Concepções de território: uma contribuição a partir da
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Concepções de território: uma contribuição a partir da
Concepções de território: uma contribuição a partir da Geografia para pensar a política de desenvolvimento territorial rural Paulo Alentejano1 1. Introdução Território é um conceito polissêmico, utilizado por várias ciências e correntes de pensamento, exigindo que explicitemos qual sentido empregamos. Isto não é, evidentemente, exclusividade do conceito de território, mas se agrava quando se trata de palavra de uso corrente. E mais ainda quando este se torna referente para a implantação de uma gama tão grande de políticas públicas, como ocorre hoje no Brasil, onde se associa território a saúde, segurança pública, educação, desenvolvimento regional, desenvolvimento rural, cidadania, entre outros. Buscaremos neste texto apontar alguns dos sentidos dados a este conceito, problematizar seu emprego na condução de políticas públicas e apontar outras possibilidades de uso do mesmo, apoiados na leitura geográfica do conceito de território. 2. Usos do conceito de território Dentre os diferentes usos do conceito de território podemos destacar os realizados pela Ciência Política, pela Economia, pela Antropologia, pela Sociologia e pela Geografia, para nos atermos ás ciências sociais, sem, entretanto ignorar que Ciências da Natureza como a Biologia, também fazem uso de tal conceito. A Ciência Política utiliza o conceito de território sob a ótica do poder, na maioria das vezes associado a Estado. A Economia como base material para a produção ou fator locacional. A Antropologia enfatiza a dimensão simbólica. A Sociologia como fator que interfere nas relações sociais. A Psicologia como fator que influencia a construção da subjetividade dos indivíduos. De alguma forma essas diferentes formas de conceituar território influenciaram o debate geográfico recente, onde as formas de conceituar território podem ser agrupadas em quatro vertentes básicas: política (centrada nas relações de poder); cultural (que enfatiza a dimensão simbólica); econômica (que destaca a dimensão espacial das relações econômicas); naturalista (que enfoca as influências naturais no comportamento humano). Originalmente, a concepção de território tem como base a dimensão físico-natural, tendo sido herdada dos naturalistas, o que cria dificuldades no seu transporte para a análise da realidade social, dificuldade esta que marcou o uso desta noção na história da Geografia, levando a uma 1 Professor Associado do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. naturalização. Ratzel considerava que o território representa as condições de trabalho e existência da sociedade, e, portanto, a perda de território indicava a decadência da sociedade e o progresso requeria o aumento deste. De tal concepção derivou a noção de espaço vital, isto é, do espaço necessário para o desenvolvimento da sociedade. Aos poucos, o conceito de território caminhou na Geografia na direção de sua associação com os limites territoriais do Estado-nação. O território foi, neste sentido, concebido como fundamento absoluto da soberania política, como elemento organizador da ordem internacional, estruturando as estratégias políticas, econômicas e sociais do Estado-nação. Pode ser que a maior peculiaridade do Estado-nação moderno tenha sido a idéia de que fronteiras territoriais poderiam sustentar indefinidamente a ficção da singularidade étnica nacional. Esta idéia utópica pode ser nossa memória mais duradoura do Estado-nação moderno. (Appadurai, 1997: 46) Nos últimos anos essa associação direta entre território e Estado-nação tem sido fortemente questionada, pois muitos autores consideram que território não deve ser associado exclusivamente ao Estado Nacional, mas analisado em suas várias escalas, assim como há a possibilidade de se ter vários poderes atuando sobre um mesmo território. Alguns autores das ciências sociais e política radicalizaram tal crítica apontando para “O fim dos territórios” (Badie, 1996). Este autor sustenta que o território não é mais o elemento organizador da ordem internacional, pois as estratégias políticas, econômicas e sociais contemporâneas contradizem o princípio da territorialidade. As identificações transnacionais referidas a redes econômicas, mercantis, culturais, religiosas, migratórias ou profissionais tendem a se sobrepor ao princípio da territorialidade. Dentre essas, a dimensão econômica é a mais importante promotora de desterritorialização, via internacionalização das políticas econômicas e extensão das lógicas transnacionais de mercado. Também no que se refere ao âmbito das estratégias empresariais, a lógica da mobilidade supera a da territorialização. Também as migrações, as trocas de informação e conhecimentos aparecem como elementos privilegiados de constituição destas redes desterritorializadoras. Do mesmo modo, terrorismo e narcotráfico são processos que questionam a soberania territorial e implantam uma nova forma de violência e controle do espaço. Na visão do autor, a desordem territorial está ligada a dois processos aparentemente contraditórios: pressões identitárias e efeitos da mundialização. ...o território deixou de ser o suporte exclusivo e uniforme das funções de governo: ele passa a ser substituído pela articulação de espaços múltiplos, mais ou menos especializados, que se equilibram uns aos outros, em vez de se inscreverem numa hierarquia fria e coercitiva. (BADIE, 1996: 258). Ainda que de forma não tão radical, Appadurai também sustenta a dissociação entre território, Estado e nação. Para este autor, território e territorialidade passam a constituir a base lógica de sustentação do poder do Estado, mas a nação passa a estar cada vez mais vinculada a aspectos como religião, língua, etnia. Para ele, somente aos Estados interessa uma ideia de soberania baseada na territorialidade. ...o território pode ser encarado como um problema crucial na crise contemporânea do Estado-nação ou, mais precisamente, na crise da relação entre Estado e nação. Na medida em que os Estados-nações existentes apóiam-se em alguma idéia implícita de coerência étnica como base da soberania estatal, tendem certamente a transformar em minoria, degradar, penalizar, assassinar ou expulsar aqueles que são vistos como minoria étnica. (APPADURAI, 1997: 44). De acordo com o autor, soberania e territorialidade são hoje conceitos apartados, como o demonstra, por exemplo, a atuação das forças de paz da ONU que representa um claro indício de questionamento da soberania territorial do Estado-nação. Haesbaert (2002 e 2004) tece uma crítica a essas interpretações acerca da perda de centralidade do conceito de território. Para o