Santa Cruz do Sul Ano 4

Transcrição

Santa Cruz do Sul Ano 4
Publicação do Curso de Comunicação
Social da UNISC - Santa Cruz do Sul
Ano 4 - número 4
Distribuição gratuita
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Expediente
UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul
Av. Independência, 2293
Bairro Universitário
Santa Cruz do Sul - RS
CEP: 96815-900
Curso de Comunicação Social
Bloco 15 - Sala 1506
Fone: 3717-7383
Coordenadora do curso: Ângela Felippi
Publicidade: Agência A4
Impressão: Graphoset
Tiragem: 500 exemplares
Ano 4 - Junho de 2009
Foto Expediente: Cláudia Joana
Dalberto
ATENÇÃO!
Esta foto foi manipulada.
Adivinhe em que ponto.
(Resposta na penúltima página)
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2009
1- Demétrio de Azeredo
Soster
(editor-chefe)
2 - Emanuelle Dal-Ri
(sub-edição e reportagem)
3 - Patrícia Azevedo
(reportagem)
4 - Marinês Klittel
(reportagem)
5 - Ana Flávia Hantt
(opinião e reportagem)
6 - Letícia Schmidt
(reportagem)
7 - Vanessa Kannenberg
(reportagem)
8 - Ana Paula de Andrade
(diagramação e edição de imagens)
9 - Fernanda Zieppe
(reportagem)
10 - Thiago Stürmer
(sub-edição e reportagem)
11 - Gabriela Brands
(opinião)
12 - Larissa Griguc
(edição de imagens)
13 - Rozana Ellwanger
(edição, opinião e reportagem)
14 - Wesley Soares
(produção e reportagem)
15 - Urgel Souza
(reportagem)
16 - Pedro Garcia
(reportagem)
17 - Aline Silva
(produção e reportagem)
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S
O jornalismo de revista
havia morrido?
Alguns de nós, especialistas ou não, haveremos de nos
perguntar, para além da surpresa que o novo sempre
representa quando sabemos dele, por que, afinal, alunos de
jornalismo ainda criam revistas em sala de aula. A indagação
tem razão de ser: seria muito mais fácil, dinâmico e barato,
por exemplo, simplesmente veicular matérias em sites cujo
suporte é a internet, do que em papel, caro e invariavelmente
preso a lógicas espaço-temporais lentas, sobretudo de difícil
resolução. Neste sentido, criar revistas seria uma espécie de
paradoxo evolutivo, com tudo o que isso possa significar;
realizá-las, um desperdício.
Ocorre que estes mesmos olhares não consideram, ou
sabem, que aquelas velhas e apressadas profecias que, não
muito longe, preconizavam o final dos suportes e narrativas
convencionais com o advento da web deram com os burros
n'água, literalmente. Ou seja, erraram, e feio, ao sugerir que o
jornalismo em forma de revista estava com seus dias contados
em tempos de profunda imersão tecnológica. O “erraram, e
feio” fica por conta de, paradoxalmente, a linguagem utilizada
em revistas não apenas manter-se viva como influenciar o
jornalismo feito em jornais impressos, rádios, televisões e,
porque não dizer, na internet. Por linguagem entendemos não
só as palavras escritas, mas também as fotos e a diagramação,
para ficarmos em três.
Tomando a premissa como verdadeira, chegamos à conclusão
que exercitar jornalismo de revista, para além do exercício de
construção de textos elaborados e fotografias idem, desde o
âmbito universitário é mais que uma obrigação: trata-se de
uma necessidade vital aos jovens aprendizes. Em especial
quando, e este é o caso da Exceção, a proposta recai sobre o
que é diferente, novo, inusitado; não apenas em termos de
conteúdo editorial, mas também gráfico-imagético. Toda a
vez que isso ocorre, o jornalismo demonstra vitalidade desde
o âmbito universitário, o que é bom para todos. É o que se
espera desta primeira edição de sua revista Exceção neste
2009.
Uma boa leitura a todos.
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SUMARIO
Memórias do crack
Quando os ouvidos vêem
O pescador que não gosta de peixes
Separados até na morte
Memórias de um vendedor de sonhos
A música que verte do chão
08
11
12
16
20
22
26
28
30
34
36
40
42
46
O encantador de búfalos
Uma vida em sete dias
O homem dos relógios gigantes
Vida de chapa não é mole
Loucos por bocha
Meu bicho de estimação não é um cachorro
Miséria não se esquece
Quatrilho: a história de uma amor proibido
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opinião
Idealismo...
eu quero para viver!
Rozana Ellwanger
Idealista talvez seja o melhor adjetivo
para definir esta “nova safra” de
jornalistas. Temos tanta fé em mudar
o mundo que nos esquecemos de
que a vida real não é tão simples
assim. Ao ingressar no mercado
de trabalho, percebemos que se
conseguimos mudar a vida de pelo
menos uma pessoa já é uma grande
conquista. Afinal, não é nada fácil ser
o super-homem que exige o Estatuto
dos Jornalistas. Mudar o mundo é
improvável, mas isso não nos impede
de tentar.
Foi isso que fizeram nossos
precursores, nos idos de 1970:
tentaram mudar, senão o mundo, pelo
menos o Brasil. De 1964 até 1985 o
país viveu a sua mais feroz ditadura.
A imprensa foi calada pela censura. A
repressão fez vítimas fatais e deixou
marcas eternas nas que sobreviveram.
Acusados de “subversão” simplesmente
“sumiam”, levados pelas mãos dos
militares que comandavam a nação. E,
entre as profissões consideradas pelos
comandantes como mais perigosas
para a segurança nacional, estava o
jornalismo.
Nos 21 anos de regime militar centenas
de pessoas desapareceram e outras
tantas morreram, entre elas muitos
jornalistas. O caso de Vladimir Herzog,
jornalista “suicidado” nas câmaras de
tortura do Exército em 1975, foi apenas
um. Na época, quem tentasse mudar
o Brasil corria sérios riscos. Criticar o
governo, então, nem pensar. Quem
o fizesse estava automaticamente na
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mira dos militares, que abusaram da
censura para amordaçar a imprensa.
É neste cenário de medo, perseguições
e mortes que surgiram aqueles que
podem ser seguidos como modelos
no exercício do jornalismo. Muitos
jornalistas se calaram diante das
pressões do governo, mas houve
também uma parcela que rejeitou
a idéia de viver em um país sem
liberdade de expressão. Apesar de
toda a violência e das perseguições,
alguns ousaram lutar. Mas eles não
empunharam armas; usaram do meio
que dispunham para denunciar as
arbitrariedades do regime: a palavra.
Driblaram a censura, fundaram
jornais de oposição e, principalmente,
mostraram à população que algo
estava errado.
Medo, não tenho dúvidas de que eles
sentiam. Mas deixavam o sentimento
de lado, abandonado como já haviam
feito com os tipos móveis, em prol
daquilo que todo o ser humano busca:
liberdade. Estes sim foram idealistas.
Jornalistas que não se curvaram diante
do arbítrio e lutaram para mudar
senão o mundo, pelo menos o seu
país. E conseguiram. Fizeram o povo
enxergar que a ditadura deveria acabar
e enfim, depois de 21 anos, ela acabou.
Estes jornalistas sim devem ser nossos
exemplos. Afinal, se eles lutaram
e viram o Brasil mudar, podemos
mudar algo também. Mesmo que
não consigamos mudar o mundo, se
seguirmos sendo idealistas podemos
mudar pelo menos a vida de alguém.
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Ana Flávia Hantt
De gotinha em gotinha, a querida
Pandora foi se curando. Já era a
serelepe de sempre. Logo vi, em certa
manhã, quando a amada Pandora
caiu doente. Não movia um músculo
sequer. Não pulou em cima da cama
assim que ouviu o meu despertador
tocar. Não ganiu insistentemente com
aquela cara redonda e os dentes a
mostra para dizer que chegava de sono
e era hora de brincar. Apenas o que
mexia naquele corpo peludo eram as
pálpebras, as únicas que ainda tinham
força para esboçar um movimento.
Tem algo errado com essa cachorra,
pensei. "Benzinho, amor, lindinha.
Acorda." Olhar de canto para mim. Ela
apenas fechou as pálpebras. Então
eu comecei a me assustar. Quem
conhece a Pandora, sabe do que
eu estou falando. Ela é um doce de
cachorra, uma rotweiller linda. Mas
devido ao seu temperamento um tanto
destrambelhado e hiperativo, ganhou
alguns apelidos carinhosos. O mais
doce deles a Pandorinha ganhou da
minha dinda: demônio.
Pois bem. O que uma pessoa com
instinto maternal por uma cachorra de
três anos de idade faz nesse momento?
Liga desesperada para o veterinário,
claro. O Doutor Raposa veio, examinou
a Pandorinha e disse que precisava
leva-la para maiores exames.
A tardinha chegou e fui imediatamente
visitar minha cachorra. Lá estava ela,
deitada bem no fundo da sua jaulinha.
Admirei-me quando o veterinário
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disse que o problema de Pandora era
depressão. Ele, no entanto, me explicou
que ela devia ter ficado ressentida pelo
fato de ter sido castrada.
opinião
Pandorinha
voltou a sorrir
Resumo da história: passei a frequentar
terapias de grupo com a minha doce
cachorrinha. Sim. Vocês também
conseguem imaginar a cena? Euzinha,
ao lado de uma rotweiller, sentada
em roda junto a outras pessoas com
seus cães. Conversávamos e fazíamos
exercícios em dupla. Detalhe que o
exercício em dupla aqui quer dizer, eu
e Pandora, depois eu e Fred, eu e Bob,
eu e Mel, eu e Pretinha... pelos nomes,
nem preciso dizer em qual espécie se
enquadravam os meus parceiros de
trabalho, certo?
Aliado a isso, cinco vezes ao dia eu
precisava pingar na língua da Pandora
dez gotinhas de remédio homeopático.
Aquilo lhe aliviaria as angústias,
ensinou o Doutor Raposa.
Dois meses depois, cinco vidros de
remédio, cerca de 16 encontros para
terapias em grupo, e a Pandorinha
voltou a sorrir!
Ok, ok... cães não sorriem, eu sei. Mas
a minha pequena voltou a ser como
sempre. Os carteiros e entregadores em
geral voltaram a ter tiques nervosos, os
gatos voltaram a não cruzar na minha
rua, os pardais e bem-te-vis passaram a
ficar apenas em cima das árvores... Em
outras palavras, tudo voltou à calmaria
de sempre. Tudo graças as terapias e as
gotinhas homeopáticas.
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FOTOS: mÁRCIA mELZ
O ENCANTADOR
DE BÚFALOS
Antonio Trierweiler é veterinário
especializado em bubalinos. Mas
muito mais do que simples animalões de
o que o torna diferente é o fato de
amansar e atrair os animais por
Ana Flávia Hantt
meio do som de música gospel
A música os transforma. Mas não é
qualquer melodia. Os bubalinos reagem a
tocada no violino
uma música em especial: a música gospel
No interior do município de General
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cerca de uma tonelada cada.
Amazing
Grace.
Quando
tocada
por
Câmara, depois de andar por estradinhas
Trierweiler, os animais começam um trote
de chão serpenteantes e um tanto quanto
silencioso pelas pastagens. Os búfalos são
esburacadas, chega-se a uma fazenda onde
atraídos pelo som, mesmo estando a 200,
se cria búfalos para reprodução, trabalho
300 metros de distância.
no campo e corte. Nada anormal para
Mais do que ter um gosto refinado
uma região que possui inclusive uma festa
por música clássica, os búfalos do veterinário
para homenagear o animal. No entanto,
se tornam carentes ao ouvi-la. Querem
na morada de tijolos à vista do veterinário
carinho, atenção. Querem ser alisados e
Antonio Trierweiler, os búfalos se tornam
mimados. Animais que possuem força
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para serem comparados a tratores e uma
participavam da competição. Assim, acabou
cara preta nem sempre amistosa tornam-se
amansando os animais.
dóceis animaizinhos de estimação. E tudo,
garante Trierweiler, devido à música.
Trierweiler iniciou a criação de
búfalos em 1980, sendo que o gosto
Esta reação foi notada pelo vete-
pela espécie deve-se às suas qualidades
rinário de 46 anos em 2003. Integrante das
intrínsecas, como longevidade, rusticidade
orquestras de Lajeado e da Universidade de
e fertilidade. A docilidade é outro fator
Santa Cruz do Sul, ensaiava no alpendre
que atraiu o veterinário. Atualmente, dos
de sua casa, quando dois animais que
77 animais que possui, alguns são tão
estavam sendo preparados para a Expointer
amorosos que passaram a praticamente
reagiram à melodia. “Toquei várias músicas
integrar a família do veterinário.
e nesse ínterim eles apenas olhavam na
O búfalo Índio, um touro de 990
minha direção e continuavam a pastar. Foi
quilos e seis anos de idade, é, literalmente,
então que comecei a tocar Amazing Grace
o cachorrinho da família. Animal de
e para minha surpresa eles vieram ao meu
estimação de Carlinhos, de cinco anos,
encontro.” Como profissional especializado
filho do veterinário, é tri-grande campeão
em bubalinos, resolveu fazer experiências:
da sua raça e nunca foi vendido por ser
tocou em épocas e horários diferentes. Os
o preferido do menino. Desde um ano de
animais? Sempre reagiam à canção.
idade, Carlinhos monta em seu lombo e
passeia pelo quintal da casa.
