
ombros, em comemoração pela vitória.
Tensão geral em todos os rostos, inclusive
de SD, vendo já o seu hangar em St Cloud e
uma multidão perto dele.
GEORGES (continuando a narração eufórica)
... é o primeiro homem deste planeta a
conduzir pelos ares uma máquina, senhoras
e senhores, com um percurso e tempo
predeterminados, de ida e volta. Elise, aqui
é uma grande festa, uma grande
comemoração... o povo carrega o Senhor
Santos nos ombros numa grande
demonstração de carinho. E aí, no Campo
de Marte?
O PRIMEIRO REPÓRTER
... atenção... vai passar.... passou!...
GEORGES (já aflito)
- 23 minutos e doze segundos. Agora está
bem perto de St. Cloud. Está fazendo uma
perigosa manobra de recuperação de altura,
consertando a proa do seu dirigível (SD passa
raspando num prédio do Bois de Boulogne,
dando um susto aos que o viam de St. Cloud,
61
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
ELISE
- Aqui outra festa, Georges. Nunca tantos
chapéus voaram ao mesmo tempo em Paris.
Todos se abraçam numa grande alegria
coletiva, felizes com a vitória de seu herói, o
nosso “petit Santos”! Uma vitória difícil, mas
digna dos grandes homens!
popular...
GEORGES
- Mas, por quê? O que houve?... Para onde
foram?
PEDRO
- Ouvi uma conversa de novas regras que
não foram cumpridas na prova, Alberto. Acho
que foi isso que ouvi. Sabe alguma coisa
sobre mudanças de regras?
GEORGES
- Todos estamos muito emocionados, Elise,
e toda a Paris estará em festa por este
importante acontecimento. Nós, do "Le
Temps", prometemos para a edição de
amanhã um trabalho completo de
reportagem dessa emocionante corrida do
homem e a máquina contra o tempo e os
cronômetros. Vamos encerrar aqui. Boa tarde
para todos e para Você Elise, e os repórteres
que nos acompanharam a cada minuto, digo,
a cada segundo. Desligo.
SD
- Mudanças de regras? Não, não deve ser isso.
No caso de mudança de regras eu teria de
ser avisado. Afinal sou o único competidor
desse prêmio?!
GEORGES
- Disseram para onde foram? Precisamos ir
até eles. Quero saber o que aconteceu.
Georges desliga e vai em direção a SD, no
meio do povo, para abraçá-lo. Abraçam-se.
MAURICE
- Não nos disseram. Havia uma bela discussão
entre Deutsch e Fonvielle. Foi o Besaçon que
nos passou o recado enquanto empurrava o
Aimé e o De Dion para dentro da landau.
Deutsch e Fonvielle foram no automóvel,
discutindo aos berros, quase a trocar
bengaladas. Parecia uma fuga. Apesar de que
o Deutsch e o Aimé mais me pareciam estar
sendo sequestrados... O que se passa,
afinal?...
GEORGES (quase chorando)
- Uma grande vitória! Parabéns! Grande
vitória!
Porém, por cima do ombro de SD, ele vê
duas landaux e um automóvel saindo de St.
Cloud com os membros da Comissão.
GEORGES (surpreso, e mostrando a SD)
- Ora, onde estarão indo? Preciso entrevistálos...
A cena retorna para a oficina de SD.
Maurice Farman e Pedro Guimarães
aproximam-se. Pedro cochicha algo no
ouvido SD e Maurice no ouvido de Georges.
Ambos pedem licença aos circunstantes e
saem em direção ao hangar, onde o Número
6 já está sendo guardado pelos mecânicos
de SD. Escolhem um local sem ninguém por
perto e Maurice começa a falar.
GEORGES (para Prado)
... o fato é que, naquele dia, todos os
membros da Comissão, inclusive os que não
estiveram em St. Cloud, não foram
encontrados em parte alguma de Paris. Hoje
temos informações não confirmadas de que
o “esconderijo” foi em Neully, na casa de
campo do general André. Mas ele não estava
lá. Quem estava era o Coronel Renard.
MAURICE
- A Comissão não quis homologar de
imediato a conquista do Prêmio. Por isso
saíram e pediram a mim e ao Pedro para
avisá-los discretamente, pois temem a reação
PRADO
- Na casa do general André? Deus meu, a
coisa foi mesmo complicada... Alberto, acho
que Você estava certo naquela estória de
62
PARTE 1
SANTOS DUMONT/O FILME
desafiar a França em armas. (SD nada
responde do divã) - Mas, conte-nos, Georges,
e então?
comunicado das novas regras. Ao que ele
respondeu simplesmente - e nunca foi tão
Alberto como naquela resposta: - Não!
GEORGES
- Bem, o Figaro, vespertino, atrasou, mas saiu,
no mesmo dia, com a notícia da vitória. E
fazia a ressalva de que nenhum dos membros
da Comissão fora encontrado para homologála. Em matéria curta, o jornal especulou que
o motivo devia ser a redação da ata da
reunião, “pois não houve qualquer dúvida,
para todos os que acompanharam a prova,
da vitória do Senhor Santos-Dumont”. O fato
é que a população de Paris foi dormir, no
dia 19, com a certeza da vitória. Mas acordou
no dia 20 com o "Le Temps" - com o dobro
da tiragem normal esgotada em menos de
uma hora, e, como os demais jornais noticiando apenas a indecisão da Comissão.
Só o L’Illustration deu a fuga da Comissão e
os fatos tais como ocorreram. O mau humor
tomou conta de Paris, como eu nunca havia
visto antes. Chegamos a pensar que a vitória
não seria homologada. Forças poderosas
estavam envolvidas para impedi-la. À tarde,
porém, volta o Figaro com a declaração de
Alberto, aliás, genial, e na hora certa, da
distribuição do Prêmio para seus mecânicos
e os pobres de Paris. E com o testemunho
de Chapin, que é gaulês ancestral e de
reputação ilibadíssima, de que o trato havia
sido feito com muita antecedência.
PRADO (um tanto arrependido)
- E eu não estava aqui. Poderia ter ajudado
Alberto...
GEORGES (em off sobre imagens de cenas e
jornais que ilustram o texto))
- O anoitecer do dia 20 foi terrível para os
membros da Comissão e para o Aero Clube.
Telegramas e telefonemas de protestos
choviam sobre eles e os jornais de Paris.
Edson, Marconi, Langley e vários cientistas
reputados enviavam congratulações a
Alberto, com cópias para os jornais e o Aero
Clube. Os mendigos de Paris anunciaram,
com o apoio de alguns sindicatos, que iam
apedrejar a sede do Automóvel Clube. Uma
telefonação desenfreada sucedeu-se entre
editores, membros da Comissão e
autoridades. Uma confusão! O jeito foi
protelar a decisão. E começaram a chegar as
repercussões do exterior. As piores possíveis!
Os grandes jornais moderaram, mas os
menores bateram sem perdão, e até
conseguiram grande repercussão, pois todos
queriam ler o que publicavam. Ao ponto de
um editorial do boletim de um Clube de
Xadrez da Espanha, assinado por um grande
enxadrista russo, ser reproduzido no Times
de Londres, que não resistiu à tentação de
ver as pauladas do mestre no amor próprio
dos franceses, publicadas em suas páginas.
O enxadrista alegava que os desclassificados
dessa competição eram a Comissão e a
própria França, que perdia a credibilidade
para liderar o mundo na era do progresso. E
arrematava com um cheque mate: regras não
podem ser mudadas após o início do jogo; e
esse jogo começou no dia em que foi inscrita
a primeira aeronave para disputá-lo. Esse
editorial saiu no Times do dia 25 e, para
humilhação da xenofobia francesa, foi
reproduzido no L’Illustration.
PRADO
- Essa é boa!
GEORGES
- O Figaro também publicou as desconexas
declarações da Comissão. Bonaparte falou
em levar aos tribunais essa infâmia, se o
Prêmio não fosse concedido imediatamente.
Mas os outros só falavam nas tais novas regras
que não foram obedecidas. O dirigível teria
de estar estacionado antes dos 30 minutos e
não apenas cruzar a linha de chegada. Então,
para que aquela linha? Deutsch estava mudo.
Realmente a coisa estava preta. A salvação
foi a declaração de Alberto que o Petit Journal
publicou quando perguntado se havia sido
PRADO (in)
- Barbaridade!
63
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
GEORGES (em off, sobre as imagens da
Comissão)
- Finalmente as coisas começaram a
modificar-se. Os membros da Comissão,
favoráveis à concessão do Prêmio,
começaram a sair do limbo. No dia 27 o "Le
Temps" publicou um declaração enfática de
Deutsch:
GEORGES
- Só penso agora como sair daqui sem ele?
PRADO
- Eis aí uma boa pergunta. Como sair daqui?
Vamos ver (chegou perto da porta e começou
a apalpá-la tentando achar algum mecanismo
de abri-la. Nada. Deu-lha então, como quem
não quer nada, duas pequenas batidas. Ela
abriu-se e surgiu August)
DEUTSCH (em in, cercado de jornalistas no
restaurante do Automóvel Clube)
- “Digam o que disserem, não há dois
dirigíveis voando no mundo, senão apenas
um; e é preciso vir até Paris para vê-lo”.
AUGUST
- Ah, senhores. Eu aguardava aqui esperando
para abri-la às dez, como determina o patrão,
caso não me chame. Às vezes ele dorme no
divã e eu preciso vir acordá-lo. Ele dormiu?
GEORGES (continuando, in)
- Para mim essa declaração é duplamente
feliz; pois sai do xeque do enxadrista:
restaura a França e a vitória de Alberto ao
mesmo tempo, tornando-as indissociáveis.
Amanhã, não tenho dúvidas, Alberto será
consagrado vencedor.
PRADO
- Sim, August, mas depois Você cuida dele.
Leve-nos até a porta para que possamos
providenciar uma condução...
AUGUST
- Eu já providenciei, senhor. Consegui apenas
uma cupê para os dois, se não se importam.
Nessa hora não é fácil consegui-las. Está
esperando na porta. Desejam sair agora ou
aceitam um lanche? Está servido na mesa...
PRADO
- Ufa! Estou perplexo, Georges. Pobre
Alberto, sem um patrício para apoiá-lo no
meio dessa intriga! Bem falou a Princesa
Izabel. Se isso não o comprometesse,
Georges, o estado brasileiro estaria a lhe
dever um agradecimento formal. Mas poderia
prejudicá-lo; o chauvinismo na França é
muito forte. (e, tirando o relógio) - Puxa,
quase dez horas! É hora de sairmos. E estou
à pé, vim com Alberto...
PRADO
- Para mim já está tarde, August. E Você,
Georges?
GEORGES
- Obrigado, August, mas prefiro aproveitar a
carona do senhor Prado. Tenho também de
ir agora. Muito obrigado. (e saem
conversando pelo corredor)
GEORGES
- Eu também. E a essa hora começa a ficar
difícil uma condução. Acho melhor irmos
logo. Alberto... Alberto!... Ora, Alberto
dormiu...
FIM DA PRIMEIRA PARTE
SD dormia placidamente no divã.
PRADO
- Melhor o deixarmos como está. Vê-se que
está cansado. Esses dias devem ter sido
difíceis para ele. Vamos?
Georges arrumando seus papéis, concordou
64
PARTE 2
A VINGANÇA DE ÍCARO
PARTE 2
E apareceu SantosDumont
SEQUÊNCIA 37 (Brasil, 1903)
(estribilho)
Salve, Brasil
Terra adorada
A mais falada
Do mundo inteiro!
À bordo do Atlantique, SD e Prado observam
a entrada da Baía da Guanabara. (legenda:
Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1903) Os
contornos das belas montanhas, com o Pãode-Açúcar (ainda sem o bondinho) em
primeiro plano, e o Corcovado (ainda sem o
Cristo) por trás, vendo-se ao fundo a Pedra
da Gávea e os Dois Irmãos enchem de alegria
e de lágrimas o rosto do inventor. Prado
porém estava triste e taciturno.
SD
- O que há com Você, Pradô. Até parece que
está enjoado da velha pátria...
PRADO
- Não é isso, Alberto. Pressinto que essa será
a nossa última viagem juntos de Paris para
cá. Já começo a ficar saudoso da nossa
convivência em Paris. Rodrigues Alves quer
mudar tudo e devo ir para Washington.
Nabuco deverá assumir Paris...
Ouve-se o ribombar de morteiros de cima
do Pão-de-Açúcar, justamente quando
passavam perto dele. Uma enorme bandeira
do Brasil é desfraldada e uma tela ainda maior
surge abaixo dela com os dizeres: “SALVE
SANTOS-DUMONT”. Lá de cima, um grupo
de alunos da Escola Militar acenava para o
navio. Começa a chover leve. O navio inicia
as manobras de atracação, comboiado por
dezenas de embarcações de todos os tipos
com diversas faixas hasteadas homenageando
o inventor.
Ouve-se, na trilha sonora, a modinha de
Eduardo das Neves, composta para o
inventor, com letra e tudo:
A Europa curvou-se ante o Brasil
E clamou parabéns em meigo tom
Brilhou lá no céu mais uma estrela
Guarda teus filhos
Lá nessa altura
Mostra a bravura
De um brasileiro
Assinalou p’ra sempre o Século Vinte
O herói que assombrou o mundo inteiro;
Mais alto do que as nuvens, quase Deus,
É Santos-Dumont, um brasileiro.
(repete estribilho)
Sob a música uma sequência de imagens:
SD descendo do navio em meio à multidão
de autoridades. Discursos empolados. Desfile
na landau do Presidente da República, ao
lado de Prado e do Prefeito, pela Rua do
Ouvidor lotada, em festa, com serpentinas,
carros alegóricos, batuques de negros, etc.
Discursos exaltados. Encontro com o
Presidente da República no Palácio do Catete.
Almoço-banquete no Clube dos
Democráticos para 500 talheres. Discursos
alucinados. Festa na Federação dos
Estudantes do Brasil, com milhares de moços
e donzelas. Outra festa, mais grã-fina, na
residência do Prefeito. Mais discursos. Dois
homens de fraque e cartola conversam.
O PRIMEIRO HOMEM
- Mas
ele não trouxe mesmo o seu
dirigível?
O SEGUNDO HOMEM
- Claro que não. É um
snob. Só voa na
Europa;
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
já no Brasil...
do meu país está aí fora desejando prestarme uma homenagem? Se assim é, eu peçolhe que faça-os entrar; faço questão de
recebê-los...
Jornalistas cercam SD
UM REPÓRTER
- É verdade que o Senhor não trouxe o seu
balão dirigível?
RODRIGUES (tentando convencê-lo)
- Desculpe, Sr. Santos-Dumont, mas imaginei
que estivessem cansados depois de tantas
festas e homenagens, por isso...
SD
- Como já disse em várias oportunidades,
precisávamos ter uma usina de hidrogênio,
um hangar bem equipado, um grupo de
mecânicos com excelente formação técnica
e um Aero Clube em local apropriado.
Pessoalmente, o que eu mais desejaria em
minha vida, seria poder realizar minhas
experiências aqui, junto aos meus
compatriotas.
SD (interrompendo-o)
- Sim, meu amigo, estou exausto, arrasado,
mas dos discursos intermináveis, dos fraques
e cartolas, das sobrecasacas e dos chapéus
de coco nesse calor infernal. E de jornalistas
impacientes e um sem número de
autoridades que passaram o dia a amarrotarme e a apertar-me pelo Rio afora. Agora, o
Sr me diz que tem aqui um grupo de
seresteiros, gente boa de viola debaixo do
braço. O que eu mais queria, desde que
cheguei, é poder abraçá-los, amarrotar-nos
juntos e sentir o calor do verdadeiro afeto e
carinho da nossa gente. Mais uma vez eu
peço-lhe, Dr. Rodrigues, desejo recebê-los!
E sirva-lhes do bom e do melhor. Não se
preocupe com as despesas. Essas eu faço
questão...
OUTRO REPÓRTER
- Mas temos informações de que os seus
balões dirigíveis são tão pequenos que
chegam a caber numa maleta de viagem...
SD
- Isso é apenas uma brincadeira...
À noite Teatro Lírico. O Fausto. Toda a
sociedade carioca presente. Discursos loucos.
Discursos sóbrios. No intervalo da peça,
discursos. Enfim, exaustos, SD e Prado
chegam à casa do Dr. José Carlos Rodrigues,
que os anfitrionava. Ao entrar, numa
carruagem fechada, passam por um tumulto
do lado de fora. Um criado cochicha algo a
Rodrigues.
RODRIGUES (interrompendo-o polidamente)
- De modo algum, Sr Santos-Dumont, em
minha casa recebo eu, se me permite.
Mandarei providenciar imediatamente uma
recepção com tudo o que pode haver de
melhor em nossa modesta residência.
Concordo com o Senhor; o povo é que traz
a verdade dentro do peito. Permita-me
recebê-los junto aos senhores; e não se fala
mais em contas, ou ficarei ofendido. (e, para
o mordomo) - José, manda entrar todo
mundo. Receberemos no salão de festas. (e,
para o criado) - Alemão, providencie as
bebidas na adega e peça a Josefina e a
Gremilda para preparar os canapés e os
salgadinhos. Vamos, todos na função!
SD
- O que é isso?
RODRIGUES (descendo da carruagem no
pátio da mansão)
- É um grupo de seresta querendo fazer uma
serenata em sua homenagem. Mas já está
muito tarde. Os senhores estão exaustos,
precisam repousar. Estou mandando
despachá-los.
Os criados saem a cumprir as ordens.
SD (acompanhando-o)
- Dr. Rodrigues, o Sr está dizendo que o povo
SD, Prado e Rodrigues à porta do salão de
festas imenso, cumprimentam um a um do
68
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
povaréu que vai entrando, com o seu
acanhamento desconfiado e os seus
instrumentos nas mãos. Eduardo das Neves,
elegantérrimo, é o primeiro a entrar,
cumprimenta Rodrigues e Prado e abraça
forte SD, como se fosse um irmão. Em
seguida encarrega-se das apresentações.
pedaços, ninguém sabe o que falar. SD, com
uma energia fantástica, parece que está
começando o dia, e, animado, quebra o gelo.
Pega uma tacinha e serve ele mesmo uma
cachaça e propõe um brinde ao Brasil. Todos
exultam e relaxam; alguém pede música, mas
SD pede a palavra; - agora é a minha vez!
EDUARDO DAS NEVES
- Este é o Ventura Careca, da lira;
- Este é o Sátiro Bilhar, do violão baixo;
- O Quincas Laranjeiras e o Chico Borges,
violões;
- O Mário Álvares, o Galdino, o João Ripper
e o José Cavaquinho, dos cavaquinhos;
- O Irineu de Almeida e o Alfredo Leite, o
conhecido Timbó, dos oficlides;
- O Passos, do Corpo de Bombeiros, o
Geraldo, dos Correios e Felisberto Marques,
flautas;
- O Lins de Souza, o maior piston do Brasil;
- O Lica, o rei do bombardão;
- O Sinhô, nosso Sinhô, mestre-compositor,
trazendo a bandeira nacional;
- E o garoto Villa-Lobos, rapaz de muito
futuro, da ocarina.
SD
- Desejo expressar a minha gratidão pelo
carinho que as senhoras e senhores me
proporcionam aqui. Digo-lhes, sinceramente,
agora sim, estou no meu país, muito
obrigado! (aplausos veementes)
Forma-se a roda; começa a música:
“A Europa curvou-se ante o Brasil... etc”. A
câmera passeia de grua por cima da festa
animada com o povo cantando feliz e SD
abraçado a Eduardo das Neves e Villa-Lobos
fazendo coro também.
SEQUÊNCIA 38 (O novo "Le Temps")
Inauguração da nova sede e da nova gráfica
do "Le Temps". Clima de festa na casa.
(Legenda: Paris, 3 de fevereiro de 1904)
Georges está ao lado da nova e imensa
rotativa de dois andares, uma Marinoni último
modelo, a primeira rotativa a papel em
bobina a imprimir um jornal no mundo. Ele
conversa com um grupo de
oficiais gráficos que aguarda a
E vai passando a moçada, a turma dos morros
enchendo o salão burguês. Criados servem
bebidas em copos de cristal, salgadinhos
servidos pelas mucamas, tudo sendo aceito
com muito acanhamento e um medo que se
péla de dar vexame. O pessoal não sabe
como comer os bocados e deixam cair
"... uma Marinoni último modelo..."
69
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
hora solene de acionar a máquina, logo
depois que o Prefeito de Paris arrebentar uma
garrafa de champagne na sua pesada
estrutura metálica.
agora! Um almofadinha! Nem cumprimenta
mais os antigos colegas de oficina, reparou?
Não lembra-se dele, Georges?
GEORGES
- Não é aquele foca que ficava só levando e
recebendo recados do Adrien?
GEORGES (para os atentos operários que o
ouviam formando uma pequena platéia)
- Foram 14 a 9! Uma vitória total! 14 votos
para Santos-Dumont! O Prêmio Deutsch era
dele e a alegria voltava a Paris! Nosso cálculo
dava 12 a 11. Não sabemos até hoje quem
recuou do outro lado. Foi um grande dia. À
noite, ao entrarmos no Maxim’s, todos
levantaram-se para aplaudi-lo...
O CHEFE DA GRÁFICA
- Ele mesmo, um puxa-saco! Nem o Sr
Hébrard simpatiza com ele. Dizem que é filho
de banqueiro judeu; e que o pai pediu o
emprego, mas sem moleza para o garoto. Se
é verdade, não sabemos, mas é a explicação
que temos por não ter sido despedido. Jornais
estão cada dia mais precisando dos bancos...
Olha, chegaram!...
Um funcionário do jornal muito alinhado,
de terno de listras à la Santos-Dumont e
chapéu de coco chega ao grupo e interpela
Georges.
O FUNCIONÁRIO (Lazare)
- O Sr Adrien já está vindo
com o Prefeito. Pediu para
deixar tudo pronto.
GEORGES (para os
oficiais)
- Mas parece que já está
tudo pronto, não?
O CHEFE DA GRÁFICA
- É só mandar rodar, que
disparamos na mesma
hora!
Lazare sai.
GEORGES
- Quem é ele?
A porta do mezanino abrese e surge Adrien à frente
do Prefeito de Paris
seguido de uma vasta
comitiva de senhoras e
cartolas. Vinham com ele o
Sr Gordon Benett, o
Embaixador Henry White,
um grupo de oficiais do
exército liderado pelo
Coronel Renard, alguns
conhecidos banqueiros e
autoridades, todos com
respectivas esposas no
rigor da moda em Paris. Na
rabeira, o jovem posudo
"...SD está tremendamente elegante..."
Lazare Weiller. Georges
dirige-se para a beira da
escada de ferro por onde o grupo começa a
descer. No caminho encontra SD, que entrara
pela porta da gráfica em busca de Georges.
SD está tremendamente elegante.
O CHEFE DA GRÁFICA
- É o senhor Lazare Weiller. Com a ampliação
do jornal, foi promovido a assistente de
redação na editoria de política. Esse já foi
de tudo aqui; foca, carregador-de-galés,
ajudante de tipógrafo, revisor, redator de
necrológios e tradutor de telegramas em
inglês. Ninguém gosta dele, o homem parece
que passa uma antipatia congênita. Mas subiu
muito em pouco tempo; olha só como está
SD (caminhando ao lado de Georges)
- Vim só para dar um abraço em Adrien e
em Você. Tenho compromissos ao Teatro
hoje. É a estréia da bailarina Aida D’Acosta,
uma lindíssima cubana. Levo comigo alguns
amigos brasileiros.
GEORGES
- Recebi convites para amanhã. Hoje, como
70
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
vê, não posso ir.
há, hoje, uma só gráfica no mundo que não
possua alguns de seus equipamentos e
máquinas. Essa que agora verão rodar a
próxima edição do "Le Temps" é sua última
grande invenção: a primeira rotativa a
imprimir em papel bobinado! Um
aperfeiçoamento da rotativa que o Sr
Marinoni inventou há sete anos e pôs a
funcionar no Petit Journal. Tira mais de 50
000 exemplares por hora! Comprei- a na
maquete, na Grande Exposição de 1900, com
um pequeno sinal em dinheiro. (e, com
ironia) - Ainda não sabia como iria pagar o
restante... (todos riem espirituosamente)
SD
- Se eu gostar, é provável que repita a dose.
Estou dando uma folga a mim e aos meus
mecânicos por estes dias. Bem, cá estamos...
Adrien desce com cuidado a escada de ferro,
seguido pelo Prefeito e a comitiva,
explicando em voz alta cada detalhe da nova
gráfica. Ao ver SD e Georges cumprimentouos e os apresentou ao Prefeito que, ao parar
para a conversa, paralisou toda a desajeitada
fila que descia por traz dele na estreita
escada. Mas isso não perturbaria o Prefeito.
O PREFEITO
- Ah, mas isso é típico de Adrien! Ele é o
único francês ousado que conheço. Por isso
gosto tanto dele. É um homem que acredita
em si mesmo e no futuro do seu trabalho.
O PREFEITO
- Não precisa apresentar-me ao Senhor
Santos-Dumont, Adrien. Já o condecorei junto
ao Primeiro-Ministro com a Ordem de
Cavaleiro da Legião de Honra. Esse moço
tem levado Paris às primeiras páginas dos
jornais do mundo, quase diariamente. A
França é grande devedora dos seus serviços.
Só espero, algum dia, ser um dos seus
passageiros nos ares.
ADRIEN
- Costumo dizer, Sr Prefeito, que confio no
meu sexto sentido. Em 97, o Sr Marinoni
ofereceu-me sua primeira rotativa e achei que
não era a hora. Quase arrependi-me, porque
ele vendeu-a ao Petit que cresceu tanto ao
ponto do seu nome tornar-se uma fantasia.
Mas em 1900, quando vi a bobina de papel
e percebi as potencialidades dessa máquina,
não vacilei; assinei o contrato... (e, para o
Chefe da Gráfica) - Está tudo pronto?
SD
- Sou muito grato pela sua confiança, Senhor
Prefeito. Tenha toda a minha frota à sua
inteira disposição. Mas, fiquem à vontade,
cavalheiros, não desejo perturbar a sua
preleção, Sr Hébrard; antes desejaria ouvila, se me permite...
O CHEFE DA GRÁFICA
- Tudo pronto, Sr Hébrard.
ADRIEN
- No que muito nos honra, Sr Santos. Estava
há pouco referindo-me a um grande inventor
no campo das Artes Gráficas. Falo do Sr
Hipólito Marinoni, que infelizmente não
pode estar presente por motivos de saúde.
(e, continuando, enfim, a caminhar, recomeça
a falar no tom em voz alta para todos) - Como
eu dizia, senhoras e senhores, o Sr Marinoni
tem sido o maior responsável pelos avanços
da indústria gráfica nestes últimos dez anos.
Desde os grandes Aldus Manutius e Claude
Garamond, no Séc. XVI, e Bodoni, no Séc.
XVIII, que não temos avanço tão visível nesse
campo. Seus inventos são incontáveis e não
Um garçom aproxima-se trazendo uma
enorme garrafa de champagne amarrada pelo
gargalo num barbante preso, na outra ponta,
no topo da estrutura da máquina. Adrien
passou-a ao Prefeito.
O PREFEITO (segurando a garrafa no ponto
de atirá-la em direção à máquina)
- Que essa máquina imprima os melhores
jornais para os parisienses, e que sejam felizes
os seus proprietários... (atira a garrafa)
O Chefe aciona uma alavanca e a máquina
roda num grande estardalhaço de rolos e
71
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SEQUÊNCIA 39 (A “nova” imprensa)
engrenagens. A câmera passeia, por cima,
nos detalhes da máquina em movimento. A
comitiva segue Adrien e o Prefeito até a outra
ponta da máquina, onde já começam a
chegar os primeiros exemplares prontos;
impressos, cortados e dobrados. Adrien
abaixa-se, pega um deles e exibe a sua
primeira página a todos, que estampa, em
grande formato, a foto do Prefeito cortando
a faixa do novo prédio do "Le Temps", há
poucos minutos atrás. Todos exclamam
admirados, procurando-se também na
fotografia.
Fim de festa. Os últimos convidados
despedem-se. Alguns permanecem
bebericando. Funcionários encerram suas
tarefas. Adrien chama Georges, que estava
conversando com Lazare. Eles despedem-se
e Georges segue Adrien.
ADRIEN
- Vamos à sua sala. Lá é mais difícil nos
acharem. (encontram Louise, a sua nova
secretária) - Louise, cuide de tudo; já fui
embora, entendeu? (pegam um elevador)
O PREFEITO (olhando a fotografia com
atenção)
- Mas... como, Adrien? Não foi aquela que
fizemos há pouco menos de meia hora?
Descem no quarto andar e vão direto à nova
sala de Georges onde lê-se “GEORGES
GOURSAT - EDITEUR DES ARTS ET DES
SCIENCES”. Georges abre-a com sua chave.
Entram na ampla sala, bem mobiliada, com
uma grande escrivaninha com máquina de
escrever, prancheta de desenho com
iluminação própria, um jogo de sofás,
armários grandes e embutidos na parede,
tudo muito bem decorado e bem iluminado.
Sentam-se cansados nos sofás. Adrien tira do
bolso um pedaço de papel e dá a Georges.
ADRIEN
- Exatamente, Sr Prefeito, eis a nova imprensa.
Amanhã, quando o Sr sair do Teatro e for a
um restaurante, lá estará chegando as críticas
do "Le Temps", sobre a peça que o Sr acabou
de ver.
O PREFEITO (exibindo a folha a todos)
- Mas é uma maravilha, não acham? Não
tenho dúvidas, Adrien, que o seu jornal foi
o primeiro a chegar ao Século XX.
ADRIEN
- Chegou há cerca de dez dias. Preferi só
falar agora por causa das atribulações de
inauguração.
Um jornaleiro passa distribuindo exemplares
do jornal a todos.
GEORGES (lendo o cabograma)
- Quem são estes senhores Orville e Wilbur
Wright? E que lugar é este? Dayton, Ohio?
ADRIEN (como para encerrar um show)
- Bem, senhoras e senhores, acabam de
conhecer o coração do novo "Le Temps".
Agora, aguardamos a todos no hall principal
para um pequeno coquetel. Sigam-me, por
favor. (e sai em direção à porta que dá para
o hall)
ADRIEN
- Suspeito que seja coisa do Benett. Aliás,
não digo apenas do Benett. A ele cabe essa
parte, a publicidade.
Ao passar por Georges, cochicha em seu
ouvido.
GEORGES
- E quem viu esse vôo? É uma
notícia importantíssima, Adrien,
diabos! Se for verdade...
ADRIEN (no ouvido de Georges)
- Quero que fique até o fim do
coquetel. Preciso falar com Você.
ADRIEN (cortando)
- Não é verdade. Nem os jornais de Benett
publicaram essa balela. Apenas um balão
Georges balançou a cabeça concordando.
72
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
de ensaio em jornalecos menores, só para
medir a repercussão, entende? Em todo o
caso, mandei meu agente até lá, nesse confins
do mundo. Bem onde afirmam que voaram,
passa uma linha de bonde. E, exceto alguns
pássaros que costumam arribar ali há séculos,
ninguém viu nada voando, muito menos uma
máquina mais pesada que o ar.
máxima! Essa história me cheira a balão de
ensaio; estão em fase de testes, percebe?
GEORGES
- Não muito, Adrien; perto de Você sempre
me sinto como um principiante...
ADRIEN
- Tenho conversado com alguns militares
bem informados. A questão da aeronáutica
é assunto em todos os quartéis das grandes
nações. E tratado e pensado a portas
fechadas, como segredo de estado.
GEORGES
- Bem, então isso não tem nenhuma
importância; melhor é esquecê-los...
ADRIEN
- Aí é que eu digo não, Georges. Minhas
informações e meu sexto sentido começam
a montar o quebra-cabeças. Acho que os
americanos, se não conseguem inventar a
máquina aérea, já começam a inventar outra
coisa. Estão inventando uma imprensa que
dispensa os fatos reais. São práticos esses
americanos, não duvide, e não os subestime.
O grande problema de jornalistas como nós,
que precisam encher jornais todos os dias,
é, e Você sabe disso, a dificuldade de se obter
a nossa matéria prima principal, isto é, os
fatos. Então eles resolvem essa dificuldade
criando uma imprensa que não precisa deles;
simplesmente inventa-os! Ou criam lendas.
Os “fakes”, como eles dizem. Quem vai
conferir?
GEORGES
- E o que pensam os militares? O que está
me dizendo é que eles agora também
pensam, não é? De fato, o mundo está
mudando muito...
ADRIEN
- O que pensam não interessa. Interessa o
que decidem! São homens que vivem da
guerra; com guerra ou sem guerra.
GEORGES
- Ótimo; então reformulemos: o que estão a
decidir de tão grave?
ADRIEN
- Quanto à aeronáutica, posso assegurar que
a ala de maior peso já descartou os mais
leves que o ar. Nunca engoliram balões e
dirigíveis. Acham caros, morosos,
desajeitados para a guerra. É facílimo sabotálos e como alvo são excelentes, muito mais
agora que os canhões ganham maior alcance
e pontaria. Nisso têm razão. Nós mesmos
concordamos. O problema haverá de ser
resolvido com o mais pesado que o ar.
GEORGES
- Outros jornais; nós, sei lá; quem quiser;
isso é loucura, Adrien!