autor, o debate sobre os processos de criação e desaparecimento de territórios é um dos mais relevantes das últimas décadas, porém, marcado por um diálogo oculto entre a Geografia e as demais ciências sociais, pois poucos geógrafos discutiram de forma direta a questão da desterritorialização e os cientistas sociais que o fizeram ignoraram solenemente o trabalho dos geógrafos. Segundo o autor, há cinco interpretações básicas sobre a desterritorialização: (1) mobilidade e fluidez típicos das redes destroem o território; (2) perda de referenciais espaciais concretos, sob o domínio das relações imateriais; (3) perda de poder em termos do controle dos processos sociais através do espaço; (4) deslocalização econômica; (5) resultado da homogeneização cultural crescente do mundo. Mas, considera que há problemas nessas leituras, pois entende: desterritorialização como um movimento que, longe de estar fazendo desaparecer os territórios, ou mesmo de correr “paralelo” a um movimento territorializador, geralmente mais tradicional, deve ser interpretado como um processo relacional, des-re-terrritorializador, onde o próprio território se torna mais complexo. Por um lado mais híbrido e flexível, mergulhado que está nos sistemas em rede, multiescalares, das novas tecnologias da informação e, por outro, mais inflexível, marcado pelos muros que serparam ricos e pobres, “mais” e “menos” seguros”. (HAESBAERT, 2002: 34/35). Assim, o autor nos propõe uma análise mais complexa da problemática territorial que busque compreende suas múltiplas dimensões e escalas, sustentando que toda desterritorialização desemboca numa nova forma de territorialização, mesmo que seja na forma mais radical desterritorialização, como é o caso dos aglomerados de exclusão (campus de refugiados, acampamentos de sem terras e sem tetos, etc). Desterritorialização, portanto, antes de significar desmaterialização, dissolução das distâncias, deslocalização de firmas ou debilitação de controle fronteiriços, é um processo de exclusão social, ou melhor de exclusão sócio-espacial. (HAESBAERT, 2002: 36) Outro deslocamento importante dentro do debate sobre território diz respeito à questão da contiguidade, pois tradicionalmente esta é considerada atributo central do conceito de território, herança da associação entre território e Estado-nação, onde a contiguidade espacial é a regra.2 Badie (1996) em sua leitura que aponta para o fim dos territórios, sustenta que território implica contiguidade e exaustividade, opondo-se à noção de rede que seria sinônimo de liberdade e mobilidade. Já para Appadurai (1997) há uma crescente tensão entre pluralismo das diásporas e estabilidade territorial do projeto do Estado-nação moderno, resultando na constituição de novas cartografias que não parecem exigir reivindicações territoriais apoiadas na contiguidade. Souza (1995), por sua vez, considera que território é tradicionalmente associado à contiguidade espacial, mas julga ser possível pensar em territórios descontínuos que seriam na realidade redes que articulam dois ou mais territórios contínuos. Haesbaert (2004), porém, aponta a existência de duas lógicas territoriais distintas, a zonal, marcada pela contiguidade e a reticular, que prescinde desta. Segundo o autor, no mundo contemporâneo a lógica territorial zonal (fortemente associada ao Estado) abre cada vez mais espaço para a lógica territorial reticular: o capitalismo se funda, geograficamente, sob estes dois grandes “paradigmas” territoriais – um mais voltado para a lógica estatal, controladora de fluxos pelo controle de áreas, quase sempre contínuas e de fronteiras claramente delimitadas; outro mais relacionado à lógica empresarial, também controladora de fluxos, porém prioritariamente pela sua “canalização” através de determinados dutos e nódulos de conexão (as redes). (HAESBAERT, 2004: 6) Tal debate, nos conduz a uma outra questão: o poder sobre o território é unicamente de natureza estatal como sustenta a visão tradicional de território associada a Estado-nação? Enfatizando o caráter político da noção de território, Raffestin (1993) sustenta que a imagem territorial projetada por um ator social não é equivalente ao território real pois este é a conjugação de distintos projetos territoriais em disputa. Para este autor, há três elementos do sistema territorial: a 2 Há exceções, como o Alasca, por exemplo, que é território dos EUA e está separado da maior parte do território deste pelo Canadá, mas a regra é que os Estados-nação tenham um território contíguo. tessitura (repartição), os nós e as redes. As imagens territoriais são a forma assumida pela estrutura (tessitura, nós e redes) manipulada por um sistema de objetivos intencionais e ações, sendo que todos, desde o Estado, passando pelas empresas e chegando aos indivíduos são atores sintagmáticos, isto é produtores de territórios. A tessitura exprime a área de exercício dos poderes ou a área de capacidade dos poderes, os pontos que integram as malhas são os nós, as nodosidades territoriais, enquanto as redes são a expressão da hierarquia dos pontos. Assim, redes, tessituras e nós revelam um domínio do quadro espaçotemporal: Toda combinação territorial cristaliza energia e informação, estruturadas por códigos. Como objetivo o sistema territorial pode ser decifrado a partir das combinações estratégicas feitas pelos atores e, como meio, pode ser decifrado por meio dos ganhos e dos custos que acarreta para os atores. O sistema territorial é, portanto, produto e meio de produção. (RAFFESTIN, 1993: 158). Souza define-o como campo de forças, teia ou rede de relações sociais que define um limite e uma alteridade, contrapondo os inseridos e os estranhos àquele espaço: “O território (...) é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder.” (SOUZA, 1995: 78.) Para Moreira território é a expressão espacial da organização das sociedades no que diz respeito ao domínio, constituindo uma fração do espaço, um domínio dentro do espaço, um projeto de construção territorial: ...território como o domínio da localização e da distribuição de onde o homem tira o sentido do ambiental, do mundanamente enraizado, do unido numa identidade, que só acontece com homens culturalmente territorializados. (MOREIRA, 1996: 6). Em trabalho anterior defendemos a concepção de que território é um domínio espacial sobre o qual os atores sociais afirmam um controle político, isto é, uma forma de ordenamento territorial que propõe um determinado modo de organização das relações sociais e de apropriação da natureza, sendo assim, uma parcela do espaço sobre a qual incide uma dominação, o que dá a este um caráter eminentemente político. Porém, não se deve esquecer que esta dimensão política não é unívoca, na medida em que há uma constante disputa de projetos de ordenamento territorial. Tais disputas refletem tanto a crítica da forma que assumem as relações sociais, como da apropriação dos recursos ambientais. (ALENTEJANO, 2003) Haesbaert, por sua vez, aponta para a dimensão simbólica do poder que envolve o território, considerando-o como base para a construção de identidades culturais, como articulador de experiências de vida que conferem a possibilidade de construir identidades. Território, assim, em qualquer acepção, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional “poder político”. Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriação. Lefebvre distingue apropriação de dominação (“possessão”, “propriedade”), o primeiro sendo um processo muito mais simbólico, carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso, o segundo mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca. (HAESBAERT, 2004: 1/2). Avançando nessa direção, o autor aponta cinco diferentes modalidades de território: uniterritoriais, com forte correspondência entre poder político e identidade cultural; político-funcionais, como a do Estado-nação, onde há certa pluralidade cultural, mas unidade política; flexíveis, admitindo sobreposições territoriais; múltipla, quando grupos ou indivíduos constroem seus territórios na conexão flexível de territórios multifuncionais e multiidentitários. E defende que pensemos território a partir de uma perspectiva muiti-escalar e multi-dimensional. O território, como espaço dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um sentido multi-escalar e multi-dimensional que só pode ser devidamente apreendido dentro de uma concepção de multiplicidade, de uma multiterritorialidade. E toda ação que efetivamente se pretenda transformadora, hoje, necessita, obrigatoriamente, encarar esta questão: ou se trabalha com a multiplicidade de nossos territórios, ou não se alcançará nenhuma mudança positivamente inovadora. Os movimentos antiglobalização e anti-neoliberalismo que o digam, zapatistas à frente. Pensar multiterritorialmente é a única perspectiva para construir uma outra sociedade, ao mesmo tempo mais universalmente igualitária e mais multiculturalmente reconhecedora das diferenças humanas. (HAESBAERT, 2004: 19) Mas, não é isso que tem prevalecido nas formulações teóricas que sustentam a maioria das políticas territoriais implementadas no Brasil nos últimos anos, ao contrário, é uma visão unilinear e unívoca, como veremos a seguir. 3. A teoria das “regiões vencedoras” e a noção de capital social dos territórios A concepção de que algumas regiões possuem atributos que lhes conferem vantagens sobre outras vem ganhando força nos últimos anos, apoiada fortemente nas análises sobre o desenvolvimento da chamada Terceira Itália, isto é, a região central da Itália que experimentou nas últimas décadas um expressivo crescimento econômico, diferenciando-se tanto do Sul, tradicionalmente atrasado, como do Norte, região mais desenvolvida do país. Tal processo chamou a atenção de inúmeros pesquisadores que procuraram explicar das mais diversas formas o desenvolvimento verificado na região, inclusive pelo fato de que o mesmo ocorria num momento em que o próprio dinamismo do Norte decrescia. Um dos autores que buscou formular uma explicação para o fenômeno, enfatizando a dimensão institucional, foi Putnam (1996) que atribuiu o bom desempenho regional ao capital social acumulado. Enfrentando o problema teórico da ação coletiva, Putnam sustenta que a cooperação depende de confiança e informação e critica a teoria dos jogos3 por subestimar a cooperação voluntária e generalizar o raciocínio individualista para o conjunto da sociedade. Para ele, A superação dos dilemas da ação coletiva e do oportunismo contraproducente daí resultante depende do contexto social mais amplo em que determinado jogo é disputado. A cooperação voluntária é mais fácil numa comunidade que tenha herdado um bom estoque de capital social sob a forma de regras de reciprocidade e sistemas de participação cívica. (PUTNAM, 1996: p. 177). De acordo com Putnam, o capital social tem uma dimensão produtiva, poupando capital físico, através da mútua utilização de instrumentos e conhecimentos. O exemplo mais concreto é o das associações de crédito rotativo que combinam sociabilidade com formação de capital em pequena escala. Putnam ressalta que a noção de capital social é semelhante à noção hirschmaniana de recursos morais citada acima. Segundo o autor, a confiança social pode emanar de duas fontes conexas: as regras de reciprocidade e os sistemas de participação cívica, sendo as primeiras incutidas e sustentadas por condicionamentos, socialização e sanções, mas que quando se difundem amplamente na sociedade passam a representar um componente produtivo de capital social, pois conciliam interesse próprio com solidariedade. A confiança promove a cooperação. Quanto mais elevado o nível de confiança numa comunidade, maior a probabilidade de haver cooperação. E a própria cooperação gera confiança. A progressiva acumulação de capital social é um dos principais responsáveis pelos círculos virtuosos da Itália cívica. (PUTNAM, 1996: p. 180). Por sua vez, os sistemas de participação cívica são uma forma essencial de capital social: quanto mais desenvolvidos forem esses sistemas numa comunidade, maior será a probabilidade de que seus cidadãos sejam capazes de cooperar em benefício mútuo, por quatro razões: aumentam os custos futuros do oportunismo; promovem sólidas regras de reciprocidade; facilitam comunicação e fluxos de informação aumentando a confiança; corporificam o êxito obtido em colaborações anteriores. Assim, a experiência italiana demonstra que quando não há exemplos anteriores de colaboração cívica fica mais difícil desenvolvê-la no presente. Desta forma, Putnam se opõe a autores como Olson que negam o efeito econômico positivo da existência de fortes grupos organizados, sustentando que estes imobilizam o governo ou sugam recursos destes. Para Putnam, ao contrário, fortes organizações sociais favorecem o bom desempenho estatal. 