ENCANTADOR DE BÚFALOS
Esse é também o caso de Marajó,
Antonio
um macho de seis anos amansado para
Trierweiler ganhou a denominação de
montaria, tração e para o arado. No seu
encantador de búfalos na Expointer. Munido
rebanho de cria, uma fêmea conhecida
com seu violino, saiu tocando a música pelo
como 47, ao ver o criador se aproximar, fica
parque de exposições na cidade de Esteio,
quieta, apenas esperando receber carinho.
tendo em seu encalço os dois búfalos que
“Quem conhece búfalos sabe que eles
No
mesmo
ano,
Os búfalos se
aproximam e ouvem a
música de Antonio
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REViSTA ExCEçãO
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andam todo o tempo juntos. Ela chega a se
separar do resto para me esperar”, mostra,
ao mesmo tempo em que afaga o animal.
A docilidade de alguns, inclusive,
os salvou do abate. O búfalo 16, que integra
o rebanho de engorda, não será vendido
para corte por já ter conquistado a afeição
de Antonio. Quando toca sua canção, o
animal se aproxima do músico e não se
afasta até ter satisfeito completamente a
sua necessidade de atenção.
O SEGREDO
Apesar de ser técnico de registro
genealógico da Associação Brasileira de
Criadores de Búfalos e músico desde
A canção tocada ao violino amança os animais, que permitem até serem montados
criança, Antonio Trierweiler não sabe por
que a música Amazing Grace em particular
esquecem os maus tratos.
animais. “Não devemos ter raiva nem
surte efeito nos bubalinos. O músico
Da mesma forma, quem assiste
medo, pois a adrenalina provocada por
suspeita que seja a vibração das notas,
Antonio Trierweiler atraindo dezenas de
estes sentimentos é percebida pelo faro,
que, de alguma maneira, soa familiar aos
búfalos pelas pastagens de sua fazenda
provocando neles uma reação de hostilidade
animais. Com memória de fazer inveja
apenas com o som do violino não esquece.
por representarmos perigo a eles.” O
a qualquer humano, os búfalos, uma vez
E mesmo não sabendo como isso acontece,
segredo, então, é entrar nas pastagens
amansados ou adestrados, não esquecem
o veterinário sabe o suficiente para manter
com o coração aberto? “De coração aberto
o aprendizado, assim como também não
uma relação de amizade com os seus
e violino em punho.”
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Memórias do crack
Rozana Ellwanger
Do ponto de vista químico, o crack pode ser definido como uma mistura de cocaína
em pasta não refinada com bicarbonato de sódio, muito viciante. Já alucinação é
a percepção real de algo que não existe, além de uma das conseqüências do uso da
droga. Explicações à parte, a droga é tão poderosa que, durante a recuperação, é
comum dependentes químicos verem coisas que não existem. Ou melhor, que só existem para eles. As histórias relatadas nesta matéria ocorreram em uma clínica para
drogados localizado em uma igreja de Venâncio Aires.
PORTAS QUE APARECEM...
ILuSTRAçãO: AmAndA mEndOnçA
Reunidos, junto com o coordenador do programa de recuperação de viciados em crack, um grupo de adolescentes rezava
e cantava. Todos estavam bem e nenhum deles havia tido crise
de abstinência. Pelo menos não naquele dia. De repente, um
deles se levanta e olha tranqüilamente para a parede, sem nenhum móvel no caminho. Para os outros era apenas uma parede branca. Mas para ele, ali havia uma porta e a possibilidade
de sair daquele lugar. Ele então empreende uma corrida digna
FOGO SEM RASTROS
de velocista em direção a ela e... paff! Todos ouvem uma batida
seca no cimento e vêem o garoto caindo de costas no chão.
O garoto de 17 anos jamais vai esquecer o que houve na noite de
sexta-feira. Ele estava sentado com os outros jovens, conversando,
...E PRIVADAS QUE SOMEM
no dormitório quando, ficou tudo em silêncio e ele começou a
A luta contra o vício às vezes também é uma luta contra o tem-
sentir um calor infernal. Olhou para si e viu fumaça saindo de sua
po. Um certa noite, um rapaz estava conversando normalmente
camiseta. Na mesma hora arrancou a blusa. Ele então a esticou em
com os outros. Até que avistou a bateria da banda e caminhou
sua frente e viu claramente que ela pegava fogo. Faíscas voavam
calmamente em direção ao instrumento. Chegando lá, abriu o
em sua direção. Na mesma hora ele jogou a camiseta para longe,
zíper da calça e se preparou para “dar uma aliviada”. Foi quando
em cima da cama, e ela desintegrou-se em cinzas, deixando o col-
o coordenador parou ao seu lado e perguntou:
chão marcado pelo fogo. Tudo certo, ou melhor, tudo errado, não
- O que você tá fazendo!?
fosse o fato de que ninguém, - nem mesmo o pastor -, acreditava
- Eu vou fazer xixi.
em sua história. O único que tinha certeza disso era ele mesmo,
- Mas aqui?
apesar de suas roupas estarem intactas.
- Não tem problema. Depois eu puxo a cordinha.
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ILuSTRAçãO: AmAndA mEndOnçA
UMA
VIDA EM
SETE DIAS
Pai de Laura, o divorciado Diego Paiva, 25 anos, vive com seus
pais. Sua vida se resume basicamente aos estudos, ao escritório
de contabilidade da empresa, aos amigos e à filha, de cinco anos.
Laura, a filha do jovem divorciado, é o xodó da família de Diego.
Letícia Schmidt
Paiva também é louco por café e futebol
SEGUNDA- FEIRA
6h20min soa o despertador.
os colegas, mas nada muito demorado. Após o almoço é hora de
Levanto e começo a me arrumar
um bate-papo com os colegas. 12h55min: volto para o escritório e
para ir trabalhar. Mas antes
vou escovar os dentes. 13 horas: inicio as atividades normalmente.
de ir para o serviço, vou até
14h15min dou um tempo para um café. 15h30min: dou uma saída
a casa de minha ex-mulher
da empresa para ir buscar algumas notas fiscais. Chegando de
buscar minha filha Laura, de
cinco anos. Casei-me muito cedo, aos 18
volta ao escritório, por volta das 16h45min, é hora de outro café, o
último do dia. 17h10min: começo a me organizar para ir embora.
anos de idade. Foram sete anos de casamento maravilhoso.
17h40min: chego em casa e vou brincar um pouco com minha
Mas, como nada é para a vida toda, minha ex-mulher e eu
filha, já que agora é sempre complicado nos vermos por causa do
resolvemos nos divorciar. Como estamos em processo de
horário, que é incerto. 18 horas: levo minha filha para casa da mãe
separação, minha filha fica de um lado para o outro, sem
dela. Estes momentos em que entrego minha filha para a mãe dela
horário para nada. Após pegar minha filha, a levo para minha
são muito complicados para mim, pois sou extremamente apegado
casa, onde ela fica aos cuidados de minha mãe. Chegando à
a ela. Em seguida vou jogar futebol com uns amigos. Por volta das
empresa, por volta das 7h05min, vou direto tomar um café. Em
20 horas, quando chego em casa, vou tomar meu banho e saio
seguida, dirijo-me até minha sala e começo minhas atividades
para o shopping jantar. Às 21 horas retorno para casa, assisto um
no trabalho. Na metade da manhã surge uma reunião com
pouco de televisão e vou dormir.
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REViSTA ExCEçãO
TERÇA- FEIRA
Soa o despertador às 6h20min. Levanto e começo a me arrumar. Pego meu carro
e saio para o trabalho. 7h05min: chego na empresa e vou tomar café. Após isso,
dirijo-me até minha sala e começo minhas atividades no trabalho. 8h30min: dou
um tempo no trabalho e vou tomar um café na copa. 10h30min: dou mais
um tempo para outro café. 11 horas: vou ao setor da fábrica documentar
alguns equipamentos. 12h05min: saio para o almoço na empresa. 12h55min:
volto para o escritório e vou escovar os dentes. Em seguida inicio as atividades de trabalho
normalmente. 14h30min: dou um tempo para meu famoso café. 17 horas: tomo mais um café, o último do
dia. 17h18min, fim do expediente. 19h10min assisto ao jogo do meu timão, Grêmio. 20h45min: minha mãe
serve a janta, mas como não perco por nada deste mundo o jogo do meu time, janto na sala mesmo. Com o
término do jogo, tomo meu banho e vou para meu quarto estudar, pois faço curso de inglês. Acabo dormindo
com os livros na mão.
QUARTA- FEIRA
6h20min: levanto para ir trabalhar. Chegando à empresa vou tomar
meu café. E ao entrar em minha sala de trabalho me deparo com
muitos de papéis na minha mesa: nossa! O dia vai ser longo pelo
visto!! E, para ajudar, uma reunião com duração de uma hora. Após
isto, pelas 8h30min, dou um tempo e vou tomar um café na copa.
10h30min: volto para a copa para mais um café, meu grande e único
vício. Com o término do expediente, vou direto jogar um futebol com os colegas da empresa. Em
seguida, vamos tomar uma cervejinha e aproveitamos para bater um papo-furado. Depois vou para
casa, janto com minha família e vou dormir.
QUINTA- FEIRA
6h20min: levanto para ir trabalhar. 7h10min: chego à empresa e vou tomar café. Ao
entrar em minha sala, percebo que não há serviço para mim. Resumindo: passo
o dia todo tomando café e conversando com os colegas para passar o tempo.
17h18min, fim do expediente. Após o serviço, pego minha filha Laura na casa
da minha ex . Resolvo levar ela na pracinha do centro. A Laurinha volta com
os joelhos esfolados de tanto brincar e cair na areia. Em seguida vou para casa dos
meus tios, com minha mãe e meu pai, jantar. Após isso, vou à casa de um amigo meu para
conversar um pouquinho. Confesso que é muito estranho voltar para a casa dos pais após cinco anos
morando fora, pois é tudo diferente. Mas agradeço muito a eles, meus pais são muito bem centrados
e de corações enormes. O mais legal de tudo é que voltei a receber os mimos de minha mãe!!
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LETÍCIA SCHmIdT
SEXTA - FEIRA
Quinta, véspera de feriado, volto da casa
de meu amigo às 4 horas da manhã.
Mas, mesmo assim, levanto cedo, pelas 7
horas para buscar minha filha. Mas quando
chego em casa com minha filhota não agüento
de sono e vou deitar mais um pouquinho. Porém, de nada adiantou. Logo
chegam em casa meus parentes e a folia começa. Mesmo assim, fico até
9h30min deitado na cama e, ao levantar, vou conversar com meus parentes.
À tardinha, infelizmente levo minha filha para a casa da minha ex. Em seguida
vou até o shopping jantar. Aproveito que estou pela rua e dou uma volta
de carro sozinho mesmo. Acabo encontrando meu primo pelo Posto do
Pflug, então aproveito e fico ali mesmo com ele e uns amigos conversando
e tomando uma cerveja. Minutos depois vamos para o apartamento do meu
primo jogar vídeo-game. Pela 00h30min volto para minha casa.
SÁBADO
Acordo pelas 9 horas, tomo um café e vou para o posto lavar o carro. Logo após, levo
minha mãe para fazer umas comprinhas no Centro. Chegamos em casa e faço uma média
com meu pai: vou fazer um super churrasco. Na parte da tarde, fui buscar minha filha
Laura. A levo para comer um sorvete pertinho de casa. Nossa! Quanta alegria dessa
menina! Apesar de a Laura ter apenas cinco anos de idade, ela já consegue entender
perfeitamente que os pais dela não conseguem viver mais juntos. Mas me sinto extremamente
satisfeito com o crescimento dela: pois é saudável, alegre, muito inteligente e querida. Em seguida voltamos
para casa, conecto meu Messenger e combino com o pessoal que está on-line de sair à noite para uma
balada. Após isso, levo minha filha para a casa de minha ex-sogra e a deixo com ela. Mais tarde vou até a
casa de um amigo meu para pegá-lo, pois fomos vamos para a balada. Chegando lá, encontramos umas
colegas da empresa. Fizemos uma grande festa!
DOMINGO
Acordo às 10 horas da manhã para levar minha filha de volta para a casa da mãe.
Após isso, vou direto para meu irmão para almoçar. Mas logo após o almoço, volto
para casa para dormir, acordando somente às 16 horas. Ao levantar conecto meu
Messenger e ali fico durante duas horas conversando com o pessoal que está on-line. Lá
pelas 19 horas vou até o mercado fazer umas comprinhas para minha mãe. Aproveito e já
dou uma volta na Avenida Imigrantes para ver o movimento. Chegando em casa vou logo
para a residência do meu vizinho e amigo para olharmos o jogo do Inter, ou melhor, secar o Inter. Mas nada
adiantou, o massacre foi de 4 X 0 do Inter sobre o Canoas. Retorno para casa, janto e logo vou dormir.