ADRIEN
- Pode ser; mas aí está! Quantos têm recursos
para mandar alguém naqueles confins, e
conferir uma coisa dessas? E, uma vez
conferido, de que adianta? Foi um jornaleco
que publicou; o "Le Temps" não pode ficar
contestando um jornaleco qualquer. Seria
entrar no jogo! E dar mais publicidade ao
blefe! Mas essa publicação pode valer como
documento amanhã... E começa a criar ao
menos uma lenda. Benett gosta de repetir
uma expressão que diz ser dele, mas não
creio que seja: “quando a lenda supera a
realidade, imprima-se a lenda”! É uma boa
GEORGES
- Mas pretendem fabricá-los apenas nos
noticiários de jornalecos irresponsáveis?
ADRIEN
- O que sabem é que está próxima a hora
dessa solução. E os americanos preparam-se
para abocanhar suas patentes ou contestar
outras que não as suas. Daí essa balela de
73
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Ohio. Para eles não interessa quem solucione
a questão. Eles a compram e dão o crédito a
quem lhes convier. E é melhor que tenham
alguém pronto, na realidade ou na lenda,
para recebê-lo.
pesado que o ar?
GEORGES
- Está em franca atividade. Tudo em sigilo. E
procura dar a entender que está fora do
páreo. Está escaldado, teme sabotagens, e
com razão; americanos nem pintados de corde-rosa. Acha que o Benett está envolvido
nas sabotagens, porque em Saint Louis...
GEORGES
- Mas terão de obter a conivência do
verdadeiro inventor, e nem sempre...
ADRIEN
- Para os americanos não há dúvidas de que
a terão. Acreditam na força do dinheiro e
estão comprando tudo pelo mundo afora. A
França tem sido a campeã desse leilão; está
se vendendo toda para eles.
ADRIEN
- Não creio. Já lhe disse, a parte do Benett é
a publicidade. Espionagem e sabotagem é
assunto de estado. A Embaixada Americana
aqui não passa de um antro de espiões.
Suspeito do próprio Henry White. E... como
está o nosso arquivo secreto sobre SantosDumont?
GEORGES
- Como assim, Adrien?!
SEQUÊNCIA 40 (Álbum de retratos)
ADRIEN
- Os franceses são conservadores,
provincianos e pouco audaciosos. Querem
a segurança individual e a certeza do negócio
líquido e certo. Os americanos são jogadores,
blefadores e aventureiros; aceitam qualquer
tipo de jogo; não se preocupam com os
escrúpulos. Veja o caso do "Le Temps". Não
consegui dinheiro em banco europeu algum,
muito menos francês, para essa ampliação.
Bastou o Benett elogiar-me para um
banqueiro americano, que logo o dinheiro
apareceu; e em condições irrecusáveis! Tive
de fazer o negócio. E é o que está
acontecendo em surdina pela França inteira.
Tem dinheiro americano até nas ampliações
do Moulin Rouge, Georges.
Georges foi até um dos armários e, com sua
chave, abriu as duas portas deixando à mostra
o conteúdo repleto de pastas, arquivos
fotográficos de negativos e cópias, e um
cofre.
GEORGES
- No cofre guardo o que é confidencial,
inclusive as anotações sobre o mais pesado
que o ar (retira duas grandes pastas de cópias
fotográficas e põe sobre a sua mesa)
Georges convida Adrien para olhar os álbuns
de fotografias. Abre um deles nas fotos de
dirigíveis. A câmera passeia por diversas fotos
enquanto Georges folheia o álbum
descrevendo a Adrien o que está vendo.
GEORGES
- Sim, mas voltando à aeronáutica...
GEORGES
- Muitas lendas se criaram em Paris desde
que Alberto começou a ter sucesso com seus
dirigíveis, enriquecendo o imaginário
popular. Dizem até que, de tanto olhar para
cima, os parisienses começaram a enxergar
coisas do outro mundo. Houve quem jurasse
ter visto um corcunda no alto de uma das
Torres da Catedral de Notre Dame!? (pára
numa página)- Ah, aqui é o Número 6. Ele
ADRIEN
- Ainda faço fé naquela solução de quando
o contratei, lembra-se?
GEORGES
- Claro; é nela que continuo a trabalhar.
ADRIEN
- E o que ele tem feito em relação ao mais
74
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
foi copiado por vários aeronautas
americanos, ingleses e franceses. Na
Alemanha, o Conde Ferdinand Von Zeppelin
construiu um exemplar monumental. Mas o
original quase encerrou seus dias em Mônaco
(fotos de Mônaco)
A foto do hangar de Mônaco ganha vida a
cores enquanto Georges narra em off.
GEORGES (em off)
- No início de 1902, a convite do príncipe de
Mônaco, ele foi para Monte Carlo. O governo
de Mônaco providenciou-lhe tudo, conforme
suas instruções, e Alberto construiu lá um
hangar bem equipado para o seu Número 6.
Duas crianças, netos do príncipe, de 8 e 10
anos, sob os aplausos da nobre e engalanada
platéia, abrem sozinhas os grandes portões
de correr do hangar, na sua festa de
inauguração (Legenda: Monte Carlo, 19 de
janeiro de 1902)
"... o Nº 6 original quase encerrou seus dias em Mônaco..."
GEORGES (ainda em off)
- Lá ele fez vários vôos de exibição para o
êxtase dos senhores Eiffel, Rochefort,
Eugênio Higgins e, como não poderia deixar
de ser, Sr James Gordon Benett. Em 14 de
fevereiro deu-se um acidente, também
inexplicável,
mas
sem
maiores
conseqüências, pois Alberto parece gozar de
alguma proteção do demônio. Decidiu então
retornar a Paris.
álbum a Adrien.
GEORGES (in)
- Aqui é o Número 7, projetado para disputar
corridas. Com ele foi para a América disputar
o Prêmio de Saint Louis. Um dia antes da
corrida teve o seu dirigível sabotado ainda
nas caixas de transporte. (cena da mão de
um homem, com um afiado estilete, a
dilacerar a seda do invólucro, ainda na caixa
de transporte, após arrombá-la, num depósito
A cena volta para Georges mostrando o
"...o Nº 7, projetado para disputar corridas, sabotado ainda nas caixas de transporte."
75
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
graciosamente sobre as tropas e praticamente
estaciona diante do palanque das
autoridades, nuns 30 metros de altura. Traz,
desfraldada, uma faixa com as iniciais
PMNDN (Por Mares Nunca Dantes
Navegados), do verso de Camões. No silêncio
geral que se formou, SD, da barquilha do
Número 9, dispara uma salva de tiros de
revólver, em posição de sentido, e com o
chapéu seguro ao peito; causando um grande
susto no palanque. Feito isso, liga o motor,
acena ao povo, que o aplaude, e vai-se.
portuário escuro) - Tudo bem debaixo das
vistas da equipe de Benett que tinha
exclusividade na cobertura do evento, era o
seu mentor e patrocinador. Aqui temos umas
belas fotos do Número 6 em performances...
De novo as fotos ganham vida a cores e
mostram uma sequência de planos do
Número 6: voando rasante sobre o lago do
jardim dos Rothschild e assustando um
pescador que por ali se achava; levando o
garoto Clarkson Potter, de 7 anos, para
passear nos ares após pousar em meio à
garotada que jogava futebol em Bagatelle;
assustando moçoilas em pic-nics ao chegar
silencioso, por cima, ameaçador, como se
fosse um extra- terrestre; passando em vôos
rasantes sobre plantações de trigo,
assustando os lavradores, etc...
De volta ao álbum.
ADRIEN (sorridente)
- Isso deu o que falar. Houve até abertura de
inquérito no Exército. Dizem que o convite
foi uma galhofa de alguns oficiais bêbados
no Le Cascade.
Volta ao álbum.
GEORGES (rindo também)
- Pensavam que a façanha seria impossível.
Pior para eles, cada um pegou dez dias de
cadeia. (continua folheando o álbum) - Essa
foi uma sensação em Paris. A cidade já se
acostumara ao som do motor do
“Balladeuse”. De repente o motor parou em
pleno ar, após falhar algumas vezes. Todos
olharam para ver o que era. (de novo, a foto
ganha vida a cores)
GEORGES (in)
- Chegamos às suas últimas vedetes; o
Número 9, o menor dirigível do mundo, que
Paris já apelidou “La Balladeuse”, e o Número
10, o seu “Omnibus aéreo”. Essa foto é do
Número 9, sobre a parada de Longchamps,
evoluindo sobre as tropas e 200 000
espectadores.
Outra vez a foto ganha vida a cores (Legenda:
Paris, 14 de julho de 1903) O Número 9 evolui
GEORGES (continuando em off)
- O dirigível estava à deriva e o seu audaz
piloto saía da segurança de sua barquilha
equilibrando-se na frágil
estrutura
do
cordame, até
chegar
O SD Nº 9 - "La Balladeuse" e
algumas de suas peripécias sobre
Paris. Acima, no 14 de julho,
evoluindo sobre as tropas
francesas; e caminhando para
consertar o motor em pleno vôo a
mais de 100 metros de altura.
76
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
O SD Nº 10, o "Omnibus Aéreo", o maior dirigível de SD. Abaixo
evoluindo sobre o campo de St. Cloud. Ao lado, levando como
passageiro e aluno o Príncipe Rolland Bonaparte.
ao motor. Isso a mais de cem
metros de altura! Suspense geral!
Ele chegou até o motor e começou
a consertá-lo em pleno ar. Enfim o
motor pegou e ele percorreu de volta o
perigoso caminho até a barquilha. (continuou
folheando o álbum) - Este é o Número 10, o
seu ônibus aéreo. Nessa foto o passageiro é
o Príncipe Bonaparte.
Pasquelle, por minha indicação. Nos
começos estava melhor, mais profundo e
revelador. Mas, com as sabotagens, Alberto
retirou dados e informações que preferiu
revelar em outra oportunidade. Com ele acho
que Alberto encerra o ciclo dos balões. Nessa
sua luta acabou por aprender alguns truques,
Adrien, e não é mais o jovem ingênuo e
idealista do início.
Outra vez a foto ganha vida a cores. SD e
Rolland Bonaparte levantam vôo em St Cloud
no enorme Número 10. SD ensina a
Bonaparte a comandar a aeronave. Este, de
cartola, fica deslumbrado com a ascensão,
admirando os bosques por cima e a cidade
à sua frente.
ADRIEN
- Ainda bem, porque vamos precisar desses
truques!
Volta ao álbum.
GEORGES
- Seu trabalho é todo feito em sigilo na sua
oficina secreta.
ADRIEN
- E essa, o que é?
ADRIEN
- Eu sei; essa oficina secreta tem dado dores
de cabeça nas embaixadas e no Palácio do
Governo. Todos sabem que ela existe mas
não onde fica. E haja espião trabalhando,
Georges... sei que Você a frequenta.
GEORGES
- É em Cabangu, a cidadezinha onde nasceu
no interior do estado de Minas Gerais, no
Brasil. Essa é a casa em que nasceu. (vira a
página) - E aqui, ele com Thomas Alva Edson,
nos Estados Unidos... com Langley... aqui
com Marconi... com Gustave Eiffel...
GEORGES
- Sim, mas sob juramento.
Enfim Georges fecha o álbum
e mostra a Adrien um conjunto
de 12 rolos de filmes guardados
num compartimento do
armário, abre o cofre, e retira
dele um maço de papéis.
ADRIEN
- Diga a ele para ter cuidado.
Governo algum gosta de
estrangeiros
fazendo
experiências secretas em seu
território. E Você sabe como
age o poder...
GEORGES
- Este é o livro que Alberto vai
publicar sob o título Dans L’Air.
Será editado por Eugéne
GEORGES
- O que eu posso assegurar,
77
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Adrien, como francês e patriota, é que nada
lá é feito ou pensado que possa prejudicar o
estado francês, muito pelo contrário...
gala aguardam o sinal para entrar.
MAURICE
- Ontem a estréia foi magnífica, Georges. Ela
está belíssima. Parece uma figura saída de
uma pintura de Gauguin. E os ritmos são
fantásticos, bárbaros. Depois da Grande
Exposição ninguém precisa sair de Paris para
conhecer o mundo. O mundo vem até Paris!
SEQUÊNCIA 41
Corte para a oficina de SD. Ele e quatro
mecânicos trabalham. Além dos três já
conhecidos, foi introduzido Levavasseur,
especialista e construtor de motores à
explosão de petróleo. Estruturas enormes, do
tipo celular, são produzidas na marcenaria
pelo eficiente Gasteau, observado de cima,
pelo inventor, em sua barquilha suspensa.
Num certo momento ele joga duas cordas
que Gasteau amarra na estrutura e, ao seu
sinal, faz levantar a barquilha junto com a
estrutura e a transporta, suspensa no ar, até
a área de montagem. Em seguida, dirige a
barquilha até a cabine de testes de motores
e a faz baixar bem ao lado de Levavasseur,
que está testando um novo motor,
observando-o pelo visor. Os dois olham
atentamente a máquina e os instrumentos de
medição.
PEDRO
- Aida D’Acosta nos traz os ritmos calientes
das Américas central e do sul: a rumba, o
samba, o tango, a macumba. São ritmos
fortes... (toca o sinal) - Eis o sinal, vamos.
GEORGES (para SD, enquanto subiam as
escadas)
- Hoje haverá um número especial, com o Sr
Debussy ao piano, tocando uma composição
feita especialmente para ela, Alberto.
Cenas de Aida dançando no palco da Ópera
de Paris. Cortes para a platéia e os amigos
no camarote. Cenas da Dança com Debussy
ao piano, tocando uma versão de “La Mer”.
Ao final, aplausos de pé.
LEVAVASSEUR
- Já temos 38 HPs.
Saída do teatro, ainda no hall. Um repórter
chega alvoroçado até SD.
SD
- Preciso 50, Levavasseur. Vou redesenhá-lo.
Penso dispor os cilindros em forma de V,
para obter mais eficiência e rendimento.
O REPÓRTER
- Senhor Santos-Dumont! Senhor SantosDumont!
LEVAVASSEUR
- Teríamos de fundir um novo bloco...
SD pára e aguarda curioso. O repórter
aproxima-se.
SD
- Mandaremos fundi-lo.
O REPÓRTER
- Estávamos numa coletiva no camarim da
Srta Aida. Perguntaram o que ela mais
gostaria de fazer em Paris. Sabe o que ela
disse?...
SEQUÊNCIA 42
Corte para o hall de entrada
da Ópera de Paris.
Movimento grã-fino e
elegante. SD, Georges,
Pedro Rodrigues, Maurice
Farman, todos em trajes de
GEORGES (chegando junto
a outros repórteres e
interrompendo o colega)
- Ela desejaria voar em seus
dirigíveis, Alberto. Hoje
mesmo essa declaração
78
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
SEQUÊNCIA 43
estará nas páginas do "Le Temps". O que tem
a comentar?
Campo de St Cloud. Uma multidão aproximase em landaus, tilburis, cupês, coches, fiacres,
automóveis, triciclos, cavalos e carruagens.
A Srta Aida D’Acosta chega acompanhada
de seu empresário numa landau. A multidão
abre o caminho para que a landau estacione
junto ao Balladeuse, pronto para subir, com
SD, em elegante traje esporte e chapéu
panamá. Aida desce da landau sob os flash
de pólvora dos fotógrafos e posa sorridente
ao lado de SD.
SD (cercado pelos repórteres)
- É muito delicado da parte da Srta Aida.
Vou escrever-lhe um bilhete e se os senhores
entregassem-no eu lhes agradeceria. Me sinto
honrado pela confiança da Senhorita...
SD tira do bolso interno do fraque um
envelope com cartão e uma caneta de ouro.
Apoiado nas costas de Georges redige o
bilhete e passa-o ao
primeiro repórter.
SD
Corte para o
camarim de Aida.
A bailarina está
desfazendo a maquiagem
frente ao espelho enquanto
a camareira penteia seus longos
cabelos. Batem à porta. A
camareira vai abri-la e os
repórteres invadem o camarim.
Aida retira o resto da maquiagem
para atendê-los. O primeiro
repórter entrega-lhe o bilhete.
Aida, risonha e feliz, abre o
envelope e o lê em voz alta para os
repórteres que anotam tudo.
- Será uma honra para mim
e meu Balladeuse levarmos
a Senhorita num passeio
aéreo.
AIDA
- Minha intenção, Senhor
Santos-Dumont, se não o
ofendo, é a de voar sozinha
em seu dirigível. Eu mesma
conduzindo-o nos céus, em total
liberdade.
Um silêncio tomou conta da platéia.
SD não se perturba.
AIDA (lendo em voz alta o bilhete)
- “Senhorita Aida D’Acosta. Soube que deseja
voar em meus dirigíveis. Fiquei encantado
com a confiança da Senhorita e estou à sua
inteira disposição. Amanhã às 10 horas
aguardo- a no Campo de St Cloud, e se o
tempo ajudar, espero poder satisfazê-la.
Tenha-me respeitosamente, Alberto SantosDumont.” (ela lê o nome de SD dando
gritinhos de alegria)
SD
- Se é assim, o seu desejo será satisfeito. Mas
antes devo dar-lhe algumas instruções para
comandar essa aeronave.
Aida cheira o cartãozinho e coloca-o sobre
o peito, suspirando.
O EMPRESÁRIO
- Desculpe-me, Senhor Santos; mas
tenho de fazer o meu protesto
perante à minha contratada. (e, para
Aida) - Srta Aida, creio que não
devemos nos arriscar assim; temos muitos
compromissos acertados...
E começa a ensinar à bailarina como pilotar
o Balladeuse, detalhe por detalhe. O
empresário de Aida, impaciente e inquieto
desde a manifestação de sua contratada,
interrompe-os.
AIDA
- Almíscar!... É de muito bom gosto
o Sr Santos-Dumont! Digam-lhe que
estarei lá.
79
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
perfeita e retorna perdendo suavemente a
altura, vindo em direção à platéia extasiada.
Lentamente ele chega de volta ao ponto de
partida e já pode-se ouvir as risadinhas
satisfeitas da sua comandante. Ela joga a
corda guia.
AIDA
- Peguem! Peguem!
Os mecânicos de SD agarram a corda e
puxam forte para segurar o dirigível. Ele pára
num solavanco perigoso, ainda no ar, mas
Aida não se desequilibra e nem se perturba.
"...ascende suavemente com a sorridente bailarina"...
AIDA
- Charles, querido, não se preocupe. É apenas
um pequeno vôo. O Senhor Santos-Dumont
afirmou-me que é absolutamente seguro.
AIDA
- Devagar, devagar! Assim podem estragálo...
CHARLES
- Srta Aida, o Senhor Santos é um aeronauta
de ofício. A Srta há de concordar que o céu
não é um palco...
Enfim ele é puxado até o chão, com Aida
radiante dentro da barquilha, a beijar e
abraçar SD que é o primeiro a recebê-la sob
os aplausos efusivos da platéia.
AIDA
- Como não? É o mais belo dos palcos! Você
conhece cenógrafo mais criativo do que o
cenógrafo do céu? Quero atuar nesse palco,
Senhor Charles; ao menos uma vez! Por
enquanto é exclusivo do Senhor SantosDumont. (e, para SD) - Por favor, continue
suas instruções.
AIDA (ao sair da barquilha)
- Podemos convidar o Senhor Santos-Dumont
para jantar conosco hoje, não é Charles? O
senhor aceitaria, Senhor Santos-Dumont?
Logo após o espetáculo...
SD
- Senhorita Aida, hoje sou eu quem a convida
em tudo. Tenho uma reserva permanente no
Maxim’s. Após o espetáculo desejo levá-la
para conhecer os segredos do chef Verdoux.
SD olha para Charles como quem diz: - que
fazer? - e continua a dar instruções à bailarina.
A platéia permanece em silêncio total.
Finalmente a bailarina entra na barquilha com
facilidade, apesar do complicado vestido que
usava. SD dá a ordem para ligar o motor.
Chapin obedece.
AIDA
- Oh, mas que elegante! O Maxim’s! Sim, eu
aceito, Senhor Santos-Dumont; eu aceito o
convite! Muito obrigada! (em seguida sapecalhe um beijo quase na boca)
AIDA (graciosa)
- “Lachez tout!”
A multidão se dispersa e SD coordena a
inspeção do Balladeuse para que fique bem
guardado no hangar. Georges aproxima-se.
O Balladeuse ascende suavemente com a
sorridente bailarina a comandá-lo, e começa
a voar fazendo um largo círculo sobre a
platéia, em baixa altura. Depois sobe um
pouco e distancia-se voando por cima do
Bois de Bolougne, como se fosse em direção
à Torre Eiffel. Mas, ao longe, dá uma volta
GEORGES
- Parece que temos um novo romance famoso
em Paris?!...
80
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
SD
- Georges, eu gostaria que pensassem que
eu sou viúvo e parassem de inventar histórias
e me perguntar tolices...
ainda no esqueleto. SD observa-o, suspenso
em sua barquilha, à média altura em relação
ao pé-direito, e tendo, pendurado ao seu
lado, um modelo em miniatura do futuro 14
Bis. Dazon e Chapin terminam, na área de
montagem, frente às portas de saída da
Oficina, o Número 12, uma espécie
complicada de helicóptero de duas grandes
hélices. SD vai com sua barquilha aérea até
eles.
GEORGES
- Tudo bem, mas o fato é que até hoje
ninguém havia voado solo em seus dirigíveis;
nem mesmo os seus mais fiéis e experientes
mecânicos. E hoje Você o entrega, em
público, a uma bailarina?! E ainda quer nos
condenar por estar inventando histórias?
CHAPIN
- Está quase pronto, senhor. Mesmo com o
giro contrário das hélices, não creio que vá
se evitar a rotação sobre o eixo central...
SD (mudando de tom e passando o braço
sobre os ombros do amigo)
- Georges, já lhe disse que o segredo do vôo
está no equilíbrio.
Observei a Srta Aida em
suas apresentações.
Ninguém melhor que
ela conhece esse
segredo. É perfeita! Vou
lhe contar agora um dos
meus segredos mais
íntimos: tenho aulas de
balé há quatro anos,
todas as segundasfeiras, com a Senhorita Vestris...
SD
(pensativo,
cofiando o queixo)
- Ainda não dei com
a maneira de resolver
esse problema. Vou
paralisar esse projeto.
Sua solução definitiva
exigirá algum tempo.
SEQUÊNCIA 45
Amanhece em Paris, com muita neve.
(Legenda: Paris, dezembro de 1905) Na Rua
Washington, o Sr Louis desce do carroção e
abre os portões que dão para o seu pátio.
Ao entrar, dois homens que o seguiam
penetram furtivamente, sem que ele possa
vê-los. Súbito, o Sr Louis trava a carroça, dá
duas batidas no topo da carroceria e, de
dentro dela, saem dois gendarmes que dão
voz de prisão aos penetras.
GEORGES
- A Senhorita Vestris?! Mas como consegue
sem que ninguém o saiba? A Senhorita Vestris
é a bailarina mais famosa de Paris!...
SD
- Mantenho com ela uma combinação secreta.
Mando buscá-la cedo numa cupê alugada.
Ela vem disfarçada de camareira particular e
vai para o meu quarto onde faço as aulas.
Nem August e os criados percebem a trama,
Georges. Acham que é apenas um prazer
pessoal, metódico e bem pago. E suas aulas
têm me ajudado muito nas performances de
piloto.
O PRIMEIRO GENDARME
- Quem são os senhores? O que desejam com
o meu tio?
SEQUÊNCIA 44
UM DOS HOMENS
- Nada! Estamos apenas interessados na
compra desse imóvel e queríamos
inspecioná-lo.
Oficina secreta de SD. Gasteau termina a
última parte de uma grande estrutura celular,
O PRIMEIRO GENDARME
- Então porque estão seguindo o tio Louis?
81
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Se desejam mesmo comprar o imóvel sabem
que não é ele que trata o assunto. É apenas
o caseiro. O que querem? Falem, expliquemse...
ao que parece...
SD
- Pedi ao Maxim’s que nos trouxesse um
jantar, Georges. August já providenciou. Hoje
é folga de Pierre e François e não posso me
ausentar daqui.
Um dos homens tenta sacar uma arma mas
o outro Gendarme é mais rápido e mete-lhe
uma cacetada na cabeça. O homem cai, o
primeiro Gendarme imobiliza o outro, e apita
para um carro do distrito que aproximavase. Os homens são levados presos.
GEORGES
- Espero que tenhamos tempo para nos falar.
O assunto é urgente.
SD
- Podemos começar, Georges, enquanto
cuido de montar essa estrutura. Ao acabar o
pessoal se vai, e jantaremos aqui mesmo (e
olhando o relógio de pulso) - São 21:15 h.
Terminaremos às 22. O assunto ainda é o
mesmo?
SEQUÊNCIA 46
Intensa atividade na Oficina secreta. Várias
novas máquinas, prontas e em acabamento,
entulham a área de montagem e mock-up.
Dois diferentes desenvolvimentos de
helicópteros (Números 11 e 12), um estudo
em escala de lancha-hidroavião, um enorme
e comprido invólucro de balão dirigível, em
plena fase de corte e costura, e estruturas
celulares grandes, parecidas com enormes
papagaios.
GEORGES
- Sim, temos informações de que o Governo
Francês estuda um meio legal de inspecionar
este imóvel.
SD
- Já sabem que é aqui? Ah, um momento,
Georges (e, para Chapin, lá embaixo) - Um
pouco mais para a esquerda, Chapin,
isso...isso. Agora, mais à frente, assim... vou
baixar, atenção, agora. (baixa a estrutura até
tocar o solo) - Aí está, podem prender as
ferragens. (e, para Georges) - Então,
Georges?...
Quando Georges entra na oficina, SD está
suspenso em sua barquilha ajudando Gasteau
a amarrar uma das estruturas celulares para
suspendê-la presa à barquilha, e levá-la para
uma outra área da oficina, liberando assim a
marcenaria de Gasteau. A operação é bem
sucedida, com Georges a observá-la da
Biblioteca. Ao vê-lo SD faz um sinal para
que falem por interfone.
GEORGES
- Certeza mesmo não! Mas fortes suspeitas...
Nosso informante relatou coisas
GEORGES (no aparelho da Biblioteca)
- Pensei que jantaríamos no Le Procope, mas
Uma das hélices do helicóptero Nº 12
82
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
Após algum tempo os mecânicos estão de
saída vestindo os seus capotes. Levavasseur
e Anzani ficam esperando SD na casinhola
de testes de motores. SD sai da barquilha no
quadrado central da Oficina e dirige-se até
eles, após convidar Georges a acompanhálo. Os quatro observam um motor de oito
cilindros em V, dentro da casinhola de testes,
em funcionamento aparentemente silencioso.
LEVAVASSEUR
- Aí estão os seus 50 HP, senhor. É o nosso
novo Antoinette: a 900 rotações por minuto!
SD
- Perfeito! Veja, Georges, o primeiro motor
que levará o homem aos ares num mais
pesado que o ar. Com ele vamos ganhar os
Prêmios Archdeacon e do Aero Clube. (e,
para os mecânicos) - Senhores, estão de
parabéns. Divido com Vocês a glória de têlo tornado uma realidade!
O 1º motor V8 do mundo:
"Aí estão os seus 50 HP, senhor."
inacreditáveis. Há mais de um ano vigiam
este edifício!... Melhor será deixar essa
conversa para mais tarde, é delicada...
SD
- Tenho pressa, Georges. Devo ganhar dois
prêmios neste ano. Mas, concordo com Você.
Por que não toma um drink?
SEQUÊNCIA 47
SD
- É mais do que isso, Georges. Depois
explico-lhe. Trata-se do meu Número 14.
Primavera radiante em Paris. (Legenda: Paris,
maio de 1906) SD anda a pé pela Champs
Elysées, num elegante traje de frio. Ele respira
o ar puro, sorridente, satisfeito. Todos que
passam cumprimentam-no cordialmente,
sorrindo. Ele corresponde com gentileza.
Num certo momento Chapin, dirigindo a
Mercedes de SD, estaciona ao seu lado. Ele
não pára e obriga Chapin a acompanhá-lo
em marcha lenta.
GEORGES
- Número 14? Já? Pensei que...
CHAPIN
- O Senhor vai à pé, Senhor Santos?
GEORGES
- Vou aceitar alguma coisa; está um frio
terrível lá fora. Mas, pelo que vejo, ainda
empenha- se nos balões dirigíveis?...
SD
- Saltei o 13, como já fizera com o 8, lembrase? (e, para Gasteau) - Vamos começar a içar
a outra asa, Gasteau, dê-me os cabos.
Georges prepara uma boa taça de conhaque
e senta-se à poltrona. Pega, ao lado, um
exemplar do Dans L’Air e começa a folheálo.
A Mercedes de Santos-Dumont
83
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SEQUÊNCIA 48
SD
- Sim, Chapin, uma boa caminhada neste
lindo dia só poderá ser benéfica.
SD chega ao "Le Temps" após a sua longa
caminhada. Não demonstra nenhum cansaço.
Entra no hall, pega o elevador e desce no
quarto andar, indo direto ao Gabinete de
“ADRIEN HÉBRARD - EDITEUR GENERALE”.
É recebido na ante-sala pela secretária.
CHAPIN
- Mas é grande a distância até lá, Senhor
Santos.
SD
- Preciso exercitar-me, Chapin. Faz parte do
ofício. Calculo que estarei no meu
compromisso exatamente na hora aprazada,
isto é, se o senhor me permitir, Sr Chapin...
LOUISE (solícita, ajudando-o a tirar o
sobretudo, o chapéu e o cachecol)
- Eles o aguardam, Senhor Santos-Dumont.
Entre, por favor. (e abre a porta do Gabinete)
CHAPIN
- Fechou o negócio do galpão em Neully?
SD entra no Gabinete. Adrien e Georges já
estavam lá.
SD
- Sim, Chapin, está tudo certo, amanhã Você,
Gasteau e Dazon já podem começar a
arrumá-lo. François e Pierre vão com Vocês.
ADRIEN
- Senhor Santos, nos horários o Senhor se
comporta como um inglês. (e olhando o seu
próprio relógio de pulso) - São exatamente
10 horas! Como tem passado?
CHAPIN
- Ótimo, então posso ir preparando os
carretos. Avisei ao Sr Louis. Podemos fazer
quatro ou cinco amanhã.
SD
- Bastante bem, Sr Hébrard; Georges;
senhores, estou à disposição!
SD
- Certo, Chapin, vejo Vocês à tarde.
ADRIEN (como sempre indo direto ao
assunto)
- Sr Santos, o que temos aqui é obviamente
sigiloso. Contamos com a sua discrição.
Nosso informante conseguiu-nos cópias de
relatórios do serviço secreto francês sobre
as suas atividades.
CHAPIN
- Então até de tarde, Senhor Santos. (e faz
meia volta no Mercedes)
SD continua a caminhar, cumprimentando a
todos e chega na tumultuada travessia da
Place de La Concorde. Ali, o gendarme
encarregado do trânsito o reconhece e,
gentilmente, com um sorriso escancarado,
pára o trânsito para SD passar.
SD
- O Governo Francês sempre honrou-me com
notáveis distinções, Sr Hébrard. Mas de todas,
talvez seja essa a maior.
GEORGES
- Não é hora para ironias, Alberto. A coisa
está ficando séria. Por isso o chamamos aqui.
Ouça Adrien com atenção.
O GENDARME (tirando gentilmente o seu
quepe para SD)
- Por favor, Senhor Santos-Dumont.
SD (também tirando o chapéu e passando
rápido para não atrapalhar ainda mais o
trânsito)
- Obrigado, Senhor Gendarme.
SD
- Trago-lhes uma notícia que talvez contribua
um pouco para aliviar essa tensão. Comprei
um galpão em Neully e amanhã transfiro
minhas últimas invenções para lá.
84
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
ADRIEN
- Se o problema se reduzisse apenas às suas
invenções finalizadas, Sr Santos, eu diria que
o senhor tem razão. Mas não são apenas seus
inventos o objeto da espionagem. Há igual
interesse no que se passa e como funciona a
sua Oficina secreta.
era. Está metido até o pescoço numa teia de
interesses e poderes sem os quais não
sobrevive. Minha visita à sua oficina não
poderia ocorrer em sigilo; teria de reportarme a esses poderes sob pena de perder-lhes
a confiança e a sustentação. Eu preferiria
perguntar-lhe, Sr Santos, se não estaria
disposto a abri-la para uma vistoria reservada
de uma pequena comissão de autoridades.
Isso os acalmaria e daria fim às especulações.
SD
- Porque haverá tanto interesse logo em
minha oficina, Sr Hébrard?
SD
- Mas, Sr Hébrard, creio que, como um
inventor, tenho o direito de preservar o meu
laboratório e os meus experimentos no sigilo
necessário, não? E não há lei que mo proíba
fazê-los em minhas propriedades...
ADRIEN (folheando os relatórios)
- Confesso que após ler estes relatórios até
eu fiquei curioso, Sr Santos. O senhor há de
concordar que um edifício aparentemente
abandonado, sem chaminés, sem qualquer
abertura de ventilação, sem que se produza
o menor ruído ou som, sem que se veja uma
fresta sequer de luz durante a noite, mesmo
tendo uma cúpula transparente, e sem que
nada ou ninguém entre ou saia dele hora
alguma do dia ou da noite, seja uma oficina
capaz de criar, testar e construir máquinas
tão sofisticadas e prodigiosas como os
inventos que o Sr tem nos exibido em Paris.
ADRIEN
- Essa lei que protege a propriedade privada
está por um fio, Sr Santos. Não fosse a França
estar vivendo nesse caos, com uma mudança
de Primeiro Ministro a cada seis meses, os
militares a teriam derrubado. E já se desenha
um quadro de sério conflito na Europa. O
“punho de ferro” alemão começa a
incomodar de fato.