3 Esta corrente teórica, surgida nos anos 60, com Olson, procurava aplicar os fundamentos da economia neoclássica à análise dos processos sociais. Assim, na concepção do autor, a cooperação é melhor instrumento para superação dos dilemas da ação coletiva que a coerção, mas sua existência exige a presença de um capital social que a impulsione, o qual na maioria das vezes está presente nas regras de reciprocidade generalizada e nos sistemas de participação cívica que estimulam a cooperação e a confiança social porque reduzem os incentivos a transgredir, diminuem a incerteza e fornecem modelos para a cooperação futura. Por fim, Putnam sustenta que o capital social é mais importante que o físico e o humano para o bom desempenho do Estado e do mercado e que criar capital social é fundamental para fazer a democracia funcionar. Um outro autor fundamental desta concepção que estamos analisando é Storper que, como vimos anteriormente, sustenta que a questão regional, até então considerada subproduto de processos econômicos e sociais mais profundos, passa a ter status de questão fundamental para sociólogos, economistas e cientistas políticos a partir dos anos 1980. Para o autor, são três as escolas participantes do debate: interessados em instituições; preocupados com organização industrial e transações; voltados para mudança tecnológica e aprendizagem. Storper (1997), assim como Putnam, vai recuperar a experiência italiana, lembrando que Bagnasco cunhou a expressão Terceira Itália, popularizada por Piore e Sabel, os quais formularam a expressão “especialização flexível” para descrever as relações de produção características da região, contrapondo-a à produção de massa dominante no pós-guerra. Para Storper, foram quatro as contribuições fundamentais de Piore e Sabel: (1) não há tecnologia e forma de organização da produção naturalmente superior; (2) especialização produtiva como alternativa à produção de massa; (3) territorialização do desenvolvimento; (4) importância das redes institucionais para o desenvolvimento. Entretanto, as observações destes autores têm sido alvo de severas críticas, dentre as quais destacamse: (1) o exagero da importância das pequenas empresas no mundo contemporâneo; (2) a concentração dos processos identificados em alguns ramos específicos; (3) a dificuldade de reprodução do processo em outras áreas; (4) a capacidade das grandes empresas flexibilizarem sua produção; (5) a vinculação a regiões fechadas; (6) a fragilidade da associação entre especialização flexível e desenvolvimento territorial. Paralelamente aos estudos realizados na Itália, nos EUA, no final dos anos 1970, desenvolveu-se uma escola de estudos regionais voltada especificamente para identificar os principais atributos das regiões que concentravam a indústria de alta tecnologia. A American School of High Technology concentrou suas atenções na relação entre a existência de centros de desenvolvimento de P&D e o desenvolvimento regional, mas suas conclusões são de difícil generalização. Do mesmo modo, na Europa, o Groupment de Recherche Européen sur les Milieux Innovateurs, composto por economistas regionais da França, Itália e Suíça, destacava o “milieu” como um contexto que favorece ações inovadoras e coordenação entre os agentes. Entretanto, todas estas correntes incidem no mesmo erro, o caráter circular do argumento que associa meio a inovação e vice-versa. How economic actors reason and interact is, they argue, in large part a product of their context, and this context is likely to have - at least in part - territorial boundaries and specificities. So the process of economic creation by such actors should depend on their milieu. (STORPER, 1997: p. 18). Assim, Storper considera que as reais ferramentas para analisar os aspectos intangíveis do desenvolvimento de base territorial foram desenvolvidas por economistas não-ortodoxos e sociólogos e não pelos geógrafos e economistas regionais. Entretanto, os evolucionários não foram capazes de demonstrar a relação entre interdependências inegociáveis, trajetórias tecnológicas e especificidade territorial. Deste modo, coloca-se hoje como grande dilema da geografia econômica contemporânea a ressurgência da especialização territorial e da economia regional num contexto de ampliação da racionalidade organizacional científica, ao mesmo tempo em que a velocidade dos meios de comunicação e informação impulsiona a globalização. A saída teórica proposta por Storper para este dilema baseia-se no que denomina “santíssima trindade” da abordagem heterodoxa do novo paradigma da economia regional e da geografia econômica, ou seja, a associação entre tecnologia, organizações e território. Storper propõe associar a tradicional análise heterodoxa que vê a economia como um sistema mecânico com uma nova forma de abordagem que enfatiza o caráter relacional dos processos e a reflexividade das ações humanas. Para ele, a tecnologia envolve não apenas a tensão entre escala e variedade, mas também a desconfiança em relação ao conhecimento. As organizações, por sua vez, têm suas relações definidas não apenas em termos de input-output, mas também de interdependências inegociáveis, sujeitas a alta reflexividade. Por fim, o território desempenha papel fundamental, na medida em que a proximidade é fundamental dentro da perspectiva relacional, mais do que em relação às trocas materiais. Para o autor, três mudanças centrais marcam o capitalismo contemporâneo: (1) revolução nas tecnologias de produção, informação e comunicação, mudando qualitativamente os processos de controle dentro das firmas e de interação entre estas; (2) expansão espacial e aprofundamento social das relações apoiadas na lógica do mercado; (3) generalização das modernas formas de organização e comunicação inclusive para dimensões não-econômicas da vida. Deste modo, a essência do processo de mudança tecnológica está no tecido de relações através do qual conhecimentos assimétricos, não-cosmopolitas são gerados, aplicados e envolvidos. No que se refere à dimensão espacial, sobressai o fato de que a dimensão regional foi tradicionalmente vista como derivada das forças tecnológicas e organizacionais. Por outro lado, a dimensão territorial dos processos, sempre foi entendida como vantagens geradas pela proximidade. Para Storper, é inegável a importância da proximidade para as dimensões comunicativa, interpretativa, reflexiva e coordenativa das transações. The existence of the conventions and relations that permit reflexivity are something like assets to the organizations or regions that have them, or even to the individual agents caught up in them. Regions and organizations who have them have advantages because these relations and conventions - much more so than stocks of physical capital, codified knowloged, or infrastructure - are difficult, slow, and costly to reproduce, and sometimes they are impossible to imitate. (STORPER, 1997: p. 44). Assim, as economias territoriais podem envolver efeitos transversais entre diferentes atividades, enredando tecnologias, organizações e estruturas de ação num processo de coordenação econômica e mobilização de recursos. Percebe-se, tal qual em Putnam, que também Storper dá ênfase absoluta à cooperação em detrimento do conflito e que do mesmo modo que Putnam, considera que há regiões vencedoras e perdedoras, o que estaria relacionado com a qualidade das organizações existentes em cada