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quando
os ouvidos
VêEM
A tecnologia evoluiu e se tornou uma aliada para que as
FOTOS: LETÍCIA SCHmIdT
pessoas com deficiência visual possam se comunicar com mais
facilidade. Graças a ela surgiram as falas Sapi. Conheça agora
Fernanda, Gabriel, Raquel e Felipe
Cristian não se intimida com o avanço das tecnologias
Aline Silva
As pessoas nascem com cinco sen-
Os leitores de tela fazem a leitura
tidos fundamentais. Tato, paladar, audição,
de tudo o que aparece no visor por meio
olfato e visão. Aqueles que já não contam
de sintetizadores de voz. Ao contrário do
mais com os olhos para ver, fazem de seus
que se possa imaginar, as vozes são huma-
ouvidos e mãos exímios ajudantes para a
nas. No entanto, são sintetizadas por pro-
convivência diária, principalmente com a
gramas específicos, como o Soundfourge.
tecnologia. Outros utilizam-se das máqui-
O leitor de tela faz a interpretação do que
nas para expandir seus horizontes. Foi
está escrito e o sintetizador fala. A qualida-
assim que surgiu a Fernanda, o Gabriel, a
de de um sintetizador de voz é determina-
Raquel e o Felipe.
da pela semelhança com a voz humana e
Apesar dos nomes próprios, não es-
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sua capacidade de compreensão.
tamos falando de pessoas. Muito menos
Felipe Garcia é um jovem de 17
auxiliares que se sentarão próximos à tela
anos, deficiente visual desde o nascimento
do computador. Eles na verdade existem
e há pouco mais de um ano tem utilizado
somente no mundo virtual: são todos vozes
os leitores de tela. Ensinado por um amigo,
sintetizadas, que facilitam a utilização do
hoje ele auxilia pessoas que queiram utili-
computador por pessoas com deficiência.
zar esses programas. Na internet, ele faz o
Os nomes servem apenas para aproximar
download das chamadas vozes e as forne-
ainda mais o homem e a máquina.
ce a quem se interessar. “No grupo de pes-
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REViSTA ExCEçãO
falas sapi e dosvox
17
Sapi é uma sigla em inglês que quer dizer
Speech Application Programming Interface.
Trata-se de uma API (Application Programming
Interface) desenvolvida pela Microsoft que
permite a utilização do reconhecimento de voz.
Ou seja, as vozes sintetizadas, projetadas para
que os programas consigam comunicar de uma
maneira fácil, acessível por meio de diversas
linguagens de programação com o software
que reconhece a voz ou que converte o texto
para voz.
Já o Dosvox é um sistema para
microcomputadores brasileiro, elaborado
pelo Núcleo de Computação Eletrônica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Permite que pessoas cegas utilizem um
microcomputador comum para desempenhar
uma série de tarefas, adquirindo assim um nível
alto de independência no estudo e no trabalho.
ILuSTRAçãO: bRunO SEIdEL
soas cegas que participo, sempre bus-co
ter de pedir auxílio para ninguém. O único
trazer coisas novas e informações sobre as
inconveniente, garante, é se alguém utiliza
falas Sapi (vozes sintetizadas)” (veja box).
seu computador. "Aconteceu esses dias,
Ele garante ser um deficiente visual ante-
pensei que o micro tinha estragado, quan-
nado, que gosta de divulgar e ajudar mais
do na verdade tinham tirado o áudio. Isso
pessoas a conhecerem esses programas.
é sacanagem para quem se baseia na voz
Felipe acredita que sem os recursos atuais
para trabalhar". Cristian é um exemplo de
seria tudo mais difícil. “Se não existisse o
como a tecnologia pode ajudar na adapta-
computador com estes recursos auditivos
ção para uma nova condição de vida. Mes-
na vida do cego, seria tudo mais compli-
mo tendo perdido a visão ele se adaptou e
cado, como era no passado. Hoje, com a
hoje consegue realizar diversas atividades
internet e com os leitores mais avançados,
que, sem as evoluções tecnológicas, seriam
podemos acessar páginas e programas
praticamente impossíveis.
mais facilmente”.
As vozes sintetizadas e os leitores
Cristian Evandro Sehnem é defi-
de tela cumprem hoje um papel de des-
ciente visual e usuário de um desses pro-
taque no mundo virtual. O que os olhos
gramas. Todos os dias recebe milhares de
não vêem, os ouvidos compreendem com
e-mails, participa de grupos de discussões,
a ajuda da máquina e seus usuários assim
navega tranqüilamente pela internet sem
são inseridos no mundo tecnológico.
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Quer saber mais? Acesse
http://arquivossonoros.blogspot.com/
e http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/
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a possibilidade de seguir
“Perdi a visão aos 20 anos de idade, quando cursava o quinto
semestre de Ciência da Computação na Unisc. Inicialmente
busquei os conhecimentos da linguagem Braile, pois tinha
a idéia de que pessoas com deficiência visual usavam apenas
esse recurso. Mas não conseguia ler e escrever muito bem
em Braile, pois tinha o sentido do tato já limitado pela
idade adulta, e também a paciência para ficar catando letra
por letra era pouca, já que tinha a experiência do ler
com os olhos.
No ano seguinte, em
1997, fiz um curso
de informática pelo
Senai, com o Sistema
Operacional Dosvox,
criado pela UFRJ
para pessoas com
deficiência visual.
Como eu já conhecia o
computador, tive uma
certa facilidade para
reaprender a usá-lo,
mesmo que a voz
fosse, naquela época,
complicada.
Era uma
voz chiada,
muito mais
robotizada,
mais quadrada
ainda que as que
temos hoje . E
ainda fazia a leitura
por sílabas, o que
nem sempre
dava para
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entender. Naquela época, para se ter uma idéia, o programa
vinha em disquetes, dez no total, junto com um pequeno
equipamento que era acoplado ao computador, que não
vinha com multimídia.
Mas um tempo depois, se não estou enganado no ano 2000,
já trabalhando na Unisc, consegui comprar um computador,
e então tudo mudou. É outra coisa ter um computador
em casa. Instalei o Dosvox, mas também o Virtual Vision,
software leitor de tela. O Virtual Vision possuía uma síntese
de voz muito melhor, mais clara, compreensível, e permitia
o uso do Windows, o que foi um avanço. Enquanto o Dosvox
tinha toda uma estrutura própria, o Virtual Vision trabalhava
com base no Windows.
A partir de então o Braile passou a ser utilizado apenas
para identificar objetos, documentos, pastas, CDs e assim
por diante, porque nos estudos, trabalho e mesmo lazer o
computador com leitor de tela tornou-se inquestionável.
Hoje defendo o uso de computadores por pessoas com
deficiência visual. Não consigo imaginar um estudante
apenas com reglete e punção (instrumentos para a escrita
Braile), por entender que no computador os recursos são
maiores, mais rápidos e atuais. Enquanto um livro em Braile
demora meses para ser publicado, uma informação no
computador, ligado à internet, dá a notícia minutos após ter
acontecido, mesmo que no outro lado do mundo.
Também não se pode esquecer que esses softwares leitores
de tela não são utilizáveis apenas no computador. Há uma
série de equipamentos que também contam com esse
formato de adaptação, como celulares, máquinas de lavar
roupas, termômetros... enfim, através da audição a pessoa
com deficiência visual tem novas possibilidades e pode
usufruir de muitas vantagens.
Por isso, hoje, não me imagino sem esses recursos. Se estudo
e trabalho é porque tenho um importante e ágil instrumento
para minhas atividades.”
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REViSTA ExCEçãO
20
O HOMEM
dos RELÓGios
GIGANTES
Em meio a sinos, ponteiros e engrenagens gigantes, Dauri Klein
reina absoluto. Ele se dedica a uma profissão peculiar e cada
vez mais rara: mecânico de relógios públicos
Thiago Stürmer
O som do sino reverbera por vários
O início de Klein no ofício, claro,
quarteirões, mas seu efeito é discreto entre
foi com um relógio estragado. Em 1998
os moradores já acostumados. Dentro da
já faziam dez anos que os ponteiros do
torre da igreja, porém, é quase impossível
templo da comunidade luterana de sua
fi car indiferente às badaladas. Ali, onde
cidade, Marques de Souza, no Vale de
a rusticidade das paredes de tijolo à vista
Taquari, marcavam o mesmo horário. Klein,
contrasta com a valorização da arquitetura
proprietário da única relojoaria de Marques
no lado de fora, o estrondo das toneladas
de Souza, foi chamado para resolver o
de bronze sendo zurzidas pelo martelo
problema. “Eu achava que não conseguiria
continua soando na cabeça por alguns
arrumar. Nunca havia visto um relógio com
segundos depois do silêncio dos sinos.
peças tão grandes, não tinha nenhuma
Quem vê de perto pela primeira
noção. Sorte que eles insistiram”, conta
vez se assusta. Dauri Dilso Klein nem nota.
Klein, de 54 anos, com sua fala pausada e
A torre da igreja é seu escritório de trabalho.
correta de professor.
O relojoeiro foi daquelas crianças
É ali que fica a máquina dos relógios,
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onde Dauri reina entre engrenagens e
mais
interessadas
em
desmontar
os
ferramentas. O técnico relojoeiro é uma
brinquedos e entender seu funcionamento
das únicas pessoas do Estado especializada
do que propriamente brincar. Nos fundos
na manutenção de relógios públicos – ou a
de sua casa, instalou um oficina para
única, como ele defende.
desenvolver sua imaginação. De lá saíram
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REViSTA ExCEçãO
THIAGO STÜRmER
21
Nos últimos meses sua reputação chegou
à região sudeste e ele freqüentemente
recebe ligações de lá. Nas primeiras vezes
Morador do Vale do Taquari já consertou relógios nos três estados da região Sul
que passou meses fora de casa para
consertar um relógio chegou a cogitar o
abandono do ofício. Agora, não consegue
desde as peças de relógio danificadas pelo
América Latina registrada para a função,
mais recusar pedidos. “Me sinto como um
tempo até o sistema de som que ele tem
que funcionou até o fim dos anos 1990
médico que pode salvar a vida de alguém e
instalado na parede de seu banheiro. Técni-
em Estrela, também no Vale do Taquari.
não faz”, exagera.
co em eletrônica pelo Instituto Universal
A Schwertner produziu 14 diferentes mo-
Um dos maiores orgulhos de Klein
Brasileiro, Klein desenvolveu também um
delos de relógios. Conforme Klein, todo
é a restauração do relógio de Vila Theresa,
sistema que desliga as batidas do relógio
equipamento instalado nas torres das igre-
em Bagé, na fronteira do Rio Grande do
sem interferência no funcionamento dos
jas do Estado é da marca, foi construído
Sul. O modelo importado da Alemanha em
ponteiros. O mecanismo foi criado para
artesanalmente ou trazido da Europa.
1908 funcionava a corda e foi transformado
não perturbar os moradores do Centro de
Por acaso, foi um dos filhos
em automático, depois de 50 anos parado.
Alegrete, onde fica a igreja Nossa Senho-
do fundador da empresa o responsável
O trabalho durou três meses. Agora, o local
ra da Conceição Aparecida, local onde o
pela propagação do nome de Klein como
será transformado em centro turístico, com
relógio estava há 35 anos parado antes de
consertador de relógios públicos. Com
recursos privados e através das leis Rouanet
ser consertado.
mais de 90 anos, Theobaldo Schwertner
e de Incentivo à Cultura. “Aquilo estava
Mas Klein não é procurado apenas
ainda era procurado para arrumar os
abandonado, agora foi transformado em
por ser o único a se dedicar ao conserto
equipamentos produzidos pelas empresa.
um lugar lindo”, orgulha-se.
dos relógios. Mesmo que houvesse vários
“Estou velho, não faço mais e não sei quem
Klein sabe que, quanto mais
profissionais, sua dedicação o destacaria. “A
o faça”, respondia, até um fim de semana
avança o tempo, mais importância ganham
cada seis meses, eu ligo para as comunida-
de 2003, quando foi a Marques de Souza
os relógios públicos como relíquia histórica.
des para perguntar como está o relógio,
e viu o relógio construído por seu pai no
Ele está com 54 anos; logo pretende se
insisto para que façam a manutenção”,
inicio do século funcionando novamente.
aposentar e não há ninguém para substituí-
diz. “Mesmo que o relógio foi construído
Daí em diante, seu discurso com os ex-
lo. Seu sonho é poder fazer uma espécie
há cem anos, se bem cuidado, daqui a
clientes mudou: “Estou velho, não faço
de escola profissionalizante onde possa
mais cem ainda vai estar funcionando”.
mais, mas sei quem pode fazer”.
ensinar seu ofício a jovens. A função, ele
O técnico também tem na memória nú-
Dílson Klein já fez voltarem a
diz, é fácil: o aspirante precisa apenas ser
meros e dados sobre a antiga fábrica de
funcionar mais de 50 relógios no Rio Grande
disciplinado e curioso - qualidades que
relógios públicos Schwertner, única na
do Sul, no Paraná e em Santa Catarina.
Dauri Dilso Klein tem de sobra.
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FOTOS: WESLEY SOARES
O PESCADOR
QUE NÃO
GOSTA
DE
PEIXES
Boas histórias todo pescador tem.
Mas a humildade representada por
Wesley Soares
um olhar tímido, capaz de ocultar
uma alma irrequieta, faz de seu Adão
Há 50 anos deslizando sobre o
era pescador. Bisavô, avô, pai, eu e agora
mais que apenas um pescador: um
rio Jacuí, seu Adão poderia ser apenas
meus filhos”. Ressaltar que é, de fato e de
homem que faz do rio sua vida.
mais um pescador capaz de apontar de
direito, um pescador, talvez lhe deixe mais
olhos fechados as diferenças entre traíras,
altivo do que, por exemplo, ter perdido as
muçuns, carpas, piavas, jundiás, dourados
contas de quantas pessoas já salvou nas
ou qualquer outra espécie de peixe dentre
profundas águas do Jacuí.