SD
- Busco nos meus trabalhos a simplicidade e
a modéstia; porque acham que os faço às
escondidas?
SD
- O senhor sabe que coloquei a minha frota
de dirigíveis à disposição do General André...
GEORGES
- Alberto, Adrien está do nosso lado. Vamos
precisar da sua ajuda. Precisa confiar nele.
ADRIEN (pegando de novo os relatórios)
- Sr Santos, no natal do ano passado dois
homens foram presos tentando invadir um
galpão abandonado na Rua Washington. Um
deles foi identificado pelo meu informante
como um dos suspeitos que fotografamos
por ocasião das provas do Prêmio Deutsch.
No distrito identificaram-se como
funcionários da embaixada americana e o
caso foi para esferas superiores, como
segredo de estado. Há dois anos especulase sobre a existência de sua oficina secreta,
onde seria ela, e que meios e recursos
extraordinários dispõe. Em 1904, no dia do
lançamento do seu livro, o Sr os autografava
na Livraria do Sr Pasquelle enquanto dois
agentes do serviço secreto visitavam a sua
residência disfarçados de inspetores do
SD
- Sr Hébrard, se não tive ainda a sua presença
em minha oficina é porque, sinceramente,
não sabia do seu interesse em conhecê-la.
Considere-se, desde já, meu convidado para
quando o senhor o desejar.
ADRIEN
- Obrigado, mas o seu convite veio no
momento em que não poderia aceitá-lo,
apesar da curiosidade. O Sr entenderá
porque. Ultimamente a situação política vem
se complicando e um editor de jornal como
eu deixou de ser o simples jornalista que
85
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Corpo de Bombeiros.
ADRIEN
- Todos sabem que o seu objetivo é
conquistar o Prêmio do Aero Clube e a Copa
Archdeacon. Só que dessa vez o Sr não vai
concorrer só. Os Srs Bleriot e Voisin também
postulam os prêmios com suas máquinas. O
próprio Sr Archdeacon também pensa em
disputá-los e testou um planador, puxado
por uma lancha, no Sena. Há também o Sr
Esnault-Pelterie; ... e os irmãos Wright, que
foram desafiados a comparecer com o seu
aparelho, que até hoje só voou em
cabogramas e notícias de jornalecos.
SD
- Sim, lembro-me, August os recebeu...
ADRIEN (em off, sobre as imagens da vistoria
e da espionagem)
- Vistoriaram todos os cômodos do
apartamento e só encontraram um escritório
de trabalho com documentos pessoais e uma
coleção das obras de Jules Verne.
Encontraram também dois cofres; um grande
nesse escritório e um pequeno, camuflado,
no corredor. Ainda não suspeitavam da
oficina estar bem ao lado. Essa veio com a
prisão dos americanos. Passaram a vigiar a
sua residência. A freqüência de seus
mecânicos era diária e lá permaneciam um
expediente inteiro. Fazendo o quê, Sr Santos?
Foram medidas, no prédio anexo, vibrações
que só poderiam ser produzidas por
máquinas possantes e, num tubo protegido
por uma espécie de tampa que aparece ao
lado do telhado, observou-se uma saída de
ar quente, pois a neve descongela à sua volta.
O mesmo acontece, de dia, com a cúpula de
vidro. O carroção de carga de um tal de Sr
Louis, um surdo-mudo, tem sido seguido. É
visto descarregando em St Cloud e em Vau
Girard toda vez que o Sr apresenta um novo
invento. (agora, em in) - E muitos outros
detalhes. Sei que Georges sabe de tudo, mas
está sob juramento. Contudo ofereço-me para
intermediar uma solução, pois a justiça
acabará por conceder mandato que o obrigue
a abrir suas portas de um modo muito
desagradável.
SD
- Vi os testes do Sr Archdeacon, aliás,
excelentes. Foram muito úteis para todos nós.
GEORGES
- A idéia de Adrien é que a Comissão de
Autoridades tivesse compromisso com a
imparcialidade e o sigilo, visitando as oficinas
empenhadas na disputa e verificando seus
progressos, com vistas a aproveitá-los ao
interesse público, na paz ou na guerra. O
Governo e o Exército Francês estariam
dispostos a colaborar financeiramente nos
experimentos.
SD
- Não é má idéia, Sr Hébrard. Como escrevi
em meu livro, a função das aeronaves se
mostrará de fato nas guerras. Porém, eu não
as faço para esse fim. E ainda não me inscrevi
nestes prêmios e não estou certo se vou
disputá-los. Em julho ou agosto devo ter uma
posição mais concreta. Começo essa semana
uma bateria de testes em Bagatelle. Portanto,
não vejo motivos para ser incluído agora
entre as oficinas visitadas.
SD
- Sabem que o imóvel não pertence à mim,
mas ao Banco Nationalle de la Suisse?
ADRIEN (consultando novamente o relatório)
- Sim, aqui está. Mas isso é comum em Paris.
Bancos suíços prestam-se a fazer fachada
para bons clientes. E tem bons advogados e
são fiéis aos seus clientes. Nada conseguiram.
ADRIEN
- Senhor Santos, não me leve a mal; como
disse Georges, estou do seu lado. Mas devo
dizer-lhe que o nosso lado é o mais fraco.
Cedo ou tarde não teremos como impedilos de fazer o que desejam.
SD
- E o que o Sr aconselha, Sr Hébrard?
SD
- Por enquanto, Sr Hébrard, confio na posição
86
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
dos advogados do
Banco Nationalle.
Não
poderão
forçar-nos em nada.
Com ele inscrevome oficialmente na
disputa do Prêmio
do Aero Clube e na
Copa Archdeacon.
(novos aplausos)
ADRIEN
- Como queira, Sr
Santos, está no seu
UM
DOS
direito; e terá o
PRESENTES
nosso apoio; pelo
- E porque este
"Cavalheiros, este é o meu Nº 14 Bis."
menos enquanto for
número, 14 Bis?
o dono desse jornal. Mas, com a sua
permissão, vou repetir uma frase que SD
Lachambre, o mecânico, certa
- É porque eu o desenvolvi em
vez pronunciou: o Senhor é
paralelo com o meu dirigível
um cabeçudo!
Nº 14.
SEQUÊNCIA 49 (O 14 Bis)
"O 14 Bis é puxado por um burrico"
SEQUÊNCIA 50
Boulevard de La Seine,
(Legenda: Campo de Bagatelle,
Neully. No novo galpão
Paris, julho de 1906) Uma
trabalham freneticamente
híbrida estrutura, mista de
todos os homens de SD, na
dirigível e aeroplano (foto),
montagem do 14 Bis. SD dá
com o 14 Bis preso ao dirigível
ordens, inspeciona e orienta
Número 14, chama a atenção
em todos os detalhes. Enfim,
de um grande número de
à tardinha, com o sol se
curiosos. SD e sua equipe
pondo, ele sai do galpão,
fazem os testes no novo
ainda de portas fechadas, e
modelo.
encontra-se com um grupo de O Nº 14 sobrevoando a praia de
Deauville. Verão de 1905.
senhores encartolados que o
Outro teste mostra o 14 Bis
aguardava. SD cumprimenta os chefes do pendurado a fios presos em galhos de árvores
Aero Clube e dá ordens para abrir as portas altas de Bagatelle. O 14 Bis é puxado por
do galpão. Ao abri-las, os mecânicos fazem um burrico que Chapin guia pelo cabresto.
surgir, solenemente, o pronto e imponente (foto) SD, dentro da “nacelle” do 14 Bis, testa
o equilíbrio da aeronave.
14 Bis. Aplausos. SD pede a palavra.
Na oficina secreta, SD
testa, no seu “túnel de
vento”, os comandos
SD
- Cavalheiros, este é o
meu Número 14 Bis.
..."uma híbrida estrutura, mista de dirigível e aeroplano"...
87
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
laterais das asas do 14 Bis. Chapin está ao
seu lado.
Brasil. E Alberto gosta de valorizar datas e
símbolos, por isso nos fez vir aqui.
CHAPIN
- Como pretende chamá-los, senhor?
O 14 Bis rola no Campo de Bagatelle à vista
de todos; começa a correr com o motor à
toda e, por uma fração de segundo, chega a
sair do solo. SD decide não prosseguir com
os testes.
SD
- Batizei-os de “ailerons”, Chapin, e com eles
creio ter resolvido o problema do equilíbrio
lateral do aeroplano.
SD (para o Sr Archdeacon)
- Precisarei fazer modificações neste modelo,
Sr Diretor da Prova, em uma semana creio
que estarão prontas.
CHAPIN
- E como vai operá-los em vôo? Suas mãos
estarão ocupadas com as manetes do motor
e as alavancas de leme e profundidade...
ARCHDEACON
- Pode-se sentir que o empuxo do motor é
suficiente para alçar o aparelho, Sr Santos.
Aguardaremos os novos testes.
SD
- Tive a idéia de prender os cabos nos meus
ombros. Desenhei uma ombreira de couro
para receber a outra ponta dos cabos. Assim,
apenas com um movimento de corpo, posso
acioná-los.
(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 13 de
setembro de 1906) Nova prova. O 14 Bis sobe
a quase um metro de altura e fica no ar por
mais de um segundo.
SEQUÊNCIA 51
UM DOS MEMBROS DA COMISSÃO
- Não há dúvidas de que o aeroplano
suspendeu-se no ar pela força de sustentação
de suas próprias asas.
Teste de vôo no Campo de Bagatelle
(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 7 de
setembro de 1906) Alguns membros da
Comissão aguardam as provas. E mais
jornalistas, curiosos, etc.
OUTRO MEMBRO DA COMISSÃO
- Sim, mas não o suficiente para conquistar
um dos troféus.
UM REPÓRTER (para Georges)
- Georges, porque esse vôo logo hoje?
Estamos com um dia cheio...
Corte para Georges conversando com SD.
GEORGES
- Pareceu-me que havia condições para
realizar a prova menor. Por quê desistiu?
GEORGES
- Hoje é dia da
Independência do
"... por uma fração de segundo, chega a sair do solo..."
88
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
SD
- Georges, em aeronáutica a prudência
caminha lado a lado com o progresso. O
equilíbrio do 14 Bis não me convenceu. Dar
um passo além do que dei, seria um risco
excessivo e talvez fatal. Tenho de alterar o
projeto.
ARCHDEACON
- O Sr é testemunha disso, Cap. Ferber?
FERBER
- Possuo informações seguras e de boas
fontes.
ARCHDEACON
- O Sr faria a gentileza de nos informar quais
são essas fontes, Cap. Ferber?
GEORGES
- Voisin e Bleriot disseram ao "Le Temps"
que estão em fase final de testes do modelo
que fazem em conjunto.
FERBER
- Só posso dizer que são oficiais respeitáveis
das forças armadas daquele país, Sr
Archdeacon, mas devo mantê-las em sigilo.
SD
- São excelentes inventores. Por isso decidi
não arriscar. Se fico sem o meu aeroplano,
vão-se todas as minhas chances. Já marcaram
data?
GEORGES (intervindo)
- Minhas fontes posso revelar. Nosso agente
em Nova York esteve em Dayton, no sítio de
Kitty Hawk, onde disseram ter ocorrido esses
vôos, e por lá não se tem notícias deles, Cap.
Ferber, nem rumores foram verificados
naquele pequeno lugarejo.
GEORGES
- Ainda não, mas estão prestes a fazê-lo.
SEQUÊNCIA 52
FERBER
- As experiências estão sendo feitas
secretamente, Sr Georges, nem mesmo...
Reunião concorrida no AeroClube. Presentes
os aeronautas Voisin, Maurice e Henry
Farman, Bleriot, Esnault-Pelterie, Breguet,
Anzani, Jaques Fauré, Curtiss, Delagrange,
Cockbun, o tenente Krebs, o coronel Renard,
o capitão Ferber, Lachambre, Machuron,
Chapin e SD; os membros da Comissão Paul
Tissandier, René Garnier, Ernest Zens,
Surcowt e Besaçon: os dirigentes do
Aeroclube Ernst Archdeacon, Deutsch de La
Meurthe, Marques de Dion, Príncipe Aimé,
Príncipe Rolland Bonaparte e o Sr Fonvielle;
e os jornalistas Georges Goursat, do "Le
Temps", François Peyrey, do Herald, Maurice
Talmeyr do L’Illustration, dois jovens
repórteres do Figaro e do Petit Journal e
muitos fotógrafos. As discussões pegavam
fogo.
MAURICE TALMEYR (intervindo)
- Nem tão secretas assim, Cap. Ferber. Alguns
jornalecos americanos, sem qualquer
credibilidade ou importância, parecem ter
acesso a elas; pelo menos é o que dizem nas
suas páginas marrons. Mas a imprensa
respeitável dos próprios americanos não
publica uma só linha. Não acha estranho esse
critério de sigilo, Cap Ferber?
ARCHDEACON
- Cap. Ferber, acredita que concederemos um
prêmio destes para vôos dos quais só
conhecemos cabogramas anônimos? Nós
convidamos os Srs Wright a vir mostrar-nos
sua máquina e não recebemos resposta, Cap.
Ferber!
CAPITÃO FERBER
- Senhores, insisto que estes prêmios estão
ultrapassados. Os Srs Orville e Wilbur Wright
já bateram essas marcas nos Estados Unidos
da América, com o seu “Flyer”.
VOISIN
- E, falando em máquinas, eu gostaria de
saber que outros inventos esses senhores
deram ao conhecimento público. Ou será
89
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
que o seu “Flyer” já lhes caiu diretamente
dos céus? Pelo que sabemos, antes do “Flyer”,
eles consertavam bicicletas!...
FERBER
- Como já disse, Sr Voisin, tudo que fazem é
destinado à indústria e é feito secretamente.
e Voisin a honra de tentar primeiro.
BONAPARTE
- Da nossa parte não há inconvenientes.
VOISIN
- Está aceito, Sr Bonaparte; não declinaremos
da gentileza de um cavalheiro, uma vez que
nos antecipou. (e, para SD) - Muito
agradecido, Sr Santos.
ARCHDEACON
- O que fazemos aqui também é destinado
ao progresso industrial...
BONAPARTE
- Então está decidido; a prova será realizada
em Bagatelle, às dez horas do dia 23 de
outubro. E repetindo as regras: um prêmio
de 1 500 francos, oferecido pelo Aero Clube,
ao primeiro aeroplano que, levantando-se
por si só, fizer o percurso de 100 metros,
com desnivelamento máximo de 10%; e o
outro, de 3 000 francos, oferecido pelo Sr
Ernst Archdeacon, ao primeiro aeroplano
que, por si só, voar através de um percurso
de 25 metros, com um ângulo de queda
máximo de 25%. (bate o martelo)
BONAPARTE (intervindo, impaciente)
- Cap. Ferber, o Sr já insultou o suficiente a
nossa inteligência e mais ainda a nossa
paciência. Tenho informações sobre seu
interesse em vender essas abstrações ao
Governo Francês. Ora, Governos não
compram abstrações secretas! Temos de
prosseguir em nossa reunião; se os Srs Wright
postulam nossos prêmios, que façam por
merecê-los; e nas regras estabelecidas. E dou
por encerrado o assunto! Passo à pauta dessa
reunião: as provas de 23 de outubro.
(aplausos e gritos de muito bem! muito bem!)
O Cap. Ferber retira-se de cara amarrada.
SEQUÊNCIA 53
DEUTSCH
- Temos até o momento duas inscrições, Sr
Bonaparte, a dos Srs Voisin e Bleriot e a do
Sr Santos-Dumont.
Quase noite na véspera da prova. SD chega
de coche em sua residência, vindo pela Rua
de Berri.
Descrição cenográfica: a quadra onde situamse o apartamento de SD, sua oficina secreta
e o apartamento de Pedro Guimarães é uma
criação cenográfica ficcional, feita sobre a
respectiva quadra existente em Paris, como
mostra a planta desenhada ao lado.
BONAPARTE
- Faremos um sorteio para decidir quem
tentará primeiro.
SD
- Senhores, permitam-me ceder aos Srs Bleriot
Quase chegando na Av. Champs Elysées, SD
percebe uma movimentação de repórteres à
porta de seu edifício. Antes de ser visto
manda o coche estacionar, paga o cocheiro
e salta, entrando no edifício onde mora o
seu amigo Pedro Guimarães. Traz consigo
as chaves do apartamento e ia abrir a porta,
mas decide bater. Pedro atende.
PEDRO
- Alberto?! Seja bem-vindo!
Espaço destinado à planta da quadra em que residia
Santos-Dumont
90
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
SD
- Como vai, Pedro? Começo a por em prática
o nosso plano. Está saindo?
Izabel. Espero que agrade.
SD (sem parar, andando em direção à outra
porta)
- Confio em Você, François. Pegou também
a receita da ambrosia?
PEDRO
- Sim, por pouco não me pega aqui. Mas
pode ficar à vontade.
FRANÇOIS
- Sim, Senhor. Acho que ficou boa. Aceita
uma prova? (pega um pouco na compoteira
com uma colher e dá a SD)
SD
- Repórteres cercam minha casa. Não gosto
deles em vésperas de provas. Ficam como
urubus na carniça. Pode ir, ficarei aqui à
vontade, Pedro.
SD (provando a iguaria)
- Ótima, François! Que a galinha esteja à
altura! O cheirinho está bom! Vou trocar a
roupa e desço em 15 minutos.
PEDRO
- Não se preocupe. O porteiro já está avisado,
e é de confiança. Descanse tranqüilo. (e sai)
SEQUÊNCIA 55
SD pega o telefone e chama August.
Interior do luxuoso “Le Procope”, famoso
restaurante de Paris. Numa mesa de cabine
sentam-se Gordon Benett e Adrien Hébrard,
em trajes de gala. Após servido o champagne,
Benett pede ao garçom que aguarde ser
chamado e não os interrompa. Cerra o
cortinado e oferece um brinde. Os dois
brindam.
SD
- August, estou aqui no Pedro. Não recebo a
imprensa hoje. Dê-lhes uma desculpa
qualquer. E diga ao François que janto às
nove; quando ficar pronto, avise-me.
SEQUÊNCIA 54
BENETT
- Chamei-o aqui, Adrien, porque, além de
ser “o informadíssimo Hébrard”, agora somos
sócios e creio que posso tirar uma dúvida
que me inferniza há cinco anos...
É noite e SD atende o chamado de August.
Levanta-se do sofá e acende o abajur. Em
seguida sai do apartamento de Pedro pela
porta dos fundos que dá para um quintal.
Dali vai até um portão que dá acesso a uma
antiga servidão em desuso, no miolo do
quarteirão, somente utilizada por criados para
queimar lixo e por jardineiros para queimar
folhas no outono, como agora acontecia. Os
braseiros ainda fumegavam produzindo uma
bruma de fumaça branca pela qual passava
SD, desviando-se dos braseiros, até um outro
portão semelhante que dava para o quintal
de seu apartamento. François o esperava na
porta da cozinha.
ADRIEN
- No que puder ser útil...
BENETT
- Vou fazer como Você, indo direto ao
assunto: (e, de sopetão) - Quem mandou o
Senhor Santos-Dumont fazer aeronaves?
ADRIEN (surpreso)
- Ao que eu saiba, ninguém... ele, por si
mesmo...
SD (ao entrar)
- Morro de fome, François, acuda-me.
BENETT (interrompendo-o)
- Quanto aos primeiros balões eu até acredito
nessa historieta romântica, Adrien. Mas agora
a coisa foi longe demais. Não tente enganar-
FRANÇOIS
- Estou testando a receita da Sra Princesa
91
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
me; sei que Você e Georges mantêm um
arquivo secreto, guardado como uma espécie
de tesouro no jornal. Não sei o que contém,
e prefiro sabê-lo diretamente de Você, como
bons cavalheiros e sócios que somos agora.
Mas se quisesse teria outros meios... Confesso
que...
poderosas que conhecemos, Gordon.
Diabos, que interesse pode haver no primeiro
homem que voou numa máquina? Seja ele
africano, mulçumano ou até um inglês, como
aqui costumamos debochar...
BENETT
- Não se faça de ingênuo, Adrien. Há muito
interesse em jogo. O domínio dos ares será
o domínio da guerra; e o primeiro a conseguilo terá o mundo a seus pés.
ADRIEN (interrompendo-o)
- Gordon, o que acabou de acontecer foi
apenas uma discreta solenidade. Os papéis
só serão assinados amanhã. Há tempo de
voltar atrás. Não quero começar com uma
briga...
ADRIEN (irônico)
- Santos-Dumont dominando o mundo?! Até
que não seria má idéia...
BENETT (com o dedo em riste)
- Desfaça o negócio, Adrien, e comece a
redigir a petição de falência do "Le Temps".
Não me trate como um imbecil. Não pretendo
brigar; precisamos de Você na direção do
jornal, e sabe disso.
BENETT
- Não é hora para ironias, Adrien. Temos
motivos para suspeitar que Santos-Dumont
tem ligações com os comunistas exilados na
Suíça.
ADRIEN
- Não comece a falar grosso, Gordon, tenho
ainda o Banco da Indústria...
ADRIEN
- Isso só pode ser piada!...
BENETT
- Nas últimas greves na América tivemos
experiências surpreendentes, e não pense
que aqui as coisas se passam de modo
diferente. Homens bons, honestos, pais de
família cordiais e servis, pessoas
absolutamente insuspeitas, revelaram-se
líderes secretos de forte influência e carisma
sobre as massas operárias. Ainda não temos
indícios dessa ligação de Santos- Dumont.
Ela apenas surge como uma possibilidade
que pode explicar os seus sucessos.
GORDON (irônico)
- Que está sendo comprado por Rockfeller,
e Você também sabe disso!
ADRIEN (rendendo-se)
- O que o interessa tanto em Santos-Dumont?
BENETT
- Ainda pergunta? As nações mais poderosas,
as melhores cabeças e os melhores
profissionais do planeta estão entornando
rios de dinheiro para conseguir o vôo
mecânico, diabos, e até agora nada! E SantosDumont ganhando todas?! Sozinho?! Cá entre
nós, sabemos da farsa dos Wright; foi idéia
minha. Mas a cúpula do poder nos Estados
Unidos decidiu levá-la às últimas
conseqüências, a não ser que um fato novo
surja a nosso favor. E esse fato novo não é o
seu “petit Santos”.
ADRIEN (desdenhando)
- Eu não acredito em meus ouvidos! É mesmo
Gordon Benett do Herald que está me
dizendo tamanha asneira?!...
BENETT (sem perder a serenidade)
- Um tal Lenin anda agitado na Suíça. O
imperador Nicolau é um imbecil, mas
representa o trono secular da Rússia, e não
deixa de ser um fator de união do povo. O
Kaiser quer destruir a unidade russa e por
isso vai fortalecer Lenin. Nossos analistas
ADRIEN
- Não consigo enxergar essa ameaça a não
ser na xenofobia das cabeças coroadas e
92
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
prevêem a união de ambos, no caso de
guerra na Europa, para derrubar Nicolau. A
América também vai apoiar Lenin, e já
fazemos dele uma boa imagem por lá. Mas
ambos não confiamos nele. Os motivos para
apoiá-lo é que são diversos. O Kaiser quer
dominar a Rússia com o seu “punho de ferro”
e crê que será mais fácil no caos de Lenin.
Nós queremos a derrubada da monarquia e,
seja lá quem ficar no poder, terá de abrir o
mercado às nossas indústrias; hoje fechado
pela imbecilidade do Czar.
justamente tudo isso, e alguns pequenos
detalhes, que o tornam ainda mais suspeito.
ADRIEN
- Interessou-me o que Você chama “pequenos
detalhes”.
BENETT
- Coisas como distribuição de dinheiro para
operários, oficinas secretas, imóveis secretos,
arquivos secretos e, - quem sabe - armas
secretas? Jauré foi visto frequentando seus
hangares... Já lhe disse, muitos homens
absolutamente insuspeitos revelaram-se...
ADRIEN (ainda desdenhando)
- Muito bem... o Kaiser quer dominar a Rússia
que Napoleão não dominou, e a América
deseja comprá-la como está fazendo com a
França democrática. E é o nosso “petit Santos”
que paga...
ADRIEN (interrompendo-o sério)
- Sr Gordon Benett, peço-lhe que
continuemos amanhã no jornal. Como sabe,
minha esposa não passa bem e não sou de
descuidar os deveres de esposo e chefe de
família. Para encerrar essa cantilena devo
dizer que chegaremos com facilidade a um
acordo. Estou convicto de que tudo não
passa de paranóia generalizada, quase às
raias do delírio! Uma espécie de praga que
tem assolado inteligências de homens
poderosos, especialmente americanos, dados
às fantasias e às avaliações apressadas. Mas
não deve preocupar-se, nosso jornal vai bem
graças à mim e ao senhor, e melhor ficará
quando nos acertarmos. Pertenço a uma
estirpe de editores de mais de um século de
tradição, e sei que sou o ponto final dessa
legenda. O velho jornalismo desinteressado
e comprometido com a verdade e os fatos
está com dias contados. Mas ainda estou aqui
e na ativa. De sorte que o senhor haverá de
amenizar a sua arrogância, e eu não vou jogar
um grande passado nos riscos de uma defesa
ingênua daquilo que, como já disse, não dou
à mínima! Creio que assim estamos
entendidos. (levanta-se e estende a mão para
despedir-se)
BENETT
- Pare com bobagens, Adrien. As informações
nos colocam em alerta e essas duas
possibilidades podem dar com os burros
n’água. Os comunistas não são idiotas
desprezíveis. Devem ter algum trunfo e suas
estratégias têm sido admiradas pelos experts.
Há quem diga que o Kaiser faz o papel do
bobo nessa aliança. E não pretendemos
contracenar com ele. Segundo as últimas
análises, Lenin tem boas chances de
conseguir seus objetivos maquiavélicos,
principalmente se tiver para si o domínio dos
ares. Os comunistas têm demonstrado
inusitada autoconfiança em seus discursos.
E o dinheiro do Kaiser não lhes tem faltado;
sem falar em outros dinheiros de milionários
românticos, poetas e idealistas...
ADRIEN (sempre desdenhando)
- E será o aristocrata e inexpugnável apolítico,
o Sr Santos-Dumont, que dará aos comunistas
as chaves dos céus?!...
BENETT
- Peço-lhe, pela última vez, para me levar a
sério, Adrien. Sei que Santos-Dumont tem
dinheiro próprio, talento, intuição e ciência
para fazer o que faz. Sei que o seu
comportamento é insuspeito, etc. Mas é
BENETT (apertando-a com um sorriso cínico)
- Certamente que sim, Adrien, mas será
melhor pela manhã; porque à tarde parece
que teremos de ver o Sr Santos-Dumont voar,
não?
93
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
ADRIEN
- Como queira, aguardo-o pela manhã. E leve
consigo o Sr Lazare. Já podem tornar públicas
as suas relações, não?
GEORGES
- Não está com maus presságios, hein? Nunca
o vi assim em vésperas de grandes datas, o
que está havendo?
BENETT
- É boa idéia, Adrien, talvez precisemos do
Lazare. Prometo levá-lo.
SD
- Já disse, minha intuição. Nada quanto ao
vôo em si, mas preferiria deixar a abertura
da oficina para depois de conhecer a
repercussão do meu vôo na imprensa. O que
acha?
SEQUÊNCIA 56
GEORGES
- Não deixaria de ser um bom assunto para
épocas mais vazias... mas, Você... ora, como
prometi, nada publicarei sem sua
autorização... (pega duas laudas de texto e
joga-as no lixo) - Pronto, já se foram à cesta.
Dorme bem, Alberto, e descanse.
Alta madrugada. No gabinete de Georges no
"Le Temps" o relógio de parede indica 1:30
h. Georges está de mangas arregaçadas,
sentado à sua mesa, repleta de fotografias
de SD e uma pilha de laudas escritas ao lado
de sua máquina de escrever. Termina de
datilografar um parágrafo e passa a examinar
umas fotografias e desenhos quando o
telefone toca.
SD
- Até logo, Georges. Assim durmo mais
tranqüilo. Aguardo-o lá amanhã. (desliga)
GEORGES (atendendo)
- Alberto? Ainda acordado?... Sim, estou
fechando uma grande reportagem sobre
Você.
SEQUÊNCIA 57 (A Copa Archdeacon)
SD (deitado em sua cama)
- É sobre a idéia de abrir a oficina ao público,
Georges. Acho que devemos suprimi-la.
GEORGES
- Por que, Alberto? Está voltando atrás em
nossos planos?
(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 23 de
outubro de 1906) Grande movimentação de
público, veículos, fotógrafos, jornalistas,
vestidos e cartolas. Archdeacon, o Cap.
Ferber e os comissários do Aero Clube
cercam o 14 Bis. Um dos comissários olha o
seu relógio de pulso.
SD (sentando-se melhor na cama)
- Não é isso. É minha intuição; algo me diz...
O COMISSÁRIO
- São 14 horas,
"... e solta-se do chão como que por algum milagre..."
94
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
Sr Archdeacon. Nenhuma notícia dos Srs
Voisin e Bleriot.
de um café de Paris. Todos que passam
cumprimentam-nos ou apontam para SD.
Garotos pedem-lhe autógrafos em
caderninhos escolares.
Chega um jornalista.
O JORNALISTA
- Sr. Archdeacon, recebemos um telefonema
do Sr Bleriot; o aeroplano não ficou pronto
para a prova. Deixam aos senhores a decisão
de adiá-la ou não.
SD (passando um papelzinho a Georges)
- Recebi este cabograma do Pradô. Está
chateadíssimo na missão do Alaska. Disse
que agora se aposenta mesmo, nem espera
a compulsória. E toda vez que me passa uma
mensagem ele a encerra com a mesma frase:
“não dê créditos à farsa dos Wright. Sabemos
que é tudo balela. E o Governo Brasileiro é
um Governo de merda!”
ARCHDEACON
- E por que adiaríamos? Não sabem que há
outro concorrente? Que a prova comece.
SD entra na barquilha do 14 Bis. Chapin dá
a partida no motor e o 14 Bis começa a se
mover como uma pata-choca no gramado,
balançando e sacudindo suas asas e seu nariz
enorme. SD dá a manete à toda. O papagaio
celular gigante começa a ganhar velocidade
na direção do comprimento do Campo. Corre
uns cem metros e solta-se do chão como que
por algum milagre. Um automóvel
acompanha-o, ao lado, com 3 membros da
Comissão a observar o pássaro a cerca de
dois metros de altura, como que apoiado pela
exclamação da platéia. Em seguida, ele desce
um pouco desastradamente, quebrando uma
das rodas ao tocar o solo. Um membro da
comissão berra: - 60 metros!
GEORGES (devolvendo-lhe o cabograma)
- Saudades de Prado! Saudades... Comecei a
ter esse estranho sentimento após a
convivência com Vocês. Minha mana escreveme que também ela já o sente sempre mais
forte. E suas cartas já o trazem. Quero visitála e conhecer o Brasil, Alberto. Quando
iremos?
SD (passando a Georges uma pesada pasta
de couro)
- Assim que conseguirmos a conquista maior,
Georges. O Brasil é perfeito para uma
comemoração. Tem-se, porém, de ter
disposição e paciência. A Eloqüência tem
sido a mais trucidada das artes, naquelas
bandas. Mas a ternura do povo é inigualável.
UM SENHOR ELEGANTE DA PLATÉIA
(estendendo a mão para o companheiro ao
lado)
- O “Cannard” ganhou a Copa Archdeacon,
mas não levou o Prêmio do Aero Clube.
Ganhei metade da aposta.
GEORGES (apanhando a pasta)
- E que tal está ficando a reportagem, gostou?
SD
- Confirma uma velha certeza minha,
Georges. Você escreve tão bem quanto
desenha. Quanto à mim, sabe que me acanho
diante de elogios. Mas está ótima; é uma
qualidade dos franceses: o domínio da arte
de escrever! A documentação fotográfica
também é primorosa. Por sinal, tenho uma
nova: comprei um aparelho de projeção ao
Sr Lumière e todos os filmes que fizeram dos
meus vôos. Amanhã estará instalado na
minha oficina. Não quer vir estreá-lo?
UM OUTRO SENHOR ELEGANTE (contando
o dinheiro e entregando-o a contragosto)
- O “Cannard” não voou; ele apenas saltou!
O PRIMEIRO
- O choro é livre!
SEQUÊNCIA 58
SD e Georges tomam um drink na calçada
95
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SEQUÊNCIA 59
(O cinematógrafo da Oficina secreta)
CHAPIN
- Lá estamos nós!
Fim de expediente na oficina secreta. Novos
modelos surgem no cenário. Georges observa
atentamente o arrojo dos novos projetos, com
entusiasmo. SD, sujo de graxa, com roupas
de mecânico, ciceroneia-o.
SD
- Aí está, vai começar a mover-se. Reparem;
repare as asas, Chapin! Se eu tivesse dado
mais crédito aos meus ailerons poderia voar
bem mais longe. Veja a asa esquerda caindo,
não tive como equilibrá-la. O jeito foi voltar
ao chão. (o vôo acaba e o filme mostra
pessoas em volta do 14 Bis quebrado) Dazon, repita a projeção. (e, para Chapin) Percebeu, Chapin, a função dos ailerons?
Aquela história do Farman de que eles
poderiam causar o desequilíbrio lateral não
procede. Será que nunca aprendo a confiar
em mim mesmo!?
GEORGES (frente ao “túnel de vento”,
olhando uma miniatura ali suspensa)
- Parece uma libélula, Alberto. E como é bela!