uma e a capacidade de facilitar o desenvolvimento tecnológico, o que não deixa de ser uma espécie de sinônimo de capital social. Tal concepção vai ser plenamente assumida por autores como Abramovay que irá utilizar a noção de capital social dos territórios para analisar as possibilidades de inflexão no desenvolvimento rural brasileiro, Para este, Mais importante que vantagens competitivas dadas por atributos naturais, de localização ou setoriais é o fenômeno da proximidade social que permite uma forma de coordenação entre os atores capaz de valorizar o conjunto do ambiente em que atuam e, portanto, de convertê-lo em base para empreendimentos inovadores. (ABRAMOVAY, 1999: p. 2). De acordo com o autor, duas correntes contemporâneas de pensamento têm convergido na análise do desenvolvimento rural, enfatizando respectivamente a dimensão territorial do desenvolvimento e o capital social. Sua proposta é associá-las. Segundo o autor, a noção de capital social tem sido crescentemente utilizada pelas instituições internacionais como o BIRD, a FAO, a CEPAL e a UNCTAD, representando, do ponto de vista teórico, uma resposta ao dilema neoclássico da ação coletiva. De acordo com essa visão, mais importante que as sanções sociais para viabilizar a cooperação é a interiorização nos indivíduos da percepção de que ela favorece o conjunto. Os fundos de aval e as cooperativas de crédito representariam os principais exemplos de formação de capital social. Já a noção de desenvolvimento territorial tem se apoiado na concepção de que o território, mais que uma simples base física para as relações entre indivíduos e empresas, possui um tecido social, uma organização complexa feita por laços que vão muito além de seus atributos naturais e dos custos de transportes e comunicações. Tal visão se contrapõe à tradição da economia que tem historicamente negligenciado a dimensão espacial/territorial do desenvolvimento, enfatizando as dimensões temporal e setorial. Para Abramovay é preciso levar em consideração três traços básicos dos processos de desenvolvimento territorial relacionando-o com a noção de capital social para pensar o desenvolvimento rural: conjunto diversificado, porém integrado, de empresas familiares; ambiente de inovações e troca de informações onde a colaboração é tão ou mais importante que a concorrência; interação entre campo e cidade. [...] um ambiente de cooperação entre empresas - no sentido da troca de informações, da preocupação comum com a formação dos trabalhadores, com a implantação dos serviços indispensáveis ao seu funcionamento e com a qualidade de vida numa certa região - é uma das bases essenciais para o processo de desenvolvimento. (ABRAMOVAY, 1999: p. 10). Assim, no caso brasileiro, os principais obstáculos ao desenvolvimento rural de base local seriam a falta de confiança dos agricultores em sua própria capacidade, a ingerência política na dinâmica dos Conselhos de Desenvolvimento Rural, a resistência das prefeituras que vêem esses espaços como concorrentes do executivo, a baixa participação da sociedade civil, principalmente jovens e mulheres e a limitada capacidade dos técnicos para lidar com esses novos canais de participação. Para Abramovay, visto como mera base territorial para a atividade o meio rural não escapa à tragédia do esvaziamento social, econômico, político e cultural: Construir novas instituições propícias ao desenvolvimento rural consiste, antes de tudo em fortalecer o capital social dos territórios, muito mais que em promover o crescimento desta ou daquela atividade econômica. (ABRAMOVAY, 1999: p. 17). Esta é, em termos gerais, a mesma idéia defendida por Cazella & Mattei (2002) que apostam na diversificação de atividades para criar capital social capaz de impulsionar o desenvolvimento dos territórios. [...] a presença de agricultores familiares diversificados, que transformam e vendem de forma direta ou a totalidade da produção e que auxiliam na ampliação das atividades de lazer e de vida local, contribui de forma decisiva para a criação de um capital social capaz de transformar o espaço local banal num território de desenvolvimento. (CAZZELA & MATTEI, 2002: p. 17). Concepção semelhante é desenvolvida por Vilela (1998) para quem a migração de retorno para o campo ou para pequenas e médias cidades, o crescimento de atividades não-agrícolas no meio rural, a revalorização da natureza e ascensão de novos atores sociais recolocaram o campo em evidência. De acordo com Vilela, a substituição da diferenciação rural/urbano pelo uso da noção de economia local, não é capaz de dar conta da complexidade das transformações em curso no meio rural e em sua relação com o urbano. Para o autor, o revigoramento da dimensão local está associado à crise do Estado, sendo o local feito de memória coletiva e relações sociais ligadas à sua própria exploração. Porém, destaca a necessidade de inserir o local em sua relação com o global: [...] as diferenciações territoriais são resultado da interrelação entre os aspectos sociais, econômicos, culturais e institucionais que caracterizam uma realidade determinada conjuntamente com as ligações de natureza variada que ela tem com o resto do mundo (o mercado global). (VILELA, 1998: p. 17). Nesse sentido, propõe a construção da noção de desenvolvimento rural territorializado como alternativa à noção de economia local, para dar conta das especificidades do rural neste novo contexto. [...] esta nova dinâmica, observada no meio rural, também parece variar consideravelmente de região para região - sejam blocos econômicos continentais, países, regiões, micro-regiões - fazendo com que a ênfase nos tipos de atividade geradoras de renda no meio rural também varie nas mesmas proporções. Para cada região a escolha das atividades a serem estimuladas e desenvolvidas dependerá de um contexto intra e extra-local que venham a favorecer processos endógenos e/ou exógenos de desenvolvimento. (VILELA, 1998: p. 25). Assim, a diversidade é a marca fundamental deste novo rural, onde o capital avança sobre novas realidades (turismo rural, produção agroecológica), buscando apropriar-se delas, e a territorialização do desenvolvimento está diretamente vinculada à diversificação das formas de desenvolvimento rural. Segundo sua concepção, cada tipo de agricultor desenvolve diferentes formas de articulação com o sistema social e econômico, por conseguinte, constrói diferentes espaços, por meio de redes que se sobrepõem, mas não se confundem. A abordagem do desenvolvimento rural/local requer uma leitura dos processos sociais e econômicos, antes territorial que setorial, pois o território como unidade analítica parece mais apropriado para avaliar aspectos da competitividade e as mudanças ocorridas ao longo do tempo