Produto Leonilde Medeiros

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Produto Leonilde Medeiros
MARCO JURÍDICO-NORMATIVO PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL COM
ENFOQUE TERRITORIAL
Produto 3
Levantamento, revisão e sistematização bibliográfica da literatura nacional
LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
MARCELO MINÁ DIAS
dezembro de 2008
O presente documento constitui o Produto 3 do Eixo Temático “Marco jurídico normativo
para o desenvolvimento rural com enfoque territorial”, referente à consultoria contratada pelo
Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) junto ao Observatório de
Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA), vinculado ao Programa de Pós-Graduação de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Seu objetivo é, a partir de um amplo levantamento bibliográfico,
da leitura e da sistematização das referências encontradas, assinalar alguns temas recorrentes
na literatura e buscar pistas para refletir sobre os marcos jurídicos que se relacionam com o
desenvolvimento territorial no Brasil. Tendo em vista que não há literatura específica sobre o
tema, o propósito é o de verificar, na produção recente sobre desenvolvimento territorial, as
referências relacionadas a marcos legais, para organizá-las a partir de questões específicas, que
emergem quer das referências internacionais, quer de temas apontados pela bibliografia
nacional.
O texto está organizado nas seguintes partes: uma introdução geral que situa a
problemática do eixo, em especial no que se refere ao significado político dos marcos jurídicos.
Na seqüência, apresentamos algumas considerações sobre a forma como a literatura tem tratado
o tema do território. Na parte seguinte, é tratado o contexto histórico em que surgiram os marcos
legais de desenvolvimento territorial rural no país. Numa quarta parte, discutimos o que é
mencionado como sendo os marcos fundamentais já existentes e seu contexto, não a partir de
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um levantamento geral da legislação, mas, como já apontado anteriormente, tomando como
ponto de partida o que os autores que tem se voltado para discussões sobre o desenvolvimento
territorial rural têm apontado (ou deixam entrever) como sendo relevante. A seguir, a partir da
análise feita no item anterior, indicamos os passos de continuidade do trabalho.
1. Introdução
Um dos temas cruciais para a reflexão sobre os caminhos possíveis de uma política de
desenvolvimento territorial é a inevitável tensão que se gera entre a implantação dessa política e
os marcos legais/institucionais já existentes, entre outras razões, porque parte deles traz consigo
as marcas de um padrão de desenvolvimento excludente quer do ponto de vista econômico, quer
do social e político, e que reflete conflitos sociais agudos.
Considerando que o Direito é um sistema de princípios e regras de conduta socialmente
aceitos e legitimados e que garantem a previsibilidade às ações sociais, é fundamental, mesmo
que de forma breve, refletir sobre o que significam os marcos jurídicos e não tomá-los como um
a priori desistoricizado. Como aponta Pierucci (1998), discutir a legitimidade do ordenamento
político nos quadros do moderno Estado constitucional e da democracia política implica também
tratar do processo de secularização e, portanto, de racionalização da vida moderna. De acordo
com Weber (1998, p. 509), um dos traços característicos do Direito moderno é a criação de
preceitos gerais, marcados pela sistematização e formalização, aspecto desconhecido no direito
primitivo. Em função disso, são abandonadas velhas formas procedimentais do antigo direito,
que passam a ser desvalorizadas e consideradas como práticas irracionais, incertas,
incoerentes, arbitrárias, presas à sacralidade da tradição.
O padrão de legitimação muda ao mesmo tempo em que ocorrem transformações
substanciais na sociedade. O sistema jurídico acompanha essas mudanças e se transforma, por
um processo de objetivação e impessoalização, numa espécie de máquina técnico-racional.
Separa-se o legislador da lei (Luhmann, 1983) e é aos poucos constituído todo um aparato
próprio, com regras especiais que caminha na direção de buscar garantir a despersonalização e
a racionalização. Como aponta Weber (1998, p. 516), o juiz, ao julgar questões que lhe são
apresentadas, coloca em ação uma regra geral, objetiva, o que contrasta com as decisões
“reveladas”, por meios mágicos. Com isso filtra normas, seleciona, fazendo com que a
positividade do Direito seja sempre atualizada por decisões, novas escolhas, que não são
arbitrárias, mas se explicam dentro de um campo delimitado pelos preceitos gerais
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reconhecidos. Essas normas têm como contrapartida um direito subjetivo, que, para Weber
(1998, p. 532), corresponde a expectativas de ação e possibilidade de previsões.
Se a lei expressa relações de força, também precisa ser universal e legítima, ou seja,
gerar parâmetros que marcam seus próprios limites. Podemos, aqui, nos apropriar das reflexões
de Claus Offe sobre o Estado capitalista (Offe, 1984), quando o autor discute os mecanismos de
seletividade próprios às instituições políticas. De acordo com esse autor, uma determinada
questão pode ser ignorada pelo Estado até um determinado momento. Assumida como objeto de
intervenção, a ação sobre ela não se dá necessariamente nos parâmetros em que a questão
está posta, mas por meio de filtros, que constituem a seletividade própria do Estado e que faz
com que os temas que emergem na sociedade sejam absorvidos, transformados em leis, em
políticas públicas, mas a partir de parâmetros desejáveis/possíveis pela lógica das instituições
existentes (e não somente a partir do conteúdo subjacente às demandas). Ou seja, as
instituições (entre elas, o corpo jurídico-legal) encarnam determinadas possibilidades e
determinados limites que só podem ser entendidos, entre outros parâmetros, na relação entre as
instituições estatais e a sociedade.
Tanto na perspectiva de Weber como na de Luhmann, as leis, não sendo mais
consideradas sagradas nem dadas, podem ser modificadas, reformuladas e até mesmo
substituídas. No entanto, o Direito representa uma forma de coação e é tanto poder como
autoridade, ou seja, qualquer mudança nas normas implica em reconstrução da legitimidade
necessária para sua operação.
A progressiva complexificação da sociedade moderna e do Direito tem conseqüências
importantes, na medida em que passam a existir limitações à possibilidade de conhecimento das
normas pelo indivíduo. Pierucci (1998), retomando algumas dimensões da sociologia jurídica de
Weber, afirma que a esse processo corresponde a escolarização sistemática dos juristas em
Faculdades de Direito, noutras palavras, o treinamento no modo teórico-dedutivo de pensar,
recebido em escolas superiores voltadas para o ensino do Direito, contribuindo para incrementar
e sofisticar as qualidades lógico-formais do Direito moderno. Para Bourdieu (1989), os
intérpretes do Direito estão integrados a um corpo singular, cujas marcas são a disciplina, a
retórica da neutralidade, a disputa entre formuladores de direito (os “teóricos”) e os seus
intérpretes (os “práticos”), o monopólio da construção jurídica.
Bourdieu afirma ainda que é próprio ao campo jurídico transformar conflitos
irreconciliáveis em permutas reguladas, de forma a gerar soluções socialmente reconhecidas
como “imparciais”. Assim, evidencia-se a dimensão simbólica do Direito: a legitimidade esconde
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a arbitrariedade que é própria do campo. Ou, como aponta Bancaud (1989), o trabalho da
magistratura apaga os interesses sociais que presidem a elaboração das normas jurídicas.
Um aspecto que também merece reflexão em termos dos significados da lei é pensar
como ela, codificando relações, de alguma forma tem um papel importante na sua consolidação,
afirmação e mesmo criação, na medida em que define critérios e regras de inclusão e exclusão e
também de marcos por meio dos quais as relações sociais devem operar. Na perspectiva de
Bourdieu (1989), o Direito é a forma por excelência do poder simbólico de nomeação, capaz de
criar as coisas nomeadas, em particular grupos. Ao mesmo tempo em que o faz, naturaliza, cria
uma doxa (Bourdieu, 1989, p. 249), mas também expressa o reconhecimento de grupos sociais
e de demandas que, em determinados contextos, passam a ser incontestáveis. Seu
questionamento pode estar até vigente no campo das relações sociais, mas, de alguma forma,
cai no terreno do socialmente indizível. Um exemplo disso é o caso da função social da
propriedade que, embora negado no cotidiano (inclusive no plano dos julgamentos legais), não é
mais passível de negação como princípio geral de justiça. Ou seja, a disputa é transferida para
um “caso a caso”, onde se procura afirmar indicadores de que a função social é cumprida, mas
não negar que a função social deve ser obedecida.
Alguns estudos apontam as múltiplas dimensões dessa legitimidade e mostram como
existe a possibilidade de apropriação diferencial das normas legais por determinados grupos
sociais que podem produzir uma leitura das leis existentes como base para fundamentar suas
demandas. Assim, se existe a lei, há possibilidades também leituras diferenciadas da lei,
constituindo-a num campo permanente de conflito. Um autor que chama a atenção para esse
aspecto é o historiador inglês Edward Thompson. Ao analisar a chamada Lei Negra inglesa,
Thompson (1987) abre uma vertente importante para as preocupações que regem este texto.
Estudando um momento em que a lei geral começa a sobrepor às leis locais, o autor alerta para
o fato de que, na Inglaterra do final do século XVIII,
“as relações de classe eram expressas, não de qualquer maneira que se
quisesse, mas através das formas da lei; e a lei, como outras instituições que, de
tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e mascaramento) das
relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de comunicação), tem
suas características próprias, sua própria história e lógica de desenvolvimento
independentes” (Thompson, 1987, p. 353, grifos no original).
Mais adiante, o autor argumenta que
“as formas e a retórica da lei adquirem uma identidade distinta que, às vezes,
inibem o poder e oferecem alguma proteção aos destituídos de poder [...] a lei
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não foi apenas imposta de cima sobre os homens: tem sido um meio onde
outros conflitos sociais têm se travado” (Thompson, 1987, p. 358).
Essa idéia nos parece particularmente fértil para pensarmos nos conflitos existentes
entre uma normatividade que se esboça e todo um conjunto de aparatos legais existentes.
Considerar estas teorias sobre o Direito e a institucionalização e funcionamento das
regras jurídicas é importante para compreender como a perspectiva de um “desenvolvimento
territorial” supõe determinadas concepções do que seja território, por conseguinte, determinadas
possibilidades de delimitação desses espaços e de demarcação dos modos de ação e interação
entre o público e o privado. Elas têm poder de criar uma realidade territorial, demarcada pelo
arcabouço legal e pelas instituições pré-existentes, mas não por elas totalmente determinado.
Por outro lado, enunciar a possibilidade de uma institucionalização legal de uma abordagem
territorial, implica a enunciação de uma nova realidade, novas regras sociais que, para existir,
precisam garantir para si uma legitimação e produção de identificações. É neste sentido que,
para a análise que propomos, torna-se importante averiguar os modos por meio dos quais a
abordagem territorial do desenvolvimento vem sendo tratada por parte da literatura que a elege
como foco de suas atenções.
2. A abordagem territorial: algumas possibilidades de interpretação
Neste tópico, nossa intenção é averiguar de que modo determinadas representações
sociais sobre o “território” se expressam na forma de normatividade jurídica, que rege direta ou
indiretamente e/ou orienta ações sociais e políticas. Buscamos também averiguar como elas
influenciam o desenho institucional e a implementação de políticas públicas de promoção do
desenvolvimento rural. Mais especificamente, a partir de um recorte da literatura acadêmica
sobre desenvolvimento territorial e políticas públicas, queremos compreender as relações
estabelecidas entre a temática do desenvolvimento com enfoque territorial e os arranjos ou
marcos jurídicos instituídos na implementação de políticas. Trata-se de uma abordagem
exploratória, de caráter ensaístico, buscando produzir inferências e, principalmente, novas
questões que guiem futuros estudos.
Partimos do pressuposto de que tanto as leis quanto as políticas públicas, ao se
constituírem como discursos que buscam normatizar práticas, embutem - e também elaboram representações sobre os espaços de sua jurisdição, alcance ou influência. Seja para repartir as
superfícies, estabelecer fronteiras e campos de regulação; seja para conferir foco e orientação à
sua intervenção ou realizar seus planos, buscando enfrentar as disparidades sociais e organizar
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a ação coletiva, o Estado e o aparato jurídico que lhe corresponde definem e delimitam os
espaços, atribuindo significados às localidades ou aos territórios. Esta capacidade de construção
de representações sociais sobre o espaço não é, obviamente, uma exclusividade do Estado.1 Os
espaços também são objetos da construção de sentidos e apropriação por parte dos atores que
neles vivem, uma vez que as práticas cotidianas, territorialmente localizadas, relacionadas à vida
social, à política e ao trabalho, estabelecem interações inevitáveis com normas estabelecidas
pela legislação (Santos, 2007). Da mesma forma, reproduzem rotinas e princípios costumeiros,
não necessariamente codificados como lei, mas vividos como costume (Thompson, 1998).
É neste sentido que podemos afirmar que tanto a legislação vigente - produto de
determinadas vontades políticas que assumem caráter normativo - quanto a ação reflexiva
daqueles vivem cotidianamente nos espaços afetam e moldam os territórios. As leis que regem
um Estado nacional, por exemplo, estabelecem recortes territoriais para a ação do próprio
Estado (por meio de suas políticas públicas), da iniciativa privada e da sociedade que se
organiza em ações coletivas. Esta repartição também significa estabelecer limites e
possibilidades de ação para aqueles que, no território, estão sob influência das normas
estabelecidas. Assim, podemos afirmar que a legislação tem uma dimensão geográfica,
principalmente quando elabora uma representação que serve de fundamento à delimitação e à
normatização de práticas territoriais, moldando possibilidades de ação (Magdaleno, 2005). Este
é um argumento importante de parte da literatura acadêmica que elege como objeto de
problematização as relações entre os territórios e a política, à qual nos reportaremos a seguir.
A partir dos pressupostos apresentados anteriormente, podemos afirmar que a ação
política é “territorializada”, ou seja, ela ocorre em dado espaço e relacionada a normas
socialmente compartilhadas, que se expressam sob a forma de “ordem geral obrigatória”,
geralmente na forma de lei, buscando manter previsibilidade às ações do homem na sociedade.
Cumpre lembrar que essa ordenação se sobrepõe a ordenações anteriores, às vezes de caráter
local, mas não necessariamente as extingue. São regras que se superpõem em territórios
distintos, um legal, outro correspondendo a regras da vida social anteriormente definidas
localmente e legitimadas por grupos específicos. Isso se relaciona ao fato de que o movimento
1 Neste trabalho adotamos uma distinção entre as categorias “Estado” e “governo”. Apropriamo-nos da síntese feita
por feita por Höfling (2001, p. 31) que afirma: “(...) é possível considerar o Estado como o conjunto de instituições
permanentes, como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não formam um bloco monolítico
necessariamente, que possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que
parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um
todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de
Estado por um determinado período”.
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de territorialização dos espaços de atuação e interação não é, obviamente, exclusivo do Estado
e de seu aparato jurídico de suporte. Todos os agentes sociais intervêm na realidade a partir de
certo ordenamento normativo, estabelecendo relações diversas (que podem ir da
complementaridade ao conflito) com as demais territorializações historicamente construídas.
Portanto, estabelecem-se nas sociedades ordens espaciais ou espaços regulados de
possibilidades de ação e de interação, envolvendo distintos atores que ocupam física e
politicamente determinado território. A noção de “territorialização” (Haesbaert, 2004), discutida a
seguir, nos será útil para problematizar e qualificar as ações públicas (mais especificamente as
ações desencadeadas por uma política pública) que ocorrem sob influência e condicionamento
de marcos jurídicos incidentes sobre determinado território.
Ao colocarmos em questão uma política de desenvolvimento territorial, interessa-nos
identificar a representação social do espaço que esta política elabora para, num segundo
movimento, descobrir os modos e meios que a política a desenha e busca colocar em prática
para construir acordos comuns e uma dinâmica de interação a respeito de um projeto político de
desenvolvimento. Este projeto é sugerido à agenda dos diversos atores sociais que, nas
localidades focadas pela política, intervêm a partir de programas e/ou projetos próprios,
configurando ambientes pluralistas e competitivos, porém marcados por relações de poder que
determinam posições diferenciadas aos que participam das lutas travadas.