Você, enfim, começou a copiar a natureza?
SD
- A natureza nunca foi boa mestra para a
mecânica. Por ela teríamos trens com pernas
de ferro e navios com barbatanas nos cascos.
Mas sempre nos ensina algo. Se a observamos
percebemos que quase tudo o que voa tem
asas à frente e uma cauda, maior ou menor,
para trás. Após voar o 14 Bis, senti
necessidade de copiá-la. Mas esse projeto não
competirá nesse prêmio. Temos de ganhá-lo
no 14 Bis, com suas limitações. Vamos vê-lo
agora nos filmes do Sr Lumière. Penso que
poderão nos ajudar. (e, gritando) - Gasteau,
abaixe a tela!
DAZON (gritando, da cabine)
- Pode soltar?
SD
- Pode. (o filme recomeça) - Vejam, reparem
bem! Faltaram os ailerons, Chapin, amanhã
quero-os instalados em Neully. A prova será
em 12 de novembro. E Voisin e Bleriot dessa
vez lá estarão.
GEORGES
- E Você continua dando a vez a eles?
Enrolada acima do pé-direito da oficina, uma
enorme tela branca, quase quadrada,
começou a descer perto das portas de correr.
Ao fundo, sobre a casinhola das máquinas
de aeração, uma outra, de madeira, foi
construída criando uma cabine no segundo
andar para abrigar o projetor. Dazon estava
lá, após subir a escadinha de grampos de
ferro chumbados à parede.
SD (sem tirar os olhos da tela)
- Sim, Georges. Ah, vejam! Repare, Chapin...
viu?.... a asa esquerda... e agora o tombo...
diabos! Está bem, Dazon, por hoje chega.
Todos dispensados. Amanhã todos em
Neully, e até o dia 12. Não importa se Bleriot
e Voisin voam antes; o certo é que vou voar!
SD
- Dazon, pode começar! Gasteau, apague as
luzes!
SEQUÊNCIA 60 (A via de Santos-Dumont)
François serve um fino quitute para SD e
Georges na bancada da cozinha.
Todos ficaram olhando para a grande tela
branca quando Gasteau desligou as luzes.
Surge, na tela, o 14 Bis em vários
ângulos, com pessoas agitando-se
à sua volta. SD e Chapin inspecionavam
o motor.
FRANÇOIS
- Permita-me a indiscrição, Senhor. Mas
podemos assistir aos filmes na próxima
vez? Chapin e Dazon, antes de sair...
96
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
SD
- Claro, François, como não pensei nisso?
Desculpem-me todos, diabos, só penso nessa
prova! Prometo-lhes que, na próxima vez,
todos assistiremos juntos.
íntimos de Adrien!? E ele nada diz.
SD
- Também estranhei a imprensa após o 23
de outubro. Lembra-se que tive uma intuição
sobre isso? O próprio "Le Temps" tem me
saído acanhado, comedido...
FRANÇOIS
- Obrigado, Senhor. Pierre e eu temos tentado
vê-los no cinematógrafo mas nunca
conseguimos entrar nas sessões que exibem
os filmes do Senhor. São muito comentadas.
Paris inteira tem a sensação de conhecê-lo
pessoalmente. Não é como antes, que as
pessoas conheciam-no mais pelo nome.
Somos orgulhosos em servi-lo, senhor.
GEORGES
- Um pouco disso pode ser estratégia do
Adrien. Ele odeia imprensa ufanista, mais
ainda quando percebe que algo grandioso
está para acontecer. Nisso se parece com
Você, Alberto. Ele chama “sexto sentido” e
Você “intuição”, mas às vezes eu digo que
tudo não passa de genuína superstição.
Lembra-se que eu lhe avisei para não incluir
a medalhinha de São Benedito em seu livro?
Cientistas detestam essas crendices. Eu estava
certo, concorda?
SD
- Obrigado, François. Há um provérbio chinês
que diz: “uma imagem vale mais do que mil
palavras.” O que dizer então de milhares de
imagens que reproduzem, não somente a
realidade, como também, o movimento?! O
cinematógrafo transformará o mundo, meu
bom François! Como, também, a aeronáutica!
E o cinema e o aeroplano serão os veículos
do futuro!
Acabam de comer, levantam-se, e vão para
o salão.
SD (caminhando ao lado de Georges em
direção ao salão)
- Sim, considero o meu livro o meu maior
fracasso. Seria o momento de crer mais nos
outros do que em mim mesmo. Errei em não
ouvi-lo, Georges.
GEORGES
- Sem contar as infinitas possibilidades
estéticas e ficcionais que essa nova linguagem
abre ao imaginário! (e, preocupado,
mudando o assunto) - Como andam as
pressões para inspecionar a oficina?
GEORGES
- Bah! Homens de gênio não erram! Seus erros
são volitivos e são portais de novas
descobertas.
SD
- Arrefeceram. Os advogados diziam-me que
nossas chances estavam cada vez menores.
Porém, hoje telefonaram-me para dizer que
não me preocupasse por enquanto. É uma
situação desagradável, Georges, mas Você é
testemunha de que não fui eu que a comecei.
SD
- A modéstia não me permitiria aceitar tal
argumento, Georges. Mas a verdade é que
não me preocupam mais as opiniões de
cientistas. Aprendi que, para conquistar
minhas metas, devo crer em mim, antes de
tudo. Somente minha intuição poderá levarme aos meus objetivos
GEORGES
- Tenho estranhado o comportamento da
imprensa. Todos sabem dessa história mas
ninguém publica uma linha. Até Adrien está
esquisito... Aliás, todo o jornal! Muitos
fuxicos; Benett à vontade, com o palerma
do Lazare na coleira como se fosse
cachorrinho... Comportam-se como se fossem
GEORGES
- Mas isso é válido para todos nós, não acha?
Chegam ao salão e sentam-se. Georges
começa a acender um charuto.
97
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SD
- O fato é que o homem pioneiro está sempre
no “Limite”; numa via que faz fronteira entre
o mundo conhecido, material, sensível,
visível; e o desconhecido, imaterial, invisível.
SD (interrompendo-o)
- Ao menos respeito deveria haver, Georges.
Quem, como eu, viveu a experiência de
desafiar poderosas forças da natureza como
a da gravidade, dos ventos e das tempestades
aéreas, não pode raciocinar de maneira tão
simplista e cartesiana. Houve momentos em
que, voando em meus dirigíveis, pensei:
estou só aqui! Sou o único ser humano em
todo o planeta a desafiar um tabu tão antigo
quanto a própria civilização! E quem sou eu
para isso?!
GEORGES (ainda tentando acender o
charuto)
- Sobre o que está falando, Alberto?
SD
- Penso que a Ciência do Século XX começa
a caminhar para um equívoco, Georges. Ao
buscar evitar o preconceito, acaba por
originar um outro ainda maior. Arte e Ciência
sempre caminharam juntas ao longo da
História. No entanto a Ciência que hoje se
pratica começa a fomentar um desprezo pela
Arte, pelas coisas da magia, da superstição,
do incognoscível.
GEORGES
- Você disse tabu... é um fenômeno ligado à
magia; e a Ciência não o reconhece...
SD (outra vez interrompendo-o)
- Certa vez, em Mônaco, deixei-me ser
rebocado pelo iate do Príncipe Dino. A
aeronave descera muito perto d’água e
faziam-na baixar ainda mais, puxando-a pelo
cabo a tal ponto que fiquei a poucos pés da
chaminé da chalupa. Ora, essa chaminé
expelia fagulhas vivas! Uma só bastaria para
produzir uma queimadela no balão, inflamar
o hidrogênio e reduzir-nos a pó. Do navio
não entenderam minhas advertências e
protestos. Vi as fagulhas passando ao meu
lado e preparei-me para o pior. E não foi a
Ciência que salvou-nos da catástrofe,
Georges. Mas eu já usava a medalha de São
Benedito...
GEORGES (finalmente na primeira baforada)
- Entendo onde quer chegar...
SD
- Não que eu seja um adepto da Arte e da
Magia, ou um místico. Não sou; meu trabalho
é realizado nos domínios da Ciência. Mas
não desprezo o desconhecido. É um universo
muito maior e mais misterioso, portanto, mais
poderoso. Prefiro não bulir com ele; muito
menos afrontá-lo.
GEORGES
- E?...
GEORGES
- Já é famosa em Paris essa sua sorte
impressionante, Alberto. Todos comentamna.
SD
- Daí minha posição, muito questionada pela
Ciência e seus novos adeptos, com relação
aos ícones, símbolos, datas, e signos do
sobrenatural, da numerologia e da magia,
pelos quais não escondo o meu respeito,
inclusive no que toca a questão das patentes.
Em tudo isso entra, também, a medalha de
São Benedito.
SD
- Sorte?! Tabu?! O que a Ciência pode saber
delas? Ora, se são parte do desconhecido,
respeitemo-las. Não se brinca com tais coisas.
Muito menos quando se é um nauta.
GEORGES
- Nisso temos de dar-lhe razão, Alberto.
Vimos o que aconteceu ao seu conterrâneo,
o Sr Augusto Severo...
GEORGES
- Ora, Alberto, esperar que a Ciência, no
estágio em que se encontra, veja com bons
olhos a superstição...
98
PARTE 2
SD
- Lembra-se que eu
tentei avisá-lo? Não
me recebeu! Ia dizerlhe, em particular,
claro, que seu
dirigível era bom mas
a arrogância é
p é s s i m a
companheira de vôo.
Sou o único que o
sei por experiência.
Também
fui
arrogante no início,
e paguei caro. Por
esse topete pseudo
científico afrontei um
13 de julho e um 8
de agosto. E aprendi
que o desconhecido
costuma dar aos
nautas apenas dois
avisos. Não pude
advertir Augusto de
público porque seria
ridicularizado pela
arrogância
da
Ciência, que ele
insistiu em levar
como passageira.
SANTOS DUMONT/O FILME
- O que significa?
Traduza...
SD
- Em português,
como em francês, a
expressão “é preciso”
tem
o
duplo
significado de “ser
exato”
e
“ser
necessário”, duas
funções fundamentais
à vida do navegante
que se arrisca na via
limítrofe entre o
conhecido e o
desconhecido.
Traduzindo, Georges,
navegar é ser exato
tanto quanto ser
necessário; e quanto
ao viver, não é
necessariamente que
se seja exato e nem
exatamente que se
seja
necessário,
entendeu?
A tragédia de Augusto Severo em Paris, 18 de maio de 1902.
Acima, o "Pax", seu dirigível que explodiu a 400 m de altura;
a queda em chamas; e o local onde cairam os destroços.
GEORGES
Estou
acompanhando, Alberto. É genial! Prossiga...
GEORGES (em off, sobre o flash-back do
desastre de Augusto Severo)
- Foi uma tragédia! Paris jamais esquecerá
aquela bola de fogo despencando de 400
metros de altura...
SD
- Ora, a arrogância da Ciência, ou pseudociência, precisa ser questionada, tanto
filosófica quanto eticamente. Com a
pretensão de abranger todo o campo do
conhecimento e o desprezo pelo
desconhecido ou por tudo que não é lógico
ou racional, a Ciência torna-se Ignorância e
pode levar a Humanidade às catástrofes
jamais testemunhadas em outras épocas.
SD
- A navegação, Georges, é tanto uma Arte
como uma Ciência. Como a Arte ela
contempla todo o incognoscível, isto é, o
desconhecido, a magia, o sobrenatural;
enquanto que, como Ciência, contempla
apenas o insignificante mundo do
conhecimento. Um poeta tão grande quanto
Camões escreveu em língua portuguesa (diz
em português): “Navegar é preciso; viver
não é preciso”.
GEORGES
- Você crê então que o aeroplano poderá vir
a ser um mal para a Humanidade?
SD
- Se será mal ou bom, não sabemos, Georges.
O fato é que ele está próximo e virá para
GEORGES
99
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
ficar; e vai transformar o mundo exterior dos
homens. Porém, a opção pela Ciência
presunçosa e arrogante é mais previsível
porque ela traz mais lucros, através das
patentes, apesar do número de vítimas que
causa. E a Humanidade não terá meios de
fazer os julgamentos porque a informação
que receberá também estará no poder dos
proprietários dessas patentes, como já
podemos perceber.
hangar de Neully. Chapin e Gasteau instalam
os ailerons no 14 Bis. SD parece estar em
todos os lugares ao mesmo tempo.
Supervisiona Chapin e Gasteau, observa
Dazon instalando ferragens e manetes,
discute com Levavasseur a regulagem do
motor, enquanto experimenta a ombreira
com um costureiro afetado, agulha e linha
na boca, tentando fazer SD ficar quieto para
poder dar o ponto, etc.
GEORGES
- Refere-se aos grandes jornais europeus e
americanos?... Mas, quanto às patentes?
Nunca tivemos uma boa explicação sobre
essa sua polêmica posição...
Corte para Georges em seu gabinete, dia e
noite, a teclar a máquina, a fuçar seus
arquivos, a remexer fotografias, a desenhar,
a falar ao telefone.
Em seu gabinete, Adrien, com Benett e
Lazare, discutem com semblantes carregados.
SD
- Penso que o equilíbrio necessário ao campo
do conhecimento coexista com o equilíbrio
que intuo haver também no campo do
desconhecido. Foi dele que vim ao mundo
com a vida, os recursos e os meios para ser
o que sou. E para lá voltarei. Não desafiarei
meu destino na pretensão de mudá-lo ou
controlá-lo. Patentes, por exemplo,
significariam poder e dinheiro; dois estorvos
ao delicado equilíbrio de que preciso para
realizar minha obra. É a minha via; não devo
perder-me nela.
No automóvel Clube reuniões tensas entre
Archdeacon e outros dirigentes, com o
Coronel Renard, Cap. Ferber e outros
militares. Os membros do Aero Clube
balançam a cabeça negativamente resistindo
às pressões.
SEQUÊNCIA 62 (A Glória)
(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 12 de
novembro de 1906) Uma conversa na
multidão.
GEORGES
- Sim, a sua obra... é o que todos desejamos,
sinceramente, que realize, Alberto. Já
expressei em diversas ocasiões as minhas
dúvidas sobre esse seu comportamento
esquisito. Creio que agora começo a ter
elementos para tentar decifrá-lo.
UMA MULHER
- Porque não fazem mais as narrações pelo
alto-falante?
UM HOMEM
- Os franceses não estão bem cotados e o
vôo é baixo. Não dá para ver de todos os
lugares.
SD
- Desde já Você passa a ter liberdade para
escrever o que quiser a meu respeito. Não
preciso opinar. Erro sempre quando se trata
de mim, e muitas vezes contra mim mesmo.
É uma honra tê-lo como biógrafo.
SD cercado por uma multidão de repórteres
cede publicamente a vez a Voisin e Bleriot,
pois tinha recuperado o direito de ser o
primeiro.
SEQUÊNCIA 61 (A Véspera)
Mecânicos e ajudantes giram em torno de
suas máquinas, enquanto gendarmes
providenciavam o afastamento dos curiosos.
Movimentação de véspera de prova no
100
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
E,
ato
contínuo,
beijou
voluptuosamente a boca estarrecida
do inventor que, por cavalheirismo,
não esboçou qualquer reação,
apenas aceitando aquele beijo que
ia até as raias da obscenidade para
a época.
"... o piloto tentou novamente a viragem..."
Máquinas de filmar e fotografar por todos os
lados. Chega a hora. Archdeacon, olhando
seu relógio de pulso, autoriza o primeiro
concorrente. Voisin, dentro do seu aeroplano,
ouve conselhos de Bleriot ao seu ouvido.
Ele manda girar a hélice, ao que o mecânico
imediatamente obedece. O motor ronca.
Expectativa geral. Francesada em claque
pronta para aplaudir a vitória. Ao lado, o
automóvel da Comissão também está pronto.
Archdeacon dá o sinal. Voisin aciona a
manete. Motor à toda. O aeroplano começa
a se mexer, anda alguns metros e embica no
chão como se fosse para voar no subterrâneo
e não na atmosfera. A hélice parte-se em
pedaços, o motor desloca-se do berço e pára.
Decepção geral. Voisin sai do aeroplano
praguejando com os mecânicos e o
automóvel dos Comissários dá marcha-à-ré
porque, no ímpeto, aceleraram mais do que
o necessário.
Archdeacon autoriza SD. Ele prepara-se para
entrar na nacelle. Os gendarmes afastam as
pessoas. De repente, Aida D’Acosta, a audaz
bailarina, destaca-se da multidão, dribla um
gendarme com um gracioso movimento do
seu lindo corpo, jogando o policial
desajeitadamente ao chão com as pernas para
o ar, e aproxima-se de SD, que a reconhece
e faz uma mesura para recebê-la, sem deixar
de demonstrar a urgência da situação. A
bailarina corresponde ao sorriso e chega-se
até ele.
AIDA
- Vim trazer-lhe a energia que o seu motor
não poderá dar-lhe, Sr Santos-Dumont.
Tudo aconteceu em segundos. O
policial ainda se levantava do seu
tombo. Os fotógrafos e cinegrafistas
presentes nem tiveram tempo de
disparar suas máquinas, apesar de prontos
para isso, mesmo porque a surpresa foi geral
e atingiu também a eles, que são treinados
para trabalhar justamente nos momentos de
grandes emoções.
Aida soltou SD com o mesmo sorriso com
que o encontrou e agradeceu ao público que,
mais uma vez, a aplaudia. Archdeacon, meio
aturdido, repetiu a ordem. SD, como se
estivesse numa outra galáxia, tardou a recebêla em seus reflexos. Assim que voltou a si,
pulou para a barquilha e pôs seus mecânicos
a trabalhar. A multidão afastou-se; motor
roncando, o aeroplano mexe-se,
posicionando-se para a decolagem. Idem
para o automóvel dos Comissários. Volta a
expectativa. Detalhes de hélice, motor,
manetes, cabos e mecanismos. Serenamente,
com o olhar impassível, SD aciona a manete
à força total. O 14 Bis corre, alça-se a uns 40
centímetros do solo e pousa suavemente à
frente. O Comissário berra: - 40 metros.
Aplausos burocráticos e manutenção do
suspense, enquanto o aeroplano retorna
vagarosamente à posição original.
Nova tentativa. Dessa vez o aeroplano deixa
para trás o automóvel e executa dois vôos,
na mesma altura do anterior, o primeiro de
40 metros e o segundo de 60 metros, com
um toque no solo entre ambos. Ao final do
segundo vôo, o piloto fez um teste de
viragem em pleno ar, suspendendo-o devido
à proximidade das árvores. Novo retorno e
aumento da expectativa. Silêncio geral.
101
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
no ar vindo, em pleno vôo, na direção da
multidão que se assusta e se atropela. O
piloto percebe a situação e aumenta a
inclinação do nariz do 14 Bis e sobe a 6
metros de altura, passando por cima da
perplexa multidão assustada. Mas a
velocidade de repente diminui como também
diminui o ronco do motor. Rostos aflitos
olham o pássaro aéreo com uma interrogação
nas faces. O aparelho esboça uma curva para
a direita e SD, com todo o seu sangue frio,
corta o motor e pousa quase perfeitamente,
apenas com um pequeno roçar da asa direita
no gramado, sem quaisquer conseqüências.
O Comissário berra: - mais de 200 metros! A
platéia sacudiu-se em aplausos e vivas com
chapéus, até de senhoritas, voando junto à
bengalas, casacos e outras peças que podiam
ser atiradas ao ar. Jaques Fauré foi o primeiro
a chegar até SD e tirou-lhe da barquilha
colocando-o sobre seus ombros, carregandoo em meio à multidão até à sorridente Aida
que o aguardava. Agora era a vez de SD,
todos esperavam, mas ele apenas a abraçou
com ternura e beijou-lhe paternalmente a
testa, sob o espocar de dezenas de fotógrafos:
- era a Glória!
Terceira tentativa. Outros dois vôos com um
toque no solo; o primeiro de 50 metros e o
segundo de 82 metros, segundo os berros
do Comissário. Neste vôo o piloto tentou
novamente a viragem mas susteve-a pela
proximidade do campo de pólo, quando
quase completava a meia volta. Aplausos
para a anunciada quebra do recorde anterior.
O aparelho porém não retornou à posição
original. O piloto decidira fazer o vôo em
sentido contrário e fora autorizado pela
Comissão.
CAP. FERBER
- Ele vai tentar voar contra o vento? É um
maluco! E também, um ignorante; está
desprezando a única ajuda que a Natureza
dá aos homens para voar. E ainda a desafia...
BONAPARTE
- Quando se trata do Sr Santos-Dumont, Cap.
Ferber, é melhor pensar duas vezes antes de
arrotar verdades. Aprendi por experiência e
testemunho pessoal que, diante de homens
como ele, tremem as verdades mais absolutas
e amedrontam-se os mestres mais arrogantes.
Vi verdades irrefutáveis tornarem-se asneiras
consagradas por causa de uma única e
pequena ação de ousadia desse homem, Cap.
Ferber. Se Santos-Dumont decidiu desafiar a
força dos ventos, que se cuidem os ventos!...
SD
- Aida D’Acosta, A Senhorita é, para mim, a
própria personificação da Glória!
Um Comissário observa seu relógio de pulso:
16:25 h. O dia já ia ao fim. Ouviu-se então o
ronco do motor
e logo o
aparelho
estava
SEQUÊNCIA 63
Festa de arromba nos salões do Automóvel
Clube. Todas as personagens do filme que
estão em França presentes. Aida D’Acosta dá
o seu show de dança à frente de uma banda
cubana. SD entra no salão lotado
debaixo de
"... passando por cima da perplexa multidão assustada..."
102
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
"...carregando-o em meio à
multidão até à sorridente
Aida que o aguardava.
Agora era a vez de SD, todos
esperavam, mas ele apenas
a abraçou com ternura e
beijou-lhe paternalmente a
testa, sob o espocar de
dezenas de fotógrafos: - era
a Glória!"
(Desenho
de
Elyseu
Visconti)
uma chuva de confetes e
serpentinas, sob aplausos
gerais. A banda ataca os
ritmos brasileiros. Georges,
já totalmente bêbado,
aproxima-se dele.
GEORGES (com voz de
bêbado,
pegajoso
e
abraçado a SD)
- Está tudo no prelo, Alberto!
No prelo! Amanhã só vai dar
Você nos noticiários, e a
nossa reportagem será a
melhor de todas!
SD é sequestrado pela multidão eufórica e
Georges fica só, trocando as pernas na porta
do salão. Resolve então sair e vai até uma
cupê estacionada na porta do Clube, entra
nela e berra ao cocheiro.
GEORGES (berrando)
- Vamos pro "Le Temps"!
SEQUÊNCIA 64 (Desatino)
Porta do "Le Temps". A cupê estaciona e
Georges desce dando ao cocheiro tudo o
que tem no bolso, sem conferir, e vai
cantarolando feliz em direção à porta da
gráfica. Entra na oficina gráfica em meio à
zoeira da rotativa à toda velocidade, passa
cambaleando pelos
oficiais em serviço,
trombando nas mesas,
arrastando cadeiras e
apoiando-se aqui e ali, até chegar na boca
da máquina. Ali reclina-se diante de uma
pilha de jornais prontos, pega um, senta-se
na cadeira do chefe da gráfica e abre o jornal.
A câmera mostra o jornal aberto na página
em que noticia o feito de SD com uma
matéria modesta e sem expressividade. No
lugar da sua reportagem havia uma grande
“matéria de geladeira”, assinada pelo Coronel
Renard, sobre os progressos da aeronáutica
num sentido geral, sem que citasse SantosDumont.
De repente, após folhear todo o jornal várias
vezes, Georges parece ter-se curado do porre,
ganhando uma nova e desmedida energia
vital. Parte o jornal em vários pedaços, na
frente dos operários, amassa os pedaços
formando uma bola e atira-o na máquina.
Depois levanta a cadeira do chefe e faz o
103
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
mesmo, espatifando-a no meio das
engrenagens. Os oficiais imediatamente
paralisam a impressão e tentam contê-lo. Mas
ninguém podia segurá-lo; ele vira mesas,
empastela cavaletes de tipos, ramas prontas
e quebra tudo o que vê pela frente, até o
esgotamento total de suas forças. A essa altura
todos haviam desistido de segurá-lo e apenas
assistiam ao tumulto, de braços cruzados ou
protegendo-se das trajetórias perigosas de
alguns tipos de chumbo atirados com ódio
para qualquer lado pelo furioso jornalista.
Ninguém se movia. Um silêncio toma conta
do ambiente. Dois guardas chegam tardios e
só podem ficar olhando, sem saber o que
havia acontecido. Um gráfico chega-se a uma
das gavetas mal derrubadas por Georges e
acaba de virá-la ao chão e cruza os braços
em sinal de solidariedade a Georges. Outros
oficiais e operários o imitam, cada um
derrubando ou quebrando simbolicamente
um traste qualquer para em seguida cruzar
os braços e ficar onde estavam. Os guardas
nada puderam fazer. Nos rostos de todos a
mesma revolta que Georges estampava no
seu desde que abrira o jornal.
jornalista e editor, capaz de farejar uma
notícia com cinco anos de antecedência e
nela investir sem hesitação! E agora Você
mesmo a corta sem piedade, quando, como
Você diz, chegara a hora certa?! O que pensa
que sou? Uma máquina de escrever?
ADRIEN
- Nunca podia imaginar que viria ao jornal
após a festa. Meu plano seria acordá-lo hoje
cedo e lhe falar antes que visse o jornal. Mas,
na madrugada tocou o meu telefone com a
notícia desse desatino... que se há de fazer?
GEORGES
- Ao menos dizer-me o que se passa...
ADRIEN
- Na França de hoje, Georges, mais
importante do que a subida de um aeroplano
é a subida de uma moeda. E o dólar
americano...
GEORGES (pulando da poltrona, com o dedo
em riste para Adrien)
- Você vendeu o jornal àquele pulha do
Benett, não é? E, talvez, tenha se vendido
com ele...
SEQUÊNCIA 65
ADRIEN (abaixando o dedo nervoso de
Georges)
- Acalme-se, Georges...
Dia seguinte, no gabinete de Adrien. Georges
é uma espécie de ser em bagaços,
desconjuntado numa das poltronas.
GEORGES
- Você é um vendilhão! Um...
ADRIEN (falando com irritação)
- Decidimos passar uma borracha no que
houve ontem, Georges, e em consideração a
Você, saiba disso! Essa sua indisciplina infantil
e alcoólatra custou-nos quase 20 mil francos
de prejuízos. E por pouco não perdemos a
rotativa...
ADRIEN (interrompendo-o ríspido)
- E o que Você quer? Que eu me arruíne na
falência e passe a mendigar em Paris,
esperando as esmolas do seu amigo, quando
ganhar os seus prêmios? O que acha que é
esse jornal? São milhões de francos
empatados; mais de um século de dedicação
e suor! E não devo satisfações a ninguém!
GEORGES
- Mas, quem Você pensa que sou, Adrien?
Foram cinco anos de trabalhos! No último
mês varei madrugadas apurando o texto,
caprichando nas imagens e na qualidade
geral do trabalho!... E que começava
justamente por citar Você, com a sua visão
genial, a sua admirável experiência como
GEORGES
- Mas, Adrien...
ADRIEN
- Sim, vendi parte do jornal. Não pense que
104
PARTE 2
adorei fazê-lo. Nem que tenha sido fácil para
mim, Georges. Mas estou velho para
emburrar com os tempos; e não pretendo
arruinar-me em prol de uma verdade de
merda, qualquer que seja ela, muito menos
a do bom-mocismo idealista de sportmans
bon-vivants...
GEORGES
- Cuidado, Adrien, olhe o que está dizendo...
ADRIEN
- Exatamente o que ouviu, Georges. O nosso
amigo “petit Santos” não se preocupa com
dinheiro, nem com patentes, etc; claro, não
precisa, é um criador, está a serviço das
divindades etc, etc. E quanto à nós? Vivemos
de quê? Se o nosso amigo tivesse nas mãos
o poder que suas patentes lhe dariam, talvez
pudesse comprar esse jornal inteiro. Mas não,
ele prefere doá-las à humanidade! Que a
humanidade então o reconheça; porque o
"Le Temps" tem seus compromissos e eu os
meus! Não sou mais o único dono desse
jornal, Georges, ponha isso na sua cabeça.
A nossa hora certa chegou no momento
errado! E que o Sr Santos-Dumont seja feliz
com seus aeroplanos... Aliás, quem o
mandou fazer aeroplanos?
GEORGES (acalmando-se)
- Certo, Adrien, tem seus motivos; mas não
precisa atacar Alberto. É um direito, uma
opção dele e de qualquer ser humano, a de
não se meter nessa espoliação desatinada,
de empresários desvairados, que se crêem
donos do mundo e passam a vida a estocar
ouro em porões suíços. A opção de dar à
vida uma construção bela, humanista e
criativa não pode ser simplificada numa
rotulação banal de idealismo ou ingenuidade.
Queiram ou não nossos míseros pasquins,
coube a Alberto a glória de ser o primeiro
homem a fazer o vôo mecânico, ache Você
importante ou não! E esse juizo cabe à
História, que não pode existir senão dando
ganho de causa à verdade e condenando o
embuste.
ADRIEN
SANTOS DUMONT/O FILME
- Santos-Dumont tem contra si o fato de
possuir justamente aquilo que os seres
humanos mais almejam para suas vidas:
independência e liberdade. Além disso, é
desprendido em relação a dinheiro, e não
pretende recompensas pelos seus feitos. As
pessoas levam isso a mal. Os que pretendem,
porque o desinteresse atrai certa sorte que
não saberiam admitir despida de
maquinações; os que recompensam porque
os não solicitamos. E, para piorar o quadro,
é um brasileiro! E onde estão os brasileiros?!
GEORGES
- Os brasileiros?...
ADRIEN
- Pelo que posso presumir, o Brasil é um
paraíso tropical habitado por um povo gentil,
mas dominado por uma elite grosseira e
estúpida. Esta só faz aguardar, engordando
em suas redes de siesta, os nossos navios
que vão buscar-lhes o café, plantado e
colhido pelo povo escravizado. Lá chegado
o dinheiro, embarcam com ele para cá, - às
vezes no mesmo navio que traz o café -, a
gastá-lo nas farras sórdidas dos Moulin
Rouges e Cassinos Royales da vida, enquanto
seu povo chafurda na miséria e na ignomínia.
Desde que transferiram Prado - e que
transferência infeliz e idiota! - não se vê um
único patrício de Santos-Dumont presente
às suas façanhas que têm repercutido no
mundo inteiro! A embaixada brasileira não
mexe um dedo, não faz a menor exigência,
e nem sequer pedido ou insinuação em seu
favor. Enquanto isso, a embaixada americana
joga pesado, com todos os seus trunfos e
todo o seu poder, para garantir-lhes a
sobrevivência ao menos de um embuste, que
é só o que têm! Ah, se tivessem um SantosDumont! Transformá-lo-iam no Deus dos
deuses, e com muito menos do que fez.
GEORGES
- Nisso tem razão, Adrien. Mas, e o trabalho
de mais de cinco anos? Qual será seu destino?
ADRIEN
- Como disse o próprio Santos-Dumont,
105
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
citando um poeta seu conterrâneo, resta-nos
esperar, Georges: “esperar, eis a doutrina da
vida; espera e alcançarás a ansiada palma”;
ou algo assim, não é?
ADRIEN
- Pertencemos, Você e eu, Georges, ao fim
de uma era. À outra que se inicia, pertencem
Benett e Lazare, este último, coitado dele!
Mas isso é assunto para uma outra conversa.
Por enquanto vá para casa e descanse. E
acalme-se; o mundo ainda não acabou!
GEORGES
- Nesse caso vou prosseguir. A não ser que o
"Le Temps" não o queira mais... e, então...
SEQUÊNCIA 66 (O Número 15)
ADRIEN
- Por enquanto sou o diretor desse jornal,
Georges, e, como disse, passamos a borracha.
Sua função permanece, sem alterações.
Novo teste com o 14 Bis, no Campo de St
Cyr. Um desastre quase total. SD sai ileso
por artes de uma sorte inacreditável.
O interfone chama e Adrien o atende.
Corte para o hangar de Neully. Fica pronto
o Número 15, que recebe os últimos
retoques. Chapin dá as últimas pinceladas
na inscrição do seu número de batismo.
ADRIEN (ao interfone)
- Diga para aguardar, estou terminando.
(desliga e, para Georges) - É Lazare, temos
uma reunião de pauta.
Corte para o Número 15 sendo levado, pelas
ruas de Neully, para o Campo de Bagatelle,
com a ajuda do povão.
GEORGES
- Esse puxa-saco tem crescido nessa casa,
não é, Adrien?
Teste oficial do Número 15. Multidão, etc.
Um curioso passa a mão pela asa do
aeroplano e fala com Chapin.
ADRIEN
- Não preciso apelar para o meu sexto sentido
para prever que ele será meu sucessor no
"Le Temps", Georges. Mas um outro "Le
Temps" que, do meu, só terá o nome; se
tiver.
O CURIOSO
- Que espécie de madeira é essa?
CHAPIN (atencioso)
- Madeira compensada, senhor, pela primeira
vez sendo utilizada em projeto aeronáutico.
GEORGES
- Está derrotista, Adrien!? Deve ser a venda
de parte das suas ações. Só agora percebo o
quanto isso deve ter sido duro para Você.
Peço-lhe desculpas, Adrien.