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os milhares, talvez até milhões, que já
Em sua vida, nada foi tão presente
pescou. Não que isso seja desprezível, muito
quanto as solitárias noites frias em que
pelo contrário, é quase uma obrigação
encarou um gélido rio atrás do sustento
perante tamanha experiência. E seu Adão
de sua família. Seu Adão pescou, e pescou
orgulha-se disso. Bate na mesa, seus olhos
muito. Ainda é do tempo em que se pegava
brilham e saltam-lhe as veias do pescoço,
dourado de 15 quilos. Com seis anos já
enquanto discursa: “Eu e meus irmãos
desafiava os perigos do Jacuí acompanhando
somos os únicos ‘pescadores de raiz’ que
seu velho pai em dura empreitada. Mas este
ainda existem em Rio Pardo. Meu bisavô
senhor de 55 anos e 20 netos, de aparência
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cansada e sorriso acabrunhado, não é do
Por vezes sente-se fisgado e impotente, tal
cerveja está proibida. Mas não tem como,
tipo que tem apenas bons e alegres causos
qual os peixes quando se prendem à redes
cada vez que como carne, sou obrigado a
de pescador na ponta língua. Sua história
ou anzóis. As marcas do tempo expostas
tomar uma cervejinha. E já que como muita
pode ser comparada, ironicamente, a dos
em um rosto que aparenta bem mais do
carne...”. O pescador Adão tem que comer
peixes: “Se me afastarem do rio, eu morro,
que os 55 anos que tem evidenciam as
peixe, mas apesar de viver da pesca, só
assim como esses bichinhos que eu pesco”.
dificuldades de uma trajetória cheia de
come carne vermelha: “Não gosto de peixe.
Mas sua vida vai muito além de quilôme-
percalços. É isso que faz do seu Adão um
Quando como é porque sou obrigado”.
tros de redes armadas e recorridas quase
homem diferente. Um homem que intriga
Em um corpo caracterizado pelas
que diariamente.
pela frieza com que relata a morte de
marcas do tempo, a expressão cansada
Ainda que se destaque o fato de ter
sete irmãos: “Éramos em 16. Quase todos
do rosto chama a atenção. Como ele
tido 15 irmãos, ter se casado pela primeira
foram pescadores, nos criamos nessa lida.
próprio diz, cada ruga tem um significado.
vez aos 18 anos, divorciado-se da segunda
Hoje estamos em nove. Todos os outros
Uma é por conta da visão, que perde
mulher após 20 anos de casamento e ter
morreram”. Um homem que, como todo
gradativamente em função da diabetes.
salvado mais de uma dezena de pessoas do
bom filho da terra, nunca desistiu. Porém,
Outras tantas devem ser postas na conta
fundo do rio Jacuí, isso não é tudo do seu
diferentemente de tantos outros, nunca se
dos filhos e netos. Outras, porque não, das
Adão. Ele é um homem que, com a teimosia
valeu do tradicional “jeitinho brasileiro”
inúmeras mulheres que já teve depois do
dos velhos sábios que desconhecem seus
para conseguir as coisas.
segundo casamento. Todavia, a maior das
próprios limites, embrenha-se rio abaixo
Em seus olhos, há uma mescla de
rugas de seu rosto, a única que é capaz
com apenas 50% da visão para, durante
malandragem e consternação, de ousadia e
de fazer o coração sangrar até hoje, é a
cinco dias, pescar novos sonhos, esquecer
aflição, de esperança e de angústia. Neste
provocada pela perda da primeira esposa,
dos problemas que ficam em terra firme
coração duro, há uma vontade diferente
após nove anos de casamento. Ela faleceu
e, se tudo correr bem, voltar com algum
de viver. Se a médica receitar uma dieta
precocemente aos 25 anos, com problemas
para controlar a diabete, não será seguida.
cardíacos. E quando se lembra dela, é um
Se cortar a cerveja, perda de tempo. “A
dos raros momentos que se percebe em seu
peixe que garanta mais algumas semanas
de tranqüilidade para sua família.
Mas então, o que falar de Adão
Antonio Moreira? Um revolucionário? Um
inovador? Não, nada disso. Apenas um
homem fora de seu tempo. Às vezes muito
atrás, quase um selvagem que consegue
viver uma vida inteira às margens do rio
Jacuí sem nenhum conforto e tirando seu
sustento apenas da pesca, assim como
fizeram os índios antes da colonização
portuguesa na terra brasilis. Outras vezes,
parece estar muito à frente de uma geração
nascida na metade do século passado.
Lembra um menino que se diverte ao
contar que a cada final de semana está
“casado” com uma mulher diferente. Já
esteve na grande metrópole São Paulo. Em
Santa Catarina, passou por Florianópolis e
Bombinhas. Do litoral gaúcho, é capaz de
citar, na ordem, todas as praias.
Nada o deixa mais feliz que expôr seus "troféus" nas sossegadas margens do rio Jacuí
Mas a vida não é tão simples assim.
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rosto um amor inabalável pelo tempo, um
sentimento que perdurará pela eternidade.
A simplicidade é, sem dúvida, sua
principal virtude. Histórias inacreditáveis
com certeza povoam sua mente, como
todo bom pescador. Mas se lhe pedem
para contar um bom “causo” do Jacuí, ele
é enfático: “Não meu filho, aqui a gente
faz quase sempre a mesma coisa. É sempre
a mesma rotina”. Quando um cliente
próximo ouve a explicação do pescador
que não gosta de peixes, não se contém:
“E aquele cara que tu salvou aquela vez,
seu Adão?”. “Ah é... Mas isso acontece
seguido, não tem nem conta... Uma vez
Adão se tranforma quando sobe em seu barco: "aqui eu sou mestre"
um rapaz tentou atravessar o rio nadando
e se afogou. Ele era muito grande, gordo
quantidades pescadas, com as rotineiras
Evangélico convicto há 30 anos,
mesmo. Eu vi e pensei: e agora, como eu
enchentes que assolam os vizinhos do Jacuí
o pescador credita suas bênçãos todas a
vou tirar esse desgraçado daí? Tinha um
e com a concorrência desleal do trairão,
Jesus. Mais um ato de humildade: excluir-
caíque de timbaúva (espécie de madeira).
um peixe trazido ilegalmente do Uruguai,
se dos seus próprios méritos durante a
Peguei este caíque, levei até onde ele estava
que pesa mais que o dobro do encontrado
trabalhosa vida. No entanto, toma muito
e virei por baixo dele. Voltei à tona com o
na região, seu Adão confessa, um pouco
cuidado para não ofender nenhuma outra
infeliz dentro do caíque. Puxei o caíque
a contragosto, com voz baixa para que
religião. Seu Adão conta que há 30 anos era
pra terra, ele já estava desacordado e com
ninguém descubra, que ainda se pode viver
católico, mas resolveu abandonar a religião.
a barriga enorme, cheia d’água. Salvei o
da pesca. Mantém uma renda em torno de
Dono de uma fé única, interpreta a bíblia
homem com um 'caicão'. Agora ele mora
R$ 2 mil por mês, valor que dobra no mês
sob o ponto de vista que lhe interessa. “A
em Tramandaí e até hoje me liga: ‘E seu
da Semana Santa. Mas quando o assunto
Bíblia explica que os rios secarão e os peixes
Adão, se não fosse tu eu não estava nem
é dinheiro, ele logo desconversa: “Você vê,
morrerão. E isso tudo está acontecendo. O
no osso hoje!’”.
tenho mais de uma dezena de netos que
católico pula essa parte. O católico conta só
vivem com este meu sustento. Hoje em dia
a parte boa da bíblia”.
Mesmo com a fiscalização cada
vez mais intensa, com a visível queda nas
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não se vive folgado mais”.
Cada peixe pescado representa o
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sorriso de um neto e, logo, a realização de seu
Adão. Ainda assim, há épocas em que o rio
e os peixes também precisam de descanso. E
nessas épocas, fora da temporada da pesca,
seu Adão normalmente gerencia uma rede
de sorvetes dentro e fora do Estado. E é
assim que Adão vai vivendo, conforme a
vida e a natureza lhe possibilitam. Quando
a enchente transborda e tapa sua casa-bar,
o que normalmente ocorre em maio, ele
A VIDA SOBRE O RIO
pega sua “gente” e as poucas coisas que
têm, atira em cima de uma barca, e fica
flutuando sobre um rio que avança à beira
Além
de
todos
os
obstáculos
do asfalto. Seu bar fica todo debaixo da
enfrentados pelos pescadores e donos de
água. E a barca é a sua casa durante meses.
bar que moram ou trabalham na Praia dos
Sua casa, seu bar, seu canto.
Ingazeiros, em Rio Pardo, uma vez por ano
Da janela da cozinha improvisada,
eles são obrigados a debandarem de suas
em cima da barca, atira sua linha em um
casas para barcas ou construções flutuantes,
Jacuí cinco metros acima do nível normal.
tamanho é a altura que o rio Jacuí alcança
Chama os clientes e anuncia: “Vou pegar
em épocas chuvosas. No último ano as
clientes que vêm de todos os lugares visitar
um lambari fresquinho para vocês”. E
águas subiram em torno de oito metros na
Rio Pardo. Tornou-se, além de restaurante,
assim acontece. Puxa a linha com um
localidade dos Ingazeiros.
ponto turístico.
lambari direto do rio para a frigideira. E
Seu Adão tem como vizinho um dos
No entanto, os demais vizinhos
isso faz sucesso. O bar lota e Adão Antonio
mais famosos restaurantes de Rio Pardo.
do Jacuí, que não contam com toda essa
Moreira, um ilustre desconhecido que
Um lugar para aproximadamente 150
“mobilidade”, improvisam como podem.
ocupa não mais do que 200 m², dos mais de
pessoas, que foi projetado sobre tonéis,
Ao contrário do seu Adão, que se muda
800 quilômetros que possui o Jacuí, segue
o que faz com que toda sua estrutura
para uma barca, a maioria dos ribeiri-
escrevendo, com o romantismo de uma das
flutue nas épocas em que o Jacuí sobe.
nhos de Rio Pardo, que possuem somente
mais nobres profissões e a perspicácia de
Empreendimento de alto custo, é uma das
estabelecimentos comerciais, apenas fe-
quem precisa reinventá-la a cada dia, uma
únicas construções à beira do Jacuí que
cham seus bares e esperam que a água
história digna de um mestre, especialista
conta com este recurso. E este diferencial
baixe para novamente limpar, pintar e voltar
em vencer obstáculos.
exótico faz dele um atrativo a mais para
a vender seu peixe.
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VIDA de
CHapa NÃo
É MOLE
Eles estão lá. Quase ninguém os vê, mas estão. São os chapas,
que vivem de ajudar os outros. Pessoas que trabalham e prezam
pelo respeito, sempre na esperança de uma vida melhor.
importante, aliás. É com base na confiança que o chapa pode até mesmo formar
uma clientela. “Se você não trabalhar
direito, o caminhoneiro não te pega mais”,
descreve Ceceu.
No meio da manhã, de repente
um caminhão pára. Dele, logo salta o
motorista para contratar os serviços de
chapa. O preço é acertado antes, com o
caminhoneiro, e varia de acordo com o
peso da carga. Após um rápido diálogo,
negociação de valores, Ceceu, um homem
determinado e com espírito de equipe,
conseguiu serviço para ele e o colega Paulo
Rogério, que seguiram para o caminhão,
onde iniciariam seus trabalhos naquela
manhã. "Você deu sorte!", diz Ceceu, ao
se despedir com um aperto de mão e um
sorriso. “Volte mais tarde ou amanhã."
No dia seguinte, estavam satisfeitos, pois o dia anterior foi de serviço.
Marinês Klittel
Mesmo com dinheiro no bolso, eles acham
que o trabalho não vale a pena. "Se eu
É manhã ensolarada de quinta-
Vidor Alceu da Silva, de 50 anos, Paulo da
gosto de ser chapa, moça? Tenho de gostar,
feira e, se a sorte favorecer a todos, será
Silva de 46 anos, Paulo Rogério, 37 anos, e
não tenho outra coisa para fazer.” O
um dia inteiro descarregando e carregando
Erivaldo Francisco, 45 anos.
movimento é fraco e o tédio toma conta em
caminhões. A placa modesta mostra que
Na luta pela sobrevivência, o chapa
muitos dias. As condições de trabalho são
estão em atividade. Os olhos não desgrudam
oferece, na beira das estradas e avenidas,
completamente precárias: sem teto, sem
do asfalto fervendo. Os dedos indicador
os seus serviços aos motoristas que chegam
banco, sem banheiro. Reclamam da falta
e médio, unidos, acenam para quem vai
do interior ou de outros estados. É um bico
de incentivo da Prefeitura. “Os candidatos
no acento do caminhão. As carrocerias
para aqueles que estão fora do mercado,
nos procuram em tempo de eleição e
passam cheias de ilusões perdidas. É mais
seja pela idade, por falta de qualificação
prometem pelo menos construir uma aba,
um caminhão que se manda estrada
profissional ou por outros motivos. “Aqui já
igual a uma parada de ônibus, mas passa a
abaixo. Essa é a vida de chapa, aqueles
foi bom. Havia época que a gente chegava
eleição e nada muda”, lamentam Ceceu e
trabalhadores que ficam à espera de
e tinha dois ou três caminhões esperando
Paulo da Silva.
um caminhão para ganhar a vida como
a gente pra trabalhar. Hoje, se alguém me
ajudante, descarregando e carregando
oferecesse carteira assinada, eu sairia daqui
São
cargas. Saem de casa cedo e o destino é
na hora”, comenta Alceu, mais conhecido
bandidos, viciados ou ladrões. Pessoas os
a esquina das ruas Tenente Coronel Brito
pelos colegas como Ceceu, o rei da turma.
procuram para saber onde tem droga para
com a 28 de Setembro, em Santa Cruz
Como toda profissão, a de cha-
vender. Outras querem contratá-los para
do Sul. Correm o risco de voltar de bolsos
pa também tem os seus macetes. Com
trabalhos “de bandidagem”. Ceceu conta
vazios. Não é escolha. Encaram a profissão
a concorrência aumentando a cada dia,
que, certa vez, foram procurados para
porque precisam ganhar o pão de cada dia.
chegar cedo, logo de manhãzinha, é um
matar uma pessoa, em um caso de traição
Esta é a historia de pessoas comuns como
deles. E a confiança é o outro; o mais
entre um casal. Num tom de espanto,
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Chapa também sofre preconceito.
confundidos
com
maconheiros,
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REViSTA ExCEçãO
mARInêS kLITTEL
27
Paulo Rogério, Ceceu
e Erivaldo exercem
diariamente a paciência e a
calma na profissão
perguntaram ao contratante: “Tu sabe o
que nós fizemos aqui? Nós trabalhamos e
não matamos”.
beber nos dias quentes”, diz Ceceu.