Por outro lado, este projeto também pode se constituir como fruto do impulso de
movimentos sociais, que, no entanto, é filtrado e tem suas dimensões selecionadas no aparato
estatal, não a partir de “vontades”, mas das disputas políticas e dos marcos
estruturais/institucionais do próprio Estado. Neste cenário de interações, parece estar em jogo a
capacidade de a intervenção pública estabelecer novas possibilidades de ação e interação - ou
de “territorialização” - para uma dada diversidade de atores sociais envolvidos pelo desenho e
pela focalização desta política.2
Esta questão relaciona-se a outra, referida aos vínculos estabelecidos entre os marcos
jurídicos existentes e o tipo de territorialização de ações incentivado ou recomendado pela
política. Até que ponto a institucionalização induzida e/ou criada pela política corresponde (ou
está articulada) a um arcabouço jurídico existente? Caso não corresponda, a que tipos de ações
A idéia de “jogo” remete às escolhas estratégicas que têm que ser feitas pelos atores sociais em suas interações
em busca da realização de projetos. Obviamente, as “regras do jogo” representam oportunidades e limites ou
constrangimentos a estas ações.
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e interações alternativas vincula-se a política para que tenha condições de forjar novas
“territorialidades” que, por sua vez, impulsionem a criação de novos arcabouços jurídicos que lhe
confira legitimidade e capacidade de provocar mudanças? Ensaiar respostas a estas questões
requer o diálogo com referenciais teóricos sobre as relações entre legislação, território e política.
Neste sentido, o conceito de “territorialização” nos parece importante. Este conceito
remete à idéia de uma ação política (mas não necessariamente estatal) cuja intenção, manifesta
ou não, é estabelecer certas normas ou institucionalidades compartilhadas por determinados
grupos para orientar práticas sociais sobre um determinado espaço. As “práticas sociais” podem
envolver desde ações coletivas pontuais ou específicas até a noção, mais abrangente, de
“projetos políticos”. A noção de projeto é importante para entendermos os significados que são
atribuídos às ações e suas interações decorrentes. Como explica Castoriadis, o projeto “é o
elemento da práxis, é uma intenção de transformação do real, que contem uma representação
do sentido da transformação” (1992, p. 17). Para Dagnino (2004, p. 98), o termo projeto político,
designa “os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que
deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos”,
estabelecendo um “vínculo indissolúvel” entre cultura e política. A autora chama a atenção para
a importância de recuperar essa noção, na medida em que ela permite superar visões
homogeneizadoras tanto do Estado como da sociedade civil e o reconhecimento de sua
diversidade interna como base para pensar suas relações (idem, ibidem). Para compreendermos
a complexidade dos processos de territorialização é fundamental analisarmos os projetos que
orientam a ação dos grupos que, uma vez organizados, agem para superar uma dada situação
presente, uma realidade que, a partir de um diagnóstico elaborado, deve ser mudada.
Para distinguir o território do espaço social, é necessário compreender a ação dos
“sujeitos que efetivamente exercem poder, que de fato controlam esse(s) espaço(s) e,
conseqüentemente, os processos sociais que o(s) compõe(m)” (Haesbaert, 2005, p. 6775).
Neste sentido, os processos de territorialização podem produzir vários territórios em um mesmo
espaço. A distinção entre os territórios ocorreria “de acordo com os sujeitos que os constroem,
sejam eles indivíduos, grupos sociais, o Estado, empresas, instituições como a Igreja etc.” (idem,
ibidem). Esta concepção nos conduz à noção de “territorialidade”, ou seja, a existência simbólica
de uma pluralidade de territórios, que transcendem o território físico e que interagem em um
mesmo espaço. A territorialidade é a qualidade atribuída à diversidade de territorializações
possíveis e as virtuais interações estabelecidas entre elas. Implica existência de uma pluralidade
de espaços de exercício de poder e também a uma pluralidade de jurisdições, que podem ser
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parcialmente complementares ou se sobrepor conflituosamente. Robert Sack a define como “(...)
uma estratégia espacial para atingir, influenciar ou controlar recursos e pessoas, pelo controle de
uma área e, como estratégia, a territorialidade pode ser ativada ou desativada” (Sack, 1986, p.1).
Estas concepções nos remetem às relações estabelecidas, nos territórios, entre as
diversas territorialidades historicamente construídas, que passam a interagir sob impulso de
novos recortes produzidos, por exemplo, a partir da ação do Estado, que busca, por meio de
uma políticas públicas específicas, direcionar e normatizar processos de promoção do
desenvolvimento. Para implementar seu projeto, o Estado lança-se, por conta de suas limitações
e pela necessidade de tornar legítima sua intervenção, à interação com diversos agentes que,
em territórios transformados em espaços para realização de seus próprios projetos, cooperam,
competem com ou simplesmente rejeitam a interação proposta, de acordo com as recompensas
e sanções colocadas em cena.
Ao tornar determinado espaço um território para implementação de uma política social
de investimentos públicos, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, está ativando,
ao mesmo tempo, um processo de territorialização (definindo regras, normas e
institucionalidades desejadas) e também a possibilidade de instituição de “territorialidades”, que
se sobrepõem e interagem com outras já constituídas. Ou seja, trata-se um recurso (e de um
“capital”) estratégico disponibilizado aos atores envolvidos pela política, que delimita fronteiras
que, por sua vez, afetam o acesso da população local aos recursos e aos supostos benefícios da
ação pública “territorial”. Em ambos os casos, estabelece-se um tipo de jurisdição a ser exercida
pelo Estado, por meio das agências que operacionalizam a política e pela pluralidade de atores
que vivem e atuam no território, aos quais o próprio Estado delega poder relativo para realizar a
governança dos recursos disponíveis e alocados.
De acordo com Magdaleno (2005t), o que está em jogo nos processos de
territorialização é a delimitação de possibilidades de ação para os diversos atores que
compartilham física e politicamente determinados espaços. A territorialização envolve, portanto,
a produção de uma representação do espaço e um movimento de apropriação do mesmo para a
realização de um determinado projeto social ou político. As próprias normas estabelecidas pela
legislação vigente implicam distintas territorializações. Estas estabelecem modos de divisão do
espaço (escalas nacional, regional e local) e possibilidades de organização dos “campos
operatórios dos diferentes atores sociais” (Magdaleno, 2005, p. 115). Ou seja, os processos de
territorialização conduzem à produção de distintas territorialidades e, assim, possibilitam modos
específicos ou particulares de produção de regras, normas ou instituições que buscam
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estabelecer poderes, reger ou regular, em determinado espaço, a ação individual e/ou coletiva a
partir de princípios orientados por um dado projeto social. Haesbaert (2005, p. 6778) apresenta
quatro grandes fins ou objetivos dos processos de territorialização, acumulados e distintamente
valorizados ao longo do tempo:
a) Abrigo físico, fonte de recursos naturais ou meio de produção;
b) Identificação e simbolização de grupos através de referentes espaciais (a começar
pela própria fronteira);
c) Disciplinarização ou controle por meio do espaço (fortalecimento do indivíduo por
meio de espaços também individualizados);
d) Construção e controle de conexões e redes (fluxos, principalmente fluxos de
pessoas, mercadorias e informações).
É importante reiterar que o Estado produz e torna legítimo - por meio de uma ordem
jurídica - um conjunto de regras obrigatórias que, como afirmamos anteriormente, são
relacionadas à manutenção dos “interesses comuns”, à ordem geral que mantém (ou busca
manter) determinado status quo. Há, portanto, certa hierarquização dos processos de
territorialização e construção de territorialidades. Nem todos estes processos, no entanto, como
já assinalado, são decorrência da ação do Estado, mas é ele que tem a primazia de apropriação
e controle sobre o espaço nacional, independentemente ou de modo relacional aos processos de
territorialização desencadeados pela diversidade de atores e de projetos sociais que o compõe.
Mais do que apropriação e controle, o Estado torna-se também mediador das relações entre os
locais e as redes globais que buscam transpor fronteiras para realizar projetos econômicos e
políticos.
Neste sentido, estão dadas, de certa forma, as possibilidades e os limites às interações
(complementares ou conflituosas) entre as “jurisdições” da pluralidade de territórios que existem
em um mesmo espaço. Estamos, portanto, lidando com um campo político ou campo de poder,
no qual agentes interagem e se posicionam, disputando objetos relacionados à capacidade de
significar práticas ou ações políticas e, de certa forma, exercer poder. Entretanto, é o Estado que
detém maior capacidade (capital) para “impor” regras ao jogo e definir “campos operatórios das
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ações”3. O Estado, portanto, tem uma posição privilegiada para o exercício do poder (Bourdieu,
2005).4
Para Haesbaert (2005), o território está imerso em relações de dominação e/ou de
apropriação. As relações de dominação, que assumem caráter jurídico e político, tornam o
território “funcional”, governável ou “preparado” à intervenção burocrática. As relações de
apropriação o tornam “simbólico”, como resultado de ações de identificação ou construção de
identidades políticas, que relacionam o “ser” ao “lugar”, e de atribuições de significados. Para
este autor, o território se desdobra em um continuum, que vai “da dominação político-simbólica
‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural simbólica’”. Temos, assim, a
noção de “espaço socialmente construído”. O território é, portanto, o espaço territorializado por
meio de processos “de apropriação (que começa pela apropriação da própria natureza) e
dominação (mais característica da sociedade capitalista moderna)”. Deste modo, “todo território
é ao mesmo tempo e obrigatoriamente, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o
espaço tanto para realizar ‘funções’ quanto para produzir ‘significados’” (Haesbaert, 2005, p.
6775).
O Estado brasileiro, a partir de seus textos constitucionais, produz ao menos duas
acepções distintas sobre o “território”. Magdaleno (2005) analisou os textos das Constituições
republicanas (de 1891 a 1988), buscando entender “a forma e o grau de inserção do conceito de
território no pensamento político brasileiro” e seu modo de apropriação nos textos constitucionais
em termos de “recortes territoriais para a ação” (p. 115), o que implica modos diversos de
territorialização da política. De sua análise resulta a identificação de duas grandes dimensões
presentes nos textos constitucionais acerca do conceito de território. Uma, denominada de
“formal”, que representa o território físico (ou “funcional”, nos termos de Haesbaert), que
demarca o Estado nacional, suas divisões subnacionais e a hierarquização dos poderes
constituídos (União, estados e/ou municípios), marcando a soberania da União como agente
político regulador deste território formal. Nesta vertente, o território, representado como
“localidade”, “aparece como meio de construir e tratar problemas de organização” (Bourdin,
3 Bourdin fala sobre a existência de “contextos de ação”, constituídos como “configurações locais construídas por
atores” para “organizar suas relações com o mundo” (Bourdin, 2001, p. 13).
Para Bourdieu, “o Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de
força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, ou melhor, de
informação, capital simbólico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos
campos e sobre os diferentes tipos específicos de capital, especialmente sobre as taxas de câmbio entre eles (e,
concomitantemente, sobre as relações de força entre seus detentores)” (Bourdieu, 2005, p. 99).
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2001, p. 52). Outra dimensão é a que concebe o território de modo menos formal e mais
dinâmico, dialogando com a idéia de “territórios plurais” ou “multiterritorialidades” de Haesbaert.
Nas Constituições brasileiras, segundo Magdaleno,
(...) guardadas as particularidades de cada uma delas, emergem territórios
muitas vezes superpostos, com limites tênues, alvos de disputas acirradas,
sujeitos a mudanças permitidas por simples alterações nos textos
constitucionais, os quais, a princípio, se mostram como elementos-chave na
definição dos limites da ação de cada um dos entes federados, ou seja, de cada
um dos agentes sociais aqui estudados (Magdaleno, 2005, p.129).
Destas concepções derivam normas que implicam duas possibilidades históricas de
territorialização da política, incluindo a distribuição, entre entes territoriais, de poderes e de
condições de práticas, de influência ou de controle sobre determinada porção do espaço. A
primeira delas esteve vigente até a década de 1980 e tinha por marca o caráter centralizador das
ações públicas, com o Governo Federal detendo a quase exclusividade e domínio das
competências tributárias. Decorre deste padrão uma representação do território como referência
espacial para a colonização, delimitação e defesa de suas fronteiras. Para tanto, firmou-se a
necessidade de concentração dos investimentos produtivos, fundamentados na expansão
metropolitana e na industrialização dos processos de produção nas cidades e espaços rurais.
Desta concepção desdobram-se leis, normas e regulamentos públicos que possibilitaram, no
sentido de disponibilizar recursos públicos, a territorialização de diversos projetos de cunho
desenvolvimentista (Haesbaert, 1997).
Esta concepção muda substancialmente na Constituição de 1988, que estabelece uma
descentralização das competências (entre elas as tributárias) entre os entes federados,
alargando as possibilidades de ação das unidades subnacionais. De acordo com Magdaleno
(2005), o território passa a ser concebido de maneira mais dinâmica, momento em que a
dimensão local passa a ser representada como uma espécie de substrato à participação política
e à expressão de demandas historicamente sufocadas. O arranjo normativo produzido ampliou
em certa medida os campos operatórios, abrindo possibilidades principalmente à ação
territorialmente localizada. O município, por exemplo, emerge com maior poder relativo deste
processo, inclusive com determinadas competências tributárias que o capitalizam para se
posicionar mais favoravelmente no campo de relações de poder dos processos de
territorialização. Afonso (2004) afirma que em 2003 os municípios detinham 16% dos recursos
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tributários nacionais.5 Obviamente, como destaca Souza (2004), a distribuição destes recursos
obedece ao padrão de desigualdades socioeconômicas e demográficas que historicamente
caracterizam o país. Os municípios da região Sudeste, por exemplo, têm uma receita tributária
per capita média de R$ 115, enquanto na região Norte esta mesma receita média não ultrapassa
R$ 30.6
Outro componente deste campo são as organizações de movimentos sociais, as
organizações sindicais e as não-governamentais (conhecidas genericamente como ONGs).
Estas organizações se fortalecem ao longo do processo de democratização política por meio de
acesso a capitais e recursos (monetários e simbólicos) que, em grande medida, passavam à
margem dos canais públicos oficiais. Suas capacidades de ação dependiam da construção de
redes de cooperação e solidariedade que vinculavam agências internacionais de cooperação
para o desenvolvimento, governos estrangeiros e organizações eclesiásticas. Sua ação, assim
capitalizada, contribuiu para fomentar a participação política e a re-significar a ação política local.
Por este veio, capilarizaram-se ações coletivas e percepções compartilhadas sobre organização
política e promoção do desenvolvimento, bem como concepções diferenciadas sobre o que é
desenvolvimento, possibilitando a instituição de novas e complexas territorialidades (redes que
se tecem em torno de temas como organização sindical alternativa, educação popular, combate
à pobreza, ações culturais diversas etc.).
A partir desta diversidade, os territórios estatais formais ou mais tradicionais (ou
“territórios-zona”) passam a conviver com “novos circuitos de poder que desenham complexas
territorialidades, em geral na forma de territórios-rede” (Haesbaert, 2005, p. 6780). É o caso, por
exemplo, do processo de construção das tecnologias agropecuárias alternativas que, em dado
momento, articulou capitais diversos entre agências multilaterais de cooperação ao
desenvolvimento, segmentos acadêmicos, setores progressistas da Igreja Católica e movimentos
sindicais em ações de re-significação do desenvolvimento rural, fundamentados em uma lógica
de construção de redes territoriais de ação.
5 É importante destacar que este processo de empoderamento dos municípios tem ao menos dois movimentos:
aquele desencadeado pelas forças políticas que durante o processo constituinte fizeram valer as demandas locais
em termos de mudanças nas relações de força e poder entre os entes federados; e o movimento que ocorreu no
final dos anos 1990, quando “novas políticas voltadas à municipalização foram adotadas”, desta vez tendo como
origem o próprio governo federal. “Estas políticas transformaram os governos locais nos principais provedores dos
serviços universais de saúde e educação fundamental” (Souza, 2004, p.27).
Em Souza (2004) encontramos uma análise aprofundada, qualificando a compreensão acerca das dimensões e
alcance dos processos de descentralização e municipalização desencadeados no final dos anos 1980
6
14
É desta forma que os processos de territorialização tornam-se mais complexos.