Começam as tentativas do
Número 15. Fracasso, o
aeroplano corre no
gramado e dá um
O Número 15
106
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
"...um cavalo-de-pau antes de decolar, entortando-se todo."
SEQUÊNCIA 68 (O Número 16)
cavalo-de-pau antes de decolar, entortandose todo. (foto) O piloto, mais uma vez, escapa
ileso de um perigosíssimo acidente.
SEQUÊNCIA 67
Interior da oficina secreta onde estão sendo
produzidos simultaneamente um balão
dirigível e o “Demoiselle” que já começa a
tomar forma. Fabrica-se também um
deslizador aquático, como pré-projeto de
hidroavião. SD explica a Levavasseur o seu
projeto de motor de 16 cilindros em V, através
de desenhos e plantas técnicas e mostra a
Chapin a maquete do hidroavião, um
desenvolvimento do deslizador, já com suas
asas.
Campo de Bagatelle. Teste do Número 16,
(foto) um dirigível-avião de belíssima e
proporcionadas linhas. Como sempre,
curiosos em torno dele. Um homem, com
aparência de artista, comenta para o outro.
O ARTISTA
- É uma perfeita composição, do ponto de
vista estético! Um desenho que se aproxima
da perfeição!
Uma mulher sobe o topo de uma pequena
escadinha auxiliar de três degraus e passa
os dedos entre a hélice e o invólucro para
acreditar que não se chocam, e comenta a
Dazon.
A MULHER
- Mas não há perigo de a hélice furar o balão?
Dazon balança negativamente a cabeça com
um sorriso condescendente.
"É uma perfeita composição, do ponto de vista estético!"
107
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Amanhece em Paris. O lado leste da Av SD (para August que o servia)
Champs Elysées, exibe a aurora com seus - Olhe para a janela, August, e veja o futuro.
róseos dedos. No cenário da cidade deserta,
perto do Arco do Triunfo, um leiteiro com AUGUST (olhando pela janela, com a cara
sua carroça estacionada, enche os vasilhames interrogativa e a fleuma de mordomo)
para distribuir aos fregueses. Um fiacre de - E o que é o futuro, Senhor? Será o homem
padeiro passa,
estacionando sua
lépido, na direção
viatura aérea na
oeste, ao longo da
porta de sua
bela
avenida.
residência para
Súbito o cavalo
um lanche?
assusta-se, relincha
e
pinoteia,
esperneando,
SEQUÊNCIA 69
quase jogando ao
chão o assustado
Voisin testando o
O aeroplano de Voisin pilotado por Maurice Farman.
padeiro,
que
seu “ Voisin”, que
desvia para a calçada, sem tirar o olho da ainda não consegue voar (Legenda: Campo
sua direção, de onde aproximava-se uma de St Cyr, Paris, 1907 - Aeroplano de Voisin
espécie de bólido aéreo, em terrível e Bleriot - Piloto: Sr Voisin)
velocidade, à semelhança de uma enorme
bala de canhão. O leiteiro, igualmente pasmo, Corte para a oficina secreta. O “Demoiselle”
olha para o mesmo ponto, esquecendo-se está praticamente pronto . SD, dentro dele,
do leite que derrama-se todo na calçada, experimenta os comandos.
recebendo os reflexos magentas da bela
aurora. O Número 16 vinha sereno, pelo meio Corte para um novo teste do aeroplano de
da avenida, a poucos metros do solo, numa Voisin, desta vez pilotado por Maurice
precisa linha reta em direção ao Arco do Farman. (Legenda: Aeroplano de Voisin e
Triunfo e, sem reduzir a velocidade, Bleriot - Piloto: Maurice Farman) O aeroplano
atravessa-o por dentro, quase que numa consegue levantar vôo sob os aplausos da
penetração fálica. Logo em seguida, estaciona platéia e a felicidade estampada nos rostos
tranqüilamente na porta da residência do seu de seu piloto e construtores.
piloto. François e Pierre aguardavam-no na
calçada, pegam as cordas e amarram-nas num Corte para a carroça de carga do Sr Louis
hidrante. SD, como sempre elegantemente chegando ao hangar de Neully. Chapin e os
trajado, desce da aeronave e vai para o mecânicos descem com cuidado as partes
interior do edifício.
desmontadas do “Demoiselle”.
Corte
para
SD,
tomando café-damanhã em seu salão,
vendo-se,
pelas
grandes vidraças da
janela, o Número 16
estacionado e cercado
de
curiosos.
Repórteres começam a
chegar e fotógrafos
batem chapas.
Jornaleiro, nas ruas de
Paris, exibe manchete
de jornal: “ROBERT
ESNAULT-PELTERIE
VOA 600 METROS NO
SEU
REPL”,
na
primeira página do "Le
Temps", acompanhada
de fotos.
O Nº 18, um deslizador aquático com o seu V-16
108
SD, no seu Número 18,
o deslizador aquático,
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
faz demonstrações no Sena, para grande
multidão.
Altas horas da noite no hangar de Neully.
SD namora a sua maravilha pronta para voar,
e oferece um champagne a todos os seus
companheiros, que fazem um entusiasmado
brinde.
SEQUÊNCIA 70
(O Número 19, o primeiro “Demoiselle”)
Reina a paz no Castelo de Wideville.
Tardezinha com o sol se pondo na tranquila
paisagem. (legenda: Castelo de Wideville,
Davron, setembro de 1908) Um longínquo
ruído de motor começa a ser ouvido no céu.
Os habitantes do Castelo interrompem suas
rotinas e olham na direção da origem do som.
Janelas abrem-se, e surgem senhoras e
crianças curiosas. O ruído vai aumentando
gradativamente até que surge, cortando a tela,
o “Demoiselle”, o Número 19, pilotado por
SD. Ele faz um vôo rasante em volta do
Castelo e vem para o pouso num longo
gramado, bem à frente do edifício. Todos
acodem para vê-lo. O pequenino avião pousa
suavemente, corre um pouco no gramado e
pára. O rugido do motor eleva-se e o
“Demoiselle” segue taxiando, ágil, para
debaixo de uma árvore. A fachada do Castelo
convertera-se numa espécie de balcão de
teatro, com todas as frisas ocupadas. SD sai
do seu aparelho enquanto dois guardas da
propriedade aproximam-se.
SD
- Venho em paz, senhores. De quem é essa
propriedade?
UM DOS GUARDAS
- Pertence ao Conde de Gallard; e quem é o
senhor?
SD
- Meu nome é Santos-Dumont e sou amigo
do Sr Conde. Levem minhas desculpas a ele
por essa invasão inesperada. Digam-lhe que
foi uma emergência, e que não o
incomodarei. Aguardarei aqui e só peço-lhe
um único favor: que faça uma ligação para o
meu mordomo em Paris ordenando-lhe, em
meu nome, que tome a providência de
mandar-me buscar.
O OUTRO GUARDA
- O senhor Conde não se encontra no
momento. Mas daremos seu recado à
Condessa. Aguarde-nos. (e retornam)
SD começa a inspecionar seu aparelho
conferindo-o para ver se não houve algum
dano. Os guardas voltam a ele seguidos pela
"Reina a paz no Castelo de Wideville..."
109
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Condessa, seus filhos e
sua entourage.
risonha)
- Senhor SantosDumont, começo a
sentir frio. Meus
criados guardarão seu
lindo aeroplano no
estábulo, e em
segurança. Peço-lhe
que me leve de volta
ao Castelo.
O PRIMEIRO GUARDA
- A Condessa deseja
convidá-lo ao Castelo.
A Condessa aproximase de SD.
SD (tirando o chapéu)
- Senhora Condessa
(beija-lhe a mão), mil perdões por tão
inoportuna invasão. Espero que seus criados
tenham-lhe informado da emergência em que
me encontro.
SD (oferecendo-lhe o
braço)
- Não tenho como expressar a minha
gratidão, Senhora Condessa.
Caminham em direção ao Castelo e entram.
A CONDESSA
- Senhor Santos-Dumont, todos estamos
muito felizes com essa surpresa que nos cai
do céu. É uma honra recebê-lo em nossa
casa. Considere-se meu hóspede.
Ao longe, já de noite, surge a carruagem do
Conde a todo o galope. De dentro dela, o
Conde e o Cap. Ferber tentam entender uma
estranha movimentação perto do estábulo.
A carruagem estaciona ao lado dos criados
que cercavam o “Demoiselle”.
SD
- Muito agradecido, senhora Condessa,
tomarei o seu precioso tempo apenas o
suficiente para um telefonema, se a Senhora
mo permitir...
A Condessa e SD saem à porta do Castelo
para recebê-los
A CONDESSA (radiante, para o surpreso
marido)
- Querido, temos uma visita para hoje que
nos veio dos céus! O Sr Santos-Dumont em
carne e osso. (e estende a mão para receber
o beijo do Cap. Ferber)
A CONDESSA
- Senhor Santos-Dumont, um hóspede em
Wideville é meu hóspede. E meus hóspedes
não costumam ser tão apressados. Embora
nunca tenhamos recebido um que chegasse
voando, eu ficaria ofendida se recusasse a
nossa humilde hospedagem nessa
emergência.
O CONDE (cumprimentando SD)
- Pensávamos que havia tido um acidente,
Sr Santos-Dumont. Vimos o Sr passar pela
copa das árvores em St Cyr e não mais
retornou! Fico feliz de vê-lo em minha casa
são e salvo.
SD
- Oh, não, senhora Condessa! Entendeu-me
mal e peço-lhe outra
vez desculpas por
não ter me explicado
bem. É que eu me
sentiria como se
estivesse abusando
de sua gentileza...
SD
Foi
uma
aterrissagem de
emergência,
Sr
Conde. Descuideime da hora e,
quando percebi, era
quase noite...
A
CONDESSA
(interrompendo-o
110
PARTE 2
A CONDESSA
- O Sr Santos-Dumont e o Cap. Ferber serão
nossos hóspedes por essa noite, querido.
O CONDE (para SD)
- Quer dizer que a sua pequena libélula o
leva para onde quiser pelos ares? Sou seu
admirador, Sr Santos-Dumont; fico honrado
com essa coincidência. Creio que sou o
primeiro homem do mundo a receber uma
visita que me chega pela via aérea!
Corte para a sala de jantar, onde todos jantam
um refinado banquete.
SD
... e então tive de comparecer pela primeira
vez a um tribunal. Precisava garantir a
invenção dos meus motores ao domínio
público. Nada tenho contra se os constroem
e vendem; nada cobro. Mas não posso
permitir que outros cobrem direitos de
patentes que eu já houvera concedido ao
público.
A CONDESSA
- Eu simpatizo muito com esse seu
desinteresse, Sr Santos-Dumont. Sempre dei
razão ao Senhor. O progresso seria muito
mais veloz e mais ameno para todos, não é?
Os homens não precisariam criar seus
inventos às escondidas e haveria menos
ganância e corrupção.
CAP. FERBER
- Mas a Sra há de levar em conta, Sra
Condessa, que nem todos possuem a mesma
sorte do Sr Santos-Dumont. São altos os
custos e os riscos das experiências científicas
e seus autores precisam ser recompensados
para continuar. É um instituto justo, o das
patentes. E quem não as desejar, é só abrir
mão delas, como o faz o Sr Santos-Dumont...
Terminam a refeição e dirigem-se ao salão
de fumar.
SANTOS DUMONT/O FILME
O CONDE (ao chegar ao salão)
- Essa década tem sido de grandes progressos
no campo da aeronáutica. Há bem pouco
tempo lembro-me de uma noitada no
Maxim’s em que comemorávamos o retorno
do Sr Santos- Dumont, são e salvo, de uma
temerária viagem no seu pequeno balão
esférico. Agora o temos aqui, bem chegado
numa aeronave que o leva para onde quer,
fazendo em 14 minutos, o percurso que
levamos duas horas e meia de carruagem. E
ainda temos os progressos de Bleriot, Voisin,
os Farman, Breguet e muitos outros...
CAP. FERBER
- Não podemos esquecer dos irmãos Wright,
que chegaram há poucos dias em Paris e
estarão demonstrando o seu aeroplano na
semana que vem.
SD
- Eles trouxeram o “Flyer”, de 1903?
CAP. FERBER
- É exatamente o mesmo “Flyer” que voou
em 1903, e sobre o qual falei, na época, numa
reunião do AeroClube, lembra-se, Sr SantosDumont?
Sentam-se nas grandes poltronas, servidos
de licores e doces. SD recusa um charuto.
SD
- Sim, lembro-me. Mas..., não acha um pouco
estranho, Cap. Ferber?! Estamos em 1908. De
1903 para cá, desenvolvi cerca de 10
diferentes projetos e, antes daquela data,
outros tantos. Os Srs Voisin, Bleriot, Pelterie,
Breguet, Farman e Archdeacon também nos
expuseram nesse período, uma bela trajetória
de experimentos. E, na observação mútua,
houve a contribuição de uns para com os
outros. Assim tem sido o progresso da
ciência. Uma pequena descoberta aqui, outra
ali, um pequeno novo invento, e, detalhe
por detalhe, surgem as grandes invenções.
Não somente conosco, mas, também, com
os maiores em outros misteres, como
111
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Edson, Marconi, Grambell, Goodyear. Só com
os Srs Wright é que não. Não se sabe o que
fizeram antes de 1903, e agora chegam a Paris
trazendo o mesmo modelo que disseram ter
voado há cinco anos. Vi há pouco algumas
fotos, as primeiras que até hoje nos chegaram.
Não parece ser diferente dos nossos antigos
modelos! Percebi que contribuições minhas
e de meus colegas estão lá aplicadas. Como
explica isso, Cap. Ferber?
gargalhada. SD também ri. Ferber emburra).
No dia seguinte, de manhã, toda a vizinhança
do Castelo estava presente para ver o Número
19 decolar, de volta a Paris. SD despede-se
da família, acena ao povo, dá a partida no
motor e entra no seu “Demoiselle”. Aciona a
manete da mistura e acelera. O pequeno
aeroplano desloca-se lentamente, vai
ganhando velocidade e, de repente, sai do
solo, voando serenamente, em linha reta,
subindo, distanciando-se. Lá na frente retorna
e passa veloz sobre as cabeças de todos que
o aplaudem, ganha altura e desaparece por
cima das copas das árvores.
CAP. FERBER
- Os Wright trabalham num rigoroso sigilo. E
creio que, não somente eles, não é, Sr SantosDumont? Também o Sr, sabemos, guarda
grandes segredos debaixo de sete chaves...
SEQUÊNCIA 71
O CONDE
- Você desviou da conversa, Ferber. Não é
sobre os segredos que Santos-Dumont se
refere. É justamente sobre o que não é
segredo. E quanto a isso dou inteira razão a
ele.
Repórteres entrevistam Orville Wright no hall
do Grand Hotel de Paris.
ORVILLE
... afirmar que o vôo de Santos-Dumont foi
o primeiro da História, seria o mesmo que
admitir que qualquer outro navegador, que
não Colombo, tivesse descoberto a América,
porque ela não foi homologada por nenhum
Clube de Descobridores!
CAP. FERBER
- Bem, em breve estaremos vendo a máquina
dos Wright voar em Paris.
SD
- Porque não sugere que façam um vôo de
St Cyr até aqui, nesse agradável Castelo do
Sr Conde? Seria um belo evento, e de muito
bom gosto. Essa casa é um exemplo do que
melhor possuímos em França... (o Conde dá
uma gargalhada)
Os mesmos repórteres entrevistam SD na
porta do seu edifício no Champs Elysées .
SD
- Foi infeliz o Sr Orville Wright nessa
argumentação porque é sabido que muitos
aventureiros tentaram arrogar para si o
privilégio de terem sido os primeiros a chegar
na América. Mas a História só o concedeu a
Colombo justamente porque o fez com
muitos testemunhos e farta documentação
oficial; não foi às terras ocidentais em
segredo, e seus relatos, e de seus tripulantes,
foram homologados pela ciência da época
e a dos nossos dias, enquanto
CAP. FERBER (aborrecido, mas sem dar o
braço a torcer)
- Não deixa de ser uma idéia. Procurarei
sugeri-la.
O CONDE (ainda rindo)
- E diga-lhes que não se preocupem. Pedirei
a Santos-Dumont que venha na frente,
guiando-os, para não se perderem (e
dá
outra
gostosa
112
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
aqueles aventureiros só tinham a seu favor
os seus próprios testemunhos e documentos
por eles mesmos forjados. Porém, eu fico
feliz que o Sr Wright tenha arriscado este
sofisma, pois assim acabou por fazer por mim
o que ninguém fizera antes, nem mesmo os
meus mais exaltados apologistas: ainda que
sem essa intenção, o Sr Wright não fez outra
coisa senão comparar-me ao grande
Cristóvão Colombo.
SEQUÊNCIA 72
Adrien e Georges viajam numa cupê pelas
ruas de Paris.
GEORGES
- Não entendi bem aquele entrevero do
Embaixador Henry White com o Conde de
Gallard, ontem, na solenidade do Automóvel
Clube, Adrien.
ADRIEN
- O fato é que a arrogância dos americanos
já incomoda os franceses, Georges. Depois
da pressão bem sucedida, mas não sem
constrangimento, sobre o Aero Clube, para
incluir os irmãos Wright entre os seus
primeiros brevetados, tentaram transferir a
demonstração de hoje para Le Mans. Pelo
que sei, foi idéia do Ferber. Não sei o motivo.
Mas o Conde perdeu a paciência e ameaçou
boicotar o evento. White não teve saída senão
ceder.
GEORGES
- Talvez temessem o sobrevôo do
“Demoiselle” na hora da exibição.
ADRIEN
É
plausível. Mas levaram
longe demais o embuste
e estão dispostos a ir
com ele até o fim. Os americanos têm uma
incrível capacidade de não se preocupar com
o ridículo.
SEQUÊNCIA 73 (“Os barqueiros do Volga”)
A cupê chega a St Cyr, já com grande
movimento de trânsito e pessoas.
(Legenda: Campo de St Cyr, Paris, 3 de
outubro de 1908) Os Wright vão finalmente
exibir à França o seu aeroplano secreto. Em
grande lobby da diplomacia americana,
apresentavam- se todas as autoridades e
personalidades civis e militares, e, é claro,
toda a grande imprensa mundial e a alta
sociedade em peso. Adrien e Benett
conversavam.
ADRIEN
- O que é aquilo com um peso pendurado?
BENETT
- É o “pylon”. Ao soltar o peso, este puxa a
corda que empurra o aeroplano no seu
impulso inicial.
ADRIEN
- E como se faz para levantar aquele peso?
BENETT
- Lá estão os homens para fazê-lo. Veja, já
começam a puxá-lo.
Corte para os dez homens (os “barqueiros
do Volga”) puxando, com esforço, a corda
do “pylon”. (foto)
Tudo pronto. Silêncio geral. O Embaixador
Henry White prepara-se para dar o sinal.
Wilbur já está posicionado, deitado dentro
da estrutura do “Flyer” e Orville aguarda o
sinal para girar a hélice. De repente, um
O "Flyer" dos Wright e o seu imprescindível "pylon".
113
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
ruído de motor aéreo rompe o silêncio,
aproximando-se. Todos voltam os pescoços
em sua direção. Henry White, Benett e os
Wright não escondem o aborrecimento. Surge
um “Demoiselle” por cima da copa de um
arvoredo.
acontecera ao piloto todos aplaudem
ruidosamente, comandados pelos efusivos
aplausos de Benett e White.
ADRIEN (para Georges)
- Espero que não seja Santos-Dumont,
Georges, isso não é bom. (e, procurando na
multidão) - Onde está ele?
WHITE (para Orville)
- Uma segunda tentativa!
O comissário de medição berra do
automóvel: - 30 metros!
ORVILLE
- Sim, senhor.
GEORGES (protegendo os olhos do sol para
ver com clareza o aeroplano aproximandose)
- Não veio... Mas... não, não é ele. É
o piloto de provas do ClémentBayard, aquele russo, um tal de
Kazan.
Algumas tentativas depois, o público
demonstrava o seu cansaço. White dá-se por
satisfeito.
WHITE
- Ótimo cavalheiros, com este
vôo de 600 metros ficam nítidas
as excelentes qualidades dessa
máquina e o futuro que ela nos reserva. (e,
para os Wright) - Nós agradecemos aos
senhores, por essa pioneira exibição de
ciência e coragem reunidas; muito obrigado!
(e aplaude, seguido pela platéia)
O “Demoiselle”
faz
uma
aproximação rasante perto dos homens que
puxavam a corda, evolui em graciosa curva
de retorno e vai-se embora, pelo mesmo
caminho que veio. O constrangimento é
geral. Henry White porém não dá a mínima
e quebra o gelo.
Os Wright agradecem ensaiadamente.
WHITE
- Cavalheiros, agora que se foi o “penetra”,
vamos dar início à demonstração para a qual
foram convidados. (e dá o sinal)
SEQUÊNCIA 74
Na gráfica do "Le Temps", Georges está
reunido com o grupo de operários, oficiais
gráficos e alguns funcionários. Todos o
cercam, ouvindo-o com atenção. Ele dá boas
risadas.
Orville gira a hélice e manda soltar o “pylon”.
O peso cai de uma só pancada e o aeroplano
é imediatamente lançado a uns dois metros
de altura e segue em frente, voando instável,
até pousar uns trinta metros adiante, parando
abruptamente. Após ter certeza de que nada
GEORGES (entre as risadas)
- ... e então surgiu o
Barqueiros do Volga? - Não! Apenas os puxadores do "pylon", indispensável auxílio para a partida do "Flyer".
114
PARTE 2
“Demoiselle” com o russo Kazan olhando
tudo, muito curioso, com aquela cara meio
maluca. Foi muito engraçado. Nem sei
descrever a cara dos americanos. Difícil foi
conter o riso na hora. E depois, soubemos
que o Cap. Ferber
interrogou Kazan, para
saber se fora SantosDumont que planejara
tudo.
A cena passa para o Cap. Ferber interrogando
o russo Kazan.
KAZAN (sentado numa cadeira de
interrogatório sob os olhares ameaçadores
de Ferber e outros oficiais)
- Não, seu capitão, eu tava
só
testando um modelo pro
dotô Clemen e fui pro sul
pruquê no norte, como de
custume vô, tinha umas
nuve danada de preta, seu capitão.
Aí vim e dei com aqueles home
puxando a colda qui nem meus
conterrano faz lá no Vorga e pensei:
será meus conterrano, os barquero do Vorga,
como os senhores costuma dizê? Fiquei
curioso de sabê quê queles tava fazendo ali
naquela grama. Então fui dá uma ispiada. Aí
queu vi aquela gente toda enfarpelada
lá e vi a torre de ferro e u’a máquina
qui paricia daquelas antiga de voá,
o sinhô sabe, né?
Ferber dá apenas um rugido e
continua a fuzilar o russo com o seu
olhar ameaçador.
KAZAN (continuando, tentando explicar-se)
- Num intindi bem mas vi que tava
atrapaiando. Então fui ‘bora. É só isso, seu
capitão, num foi pro mal não, seu capitão!
De cima para baixo: Lilienthal, Chanut,
Langley e o "Avion" de Ader.
SANTOS DUMONT/O FILME
A cena volta para Georges e a sua roda de
ouvintes na gráfica do "Le Temps". (mais
gargalhadas gerais)
GEORGES (quase sem conseguir conter o
riso)
- E o coitado tremia que nem uma vara
verde, com medo de tomar uma
surra do Cap. Ferber. Essa é
boa; “os barqueiros do Volga”! (e
voltavam a dar gargalhadas)
Marcel Duchamp, um jovem fotógrafodesenhista, novo no jornal, interpela Georges.
DUCHAMP
- É verdade que o aeroplano deles não tem
rodas?
GEORGES
- Aí é que está o ponto,
Duchamp, Você tocou a
medula da questão. Há sete
anos venho acompanhando e estudando
as experiências aeronáuticas. Desde que
Roger Bacon previu as máquinas de voar,
foram inúmeras as tentativas realizadas.
(agora em off, sobre a iconografia animada
ou estática) - Já no Século XVIII, homens
como Besnier, o marquês de Bacqueville
Blanchard, Bartolomeu de Gusmão,
Launoy, Bienvenu, Jacob Degen,
Vittorio Sarti, Dubochet, Caignard de
la Tour, Sir George Wiley, Henson,
Stringfellow, Du Temple, e,
recentemente, o príncipe Albert,
Palmer, Kauffmann, Gibson,
Spencer, Penaud, Tatin, Hureau de
Villeneuve, Langley, Thaso,
Lilienthal e ainda, Chanute, Voisin, Bleriot,
Farman e os Wright; todos até poderiam ter
tido êxito, se houvessem colocado rodas em
seus aparelhos. Ader, que foi único
desses precursores que a
colocou, só não
fez voar a
s u a
máquina
p o r que não possuía motor a
petróleo. Santos-Dumont já
115
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
colocava rodas em seus inventos desde seus
primeiros dirigíveis. Por isso foi o primeiro a
voar pelos próprios meios e capaz de retornar
ao solo sem problemas. O aeroplano dos
Wright, apesar dos americanos fingirem não
enxergar, não passa de uma traquitana
ultrapassada e catapultada. Como projeto e
construção, chega a ser ingênua, além de
antiquada e superada. Quando perguntei por
que não utilizavam rodas em seu aeroplano,
disseram-me candidamente que elas
exigiriam muita pista para decolar!?...
- Sim, comprei. Em cinco anos aposento-me
e vou morar lá. É o fim do ciclo dos Hébrards
na gráfica francesa. Um dos meus filhos é
advogado e o outro filósofo na Sorbonne.
GEORGES
- É uma lástima, Adrien. Foram quatro belas
gerações de gráficos-editores: os
“informadíssimos Hébrards”! Desde os jornais
revolucionários de Danton, os manifestos de
Napoleão, as parcerias com Hugo, Balzac,
Flaubert, até Você com Zola e o caso
Dreyffus... Não se sente mal?
Um foca aproxima-se
ADRIEN
- Por um lado, sim, é melancólico. Mas, por
outro, fico orgulhoso. Para ser sincero, não
me agradam os novos tempos. Desde o
advento da eletricidade, tudo começou a
mudar vertiginosamente. Antes fazíamos um
jornal caseiro, artesanal, preocupado com os
fatos e com os leitores; lembro-me que toda
a família participava dos trabalhos... Então
vieram o telégrafo sem fio, o telefone, as
rotativas, o automóvel, o aeroplano, enfim,
a indústria e a loucura da produção em série.
Pressinto maus momentos para a
Humanidade, Georges...
O FOCA
- Sr Georges, o Sr Adrien...
GEORGES
- Sim, ele me chama. Diga-lhe que estarei
com ele em cinco minutos. Preciso ir ao
toillete. (despede-se e sai)
SEQUÊNCIA 75
Georges sai do elevador no 4 andar e segue
para o Gabinete de Adrien. Percebe um
guarda bem à frente da porta de seu Gabinete
mas não dá maior importância. Louise o
recebe, abrindo a porta do gabinete.
GEORGES
- Mas ainda não me respondeu...
ADRIEN (com um aspecto aborrecido)
- Pedi que viesse porque há novidades que
não gostaremos de ouvir.
ADRIEN
- Há uma nova imprensa da qual não somos
parte, Georges. Donos de jornais já não
precisam ser jornalistas ou editores. São
empresários; capachos do poder. Escrever
bem, ter faro para notícias, responsabilidade
com os fatos, compromissos com o leitor e
outras coisas que os séculos de imprensa
tentaram nos ensinar, são coisas do passado;
como os “Hébrards”. Não são mais os leitores
que sustentam as publicações diretamente,
como antes, através das assinaturas dos
nossos antigos e pequenos jornais. É a venda
panfletária e a serviço do poder, e de
produtos industriais de todos os tipos;
transformando o jornal num loteamento de
espaços gráficos vendidos a x francos a linha.
(toca o interfone; ele atende) - Sim, pode
GEORGES
- Mas é preciso essa cara de enterro?
ADRIEN
- Benett está chegando com Chapman, o
novo Presidente do Conselho de Acionistas.
Hoje deixo de ser majoritário na sociedade.
GEORGES
- Já não me aborreço mais com essas
novidades, Adrien. Comprou aquela
propriedade em Avignon?
ADRIEN
116
PARTE 2
entrar. (e, para Georges) - Benett e Chapman
chegaram. Prepare-se, Georges.
Entram Benett e Chapman. Todos
cumprimentam-se formalmente.
BENETT
- Vamos direto ao assunto. Sr Goursat,
pedimos essa reunião em consideração ao
senhor e aos serviços que tem prestado ao
jornal. O que vamos lhe dizer não é pessoal.
GEORGES (sem perder a pose)
- É tão grave assim?
BENETT
- Apenas negócios. Com a fusão do Herald
de Paris e o "Le Temps", apoiada por grandes
bancos franceses e americanos, a
prosperidade dessa casa passou a ser a meta
principal dos nossos acionistas, e, em breve,
o "Le Temps" será o maior jornal europeu.
Mas a fusão trouxe também alguns
problemas. O histórico anterior de duas
empresas publicamente adversárias,
disputando um mesmo mercado, alimentou
sobremaneira os arquivos secretos dos dois
jornais com material muito perigoso para a
nova realidade. Em outras palavras, Adrien
andou me espionando e eu também o
espionava; Você sabe disso...
ADRIEN (baixinho para Georges)
- É capaz de adivinhar quem era o espião
dele?
GEORGES (também baixinho para Adrien)
- O patife do Lazare, claro.
SANTOS DUMONT/O FILME
cavalheiros, por quê chamaram-me aqui?
BENETT
- Entre os arquivos secretos do "Le Temps"
que serão lacrados, estão incluídos os
arquivos sobre o aeronauta...
Ao ouvir isso, Georges pulou da poltrona
furioso. Benett o interpelou, também
levantando-se.
BENETT
- Acalme-se, Sr Goursat, sabemos do seu
temperamento e da sua indisciplina... para
não falar da bebedeira.
GEORGES (avançando sobre ele)
- Ora, seu...
ADRIEN (retendo-o)
- Georges!
GEORGES (tentando safar-se)
- Você também é conivente, Adrien, não
toque em mim! Já entendi... meus arquivos
sobre Santos-Dumont... serão destruidos...
bando de patifes, eis o que são!
BENETT
- Ninguém falou em destruição de arquivos,
Sr Goursat; peço-lhe que comporte-se como
um cavalheiro, ou mandarei chamar os
guardas. Os arquivos que diz serem seus
pertencem, em verdade, à sociedade; isso
está bem claro no seu contrato. O senhor
deve entregar suas chaves ao Sr Chapman.
CHAPMAN
- Exatamente, cavalheiros, intrigas como essa
que os senhores acabaram de perpetrar
poderiam multiplicar-se causando graves
danos à sociedade. Por isso, os acionistas,
em decisão majoritária, resolveram lacrar os
arquivos secretos dos dois jornais por um
período de 20 anos.
GEORGES (controlando-se e encarando
Benett)
- Não sou um criminoso, Sr Benett, e não
tente tratar-me como tal! Não lhe devo
obediência, pois não sou seu empregado,
nem da sua sociedade, a partir desse
momento! Portanto, não mexa na minha sala
enquanto lá estiverem meus pertences
pessoais. E nossos advogados é que decidirão
quais são eles...
GEORGES
- Vinte anos?! É bastante tempo... Mas,
BENETT
- Faça o que bem entender, Sr Goursat, como
117
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
já disse, não é nada pessoal. Sou seu leitor e
admirador. Aqui tratamos apenas negócios...
GEORGES
- Em nada me honra a sua admiração, Sr
Benett, me sinto sufocado aqui, nesse seu
mundo imundo. Vou sair, passem bem,
senhores... (pega o chapéu e sai em direção
à porta)
BENETT
- Damos-lhe 48 horas, Sr Goursat, não mais!
Vá perder seu tempo com os advogados. Seu
Gabinete não é mais seu e seus pertences
pessoais serão retirados. Estarão à sua
disposição no Departamento de Pessoal. Se
não tivermos as chaves no tempo estipulado
arrombaremos os armários e o cofre, fique
certo. São propriedades dos acionistas e
temos autorização deles para fazê-lo.
GEORGES (já na porta, irônico e
melancólico)
- Arrombar cofres... deve ser essa a
especialidade dos senhores e seus acionistas,
não é? E, Adrien, Você me decepcionou;
nunca pensei que se chafurdaria num covil
desses. Passem bem, senhores! (bate a porta
com força e sai)
Dumont Nº 20 por 7500 francos. O jornal
está nas mãos de Georges, sentado num
banco, frente ao hangar de Santos-Dumont
em St Cloud. Vários outros hangares ladeiam
aquele edifício pioneiro. Oito aeroplanos de
vários tipos estão dispostos à frente deles,
com predominância dos "Demoiselle", com
quatro exemplares estacionados e dois em
vôo de instrução por sobre St Cloud. Ao lado,
no hangar de Clément- Bayard, está SD dando
algumas instruções aos mecânicos. Do lado
oposto, está o hangar de L. Dutheil, R.
Chalmers e Cia, anunciando também, numa
placa, um novo modelo do "Demoiselle" por
5000 francos. SD vem na direção de Georges.
SEQUÊNCIA 76
(O maior espetáculo do Século)
No jornal aberto um anúncio de ClémentBayard vendendo o Aeroplane Santos-
SD Nº 20 - "Demoiselle": o primeiro avião do mundo; é também o 1º a ser produzido em série e vendido ao mercado.
118
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
propriedade dos seus autores, após o prazo.
Esqueçamos isso; o L’Illustration é um
excelente jornal; todos lá gostam de Você...