e no conjunto das políticas. (VILELA, 1998: p. 30). Assim, para Vilela, a diversidade territorial deve ser vista como estratégica para a implementação de políticas, as quais devem ser um conjunto articulado de ações intersetoriais integradas territorialmente. Em direção semelhante, Campanhola & Graziano da Silva (1999), analisando as possibilidades de mudança na orientação das políticas públicas para o meio rural brasileiro, destacam que a heterogeneidade das áreas rurais brasileiras vem aumentando com a incorporação de atividades urbanas e a diferenciação crescente entre as regiões. [...] crescente heterogeneidade de atividades e opções de emprego e renda nãoagrícolas, que tem contribuído para que a população residente no meio rural busque maior estabilidade econômica e social. (CAMPANHOLA & GRAZIANO DA SILVA, 1999: p. 1). Para os autores, a descentralização das políticas públicas favorece organização e articulação local dos agricultores, sendo o planejamento local identificado como o principal caminho para o aprofundamento da democracia e da sustentabilidade. De acordo com esses, é necessário superar o principal equívoco das políticas públicas que é o fato de geralmente serem elaboradas setorialmente, sem considerar as especificidades locais: [...] o planejamento local vai possibilitar o delineamento de políticas públicas que dêem suporte à pluriatividade no meio rural, com o objetivo de aumentar a renda familiar. (CAMPANHOLA & GRAZIANO DA SILVA, 1999: p. 6). Assim, propõem como diretrizes básicas das políticas de desenvolvimento local: (a) identificar as potencialidades agrícolas e não-agrícolas; (b) organizar a participação das comunidades locais; (c) solucionar os entraves de infra-estrutura; (d) reestruturar a dimensão institucional para favorecer as ações inter-setoriais; (e) incorporar a gestão por bacias hidrográficas, consideradas mais homogêneas do ponto de vista da geografia agrária.4 [...] as bacias hidrográficas, que se constituem primariamente em unidades de gestão geo-ambiental, podem se transformar em unidades adequadas para a gestão de outros recursos sociais e econômicos, favorecendo a articulação institucional e a participação da sociedade civil de uma micro-região ou mesmo de uma região. (CAMPANHOLA & GRAZIANO DA SILVA, 1999: p. 11). Dentre as políticas concretas de desenvolvimento para o meio rural, os autores destacam o estímulo à livre organização associativa e cooperativa das comunidades rurais; a expansão da infra-estrutura, com ênfase na comunicação; o desenvolvimento de uma política de habitação rural, inclusive como forma de geração de empregos, dada a precariedade das habitações rurais e a importância da moradia 4 Tal afirmação nos parece bastante questionável, pois há inúmeros indícios de alta heterogeneidade na estrutura agrária de bacias hidrográficas, seja na escala das microbacias, seja em escalas menores. rural para trabalhadores urbanos; a revisão da formação e da orientação do sistema de pesquisa e extensão rural avessos ao desenvolvimento de atividades não-agrícolas e acostumados a uma ação paternalista e a revisão da legislação, restritiva ao desenvolvimento de atividades não-agrícolas no meio rural. De acordo com os autores, apesar de as mudanças em curso no meio rural brasileiro não serem homogêneas há aspectos comuns: aumento dos empregos não-agrícolas, principalmente nos serviços, indústria, comércio e construção civil; urbanização do meio rural. O que se propõe é que as novas oportunidades geradoras de renda para a população rural sejam contempladas por políticas públicas e que o Estado e suas instituições sejam agentes incentivadores dessas transformações. (CAMPANHOLA & GRAZIANO DA SILVA, 1999: p. 20). Wilkinson & Mior (1999), por seu turno, no contexto de uma análise voltada para a identificação de processos de construção social de mercados pela agricultura familiar, afirmam que: [...] o novo mundo rural se constitui num continuum abrangendo a inserção mais autônoma nas cadeias tradicionais, a produção artesanal e o turismo rural dentro de estratégias locais e regionais de reconversão. (WILKINSON & MIOR, 1999: 31). Desse modo, estes autores iluminam novos campos de atuação da agricultura familiar e ampliam o próprio alcance da noção de “novo mundo rural”, além de realçar a importância da dinâmica regional de tais processos. Percebe-se assim, que entre os analistas da questão agrária brasileira que têm procurado trabalhar com a concepção de desenvolvimento regional, há uma forte tendência a valorizar noções como a de capital social, assim como uma aposta no fortalecimento dos mecanismos de participação social como forma de promover a valorização crescente do rural e a melhoria das condições de vida da população. Há, entretanto, diferenças expressivas no que diz respeito à ênfase conferida às atividades agropecuárias ou às não-agrícolas como motor desse novo processo de desenvolvimento. Portanto, as formas de articulação entre as transformações no meio rural e as perspectivas de desenvolvimento regional são múltiplas. 4. Para uma crítica da noção de capital social dos territórios Como vimos acima, há uma clara tendência de se buscar identificar fatores intrínsecos às regiões que lhes garantam vantagens em termos de desenvolvimento, o que faz inclusive com que alguns autores se debrucem sobre a possibilidade de reproduzir instituições e processos sociais considerados bem sucedidos em determinadas regiões, como forma de impulsionar o desenvolvimento de outras, tidas como atrasadas. Consideramos tal concepção bastante problemática, por diversas razões: em primeiro lugar, a idéia de que há regiões vencedoras e perdedoras parece-nos equivocada, uma vez que há inúmeras indicações de que as variações históricas são profundas em relação a isso, ou seja, regiões outrora “vencedoras” são hoje “perdedoras” e vice-versa, o que demonstra o equívoco de absolutizar regiões, instituições e processos sociais como elementos impulsionadores do desenvolvimento; em segundo lugar, tais concepções invariavelmente omitem de suas análises a dimensão conflituosa dos processos de desenvolvimento, isto é, tendem a idealizar aspectos como a cooperação e a negociação em detrimento dos conflitos sociais, desconsiderando as diferenças sociais presentes por trás destes processos de desenvolvimento e tratando-os como se fossem homogêneos. Por tudo isso, consideramos mais interessante análises com a de Harvey (1990) e Ray (1997) que comentaremos brevemente a seguir. Harvey, em sua teorização sobre a espacialidade do capitalismo, destaca a natureza conflituosa da produção do espaço e as constantes transformações deste em decorrência da evolução de tais conflitos. Dentre estes conflitos destaca-se a oposição entre