Territorialidades mais tradicionais, que buscam a demarcação de fronteiras físicas para exercício
de autoridade e controle, passam a ter que dialogar com territorialidades mais dinâmicas, por
vezes relacionadas a redes que transcendem os ambientes localizados. O próprio lugar, como
argumenta Giddens (1996), deixa de ser meramente o cenário físico da “atividade social situada
geograficamente” para tornar-se um ambiente de relação (intersubjetiva) entre diversas
localidades, relativizando, dentre outras coisas, a noção de distância. Bourdin, referindo-se a
análises francesas sobre processos de urbanização, afirma que está em construção uma
mudança significativa nas percepções sobre os processos de territorialização:
(...) o território não provém mais de um esforço a priori de organização, a partir
de modelos claros e de referências adquiridas, esforço a priori traduzido no fato
de todos se anteciparem com as mesmas ferramentas e as mesmas referências
(mas, evidentemente não com os mesmos interesses), mas provém de uma
agregação de fenômenos duplamente heterogêneos (pois eles vêm do exterior e
não de muitas relações entre eles) o que não exclui de modo algum que se
articulem em seguida entre si a posteriori. (Bourdin, 2001, p. 65, grifos no
original).
No contexto de aumento das interdependências globais, os Estados nacionais passam a
mediar esta primazia com as demandas externas, cada vez mais poderosas. Os processos de
globalização tornam as fronteiras nacionais flexíveis, criam novos processos de territorialização
e/ou desterritorialização, deslocando as economias de “uma inscrição no sistema Estados-nação
para novas formas de organização que o transcederiam”, acentuando o papel dos “mecanismos
de mercado” (Acselrad, 2006, p. 13). Os Estados nacionais tenderam a “navegar no sistema
financeiro global e adaptar suas políticas, em primeiro lugar, às exigências e conjunturas deste
sistema” (Offe, 1999, p. 151).
A crescente percepção da falência da “ideologia da globalização” como solução aos
problemas da ausência ou insuficiência de desenvolvimento (Sunkel, 1999), reforçada pela
eclosão da grave e recente crise financeira global, vem trazendo ao centro dos debates o papel a
ser assumido pelos Estados nacional no fortalecimento de iniciativas e ações locais que se
contrapunham. No contexto inaugurado nos anos 1980, a “questão territorial” foi re-significada
pelo reconhecimento da desigualdade social gerada por um tipo de ação estatal que
representava o território como espaço técnico para avanço de uma determinada visão de
modernização capitalista, logo a seguir associada à necessidade de integração a circuitos
financeiros globalizados. A “questão regional” elaborada a partir desta perspectiva perde força e
apelo político. Ao mesmo tempo se reconhece que o amplo processo de modernização gerou
15
uma heterogeneidade de manifestações do fenômeno da desigualdade social, cuja expressão
mais evidente seria a incidência de pobreza7, resultado da combinação de múltiplos vetores de
exclusão que se articulam e interagem no âmbito local (portanto, territorial), de forma
diferenciada, se reforçando mutuamente.
Esta percepção da relação entre território e incidência de pobreza, veiculada por
diversas organizações internacionais de apoio a projetos de desenvolvimento, inclusive o Banco
Mundial, passou a demandar do Estado e da sociedade civil estratégias de ação moldadas a
partir das necessidades segmentadas, particulares e até, em certos casos, referidas às pessoas
e famílias. Estratégias que fossem flexíveis e sensíveis para captar “especificidades locais” e
ofertar respostas aos problemas identificados. Esta representação do problema da desigualdade
social e de sua face mais visível, a pobreza, contribuiu para desencadear uma infinidade de
ações múltiplas e concomitantes de “combate à pobreza” e “inclusão social”. O município, o
território e o local foram alçados à condição de locus privilegiado das ações públicas e privadas.
Nesta concepção, os problemas localizados demandam, pois, soluções territorializadas,
para, contraditoriamente, atuar sobre causas que são mais profundas e complexas e que, quase
sempre, transcendem os espaços locais (Acselrad, 2006). Resulta deste processo um mosaico
de ações - que conformam territorialidades – sobrepostas, que buscam enfrentar os problemas
sociais que afloram localmente, geralmente com recursos e capacidades diversas e, de forma
bastante recorrente, a partir de intervenções desarticuladas.
De acordo com Bronzo (2007, p. 91), deste cenário emergem três questões para o
desenho de políticas públicas que elegem como foco a questão da “inclusão social”: (a) a
centralidade do território, “seja como elemento de diagnóstico e focalização, seja como objeto de
intervenção”; (b) a noção de “infra-estrutura social”, “que combina a noção de território com a de
comunidade”; e (c) “a atenção necessária a formas flexíveis de provisão de serviços”. A
abordagem territorial do combate à pobreza supõe estratégias de intervenção sobre espaços que
7 A noção de pobreza é fortemente associada à de território e de região. Ela serve ao recorte de zonas, bairros,
periferias, favelas, assentamentos, áreas invadidas etc., que podem se tornar alvo da intervenção pública. Assim, a
noção de pobreza serve à classificação e ao planejamento da ação estatal. Os pobres são os grupos sociais que ora
estão abaixo de uma linha econômica de rendimentos, comparativamente a outros grupos, conformando uma noção
econômica da pobreza; ora estão à margem do bem-estar social, com acesso restrito ou sem acesso à serviços
públicos de saúde, sem capacidade de exercício pleno do direito à educação e, novamente, em situação de
precariedade de renda. No primeiro caso, a Linha de Pobreza é o indicador econômico utilizada para classificar os
pobres; no segundo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) cumpre esta tarefa. Em ambos os casos, os
pobres, assim definidos, são estereótipos, produto de uma classificação que os aliena de suas historicidades.
16
possuem “grau de homogeneidade suficiente para permitir ações focalizadas nas problemáticas
do público-alvo” (Bronzo, 2007, p. 99).
Qualquer que seja a abordagem escolhida é recorrente a idéia de território como produto
de relações de poder (incluindo relações de força e violência). Uma vez instituídos, os territórios
configuram espaços físicos e simbólicos para o exercício deste poder por meio das interações
sociais estabelecidas. Estas interações ocorrem em áreas delimitadas para a intervenção
pública. Nestes cenários, o Estado detém o poder de divisão e classificação do espaço
(Bourdieu, 1989). As leis, as políticas públicas e autoridade e legitimidade que lhes são
conferidas, permite-lhe instituir espaços diferenciados uns dos outros e sobre eles incidem
poderes específicos e, conseqüentemente, possibilidades distintas de interação, conferidas e
demarcadas ou limitadas pelas normas, instituições, regras ou leis criadas para regular a
realidade social. É assim que uma área onde há forte incidência de pobreza torna-se, para a
intenção política de promover desenvolvimento, um “território”, ou seja, passa a existir como tal e
como lugar de intervenção; passa a ser objeto da instituição de normas que viabilizarão o projeto
político de mudança embutido na intervenção. Torna-se também uma espécie de “unidade”. Não
sem razão, os territórios instituídos nascem de um conhecimento produzido para afirmar sua
unidade e por extensão sua identidade territorial, seja ela cultural, econômica ou física. Esta
unidade construída e, às vezes, imposta é a base para normatizar interações necessárias para a
realização de determinados projetos políticos. Em decorrência da necessidade de produção de
um espaço unificado a partir de características comuns, toda intervenção, portanto, é um ato
interessado em fazer valer visões e divisões que nem sempre correspondem àquelas
construídas historicamente por aqueles que vivem no lugar. Os conflitos, muitas vezes, decorrem
das relações de poder assimétricas que decorrem destes pressupostos da intervenção pública.
Para o desenho de políticas públicas de promoção do desenvolvimento, os territórios
surgem como áreas delimitadas, lugares de incidência do “não desenvolvimento” ou da pobreza.
Tornam-se, por esta característica, espaços legítimos da intervenção pública para promover
mudanças. Sabe-se, no entanto, que o Estado, quando intervém, devido às suas limitações infraestruturais e de legitimação, depende de colaboração, cooperação, apoio, parcerias, isto é,
depende da construção de um conjunto de relações que tornem seu projeto político de mudança
localmente executável e também legítimo. Estas configurações dependem da mobilização de
agentes locais que, como vimos anteriormente, também buscam realizar, localmente, seus
próprios projetos. Estão dados, nestes contextos, os contornos da construção de
territorializações e territorialidades a partir de relações de poder.
17
3. Territórios e políticas públicas: diretrizes da política de desenvolvimento
territorial rural
A incorporação da abordagem territorial como caminho para a formulação de políticas
públicas e, portanto, de intervenções sobre realidades/situações que se quer modificar é
bastante recente. Ela vem implicando em uma resignificação de fenômenos que vêm ocorrendo
no mundo rural8. Não se trata de pensá-lo apenas do ponto de vista da produção, mas como
espaço de vida social, dando relevo às dimensões sociais e culturais presentes num
determinado espaço. Sob essa perspectiva, abordagens territoriais do desenvolvimento implicam
considerar variados aspectos que constituem territórios que, por definição, são marcados pela
singularidade, o que não significa pensar em isolamento ou em abandono da relação
local/global, mas sim afirmar que o local não é mera reprodução do global, mas, pelo contrário,
reafirma suas particularidades por força mesmo da globalização.
3.1 Políticas públicas, marcos analíticos e a dimensão jurídico-legal
De acordo com Peter Evans, as políticas públicas que focam o desenvolvimento a partir
de uma perspectiva social tornam estratégica, em seu desenho, a constituição de instituições
locais que sejam capazes de fortalecer mecanismos de governança (Evans, 2003). Estas idéias
situam-se no contexto atual de revisão das teorias de desenvolvimento, buscando dar conta das
novas e complexas territorialidades formadas com o aumento das capacidades locais para
formular e publicizar suas demandas perante o Estado. Na leitura de Bourdin:
“As redes de atores se diversificam e o sistema político-administrativo se
fragmenta, até à incoerência. A ação pública se torna ineficaz quando ela se
reduz à produção e à aplicação de normas jurídicas. Diante destas dificuldades,
os Estados procuram técnicas mais refinadas de governo (...) Isso é
acompanhado de um enfraquecimento do Estado governamental, em proveito de
outras autoridades estatais (a justiça, as autoridades independentes), das
coletividades territoriais e de componentes da sociedade civil” (Bourdin, 2001, p.
137).
Para os objetivos deste trabalho, entendemos por política pública o conjunto de planos e
programas de ação governamental destinado à intervenção na sociedade e à realização de
8
Mais adiante, discutiremos um pouco o próprio uso desse termo e suas implicações.
18
projetos políticos. Trata-se de um processo complexo de definição, elaboração e implantação de
estratégias de ação por parte dos governos, no qual se verifica a identificação e seleção de
determinados problemas sociais que, na visão dos gestores públicos, merecem ou devem ser
enfrentados. Como argumenta Souza (2006, p. 26), as políticas públicas são o estágio em que
os governos “(...) traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que
produzirão resultados ou mudanças no mundo real”. É importante insistir no fato de que essa
“tradução” não é simples, nem automática. Para além do processo de seleção acima
mencionado, a tradução das plataformas em ação é mediada pela necessidade de acordos com
os poderes Legislativo e Judiciário, seja por meio da criação de novas regulamentações, seja
pela necessidade de buscar saídas para as tensões entre a vontade do governante e a
institucionalidade jurídica existente.
Obviamente, as políticas públicas não surgem apenas da identificação e seleção de
problemas e da “vontade política” dos governantes. 9 Elas também têm por base, por um lado, a
capacidade de organização e pressão da sociedade, que pode colocar questões na esfera
pública e lutar para que elas sejam reconhecidas como problemas, passíveis de intervenção. Por
outro, elas encontram, como já apontado, os filtros inerentes à ossatura do Estado (Offe, 1984),
entre eles, “preceitos constitucionais” que orientam suas formulações. Como explica Silva
(1997), uma constituição não regula direta ou indiretamente determinados interesses, mas define
princípios a serem cumpridos pelos órgãos estatais por meio de programas de ação que visam à
realização dos fins sociais do Estado. Estes princípios estão consolidados nas “normas
constitucionais”. Os direitos sociais, por exemplo, são tratados pelas “normas programáticas”,
tipo de norma constitucional que não tem aplicabilidade direta ou indireta (são, portanto, de
“inaplicabilidade direta”, pois não estabelecem sanções ao seu descumprimento, servindo tão
somente de orientação ao governante para elaborar e implementar políticas públicas). As
normas programáticas descrevem princípios que devem nortear a finalidade do Poder Público,
mas também, é importante ressaltar, representam obrigações do Estado. De acordo com Bobbio
(1989, p. 134), “(...) qualquer norma constitucional subtende força normativa, expressando
obrigação de deveres”. Os preceitos constitucionais, expressos em normas programáticas,
9 Sob essa perspectiva, a expressão “vontade política”, bastante usada nos discursos políticos, precisa ser vista com
alguns cuidados, uma vez que essa “vontade” sempre encontra algumas dificuldades objetivas, contornáveis ou
não.
19
dependem, portanto, da complexa relação entre Poder Público e demandas sociais10, para
serem regulamentados e promovidos por meio da implantação de políticas públicas. Dependem
ainda, em diversas circunstâncias, da interpretação feita pela magistratura da pertinência ou não
de determinadas leituras dos princípios constitucionais, remetendo à discussão da dinâmica
inerente aos princípios legais.
Esta é a relação essencial entre as leis e as políticas públicas. Devemos destacar que a
política pública não configura uma norma nem um ato jurídico, embora deva, obrigatoriamente,
estabelecer relações com os arranjos jurídicos instituídos e, em diversos momentos, impulsionar
alterações nas normas vigentes e criação de novas normas. Desta forma, estas políticas buscam
articular a heterogeneidade das normas e atos jurídicos existentes para se tornarem
operacionalizáveis. Neste sentido, as políticas públicas são estratégias que viabilizam e orientam
a intervenção do Estado (Offe, 1984). Na prática, elas assumem a forma de planos, programas
ou projetos de ação governamental (Comparato, 1997), que geralmente contêm um diagnóstico
sobre determinado problema que representa seu foco e uma proposta para solucioná-lo.
Representam, portanto, uma visão sobre o problema e uma proposição para enfrentá-lo. Além
disso, têm caráter seletivo, por escolher determinados problemas e preterir outros. Por isso,
longe de representar consensos, as políticas públicas são arenas de disputas sobre a definição
de problemas sociais e projetos políticos que elaboram alternativas de intervenção sobre os
mesmos (Faria, 2003), de forma a tentar mudar o curso de processos considerados indesejáveis.
Idéias e interesses dissonantes geram disputas sobre a prerrogativa de orientar a ação dos
governos, configurando a autonomia relativa destes na definição de suas próprias estratégias de
ação. Assim, o papel do governo na definição, formulação e implementação de políticas públicas
torna-se uma questão a ser compreendida em cada caso (Souza, 2006).
É importante afirmar que as políticas públicas, compreendidas como ações públicas, são
realizadas tanto por diferentes órgãos ou organismos governamentais quanto por organizações
ou entidades privadas. Gera-se, a partir deste fato, um problema de coordenação e de
articulação de ações que são desencadeadas pela implementação das políticas. Entre a
diversidade de políticas públicas existente e as ações dos agentes que as executam há
sobreposições, complementaridades e conflitos entre os distintos objetivos, temas, focos,
É sempre bom lembrar que, quando nos referimos a demandas sociais, estamos considerando não somente as
organizações de trabalhadores, mas também associações patronais e profissionais dos mais diferentes tipos, que
representam uma enorme diversidade de interesses. Também podem ser nelas abrangidas organizações não
governamentais que, muitas vezes, funcionam como mediadoras das demandas de determinados grupos sociais,
incapazes de constituir sua própria representação política.
10
20
população beneficiada, arranjos operacionais forjados, jurisdições etc. Os arranjos de formulação
e implementação nem sempre são coordenados e apresentam articulação, gerando problemas
de pulverização e fragmentação das ações.
Souza apresenta-nos uma síntese sobre as diversas vertentes teóricas que buscam
caracterizar e definir as políticas públicas como categoria analítica da ação do Estado. Os
elementos principais elencados pela autora, acerca da diversidade de definições e modelos, são
os seguintes:
a) “A política pública permite distinguir entre o que o governo pretende fazer e o que,
de fato, faz;
b) A política pública envolve vários atores e níveis de decisão, embora seja
materializada através dos governos, e não necessariamente se restringe a
participantes formais, já que os informais são também importantes;
c) A política pública é abrangente e não se limita a leis e regras;
d) A política pública é uma ação intencional, com objetivos a serem alcançados;
e) A política pública, embora tenha impactos no curto prazo, é uma política de longo
prazo.” (Souza, 2006, p. 36)
Um dos instrumentos administrativos utilizados para minimizar os efeitos não desejados
da complexidade de fatores que envolvem o processo de elaboração e execução de políticas
públicas é estabelecer, juridicamente, as características e as finalidades do órgão e da unidade
gestora do programa que realiza objetivos de uma política pública.