GEORGES
- Por favor, Alberto, não tente consolar-me.
Só agrava o meu estado. Me sinto como se
tivesse sido condenado a 20 anos de prisão.
SD (sentando-se no banco, ao lado de
Georges)
- Ora, Georges, também me aborreci. Mas
como dizem na minha terra, é melhor “dar a
volta por cima”. É preciso também não
confundir a posição de Adrien. Compreendoa perfeitamente. Não teve escolha; os fatos
nos atropelaram, e a ele também. É um
grande amigo seu; a influência dele foi
decisiva para a sua contratação no
L’Illustration...
SD (sorridente)
- E então? Como foi o repouso na Cote
D’Azur? Divertiu-se?
GEORGES
- Que nada, Alberto! Mal consegui dormir.
Voltei dois dias antes do previsto. Eu o
perturbo?
GEORGES
- Não consigo enxergar o Adrien metido
nessa patifaria, Alberto, mas ele estava lá...
bolas, esqueçamos tudo isso!... Pelo que vejo
os "Demoiselle" vão de vento em popa!
SD
- É o meu sonho plenamente realizado,
Georges. Vendemos já 40 exemplares. E o
Chalmers está fazendo mais 30 simplificados.
Passamos o dia a dar instruções aos novos
pilotos e mecânicos. Você está assistindo,
nesse momento, ao maior espetáculo do
Século:
o
nascimento da
aviação civil!
Portanto, alegrese, homem!
SD
- De modo algum. É preciso esquecer o "Le
Temps" e os nossos arquivos, Georges. Meus
advogados
analisaram
o
caso
exaustivamente.
Não
temos
qualquer direito
sobre a decisão
dos acionistas. O
máximo que
pudemos fazer
foi acompanhar
o lacre na
presença do
tabelião e das
testemunhas, e
conseguir um
acordo para que
os
originais
..."o nascimento da aviação civil"...
passem a ser
119
SEQUÊNCIA 77
Manchetes de
j o r n a i s
sobrepõem-se
na tela:
“LAHAM TENTA
AT R AV E S S A R
CANAL
DA
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
MANCHA”
“BLERIOT É O
PRIMEIRO
A
ATRAVESSAR O
CANAL NUM MAIS
PESADO QUE O
AR”
“ G R A N D
SEMAINE DE
CHAMPAGNE”
"LAHAM TENTA ATRAVESSAR CANAL"
“AERONAUTAS
DE TODO O
M U N D O
CHEGAM À
FRANÇA”
Santos-Dumont”,
através do sistema
de alto-falantes,
provocando
aplausos em toda
a extensão do
campo.
Um
enorme público
acompanha os
dois carros
enquanto se
dirigem ao
h a n g a r
designado
p e l a
Comissão.
Começam
as provas.
"BLERIOT É O PRIMEIRO A ATRAVESSAR O CANAL"
“WRIGHTS
Quinhentos
RECUSAM-SE A PARTICIPAR
mil espectadores cercam a
DO CONCURSO”
pista de 10 km de extensão.
Festa no ar: sete aviões em
(Legenda: Grand Semaine de
vôo ao mesmo tempo,
Champagne, Reims, agosto
anunciam os alto-falantes,
de 1909) Aviões de todos os
“pela primeira vez no
tipos chegam embalados e
mundo”! Um deles, porém,
desmontados no Campo de
começa a soltar fumaça e
Champagne.
Na
desgoverna-se, caindo no
movimentada manhã, as
meio da platéia. Susto geral!
aeronaves vão cobrindo de
Duas mortes! Contrai-se o
cores o grande gramado,
rosto de SD.
cercadas de mecânicos,
aeronautas, visitantes e
O alto-falante anuncia um
curiosos. SD chega trazendo
vôo de Bleriot. Ele decola,
o seu "Demoiselle" no seu
levando um passageiro. O
próprio automóvel. Vem ao
motor falha na decolagem e
Curtis na "GRANDE SEMAINE"
seu lado, Georges, e, atrás
o aparelho precipita-se sobre
dele, no Mercedes, Chapin, ao volante, a multidão em pânico. Sem mortes, apenas
Gasteau
e
ferimentos.
Dazon.
A
Ambulâncias
Comissão de
correm
ao
Recepção os
local. O rosto
recebe
em
de
SD
f e s t a s ,
aborrece-se
anunciando a
ainda mais.
presença do
“Aeronauta
Anunciam
pioneiro dos
Delagrange, já
..."SD
chega
trazendo
o
seu
Demoiselle"...
ares,
o
Sr
na decolagem.
120
PARTE 2
Ao seu lado, decola, sem autorização, E.
Paulham, numa subida perigosa, choca-se de
leve com Delagrange, e cai. SD está aflito.
UMA SENHORA NA MULTIDÃO (bem perto
de SD)
- Meu Deus! Essa coisa mata!
Outro desastre; o inglês George Cockburn,
cai com o aeroplano de Farman. Virou um
entulho de panos, madeiras e sangue. Quatro
mártires só no primeiro dia!
SD (lívido, suado, lacrimejante)
- Chapin, não desça o "Demoiselle"; vamos
voltar.
CHAPIN
- Mas, senhor, este é o nosso melhor modelo!
Voará perfeitamente. Nunca o vi com medo
de voar!
SD
- Não é medo, Chapin. Não pretendo
tripudiar sobre os restos mortais dos nossos
companheiros martirizados nessa carnificina.
Vamos embora; Georges, Você vai?
GEORGES
- Devo ficar, Alberto. Estou em missão de
trabalho. Mas dou-lhe razão. O ambiente não
está bom. Vejo-o em Paris.
SANTOS DUMONT/O FILME
estante ocupada com as obras completas de
Júlio Verne, troféus, copas e, nas paredes,
diplomas, quadros de medalhas e fotos de
família, esperava o advogado Romain
Lelouch. SD entra calmamente, senta-se à sua
mesa, que é decorada por um grande jarro
de flores e a foto emoldurada de Aida
D’Acosta.
SD
- Como vai, advogado Lelouch?
ROMAIN
- Muito atarefado, Sr Santos, espero poder
servi-lo no que deseja.
SD
- Dr Romain, decidi que vou dar por
encerrada as minhas atividades de inventor
e aeronauta.
ROMAIN
- Eu ouvi bem, Sr Santos? O senhor está me
dizendo...
SD
- Exatamente o que o senhor ouviu, Dr
Romain. Chamei-o para ajudar-me a
providenciar a aposentadoria do Sr Chapin,
o único dos meus fiéis mecânicos que
também deseja parar. Os demais não terão
dificuldade em colocar-se; são os melhores
de Paris...
SEQUÊNCIA 78
SD está só na sua oficina secreta, vendo os
filmes do 14 Bis e do "Demoiselle". Sua
expressão demonstra uma profunda
amargura. O interfone toca.
AUGUST (in)
- É o advogado Romain Lelouch, senhor, já
está aqui.
SD (in)
- Sim, August. Leve-o ao Gabinete e peça
que aguarde-me. Demoro uns cinco minutos.
No pequeno Gabinete de trabalho do
apartamento de SD, com uma pequena
"...e a foto emoldurada de Aida D'Acosta..."
121
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
ROMAIN
- Se é o seu desejo, Sr Santos, nosso escritório,
como sempre, está à sua disposição. Daremos
todas as providências que nos ordenar. Agora
permita-me informá-lo sobre um assunto
delicado...
- Mas, até lá...
SD
- A questão das patentes do "Demoiselle"?
SD (interrompendo-o)
- Mantenha-os longe, Dr Romain. Temos
algum outro assunto? Desculpe-me, mas
estou bastante ocupado no momento.
ROMAIN
- Sim, até a aprovação, apesar dos altos custos
que o senhor terá de desembolsar, é possível
mantê-los longe. Nosso conselho porém...
ROMAIN
- Não, não senhor; esta causa já ganhamos e
está encerrada. O domínio público foi
assegurado, conforme o seu desejo. Falo
sobre a questão da vistoria no imóvel anexo
a este. Como já lhe informamos o processo
permanece em difícil situação. Somente um
acordo poderá tornar as coisas mais fáceis.
Creio que agora, o senhor abandonando as
atividades...
ROMAIN
- Apenas entregar-lhe o relatório financeiro
do último semestre, Sr Santos. Aqui está
(entrega-lhe os papéis que retirou da pasta)
- As coisas felizmente continuam a ir bem
para o senhor. Aliás, sempre andaram bem,
não? O senhor é mesmo um homem de muita
sorte!
SD
- Dr Romain, não estou disposto a abrir mão
de nenhuma das minhas prerrogativas e
direitos de proprietário; em hipótese alguma!
SD (recebendo os papéis e olhando-os
superficialmente, sem entusiasmo)
- Obrigado, Dr Romain. Dê lembranças
minhas ao advogado Heifetz.
ROMAIN
- O escritório não sabe até quando poderá
manter essa situação, Sr Santos. Tenho o
dever de informá-lo que é iminente a
aprovação da lei de emergência. Se isso
acontecer, mais nada poderá ser feito.
SEQUÊNCIA 79 (Despedida)
A oficina secreta está abarrotada dos modelos
e pedaços de modelos que nela foram
construídos desde que fora inaugurada.
Numa reunião com todos os seus principais
mecânicos, incluindo Anzani e Levavasseur,
SD
SD, seus três fiéis mecânicos, Chapin, Gasteau e Dazon e o protótipo do inacabado bimotor.
122
PARTE 2
SD despede-se. Clima de emoção e tristeza.
Alguns não conseguem esconder as lágrimas.
SD
- Amigos, chegou o fim da minha jornada.
Minha saúde não permite a continuação dos
trabalhos. Além disso, enfrentamos o boicote
de uma imprensa entregue a interesses
inescrupulosos. Começo a duvidar se o que
fizemos com tanto empenho e dedicação,
reverterá mesmo em benefício da
Humanidade. De mim sempre haverá o
profundo reconhecimento da importância de
todos nessa trajetória de mais de uma década
de intensa atividade criadora. Vocês todos
estão de parabéns! Desejo que sejam felizes
em seus novos empregos. Muito obrigado.
Comovido, SD começa a abraçar um por um,
num clima de enterro. Todos, emocionados,
abraçam-no demoradamente, sem conseguir
emitir uma palavra, pegam suas maletas e
saem da oficina, olhando-a com tristeza, pela
última vez.
SD fica só na oficina, prepara um drink,
senta-se na mesa de leitura, abre um caderno
e começa a escrever. Entra Georges.
GEORGES
- Houve uma reunião de cúpula no Aero
Clube, Alberto. Estive lá a pedido da diretoria.
Estão preparando uma grande homenagem
para Você.
SD
- É muita gentileza deles, Georges. Não estou
certo se a mereço...
GEORGES
- Já sentem sua falta por lá. Todos
reconhecem que o Aero Clube não é mais o
mesmo. Até seus adversários sentem o vazio.
É natural! E essa decisão repentina de
abandonar tudo, os atingiu e às suas
consciências.
SD
- Também eu sinto saudades, Georges,
daqueles tempos felizes de emulações e
SANTOS DUMONT/O FILME
descobertas. Mas hoje o Aero Clube parece
ter perdido a sua independência, senão a
dignidade. Veja o episódio da concessão dos
brevets. A pressão para a inclusão dos Wright
e do Cap. Ferber foi vergonhosa e
demonstrou a fraqueza da nossa direção.
GEORGES
- Isso deu-se logo após o golpe do "Le
Temps". Estava tudo articulado, desde a visita
dos Wrights. E o Aero Clube precisava de
dinheiro e prestígio para as ampliações. Se
eu devo perdoar Adrien, como me
aconselhou, perdoe Você também o Aero
Clube. Estou aqui como embaixador deles,
Alberto.
SD
- Não me consta que tenha perdoado o
Adrien...
GEORGES
- Intimamente sim. Apesar de não o ter
procurado mais, não guardo ressentimentos.
SD
- Eu não tenho o que perdoar em relação ao
Aero Clube, Georges. Compreendo a posição
da Diretoria. Ficarei muito honrado com essa
homenagem, pode dizer a eles.
GEORGES
- Você comparecerá?
SD
- Sim, claro que sim.
SEQUÊNCIA 80 (Apologia)
Na sede do Automóvel Clube, uma grande
reunião plenária do Aero Clube.
Comparecimento maciço de todos os sócios.
Archdeacon faz um discurso.
ARCHDEACON
- ... e como ressaltou o Sr Deutsch de La
Meurthe, nosso Aero Clube, o pioneiro dos
Aero Clubes, que hoje espalham-se pelo
mundo, ressente-se da ausência voluntária
123
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
de um dos seus mais ilustres fundadores e
aeronautas. Muitos de nós testemunhamos,
desde os começos, e até há poucos meses, a
energia com que este homem empenhou-se
na construção e crescimento do nosso Clube,
sem poupar esforços e recursos, como uma
chama poderosa e permanente de estímulo
e emulação. Foi também, seguramente, o
maior orgulho dessa casa e, posso dizer, que
o seu espírito, inteligente e empreendedor,
foi a pedra fundamental da nossa instituição.
Além disso, o Sr Santos-Dumont, foi grande
aeronauta e inventor de alta brilhância,
podendo figurar na constelação dos maiores,
ao lado de Edson, Marconi, Grambell,
Lumière, entre poucos outros. Sua obra, que
ele já dá como completa, é uma obra de
grande mestre, de gênio mesmo! Muitos
presenciamos, em 1898, a sua temerária
ascensão no pequenino balão esférico “Le
Brésil”, até hoje o menor balão esférico do
mundo, e agora podemos historiar uma
profícua carreira de 23 projetos aeronáuticos,
todos pioneiros e a maioria deles testados
em vôo pelo próprio inventor. Além disso,
sete novos motores a petróleo e mais de 300
invenções subjacentes e acessórias, grande
parte
delas
já
incorporando-se ao
cotidiano
dos
projetos
e
oficinas, e até
mesmo
das
pessoas,
em
todas as partes do
mundo. Essa obra
magnífica, cheia de
conquistas e sucessos,
numa
sequência
progressiva de
inovações
revolucionárias,
encerrase no
apogeu com o seu mais expressivo projeto;
os pequeninos "Demoiselle", que hoje fazem
parte dos céus parisienses e muitas outras
cidades, formando novos pilotos e
aeronautas. Essa sua pequena e última obraprima, senhoras e senhores, é nada menos
do que a primeira aeronave de turismo que
o homem fabricou em sua indústria! É
também a matriz de todos os projetos
aeronáuticos atuais e futuros, pois em
essência, o Sr Santos-Dumont, ao criá-la, deu,
incontestavelmente, as asas que o homem
precisa para viver o seu futuro. É preciso,
porém, ressaltar que, da primeira até a última
criação, a obra do Sr Santos-Dumont é, antes
de tudo, a obra de um grande humanista.
Sim, porque saíram do coração e da mente
de um homem que ama profundamente a
sua própria espécie, sem nada pedir em troca.
É notório o desprendimento com que o Sr
Santos-Dumont legou todos os seus inventos
ao domínio público. Foram humanistas como
ele que deram à humanidade obras de arte
como as Nove Sinfonias, a Divina Comédia,
os Lusíadas, Hamlet, a Ilíada e a Odisséia! E
ao conhecimento, as Proporções Áureas, as
teorias da gravitação universal, as leis
matemáticas e filosóficas da Natureza, os
postulados e os teoremas da Ciência, e as
revolucionárias invenções da nossa época.
Devemos muito a eles, senhoras e senhores,
e posso, com certeza, incluir, entre os
grandes, o nome de Santos-Dumont.
Sentimos a sua ausência em nossa casa e
devemos-lhe uma homenagem. A casa
Conteneau e Leliévre, por iniciativa do
escultor George Colin, renomado artista de
Paris, construiu-nos este belo monumento
dedicado ao Sr Santos- Dumont (exibe a
maquete) que comemora os seus
inesquecíveis vôos de 1901 e 1906. A
municipalidade de Paris consentiu-nos erigilo na Praça em frente aos portões do
AeroClube, em St Cloud, que também
receberá o nome do nosso ilustre
companheiro e colega. Em 23 de outubro
próximo estaremos inaugurando- a
solenemente. Todos estão convidados. Muito
obrigado. (demorados aplausos)
124
PARTE 2
SANTOS DUMONT/O FILME
SEQUÊNCIA 81 (O Monumento)
Corte para a inauguração do monumento de
St Cloud (foto), com Archdeacon descerrando
o pano de cobertura, ao lado de SD e
Deutsch, em meio à uma grande multidão
encartolada. Aida D’Acosta entrega-lhe um
buquê de flores e beija-o no rosto, sob os
aplausos gerais.
Corte para SD dirigindo sua Mercedes, saindo
da solenidade encerrada, com Georges ao
seu lado. Durante a sequência, percorrem as
ruas de Paris.
SD
- Estou feliz, foi uma homenagem muito
sincera. Sinto a sensação satisfeita de ter
cumprido minha missão.
GEORGES
- Está realmente decidido a abandonar,
Alberto? É definitivo?
SD
- Minhas forças esvaem-se, Georges. Parece
uma certa doença que ataca pessoas como
eu...
GEORGES
- O que pretende fazer da sua oficina?
SD
- Ia doá-la ao liceu de artes e ofícios. Mas a
pressão dos últimos acontecimentos tem
abalado a minha crença nos homens e na
sociedade. Um forte niilismo se apodera da
minha pessoa, Georges.
GEORGES
- Tenho de admitir que não nos faltam razões,
Alberto. No meu desfecho no "Le Temps"
senti um desprezo tal pela Humanidade, que
alcançou até o seu Criador.
SD
- O punho de ferro alemão, a prepotência
anglo-americana, a pusilanimidade francesa
e o domínio da estupidez sobre a inteligência,
agravam o quadro. Com a aprovação da lei
de emergência, institui-se a lei das selvas.
Minha oficina pode ser invadida a qualquer
momento. Sou ao mesmo tempo, em França,
homenageado por homens de bem e acusado
de espionagem por pseudo-nacionalistas.
Não sei que atitude tomar, Georges.
GEORGES
- Como? Espionagem?
SD
- Exato! A suspeita de que eu posso ser um
espião alemão é a base da justificativa que a
polícia e o exército francês utilizam para
aplicar a nova lei sobre mim e conseguir a
per missão legal para invadir minha
Ícaro vingado: a inauguração do monumento a Santos-Dumont em St. Cloud.
125
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SD
- Ainda não sei, Georges. Por enquanto,
pretendo descansar um pouco. (pára o
automóvel em frente ao L’Illustration;
Georges desce)
propriedade.
GEORGES
- Ora essa! Só mesmo a cabeça desses
pascácios! Mas, nós sabemos o que eles
querem mesmo.
GEORGES
- Alberto, apenas uma pergunta: quem o
mandou... ou, melhor, como teve a idéia de
construir aeronaves?
SD
- Crêem que escondo o mais importante e
revelo apenas o menos importante. Talvez
fosse o que fariam em meu lugar.
SD
- Acredito em meus sonhos! (e arranca)
GEORGES
- Conseguirão a ordem judicial?
SD
- Sim, vão consegui-la.
GEORGES
- E o que vai fazer?
FIM DA SEGUNDA PARTE
126
PARTE 3
IMPRIMA-SE A LENDA
(EPÍLOGO)
*20.7.1873
†23.7.1932
PARTE 3
SEQUÊNCIA 82
SD almoça com August, François e Pierre na
mesa da cozinha. Clima de última ceia, todos
entristecidos, quase não falam.
SD (ao terminar de comer)
- Tive grande felicidade em tê-los como
companheiros nessa jornada. Não tenho
palavras para expressar minha gratidão.
François, Pierre, terminadas as tarefas de hoje
estão dispensados. August fica, como
combinado. (François e Pierre quase não
conseguem conter as lágrimas; August, apesar
de profundamente entristecido, não perde a
fleuma de mordomo) - Estarei na Oficina,
August, e lá ficarei o dia todo. Está tudo
pronto?
AUGUST
- Sim, senhor, tudo arrumado. O Senhor crê
mesmo que eles virão hoje?
SD
- Tudo indica que sim, August. (levantam-se
todos, SD aperta a mão, dá um abraço em
cada um e sai)
SEQUÊNCIA 83 (Mephisto)
SD está só na oficina secreta, quase às escuras.
Apenas a luz do abajur da biblioteca acesa.
Vai até o bar, abre uma portinhola,
escamoteada com segredo na pequena adega,
e retira de lá uma garrafa de absinto. Servese num cálice de cristal e bebe-o de um só
gole. Depois enche o cálice novamente,
coloca-o sobre a mesa, ao lado do abajur, e
pega o livro que ali está; o “Fausto”, de
Goethe. Em seguida, recosta-se no divã e
começa a ler, abrindo numa página já
marcada, com um marcador de marfim.
Súbito, ouve um ruído no interior da oficina.
Sobressalta-se, senta-se no divã e devolve o
livro ao lugar onde estava, observando
atentamente o interior da oficina em
penumbra. A barquilha movia-se.
SD
- Quem está aí?
Ouve-se um risinho cínico e, saindo da
penumbra, percebe-se a barquilha
aproximando-se da Biblioteca, vinda do alto,
em “vôo descendente”. Pilotando-a, com a
mesma mestria do inventor, estava um
homem alto, forte, de barbicha, rosto ovalado
e lustrosa calva, elegantemente trajado e com
uma grande capa negra, forrada por dentro
de veludo carmin.
SD (assustado)
- Quem está aí; quem é Você?!
A barquilha pousa suavemente sobre o belo
e enorme tapete persa, como se o piloto fosse
o próprio SD, e a figura imponente de
Mephisto sai jeitosa e equilibradamente de
dentro da barquilha, sem qualquer
dificuldade.
MEPHISTO (com sua voz gutural e o seu
sorriso cínico, característico)
- Viu como eu também sei? Aqui estou para...
SD (irritado)
- Em primeiro lugar quero saber quem
invadiu minha oficina de trabalho?
MEPHISTO (sem perder a pose)
- Ora, Alberto - permita-me chamá-lo assim?
- vim tratar dos nossos negócios...
SD
- Negócios?! (e, esfregando-se) - Como está
frio aqui! - Negócios? - E por quem vos tomaria
eu?
MEPHISTO
- Uê?! Como posso saber? Mas não ignoras
quem sou, ora essa! Não tentes obstinar-te
em fingir que não esperas minha visita por
agora... Não queres pegar um agasalho?
SD (levantando-se, pegando um capote no
cabide e vestindo-o)
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
- Diabos! O que está acontecendo aqui?
(olhou o grande termômetro marcando 17
graus) - Que tipo de negócios haveria eu de
tratar convosco, que nem conheço?
imenso balão de hidrogênio, sem proteção
algo mais eficiente do que teus cálculos
científicos? Já esqueceste de Augusto Severo?
SD
- Severo foi imprudente; eu mesmo tentei
avisar-lhe...
MEPHISTO
- Ora, meu caro Alberto, já se passaram os 24
anos do nosso trato! Nesse período, ambos
cumprimos nossas partes rigorosamente.
Chegou a hora do desfecho.
MEPHISTO
- E tu não foste imprudente?! Essa é boa,
meu caro Alberto! Não tens idéia do trabalho
que nos deste, desde o teu primeiro vôo
naquele balãozinho petulante. Tua audácia
ultrapassou todos os limites!
SD
- Vinte e quatro anos? Refere-te àquele
pesadelo que tive em Ribeirão Preto? Mas eu
tinha apenas doze anos...
SD
- Ora essa! Sem audácia e ousadia, não
haveria como fazer o que fiz!
MEPHISTO
- Não costumamos observar exigências etárias
em nosso negócios, Alberto. A nós importa
os tratos com aqueles que sabem exatamente
o que querem. E tu eras um deles já naquela
época. Até pilotavas, com perfeição, as
locomotivas da fazenda do teu pai...
MEPHISTO
- Certamente! Mas também não precisávamos
ir tão longe! O teu Número 1, o Número 5,
os vôos em meio às sabotagens - nós mesmos,
na Inglaterra e nos Estados Unidos, tivemos
de sabotar o Número 7 em terra, para que
não o fizessem em vôo. O episódio de
Mônaco... E o 14 Bis; aquele mastodonte
aéreo em forma de pipa? Tive de entrar em ti
pela boca daquela bailarina, lembras-te? (a
fala fica em off enquanto repete-se a cena
do beijo demoníaco da bailarina, antes de
SD entrar no 14 Bis para a glória) - Somente
nós dois, juntos, pilotando, conseguiríamos
fazer aquilo voar! Mais ninguém, meu caro
Alberto; e não foi fácil, recordas-te?
SD
- Ah, falas de Vós no plural, não é? Sois uma
legião. Naquele sonho, ou pesadelo, foi outro
que me apareceu. Um europeu típico, com
uma longa barba branca e faces coradas.
Cheguei a pensar que era o próprio Papai
Noel!
MEPHISTO
- A nossa forma é apenas uma projeção
subconsciente dos nossos parceiros, Alberto.
Daquela feita, tu precisavas de alguém mais
bonachão e paternal. Hoje requeres algo entre
o teu pai e o Dr Langley. Cá estamos...
SD
- Foram todos projetos bons e necessários. E
cumpriram seus objetivos.
SD
- Nunca fiz pacto algum com Vocês. Nada
devo aos senhores; tentam aproveitar-se da
ingenuidade de uma criança...
MEPHISTO
- Ah, sim! Claro! Não fazemos tratos com
medíocres ou pusilânimes. Sempre demos
preferência a espíritos inquietos como o teu;
destemerosos, desbravadores e visionários.
MEPHISTO
- Se insistes em tratar-me no plural, que seja.
Mas não venhas com bobagens, tentando
esquivar-te. Pensas mesmo que poderias sair
voando por cima de Paris, e até por entre
suas ruas e boulevards, pendurado num
SD
- Qualquer que tenha sido o trato com Vocês
eu não corroborei. A própria tentação das
patentes...
130
PARTE 3
SANTOS DUMONT/O FILME
MEPHISTO
- Patentes? Ora, Alberto, essas banalidades
não entram em nossos negócios. Pareces um
tanto esquecido, meu caro! Absinto em
excesso costuma prejudicar a memória! Devo
refrescá-la. Tu querias dar asas ao Homem,
ou antes, querias os segredos das máquinas
de voar e dá-los aos homens. Deixamos claro
que não seria fácil. Outros, no passado, não
o conseguiram nem com a nossa ajuda. Mas
prometemos-te tentar. E, se conseguíssemos,
pedimos-te, em troca, que não amasses a
ninguém e, após o prazo, entregasse-nos a
tua alma. 24 anos, aliás, vencidos há pouco
mais de três meses...
MEPHISTO
- Charlatanice? Aquele espírita que a recebeu
pode ser tudo, menos um charlatão. E não
se comprovaram suas previsões? Tu não
duvidas disso, meu caro Alberto. Mas naquela
época achaste mais seguro confiar em nós.
Por isso aceitaste o pacto.
SD (perdendo a fleuma)
- Caluniadores! Não tenho comércio com os
senhores. Não vos convidei; retirem-se!
MEPHISTO (dá uma poderosa gargalhada)
- Ora, Alberto, o que quiseres fazer, faças!
Mas nada conseguirás. Custas e sofrimentos?!
Sim, é verdade; foste tu. Fizeste quase tudo.
Mas o sofrimento foi por tua opção. Foste o
mais festejado dos mortais deste início de
Século, meu caro. O mundo todo esteve
literalmente aos teus pés! Não te faltou
talento, não o negamos. Mas não te
preocupes. Nossos métodos não são
violentos, como dizem as lendas. Tu mesmo
saberás como encontrar-nos na hora em que
te convenceres disso. Mas, de agora em diante
e até lá, tu não farás mais coisa alguma, serás
um pária da sociedade, trarás má sorte às
pessoas em tua volta e, aí sim, conhecerás,
finalmente, aquilo que chamas sofrimento!
MEPHISTO
- Vejam só! Estás fazendo progressos!
Esquentas-te. Abandonas enfim a cortesia e
a esquiva. (e, aproximando-se do rosto de
SD, olho a olho) - Lembraste, não é?
SD
- Eu era apenas um garoto sonhador. Vocês
iludiram-me e agora tentam aproveitar-se
disso. Não passam de escroques sórdidos; eu...
MEPHISTO
- Acalma-te, Alberto. Não te esqueças de que
tivemos a honestidade de avisá-lo
previamente de tudo. Dos antecedentes e das
conseqüências. Sempre negociamos
corretamente. A outra parte é que tenta
trapacear. Deixamos claro que eras um
escolhido. Até fornecemos-te um recorte do
jornal “Reformador”, publicado em 1º de
agosto de 1883, e que trazia uma mensagem
profética a teu respeito, recebida quando
ainda tinhas três anos! Ainda o guardas
naquelas pastas de recortes, eu sei. Queres
que eu o localize?
SD
- Aquela notícia pode ser uma charlatanice,
e não diz que seria a minha pessoa que...
SD
- Recuso-me em reconhecê-lo. O que fiz foi
às minhas próprias custas e sofrimentos. Nada
devo a ninguém. E para que fique claro,
decido agora contrariá-los: vou retornar à
aeronáutica e às minhas invenções. Mesmo
com as poucas forças que me restam...
SD (furioso)
- Vossas maldições não me atingirão,
canalhas!
MEPHISTO
- Ora, ora... estás perdendo a fleuma?! Não
se tratam de maldições, é a dura realidade!
Nossa proteção sobre tua pessoa encerrouse; tua alma já é nossa! E tempo é o que
nunca nos faltou para aguardar-te. Por isso
não te chateies. Não és um cristãozinho
qualquer, e não mereces o tédio que te seria
o paraíso cristão. Estarás entre os grandes da
nossa imensa galeria. Terás, ao teu lado,
almas como a tua; muitas delas daqueles que
assinam as obras que tu conservas com tanto
131
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
desvelo nessa requintada biblioteca. E não
há nada que possas fazer para impedi-lo.
Portanto, meu caro Alberto, aguardo-te;
quando quiseres! (e desaparece)
Cai sentado, exausto, no divã. Olha para a
taça vazia sobre a mesa e para a barquilha
sobre o tapete. Começa a chorar.
- Um momento, cavalheiros, o Sr SantosDumont não se encontra. Não deve tardar. O
mandato diz que não é necessária a sua
presença, que podem arrombar cofres e
paredes, etc. Mas nada disso será preciso, não
é? Somos pessoas educadas, civilizadas. O Sr
Santos-Dumont não é um espião, todos
sabemos. Não desejariam entrar e aguardar
um pouco enquanto tento localizá-lo por
telefone? Os cavalheiros hão de convir que
não eram esperados...
SEQUÊNCIA 84
O COMANDANTE DO DISTRITO
- Não devíamos prender logo esse alemão?...
SD (gritando para o nada)
- Vocês não podem!... Vocês não podem....
Noite estrelada em Paris. SD está no seu
observatório astronômico, no alto da cúpula
aberta, observando a sua constelação de
Câncer, sobre a qual o planeta Saturno se
posiciona naquele dia. Seu rosto está lívido,
suas feições entristecidas. Toca o interfone.
FERBER
- Ele não é alemão; é austríaco.
O COMANDANTE DO DISTRITO
- É a mesma coisa...
RENARD
- Comandante, apesar de estar cumprindo
atribuições legais e judiciárias, está ciente de
que está sob o comando do Serviço Secreto?
AUGUST (in)
- Chegaram, Senhor.
SD (in, calmamente)
- Faça como combinamos, August. E... August,
foi bom tê-lo junto.
O COMANDANTE DO DISTRITO
- Sim, senhor.
AUGUST (quase chorando, sob os sons
insistentes da campainha)
- O mesmo digo eu, senhor. Vá tranqüilo.
Não o esqueceremos. Somos orgulhosos de
tê-lo tido como patrão. Desligo agora, devo
atendê-los. (desliga)
RENARD
- Então peço-lhe que limite-se a fazer o que
tem de fazer, e obedecer minhas ordens.
August vai até a porta enxugando os olhos e
abre-a. Lá estão o Cap. Ferber, o Coronel
Renard e o Comandante do Distrito da
Gendarmeria, que entrega-lhe um papel da
justiça. August recebe o papel, coloca
demoradamente os óculos de leitura e começa
enfim a ler.
FERBER (já entrando prepotentemente)
- Quinze minutos, no máximo, August. Sirvanos um café, para começar. E para os nossos
homens. Somos onze ao todo.
O COMANDANTE DO DISTRITO
- Sim, senhor.
AUGUST (trêmulo)
- Pois não, Senhor. Mas hoje é dia de folga
dos criados. Terei eu mesmo de preparar o
café.
RENARD
- Temos pressa, senhor. Por favor, o Sr SantosDumont está?
RENARD
- Aos diabos, com o café, August. Localize
Santos-Dumont. Se achá-lo quero falar
pessoalmente. E não esperaremos quinze
AUGUST (ainda lendo o mandato e pedindo,
com a mão, que o aguardem acabar)
132
PARTE 3
minutos. Cinco, é o que Você tem.
Aguardamos aqui no hall. Vá.
August, um pouco afobado, tenta pegar-lhe
as capas e os chapéus mas Renard não dá
tréguas.
RENARD
- Nós nos arranjamos, August, encontre-o.
August faz uma reverência e sai.