A valorização e a confiança que
dona Ione demonstra aos chapas quan-
As coisas não são fáceis no dia-
do avisa que vai sair de casa e pede que
a-dia destas pessoas. “Motoristas param e
cuidem do seu lar é o que eles queriam
pensam que somos fornecedores de droga
que a sociedade tivesse por eles. “São
e que temos um ponto de prostituição.
25 anos que ela olha por mim”, diz Ce-
Querem saber onde tem droga para vender
ceu, apontando o dedo para a casa de
e outros nos convidam para sair, fazer
dona Ione.
programa”, descrevem, indignados. Além
Moradores da periferia de Santa
de serem confundidos com ladrões. A polícia
Cruz do Sul, Ceceu, Paulo, Paulo Rogério
revista e pede para os acompanharem
e Erivaldo são alguns dos chapas desse
até a delegacia "para depois dizer que se
Brasil a fora, que querem apenas serem
confundiram e nos acharam parecidos com
reconhecidos pelo que fazem. Pessoas
quem eles estão procurando", reclama
que mostram superação diariamente, que
Paulo. Atitudes como estas os deixam
levam uma vida sofrida, trabalho incerto e
desprotegidos, inseguros e insatisfeitos
total falta de rotina. São pessoas comuns
com a sociedade.
que querem ser vistas como gente. Gente
Porém, engana-se quem pensa
que possui família e necessita comer, ves-
que eles só têm histórias tristes para contar.
tir e morar. Assim é o dia-a-dia de chapa,
Quando Ceceu fala da dona Ione, por
que costuma chegar em casa por volta
exemplo, o sorriso cativante de Paulo vai
das 17 horas, depois de um longo dia de
contagiando a todos. Uma ex-diretora de
trabalho. Na mochila carregam apetrechos
escola, a quem se referem com carinho e
e o sonho de um dia trabalhar com carteira
admiração. “É ela que gela a água para
assinada e salário fixo.
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por Que
No CeNTro
Em geral, os chapas oferecem seus
serviços na entrada das cidades. Isso
porque os motoristas, além da mãode-obra, muitas vezes estão atrás
de um guia, que os leve direto para
o seu destino, sem arriscar passar
com os enormes caminhões por ruas
estreitas ou com limite de peso. O
ponto onde trabalham Ceceu, Paulo
da Silva, Paulo Rogério e Erivaldo,
no entanto, fica em uma área
movimentada no Centro da cidade.
A localização tem a ver com a época
em que Santa Cruz era menor e tinha
grandes empresas em sua periferia.
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SEPARADOS ATÉ
NA MORTE
Um cemitério localizado no interior de Não-Me-Toque
lembra de um tempo em que brancos e negros eram
sepultados em lugares diferentes. Lá, a cor da pele
definia o lugar em que a pessoa seria enterrada
Fernanda Zieppe
“Ali é a ala dos negros”, diz uma
Mas ao passar pelo portão, cortejo de negro
época os negros já viviam no canto deles,
das moradoras mais antigas da localidade
seguia para um lado e de branco para outro.
não gostavam de se misturar”.
de Gramado, no interior de Não-Me-Toque,
Isso há pouco mais de meio século.
Equivale dizer que a pequena
apontando para um espaço separado dentro
A aposentada Maria*, 90 anos,
localidade de Gramado era dividida por
do pequeno e bem cuidado cemitério. A
todos vividos no vilarejo, considera normal
uma linha imaginária, separando casas
explicação demonstra que não era apenas
a separação racial até na hora da morte.
de brancos e de negros. A mesma linha
em vida que negros e brancos tinham seus
Mais antiga moradora de Gramado, ela
que talvez tenha sido a responsável
espaços bem defi nidos em um passado
conta que a separação começou há décadas
pelo fato de todos os descendentes de
recente no vilarejo de pouco mais de 150
e envolve um caso de suicídio. “Uma guria
escravos terem abandonado o vilarejo e
habitantes. Depois de mortos todos os
ficou grávida e o rapaz não quis casar. Ela se
rumado para a cidade, em busca de uma
moradores iam para o único cemitério do
matou e o padre proibiu que fosse enterrada
vida melhor. Foram atrás de emprego, a
lugar, pertencente à comunidade católica.
junto com os brancos”, explica. ”Naquela
maioria deixando para trás seus mortos
FOTO: FERnAndA ZIEppE
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moradores que ficaram, eram os próprios
negros que se excluíam, evitando participar
de encontros e festividades da comunidade
religiosa daquela época.
Maria* e a vizinha Sônia*, também
29
Iguais,
mas nem tanto
REViSTA ExCEçãO
e o preconceito que os cercava. Para os
moradora do local desde pequena, explicam
que o conselho da comunidade, formado
apenas por brancos, não deixava negros de
fora das atividades. “Eu sempre ia visitá-los
em suas casas. Mas os negros nunca faziam
o mesmo. Não faziam questão”, conta
Maria, com seu forte sotaque alemão.
Márcia*, uma outra senhora da
comunidade, até hoje se diz intrigada com
a separação de raças, que segundo ela não
ocorreu de forma intencional. “Os negros
se sentiam excluídos, mas lembro que
sempre se reuniam entre eles", comenta.
Mesmo assim, ela avalia que a divisão de
negros e brancos no cemitério nunca terá
fi m. “Essa tradição vai continuar. Quem
escolheu isso não fomos nós, então não
podemos mudar”, sentenciou.
Dentro do cemitério as vizinhas Maria
e Sônia mostram o túmulo de negra Inácia
de Quadros, última pessoa a ser enterrada
Para a socióloga Rosângela Wer-
considerado crime e os suicidas eram
lang, a separação dos brancos e dos negros
então criminosos e deveriam ficar ao lado
acontece pelo mesmo motivo pelo qual a
dos ladrões, assassinos, etc, que eram
sociedade, de maneira geral, divide-se em
enterrados fora dos cemitérios".
classes sociais. Em função da questão racial,
A questão dos negros, para a
do preconceito, há a separação, que nada
socióloga, é uma discussão central na an-
mais é do que a expressão de uma socieda-
tropologia e que envolve a diferença. "Isso
de dividida, preconceituosa e erguida em
foi feito também com os índios: foram
cima de alguns pilares que nos ditam o
acusados de não ter alma, inteligência,
ideal humano como branco, masculino e
não ter nada que lhes conferisse o esta-
europeu. "Os negros não tinham direitos
tuto de humanos”, diz. Por causa dessa
adquiridos e, por isso, ficavam separados:
crença, foram explorados e escravizados,
eram escravos, pertenciam a outra raça".
assim como os negros. “Se não pertencem
Rosângela ressalta ainda que antigamente a
ao reino humano posso fazer o que quiser
sociedade acreditava que o comportamento
com eles. Este pensamento dominou
dos suicidas não era adequado aos olhos
todo o período das descobertas imperiais,
de Deus. Para os cristãos tirar a vida é
legitimando um processo que foi, sem
um privilégio divino e não humano, por
dúvida, perverso".
isso a distinção. "O suicídio sempre foi
*Os nomes são fictícios para
preservar a identidade das fontes.
naquele lado. Ela morreu de infarto, no ano
de 2003. Embora o cemitério seja dividido,
ambos os lados eram bem cuidados.
QuesTÃo eCoNÔmiCa
O professor de História da Universidade de Santa Cruz do Sul, Olgário
Vogt, explica que não conhece nenhum caso de segregação por grupo
étnico na região. Porém, a cerca de dez quilômetros de Venâncio Aires,
em Linha Centro Brasil, existe um cemitério pertencente à comunidade
católica e ao lado há um espaço chamado “cemitério dos negros”. A
comunidade alega que a separação não é um fato de discriminação
racial. Para enterrar seus mortos, os membros da comunidade
precisavam ser associados à comunidade e pagar uma taxa anual. A
população mais pobre acabava sendo enterrada ao lado.
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REViSTA ExCEçãO
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LOUCOS POR
BOCHA
Em Arroio do Meio não é o futebol que atrai multidões. Lá,
o esporte disputado com pelotas de resina representa mais
do que um simples jogo e movimenta centenas de pessoas
Thiago Stürmer
A sede esportiva da sociedade
bar da sociedade, um grupo pelo menos
homens postados nas esquinas do Centro
duas vezes maior se reunia. É lá que ficam
aguardando a carona para um dos clubes
as canchas de bocha do Guarani.
do interior. E pode ser qualquer deles,
Guarani de Arroio Grande fica a cerca
Se a paixão nacional é o futebol,
porque todos têm canchas e participam do
de 10 quilômetros do Centro de Arroio
a bocha é, indiscutivelmente, o esporte
circuito da bocha. Domingo é dia de lazer:
do Meio, no Vale do Taquari. Em uma
predileto dos arroio-meienses. A cidade
joga-se mais bocha.
tarde quen-te de abril, o time de futebol
de 18 mil habitantes tem pelo menos
A maioria dos atletas é amadora,
do Guarani disputava lá um dos jogos da
50 quadras onde se pratica o esporte.
mas há os que ganham milhares de reais
primeira fase do campeonato municipal
Só a principal categoria do campeonato
para participar de um campeonato. Os
amador. E, apesar do brio característico
municipal envolve 26 clubes e quase 400
bochófilos que se destacam são divididos
dos jogadores do interior e da aparente
atletas de 12 a 86 anos. A função se inicia
em três categorias – ouro, prata e bronze.
superioridade do time da casa, não mais
na quarta-feira, quando a maioria das
E nenhuma equipe pode usar mais do que
do que 20 pessoas se interessavam pela
equipes tira a noite para treinar (leia-se jogar
um atleta áureo, a fim de que nenhum
partida. Já no galpão de madeira que fica
bocha, beber cerveja e comer churrasco).
grupo se sobressaia demais tecnicamente.
ao lado do gramado, espaço muito menor
Na sexta, transcorre o campeonato noturno
Além dos certames masculinos, jogam
do que as bordas do campo, próximo ao
entre bares. No sábado, é comum ver
times femininos, formados por casais,
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THIAGO STÜRmER
REViSTA ExCEçãO
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ENTENDA O ESPORTE
A partida de bocha é disputada sempre entre duas pessoas ou duas equipes. Consiste no
lançamento das bolas de resina sintética (as bochas que dão nome ao esporte) a fim de situálas o mais perto possível da bola pequena que serve de alvo, o bolim, ou remover as bolas dos
adversários. O esporte surgiu na Espanha, onde camponeses jogavam com bochas de pedra-sabão.
por jovens (politicamente correta, com
UM ESPORTE SÓCIO - POLÍTICO - ECONÔMICO
a cerveja substituída por refrigerante) e
O atual presidente da Liga Arroio-
Além do vínculo com a política,
meiense de Bocha (Labo) é o funcionário
a bocha tem importância econômica em
Jorge e Dolores Rohr, ambos com
público Sérgio Cardoso. Na sede da liga, num
Arroio do Meio. Entre os donos de bares,
44 anos, são daqueles que não negam o
daqueles pesados gaveteiros de repartição
é consenso: quem não tiver uma cancha de
gosto dos arroio-meienses pela bocha.
pública, ele guarda as fichas de todos os
bocha não ganha dinheiro. “Se não fosse a
No ano passado, eles saíram invictos do
jogadores do município “Esse ano a gente
bocha, nenhuma sociedade sobreviveria”,
campeonato municipal para casais, e
quer fazer carteirinha de identificação, com
diz a presidente do clube Forquetense – e,
Dolores foi escolhida a melhor atleta do
foto e tudo.” Cardoso assumiu no lugar de
é claro, jogadora de bocha – Angela Kolzer.
torneio. “Desde pequena jogava bocha no
Sidnei Eckert, que deixou a presidência da
A julgar pelos números, Angela tem razão.
potreiro, com qualquer pedra arredondada
Labo após sete anos consecutivos. Largou
Na final do campeonato noturno do ano
que encontrava”, diz ela, empolgada. “Na
o cargo porque não conseguiria conciliar
passado, foram consumidas mais de cem
sexta-feira chego a ficar com dor de barriga
os compromissos da Labo com sua outra
caixas de cerveja. Fora os pastéis de carne,
de tanta expectativa para o jogo, e para ver
atividade: ele foi eleito prefeito de Arroio
petisco oficial do esporte, vendidos às
os amigos da bocha.”
do Meio no ano passado.
centenas pelos clubes nos fins de semana.
idosos (no verão, porque no frio atletas
dessa categoria preferem ficar em casa).