capital e trabalho que do ponto de vista espacial se reflete numa tentativa de controle do capital sobre o trabalho, marcado por um contraditório processo de estímulo à mobilidade e estabelecimento de restrições à circulação. El capital en general confia en que los trabajadores busquen perpetuamente una vida mejor – definida en términos materiales y monetarios – como medio para coordinar la movilidad de los trabajadores a sus requerimientos y para disciplinar a los capitalistas individuales a los requerimientos de clase. [...] Ésta es la condición fundamental para entender la movilidad del trabajo. Es la condición que seguirá existiendo en tanto que los trabajadores tengan que vender su fuerza de trabajo como una mercancía a fin de poder vivir. (HARVEY, 1990: p. 337/388). De acordo com Harvey, estabelece-se um dilema constante entre os trabalhadores: migrar ou lutar. De um lado, a tendência dos trabalhadores a migrar tende a ser arrefecida pelos laços sociais estabelecidos por estes no seu dia a dia, como família, vizinhança e amizades. De outro, o envolvimento em movimentos reivindicatórios tende a ser minimizado pelas estratégias de cooptação, controle ou repressão. Tal dilema é comumente instrumentalizado no sentido da maximização das taxas de lucro. Entretanto, as contradições por vezes eclodem impulsionando as migrações ou as mobilizações dos trabalhadores, em ambos os casos com reflexos sobre a distribuição das taxas de lucro e, conseqüentemente, produzindo transformações sócio-espaciais. De qualquer forma, Harvey chama atenção para o fato de que a mobilidade do capital é muito mais importante para a acumulação que a do trabalho, o que explica “...la tendencia que existe en el siglo XX a restringir la movilidad de la fuerza de trabajo en relación con la del capital.” (HARVEY, 1990: p. 415). O resultado deste processo é a produção e reprodução constante das desigualdades espaciais que limitam, embora ao fim e ao cabo não evitem, as crises de acumulação, seja as relacionadas com a subacumulação ou as de superacumulação. Assim, estabelece-se uma permanente tensão entre concentração geográfica da produção, especialização e dispersão territorial que não pode ser entendida independentemente da dinâmica do trabalho, tampouco da tecnologia, uma vez que o desenvolvimento desta está diretamente associado à evolução do conflito entre capital e trabalho. [...] la naturaleza misma de la competencia espacial asegura que las ganancias extraordinarias de un lugar se obtendrán a expensas de pérdidas por devaluación en otro lado. Por tanto, las crisis se desenvuelven con efectos diferenciales a través de la superficie del plano. (HARVEY, 1990: p. 398). O autor destaca ainda que a tendência à aglomeração encontra limites físicos e sociais, custos crescentes, desgaste da infra-estrutura, aumento da renda da terra, fortalecimento da consciência de classe. Por outro lado, as revoluções na tecnologia, nos transportes e nas comunicações tendem a afetar o equilíbrio conjuntural entre as tendências à dispersão e à aglomeração. O resultado é um permanente conflito entre diferentes facções do capital que simultaneamente se confrontam e colaboram na busca de uma ordem espacial mais lucrativa. De um lado, o capital imobilizado no espaço tende a resistir às tendências de relocalização, de outro o capital com livre mobilidade espacial as impulsiona, donde resulta que: La geografía social que está adaptada a las necesidades del capital en un momento de su historia no concuerda necesariamente con los requerimientos posteriores. (HARVEY, 1990: p. 406). Tais diferenças geográficas muitas vezes são vistas como resíduos de um passado pré-capitalista, mas são na realidade criações e recriações da dinâmica capitalista que produz um desenvolvimento desigual. Este é resultante da tendência do capital a derrubar as barreiras espaciais à acumulação, produzindo constantemente novas delimitações espaciais. Los antagonismos entre la ciudad y el campo, entre el centro y la periferia, entre el desarrollo y subdesarrollo, no son accidentales ni impuestos desde afuera. Son el producto coherente de diversas fuerzas que intersectan y que operan dentro de la unidad global del proceso de circulación del capital. . (HARVEY, 1990: p. 421/422). Estas novas delimitações territoriais, os interesses de parcelas do capital na imobilização do espaço e a tendência dos trabalhadores à fixação favorecem o desenvolvimento de alianças territoriais cuja perspectiva central é a resistência às tendências de relocalização, defendendo os investimentos produtivos, e as infra-estruturas sociais correspondentes, espacialmente imobilizados. Assim, contraditoriamente, o crescimento das forças produtivas atua como barreira à reestruturação geográfica, na medida em que há grande quantidade de capital imobilizado e as estruturas construídas para viabilizar a circulação do capital convertem-se elas mesmas em imobilizadoras do capital. Desta forma, independente das dimensões culturais do fenômeno regional, há bases materiais decorrentes da dinâmica da circulação do capital para os conflitos de classe apoiados no regionalismo. Assim, a luta de classes possui uma dimensão territorial no capitalismo, o que significa dizer que o espaço deve ser visto como uma arma na luta de classes e as alianças territoriais e conflitos territoriais devem ser compreendidos como momentos da história da luta de classes: La geografía histórica del capitalismo es un proceso social que descansa en la evolución de las fuerzas productivas y de las relaciones sociales que existen como configuraciones espaciales particulares. (HARVEY, 1990: p. 424). Do ponto de vista do debate que estamos desenvolvendo neste trabalho, a mais importante conclusão decorrente das idéias de Harvey, é o caráter efêmero das vantagens das regiões para a acumulação do capital, assim como as dificuldades que existem para a manutenção nestas de condições de vida superiores para os trabalhadores, pois as posições competitivas das regiões alteram-se de tempos em tempos com as reestruturações produtivas resultantes dos processos de desvalorização e revalorização do capital. No que diz respeito às idéias desenvolvidas por Ray (1997), a questão fundamental é a identificação dos processos e mecanismos através dos quais os diferentes grupos sociais acionam características distintas do território para afirmar seus interesses e produzir com isso não o desenvolvimento, mas um desenvolvimento que atenda a seus interesses e que certamente implica a derrota de um outro projeto de desenvolvimento. A partir da analise do Programa LEADER (Liaisons Entre Actions de Développment de l’Economie Rurale) experiência de desenvolvimento rural propiciada pelas mudanças na Política