3.2 O contexto das políticas de desenvolvimento territorial no Brasil
Schneider (2004) chama a atenção para o fato de que, nos anos 90, o território emerge
como nova unidade de referência para a atuação do Estado e a regulação das políticas públicas.
Segundo o autor,
“Trata-se, na verdade, de uma tentativa de resposta do Estado, entendido como
instituição jurídico-social, às fortes críticas a que vinha sendo submetido,
sobretudo tendo em vista a ineficácia e a ineficiência de suas ações, seu alto
custo para a sociedade e a permanência das mazelas sociais mais graves como
a pobreza, o desemprego, a violência, etc. Neste cenário, ganham destaque
iniciativas como a descentralização das políticas públicas; a valorização da
participação dos atores da sociedade civil, especialmente ONGs e os próprios
beneficiários; a redefinição do papel das instituições; e cresce a importância das
esferas infranacionais do poder público, notadamente as prefeituras locais e os
atores da sociedade civil. Contudo, para acionar e tornar efetivas as relações do
21
Estado central com esses organismos locais, tornou-se necessário forjar uma
nova unidade de referência, que passou a ser o território e, conseqüentemente,
as ações de intervenção decorrentes deste deslocamento passaram a se
denominar desenvolvimento territorial.” (Schneider, 2004, p. 102/103)
As políticas de desenvolvimento com enfoque territorial, que começaram a ser
implementadas a partir da segunda metade dos anos 1990 no Brasil, compartilham alguns
pressupostos e princípios. Dentre estes, se encontra a preocupação com a delimitação do
espaço de intervenção dada pela necessidade de combate à pobreza ou pelas demandas de
inclusão social. Um fundamento importante à repartição territorial é a percepção de que o
território é dotado de recursos e ativos específicos, cuja valorização deve ser vinculada à ação
localizada daqueles que se relacionam diretamente com estes recursos e ativos, de modo a
organizar intervenções localmente apropriadas (Schmidt et al., 2003). Outro pressuposto comum
é a necessidade de adequação destas políticas às demandas do público beneficiário e a criação
de institucionalidades participativas para flexibilizar a provisão de serviços públicos.
Qual desenho institucional é comumente elaborado pelas políticas públicas de
desenvolvimento com enfoque territorial? No caso brasileiro, quais alternativas vêm sendo
experimentadas? Em busca de respostas a esta questão nossa análise volta-se a seguir à
política de desenvolvimento territorial formulada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Partindo da discussão anteriormente apresentada, o objetivo é caracterizar esta política,
identificando suas representações sobre “território”, seu desenho operativo e as relações que
propõe estabelecer com os marcos jurídicos existentes. Trabalharemos esta caracterização por
meio da análise de textos oficiais e de alguns textos acadêmicos que a avaliaram.
A literatura especializada indica que há ao menos três grandes segmentos de políticas
públicas: (a) as políticas econômicas (cambial, financeira e tributária); (b) as políticas sociais
(educação, saúde e previdência); e (c) as políticas territoriais (meio ambiente, urbanização,
regionalização e transportes). Para cada uma delas, num país como o nosso, há distintas
agências responsáveis (ministérios, secretarias e outros organismos). No caso da política de
desenvolvimento territorial, o órgão do Governo Federal responsável é o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) e uma das unidades gestoras de programas relacionados ao
tema é a Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT/MDA). Esta secretaria foi criada pelo
Decreto nº 5.033 de 05 de abril de 2004 (Brasil, 2004), que aprovou a Estrutura Regimental do
Ministério do Desenvolvimento Agrário. De acordo com este decreto, a SDT/MDA é uma
“unidade jurisdicionada”, subordinada e parte integrante do MDA, à qual compete:
22
I. “Formular, coordenar e implementar a estratégia nacional de desenvolvimento
territorial rural e coordenar, mediar e negociar sua implementação;
II. ncentivar e fomentar programas e projetos territoriais de desenvolvimento rural;
III. ncentivar a estruturação, capacitação e sinergia da rede formada a partir dos
órgãos colegiados, especialmente os conselhos onde estejam representando o
conjunto dos atores sociais que participam da formulação, análise e
acompanhamento das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento rural
sustentável;
IV. Coordenar a mediação e negociação dos programas sob a responsabilidade da
Secretaria junto a entidades que desenvolvem ações relacionadas com o
desenvolvimento territorial rural;
V. Manter permanente negociação com movimentos sociais, Governos Estaduais e
Municipais e com outras instituições públicas e civis, com vistas à consolidação das
políticas e ações voltadas para o desenvolvimento territorial rural;
VI. Negociar, no âmbito do Ministério, o atendimento das demandas relacionadas com
o desenvolvimento territorial rural;
VII. Assistir e secretariar o CONDRAF;
VIII. Negociar a aplicação de recursos para o desenvolvimento territorial rural alocados
em outros Ministérios;
IX. Negociar com os agentes operadores a efetivação de contratos de repasse de
recursos da União destinados às ações de infra-estrutura, fortalecimento das
organizações associativas nos territórios, comercialização, planos de
desenvolvimento territorial rural e educação/capacitação;
X. Acompanhar, supervisionar, fiscalizar e gerir a operacionalização de contratos e
convênios voltados às ações de infra-estrutura, com Estados e Municípios; e
XI. Apoiar as ações das Secretarias-Executivas Estaduais do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF e dos Conselhos Estaduais de
Desenvolvimento Sustentável - CEDRS ou de outras instâncias colegiadas, no que
couber”.
É em relação a estes itens que deve se balizar sua ação, por meio dos programas de
políticas públicas sob sua responsabilidade de gestão. No mesmo decreto (nº 5.033 de 05 de
abril de 2004), estas competências são estendidas às relações com as unidades subordinadas
da SDT/MDA e com outras unidades gestoras de políticas públicas, por meio do que foi
designado como “Departamento de Ações de Desenvolvimento Territorial” da própria Secretaria,
composto pelas Coordenações Gerais de Apoio à Infra-estrutura, de Desenvolvimento Humano,
de Apoio a Organizações Associativas e de Apoio a Negócios e Comércio Territorial. Há ainda
uma estrutura de assessoria e uma Coordenação-Geral de Apoio a Órgãos Colegiados. A este
departamento compete:
I. Coordenar as ações das unidades a ele subordinadas;
II. Apoiar a construção e gestão de planos territoriais de desenvolvimento rural
sustentável;
III. Articular com outros órgãos a implementação, de forma integrada, das políticas
públicas voltadas para o desenvolvimento territorial rural;
IV. Negociar a aplicação de recursos para o desenvolvimento territorial alocados em
outros órgãos setoriais do Governo Federal;
23
V. Articular com os agentes operadores a efetivação de contratos e convênios;
VI. Acompanhar, supervisionar, fiscalizar e gerir a operacionalização de contratos e
convênios com Estados, Municípios e organizações da sociedade civil; e
VII. Apoiar as ações das Secretarias-Executivas dos Conselhos Estaduais de
Desenvolvimento Sustentável - CEDRS ou de outras instâncias colegiadas, na
elaboração e gestão de planos territoriais de desenvolvimento rural sustentável.
Por meio da Portaria nº 52 do Ministério do Desenvolvimento Agrário, de 16 de julho de
2004, agregaram-se outras competências relacionadas ao Projeto de Desenvolvimento
Sustentável para os Assentamentos de Reforma Agrária na Região no Semi-Árido do Nordeste
(Projeto Dom Helder Câmara), que também é uma unidade gestora da política de
desenvolvimento territorial e seus programas. São elas:
I. Exercer a coordenação-geral do Projeto;
II. Articular com os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, Estadual e
Municipal visando garantir o caráter interinstitucional do Projeto;
III. Realizar todos os procedimentos administrativos necessários para a execução do
Projeto;
IV. Indicar responsáveis para atuar como Ordenador de despesas e Gestor
Financeiro da Unidade Gestora 490006 (Projeto Dom Helder Câmara).
Esta legislação configura os limites de competência e de atuação da SDT/MDA. Esta é a
sua jurisdição, do modo como vimos empregando o termo neste trabalho, buscando significar o
campo de atuação (ou “campo operatório”) e de influência de um determinado ator sobre as
ações e interação sociais das quais participa. Ao ser-lhe atribuída a competência de formular,
coordenar e articular a estratégia nacional de desenvolvimento territorial rural, a SDT/MDA é
alçada ao campo das ações e interações sociais do conjunto complexo e diverso de agentes que
lidam com o tema e que também têm competências legalmente estabelecidas. Estas atribuições
também projetam a ação da Secretaria em campos de ação normatizados, sob a influência e
jurisdição de uma diversidade de atores que operacionalizam, localmente, os marcos jurídicos
que regem a vida em sociedade.
Um destes campos é o que estabelece a competência da SDT/MDA para negociar a
efetivação de contratos de repasse de recursos da União destinados “às ações de infraestrutura, fortalecimento das organizações associativas nos territórios, comercialização, planos
de desenvolvimento territorial rural e educação/capacitação” (Brasil, 2004). O repasse de
recursos é um tipo de operação que aciona diversos atores e normas estabelecidas. Mais
adiante analisaremos mais detidamente as implicações desta atribuição de competências.
24
Além do seu conteúdo formal, que geralmente é pouco divulgado e conhecido, uma
política pública também é um discurso elaborado em documentos ou textos que apresentam aos
gestores públicos, aos profissionais que a implementam e ao público em geral as estratégias
escolhidas, os conceitos e princípios estabelecidos, os objetivos definidos, bem como uma
determinada leitura e compreensão da questão em pauta, de suas origens e das possibilidades
de intervenção. Os documentos das políticas públicas representam importante fonte de pesquisa
para compreensão da sua sociogênese, da leitura da realidade adotada, da justificativa para a
definição ou delimitação do problema e da elaboração da estratégia de implementação proposta.
Nestes documentos geralmente há uma elaboração mais detida sobre o desenho institucional e
as estratégias de implementação elaboradas. No caso aqui analisado, tomaremos como
documentos de referência os textos de orientação da política de desenvolvimento territorial
elaborados pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento
Agrário.11 O foco da análise será investigar as relações entre desenho institucional da política e
arranjos jurídicos existentes.
A SDT/MDA elaborou e gerencia dois programas da política pública de desenvolvimento
territorial, constantes dos Planos Plurianuais de Investimentos do Governo Federal12,
respectivamente o “Programa Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais” (2004-2007)
e o “Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais” (2008-2011). Os
textos de orientação, anteriormente referidos, objetivam dar suporte à implementação destes
dois programas. É nestes textos que se elabora um discurso sobre as intenções da política e
seus fundamentos. Neles a SDT/MDA se atribui a seguinte missão:
“(...) apoiar a organização e fortalecimento institucional dos atores sociais locais
na gestão participativa do desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e
promover a implementação e integração de políticas públicas” (Brasil, 2005, p.
3).
A SDT/MDA define seu foco de ação como os espaços rurais - “territórios” - que
apresentam maior “demanda social”, isto é, maior incidência de agricultores familiares. São
Entre 2003 e 2007 a SDT/MDA elaborou uma série de documentos que objetivam difundir conceitos, consolidar
seus objetivos e métodos e fornecer orientação e apoio ao corpo técnico e aos parceiros envolvidos na
implementação da política. Estes documentos, referenciados no final deste relatório, são base para a análise
elaborada a seguir.
11
Previsto na Constituição Federal, o Plano Plurianual é regulamentado pelo Decreto 2.829, de 29 de outubro de
1998. O Plano estabelece as medidas, gastos e objetivos que orientam ao Governo Federal ao longo de um período
de quatro anos. É aprovado por lei quadrienal. Sua vigência prolonga-se do segundo ano de um mandato
presidencial até o final do primeiro ano do mandato seguinte.
12
25
considerados incluídos neste grupo comunidades indígenas, quilombolas, pescadores e
extrativistas artesanais, famílias assentadas em projetos de reforma agrária “(...) ou grupos de
trabalhadores rurais que postulam acesso à terra, mobilizados ou não” (BRASIL, 2005a, p. 3)13,
relacionando a política às estratégias de combate à pobreza, à exclusão e às desigualdades
sociais. Define-se também, desta forma, o público preferencial a ser envolvido pelas ações. As
ações decorrentes da política são qualificadas como “estratégias de apoio ao desenvolvimento
sustentável dos territórios rurais”, cujo objetivo geral declarado é “promover e apoiar iniciativas
das institucionalidades representativas dos territórios rurais” (p. 7). A concepção da política,
portanto, busca demarcar e relacionar um público específico de agricultores, definindo-o,
aparentemente, por meio de suas “institucionalidades representativas”, o espaço físico em que
estes atores interagem, suas iniciativas em relação às ações públicas de promoção do
desenvolvimento (relacionadas à participação, organização política e ações de gestão da própria
política).
Chama a atenção uma aparente contradição no discurso. Embora a demanda social que
define a escolha dos “territórios prioritários” fale sobre grupos sociais “mobilizados ou não”, o
objetivo da política afirma a promoção e o apoio às “iniciativas das institucionalidades
representativas dos territórios rurais”, ou seja, parece haver uma opção preferencial pelos grupos
sociais organizados, aqueles que conseguem institucionalizar suas iniciativas e demandas. Esta
percepção é reforçada quando se menciona a “promoção e o apoio” voltados “especialmente”
aos atores “que atuam na representação dos agricultores familiares, dos assentados de reforma
agrária e de populações tradicionais” (p. 7). Na maneira pela qual é expressa sua perspectiva de
intervenção, a política parece criar recortes complementares: um público específico e qualificado
que vive em um determinado espaço no qual interage preferencialmente a partir de organizações
que representam certo campo da organização sociopolítica da agricultura familiar.
Com relação ao público foco da política, no discurso elaborado pela SDT/MDA “(...) cada
território encerra uma diversidade de atores e de interesses, alguns deles conflitantes, outros
não, além de outras características próprias, que o distinguem dos demais (Brasil, 2005a, p. 267)”. As realidades, portanto, são específicas e demandam, pois, intervenções também
específicas. Neste sentido, compreende-se que os atores dos territórios “(...) se relacionam
Na seqüência do texto utilizaremos preferencialmente esta referência para analisar o conteúdo do desenho
institucional da política de desenvolvimento territorial. Portanto, para evitar a repetição da referência, indicaremos
apenas a página da citação utilizada. É oportuno citar que concepção da SDT/MDA é tributária de uma reflexão cuja
origem está no meio acadêmico, em especial nas contribuições de Ricardo Abramovay.
13
26
interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais
elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial” (p. 34). A coesão e a
“identidade territorial” são tidas como resultados de:
“(...) formas específicas de interação social, da capacidade dos indivíduos, das
empresas, das instituições e das organizações locais em promover ligações
dinâmicas, propícias a valorizar seus conhecimentos, suas tradições e a
confiança que foram capazes de construir ao longo da história” (p. 3).
É importante ressaltar que o discurso elaborado nos documentos de orientação da
SDT/MDA ora afirma que os territórios têm uma identidade própria e específica, “construída ao
longo da história”, fato que os fez, inclusive, ser escolhidos como foco da intervenção da política;
ora fala sobre a necessidade de criação e afirmação de uma identidade territorial por meio da
intervenção pública.
Podemos inferir que a existência de certa identidade vinculada ao espaço geográfico
seja um dos critérios e/ou pontos de partida para a seleção e instituição do território e para ação
pública. Esta ação torna-se necessária para promover a interação entre as distintas capacidades
presentes nos territórios, que dependem de uma “visão integradora de espaços”, parecendo ser
uma atribuição da ação pública desenhada, como pressuposto e como estratégia, na política de
desenvolvimento territorial. Imagina-se, portanto, que a coesão e a identidade territorial
dependem, para a sua afirmação (ou mesmo criação), de uma ação pública que lhes dê sentido
e orientação, criando condições para a mobilização dos agentes locais “em torno de uma visão
de futuro, de um diagnóstico de suas potencialidades e constrangimentos, e dos meios para
perseguir um projeto próprio de desenvolvimento sustentável” (p. 8).