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REViSTA ExCEçãO
FOTO dIVuLGAçãO
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O PELÉ
DO BALIM
André Backes está parado, sozinho,
num canto da quadra. Abaixa-se, junta a
bola de pedra e chacoalha as mãos, como
se estivesse tirando a má energia do corpo.
Concentrado, estica o braço à altura do
nariz, dá quatro passos para frente e
arremessa. A bola nem pica. Acerta em
cheio o alvo: a esfera do adversário que
estava próxima do balim e ameaçava os
pontos de sua equipe.
A
cena,
sucedida
de
gritos
e abraços, é o último movimento do
campeonato mundial de bocha de 2007.
No YouTube, onde pode ser assistida, há
nacional, aos 34 anos, André Backes é
agora não é mais assim. Quem analisar
o seguinte comentário de um internauta
um dos poucos profissionais do esporte
os melhores times vai ver que não tem
sobre o vídeo: “Falar do André Backes é ser
em atuação no Brasil. Entre campeonatos
nenhum jogador com mais de 40 anos”,
redundante em elogios. Ele é simplesmen-
e prêmios de reconhecimento por sua
diz André. “Aqui em São Paulo se eu digo
te o melhor”. Em fóruns e em comunida-
ajuda no desenvolvimento do esporte, seu
que sou jogador de bocha as pessoas me
des sobre bocha no Orkut, o nome André
currículo tem mais de duas páginas. André
olham de maneira estranha, desconhecem.
Backes é sempre o mais citado quando se
vive em São Paulo, onde treina no clube
Mas se o esporte tivesse mais divulgação
discute qual o melhor bochista do mundo
Pinheiros, mas a cidade onde nasceu e
tenho certeza que poderia ser popular.
na atualidade.
onde ainda vive sua família não poderia ser
Tanto quanto outras modalidades, que
outra: Arroio do Meio.
estão sempre na mídia.” Com certeza, a
Campeão e vice-campeão mundial, campeão pan-americano, campeão
“A bocha já foi estigmatizada
sul-americano e várias vezes campeão
como atividade de bêbado, de velho, mas
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queixa de André não existiria se ele ainda
morasse em Arroio do Meio.
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uRGEL SOuZA
REViSTA ExCEçãO
MEMÓRIAS DE
UM VENDEDOR
DE SONHOS
A palavra sonho tem outro significado para seu Nabuco. O
sonho sempre esteve presente na vida dele: seja o de doce
de goiabada, o utópico das telas do cinema, utopias ou
quimeras impostas pela vida
Urgel Souza
Foi o sonho de levar uma vida
melhor que o tirou do campo e o trouxe
para a cidade. No fi m da década de 1930,
abandonou os serviços rurais e veio para
a cidade, adotado por Malvina Silveira
dos Passos. Joaquim Rodrigues da Silveira
nasceu em 1923, na localidade da Serrinha do Pinheiro, a 40 km do centro de
Encruzilhada do Sul. O apelido veio de um
tio, que fazia menção a Nabubodonosor II,
o Rei da Babilônia de 604 AC a 562 AC. O
carisma sempre foi sua melhor ferramenta.
Ainda menino, vendia doces e pastéis pa-ra
a mãe adotiva. Mais tarde, passou a “propagandista” dos filmes do cinema. Vendeu
deliciosos
sonhos
recheados.
Também
prestou serviço de abastecimento de caixas
d'água e entregou convites para enterro.
Assim,
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se
tornou
conhecido
Nabuco relembra os bons tempos em que vendia sonhos de goiabada
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REViSTA ExCEçãO
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na cidade. Talvez os mais novos não o
ele anunciava filmes em português e
calmo e sereno provava que aquilo não
conheçam. Mas os encruzilhadenses com
em outras línguas. Além do anúncio dos
passava de um convite para enterro. Cada
mais de 20 anos ainda lembram do vendedor
filmes, também aproveitava para dar avisos
folha era entregue pessoalmente ou nos
de sonhos, dizendo “olha sonho, olha
de utilidade pública. Na década de 1970,
domicílios. “Ele não deixava nenhum
sonho gostoso!”. O quitute era produzido
o Cine Teatro Vitória foi perdendo força,
nas ruas. Às vezes, a pessoa já havia sido
por Alzira Riegel Müller, sua irmã adotiva,
se extinguiu e, junto com ele, o sonho dos
enterrada e o Nabuco continuava en-
mas todos conheciam mesmo era como o
filmes que Nabuco tanto gostava.
tregando os convites”, diz Gladis Riegel
“sonho do seu Nabuco”. A massa macia; o
Certo dia, seu Nabuco conheceu
Silveira, comadre e irmã adotiva. O avanço
recheio com goiabada cremosa escorrendo
Teresinha Gonçalves, a “moça que tinha
tecnológico fez com que seu Nabuco
pelas bordas; o açúcar polvilhado. A
o samba no corpo”. Ela era do Circo Sul-
também se reciclasse. “É! Depois veio a
qualidade do produto era apenas um dos
Americano, que visitava a cidade. Foi mais
rádio e o serviço foi terminando, né”.
fatores que fazia com que Nabuco voltasse
uma paixão não correspondida, mas seu
Joaquim “Nabuco” Silveira vive
pra casa com a cesta vazia. Outro fator
Nabuco bem que tentou! Quando o circo
na mesma casa da juventude, localizada
decisivo nas vendas era a empatia junto
teve de deixar a cidade, ele não perdeu a
na esquina da rua Ramiro Barcelos com a
aos clientes. A alegria era a mesma, fosse
esperança de ficar com a moça do samba.
Conde de Porto Alegre. Foi lá onde forjou
o sonho vendido ou diante de um “Não,
Deu asas a mais um sonho e resolveu ir até
a maioria dos sonhos. Um imóvel com mais
muito obrigado!”. Seu Nabuco lembra que
Venâncio Aires junto com o circo. Por lá, ele
de 110 anos. A maioria dos móveis, piso e
vendia doces na festa do Centenário da
ajudou a carregar e remontar a estrutura do
aberturas ainda são originais. Assim como
cidade, em 1949. “O seu Carlos Alberto
espetáculo. Mas a moça do samba... Bom,
ele, que mantém a simpatia do guri que
Riegel (marido de Dona Malvina) me deu
daquela moça ficou só o samba:
veio da Serrinha do Pinheiro. Aposentado,
não teve filhos - uma caxumba recolhida
ção dos filmes através de um megafone.
“Eu, entrando nesse samba,
vou fazer muito reboliço
O meu corpo tem talher,
os meus olhos tem feitiço
Não faz mal que tu apanhe,
para não fazer mais isso
Toma o amor dos outros
e te desculpa com feitiço”
Dirigia-se às esquinas mais movimenta-
Na década de 80, seu Nabuco
e trabalhadores do centro da cidade com
das, empunhava seu aparelho e disparava:
entregava convites para enterro. Uma folha
lições de humildade; não somente encheu
“Aqui quem vos fala é o serviço de
de papel em preto e branco, de 20 cm x
caixas d’água, mas também abasteceu as
propaganda. Hoje na tela Cine Teatro
15 cm, ilustrada na parte superior com uma
casas de alegria e simpatia; não apenas
Vitória, mais um filme do Mazzaropi. Não
cruz e uma pena. Logo abaixo, o nome do
vendeu sonhos, mas distribuiu um pouco
percam. Grande espetáculo na tela Cine
falecido e o convite propriamente dito.
da sua sina de sonhador. Aos 85 anos e
Teatro Vitória! Grandioso filme. A partir
Para alguns, Nabuco era relacionado com a
com a lucidez intacta, continua mostrando
das 18h.”. Eram raras as vezes em que o
morte. Cada vez que se aproximava, trazia
que a morte pode ser apenas um convite e
sonho podia ser realizado diante da tela
um anúncio do fim da vida e podia estar
provou que o filme que melhor anunciou
grande. Mesmo sem ser alfabetizado
em pesadelos infantis. Mas o semblante
foi o da sua própria vida.
um terno branco e eu fui pra praça vender
doces. Lá, estava o governador (da época),
seu Valter Jobim”, relembra.
No início da década de 1960, era
o auge do cinema encruzilhadense. Seu
Nabuco era o encarregado da divulga-
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interrompeu
seu
sonho
Questionado
sobre
sua
de
ser
pai.
popularidade,
ele foi categórico: “Eu não sei ler nem
escrever, mas tenho educação de berço.
Só isso”. Seu Nabuco não só vendeu
doces, mas adoçou a vida dos moradores
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REViSTA ExCEçãO
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MEu BICHO dE
EsTiMaÇÃo nÃo
É uM CACHORRO
Ela gosta de colo, é dócil e está sempre no
meio dos seus donos. Meg é assim.
A preferida dos Breunig.
Vanessa Kannenberg
Meg está sentada no tapete que
recepciona quem chega à casa de Ingo
Breunig. Estranhando o barulho do carro
que ela nunca viu e a pessoa desconhecida
que sai dele, Meg parece ficar incomodada.
Levanta-se. Vai até o dono e fica à espreita,
espremendo alguns ruídos de desagrado
com a visita. Essa cena não teria nada de
estranho se Meg fosse um cachorro. Mas
ela não é. Meg é um cabrito.
Em meados de fevereiro deste ano
uma das cabras da raça Boer da fazenda
dos Breunig, que fica em Boa Vista, distrito
virtude disso. Mééég, sugerindo a sua
de Santa Cruz do Sul, deu à luz trigêmeos.
especialidade: o bééé.
carinhoso, para Milena ele é.
A neta do seu Ingo, com seus três
Entre os recém-nascidos, dois cabritos
Com o passar dos dias a necessidade
anos de idade, vai visitá-lo todos os finais
machos e manchados de preto, e uma
de cuidados especiais foi se extinguindo.
de semana. Na propriedade do avô sua
fêmea, a única com manchas marrons. A
Mesmo
continuou
brincadeira preferida é em meio aos cabritos.
menor de todos. Foi pelo seu tamanho e
recebendo um carinho diferenciado. Mamar
E em especial com a Meg. O carinho entre
pela aparente fragilidade que ela ganhou
na mamadeira, dormir no sofá da casa, ser
as duas é mútuo. Basta Milena chamar pelo
um mimo especial desde o minuto que veio
pega no colo, acariciada, amassada e até
seu nome que a cabrita vem saltitante ao
ao mundo. Mas ao contrário do tamanho,
esgoelada, eram verbos feitos somente
encontro da menina. É por isso que Meg
a goela da cabrita não era pequena. Berrar
com a Meg. Mesmo que esgoelar, no seu
deixa ser esgoelada, amassada, puxada
era com ela mesma. Seu nome veio em
sentido denotativo, não parece um verbo
pelo rabo, e ainda berra estarrecida.
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assim,
a
cabrita
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a preferida
No auge dos seus dois meses, Meg
é o animal de estimação preferido de toda a
família Breunig. E olha que não é fácil atingir
tal colocação, a concorrência é grande. Na
fazenda de Meg moram mais outros 80
cabritos, 30 galinhas, 4 marrecos, 5 galinhas
d’angola, 6 patos, 10 garnizés, 3 ovelhas, 7
gansos, 10 vacas e bois, 2 gatos, 3 cachorros
e 4 perus. Mas o “xodó” da casa é a cabrita
branca e marrom.
O gosto inusitado por cabrito como
bicho de estimação não é recente para os
Breunig. Desde a década de 80, quando
os filhos Claudete e Cleusa eram
pequenos, os pais Ingo e Amália já
criavam caprinos. Na época, Tedy
e Tody foram os preferidos e
recebiam a atenção que hoje
a
Meg
recebe.
Claudete
lembra com carinho daquela
Para Milena
e sua cabrita
Meg, esgoelar
também é uma
demonstração
de carinho
época. “Eles eram o máximo.
Companheiros para todas as horas. Muitas
das lembranças da minha infância estão ligadas
ao Tedy e ao Tody”.
o ComÉrCio
Se desde a infância dos filhos Ingo pegou alguns caprinos
para tê-los apenas como animais de estimação, há cerca de
um ano ele decidiu tirar lucro da criação. O primeiro motivo da
mudança foi o problema de saúde enfrentado pelo fazendeiro
que o forçou a desistir do cultivo de fumo. Assim, ele foi atrás
de uma alternativa de trabalho menos desgastante e viu nos
A partir disso Ingo passou a criar cabritos exclusivamente
para abate e venda. E jura “de pés juntos” que não abre exceção.
Mas ele abre sim. Meg nasceu quando sua espécie já era destinada
ao comércio, mas teve seu destino desviado. Até porque Milena
jamais perdoaria o avô se a Meg virasse churrasco de domingo.
Afinal, quem ela iria esgoelar?
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FOTOS: VAnESSA kAnnEnbERG
cabritos um bom negócio.
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1.
POR QUE TER
UM CABRITO DE
ESTIMAÇÃO
A idéia de ter um cabrito como animal de estimação pode não
ter passado na sua cabeça até hoje. Mas há uma série de razões para
você ter um como companheiro. Por exemplo, ele é um bicho super
fofo e querido.
2.
Como um cachorro, o cabrito responde aos chamados do
dono. Comparado a uma tartaruga ou a uma iguana, isso é uma
vantagem e tanto.
3.
O cabrito é um animal extremamente dócil,
não morde, não é agressivo. E interage com
adultos e crianças.
4.
Cabritos comem
alimentos disponíveis na
natureza e ração. Se você
conhece o mito de que caprinos
comem tudo que vêem pela
frente, isso pode ser facilmente
revertido. Basta dar a eles um sal
mineral específico.