Agrícola Comum da União Européia, Ray afirma que mais importante que vantagens intrínsecas de determinadas regiões, o fundamental para o desenvolvimento é a articulação de grupos sociais para aproveitar determinados atributos e potencialidades e direcioná-los de acordo com seus interesses. De acordo com o autor, isto pode ser feito inclusive acionando elementos da dinâmica regional até então impensáveis, uma vez que desvalorizados socialmente, ou através da invenção de identidades até então ocultas, mas que são acionadas exatamente pela possibilidade de se transformarem em elementos impulsionadores de estratégias de desenvolvimento de base local/regional.5 Ray destaca que a partir de 1988 o desenvolvimento rural de base local passou a ser um elemento importante das políticas estruturais da UE, contendo três características centrais: ênfase na dimensão territorial e não setorial, pautando-se por escalas subnacionais; valorização dos recursos físicos e humanos do território; dimensão ética, enfatizando necessidade de participação da população e valorizando a cultura e a preservação ambiental. Assim, estabelece-se uma dialética entre o nível local onde as dimensões cultural e ambiental tendem a prevalecer e o extra-local onde as dimensões política e econômica têm maior peso: The theory proposed here argues that localism and Europeanization, rather than being oppositional, should be conceptualized as being in a dialetical relationship in wich each side helps to define - and thereby reinforce - the other. (RAY, 1997: 346). Ainda de acordo com Ray, o que se verifica é a prevalência de uma dupla agenda européia: promoção política da coesão entre as nações evitando a reativação de conflitos históricos; integração econômica como forma de fortalecer a Europa diante do mundo. Nesse contexto, a agenda econômica é fortemente apoiada na concepção econômica neoclássica, porém, no nível local abre-se a possibilidade de prevalência de outras concepções políticas. Desta forma, além de identificar áreas rurais que necessitariam de apoio contra os efeitos nefastos das políticas neoliberais, as políticas de desenvolvimento local buscavam incentivar a exploração de nichos de mercado para a produção rural e criar condições para o florescimento de uma economia local de base rural. O resultado disso foi a criação de uma dicotomia entre os níveis local-regional e supraestatal. O exemplo mais expressivo disso é, como foi dito acima, o programa LEADER I (1991-1994) que representa um aprofundamento da perspectiva de desenvolvimento local de base rural embutida na reforma de 1988. [...] LEADER was not only about spatial scale, it was also to be based on a strong ethos of local participation, in the policy formation process and in the animation on the development activity itself.(…) The local level was being offered (agian potentially) a greater input into rural development policy design and implementation than had before been imaginable, extending and deepening the relation between the sub-state level and the Commission. (RAY, 1997: 349). Apesar da necessidade de seguir regras gerais, a autonomia local do programa favorecia sobremaneira os organismos de base local e a descentralização democrática de seu planejamento e operação. Assim, o autor destaca a capacidade de comunidades locais-regionais se apropriarem do 5 Poderíamos pensar, tomando por base o caso fluminense, a crescente valorização do ecoturismo no Litoral Sul e o avanço do turismo histórico no Médio Paraíba. projeto LEADER diminuindo seu caráter social compensatório e enfatizando a perspectiva do desenvolvimento local. [...] the power, status and funding that came with LEADER fed back to legitimize further the initiative territory that had primarily been constructed according to parochial agendas. Furthermore, that the LEADER enabled these partnership of local organizations to come together in a co-operative initiative was cited by many local actors as perhaps the most significant outcome of the LEADER I program. (RAY, 1997: 359). Portanto, Ray chama atenção para as possibilidades de apropriação social das potencialidades dos territórios, não sendo isto encarado como vantagens absolutas de determinadas regiões capazes de gerar um processo homogêneo de desenvolvimento, mas possibilidades de desenvolvimento diferenciados, que são articuladas ou não de acordo com os interesses sociais em jogo. Assim, consideramos que uma linha de interpretação fecunda para a questão do desenvolvimento regional deveria ter por base a concepção de que esta não é uma tendência inexorável, mas uma possibilidade aberta pelas transformações na dinâmica sócio-econômica e sua consubstanciação em transformações efetivas da realidade dependerá sobremaneira da ação dos grupos sociais e da capacidade de formularem projetos políticos que acionem identidades e construam interesses coletivos capazes de mobilizar apoios que viabilizem a consecução de seus objetivos. Neste sentido, não cabem propostas, hoje muito comuns, de reprodução de experiências bem sucedidas em contextos diferenciados, mas a busca em cada local de elementos políticos, econômicos, culturais e ambientais capazes de sustentar um processo de desenvolvimento. 5. Considerações Finais Nosso entendimento da dimensão territorial do desenvolvimento rural nos leva a relativizar as formulações dominantes neste debate brasileiro, especialmente em relação ao otimismo dos autores no que diz respeito à possibilidade de criar ambientes virtuosos que impulsionem definitivamente o desenvolvimento de determinadas regiões e especialmente a aposta na possibilidade de criação de amplos consensos em torno deste desenvolvimento local/regional. A nosso ver a criação de um padrão de desenvolvimento no meio rural pautado pela eqüidade e a sustentabilidade econômica, social e ambiental, em consonância com a diversidade regional brasileira, não pode prescindir de uma reestruturação radical da estrutura fundiária, razão maior das desigualdades econômicas e sociais existentes no meio rural brasileiro. E tal reestruturação jamais será consensual, pois atinge um dos pilares da riqueza e do poder no Brasil. Reordenar o espaço agrário brasileiro através de uma ampla e massiva reforma agrária é o passo primordial para construir um novo padrão de desenvolvimento rural, o que por sua vez é requisito fundamental para a construção de um novo modelo de desenvolvimento para o conjunto do país, rompendo com séculos de dependência, miséria e desigualdade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, Ricardo. O capital social dos territórios: repensando o desenvolvimento rural. in IV Encontro da Sociedade Brasileira de Economia Política. 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