O território torna-se um foco de intervenção porque nele há uma “identidade” ou
“atributos” gerados por uma suposta característica intrínseca das localidades, o fato de combinar
“(...) a proximidade social, que favorece a solidariedade e a cooperação, com a diversidade de
atores sociais” (p. 30). Neste sentido, a noção de “capital social”14 é frequentemente utilizada
para compor o argumento sobre a necessidade de mobilização do conjunto das relações
(pessoais, sociais e institucionais) em torno de um determinado fim. No discurso elaborado,
Nos textos da SDT, o termo tem uma definição expressa e é “(...) entendido como o conjunto de relações
(pessoais, sociais, institucionais) que podem ser mobilizadas pelas pessoas, organizações e movimentos visando a
um determinado fim, o capital social tem na sua raiz processos que são, a um só tempo, baseados e geradores de
confiança, reciprocidade e cooperação. Implica a habilidade de pessoas e grupos em estabelecerem relações
duradouras, obter recursos financeiros, materiais, cognitivos e empreender ações com a finalidade de reduzir custos
das transações por meio da associação, da administração, da compra e da venda conjuntas, do uso compartilhado
de bens, da obtenção e difusão de informações” (Brasil, 2005a, p. 9).
14
27
mobilizar o capital social disponível nos territórios conduziria à conformação de uma identidade
territorial.
Dados os desafios da proposta, as noções e “articulação” e “gestão compartilhada” (ou
“gestão social”) são essenciais ao desenho da política. Aos atores sociais do território atribui-se
a responsabilidade não apenas do envolvimento nos espaços de consulta e deliberação
instituídos, mas também:
“(...) no conjunto de iniciativas que vão desde a mobilização desses agentes e
fatores locais até à implementação e avaliação das ações planejadas, passando
pelas etapas de diagnóstico, de elaboração de planos, de negociação das
políticas e projetos” (p. 10).
É neste sentido que a “gestão social” da política de desenvolvimento territorial é
concebida por meio da atribuição de responsabilidades aos atores locais de modo a gerar
comprometimentos pessoais e coletivos e “aderência” ou apropriação da política ao “cotidiano
das pessoas, das instituições, das economias locais” (p. 9). Alguns autores destacam ser esta
uma de suas principais inovações, ou seja, propor uma mudança no padrão histórico e
convencional de implementação de políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil,
geralmente fundadas na lógica do planejamento descendente, centralizado, com pouco espaço à
participação e deliberação local. A pretensão é “(...) que as forças sociais dos territórios
desempenhem, em processos concentrados de organização dos fatores locais, o mesmo papel
de destaque que elas têm na vida real destes espaços” (p. 3). Esta qualidade das “forças sociais”
do território não é assumida como pré-existente, mas como algo a ser construído ao longo do
processo e a depender das características do território e que se relacionam fundamentalmente
com as sinergias que possam ser despertadas no público alvo da política.
Os processos de gestão social, na perspectiva da SDT, precisam, para tanto, se apoiar
no capital social dos territórios, nos laços de identidade, de confiança e de colaboração que há
entre as forças locais. E, onde isso é frágil ou não existe, é preciso criar espaços e condições
para gerar o aprendizado e o esforço de identificação de complementaridades capazes de por
em diálogo os diferentes agentes, fazer confluir suas perspectivas individuais, tatear e construir
convergências onde há isolamento e fragmentação, formar esse capital social, enfim (p. 10).
O capital social e os processos de gestão que o têm como base teriam, basicamente,
dois tipos de institucionalidades de suporte: os “arranjos institucionais”, que surgiriam do esforço
de articulação e complementaridade da diversidade de ações dos atores territoriais; e os arranjos
institucionais mais estáveis e burocratizados, que seriam os fóruns ou espaços
28
institucionalizados para concertação de interesses e projetos nem sempre convergentes em
torno de objetivos comuns definidos pela política. No discurso elaborado destaca-se a
necessidade de trabalhar para que “(...) a fragmentação e a pulverização inicialmente existentes
dêem origem a um projeto coeso, mas diversificado, baseado nos ganhos mútuos aos diferentes
grupos sociais” (p. 11).
Por fim, a política pública de desenvolvimento territorial depende da construção de
estratégias de articulação para dar conta da diversidade de atores, projetos, propostas, políticas
públicas, tipos e modos de intervenção presentes nos territórios etc. Para este desafio a
SDT/MDA propõe o planejamento ascendente, sugerindo a criação de um instrumento a ser
gerido pelas institucionalidades territoriais. O Plano Territorial de Desenvolvimento Rural
Sustentável (PTDRS) seria, para o território, o principal instrumento orientador das articulações e
comprometimentos necessários. Para o ambiente mais amplo, que extrapola as relações criadas
no colegiado territorial, a SDT/MDA se atribui a tarefa de formular “acordos de cooperação”,
ofertando aos potenciais parceiros:
“(...) oportunidades de incrementar a eficácia das políticas e iniciativas por eles
desenhadas através da qualificação propiciada pelas formas de gestão social
instaladas nos territórios (...) a oportunidade de territorializar políticas públicas
dentro de processos ordenados e ordenadores” (p. 13).
Os atributos territoriais, uma vez valorizados e apropriados à política, conduziriam a uma
melhor articulação dos serviços públicos presentes nos territórios, a uma melhor organização do
acesso aos mercados internos e, imagina-se, ao compartilhamento de uma “identidade cultural”,
base para a “coesão social e territorial” (p. 30). A criação deste ambiente favorável levaria ao
“estabelecimento de iniciativas voltadas para o desenvolvimento” (p. 8). Para alcançar estes
objetivos, o desenho institucional da política prevê uma estratégia de implantação que ocorreria
em ciclos (com a duração total de 15 anos) a partir das seguintes ações processuais, definidas
no Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat): (a)
mobilização e capacitação de atores sociais, gestores públicos e agentes de desenvolvimento
(por meio de reuniões de trabalho, geralmente designadas como “oficinas”); (b) criação de uma
instituição territorial de caráter colegiado para gerir a política; (c) elaboração do PTDRS; e (d)
apoio logístico às institucionalidades territoriais criadas pelo Programa e àquelas que já existiam
e passam a se relacionar com a implementação da política.
O objetivo declarado do Programa é promover o planejamento, a implementação e a
auto-gestão do processo de desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e o fortalecimento
e a dinamização da sua economia. Para realizar este objetivo, a SDT/MDA executa, a partir do
29
Pronat, seu principal programa, cinco ações estratégicas: (a) elaboração dos PTDRS; (b)
capacitação de atores, gestores e agentes para o desenvolvimento territorial; (c) gestão e
administração do Programa; (d) assistência técnica e financeira a Projetos de Infra-estrutura e
Serviços nos Territórios; e (e) remuneração das instituições financeiras públicas que
operacionalizam ações do Programa executadas por meio de contratos de repasse por
instituições públicas federais. A ação de apoio à infra-estrutura e serviços nos territórios rurais
substituiu o Pronaf Infraestrutura e Serviços Municipais. Trata-se de uma linha de financiamento
que opera com recursos não reembolsáveis à União, que podem ser acessados por organismos
públicos e, em certos casos, também por instituições não governamentais.
Esta breve descrição do desenho da política permite-nos perceber que a ação da
SDT/MDA se espraia por diversos campos de interação e embates para implementar os
objetivos do Pronat. Todos estes campos são relacionados a marcos jurídicos específicos. É
importante ressaltar que a política de desenvolvimento territorial não cria normas ou atos
jurídicos. Antes, ela deve obedecer às normas estabelecidas. No entanto, o MDA e a SDT têm
competência legal, como “unidades jurisdicionadas”, para estabelecer normas, regulamentos e
critérios que regulem o funcionamento de sua ação e a implementação da política, desde que
este ordenamento criado subordine-se às leis que lhes são superiores.
Neste sentido, o campo de ação da SDT/MDA, embora seja bastante amplo nos termos
de sua formulação, é marcadamente limitado quanto às competências que lhes são atribuídas
por lei. Ao analisarmos as competências estabelecidas pelo Decreto nº 5.033 de 05 de abril de
2004 (BRASIL, 2004), percebemos que estas atribuições, em sua maioria, dizem respeito a
relações que podem e devem ser estabelecidas pela Secretaria com outros órgãos ou instâncias
públicas, organizações de movimentos sociais, entidades parceiras executoras de projetos,
entes federativos (governos estaduais e municipais), órgãos colegiados etc. Cabe à SDT/MDA,
principalmente, a tarefa de executar programas que dependem, essencialmente, do
estabelecimento de parcerias para que possam acontecer. A Secretaria desenvolve,
basicamente, atividades de coordenação e articulação relacionadas à política pública,
desempenhando também importante papel na produção e sistematização de informações sobre
os territórios rurais apoiados pela política. As atividades de execução direta restringem-se,
portanto, à administração da própria secretaria e à Secretaria do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf).
As atividades de articulação política começam com o próprio processo de seleção e
criação dos territórios, que envolve negociações com governos estaduais e municipais. Nos
30
primeiros anos de implantação da política, devido à mudança de regras para o acesso aos
recursos do Pronaf Infra-estrutura e Serviços Municipais, as prefeituras disputavam participação
nos territórios para garantir acesso a recursos. As mudanças constantes na composição dos
territórios levaram a SDT/MDA a estabelecer normas específicas por meio de uma portaria em
julho de 2005.
Os governos estaduais são essenciais à execução da estratégia, visto que os Conselhos
Estaduais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CEDRS) são os responsáveis legais pela
aprovação da criação de territórios e deliberam, por exemplo, sobre a inclusão ou exclusão de
municípios nos territórios já existentes. É também nos CEDRS que tramitam os projetos
territoriais vinculados ao Pronat15, aqueles que buscam apoiar ações voltadas à dinamização das
economias territoriais, ao fortalecimento das redes sociais de cooperação e ao fortalecimento
dos mecanismos de gestão social. Estes conselhos também são espaço para negociar com
entidades públicas estaduais e organizações da sociedade civil. Muitas destas entidades e
organizações têm representação nos colegiados territoriais e suas ações, em muitos casos,
interagem com os projetos e ações que têm origem nos territórios. O trabalho de articulação
política também envolve a celebração de acordos formais e convênios, que envolvem a Caixa
Econômica Federal e que são necessários às transferências de recursos públicos do Orçamento
Geral da União a entidades públicas ou privadas para execução das ações territoriais previstas
nos projetos financiados pelo Pronat.
Embora homologados pelos CEDRS, os contratos/convênios são formalizados com os
governos municipais, não importando se formalmente compõem ou não o território. O projeto
territorial, ao considerar que determinado município, mesmo fora do território, é estratégico para
a o desenvolvimento do projeto, pode incluí-lo como executor. Também podem ser viabilizados
convênios com os governos estaduais para implementar ações nos municípios de determinado
território. Da mesma forma, as ações de custeio prevêem contratos/convênios com organizações
não-governamentais.
Além dos colegiados territoriais e dos CEDRS, as delegacias estaduais do MDA têm
atribuições específicas estabelecidas por portarias ministeriais. Estas atribuições incluem a
análise dos projetos elaborados e o acompanhamento dos trâmites necessários à sua
aprovação. A análise técnica dos projetos inclui a constatação da obediência à Lei de Diretrizes
Somente os projetos territoriais oriundos de emendas parlamentares, cuja destinação é indicada pelo parlamentar,
não são objeto de discussão dos colegiados e de homologação pelos CEDRS.
15
31
Orçamentárias (LDO), que estabelece os critérios para contrapartidas e para transferências
voluntárias.
Este campo normativo tem na Caixa Econômica Federal seu agente operador. Suas
responsabilidades legais incluem a celebração de contratos de repasse, a execução financeira
dos recursos e a análise e aprovação de contas. A relação entre a Caixa e a SDT/MDA é
legalmente fundamentada em um Acordo de Cooperação, em um Contrato de Prestação de
Serviços e em uma série de Diretrizes Operacionais do próprio MDA. Esta relação, ao envolver
governos estaduais, municipais e organizações sociais, tem por base legal a Lei de Diretrizes
Orçamentárias, a lei de Responsabilidade Fiscal, as Instruções Normativas da Secretaria do
Tesouro Nacional e as Resoluções do MDA. A realização dos projetos territoriais envolve,
portanto, um ambiente de interações extremamente normatizado e referido a marcos jurídicos
bastante complexos e de difícil articulação.
A institucionalização induzida e/ou criada pela SDT/MDA busca articular-se a uma
variedade de arcabouços jurídicos, por sua vez referidos a temas, focos e instâncias de poder
variadas. Em busca da instituição de novas territorialidades para o desenvolvimento dos espaços
rurais, a SDT/MDA se apóia em um “ente”, o território, que não tem representatividade legal.
Nem o território nem sua institucionalidade, o Colegiado Territorial, por exemplo, têm
legitimidade formal para celebrar contratos ou executar verbas públicas. Esta capacidade
depende de acordos (formais e informais) a serem construídos com governos locais e estaduais.
No desenho da política assume função essencial a figura do “articulador territorial”, aquele sobre
o qual se projeta a competência ou a habilidade para tornar os processos de mobilização e ação
dos agentes presentes no território coerentes com as orientações da política.
A capacidade que a ação pública, concretizada por meio do desenho da política de
desenvolvimento territorial implementada pela SDT/MDA, tem de estabelecer novas
territorializações calcadas em um projeto político de promoção do desenvolvimento é, portanto,
referida, principalmente, à capacidade de articulação política e construção de consensos e
legitimidade entre a diversidade de atores e de outros projetos sociais que existem nos
territórios.
O arcabouço jurídico existente, ao mesmo tempo em que oferece limites a ação pública
para implementar a política, abre a possibilidade de participação de entidades e organizações da
sociedade civil na execução de recursos públicos, resolvendo, em parte, os limites infraestruturais da intervenção estatal. Ao mesmo tempo em que abre brechas à viabilização de um
projeto político de desenvolvimento que se fundamenta em demandas históricas de setores
32
organizados da agricultura de base familiar, continua a limitar transformações estruturais mais
amplas, favorecendo (e por vezes incentivando) a permanência de desigualdades sociais que
emperram as iniciativas em prol de mudanças.
4. Marcos jurídicos intervenientes na política territorial: uma discussão a partir da
literatura
A literatura brasileira que discute o desenvolvimento territorial não tem dado muita
atenção à dimensão jurídico-legal do tema. A preocupação dominante tem sido, por um lado, a
de insistir na abordagem territorial como forma de superar a setorial, e, por outro, a de abordar
as institucionalidades envolvidas. O resultado tem sido uma contribuição substancial ao debate.
Para os objetivos do presente relatório, no entanto, torna-se necessário verificar como essa
literatura vem apontando, mesmo que tangencialmente, tanto questões referentes a marcos
jurídicos legais existentes, quanto mencionando a necessidade de criá-los.
Parte significativa dos textos com que trabalhamos tem um caráter fortemente normativo.
Escritos por alguns dos mais notáveis cientistas sociais brasileiros, apresentados em congressos
científicos, publicados em importantes periódicos, eles derivam de uma reflexão que tem como
ponto de partida a defesa da proposta de desenvolvimento territorial (mesmo que críticos à forma
como ela vem efetivamente se desenvolvendo). São, em grande parte, trabalhos derivados de
consultorias para o governo federal ou resultados de pesquisas financiadas por entidades que
tem feito do desenvolvimento territorial um tema central em suas discussões, ou seja, são
reflexões ligadas a um processo de intervenção sobre o social. Com essa observação queremos
indicar que muitos textos trabalhados têm “a prioris” que precisam ser considerados: trata-se de
mostrar as vantagens (e/ou os problemas) de uma abordagem dessa natureza, buscando,
muitas vezes, chamar a atenção para possíveis correções de rumo da política territorial que vem
sendo adotada. Outros textos que abordamos centram-se na discussão sobre a emergência de
uma nova ruralidade, ligada à reconfiguração do rural no mundo contemporâneo e que impõe a
aproximação com o conceito de território. 16
A partir da leitura de uma grande quantidade de textos (vide bibliografia, ao final do
presente relatório), optamos não por apontar linhas que aproximam ou separam autores, mas
A Geografia tem produzido uma profunda e fértil discussão sobre o conceito de território. Alguns aspectos dela
foram incorporados em parte anterior do presente relatório. O debate também se faz no interior da antropologia e da
sociologia. Nosso interesse aqui não é retomar a discussão teórica sobre território, mas mostrar como a abordagem
sobre o desenvolvimento territorial, como política pública, tem sido tratada.
16
33
sim selecionar temas que emergem de sua leitura e que nos parecem cruciais para discutir os
marcos jurídicos que tensionam as possibilidades de políticas de desenvolvimento territorial.