SEQUÊNCIA 85
SD já no piso da oficina aciona o comando
de fechamento da cúpula e, em seguida, uma
série de chaves elétricas e alavancas. Depois,
acesas apenas as luzes de serviço, vai até um
dos bonecos de borracha, tira-lhe o colete
que vestia, pega uma bomba de encher pneu
de bicicleta e vai para as grandes portas de
correr que dão para o pátio. Aciona a
alavanca de abertura apenas o suficiente para
que abram um pouco mais de um metro e
retorna-a para a posição de fechar. Enquanto
elas se fecham, ele escapa para o pátio. A
câmera fica na oficina e vê as portas
fecharem-se e com isso acender
automaticamente um grande holofote
vermelho com foco direcionado para a porta
que dá para o apartamento.
Corte para SD no pátio, falando com as mãos
com o Sr Louis. SD sobe para o alto da
carroceria do carroção e o Sr Louis a dirige
para que encoste perto do muro do pátio
que dá para a servidão do interior da quadra.
SD salta para o muro e pula para o outro
lado. A câmera, em grua alta, vê o carroção
saindo para a rua enquanto SD caminha pela
servidão em direção aos fundos do
apartamento de Pedro.
Corte para o carroção do Sr Louis sendo
revistado por gendarmes na rua Washington,
perto do portão.
Corte para SD no interior do apartamento de
Pedro Guimarães inflando o colete com a
SANTOS DUMONT/O FILME
bomba de bicicleta e vestindo-o, cheio. Em
seguida, abre o armário de Pedro e
experimenta roupas do amigo, baixinho
como ele, mas gordo.
Corte para o Cel Renard, o Cap Ferber e os
seus homens impacientes no hall do
apartamento de SD. O Cel Renard abre a porta
da sala de jantar e vê August, afobado, no
telefone colocado improvisadamente num
caixote, e os móveis cobertos com pano.
RENARD
- Seu tempo esgotou-se, August. Vamos
entrar. Parece que estamos de mudanças,
hein? Ferber, creio que chegamos bem na
hora!
O COMANDANTE DO DISTRITO
- Sabia que o alemão estava escondendo
algo...
FERBER
- Não é alemão; é...
AUGUST (ainda ao telefone)
- Não consigo encontrá-lo, senhor.
RENARD (já abrindo a outra porta)
- Penso que não o encontrará mais, August.
Vamos, pessoal.
Chegam todos pelo largo corredor até a
bailarina de Degas. Renard mexe-a e a
portinhola abre-se.
RENARD (berrando para August que vinha
atrás dos outros)
- Você não sabe o segredo, não é August?
AUGUST
- Não, senhor. Somente o patrão o conhece.
RENARD (apontando para o especialista em
cofres)
- Dê uma olhada.
O rapaz chega-se até a portinhola e observa
o mecanismo com atenção.
133
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
O ESPECIALISTA
- É dos mais sofisticados, senhor.
O GENDARME (liberando o cocheiro e
fazendo sinal para a barreira)
- Pode passar!
RENARD
- Quanto tempo?
Corte para o especialista terminando seu
trabalho, com os oficiais aflitos em volta.
August vê tudo à distância, do outro lado do
corredor.
O ESPECIALISTA
- Entre dez a doze minutos, se tivermos sorte.
RENARD
- Comece. (e, para o Comandante da
gendarmeria) - Está tudo cercado?
O ESPECIALISTA
- Consegui! Posso acionar o mecanismo?
RENARD (para Ferber)
- Avise ao General. Vamos entrar. (e, para o
especialista) - Acione!
O COMANDANTE
- Sim, senhor. Todo o quarteirão está
policiado. Ninguém entra ou sai sem ser
identificado.
SEQUÊNCIA 86
O especialista começa o seu trabalho,
colocando ao ouvido um auscultador de
médico e aplicando a outra ponta ao
mecanismo, girando-o lentamente. Pede
silêncio a todos.
Ao acionar a alavanca, o fundo do corredor
começa a abrir-se lentamente, deixando
passar uma forte luz vermelha que cega a
todos.
Corte para SD saindo do prédio de Pedro,
com as roupas, o chapéu e o “corpo” de
Pedro, e com o rosto enfaixado e engordado,
como se estivesse com dor de dente. O
próprio porteiro o cumprimenta como se
fosse Pedro. Ligeiro, SD entra numa cupê
que já o aguardava na porta. O cocheiro
arranca e pára logo em seguida numa barreira
de gendarmes. Um deles aproxima-se da
janela da cupê, trazendo uma lanterna na
mão.
Corte para o detalhe interior da porta
acionando um mecanismo de disparo, ao
encostar no batente.
Ao ser disparado, corte para um fonógrafo
de rolo sendo acionado automaticamente, no
observatório, perto da cúpula.
Corte para a câmera no piso da oficina com
várias luzes vermelhas piscando e uma
campainha tocando insistentemente em alto
volume, e mostrando o Cel Renard e seus
homens entrando na oficina com as mãos
sobre os olhos, para protegê-los do foco de
luz vermelha do holofote. Ouve-se uma voz
metálica, emitida por vários alto-falantes.
O GENDARME
- Documentos, senhor.
SD entrega os documentos de Pedro. O
gendarme aproxima a lanterna dos
documentos e depois chega-a para perto do
rosto de SD, tentando comparar o retrato.
A VOZ
- Atenção! Atenção! Mecanismo de
autodestruição acionado! Invasores devem
retirar-se imediatamente para desativação do
sistema. (repete, e continua) - Trinta segundos
para a autodestruição... 29 segundos...
(campainhas e sirenes começam a tocar
ensurdecedora e intermitentemente)
O GENDARME
- Está com dor de dentes, senhor?
SD (falando como se não pudesse encostar
os dentes)
- Sim, tenho de correr ao dentista.
134
PARTE 3
O Cel Renard percebe o mecanismo
disparador no batente da porta de entrada e
dá um sinal para um de seus homens para
que pegue rápido uma picareta que viu de
relance na ferramentaria. Renard, enquanto
isso, tenta observar a oficina, em meio às
luzes piscando, e faz uma exclamação de
deslumbramento. O homem chega com a
picareta. A voz continua: 23 segundos... 22
segundos...
RENARD (apontado um lugar na parede)
- Quebre aqui!
O homem mete a picareta na parede. Quando
a voz diz “20 segundos...”, uma série de
pequenos relâmpagos e coriscos elétricos
começa a percorrer assustadoramente toda a
extensão das estruturas, trilhos, e tubulações
metálicas da oficina. Os homens ficam
desnorteados dentro da oficina,
amedrontados, sem saber o que fazer. O
homem da picareta paralisa-se assustado. A
voz continua: 17 segundos... 16 segundos...
15 segundos... Renard, o único que não perde
a calma, ordena.
RENARD
- Quebre aí, para desativar o sistema. (o
homem vacila, ele reforça) - Quebre!
O homem mete outra vez a picareta na parede
e ela enterra-se fundo, encostando num cano
de condução de eletricidade. Imediatamente,
um raio, como se saísse de dentro da parede
pela sua picareta, fulmina-o e ele cai
desmaiado no chão.
13 segundos... 12 segundos...
RENARD (para os outros)
- Peguem-no, depressa, levem-no para fora!
Ao dar 10 segundos, as bocas da tubulação
de ar temperaturizado começam a expelir
uma grossa fumaça roxa, em grandes e
densos vômitos, que vai tomando todo o
ambiente rapidamente, criando uma
alucinada atmosfera de luzes piscando,
coriscos faiscando, campainhas tocando e
SANTOS DUMONT/O FILME
sirenes azucrinando e desorientando todos
os homens. E a voz continua: 7 segundos... 6
segundos...
FERBER (da porta)
- Vamos sair daqui! Vou fechar a porta!
Todos
correm
para
a
porta
atabalhoadamente,
trombando-se,
engarrafando-se nela, carregando o corpo
desacordado do homem fulminado. Renard
é o último deles e vai saindo calmamente,
tentando ainda observar a oficina,
deslumbrado.
FERBER
- Fechando a porta! Fechando a porta!
4 segundos... 3 segundos...
Renard passa pela porta já fechando-se quase
que totalmente.
2 segundos... 1 segundo... Súbito, pequenas
cargas de dinamite estrategicamente dispostas
ao longo das paredes e locais chaves da
oficina começam a disparar em ritmo
programado, uma a uma. A porta fecha-se,
cortando a poeira e a fumaça das explosões.
A câmera permanece lá dentro, focalizando
detalhes das explosões, numa sequência
vertiginosa de pedaços de bonecos,
aeronaves, máquinas, tecidos, rolos de filmes,
ferramentas, livros preciosos, móveis, produtos
químicos, tudo voando pelos ares,
estilhaçando-se em pedaços incandescentes.
Começam a ruir tubulões e pedaços das
estruturas em chamas, fumaça negra
misturando-se à fumaça roxa. O grande
termômetro de um dos pilares centrais mostra
a temperatura elevando-se rapidamente,
ultrapassando os 80 graus centígrados. Em
seguida explode.
Corte para uma vista externa, em grua alta,
com o galpão em primeiro plano e Paris
noturna ao fundo. A cúpula de vidro da
oficina explode violentamente e começa a
deixar passar um grosso e espesso rolo de
fumaça negra subindo em direção ao céu
135
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
estrelado. A câmera vai afastando-se,
mostrando, na rua, carros de bombeiros
aproximando-se em meio ao grande tumulto
e movimentação de guardas, militares e
curiosos.
impermeável e segurando o chapéu, ele
parece querer desafiar a fúria dos ventos, da
chuva torrencial, e dos relâmpagos insistentes
e poderosos. Seu rosto impassível recebe
rajadas de vento e de água sem mexer um
músculo.
SEQUÊNCIA 86
Corte para SD passeando tranqüilamente nos
jardins do Palácio Imperial em Petrópolis.
Lindo dia, de luz solar fulgurante da serra.
Um pequeno monoplano passa voando,
cortando o céu azul.
Nessa sequência, as imagens ocorrem junto
com as vozes em off, de Georges, em Paris,
correspondendo-se por cartas, com sua irmã
freira, no Convento em Petrópolis. Duas
diferentes
narrativas,
editadas
simultaneamente, uma nas imagens a outra
em áudio, aqui dispostas alternadamente,
primeiro o áudio e, em seguida, as imagens
correspondentes.
Manchetes de jornais brasileiros:
“ÁUSTRIA DECLARA GUERRA A SÉRVIA”
“ALEMANHA DÁ ULTIMATUM”
VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)
“Querido irmão. Já aprendi a perdoar heresias
e compreender os homens e seus desatinos.
Você sempre terá a minha bênção e o que
ela lhe valer. Pode abrir-se comigo quando
desejar; sei que enfrenta terríveis dificuldades
e rezo muito por Você. Não perca a sua fé. O
Sr Santos-Dumont veio visitar-nos ao
Convento. Foi um alvoroço! Todas as irmãs
queriam vê-lo, conhecê-lo, pois ele é o mais
famoso dos brasileiros. Foi muito gentil e
cavalheiro com todas nós e, especialmente
comigo, dando-me uma atenção especial e
particular. Pude sentir de perto os seus
sofrimentos: como é atormentada a sua alma!
Um pandemônio de paixões!”
VOZ DE GEORGES (em off)
- “Querida mana, a destruição da oficina de
Santos-Dumont com todos os seus arquivos
foi um segundo golpe na minha infeliz
existência. A imprensa abafou o caso e o
Governo Francês chegou até a pedir
desculpas formais a Alberto. Porém, muito
tarde. A loucura e a alucinação já tomavam
conta do meu grande amigo. Longo tempo
ainda tenho de aguardar para reencontrarme com os meus próprios arquivos, se é que
um dia os reencontrarei. A Europa preparase para uma guerra cruel. Aleijados mentais
dominam poderes bélicos de grande
capacidade de destruição e não resistem ao
desejo de utilizá-los sobre nossas cabeças.
Escrevo-lhe para pedir sua bênção, porque
todos esses fatos fazem aumentar o meu
desprezo
pela
humanidade ao
ponto de atingir o
seu
próprio
Criador.”
SD está a bordo do
Lutéce, que enfrenta
uma
furiosa
tempestade em alto
mar. Sozinho no
convés deserto,
vestindo
um
SD sobe a escadinha da “Encantada”,
construída de tal forma que só se pode subila começando-se com o pé direito. Pedreiros
dão os últimos
retoques na parte
externa da pequena
casa. SD observa e
comenta detalhes.
Um barulhento
biplano passa em
baixa altura sobre o
telhado.
A "Encantada": "construida de tal forma que só se pode subí-la
começando-se com o pé direito."
136
É
noite
na
“Encantada”. Na
pouca luz de um
PARTE 3
abajur, o atormentado SD tenta escrever.
Rascunha alguma coisa, lê-a, e, nervoso,
amarrota o papel e joga-o na cesta.
Outra manchete de jornais brasileiros:
“8 DE AGOSTO: ALEMANHA DECLARA
GUERRA À FRANÇA E INVADE A BÉLGICA”
SANTOS DUMONT/O FILME
preparando um café com leite à sua maneira:
mistura uma certa quantidade de pó ao leite
quase fervendo. Espera ferver e passa o
conteúdo coando-o direto para uma xícara
grande. Bebe-o devagar. Ao dar um gole
percebe uma sombra do lado de fora de uma
das janelas. Vê o vulto de Mephisto, vai até a
porta e abre-a. Aos seus pés, a luz da manhã
bate sobre o jornal do dia com a manchete:
VOZ DE GEORGES (em off)
“Querida irmã. Sei que entende de almas mais
do que eu. Quando me fala das paixões da “KAISER MANDA AVIÕES BOMBARDEAR
alma de Alberto, creio que refere-se às ESCOLAS E HOSPITAIS: 2OO MORTOS!”
paixões latentes,
n u n c a
SD estarrecido lê
exteriorizadas. Pois
a
manchete.
a aeronáutica foi a
Embola o jornal e
sua
única
e
faz uma fogueira
tirânica paixão!
com ele na porta
Nunca amou nada
da “Encantada”.
ou ninguém além
Os passantes dãoda aeronáutica e
no como doido,
seus modelos, por
através de gestos
A casa de Cabangu, Minas Gerais, onde nasceu SD.
ele
mesmo
com o dedo ao
inventados e construídos. Não mais o vi desde ouvido. A câmera aproxima-se do fogo até
que se foi. Mas sei que o Alberto que Você que as labaredas tomem conta do quadro.
conheceu é um morto-vivo! Não existe Ao afastar-se novamente mostra as labaredas
Alberto Santos-Dumont sem o seu próximo de uma fogueira frente ao rosto de SD, numa
projeto “número tal”! Não é possível sequer animada festa junina, em Cabangu, onde
imaginá-lo sem os impulsos dessa energia todos dançam, cantam e brincam, menos ele.
criadora ininterrupta. Sua vida foi como a de Por trás do fogo, o sombrio semblante de SD
uma flecha disparada ao alvo por um é o único infeliz da festa de São João, com
poderoso Maciste. E o acertou em cheio. Ao muitos balões acesos subindo aos céus.
fazê-lo, abriu as portas à humanidade para o
vôo mecânico. E ninguém mais quer saber VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)
da flecha, imóvel, inútil e desgastada, após “Irmão querido. Seu ceticismo é fruto das
ter cumprido o seu papel.”
grandes adversidades que está passando
agora; não culpe o passado. Recebi cartas de
SD arruma bagagens na
papai e todos em casa estão
“Encantada”.
empenhados em ajudá-lo
nessa crise terrível. ContarCorte para SD em Cabangu,
lhe-ei, por isso, um segredo,
passeando a cavalo pelos
que talvez o alivie um pouco.
lindos grotões das gerais,
Quando o Sr Santos-Dumont
num belíssimo dia. Um
esteve no Convento, deixou
pequeno bimotor, muito
com a Madre Superiora, dois
barulhento, sobrevoa a
envelopes. Um com uma
região.
expressiva quantia em
dinheiro brasileiro, como
SD de novo na “Encantada”,
donativo ao Convento, e
"...
passeando
a
cavalo
pelos
grotões..."
atormentado, nervoso,
outro, aromatizado em
137
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
almíscar, para mim, contendo um cheque de
50 000 francos de um Banco Suíço e um
bilhete pedindo-me para enviá-lo a Você, pois
sabia que atravessava dificuldades
financeiras. Pedia-me também que nada lhe
dissesse. Enviei o dinheiro para papai,
rogando-lhe que também lhe ajudasse. Você
sabe, a situação tem sido difícil em nossa
casa paterna. E, como vê, o Sr Santos-Dumont
não é apenas uma flecha morta. Seu coração
é sensível, e, apesar de dolorido, está vivo e
pulsando por Você, por nós e pela fé.”
ÁUSTRIA RENDEM-SE AOS ALIADOS”
“CONFERÊNCIA
DE
VERSAILLES
ESTABELECE CONDIÇÕES DE ARMISTÍCIO”
SD, sempre solitário, auxiliado apenas por
uma mucama, organiza uma grande bagagem
para viagem.
Corte para dentro do trem, na baixada
fluminense, indo para o Rio. Sentado, ele
observa uma esquadrilha de biplanos
exercitando-se sobre o Campo dos Afonsos.
Seu rosto parece de pedra.
Imagens da Primeira Grande Guerra. Ataques
aéreos furiosos de biplanos com bombas e
metralhadoras cuspindo fogo sobre vilas e
lugarejos. Bombas espatifam frágeis telhados
de cerâmica, e arruínam estábulos e
construções de madeira. Rostos de pilotos com
óculos e capacetes de couro. Superposição
com máscaras de gases. Canhões antiaéreos
acoplados em vagões de trens. Esquadrilhas
aéreas em vôo.
VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)
“Mano. Nada disse ao Sr Santos-Dumont e
Você precisa convencer-se de que ele é o
seu maior e mais leal amigo. É preciso
também que pare com suas lamúrias e
enfrente a vida de cabeça erguida. Você não
é um tolo nem um pusilânime. Todos temos
orgulho de Você em nossa casa, e ninguém
se queixa dos sofrimentos que estamos
passando, nem o culpamos por eles. Sabemos
que Você é uma vítima desses acontecimentos
e da crueldade humana, que tem boa índole
e, como bons cristãos, o amamos, rezamos
por Você e o ajudamos com tudo o que
possuímos, sem lamentar.”
SD, na solidão da noite, na “Encantada”, chora
copiosamente.
VOZ DE GEORGES (em off)
“Querida mana. Minha vida é toda uma
sequência de desastres. E o maior deles é a
situação em que coloquei nossa família com
minhas trapalhadas. Tudo parece cair sobre
minha cabeça como um terrível castigo, sem
deixar-me opções. Não sou talhado para a
guerra. Não possuo talento para sangrar
homens e estripá-los em batalhas. Sei apenas
usar o pincel e a pena. Não devia ter-me dito
sobre a ajuda de Alberto. Meu orgulho agora
impede-me de escrevê-lo. Nunca havia
mencionado a ele minhas dificuldades, e
ainda não sei como ele o soube; espero que
não tenha sido Você, querida irmã, na sua
boa fé e ingenuidade cristã. Sei que nosso
pai assumiu a ajuda como dívida e que ela
foi a salvação de um tenebroso impasse. Mas
isso ainda não basta para o orgulho com que
fui criado desde a infância.”
SD no convés do moderno “La Bohéme”,
num belo dia, aproximando-se da Ilha da
Madeira. Um hidroavião sobrevoa o navio e
pousa perto do cais.
Sequência de um passeio solitário de SD pelo
mundo: Egito, Grécia, Arábia, Itália, nos
clássicos cartões postais. Sempre, um ou mais
aviões interferem nos “cartões postais” em
movimento.
VOZ DE GEORGES (em off)
“Querida irmã. Enfim acabou-se a maldita
guerra. A Europa hoje é um mar de aleijados
e mutilados. Músicos sem braços, escritores
sem mãos, pintores sem olhos, atores sem
pernas, cantores sem voz, e mais restos
humanos arrasados e espalhados por todos
os cantos. Mas o pior é que o aleijado mental
ainda sobrevive e permanece impune depois
Manchetes de jornais brasileiros:
“2 DE NOVEMBRO DE 1917: ALEMANHA E
138
PARTE 3
SANTOS DUMONT/O FILME
da catástrofe que provocou. A saída que vejo
para a Humanidade é a experiência de Lenin,
na Rússia Soviética, mas não creio que possa
durar muito tempo. Aleijados mentais
proliferam-se por todas as partes e também
lá já devem estar realizando o seu trabalho
de destruição. Só não sou ainda um
comunista porque não consigo ser ateu.
Confesso-lhe que tentei, mana, e perdoe-me
o desabafo. Sinto a falta de Alberto mas não
concordo com Você quando diz que ele é o
meu maior amigo. Ele é o meu único amigo!
Peço-lhe que procure notícias dele, passelhe o meu novo endereço e as minhas
lembranças. Diga-lhe que tenho saudades.”
idade, abre a porta. Por trás dela, uma bruaca
imunda, de uns quarenta, surge, segurando
na mão uma coxa de pato, mastigando-a com
a boca aberta.
SD chega em Paris e vai de táxi até o seu
velho endereço no Champs Elysées. Desce
do automóvel e começa a refazer a pé, o
percurso que gostava de fazer nos bons
tempos. A Paris outonal está linda, mas as
pessoas estão feias e pobres. Mutilados de
guerra, em muletas, cadeiras de rodas ou
pedindo esmolas a todo instante.
SD ia repetir mas um voz rouca de homem,
vinda de dentro do cortiço se fez ouvir.
SEQUÊNCIA 87
Ao chegar na complicada travessia da Place
de la Concorde, reconhece o guarda que
sempre parava o trânsito para ele passar.
Alegra-se, um raro sorriso começa a esboçarse em seu rosto, e, sem pensar, começa a
atravessar perigosamente a rua em direção
ao gendarme. Este, furioso, dá um estridente
apito, faz um sinal autoritário para que se
volte e olha bem nos olhos de SD.
O GENDARME (vociferando)
- Onde pensa que vai, velho idiota! Quer
morrer?
O rosto de SD transfigura-se. A tormenta o
abate novamente.
Corte para um táxi parando na porta de um
cortiço num bairro infecto de Paris. SD,
elegante, desce do carro, sobe uma pequena
escada até a porta do cortiço e bate. Uma
menina escrofulosa, de uns seis anos de
A BRUACA (olhando SD de cima abaixo, sem
interromper a barulhenta mastigação)
- O que deseja?
SD (olhando o envelope de uma velha carta)
- O Senhor Georges Goursat reside nesse
endereço?
A BRUACA
- Quem?
A VOZ DE HOMEM
- É o artista, mulher, o tal do Sem!
SD balançou positivamente a cabeça.
A BRUACA
- Ah, sim! Mudou há tempos. Deve ter
recebido algum dinheiro. Pagou o que devia
por aqui e foi-se.
SD
- Deixou algum endereço?
A BRUACA
- Qual! Mal deu boa noite. Pegou suas coisas
e sumiu.
SEQUÊNCIA 88
Corte para SD na estação ferroviária
comprando passagem para Biarritz.
SD dentro do trem observa uma esquadrilha
aérea exercitando-se sobre a sua conhecida
paisagem das propriedades dos Rothschild,
onde pousou com Machuron após sua
primeira ascensão em balão esférico (a
saudosa cena do passado repete-se diante
dos seus olhos envelhecidos e tristes que,
por alguns instantes, se tornam alegres e
139
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
rejuvenescidos). O trem chega a Biarritz.
SEQUÊNCIA 89
SD desce de um táxi no Sanatório de Biarritz
e entra.
Prado na estação de Biarritz recebe o jovem
Jorge Villares. Neva forte. Ambos estão
pesadamente agasalhados.
No seu apartamento privativo no Sanatório,
SD, completamente enrolado nas cobertas,
como se fosse uma múmia, deixando de fora
apenas o nariz para respirar, acorda
sobressaltado em meio aos pesadelos.
PRADO (ajudando Jorge com as bagagens
de mão)
- O quadro não é bom, Jorge. Mas os médicos
dizem que está melhorando depois que
cheguei.
SD (sobressaltado na cama)
- Eles não podem!... Eles não podem!...
JORGE
Entram um médico e
uma enfermeira e
aplicam no trêmulo e
doentio SD uma dose
cavalar de calmante. Ele
não opõe resistência ao
tratamento. Aceita-o
passivamente,
balbuciando “eles não
podem...”
- E como ele está agora,
Dr Prado.
PRADO
- Fraco. A doença está
progredindo mas não é
a maior preocupação.
Mentalmente
tem
períodos de melhoras e
recaídas. Fica a repetir
“eles não podem..., eles
não podem...”, mas eles
quem, meu Deus?!
Corte para SD sentado
numa cadeira de vime
ao lado de uma janela
JORGE
do sanatório, enrolado
- Precisará companhia
num cobertor. É dia e
permanente. A família
neva lá fora. SD está
enfim começou a me
catatônico e imóvel.
ouvir. Não poderá ficar
"... seus olhos brilham..."
Batem a porta. Ele não
sozinho nunca mais. Seu
se move. Repetem a batida com mais força. telegrama decidiu a questão.
Nada. Enfim ouve-se o ruído de uma chave
e entra Prado, também envelhecido, seguido Entram no táxi e saem.
por um enfermeiro.
SEQUÊNCIA 90
PRADO (meio afobado)
- Alberto! Alberto!
A limusine de Adrien pára frente ao edifício
de apartamentos onde mora Georges, num
bairro pobre de Paris. (Legenda: Paris, agosto
de 1928) Georges aguardava-o na calçada. A
porta de trás da limusine abre-se e ele entra.
Dentro da limusine, Adrien e Georges
cumprimentam-se calorosamente.
SD reage. Seus olhos brilham. Um sorriso
chega a despontar em seus lábios. Ele
levanta-se com dificuldade diante do
estarrecido Prado.
SD (abraçando Prado em prantos)
- Pradô, meu amigo. Você não se esqueceu
de mim...
ADRIEN (envelhecido, mas forte e saudável)
- Vinte anos, meu velho! E milhares de fios
140
PARTE 3
brancos em nossas cabeças, hein? Senti falta
de Você, Georges.
GEORGES (também envelhecido, mas fraco
e acabado)
- Eu também de Você, Adrien. Como está em
Avignon?
ADRIEN
- Dedico-me a editar e revisar os livros do
meu filho Jean Paul, o jovem filósofo revelação da Sorbonne. Mas a maior parte
do meu tempo entrego-o às delícias da
agricultura e do pastoreio no campo. Nunca
entendi tão bem Dionisius como agora, meu
caro, só faltou-me tê-lo visto em carne e osso.
GEORGES
- Pois, para mim, a vida tem sido uma
madrasta, Adrien. Não sei quantos pecados
cometi para merecer tantas desditas.
ADRIEN
- Ora, Georges, não fique se culpando.
Nossos arquivos estão à nossa espera. Hoje
é o dia do resgate, meu amigo; o resgate da
História!
GEORGES (amargo)
- A História é um pesadelo do qual não posso
despertar.
ADRIEN
- Trouxe comigo toda a documentação e já
peguei ao tabelião o alvará de liberação. É
só chegar ao jornal e pegar tudo. Contratei
uma camioneta e dois homens. Vamos levar
tudo para o meu castelinho em Avignon,
inclusive Você. E por tempo indeterminado!
Só o solto depois de vê-lo gordo e bem
disposto. Enquanto isso trabalharemos nos
arquivos, desenterrando os nossos tesouros.
Tudo regado a bons vinhos e excelente
comida do campo, hein? Que tal?
SEQUÊNCIA 91
(O novíssimo “Le Temps”)
A limusine estaciona em frente ao novíssimo
“Le Temps”, que agora ocupa um grande
SANTOS DUMONT/O FILME
arranha-céu, estilo art-deco, com néons e
luminosos na fachada. Começa a anoitecer
em Paris.
Os dois entram no imenso hall de mármore
de carrara, no interior do edifício. Um
funcionário uniformizado os aguarda.
O FUNCIONÁRIO
- Sr Adrien Hébrard?
Adrien cumprimenta-o.
O FUNCIONÁRIO
- Sigam-me por favor, cavalheiros.
Os três entram por uma porta térrea que dá
para um interminável corredor interno, e,
após percorrê-lo quase todo, descem dois
lances de escada para o subsolo e entram
por uma porta de uma sala cheia de grades e
pesadas portas de cofres. Os carregadores
contratados por Adrien já aguardavam. Uma
funcionária do setor os atende. Adrien
entrega-lhe os papéis, a moça os confere e
dá ordens para os funcionários dentro do
cofre.
A MOÇA
- Lotes número 38, 39, 40, 41...
Os funcionários vão trazendo as caixas
lacradas com assinaturas sobrepostas aos
lacres, passam-nas ao exame de Adrien e
Georges, que conferem os lacres e o
sobrescrito de conteúdo, e, depois, entregamnas aos carregadores, que as levam embora.
A MOÇA
- Lotes 48, 49, 50, 51, 52....
Georges começa a ficar aflito. Confere várias
vezes o documento que lista o conteúdo dos
lotes. Seus arquivos, rotulados “Aeronáutica”,
estão indicados com os números de 57 a 62.
Ele ouve então a moça a ditar.
A MOÇA
- Lotes 63, 64, 65, 66...
141
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
GEORGES (interrompendo-a)
- Espere, moça, e os lotes 57 a 62?
LAZARE (presunçoso e petulante)
- A que devo essa repentina visita, Sr Adrien,
para não dizer invasão?
A moça pega novamente a lista e confere-a.
ADRIEN (quase sem se conter, abanando os
papéis do tabelião na cara de Lazare)
- A que deve? Sabe que dia é hoje, Sr Lazare?
(e, como sempre, indo direto ao assunto) O que foi feito dos arquivos sobre SantosDumont?
A MOÇA
- Tem razão, Senhor, saltei esses números. É
porque as caixas devem estar fora de ordem.
Um momento, sim?
Entrou no cofre e lá demorou-se por algum
tempo. Georges e Adrien entreolhavam-se
aflitos. Enfim, a moça retornou.
LAZARE (cínico, com uma ponta de
arrogância)
- Eu não sei, Sr Adrien. Como é do seu
conhecimento nada tenho que ver com esses
arquivos. Eram secretos também para mim,
lembra-se?
A MOÇA
- Não temos os lotes 57 a 62, senhores, não
sei o que dizer...
Georges quase desmaiou, ficou branco feito
cera. Adrien avermelhou-se de ódio.
ADRIEN (contendo Georges que já queria
partir para cima de Lazare)
- Não nos trate como idiotas, Lazare. Exijo
respostas!
ADRIEN
- Esses patifes!
LAZARE (olhando sem interesse os papéis
que Adrien voltava a lhe exibir e continuando
a demonstrar desprezo por Georges)
- O que sei é que houve problemas nas
mudanças para cá, Sr Adrien. Ouvi falar de
um incêndio num dos caminhões. É tudo que
sei, posso mandar averiguar; e é só o que
posso fazer. Agora, se me derem licença,
senhores, sou candidato a uma cadeira na
Câmara de Deputados e estou em plena
campanha... (toca a campainha, chamando
os assessores, que entram imediatamente)
Reparou que Georges preparava-se para fazer
o bafafá. Conteve-o.
ADRIEN
- Ninguém aqui tem haver com isso, Georges.
Vamos ao Lazare, siga-me.
SEQUÊNCIA 92
Georges e Adrien de caras feias, sobem no
elevador. No 12º andar descem e entram
decididos pela porta do Gabinete onde se lia
“DR LAZARE WEILLER - PRESIDENT
DIRECTEUR”. A secretária tenta contê-los na
ante-sala mas Adrien já havia aberto a porta
do Gabinete de Lazare e entrava, seguido de
Georges e da apavorada secretária.
ADRIEN (sem dar bola para eles)
- Sei que está metido nisso, Lazare. E vai
pagar caro, eu prometo. Quem pensa que é?
E quem pensa que eu sou, garoto? Vai se
arrepender! Sei que Benett não precisa mais
do Banco de seu pai, que, por sua vez, está
se arruinado por causa das suas pretensões
políticas...
Lazare, agora gordo e mais velho, vestido
com elegância excessiva e de mau gosto, foi
pego de surpresa com dois de seus assessores,
mas não perdeu a hipocrisia. Dispensou
educadamente a secretária e os assessores e
dirigiu-se, em seguida, a Adrien, sem sequer
olhar ou cumprimentar Georges.
LAZARE (interrompendo-o, com os
assessores ao seu lado, todos de cara
fechada)
- Sr Adrien, não tenho de ficar aqui escutando
suas acusações e nem sendo ameaçado por
142
PARTE 3
SANTOS DUMONT/O FILME
jornalistas fracassados. Procurem seus
advogados, nós temos os nossos! Hoje as
coisas resolvem-se assim no mundo civilizado
dos negócios, Sr Adrien.
- Ora, Hipólito, aquele patife merecia muito
mais do que umas boas pancadas. Eu só achei
que não valia a pena Georges sujar as mãos
na cara daquele porco!
ADRIEN
- Isso é o que Você pensa, menino! Em pouco
tempo vai ver que não é bem assim! Sim,
vamos aos advogados. Mas Você pode
começar a contar, nos dedos de uma mão,
os seus dias aqui, seu canalhazinho insolente!
Vamos Georges! Vamos ao Hipólito! (e sai
arrastando Georges sob os olhares cínicos e
petulantes de Lazare e seus puxa-sacos)
HIPÓLITO
- Aquele “patife” a que se refere é o diretor
presidente do maior jornal da Europa, papai.
E hoje, ser diretor de um jornal como o “Le
Temps” é muito mais do que foi no seu tempo,
o senhor sabe disso...
SEQUÊNCIA 93
Adrien e Georges entram no luxuoso escritório
de advocacia do “DR HYPPOLITE
HÉBRARD”. Este já os esperava em sua sala
de trabalho.