5.
Cabritos não necessitam
de muito espaço. O lugar que
ele ocupa em relação ao de uma
vaca, por exemplo, é extremamente
menor. Onde cabe uma vaca, cabem
cerca de dez cabritos.
6.
Se você tem um poodle sabe
BODE: é o pai do cabrito. Ou seja, é o macho
o imenso trabalho que é podá-lo e dar
adulto dos caprinos. Ele já possui barbicha e chifres.
banho nele. Com um cabrito não há
CABRA: é a mãe do cabrito, a fêmea do
essa preocupação.
bode.
CABRITO: é o filho do bode e da cabra. Ele
A FaMÍLia
DO
CABRITO
vai desenvolvendo com o tempo a barbicha e os
chifres.
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FERnAndA ZIEppE
Quem disse que é preciso ouvir notas musicais para se poder dançar
não conhece Kaká, uma menina que aprendeu a curtir a vibração
do som mesmo sendo deficiente auditiva
A MÚSICA QUE
VERTE DO CHÃO
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REViSTA ExCEçãO
41
não é obstáculo para ela, principalmente
não as distingue pela vibração. Ela sabe que
quando o assunto é balada.
a música representa muito para as pessoas
Dia 1º de abril, quarta-feira,
00h30min. Karoline Kist ingressa para uma
Patrícia Azevedo
porque conhece as letras e sabe que falam
de felicidade, tristeza, amor, violência.
festa em Santa Cruz. A Quartaneja atrai
Em certo momento da festa, o
diferentes públicos pela variedade musical,
ritmo sertanejo começa a tocar. Casais
do eletrônico ao sertanejo. Diferentemente
começam a dançar colados e Karoline
das demais pessoas, Karoline vai para a festa
observa com atenção. Depois, pergunta
não para ouvir a música, e sim para passar
se estava tocando sertanejo. “Eu queria
momentos com seus amigos, conhecer
dançar com uma pessoa, mas não tem
gente nova e tomar alguma bebidinha.
ninguém, então danço sozinha”, afirma
Na verdade, ela não ouve a
ela. Para uma festa ser boa, ela não precisa
música, mas sente a vibração da casa. Seus
de música, só quer dançar, ter a presença
pés sentem o tremor do chão e suas mãos as
dos amigos, um pouco de bebida e muitas
das paredes quando tocadas. Ela descreve
risadas. “É o que vale!”.
a vibração como se fosse um coração
Quando questionada sobre a
batendo. “Sinto como se tivesse um motor
aproximação dos homens, ela mesma já
dentro do meu corpo”, compara.
avisa que não escuta. “Quando um cara
A noite de Kaká se inicia com um
‘chega’ em mim, eu alerto, e no começo
pedido à bartender: uma lata de cerveja. A
ele parece que não entende, porque ele
Imagine-se vivendo em um silêncio
moça do outro lado do balcão compreende
acha que eu não sou surda”. Káka, assim
quase absoluto, onde apenas um “tum”
de primeira o pedido. “Muitas vezes,
como a maioria dos deficientes auditivos,
entra no seu ouvido e nada mais. Difícil
uma pessoa que não me conhece não
desenvolveu a habilidade de leitura labial.
imaginar a vida sem trilha sonora? Isso
consegue me entender, mas depois que
Ela compreende tudo desde que seja falado
porque você foi contemplado com a
estiver mantendo contato, aí se acostuma
mais devagar e olhando para ela. “Teve um
audição, que lhe permitiu conhecer os
mesmo. Muitas vezes eu preciso de alguém
cara que ‘chegou’ em mim, sussurrando no
sons, a voz das pessoas e as músicas que
interpretando”, afirma ela.
meu ouvido e eu avisei que era surda. Ele
Depois de matar a sede, chegou a
ficou apavorado e foi embora”. O fato de
Há 26 anos, Karoline Kist, ou
hora de dançar. Camarote cheio e Karoline
não ouvir não a intimida. Ela se sente feliz
Kaka, como é conhecida pelos amigos, não
atenta aos movimentos alheios. Mas como
mesmo que, por pouquíssimas vezes, tenha
ouve vozes, músicas, nem sons. Nasceu
ela dança se não ouve a música? “Eu
sofrido certo preconceito.
com algo entre 5% e 15% de audição,
observo as pessoas. Vejo a pessoa dançando
Entre uma conversa e outra,
o que lhe permite apenas sentir o “tum”
e começo a dançar sem precisar ver depois,
encontra amigos e dança. Às 2h30min da
nos seus ouvidos. O “tum”, na verdade,
porque eu já sabia o ritmo”.
madrugada, a festa dela chega ao fim.
estão por toda parte.
é a vibração causada no tímpano pelo
Káka conhece os tipos musicais
movimento das ondas sonoras. Mas isso
pela forma como as pessoas dançam, mas
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Quem não conhece, não imagina que ela
dançou a noite toda ao som do “tum”.
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REViSTA ExCEçãO
MISÉRIA
nÃo sE
EsquECE
Marcel Demeulemeester, um aposentado belga residente
em Santa Cruz do Sul, vê parte da história da sua vida se
cruzar com as conturbações políticas do Congo
da que conheceu há mais de quatro
décadas, quando viveu e trabalhou cercado
por miséria e violentas disputas tribais.
Aos 27 anos, deixou a Bélgica e
aterrissou em Elizabethville. Com carreira
Pedro Garcia
consolidada no ramo de fumageiras em
Antuérpia, sua missão era dirigir uma
FOTOS: pEdRO GARCIA
filial na capital do Katanga, província no
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Malaquitas são pedras de coloração
sul do Congo. Colônia da Bélgica desde
verde-negra compostas por carbonato de
o começo do século, o país que recebeu
cobre. Para os curandeiros de muitas tri-
Marcel e a esposa Rita em 1953, do qual
bos africanas, servem como instrumentos
testemunhariam a conturbada história
de cura de doenças. Já para o belga Marcel
nas décadas seguintes, encontrava-se em
Arthur Demeulemeester, que expõe uma
pleno desenvolvimento.
coleção delas na estante da sala de jantar,
Os
estrangeiros
viveriam
ali
são objetos de recordação de um dos
uma rotina de trabalho intenso, mas
períodos mais marcantes de sua vida.
também de muito conforto e regalias.
Com 83 anos, aposentado e
Ainda nos anos 50, nasceram os filhos
instalado confortavelmente em um ponto
Martine e Franz, pequenos congoleses-
distante do Centro de Santa Cruz do Sul,
belgas incapazes pela idade de entender
Marcel goza de tranqüilidade. A rotina que
a razão pela qual em 1959 o pai os levou
assiste de longe na cidade é muito diferente
de carro até Salisbury, capital da Rodésia
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(hoje Zimbábue) e retornou para o Congo
deixando-os apenas com a mãe.
A decisão de afastar a família não
foi mais do que uma medida de proteção.
Meses antes, uma revolta na capital
Kinshasa deu início às discussões sobre a
possibilidade de conceder a independência
ao país e também a um período de tensão
que se estenderia por muito tempo. Sob
O REGRESSO A UM NOVO LUGAR
pressão dos Estados Unidos e do povo
congolês, a independência foi conquistada
em junho do ano seguinte por meio de um
Ele e Rita aterrissaram no país
encareceu todo o processo. Mas o maior
acordo fi rmado em Bruxelas. O que é um
novamente em 1976, mas o Congo que
obstáculo enfrentado pela empresa era o
orgulho estampado na linha do tempo de
encontraram não parecia o mesmo. No
cumprimento de um decreto que forçou a
qualquer nação foi para o Congo o começo
país que já havia provado o seu poten-
entrega da direção a um nativo.
de uma série de derrotas.
cial de crescimento e inspirava esperan-
Embora o despreparo incomodas-
Passado menos de um mês, o
ças de um futuro promissor, o que viam
se, o principal problema estava em seu
Katanga também proclamou indepen-
ao retornar eram apenas sinais de uma
sangue tribal, que corre nas veias dos
dência. A instabilidade que tomou conta
triste decadência.
africanos com a mesma intensidade que
de todo o território fez com que grande
Durante os 13 anos em que esteve
assola suas terras. O diretor congolês não
parte dos europeus voltasse para casa.
longe, o casal passou pelo Rio de Janeiro
apenas contratou dezenas de funcionários
Entre os que permaneceram estava Marcel,
e depois voltou à Antuérpia. Enquanto
incapacitados
fiel ao seu compromisso com a fumageira.
isso, o Congo assistiu ao assassinato de
tribo como chegou a desviar produtos
A esposa e os filhos continuavam a mil
seu primeiro-ministro e à ascensão de
da empresa para ela. O efeito do projeto
quilômetros de distância. Ele só os encon-
um ditador que logo se tornaria um dos
de africanização fora tão devastador que
trava quando as coisas se acalmavam
mais famosos do planeta: Mobutu Sese
Mobutu voltou atrás em sua decisão e
e então podia trazê-los de volta. Mas
Seko Koko Ngbendu wa za Banga. As
Marcel pôde retornar ao comando.
nunca por muito tempo. “Era assim:
conseqüências de sua política chocaram os
Era o início de mais uma década
quando estava calmo, voltavam. Quando
estrangeiros que regressavam. As estradas
de vida no Congo, período permanente
recomeçava a bagunça, iam embora.”
do país estavam destruídas e a população,
em sua memória pelo desconforto de estar
Mesmo sem se envolver dire-
miserável. “Na época da colônia, se
em meio a um povo afogado na miséria.
tamente nos confl ti os, Marcel viu o ner-
podia viajar por todo o país sem nenhum
É verdade que as condições do casal
vosismo invadir o seu dia-a-dia. Assim como
problema. Quando voltamos, não dava
continuavam agradáveis. Dispunham de
assistiu às tropas da ONU invadirem sua casa
mais”, conta Marcel.
guardas, cozinheiros e motoristas em uma
que
pertenciam
à
sua
em certa ocasião e balearem um carro onde
Ele havia sido chamado para
estava em outra. As Nações Unidas foram
tentar recuperar a ordem da fumageira,
realidade congolesa.
ao país para tentar acalmar a situação e
vitimada pela política ditatorial instalada
A
pressionar o Katanga a se reintegrar, in-
no país. Mobutu havia criado uma nova
dificuldades financeiras eram percebidas em
tenções que geraram momentos nem
moeda, que se desvalorizava com a
situações corriqueiras – pessoas obrigadas
sempre pacífi cos. O Katanga voltou a ser
inflação galopante. Devido às condições
a comprar cigarros por unidade e não em
província do Congo em 1963. Nesse mesmo
das
passaram
maços - ou em episódios dos quais Marcel
ano, Marcel deixou o país.
a ser transportados de avião, o que
não esquece. Entre esses, a ocasião em que
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estradas,
os
produtos
casa grande, mas que não os isolava da
falta
de
instrução
e
as
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Marcel viu tropas invadirem sua casa e
acompanhou as mudanças ocorridas no
Congo ao longo das décadas
o avião de uma linha aérea local pousou em
e queda de outro,
Kinshasa e um problema técnico o impedia
de redemocratização com as eleições de
de retornar ao Katanga. Os dias passavam
2006 – as primeiras em 40 anos. Mas as
e a empresa aérea seguia sem condições de
duas décadas ainda tão acessíveis em sua
corrigir a falha. O avião só pôde decolar após
memória, assim como as marcas no braço e
um técnico da fumageira ser chamado.
as malaquitas na estante, lhe dão a certeza
O retrato do país era dramático
nem as tentativas
de que viu o bastante.
mas nem tão difícil de se explicar. Agravado
pela corrupção, o grande problema sempre
esteve na ausência de investimento em
ISSO É ÁFRICA
necessidades básicas como educação e
saúde. Se a primeira não afetou Marcel
diretamente, a segunda deixou marcas
A exemplo do pai, Franz, o filho mais novo, seguiu carreira
que carrega até hoje em seu braço direito.
no setor de fumo. Não se recorda do Congo colonial em que
Em 82, teve gangrena, provavelmente em
nasceu, apenas do país miserável para onde ia nas férias da
função de larvas deixadas por um inseto na
faculdade. Guarda na lembrança o choque de encontrar um
manga de sua camisa.
povo em decadência. Ainda sente pena dos guardas que
Marcel só deixou definitivamente
jogavam damas com tampinhas de garrafa, do cozinheiro que
o Congo em 1986, quando voltou para
perdeu um pedaço da orelha em uma briga por cabeças de
a Antuérpia. Ainda regressaria algumas
camarão e do faxineiro que roubava as lâmpadas da casa para
vezes a trabalho até 1990, ano em que
vender no mercado negro.
lá esteve pela última vez. Não chegou a
ver a deposição do ditador, a ascensão
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QUATRILHO
FOTOS: ARquIVO pESSOAL dE mARÍLIA dAROS
A história de um
amor proibido
Traição e sofrimento movem esse romance que
se transformou no segundo filme brasileiro
indicado ao Oscar, em 1995
X
Maria e Trentin, os que ficaram
Emanuelle Dal Ri
Se na atualidade a traição pode ser considerada um tempero
amargo em relações amorosas, no passado ela era motivo suficiente
Carolina e Dal Ri após a fuga
para condenar alguém à morte social. Fugir, como foi o caso de
Giuseppe Dal Ri e Carolina Tessaro, era a única maneira de se viver
um amor proibido pelos tabus morais vigentes à época. Afinal,
quem foi esse casal que enfrentou as críticas e abandonou uma vida
já forjada para se entregar a uma paixão na virada do século?