Foram os seguintes os temas levantados: a delimitação do que é rural; participação política; a
descentralização e o lugar dos municípios; a pulverização das ações territoriais. Ao final,
apresentamos alguns silêncios da literatura sobre questões que consideramos cruciais na
perspectiva de políticas de desenvolvimento.
4.1 A delimitação do que é o rural
Um dos aspectos sobre o qual se tem repetidamente chamado a atenção e que, na
verdade, se constitui como um pressuposto das políticas de desenvolvimento territorial é a
necessidade de rever o conceito de rural com que se trabalha no Brasil. Do ponto de vista da
indicação de marcos legais que suportam essa definição, um dos autores que mais tem se
dedicado a produzir reflexões é José Eli da Veiga. O autor chama a atenção para o fato de que
“a vigente definição de ‘cidade’ funda-se em legislação ainda do Estado Novo
(Decreto-Lei 311, de 1938), que transformou em ‘cidades’” todas as sedes
municipais existentes, independentemente de suas características estruturais e
funcionais .... “da noite para o dia, ínfimos povoados, ou simples vilarejos,
viraram cidades por norma que continua em vigor, apesar de todas as
posteriores evoluções institucionais.” (Veiga, 2001, p. 1).
Essa legislação estadonovista relaciona-se a um contexto de um acelerado processo de
centralização de decisões no governo federal e manteve-se ao longo dos anos. É possível dizer
que ela igualou (na forma) os municípios como entes federativos, ao mesmo tempo em que
produziu uma disputa, no interior deles, entre o que considerar rural ou não, tendo em vista
possibilidades de arrecadação de impostos, ampliação da malha urbana, crescimento da
especulação imobiliária etc.
Ainda segundo Veiga, em 1991, o IBGE passou fazer uma distinção entre “áreas
urbanizadas”, “não urbanizadas” e “áreas urbanas isoladas” (entendidas como as que estavam
separadas da sede municipal ou distrital por área rural ou outro limite legal). Criou também
quatro tipos de aglomerados rurais (extensão urbana, povoado, núcleo e outros aglomerados),
que visando estabelecer critérios de classificação mais apurados, que permitissem conhecer
melhor as dimensões da ruralidade brasileira. No entanto, insiste o autor,
“em vez de amenizar, a nova classificação reforça a concepção de que as
fronteiras entre as áreas rurais e urbanas são infra-municipais. Reforça a
34
convenção de que são urbanas todas as sedes municipais (cidades), sedes
distritais (vilas) e áreas isoladas assim definidas pelas Câmaras Municipais,
independentemente de qualquer outro critério geográfico, de caráter estrutural
ou funcional.” (Veiga, 200, p. 3).
Este tipo de critério infla as taxas de urbanização, pois, como mostra Veiga, “transforma
em urbanos muitos dos que vivem em espaços de natureza pouco artificializada, só porque
residem em alguma sede municipal ou distrital” (Veiga, 2001, p. 4) e tem profundas influências
sobre as concepções sobre o que deve ser o “desenvolvimento” e sobre o lugar do rural na
nossa sociedade. Este espaço passa a ser visto como residual, condenado a desaparecer (ou, a
se reduzir bastante, tanto em termos de população, como de atividade econômica), portanto as
políticas voltadas para sua dinamização deixam de ser relevantes. Quando muito, cabem
políticas sociais, destinadas a amparar a população empobrecida.
Bastante influenciado pela literatura européia e pela política da OCDE que define o rural
e o urbano a partir de outros critérios, relacionados às dimensões da população das regiões, o
autor indaga “Será razoável que no início do século 21 se considere ‘cidade’ um aglomerado de
menos de 20 mil pessoas?”. A partir da análise de uma série de dados de pesquisa, o autor
defende a necessidade de uma nova visão da configuração territorial do País, uma vez que,
segundo ele,
“a visão normativa herdada do Estado Novo não pode continuar a ser uma
camisa de força para o diagnóstico de macro-tendências do desenvolvimento. O
que reforça a necessidade de que se rejeite qualquer tipo de zoneamento
baseado em critérios meramente setoriais.” (Veiga 2001, p. 19).
Na seqüência, o autor defende a celebração de “Contratos Territoriais de
Desenvolvimento”, baseados em articulações intermunicipais microrregionais e os governos
estaduais e o federal. Embora Veiga não explore a natureza desses contratos, do ponto de vista
do presente estudo caberia indagar quais as bases legais que facilitariam/permitiriam tal arranjo
institucional.
Na mesma linha de argumentação, mas buscando entender como foi possível esse
movimento que leva à desqualificação do rural, Favareto (2006: 13) afirma que
“há uma associação nos quadros de referência de cientistas, da burocracia
governamental, das elites, entre a idéia de que o desenvolvimento é um atributo
do urbano e a decorrente associação do rural à pobreza. Numa espécie de
versão da profecia que se cumpre por si mesma, esta visão influencia a
formação de um campo de questões que se tornam legítimas ou ilegítimas. Esta
35
dinâmica não é, contudo, autônoma. A crítica às origens agrárias como uma das
raízes dos males das ex-colônias, a ideologia do progresso, a rápida
industrialização de países como os aqui tomados como exemplo, a constituição
de portadores destes diagnósticos e dos processos sociais que lhes
consubstanciam são fatores que se combinaram para criar uma illusio, no
sentido dado por Bourdieu: uma adesão imediata à necessidade de um campo,
no caso de vários campos, para os quais a idéia de urbanização crescente e
irreversível é a doxa fundamental. Ela é, nas palavras do sociólogo francês, a
condição indiscutida da discussão, é aquela que, a título de crença fundamental,
é posta ao abrigo da própria discussão. Sempre segundo Bourdieu, a illusio não
é da ordem dos princípios explícitos, de teses que se debate e se defende, mas
sim da ação, da rotina, das coisas que se fazem”.
Para Favareto, que se aproxima bastante das conclusões de Veiga, um dos principais
dilemas da ação do Estado nas suas tentativas de promover o desenvolvimento rural é esse
lugar institucional da idéia de rural, de ruralidade, determinado pela concepção do destino
urbano do progresso social. O caráter tido como residual do rural e sua associação automática à
idéia de pobreza e de atraso restringem de partida as possibilidades de investimentos científicos,
políticos e econômicos, o que contribui para gerar um ciclo onde esta posição marginal é sempre
reforçada, seja simbolicamente, seja materialmente.
Chama a atenção o fato de que esse illusio, apontado por Favareto, não afeta somente
as possibilidades de políticas públicas. Ele se espraia pela sociedade e é um critério importante
de classificação social, que marca as concepções de mundo de todos os cidadãos.
Pensando em termos da eficácia legal dessa percepção, poder-se-ia busca-la na própria
delimitação que a legislação produz em termos de organização sindical. Temos um sindicato de
trabalhadores rurais, de base profissional (também herança varguista) que, por exemplo,
historicamente teve dificuldades de lidar com pessoas que trabalham no “meio rural”, mas que
vivem nas áreas “urbanas” (em especial o caso dos assalariados temporários), trabalhadores
com experiências urbanas que deixam de ser considerados como “vocacionados” para o “meio
rural”, trabalhadores que conjugam trabalhos agrícolas com “urbanos” etc. Da mesma forma,
critérios de seleção de populações para receberem determinados direitos (acesso à terra)
também partem de um corte que supõe que a “vocação agrícola” só existe em quem vive no
“meio rural”. É essa mesma concepção que leva a que os padrões curriculares das escolas se
voltem fundamentalmente para os valores “urbanos”, uma vez que o “rural” aparece como atraso.
Um dos resultados dignos de análise desse tipo de concepção é a nucleação escolar, que obriga
36
as crianças a longos deslocamentos para poder ter acesso à educação.17 Pode-se ainda buscar
exemplos da eficácia dessa leitura do rural na própria estrutura ministerial atual, onde temos um
Ministério das Cidades, um Ministério da Agricultura e um Ministério do Desenvolvimento
Agrário. O primeiro deles, por definição, exclui temas relacionados à ruralidade de sua órbita; o
segundo volta-se principalmente para a dimensão produtiva e comercial, em especial da
produção em maior escala; e finalmente, o MDA, tem sob sua alçada a agricultura familiar, nas
suas diferentes formas.
Alguns autores com que trabalhamos procuram enfatizar a dimensão histórica da
constituição das categorias rural e urbano. É o caso de Maria de Nazareth Wanderley. A partir
das reflexões dessa autora, é possível afirmar que tem se trabalhado como uma leitura ahistórica
e reificada do rural, reforçada tanto pela delimitação administrativa, como apontado por Veiga
(2001), quer pela associação do rural à pobreza de que nos fala Favareto (2006). Buscando
resgatar a historicidade da categoria a partir de um instigante exercício analítico da obra de
historiadores e sociólogos, em especial franceses, Wanderley afirma que, no mundo
contemporâneo,
“o espaço local é, por excelência, o lugar da convergência entre o rural e o
urbano, no qual, as particularidades de cada um não são anuladas; ao contrário,
são a fonte da integração e da cooperação, tanto quanto da afirmação dos
interesses específicos dos diversos atores sociais em confronto. O que resulta
desta aproximação é a configuração de uma rede de relações recíprocas, em
múltiplos planos que, sob muitos aspectos, reitera e viabiliza as particularidades”
(Wanderley, 2000, p. 118).
Ainda segundo Wanderley (2000), está em curso, no entanto, a constituição de uma
nova visão do rural. Essa visão envolve uma nova concepção das atividades produtivas,
especialmente daquelas ligadas à agropecuária, e uma igualmente nova percepção do “rural”
como patrimônio a ser usufruído e a ser preservado. Para tanto, pesam novos temas que
emergem, como, por exemplo, a crise ambiental. Fazendo suas as questões do sociólogo
francês Marcel Jollivet, a autora chama atenção para o que considera a questão fundamental
nos dias de hoje: quem assumirá esta nova visão do rural? Quem a promoverá? Ou seja, que
atores poderão difundir ou serem porta-vozes dessas mudanças?
Sob essa perspectiva, é importante mencionar os esforços para a criação de uma política de educação do campo
que, no entanto, ainda está por merecer uma análise rigorosa dos seus pressupostos, uma vez que, no esforço de
valorização e positivização do “campo”, talvez, possa estar reproduzindo, às avessas, a segmentação que aqui está
sendo posta em questão. Tendo em vista os limites deste trabalho, não investigamos esse debate, mas, sem dúvida
ele terá que ser recuperado.
17
37
Uma resposta possível a essa questão pode ser buscada nas políticas públicas e sua
enorme capacidade de moldar realidades sociais. Indícios de uma releitura do rural encontramse na incorporação da abordagem territorial. No entanto, como pode ser depreendido da leitura
dos diferentes autores que utilizamos, estamos frente a um processo de inovação que se
enfrenta com a resistência da solidez de certas visões de mundo, profundamente arraigadas e
que se cristalizaram no aparato estatal por meio de leis, medidas administrativas, instituições. A
cada momento elas reproduzem uma visão de rural fortemente marcada pela oposição com o
urbano e pela identificação com o atraso a ser eliminado a partir de políticas modernizadoras.
Trata-se, pois, de enfrentar o desafio de um exercício de “invenção” (ou reinvenção) de tradições
(Hobsbawn, 1984), dando um novo sentido a práticas sociais e culturais em processo de
extinção, muitas vezes abandonadas ou recusadas pelas próprias populações como algo que as
liga ao atraso e, portanto, inferioriza socialmente.
Sob essa perspectiva podemos dizer que a concepção de rural (e de desenvolvimento
rural) está, como não poderia deixar de ser, em disputa por forças bastante diferenciadas,
envolvendo atores com capacidade política (ou seja, com possibilidades de impor visões de
mundo) também bastante diferenciada. Delimitar territórios, com ênfase na presença de
agricultores de base familiar é, antes de mais nada, delimitar espaços de disputa com a visão
produtivista do campo. Para além da crítica a uma visão, onde o que importa é o da expansão de
monoculturas ou de atividades que atribuam ao espaço outros destinos que não aquele desejado
pelas populações que o habitam,18 há que se considerar também a disputa com uma visão que
vê no rural somente um espaço de produção (mesmo que de agricultores familiares), onde o que
importa é o agrícola, dando pouca atenção às dimensões ambientais, culturais etc. De toda
forma, trata-se de uma disputa que, apesar da capacidade da lei de criar novas realidades, não
se dá apenas no domínio da lei, mas se espraia pela sociedade.
4.2 A importância da participação social e política
A valorização da participação social nas decisões referentes às políticas públicas, tanto
no que se refere à sua implementação como à sua gestão, emerge nos anos 1980, no caso
brasileiro em função do impulso produzido pelas lutas pela democratização e pela força que
É possível exemplificar essas disputas com os fatos que envolvem a Base de Alcântara, envolvendo a
concorrências entre áreas para experiências espaciais e áreas asseguradas aos remanescentes de quilombos.
18
38
diferentes movimentos sociais adquirem nesse processo.19 A Constituição de 1988 refletiu esse
debate e essa pressão. A participação das populações envolvidas talvez seja um dos temas
mais fortemente presentes nos marcos reguladores de diversas políticas públicas brasileiras
após esse novo marco jurídico. Em todos os municípios proliferam conselhos (saúde, educação,
desenvolvimento, etc), cujo objetivo é conformar espaços de debate e concertação, que ampliem
a participação popular e as possibilidades de gestão democrática das políticas públicas.
O tema da participação não somnete com base em instituições formais, mas também a
que se revela na própria luta social, é também recorrente nos debates sobre desenvolvimento
rural e alguns autores têm apontado para a importância dos movimentos sociais para a
institucionalização de algumas políticas. Um exemplo é o estudo de Abramovay et al. (2006b), a
partir de cinco estudos de caso na América Latina. Nele, os autores afirmam que os movimentos
sociais contribuíram de forma decisiva para a criação de um ambiente institucional no qual a luta
contra a pobreza e exclusão foram centrais. Segundo eles,
“a) Los movimientos contribuyen para la ampliación de la esfera pública de la
vida social, lo que en un ambiente de clientelismo y patrimonialismo tan fuertes
como el que marca las regiones interioranas de América Latina es muy
importante.
b) Ellos introducen temas nuevos que no forman parte de la vida social de las
regiones en las que actúan, que van desde el acceso de las mujeres al crédito
(al interior del PRONAF, en Brasil, por ejemplo) hasta la importancia de la
participación popular en las nuevas oportunidades de explotación del turismo
ecológico, en el Sur de México.
c) Los movimientos sociales son un elemento decisivo para la democratización
del proceso de toma de decisiones: son ellos los que animan y dan vida a
nuevas estructuras de participación social en la gestión pública, marca decisiva
de la vida social de toda América Latina, a partir de mediados de los años 1980,
sobre todo en las políticas sociales.
d) Al transformar ciertas reivindicaciones tópicas y localizadas en derechos, os
movimientos transforman la propia matriz de las relaciones sociales: es lo que
ocurre con el sentimiento de respeto sentido por las poblaciones indígenas como
uno de los principales resultados de sus luchas en Ecuador (Ospina et al., 2006).
Lo mismo se puede decir del reconocimiento público de que las poblaciones
afrodescendientes tienen derechos sobre las tierras en las que viven (Schattan
et al., 2006) o de que el agricultor familiar puede entrar al banco con la frente
alta (Abramovay et al., 2006).
e) Se puede decir que los movimientos sociales son elementos indispensables
para que poblaciones hasta entonces excluidas se conviertan en protagonistas,
É preciso lembrar que a onda “participacionista” e os debates sobre descentralização do poder foram recorrentes
em diversas partes do mundo.
19
39
actores de la vida social, lo que trae consecuencias políticas decisivas para la
organización de los territorios y, por ende, para su proceso de desarrollo”
(Abramovay et al., 2006b, p. 7, grifos dos autores).
As possibilidades desse protagonismo foram garantidas não só pela força dos
movimentos sociais e pela capacidade que tiveram de influir nas instituições políticas, no
desenho das políticas públicas, de forma a garantir espaços de participação institucionalizados.
Sob essa perspectiva, é chave o entendimento da maneira como essa participação,
recorrentemente afirmada na literatura, se inscreve na Constituição de 1988 e como se faz
presente em diversas esferas políticas.