HIPÓLITO
- Não é um pouco tarde, papai? Não
poderíamos deixar para amanhã? Hoje eu...
ADRIEN
- Hipólito, eu não saio de Paris sem ter
resolvido esse assunto com todos os pingos
em seus devidos iis, entendeu? Portanto, se
quiser, pode avisar sua esposa que hoje não
haverá Teatro, nem Ópera, nem festas ou seja
lá o que for. Vamos sentar e trabalhar.
Hipólito aquiesce, rendido.
GEORGES
- Não vai acreditar no que acabamos de viver,
Dr Hipólito. O tipo mais sórdido de vingança
que pode haver, não somente contra mim,
mas contra o seu pai!...
HIPÓLITO
- Lazare ligou-me e deu-me a sua versão. Se
verdadeira, ainda bem que meu pai o
conteve, Georges, do contrário as coisas não
ficariam boas para Você...
ADRIEN
ADRIEN
- Eu sei muito bem, meu filho. Mas sei outras
coisas que Você e o imbecil do Lazare não
sabem, mas agora vão ter de aprender.
HIPÓLITO (impaciente)
- Essa discussão parece ser demorada, papai.
Vamos direto ao assunto, como o senhor gosta
de dizer. Lazare ofereceu um acordo de 50
mil francos para por fim nessa confusão.
Penso que está sendo até generoso, diante
do que ocorreu...
GEORGES
- 50 mil francos? Ora, Dr Hipólito,
francamente! É toda uma vida que está em
jogo. E não digo apenas a minha, mas
também a do seu pai e a do Sr SantosDumont, essa última, principalmente. É o
homem que criou a aeronáutica moderna, e
naqueles arquivos estavam todas as provas
incontestáveis!
HIPÓLITO
-Eu não confiaria muito nesses argumentos
em juizo, Georges. Lembre-se que o Sr
Santos-Dumont não é um francês, nem um
europeu; é um brasileiro! E destruiu ele
próprio os seus arquivos. Conheço juizes que
a última coisa que leram sobre o Brasil foi
escrita por Villegagnon há mais de três
séculos. Acham que por lá habitam índios
selvagens e jacarés, e não cientistas inventores
e aeronautas. Quanto a ser o pai da
aeronáutica,
eu também conheço juizes
que perderam famílias, parentes, amigos e
até pedaços do corpo estraçalhados por essas
máquinas na última guerra. Lamento,
143
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
Georges, ninguém mais, diabos, lembra-se
de quem foi esse Santos-Dumont.
número do telefone de lá. Passe-lhe também
esse número. O próprio Benett vai desejar
dar-me a resposta pessoalmente. Vamos
Georges. (levanta-se e puxa o aparvalhado
Georges pelo braço, e saem)
GEORGES
- Mas é justamente para isso que servem esses
arquivos, para resgatar a verdade! Lá tem
coisas que o mundo e o senhor precisam
muito conhecer.
HIPÓLITO
- Mas... papai, papai!
HIPÓLITO
- Ao que nos consta hoje, não sabemos se
esses arquivos realmente existem, Georges...
SEQUÊNCIA 94
Adrien e Georges chegam ao café Diderot.
Adrien vai até o maitre, orienta-o sobre o
telefonema, e pede bebidas, enquanto
Georges senta-se numa mesa e aguarda com
a cara triste e pensativa. Adrien chega e sentase também.
Durante esse diálogo Adrien ficava
aborrecido, pensando com seus botões, sem
prestar atenção no que falavam. Ao perceber
Georges novamente irritado com Hipólito ao
ponto de uma briga séria, interrompeu-os.
ADRIEN
- Um milhão de francos, Hipólito! Um milhão
em “cash” como dizem os homens de
negócios de hoje, não é?E para amanhã! Esse
é o nosso acordo.Depois de amanhã será o
dobro.Estes prazos são o limite da minha
paciência!
GEORGES
- Adrien, Você está mais louco do que eu,
homem?! Um milhão?! Eles querem nos ver
arrasados e maltrapilhos, acha mesmo que...
E o seu filho, hein? Que pustulazinha! Oh,
perdoe-me, Adrien.
ADRIEN
- Não escolhemos nossos filhos, Georges.
Você não os tem por isso não entende certas
coisas. Mas é preciso que comece a entender
alguma coisa desse novo mundo. Hipólito
não é o canalha que pareceu a Você, acredite.
É apenas um advogado, sem qualquer
genialidade, admito, mas que, por isso
mesmo, está se saindo muito bem. Assim
como Lazare. Só que hoje, escaldei, e perdi
a paciência.
Até Georges surpreendeu-se
HIPÓLITO
- Como, um milhão?! Ora, papai, Lazare nem
discutirá essa proposta. Não gastará mais de
20 mil para levar essa causa para as calendas
gregas... Pondere, papai, Lazare quer
negociar, mas assim...
ADRIEN
- Chegou a hora de Vocês, garotos,
aprenderem certas coisas, Hipólito. Você vai
ligar ao Lazare e dizer que não aceitamos
menos de um milhão, com prazo de solução
ainda para hoje, e depósito em dinheiro
amanhã pela manhã. Diga-lhe para falar ao
Benett agora (olha seu relógio de pulso) ainda é expediente em Nova York - e passarlhe um recado meu de três palavras: “mon
petit cahier”. Precisa anotar? Então anote.
Georges e eu vamos esperar a resposta no
café aqui embaixo, o da esquina da
boulevard Diderot, sei que Você sabe o
O garçom chega trazendo champagne Don
Perignon e duas taças.
GEORGES
- Don Perignon?
comemorando?
O
que
estamos
ADRIEN
- Comemoração mesmo nenhuma, Georges.
A perda dos arquivos de Santos-Dumont é
impagável. Mas quando se ganha um milhão
de francos é justo que se beba ao menos um
144
PARTE 3
bom champagne, não? (e oferece um brinde)
Georges, um pouco a contragosto, aceita o
brinde.
GEORGES (após sorver o conteúdo da taça
de um só gole)
- É, reconheço que não entendo mais nada.
E que história é essa de “mon petit cahier”?
Adrien dá uma sonora gargalhada. O garçom
aproxima-se.
O Garçom
- Senhor Hébrard, o telefonema que o senhor
aguardava...
ADRIEN (ainda rindo e levantando-se)
- Conto a Você num minutinho, Georges, não
devo deixar Benett aguardando na linha,
numa ligação de Nova York. Volto já. (e sai)
Georges fica só, pensativo e acabrunhado,
duvidando da loucura do amigo. Serve outra
taça de champagne, bebe-a, e mais outra.
Adrien demora-se. Mais outra taça. Enfim,
Adrien retorna, com um largo sorriso nos
lábios.
ADRIEN
- Tudo resolvido, Georges. Vamos a outro
brinde! (enche a sua taça e completa a de
Georges, esgotando o conteúdo da garrafa) Rapaz, c’est fini! Você enxuga mesmo, hein?
Garçom, traga-nos outra garrafa!
GEORGES (brindando novamente, mas ainda
incrédulo)
- O que está resolvido, Adrien?
ADRIEN (após virar de um só gole)
- O que? Ora, o dinheiro, bolas! Inclusive,
Georges, (mudou o tom de voz e a expressão
do rosto para dizer algo sério) tomei a
liberdade de dizer a Hipólito que 500 000
devem ser pagos diretamente ao resgate da
hipoteca das terras de seu pai, no Banco da
Agricultura...
GEORGES (interrompendo-o)
SANTOS DUMONT/O FILME
- Como soube disso? Só mesmo o
“informadíssimo Hébrard”! A família manteve
um sigilo quase sepulcral de tudo!...
ADRIEN (falando baixinho, aproximando o
seu rosto do amigo)
- Sei tudo sobre Você e suas enrascadas, e
também das que Você meteu seus pais e sua
família. Desde que fui para Avignon torneime Conselheiro do Banco da Agricultura. Foi
por mim que aprovaram a hipoteca das terras
do seu pai naquele valor. Seu próprio pai
veio agradecer-me. É um grande homem.
Poucos pais que conheço dariam tudo o que
tem pela liberdade de um filho, como ele
fez.
Georges estava completamente apatetado,
não conseguia articular palavra.
ADRIEN (continuando)
- O resto do dinheiro é todo seu. Não preciso
de mais dinheiro em minha vida. Tenho mais
do que o suficiente e meus filhos estão melhor
ainda do que eu. Amanhã já estará
depositado, em seu nome, no Banco da
Agricultura. (e, voltando a sorrir) - Vamos,
anime-se, Georges, o que vai fazer com sua
nova fortuna?
GEORGES (ainda inteiramente surpreendido)
- Eu... eu... eu..., não sei ainda. (e
recuperando-se) - Ora, Adrien, diga-me, o que
aconteceu? Como conseguiu? É tudo tão
rápido, estou confuso...
ADRIEN (brincalhão)
- Até se esqueceu do “mon petit cahier”, não
é, meu velho? É a chave da história. (e,
baixinho) - Vou dizer-lhe o que significa: esse
é o apelido que o Benett dava ao sexo da
sua amante, a ex-senhora Henry White,
naqueles bons tempos do “Le Temps”,
lembra-se dela?
GEORGES (tapando a boca de pasmo)
- Martha? Sim, claro, era linda. Quer dizer
que Você também, hein, seu patife?!
(começou a rir, pela primeira vez)
145
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
ADRIEN (rindo também)
- Sim, e só hoje Benett o soube! (gargalhadas)
- Achava que era exclusiva dele. Ficou uma
“arara”. Mas é hipócrita mais do que suficiente
para não perder a fleuma. Sabe o que me
disse ao telefone? (mais gargalhadas, o
garçom e as pessoas das mesas vizinhas
olhavam-nos com reprovação, mas ele não
se continha e continuou rindo e imitando
Benett ao telefone) - Vou lhe devolver outras
três palavras que bem merece, seu grande
patife: “son of bitch”! (mais gargalhadas
estrondosas)
se viesse à tona uma história dessas?
ADRIEN
- Uma história dessas nunca viria à tona,
Georges, a não ser que Benett fosse louco.
Só ele e eu, e agora Você, sabemos disso.
Com esse acerto nos sentimos pagos e ele
sabe que pode confiar nisso. Morre aqui.
Quanto à Martha e Eva, são ambas belas
parisienses, cosmopolitas, satisfeitas
intelectualmente, cultas e soberanas de si
mesmas. Iriam rir dessa história, como nós.
Rir do Benett, é claro. Também elas tiveram
de aturar a prepotência daquele garanhão
americano, até mesmo Eva, minha esposa.
Martha cedeu para se vingar de White, com
quem casou por interesse familiar, e não por
amor. Em verdade não suportava o marido
Enfim consegue conter-se e continua.
ADRIEN
- O Benett é sério candidato a Presidente dos
Estados Unidos. Lá ele é o pai da moral e da
religião mais castiça; sua plataforma principal
é dar escolas moralistas para todas as crianças
americanas. (começa a rir novamente) - Já
pensou se seus inimigos - que são muitos e
tão poderosos quanto ele - ficam sabendo
que aquele pai da moral, da religião e da
educação chamava o sexo da sua amante,
por sinal, então esposa de seu maior amigo,
de “my little notebook”?
GEORGES
- E quanto aos arquivos de Santos-Dumont?
Será que aqueles canalhas...
ADRIEN
- Benett jurou-me, e pareceu-me sincero, que
foi acidente mesmo. (e, em off sobre a cena
da explosão do caminhão, com a cara cínica
de Mephisto dando gargalhadas, passando
em 1º plano) - O caminhão estava
reabastecendo quando tudo foi pelos ares.
Não sabiam ainda quais arquivos tinham sido
perdidos. (de novo, em in) - Ele mesmo
lamentou a perda, Georges, e não estava
sendo hipócrita... São artes do demônio... elas
existem, sabia? Mas, diga—me, o que
pretende fazer com a sua pequena fortuna?
GEORGES (agora já solto nas risadas)
- Começo a entender... mas Você de fato
aprendeu bem nessa escola, hein? Tornou-se
um canalha igual ou maior! Isso é chantagem,
Adrien...
ADRIEN
- Prefiro dizer vingança, meu caro, e da
melhor qualidade! É o grande deleite dos
deuses; às vezes concedido a alguns mortais.
E Você não sabe da outra: pedi também a
cabeça do Lazare! Estará no olho da rua
amanhã mesmo! E o filho da mãe do Benett
é tão canalha que ainda me disse (volta a
imitar Benett): - Nem precisava exigi-lo, meu
nobre canalha, será um prazer atendê-lo; já
não precisamos mais daquele palerma!
(ambos dão outra grande gargalhada)
GEORGES
- Acho que em primeiro lugar ajeitar minha
vida que está num caos. Reconciliar a família
e voltar às boas com os meus pais, que estão
bem velhos. São moralistas e religiosos de
verdade, mas não como a pústula do Benett,
mas como camponeses, legítimos franceses
que são. Sofreram muito com minhas desditas.
Depois quero realizar o velho sonho de ir ao
Brasil visitar minha irmã e ver o nosso velho
amigo e herói Santos-Dumont.
GEORGES (conseguindo conter o riso)
- E Martha? E Eva, sua esposa? O que diriam
ADRIEN
146
PARTE 3
- Santos-Dumont!... toda essa história
devemos a ele, pobre homem. Sua famosa
sorte parece que não o protege mais. Há
pouco participei da revisão francesa de uma
grande enciclopédia editada em mais de 40
línguas e financiada por bancos americanos.
Vi o verbete do seu nome; é uma bazófia!
Tiraram-lhe toda a parte do mais pesado que
o ar, Georges, e ainda inventaram-lhe um
balão chamado “A Música”, que sei que
nunca existiu. Eis no que se transformou a
imprensa dita “moderna”.
GEORGES
- De fato procuram eliminar todos os registros
dos seus feitos. E o mais grave tem sido a
criminosa omissão do seu nome em tudo que
diz respeito aos começos da aeronáutica. E
sobre os irmãos Wright, o que publicaram?
ADRIEN
- Nada, meu caro, absolutamente nada. Nisso
aprenderam comigo. Estão guardando-os para
a hora certa, entendeu? O momento não é
propício, muitos que sabem do embuste
ainda vivem... E quanto a Você, Georges, e à
sua arte, o que andou fazendo?
GEORGES
- Ao deixar o jornalismo, abracei os
movimentos renovadores do surrealismo e da
vanguarda modernista, com Marcel
Duchamp, Picabia, Picasso, Max Ernst e
muitos outros. Mas também deixei-me cair
na miséria e na ruína, e creio que perdi o
bonde da história, Adrien.
ADRIEN
- Os homens verdadeiramente profundos,
Georges, não sobem; enterram-se. Muitos
anos depois de suas mortes, descobre-se, de
repente ou pouco a pouco, o que na realidade
valiam. A consagração oficial entroniza
apenas os comediantes e os fantoches da arte,
meu caro, enquanto os verdadeiros criadores
ficam na sombra.
GEORGES
- Talvez seja assim, Adrien, e o melhor
exemplo certamente não será o meu, mas o
SANTOS DUMONT/O FILME
de Santos-Dumont. Desde que se foi não mais
o vi. Mas deve estar sofrendo terrivelmente
por esse injusto boicote de que é vítima.
ADRIEN
- Soube que andou enlouquecido e internado
em Biarritz, mas a última notícia que tive já
era bem melhor... Onde estará ele agora?...
GEORGES
- Recebi ontem uma carta de minha irmã
(olhou seu relógio de pulso) - se o fuso
horário não me engana e o Cap Arcona não
atrasou...
SEQUÊNCIA 95
A voz de Georges fica em off sobre a imagem
da chegada do Cap Arcona na Baía da
Guanabara numa tarde bela com o Pão de
Açúcar (já com o bondinho) e o Corcovado
(já com o Cristo Redentor) ao fundo.
GEORGES (continuando em off)
... está entrando agora na Baía de Guanabara.
Os brasileiros, um tanto arrependidos pelo
descaso para com ele, quando mais precisou
do apoio de sua pátria aqui em Paris, tentam
recuperar tardiamente o erro dando-lhe uma
estrondosa recepção, segundo minha irmã,
com preparativos ainda mais retumbantes do
que a de 1903...
O Cap Arcona entra na Baía e segue para o
cais. Vários barcos estão a comboiá-lo. Um
hidroavião trimotor, da empresa Condor,
batizado às pressas de “Santos-Dumont”,
desliza sobre o mar decolando perto do cais,
e voando rasante em direção ao navio, no
convés do qual estão SD e Jorge Villares. Ao
passar pelo navio jogam do avião um rolo
de papel, dentro de um tubo de borracha,
que cai sobre o convés. Jorge corre para pegálo, mas um marujo se antecipa e entrega-o a
Jorge. Jorge abre o rolo de papel e vem
sorridente na direção de SD.
JORGE
- É uma mensagem, tio Alberto. Vou ler para
o senhor. (e começa a ler a mensagem em
147
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
voz alta, empostada, e
orgulhoso do tio) - “Do
alto do hidroavião que tem
o seu glorioso nome,
precedendo a recepção que
lhe preparou o povo da
Capital do Brasil, vimos
apresentar ao grande
brasileiro que realizando a
conquista dos ares elevou
o nome da pátria no
estrangeiro, os nossos votos
de boa vindas...”
2), com o som das
explosões das bombas
jogadas sobre a cidade de
Santos, como se fosse
também o eco, ainda em
áudio, da explosão do
hidroavião sobre o mar.
SD (balbuciando)
Quantas
vidas
sacrificadas por minha
humilde pessoa!....
Corte para o português da
Mas SD não prestava
venda em Guarujá,
atenção à leitura empolada
voltando para o balcão
do sobrinho. Seus olhos "SD vira o "Santos-Dumont" cair e naugragar..." contando o troco de Jorge,
ansiosos e preocupados
ainda balançando a
seguiam a manobra imprudente do cabeça em sinal de reprovação pelo
hidroavião ao fazer um retorno perigoso a bombardeio.
poucos metros acima da linha d’água. Na
manobra, o infeliz piloto permitiu uma leve O PORTUGUÊS (olhando para os lados para
glissada da aeronave, fatal àquela altitude, e ver se encontrava Jorge)
a ponta da asa direita tocou a água, - Senhor?! Senhor? O seu troco! (e percebendo
derrubando o hidroavião que espatifou-se que já se fora) - Esses apressadinhos!...
numa horrível explosão. Em poucos
segundos o oceano engoliu todos os Corte para Jorge correndo pela rua da Vila
destroços;
alguns poucos pedaços em de Guarujá, desesperadamente, segurando o
chamas ainda boiavam sobre a água. Santos- chapéu com uma das mãos, a gritar de
Dumont vira o “Santos-Dumont” cair e aflição, como um louco.
naufragar, diante dos olhares estarrecidos dos
passageiros e da tripulação do navio e das JORGE
embarcações que o comboiavam; sem deixar - Tio Alberto! Tio Alberto!
dúvidas sobre a possibilidade de
Corte para SD virando-se para
sobreviventes.
dentro do apartamento do hotel.
A câmera vai aproximando-se em close do Na poltrona que ocupava
rosto arrasado de SD em lágrimas até frente à mesa do café, viu
enquadrar
somente os Mephisto sentado confortável
seus dois
olhos tristes, e petulantemente, sob a forma
abertos e lacrimejantes.
de Albertinho, aos 12 anos de
idade, porém com as feições da
criança original alteradas
SEQUÊNCIA 96
para uma expressão
endiabrada e maliciosa,
Ao afastar-se, no movimento oposto, agravada pelas agressivas
aparentemente sem cortes, a câmera já s o b r a n c e l h a s
encontra SD na janela do Hotel de La Plage, pontiagudas. O garoto
na Praia do Guarujá, exatamente como o vestia uma roupa igual a
deixara no início do filme (final da Sequência da aparição anterior com
148
SD aos
12 anos
de idade
PARTE 3
a indefectível capa preta forrada de veludo
carmin. Sob o olhar atordoado de SD, ele
tira do bolso do colete uma charuteira que
estava na oficina secreta destruída. Retira dela
um charuto e o acende, como um
connaisseur, usando o fogo saído da ponta
do dedo indicador da sua mão esquerda,
acedendo primeiro o braseiro e depois
mordendo o outro lado, sem perder o sorriso
cínico e irreverente.
SD
- Vocês? ... Vocês não podem...
MEPHISTO (com a mesma voz gutural)
- Homem voa, Albertinho? (dá uma
gargalhada, que logo interrompe com
cinismo) - Então? Satisfeito com vossa obra?
(outra gargalhada) - Ora, Alberto, não
entristeça-te! Sabes que, por força da nossa
arte, não é possível ao Homem inventar a
locomotiva sem que invente, também, o
descarrilhamento.
SD (resoluto, como se tivesse recuperado,
instantaneamente, a saúde)
- Vamos embora daqui! (e sai em direção ao
quarto)
SANTOS DUMONT/O FILME
mas essa é uma questão de estilo. Ficai agora
com o seu epílogo trágico, que haverá de
saciar vossa curiosidade e sede de saber.
Muito obrigado. (faz uma reverência e a
câmera aproxima-se em macro do seu olho
esquerdo até tê-lo todo na tela, ele pisca e
desaparece)
Corte para Jorge subindo os degraus da
entrada do hotel, esbaforido, correndo,
segurando o chapéu e gritando feito louco.
JORGE
- Tio Alberto! Tio Alberto!
Ele sobe as escadas sob os olhares dos
hóspedes e serviçais que agora enchem o
hall de entrada e chega ao corredor, em
corrida estabanada, trombando em pessoas,
em carrinhos de café, em garçons e
camareiras, até chegar à porta do apto 8, que
não se abre por fora. Ele procura a chave,
mas não a levara. Então soca a porta com
força.
JORGE (aos berros)
- Tio Alberto! Tio Alberto!
No caminho SD retira o cinto de seda do seu
robe-de-chambre, enrola-o pelas pontas nas
duas mãos e dá um forte puxão, como se
testasse a resistência de uma corda. Ao chegar
à porta ouve a voz de Mephisto.
Garçons e camareiras chegam para acudi-lo.
Ele tenta forçar a porta com os ombros, mas
não consegue. Uma camareira chega
correndo com a chave mestra, mete-a na
fechadura, abre-a e Jorge escancara a porta,
entrando na ante-sala, seguido pelos outros.
MEPHISTO
- Não te culpes, Alberto. Esse mundo não é
mais o teu. O mundo é dos boçais! (e dá
outra gargalhada)
A câmera mostra o primeiro alvo do olhar de
Jorge: a poltrona vazia! Um vento sopra a
cortina quase transparente da janela onde
estava SD.
SD passa pela porta e bate-a por trás dele
com energia.
JORGE (farejando o ar)
- Hum!? Parece cheiro de tabaco?!...
MEPHISTO (levantado-se e caminhando em
direção à câmera)
- Respeitável público! Aqui encerro minha
participação nessa história que, além de
verdadeira, é instrutiva e reveladora. Sinto
não ter vos dado as doses de romance, sexo
e violência a que estão habituados nessa sala,
A CAMAREIRA (também farejando o ar e
esfregando-se)
- Eu não sinto cheiro nenhum, doutor, sinto
apenas uma friagem esquisita...
Um garçom chega perto da mesa do café, vê
a charuteira com as iniciais “SD”, e embolsa149
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
SEQUÊNCIA 98 (Réquiem)
a furtivamente, sem que ninguém percebesse,
colocando-a dentro do bolso do paletó.
Sinos dobram em todo o Brasil. Uma
sequência de fusões rápidas de torres de
diversas arquiteturas; neoclássicas, barrocas,
góticas, rústicas, kitsch, simplórias, etc.
Jorge corre até a porta do quarto, abre-a aos
gritos de “Tio Alberto!”. Ninguém. Olha a
porta do banheiro e corre até ela, abrindo-a.
Por trás da cortina do box do chuveiro, a
sombra de SD pendurado ainda balança.
Corte para o cortejo fúnebre, a multidão
seguindo pelas ruas do Rio de Janeiro. Em
áudio o réquiem indígena “Canide Ioune”,
extraído e traduzido por Murilo Araujo e
orquestrado por Heckel Tavares.
JORGE (já em lágrimas)
- Oh, meu Deus!
SEQUÊNCIA 97
RÉQUIEM DOS ÍNDIOS ARITIS
O tiroteio continua intenso na rua da
cidadezinha do interior de São Paulo. Do
lado varguista, um homem pega um
megafone e um outro hasteia uma bandeira
branca. O tiroteio cessa repentinamente.
Silêncio. Ninguém se mexe da posição nem
baixa as armas. Tensão.
CANTO (CORO DE MENINOS)
(LEGENDA/TRADUÇÃO)
Canide Ioune... Canide Ioune...
(Ave dourada, ave dourada)
Tia ua! Tia ua!
(O corpo chora, o corpo chora!)
SARGENTO MIRANDA (berrando ao
megafone)
- Aqui é o Sargento Miranda do 33º
Regimento de Infantaria do Exército Federal.
Recebemos pelo telégrafo a notícia do
falecimento do nosso ilustre patrício Senhor
Santos-Dumont, o Pai da Aviação. Tenho
autorização para propor uma trégua a fim
de homenagearmos em paz o grande herói
da nossa pátria.
Canide Ioune... Canide Ioune...
(Ave dourada, ave dourada)
Cemati, mamalô!
(Atende a nós, oh mãe vossa)
Queracarê
(O escravo)
ma cauê
(assim sofre...)
Tensão e silêncio. O outro lado confabula.
Alguns segundos depois...
Cecô
(Tão longe)
TENENTE CHUMBINHO (berrando, fazendo
com as mãos o seu megafone)
- Aqui é o Tenente Chumbinho do 8º
Batalhão do Exército Constitucionalista.
Aceitamos a trégua. Dois dos nossos sairão
para encontrar dois dos seus e discutir os
termos.
Zoricê
(As estrelas,)
Anuim caui
(Abelhas de luz)
Os dois lados baixam as armas e os homens
levantam-se descobrindo-se de suas posições
e esconderijos.
Aiçati acô
(Matam dentro de nós)
Ololi olô
(As pequenas flores de ouro...)
150
PARTE 3
Canide Ioune... Canide Ioune...
(Ave dourada, ave dourada)
Tia ua! Tia ua!
(O corpo chora, o corpo chora!)
Sobre a música, em determinado momento,
entra a voz da irmã de Georges, em off.
VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)
“- Querido irmão. Moro há tanto tempo no
Brasil e ainda surpreendo-me e enterneçome com a natureza profundamente humana
do seu povo. A morte do Sr Santos-Dumont
foi um verdadeiro trauma nacional, ainda que
todos soubessem que ele estava fraco e
doente. Repare no mapa: o Brasil tem a forma
de um coração! E cada um de seus habitantes
parece trazer no peito um coração tão grande
quanto a sua imensa nação. (durante esse
tempo a câmera passeia sobre o cortejo
fúnebre e mostra detalhes do povo humilde
e em lágrimas) - Aqui acontece de modo
mais nítido o que também ocorre nas demais
nações. O povo humilde e pobre é mais
sensível, mais humano e mais delicado do
que as elites, geralmente, arrogantes e
grosseiras, principalmente nessa terra de
fortes contrastes. É tão grande e tão elevado
o coração dessa gente que pediram para
guardar, como relíquia e recordação do seu
maior herói nacional; justamente o seu
coração! O coração do seu amigo Alberto
foi então retirado e conservado num escrínio
de ouro para a eternidade. (a câmera mostra
o detalhe de um coroinha carregando o
escrínio) - O escrínio que encerra o coração
de Santos-Dumont, é uma esfera de ouro,
com perfurações representando
estrelas que simbolizam, no
conjunto, o universo. Dentro da
esfera se contém outra,
hermética, de cristal; e dentro
desta, em líquido adequado, se
acha imerso o coração do
aeronauta.”
SANTOS DUMONT/O FILME
corbeilles e coroas de flores, mostrando os
cartões remetentes das diversas procedências,
reis, rainhas, estadistas, cientistas, jornalistas,
instituições, personalidades, aeronautas e aero
clubes do mundo inteiro.
O caixão, coberto com a bandeira do Brasil,
prossegue em direção à escultura de Ícaro,
réplica da de St Cloud, que ornamenta o
túmulo da família do inventor.
Perto dele o cortejo pára e uma sequência
de oradores exaltados, como sempre em cena
muda, superpõem-se em fusões rápidas.
Enfim Jorge, ao lado de Prado, dá uma ordem
através de um breve sinal com a mão. Dois
Dragões da Independência dobram
ritualmente a bandeira do Brasil e a entregam
para a irmã mais velha de SD. A câmera assiste
o caixão descer à tumba.
SEQUÊNCIA 99 (A Dama de Negro)
Cemitério de São João Batista, no Rio de
Janeiro, limpo, vazio e silencioso, num lindo
dia. A câmera chega na sepultura de SantosDumont junto com um imponente RollsRoyce negro estacionando. De dentro, sai um
motorista negro todo vestido de negro, abre
o porta-malas e retira uma corbeille de flores
e coloca-a sobre a sepultura. Em seguida,
volta ao automóvel e abre a porta de trás
para que saia uma mulher toda vestida de
negro, com um véu sobre o rosto. Ela anda
com elegância até a sepultura, trazendo nas
mãos um porta-retratos com a foto
autografada de Santos-Dumont. Ao chegar
inclina-se, abrindo o véu para
beijar o retrato. A câmera, em
close lateral, revela sua
identidade: Aida D’Acosta, uma
artista mais madura, e sempre
mais bela. Ela beija com ternura
a fotografia e deposita o portaretratos sobre o túmulo,
arranjando-o, em destaque, no
centro da corbeille. A câmera
O cortejo chega na via principal
fecha em close sobre o retrato do
do Cemitério São João Batista,
"... e conservado num escrínio
orlada por uma multidão de de ouro para a eternidade." aeronauta e depois, abrindo
151
SANTOS DUMONT/O FILME
ROTEIRO MARIO DRUMOND
novamente, sobe até a estátua
de Ícaro, e em seguida vai para
o céu onde encontra umas
nuvens e pára.
aeronaves, sem datas.
Corte para mais créditos sobre
as nuvens.
Ouve-se a voz cândida de
Albertinho, aos 7 anos de idade,
fazendo a Criança-mestre da
brincadeira infantil.
CRIANÇA-MESTRE (com a voz
de Albertinho)
- Homem voa?
Corte para filmes documentários
em P&B e cores mostrando os
aviões de passageiros das
décadas de 40 e 50, em pleno
vôo, com as respectivas legendas
dos nomes das aeronaves, sem
datas.
Túmulo de SD
Corte para mais créditos sobre as nuvens.
CRIANÇAS EM CORO
- Voa!
Corte para filmes documentários a cores
mostrando os aviões turbo-hélices, de
passageiros, da década de 60, em pleno vôo,
com respectivas legendas dos nomes das
aeronaves, sem datas.
SEQUÊNCIA 100
Entram os primeiros créditos sobre as nuvens.
Corte para mais créditos nas nuvens.
Corte para um “Demoiselle” decolando do
Campo de St Cyr, em filme documentário
P&B.
(Legenda: Campo de St Cyr, Paris, 1908)
Corte para filmes documentários a cores
mostrando os imensos aviões à jato de
passageiros, da década de 70 e 80, em pleno
vôo, com respectivas legendas dos nomes das
aeronaves, sem datas.
Corte para mais créditos sobre as nuvens.
Corte para filmes documentários P&B
mostrando os aviões de Bleriot, Breguet,
Farman e Lindemberg em pleno vôo, com
respectivas legendas com seus nomes, mas
sem datas.
Corte para os créditos finais, sobre as nuvens.
Corte para o supersônico de passageiros, o
Concorde, pousando em Orly. (Legenda:
Aeroporto de Orly, Paris, 1998). Ao tocar as
rodas no solo, a cena “congela”, sai a legenda
e entra a palavra
Corte para mais créditos sobre as nuvens.
Corte para filmes documentários P&B
mostrando os aviões dos primeiros correios
aéreos em pleno vôo, pilotados por Saint
Exupéry, Mermoz, Gago Coutinho, Sacadura
Cabral e outros, com respectivas legendas
nominais, sem datas.
FIM
90 ANOS DA AVIAÇÃO CIVIL
1º CENTENÁRIO DA 1ª ASCENSÃO-SOLO
DE SANTOS-DUMONT NO BALÃO
“LE BRÉSIL”
Corte para mais créditos sobre as nuvens.
Corte para filmes documentários em P&B
mostrando os primeiros aviões de passageiros
das décadas de 20 e 30, em pleno vôo, com
respectivas legendas dos nomes das
Rio de Janeiro, 22 de abril de 1995.
152
PARTE 3
SANTOS DUMONT/O FILME
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Composto e diagramado pelo autor em PC
486 DX2, utilizando fonte True Type
"Gatineau" e software Aldus PageMaker.
Originais feitos em impressora jato-de-tinta
marca Canon, modelo BJC - 4000 sobre
papéis RENKER "Safir", cor branca, com
90 g/m2. Trabalhos encerrados em Belo
Horizonte, no dia 22 de abril de 1996.
L
A
V
S
D
E
O
Destes originais foram tiradas 12
fotocópias, feitas pela N.A. COPIADORA
LTDA em máquina Minolta mod. EP 5400.
Os 12 exemplares, uma vez encadernados,
foram numerados e assinados pelo autor.
Exemplar Nº
Mario Drumond Editor
Rua Pouso Alto, 240.
Belo Horizonte MG
30240 180
Tel/Fax 55 31 3281 8646
e-mail: [email protected]

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