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quando
história
é
Nicodemo
longa.
Começou
Domenico
Trentin
1875 e se estabeleceram no lote 54 da
primeira légua do mesmo local.
chegou ao país com sua mãe viúva e os
Em algum momento indeterminado,
irmãos, procedentes de Torrebelvicino,
Nicodemo e Giuseppe se conheceram. Em
Vicenza, Itália. Trouxe no corpo a marca de
seguida, estavam associados nos negócios.
“squiotti” (tecelão), que esteve presente
O primeiro já era comerciante, mas queria
em toda a sua vida no apelido que recebeu:
diversificar e produzir sua própria farinha.
Mênego Storto. Se estabeleceram no lote 15
Giuseppe entendia de moinhos, pois era
do Travessão Cristal, localidade da terceira
especialista em moagem. Além de sócios,
légua da colônia Caxias. Ali conheceu
ficaram amigos. Como o tempo, Giuseppe
Carolina Tessaro, também italiana, de Valli
e Maria também foram morar na Tapera.
dei Signori, Vicenza. Em 23 de dezembro
Passaram a ocupar a mesma casa de
de 1894 os dois se casaram. Ele com 24
Nicodemo e Carolina, onde dividiam os
anos e ela com 19 anos. Tempos depois,
mesmos problemas e sonhos. A convivência
Nicodemo adquiriu terras na Tapera, hoje
era relativamente normal: os homens
colônia no lado leste de Gramado, em
tinham a lida do moinho, do armazém e da
sociedade com Antônio Tozzatto.
lavoura. As mulheres cuidavam da casa, dos
A localidade foi desbravada com
filhos e auxiliavam no trabalho da roça.
muita dificuldade, pois era de difícil acesso.
Entre 1901 e 1906, Giuseppe
Ele era um homem acostumado com o
e Carolina se envolveram em um rela-
trabalho árduo, mas Carolina não tinha a
cionamento proibido. Viveram anos de
mesma determinação que o isolamento
traição e de mentiras. A pressão era forte
exigia. Já no início da vida do casal, este
e então abandonaram tudo. Buscaram um
era um grande problema a ser resolvido.
novo caminho, bem longe da convivência
Nicodemo confiava que o tempo faria
ao lado dos companheiros traídos. Com-
a parte dele e que tudo daria certo. E
partilharam juntos a dura decisão que
a prosperidade passou a chegar muito
tomaram. Fugiram em 27 de abril de 1907.
rapidamente. Afinal, por aquela estrada
Deixaram os filhos, a casa, os cônjuges e
passavam mascates, tropeiros e viajantes.
passaram a ser alvo da sociedade, que não
Todos os dias era possível observar as
perdoava a traição.
tropas de muares com grande número de
Seis meses após o sumiço de
produtos na descida da Serra. Os artigos
Giuseppe e Carolina, Nicodemo e Maria,
eram vendidos no litoral e nas cidades mais
o casal abandonado, resolveram assumir
baixas. Nicodemo ficou conhecido e muito
uma relação conjugal. É claro que eles
bem quisto por todos. Sua casa comercial
também passaram a enfrentar muitas
era parada obrigatória.
adversidades, pois os princípios morais na
Giuseppe Dal Ri, apelidado de
época eram muito rigorosos neste sentido.
Beppe Crecini, viera de Tirol, Áustria. Era
Eles não poderiam se unir legalmente e
morador do lote 14 da primeira légua da
uma cerimônia sem a bênção de Deus (e
colônia de Caxias. Chegou ao Brasil em
do padre) era sacrilégio. Mas eles foram
6 de outubro de 1877. Os pais de Maria
fortes e enfrentaram as adversidades,
Baretta, Francisco Baretta e Emília Radaelli,
especialmente porque os filhos precisavam
chegaram ao Brasil em 30 de setembro de
de uma família organizada.
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A
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a pesQuisa
junto aos Trentins (de Nicodemo Trentin
Ibarama. Era casado com Maria Baretta e
e Maria Baretta, o casal traído), e ele no
deixou dois filhos. “Naquela época eles
Centro-Serra, com a busca de Giuseppe Dal
ocultavam até mesmo o próprio nome”,
Ri e Carolina Tessaro.
revelou Lazzari. O italiano estava com 56
Entre os anos de 1995 e 1997,
anos quando morreu.
Marília pesquisou mais de 50 pessoas
Após muito tempo de pesquisa,
A história ficou esquecida por
da família, leu muitos livros e consultou
finalmente chegaram ao elo que liga
um grande período. Veio à tona somente
diversas instituições, tais como cúrias,
Sobradinho à história do livro e filme “O
quando uma pesquisadora da cidade de
cartórios, prefeituras e cemitérios. “Usei
Quatrilho”. Mário Augusto encontrou, em
Gramado, a historiadora Marília Daros,
muitos veículos de informação, mas não
Linha Brasileira, interior do município, uma
traçou uma linha genealógica que chegou
tive todo o aporte necessário. Foi como
sobrinha de Maria Baretta, personagem
até o químico industrial Mário Augusto
uma febre, pois as gravações do filme já
que no filme se chama Pierina e é vivida
Lazzari, cuja avó tinha o sobrenome de
estavam ocorrendo no Estado”, disse.
por Glória Pires. Rosa Baretta Cembrani,
Giuseppe Dal Ri. A pesquisadora estava
“Giuseppe fugiu, também, em virtude de
já falecida, contou brevemente alguns
se aprofundando no assunto tratado em
sua posição política, bastante perseguida
detalhes sobre a vida de Giuseppe Dal Ri,
um filme que estava para ser lançado, em
no período”, complementou.
na película chamado de Mássimo e vivido
1995: “O Quatrilho”, baseado no romance
do escritor José Clemente Pozzenato.
Mário buscou amigos e familiares,
pelo ator Bruno Campos.
conseguiu encontrar a certidão de óbito
Ignorados pela família, sobretudo
A historiadora e o químico, juntos,
de José Dal Ri (Giuseppe Dal Ri) na cidade
pelo fato de ela ser considerada uma
começaram uma investigação exaustiva.
de Pinhal Grande. No documento consta
“putana” (esposa infiel) e também por ser
Ela com a parte que a coube, em Gramado,
que ele morreu no 2º Distrito de Jacuí, em
negligente com os trabalhos domésticos,
Capela da Linha
Tapera em terras
de Nicodemo
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A família progredindo na Tapera perto do moinho
eles viveram isolados de tudo e de todos.
Cansada e arrependida pela fuga, Carolina
abadonou Giuseppe, um homem que se
considerava moralista ao extremo. “Tanto
que chegou a ferir gravemente um peão
que ousou se meter com uma mulher. Ele
amarrou o agricultor ao cavalo e saiu com
ele pelas ruas. É como pregar moral de
cuecas”, relatou Mário.
Mesmo com várias fontes e vasto
material para estudo, o químico admite
que há diversos pontos de interrogação
nessa história, como o paradeiro de
Carolina Tessaro e se Guiseppe e ela tiveram filhos. “Sempre vivemos um tabu
na família. Esse assunto era e é muito
evitado. Poucos falam sobre os fugitivos.
Parece que querem esquecer esse fato
como se ele não tivesse ocorrido.”
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TroCa virou livro e filme
Ambientado da região da Serra Gaúcha, o livro “O Quatrilho” é uma história sobre
a troca de casais que se desenvolveu entre 1910 e 1930. O escritor José Clemente
Pozzenato romanceou a história, atribuindo-lhe características típicas da literatura
sul-riograndense, como o próprio vocabulário. O livro conta a saga de dois casais de
imigrantes: Teresa e Ângelo, Pierina e Mássimo. Na luta pela sobrevivência, surge o que
ninguém esperava: o amor entre Mássimo (casado com Teresa) e Pierina (casada com
Ângelo). Apaixonados os dois fogem e partem para um novo destino. Pozzenato teve
como informante, para a confecção da obra, o neto de Nicodemo, Ari Trentin.
O livro foi tão bem aceito que foi para o cinema. “O Quatrilho” foi o segundo longametragem indicado ao Oscar como Melhor Filme Estrangeiro, em 1995. Com direção de
Fábio Barreto, as gravações foram feitas em diversas cidades do estado. Conhecido em
todo o Brasil, “O Quatrilho” é considerado um marco no cinema nacional. Ele ganhou,
inclusive, vários prêmios internacionais.
Como curiosidade, Quatrilho é o nome de um jogo de cartas em que os participantes
precisam trair seus parceiros para serem vencedores.
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opinião
Meu jeito único de
aprender a andar
de bicicleta
Gabriela Brands
Às vezes eu tenho insônia. E como
todas as pessoas que sofrem desse
mal, sempre tento arrumar um jeito
de chamar o sono. Em uma dessas noites em que meus olhos teimavam em
permanecer abertos, lembrei de um
momento mágico da minha infância:
a maneira como aprendi a andar de
bicicleta. Não funcionou como sonífero, mas consegui me divertir sozinha
na calada da noite.
É incrível como, com o passar dos anos,
a gente esquece das coisas. Eu já não
me lembrava mais do perrengue que
eu passei até conseguir dar as primeiras pedaladas. E é essa historia que eu
vou contar aqui.
Eu ganhei minha primeira bicicleta
quando completei seis anos de idade.
Uma Ceci rosa, daquelas de tamanho
mediano e com cestinha. As fotos que
registraram o momento mostram o
quanto fiquei maravilhada com o novo
brinquedo. Sem me dar conta de que
logo ele me faria sofrer. Tá, sofrimento
talvez seja um exagero, mas passei por
inúmeras dificuldades.
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Para início de conversa, eu não alcançava o banco da bicicleta. A quele modelo era muito grande para uma criança do
tamanho que eu tinha na época. Quem
sabe, quando eu completasse sete anos
as coisas não se tornariam mais fáceis?!
Sim, se tornariam. Mas eu não esperaria
tanto tempo. Resolvi tentar. E foram dias
tentando, até achar o jeito certo.
A primeira dificuldade foi vencida.
Depois de conseguir subir na bicicleta
era só sair andando... Não, não era. Eu
não sabia andar na minha Ceci. Mas um
dia eu iria conseguir. E aí é que está a
exceção do meu jeito de aprender a
andar de bicicleta. Eu não queria cair,
a bicicleta era grande, então, o tombo
também seria. Eu admito, tinha medo.
Para aprender a pedalar, eu usei de
um método talvez nunca visto antes.
Encostava minha Ceci em uma parede
ou muro e pedalava para trás. Por quanto tempo eu fiz isso, não recordo. Mas
um dia eu me senti segura o suficiente
para subir na bicicleta sem o apoio do
muro e andar para frente. Não cai e
nunca mais esqueci como se faz.
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Rozana Ellwanger
Todos os dias ele caminha, a passos
lentos e mancos, os vários quilômetros
que o separam do Centro de Venâncio
Aires. A distância ao certo é difícil
dizer. Quatro, talvez cinco quilômetros.
Também é improvável descobrir onde
ele mora, se em um barraco, com
paredes de compensado, ou em uma
casa bonita, com jardim florido. Mas
venha de onde vier, vem sempre com
seu amigo malhado ao lado.
O cão poderia facilmente vencer
os quilômetros até o Centro muito
mais rápido, mas ele calmamente
acompanha o dono, parando de tempos em tempos para bisbilhotar uma
lixeira. Dá pra jurar que às vezes, de tão
afeiçoados, o cão manca como o dono.
Ele nem se preocupa em olhar para
baixo para ver se o amigo continua ali.
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Sabe que o animal não o abandonaria.
Seu olhar, ao invés de mirar o chão, fita
o horizonte. Sempre.
Com a botina gasta de tanto uso,
amarrada por cadarços desiguais já
rasgados, o senhor mantém a face
erguida. Seja carregando o que catou
nas lixeiras ou a comida recebida na
lancheria, ele não deixa de olhar para
a frente. Com este rosto erguido e a
espinha ereta, quase todos os dias ele se
senta na escada em frente ao prédio. No
inverno, o casaco de lã gasto contrasta
com a calça marrom que teima em
acabar antes da canela.
A cena pouco mudou ao longo dos
meses: depois de longos minutos de
espera, sentado em postura invejável,
com as pernas cruzadas e uma altivez
de lord, a garçonete trazia uma sacola
com um gordo sanduíche. “O Tio Ênio
mandou pro senhor. Bom apetite!”,
dizia sempre com um sorriso no rosto.
O homem agradecia com um meio
sorriso, enrolava cuidadosamente o
pacote e saía, na velocidade que suas
pernas mancas permitiam. O que
acontecia depois, não se sabe. Certo
é que cada vez que falava do homem
que ia todo dia buscar seu lanche, a
garçonete engolia o choro, que quase
transbordava pelos olhos. E depois
agradecia por tudo o que tinha.
RESPOSTA: Os repórteres Aline Silva e Pedro Garcia foram integrados
posteriormente à imagem. Como em tudo, sempre há as exceções.
A barba branca mal aparada - quiçá
nunca aparada - denuncia a idade
avançada. O cabelo supõe-se que
tenha a mesma cor, mas é impossível
saber, pois o boné enterrado até o
meio da testa não permite ver sequer
se ainda restam fios no topo de sua
cabeça. O olhar, ao contrário de muitos
homens da sua idade, não é cansado.
Pelo contrário, carrega ainda o brilho
da juventude, de alguém que ainda
procura algo. Um sonho adiado, talvez.
Ou simplesmente a próxima refeição.
opinião
Mais que um homem,
um lord
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