Com efeito, afirmar que a Carta Magna ampliou espaços de participação implica em
analisar
como
essa
institucionalização
se
expressa
em
normatizações
que
consolidam/cristalizam determinadas relações sociais. Ao mesmo tempo, é importante alertar
para o fato de que as formas de normalização não são neutras. Elas expressam relações de
força e não podem ser vistas de maneira simplista, uma vez que a arquitetura legal de um país
não é linear e, por vezes, as intenções de alguns programas enfrentam obstáculos, decorrentes
da estrutura legal existente e de modos de fazer política, e que são difíceis de transpor.
Temos que nos indagar ainda sobre o que a retórica em torno do tema encobre em
termos da possibilidade de participação. Os conselhos, que se tornaram a estrutura chave desse
processo de compartilhamento de decisões, têm sido bastante analisados na literatura sobre
desenvolvimento rural. Antes de apresentarmos algumas das visões apresentadas por autores
que tratam do tema, é importante retomar a reflexão de Bourdieu (1989) sobre representação
política. Nela aparece uma questão central que guiará nossa reflexão: a participação na política
exige capital político e tempo livre. Dessa perspectiva, os setores chamados a participar dos
conselhos, pela sua própria natureza (segmentos que vivem de seu trabalho), apresentam limites
intrínsecos à participação, não diretamente relacionados à dimensão estritamente legal, mas à
condição social dos conselheiros. Quais as possibilidades objetivas dos atores em termos de
tempo para investir em processos participativos? De que incentivos dispõem? O que supõem
que podem obter com esta participação? Estão preparados para a participação, no sentido de ter
um acúmulo que lhes permita intervir eficazmente, a seu favor, nas regras da política?
Evidentemente, proliferaram os cursos de capacitação. Mas há que saber/indagar como esses
cursos são levados a termo, em que medida potencializam a experiência dos agentes. Há que
considerar que o aprendizado da participação, se tem em cursos momentos de reflexão e
40
sistematização, depende sobretudo da própria experiência dos agentes, acumulada nas próprias
disputas políticas.
No cerne do debate sobre a participação coloca-se ainda o tema da representação: os
conselhos são representativos dos diferentes segmentos da sociedade local? A quem os
conselheiros efetivamente representam? Mesmo considerando que os conselhos possam ser um
espaço para melhorar a capacidade de intervenção dos “subalternos”, fica a questão de quais os
mecanismos de garantia de participação de segmentos invisíveis, cuja entrada nesses espaços
pode implicar em disputas por recursos (sempre escassos). Há ainda que pensar na relação
entre demandas locais e mais gerais, tendo em vista a forte tendência de que os grupos em
situações de carência procuram trazer benefícios para seu local, para sua “base” de
representação. A literatura aponta como as preocupações mais gerais muitas vezes estão
distantes do cotidiano ou das necessidades imediatas dos agentes. Todos esses elementos nos
levam a pensar em como o processo de participação é complexo e envolve um enorme esforço
de gestão das diferentes perspectivas envolvidas, bem como do entendimento dos canais por
onde passa o aprendizado dos agentes.
No que se refere ao Condraf e Codeter, por exemplo, como apontam Rocha e Filippi
(s/d: p. 14), há orientações explícitas no sentido de que se deve considerar a pluralidade,
envolvendo a representação das categorias por meio das diferentes organizações existentes
(associações, sindicatos, cooperativas, etc). Da mesma forma, devem estar presentes nesses
conselhos as diferentes concepções de desenvolvimento rural existentes, bem como a
diversidade, ou seja, neles devem estar presentes as diferentes identidades presentes no
espaço social (jovens, mulheres, quilombolas, agricultores familiares ligados à diferentes
comunidades e/ou arranjos produtivos, pequenos empreendedores, etc). Resta saber, até onde
essas diretrizes se traduzem em efetiva participação e, mais uma vez, em quem pode
efetivamente participar.
Em diversas avaliações disponíveis sobre a participação das políticas de
desenvolvimento rural, fica evidente que entre a intenção da ampliação da participação e sua
realidade, vai uma grande distância. Diversos autores (Abramovay, 2003; Schneider et alli, 2004;
Favareto e Demarco, 2004) chamam a atenção para o fato de que, mesmo com a
obrigatoriedade de paridade entre órgãos de governo e representantes da sociedade civil na
composição dos conselhos, o poder efetivo sobre os projetos se concentrava, na maioria dos
municípios, nas mãos dos prefeitos. Com base em uma ampla pesquisa sobre o tema,
Abramovay et al. (2006a) chamam a atenção para as diferenças de poder no interior dos
41
colegiados - que se expressam na maior capacidade de prefeitos ou de algumas lideranças em
se apropriar dos projetos. Os autores constatam uma distribuição desigual das habilidades
sociais e relacionais. Na pesquisa realizada, apontam que
“Segundo relato de técnicos da SDT, os prefeitos conseguem cada vez mais
“furar” os processos participativos dos colegiados para ter acesso aos recursos
do Pronaf Infra-estrutura por meio de emendas parlamentares. Em 2005, metade
do valor total dos projetos foi contratada através de emendas, o que mostra bem
o quanto a lógica supostamente participativa encobre a prática clientelista de
transferência de recursos públicos. Prefeitos bem relacionados com deputados
federais não despendem tempo e recursos nas diversas reuniões de que as
organizações sociais - na sua grande maioria sem outros meios ou articulações precisam participar para poder interferir ou ter acesso aos recursos públicos
federais” (Abramovay et al, 2006a, p. 15).
Ainda segundo os autores citados, a criação de colegiados territoriais restringiu o poder
dos prefeitos, que passou a ser dividido com ONGs e movimentos sociais, mas não resultou em
novas estratégias. Isso se deve em muito ao que eles chamam de “vícios de origem”, da falta de
proposta estratégica de desenvolvimento que reposicione o lugar do rural e que, na visão dos
autores, inclua os diferentes atores e não apenas os ligados à agricultura familiar. Ou seja,
alguns dos limites não estão necessariamente ligados aos marcos legais, mas sim a fatores que
levam à cultura política brasileira, à forma como o rural tem sido pensado, à capacidade dos
atores de organizar projetos políticos, no sentido em que nos fala Dagnino (2004).
O tema crucial parece ser o dos setores habilitados a participar dos conselhos e até
onde esses organismos podem e deve ser inclusivos. Segundo Abramovay et al. 2006a, essa
representatividade é limitada: eles incorporam a diversidade de forças sociais ligadas ao que
poderíamos grosso modo chamar de “classes subalternas”, mas neles não estão presentes, por
exemplo, os setores empresariais. Sob essa perspectiva, a paridade é a paridade existente é
entre os representantes dos agricultores familiares e o Estado. Segundo os autores citados, no
caso das políticas de desenvolvimento territorial da SDT, há contradições advindas da forma
como se dá a participação:
“por um lado, muitos dos interesses dos agricultores familiares encontram-se aí
representados por meio de suas organizações formais. Por outro, porém, esta
representação não é nem de longe suficiente para estimular o surgimento de
projetos voltados à valorização dos recursos específicos das regiões rurais. Ao
contrário, a lógica de representação da política não estimula a aparição de
organizações que se voltam para a inovação e a aprendizagem. Sua base
setorial opõe-se objetivamente a sua ambição supostamente territorial e confina
suas ações a um conjunto de pequenos projetos em que suas organizações
representativas participam, mas cujo impacto é irrisório. Mais que isso: o
42
desenvolvimento rural brasileiro contemporâneo não está assentado numa
opção estratégica capaz de agregar energias de amplos setores sociais e de um
conjunto consistente de atores governamentais, privados, profissionais e
associativos. Esta é a raiz de uma lógica de funcionamento por pequenos
projetos cuja relevância é ínfima” (Abramovay et al: 2006:20).
Segundo a leitura acima, caberia abrir possibilidades legais para agregar nos conselhos
os mais diferentes segmentos, em especial os portadores de maior capacidade inovativa e maior
dinamismo, ou seja, retomando os termos de Bourdieu, os detentores de capital cultural. Muitos
se opõem a essa perspectiva mais includente, alertando para os riscos de que, justamente pela
sua maior capitalização e tendo em vista as formas de relação historicamente dominantes na
sociedade brasileira, estes segmentos acabariam controlando os conselhos, trazendo as
políticas para o seu campo de interesses e produzindo novas formas de exclusão dos
agricultores familiares. Como falar em desenvolvimento implica pensar sempre em qual seria sua
direção e quais seriam seus beneficiários diretos, é fundamental ter em conta quem elabora os
projetos de desenvolvimento e partir de que ponto de vista.
Cazella (2006) aponta uma dimensão dos processos participativos fundamental para se
pensar seus limites, mas numa perspectiva oposta à apontada por Abramovay et al (2006a) e
central para a nossa reflexão. O autor trabalha com a hipótese de que as instituições promotoras
do desenvolvimento rural, as ONGs e os movimentos social e sindical
“concentram suas ações de forma prioritária nas categorias de agricultores
familiares classificados como de maior renda e de renda média (...). As duas
outras categorias (renda baixa e quase sem renda), que totalizam,
respectivamente, quase 830 milhões (17%) e dois milhões (39,5%) de
agricultores familiares brasileiros, constituem o grupo social que Graziano da
Silva (1999) denomina, propriadamente, de ‘sem sem”: sem renda, terra,
educação, saúde, ONG, sindicato, movimento social (Cazella, 2006, p. 226/227).
Ou seja, as operações formais de desenvolvimento rural e as políticas públicas que as
sustentavam não estão incorporando uma parcela importante das populações que aparecem, em
tese, como seu “público alvo”.
Sayago (2007) também aponta algumas fragilidades dos Conselhos, dentre elas o fato
de que eles foram criados muito mais para atender as exigências legais do repasse de verbas e
definição de seu uso do que para se constituir em espaços de reflexão sobre as problemáticas e
potencialidades locais. Segundo a autora, nos municípios rurais pobres e com baixa densidade
populacional, pouco se conseguiu impulsionar transformações locais. Outro aspecto apontado
43
por ela é que os conselhos mostram fragilidade na articulação com outras institucionalidades e
com atores fundamentais para o desenvolvimento rural territorial, caracterizando o processo de
descentralização como não democrático, centralizador, e, em alguns casos, como legitimador
das relações de poder já existentes.
Há outras preocupações ainda que emanam da literatura a respeito da participação nos
conselhos e dos conselhos no desenho das políticas de desenvolvimento. Beduschi e
Abramovay, por exemplo, mostram que os conselhos, que impõem que os recursos tenham seu
uso submetido a instâncias colegiadas, também têm uma “função setorial específica de
elaboração de reivindicações e controle na execução de seu atendimento. São mediadores entre
recursos federais voltados a uma finalidade pré-determinada e as populações beneficiadas”
(Beduschi e Abramovay, 2003: 17). Desse ponto de vista, pode-se dizer que eles funcionam
como instâncias importantes de elaboração de demandas, embora, como assinalado acima,
muitas vezes voltadas para aspectos pontuais e que não implicam necessariamente (segundo
Abramovay et al, 2006a, nunca implicam) em ações capazes de impulsionar processo de
desenvolvimento.
Todas essas análises convergem para que se possa falar em uma forte tensão no
desenho da política, principalmente na arquitetura dos mecanismos pelos quais ocorreriam
processos de governança. Alguns dos estudos analisados nos permitem falar em que a
possibilidade de gestão social das políticas, prevista na definição dos conselhos, é prejudicada
tanto pela focalização e setorialização da política (que restringe a noção de desenvolvimento e
de rural), quanto pela falta de previsão de constituição dos espaços para exercício de
governança (colegiados).
4.3 O lugar dos municípios na política de desenvolvimento territorial
Quando se discute participação é preciso ter em vista que ela vem se dando, no geral, a
partir da unidade administrativa básica, o município. Cabe, pois indagar, o que significa a
passagem de município a território do ponto de vista institucional legal? Que institucionalidades
estão sendo criadas para permitir essa passagem? Quais os limites antepostos pelo fato de que,
no Brasil, o município, não só por efeito legal, mas por uma longa tradição administrativa e
política é, de fato, a unidade mínima de planejamento, manuseio de recursos etc.
Na literatura com que trabalhamos, o tema aparece com força. Como adverte Sabourin
(2007, p. 734), referindo-se à abordagem territorial do desenvolvimento:
44
“(...) com a nova abordagem, as escolhas em matéria de equipamentos coletivos
dependem do Conselho Territorial e não mais dos Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Rural (CMDR), acusados de não terem poder de decisão ou
de serem facilmente manipulados pelos prefeitos. Mas a perda de poder dos
executivos municipais não significa, portanto, que os agricultores familiares vão
obter mais poder no novo conselho intermunicipal, pois tudo depende da
capacidade das suas organizações em se mobilizarem e se coordenarem, para
terem peso nas decisões e para adquirirem as competências para construir
projetos comuns”.
O autor chama a atenção, no entanto, para o fato de que essas iniciativas prefiguram um
novo campo de experimentação no Brasil, em termos de interação entre a ação coletiva das
populações rurais e a ação pública do Estado nas suas diversas escalas.
Abramovay et al (2006a, p. 16) apresentam uma visão bem menos otimista dos
Conselhos Territoriais. Para esses autores, há diversos problemas no desenho da política,
advindos da ausência de uma estrutura institucional para os colegiados territoriais, o que “reduz
o seu poder de coordenação das políticas, de definição sobre a alocação dos recursos e de
monitoramento dos projetos”. Segundo eles,
“os colegiados definem os projetos a serem implementados no território, mas a
contratação, pelas amarras legais do repasse dos recursos públicos, é
formalizada por prefeituras, que não são comprometidas a prestar contas dos
projetos e nem mesmo a implementar os projetos, ou seja, ainda que o processo
decisório agora se dê a partir de uma articulação intermunicipal, a execução dos
projetos ocorre com recorte municipal e depende de uma correlação de forças
que é específica dessa configuração social, diferente daquela presente nos
colegiados”.
Esses autores advertem que se trata de uma grande diferença em relação aos Grupos
de Ação Local do Programa Leader, às organizações irlandesas e à direção dos processos
locais da política rural norte-americana, uma vez que, nessas experiências, as organizações
respondem pela realização dos projetos em que se envolvem e são avaliadas diretamente por
isso (Abramovay et al, p. 16).
O que se constata é que os territórios não conseguem exercer pressão ou construir
acordos que tornem os seus projetos demandas públicas mais amplas. Como já lembrado por
Abramovay, os projetos são quase sempre demandas de segmentos específicos que estão
presentes nos colegiados territoriais. Por isso, no geral eles nascem frágeis e nem mesmo o
Colegiado cobra, fiscaliza e consegue implementa-los. Dessa forma, a responsabilização das
prefeituras não pode mascarar problemas referentes à própria estrutura dos colegiados
45
territoriais que, além de carregarem consigo toda a dificuldade de tornar efetiva a participação
dos segmentos envolvidos, também enfrenta o fato de terem que “inventar” a prática de uma
nova forma de fazer política, cuja institucionalidade é nova para todos atores envolvidos. Como
já apontamos, toda a estrutura institucional é baseada no município, inclusive em grande parte
das redes associativas, em especial as sindicais.
Guanziroli trata do tema, insistindo na chave da relação participação e espaço municipal.
Segundo esse autor:
“vários fatores concorrem para que a descentralização não cumpra suas
promessas de promoção do desenvolvimento local: a) a descentralização
repassou responsabilidades para os municípios, mas não os meios necessários
para dar conta delas; b) a descentralização por si só não alterou as relações de
poder no município e a forma autoritária e clientelista como muitas prefeituras
ainda hoje são governadas. Com isso, as possibilidades de participação da
população, em particular dos grupos mais marginalizados, continuaram muito
reduzidas” (Guanzirolli, 2006, p. 7).
No entanto, é Sabourin quem toca mais diretamente num tema que nos parece crucial: a
partir de que critérios é definido o território e qual a participação das populações locais nessa
definição de território e na das políticas a eles conveniente, chamando a atenção para as
dificuldades decorrentes da própria forma como as decisões são tomadas. Segundo ele,
“os contornos e a definição da maioria dos territórios apoiados foram propostos
pelo MDA em Brasília, mas decididos pelos Conselhos de Desenvolvimento
Rural e pelos governos dos Estados e dos municípios em relação com alguns
interlocutores locais, geralmente a partir de considerações políticas ou sindicais.
A população interessada não foi consultada e, em muitos casos, ela ignora ainda
até a existência do território ou do projeto de território após alguns anos. De fato,
o processo de territorialização está sendo contrariado ao mesmo tempo pela
concepção de pequenos projetos locais e pela natureza do sistema federal, em
particular pelos canais de financiamento e de implementação das infraestruturas e equipamentos, que só podem passar pelos Estados ou municípios.
O investimento previsto pelo MDA para acompanhar a construção de processos
de identidade territorial é, louvável, mas continuará, sem dúvida, tendo de
enfrentar esses problemas estruturais” (Sabourin, 2007, p. 730).
Há que se chamar ainda a atenção para o fato de que não há praticamente interlocução
com a esfera estadual sobre a política territorial, o que implica em dificuldades de articulação
política sobre um projeto dessa natureza. Os CEDRS, quando existem nos estados, homologam
territórios e projetos territoriais, mas, por exemplo, não têm assento nos Codeter. Originários do
46
Pronaf, eles tendem a reproduzir um habitus institucional referido à lógica dos projetos,
municipalizados, setoriais etc.
Apesar da lógica municipalizante que parece presidir a política de desenvolvimento
territorial, criando contradições no seu interior, cabe a pergunta se a condição para superar o
que é apresentado como “problema” para os autores, seria uma mudança legal que desse poder
a territórios para, por exemplo, contratar recursos públicos e executar projetos com autonomia
em relação aos municípios. O desenho da política aponta claramente para a habilidade essencial
projetada para os colegiados (e, portanto, para os territórios): articular projetos e interesses
distintos; promover concertação e gestão social. Esse fato leva-nos à necessidade de investigar
os consórcios municipais para entender melhor sua operação. A comparação permitiria talvez
relacionar melhor limites legais e estruturas institucionais, de forma a ter elementos para
identificar as razões de alguns impasses nas políticas territoriais.
4.4 A pulverização das ações governamentais e a multiplicidade de territórios
Para além das tensões existentes entre territórios e municípios, o tema do
desenvolvimento territorial entrou na agenda governamental, mas não houve esforço de
unificação de ações. São múltiplos os territórios demarcados, dependendo da ênfase de cada
Ministério. Esse fato acaba gerando tensões, uma vez que os territórios tendem a ser muito mais
um espaço de gestão de políticas do que unidades demarcadas pela presença de uma
identidade. No que se refere ao desenvolvimento rural, há diversas estruturas responsáveis por
políticas públicas, o que faz com que haja uma fragmentação: Ministério da Agricultura, do
Desenvolvimento Agrário, da Integração Nacional, da Educação, da Saúde, do Meio-Ambiente,
cada um deles com uma compreensão do que é desenvolvimento e do que é rural. Muitas vezes,
trata-se de visões antagônicas, como é vislumbrado, por exemplo, se fizermos uma comparação
entre as propostas do Ministério da Agricultura e no do Meio Ambiente. Em outros casos, há
públicos distintos para a ação dos ministérios, mas essa distinção é tensa e questionada (caso
do MDA e MAPA). Isso não é sem conseqüências para ações territoriais de um ou outro
ministério, uma vez que podem gerar políticas de direções opostas. Favareto (2006, p. 14)
aponta que
“os ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário, aqueles mais
diretamente reportados ao espaço rural, têm como seus principais programas,
iniciativas de caráter eminentemente setorial, respectivamente as políticas para
o agronegócio e para a agricultura familiar. O Ministério do Desenvolvimento
Agrário tem também sob sua responsabilidade um recém criado Programa
47
Territorial (Pronat), originário do desmembramento da linha infra-estrutura e
serviços do Pronaf, ao passo que a principal política territorial do governo federal
se encontra na alçada do Ministério da Integração Nacional e seu programa
voltado para as mesorregiões.”
Abramovay et al (2006a, p. 12) vão além e afirmam que as ações dos mais importantes
ministérios que se relacionam com o interior do País ignoram inteiramente a própria existência
dos colegiados territoriais. Os autores concluem que, menos que um problema relacionado às
dificuldades de relações entre agências de governo, há uma questão em torno do lugar que se
atribui às regiões rurais no desenvolvimento do país. O exemplo mais evidente dessa ausência
de horizonte estratégico é, para os autores, “a separação entre o Ministério das Cidades e o
Ministério do Desenvolvimento Agrário e a permanência das sedes dos pequenos municípios sob
o âmbito do Ministério das Cidades”. Segundo a interpretação que desenvolvem, a política
territorial desenvolvida no âmbito do MDA se volta
“muito mais à intenção de fortalecer a agricultura familiar do que ao
desenvolvimento do meio rural. Reproduz assim o traço essencial da política da
qual teve a intenção de distinguir-se – e que vigorou até 2003 - só que, agora,
numa escala que vai além do município. E sua capacidade de promover o
fortalecimento da agricultura familiar é muito limitada pela pulverização dos
recursos com que trabalha. Sua capacidade de contribuir à criação do ambiente
no qual as populações rurais possam ampliar suas oportunidades de reprodução
social é nula, pois esta preocupação encontra-se fora de seu horizonte
estratégico.” (Abramovay et al, 2006a, p. 12).
Rocha e Filippi (s/d) destacam ainda um tema relacionado à articulação vertical das
políticas de desenvolvimento territorial Segundo eles, na visão governamental não há hierarquias
estabelecidas entre os diversos níveis de colegiados de desenvolvimento rural sustentável.
Dessa forma, as relações entre o Condraf, os Colegiados Estaduais, os Conselhos Municipais e
as Comissões de Implantação das Ações Territoriais e/ou Conselhos de Desenvolvimento
Territorial ocorrem principalmente por meio de articulações políticas.
Os aspectos apontados pela literatura nos remetem, mais uma vez, ao desenho das
políticas, que parece não supor a articulação entre elas. A política da SDT, como já apontado em
outro momento do presente texto, supõe essa articulação, mas não especifica a forma e os
instrumentos para viabilizá-la. De alguma forma, ela parece ficar à mercê da “vontade política”
dos atores, sem instrumentos efetivos para implementa-las.
Mais recentemente, a criação dos “territórios da cidadania” parece ser uma iniciativa que
se propõe a essa articulação. Partindo dos territórios delineados pela SDT, supõe que eles
48
sejam o locus de articulação de uma série de políticas públicas, pertencentes à alçada de uma
grande quantidade de ministérios. Como se trata de um programa novo, ainda em fase de
implementação, não conseguimos localizar análises de seus resultados de forma a que eles
pudessem ser incorporados ao presente relatório. No entanto, parece haver nele também um
viés centralista, no qual os conselhos apenas cumpririam o papel de legitimar decisões dos
ministérios.
4.5 Desenvolvimento territorial e agricultura familiar: alguns silêncios
Os territórios de ação do MDA têm como um de seus critérios definidores a presença da
agricultura familiar. A própria origem da política territorial relaciona-se a um diagnóstico sobre as
insuficiências do Pronaf Infraestrutura e à busca de mecanismos institucionais para superá-las.
Para pensar o tema, é importante fazer algumas breves considerações sobre o
protagonismo do que vem se chamando agricultura familiar e que ganha corpo nos anos
1980/90, no bojo de uma discussão que envolve temas como projetos de desenvolvimento e o
lugar dos agricultores nele.
As lutas desses segmentos foram o móvel central para eles saíssem da invisibilidade a
que foram condenados ao longo da história do Brasil e ganhassem espaço político e
reconhecimento. O ideal de um modelo de desenvolvimento com base na agricultura familiar
emerge, já no final dos anos 80, em especial das lutas sindicais, talvez fruto de uma emulação
positiva com o crescimento das lutas por terra, do MST e a capacidade desta organização de
obter desapropriações, algumas políticas de apoio aos assentados (entre elas o Procera) e, já
em meados dos anos 1990, políticas especiais de educação, como é o caso do Pronera. É das
lutas dos agricultores familiares, em especial das grandes mobilizações configuradas nos Gritos
da Terra, que emerge a lei que é um marco na história do segmento: o Pronaf, em suas
diferentes modalidades e, mais recentemente, a lei da agricultura familiar que reconhece a
categoria, dando-lhe enquadramento profissional.
A política de desenvolvimento territorial tem por base a agricultura familiar realmente
existente, seja ela na forma de agricultores proprietários seja os que tiveram acesso à terra em
razão das ações das políticas de assentamento do governo federal, quilombolas, pescadores
etc. A literatura trata exaustivamente desse aspecto, mas, ao que nos parece, sempre tendo por
referência setores mais consolidados e dinâmicos, como muito bem acentuado por Cazella
49
(2006). No entanto, nos textos a que tivemos acesso, há um silêncio em torno de dois temas que
nos parecem centrais: os setores não organizados do meio rural e a questão fundiária.
No que se refere aos setores não ou pouco organizados, é necessário lembrar que uma
política voltada estritamente para o segmento da agricultura familiar existente não pode
desconhecer o fato de que, em muitos lugares, ela sobrevive à sombra e à margem dos grandes
empreendimentos agropecuários. Evidentemente a convivência entre eles até pode parecer
relativamente harmoniosa, na medida em que podem não estar disputando terras, mão de obra
etc, mas ela estará sempre condenada a um lugar secundário e a dificuldades de organização.
Essas mesmas dificuldades estão presentes em áreas extremamente pauperizadas, onde a
reprodução da família depende da constante migração de alguns de seus membros para
trabalhar em outros locais, por vezes por um tempo bastante longo. É muito difícil imaginar que
em condições de profunda desagregação social, acossada pela mobilidade constante de seus
membros, as comunidades afetadas possam se organizar para reivindicar políticas e participar
de associações, comissões, conselhos etc. Em situações como essa, possivelmente suas
necessidades e anseios acabam não sendo ouvidos, mantendo faixas de invisibilidade
importantes. Frente a esse quadro, coloca-se o desafio de pensar se (e em que situações)
mudanças e/ou construção de novos marcos legais poderiam afetar positivamente a inserção
desses segmentos, que muitos chamam de setor “periférico” da agricultura familiar.20
O outro ponto sobre o qual há um silêncio a bibliografia é em torno da dimensão
fundiária das políticas territoriais de desenvolvimento rural. Possivelmente, bastante
influenciados pela literatura européia, onde esse tema não aparece como questão central, ou
ainda com o olhar totalmente voltado para os agricultores familiares consolidados ou em
consolidação, todos os autores que percorremos não se detêm sobre o assunto. Ora, se a
agricultura familiar for bem sucedida, se os territórios onde ela se concentra forem espaços
efetivos de desenvolvimento, é possível prever que se gerará uma demanda por terra a longo
prazo. Essa possibilidade não descarta o fato de que os filhos dos agricultores vão se dirigir para
outras profissões que possam emergir no território, em função do próprio dinamismo que ele
venha a adquirir. Mas, como a literatura tem mostrado sobejamente, a alternativa do acesso à
No desdobramento futuro deste relatório vamos analisar várias leis, entre elas a que institui o Pronaf. No entanto,
é bastante conhecida a categorização de agricultores que a precedeu e orientou. Referimo-nos à divisão dos
agricultores familiares em consolidados, em consolidação e periféricos. O Pronaf se dirigiu, desde sua origem para a
faixa intermediária, buscando apoiá-la. No que se refere aos periféricos, atualizam a “profecia que se cumpre”, uma
vez que, considerados como periféricos, não recebem apoio de algumas políticas o que os mantém como tal e
mesmo acelera a migração, a desestruturação familiar, cultural etc.
20
50
terra está bloqueada, dadas as opções políticas de proteção à concentração fundiária e aos
limites legais existentes para desapropriação. Da mesma forma, uma das possibilidades de
impulsionar os chamados periféricos é garantir-lhes acesso à terra e condições para que se
consolidem enquanto agricultores.
Ao que tudo indica, a política territorial se coloca como uma política de dinamização de
territórios rurais, mas a partir de uma estrutura dada. Há um silêncio sobre uma política ativa de
intervenção sobre o território por meio de ações fundiárias que possam potencializar a
agricultura familiar (um silêncio que foi constatado em algumas experiências internacionais,
como é o caso da política territorial mexicana, apresentada no relatório anterior).
5. Considerações finais
Neste texto nos detivemos na análise da literatura brasileira, tentando buscar nela pistas
para pensar o que são atualmente os marcos legais que, de alguma forma, interferem nas
possibilidades de uma política territorial. Como apontado, há poucas referências diretas a esse
aspecto nos textos consultados, mas há temas interessantes suscitados nas análises. Um dos
raros autores que tocam diretamente na questão dos marcos legais são Abramovay et al
(2006a). Eles afirmam que a legislação brasileira oferece poucas opções de institucionalização
de articulações territoriais e se restringem às organizações que integram exclusivamente órgãos
públicos. As principais são os consórcios públicos21, as regiões integradas de desenvolvimento22
e as regiões metropolitanas. São pistas a serem seguidas, no desdobramento do presente
relatório.
Para além disso, é importante, a partir da análise de experiências concretas, por meio de
estudos de caso, buscar se ater mais particularmente em como os agentes sociais diretamente
envolvidos na política territorial percebem, no cotidiano, possíveis limites jurídico-legais.
De acordo com os autores, os Consórcios Públicos “são associações públicas ou pessoas jurídicas de direito
público ou privado e sem fins econômicos, formadas por entes federativos de diferentes níveis, com os quais a
União pode firmar convênios ou contratos de qualquer natureza. A União também poderá celebrar convênios com os
consórcios públicos com o objetivo de viabilizar a descentralização e a prestação de políticas públicas em escalas
adequadas. Os consórcios públicos estão sujeitos à fiscalização contábil, operacional e patrimonial pelo Tribunal de
Contas”.
21
Ainda segundo os autores citados, as regiões integradas de desenvolvimento são criadas por lei federal e visam a
articulação da ação administrativa da União, dos Estados e dos municípios de uma região. As RIDEs são
coordenadas por conselhos administrativos formados por representantes do governo federal, dos estados e
municípios que integram a região. Os recursos para o financiamento das RIDE podem ser oriundos do orçamento da
União, dos estados e dos municípios, de fundos constitucionais, de financiamentos de instituições financeiras
públicas, de operações de crédito externas ou de recursos de instituições internacionais.
22
51
Ao mesmo tempo, será importante uma análise cuidadosa de alguns instrumentos legais
que, desde logo, mostram-se, a partir do mapeamento bibliográfico que fizemos, cruciais para as
políticas de desenvolvimento territorial. Entre eles, mencionamos:
a) a constituição de 1988, no que se refere a abertura para políticas territoriais,
participação social, poderes e atribuições municipais;
b) a legislação fundiária, iniciando pelo Estatuto da Terra, mas atentando para as
mudanças por ele sofridas ao longo dos anos (em especial a lei agrária de 1993), de
forma a mapear as possibilidades que ela ainda oferece para a ampliação das
possibilidades da agricultura familiar;
c) os efeitos práticos, em termos de legislação sindical, associativa, de cooperativas
etc da definição de rural que domina a compreensão dos processos sociais;
d) a legislação referente à agricultura familiar, desde o Pronaf, até a lei da agricultura
familiar;
e) normatizações do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da SDT;
f)
resoluções do Condraf;
g) indicações dos Fóruns de Desenvolvimento Rural Sustententável;
h) os marcos jurídicos que incidem sobre a participação dos municípios na execução
de recursos do Pronat: Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lei de Responsabilidade
Fiscal etc.
i)
os marcos jurídicos que regulamentam as relações do Estado com Organizações
Sociais.
j)
As normas que institucionalizam a educação do campo.
Finalmente, gostaríamos de fazer alguns comentários sobre as possibilidades de
comparação com experiências internacionais. Elas são ricas e desejáveis, mas gostaríamos de
enfatizar que, pelo menos até este momento de nosso trabalho, torna-se impraticável comparar
marcos jurídicos em si mesmos. Considerando que as leis expressam determinadas relações de
poder, cristalizam situações e, de alguma forma, têm um poder de performar realidades, é
possível afirmar que, mais do que comparar marcos jurídicos, seria o caso de comparar
tradições legais e, principalmente, a forma e os contextos em que determinadas relações sociais,
determinados anseios de mudança assumiram um formato legal e, dentro das tradições de seus
países, como esses anseios foram equacionados.
52
Sob essa perspectiva, o desdobramento do trabalho aponta mais para um esboço de
sociogênese dos marcos legais de que dispomos, de forma a ter elementos para pensar uma
história social e política das questões que deram origem ao seu aparecimento.
53
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