guia de estudos cnsc - 1985 - TEMAS 12 – Direitos Humanos
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GUIA DE ESTUDOS CNSC - 1985 TEMAS 9 – AMÉRICA LATINA Diretoras: Lídia Maria de Abreu Generoso Natália Ribeiro Antolevich Diretores Assistentes: Felipe Simoni Rafaela Grizzo Ragazzi Raphael Moreira CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina ÍNDICE I. CARTA DE APRESENTAÇÕES ............................................................................................ 4 II. BREVE HISTÓRIA COLOMBIANA ...................................................................................... 6 TEMPOS PRÉ-COLOMBIANOS E SOB O IMPÉRIO ESPANHOL ([...] – 1781) ........... 6 II.1. II.1.1. ANTES DE COLOMBO ............................................................................................... 6 II.1.2. CHEGADA DOS ESPANHÓIS .................................................................................... 6 II.1.3. AS INSTITUIÇÕES, A ORGANIZAÇÃO E A PRODUÇÃO ..................................... 7 III. PÁTRIA BOBA E NOVA PÁTRIA (1781-1819) .................................................................... 9 IV. GRANCOLÔMBIA (1819-1830) ........................................................................................... 13 V. LA NUEVA NOVA GRANADA E O SURGIMENTO DOS PARTIDOS (1830-1849) ....... 17 VI. LIBERAIS E REVOLUCIONÁRIOS (1849-1885) ............................................................... 21 VI.1. A METADE DO SÉCULO E O NASCIMENTO DE UMA NOVA GERAÇÃO POLÍTICA ..................................................................................................................................... 21 VI.2. UM RENASCIMENTO................................................................................................... 22 VI.3. PRIMEIRO CICLO DE REFORMISMO LIBERAL...................................................... 22 VI.4. UMA NÃO TÃO NOVA POLÍTICA ECONÔMICA .................................................... 23 VI.5. A QUESTÃO INDÍGENA .............................................................................................. 23 VI.6. OBANDO E AS DIVISÕES LIBERAIS ........................................................................ 25 VI.7. PERÍODO CONSERVADOR ......................................................................................... 27 VI.8. REPÚBLICA RADICAL ................................................................................................ 30 VII. A REGENERAÇÃO E O POSITIVISMO COLOMBIANO (1885-1904) ............................ 37 VII.1. NÚÑEZ: ORDEM E PROGRESSO? .............................................................................. 37 VII.2. A REVOLUÇÃO PANAMENHA: O ESCÂNDALO DA COMPLICIDADE IANQUE 45 VIII. ASPECTOS POLÍTICOS E ECONÔMICOS DO INÍCIO DO SÉCULO XX ...................... 46 VIII.1. REYES A CORREÇÃO DOS EXCESSOS DA REGENERACIÓN: O LEGADO DE RAFAEL 46 VIII.2. AS ÚLTIMAS DÉCADAS DA HEGEMONIA CONSERVADORA ........................ 49 VIII.3. CAFÉ, TECIDO, PETRÓLEO E BANANA ............................................................... 52 IX. X. A REPÚBLICA LIBERAL (1930-1946) ................................................................................ 54 IX.1. A REVOLUCIÓN EN MARCHA ..................................................................................... 56 IX.2. PAUSA EM CASA E GUERRA NO EXTERIOR ......................................................... 61 IX.3. FIM DA REPÚBLICA LIBERAL .................................................................................. 64 A GRANDE VIOLÊNCIA ..................................................................................................... 68 2 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina X.1. O 9 DE ABRIL .................................................................................................................... 69 X.2. A COLÔMBIA APÓS O 9 DE ABRIL .............................................................................. 71 X.3. O GOVERNO ROJAS PINILLA ........................................................................................ 75 XI. COLÔMBIA ATUAL (DE 1957 ATÉ HOJE) ....................................................................... 79 XI.1. PANORAMA DA VIOLÊNCIA ..................................................................................... 79 XI.2. AS GUERRILHAS .......................................................................................................... 86 XI.2.1. AS FORÇAS ARMADAS REVOLUCIONÁRIAS DA COLÔMBIA ................... 89 XI.2.2. O EXÉRCITO DE LIBERTAÇÃO NACIONAL (ELN) ........................................ 92 XI.2.3. O EXÉRCITO POPULAR DE LIBERTAÇÃO ...................................................... 93 XI.2.4. O MOVIMENTO ARMADO QUINTÍN LAME (MAQL) ..................................... 94 XI.3. XII. O MOVIMENTO 19 DE ABRIL (M-19) ........................................................................ 95 XI.3.1. O SURGIMENTO .................................................................................................... 96 XI.3.2. O ASSALTO AO CANTÓN NORTE ....................................................................... 98 XI.3.3. A EMBAIXADA DA REPÚBLICA DOMINICANA ............................................ 99 XI.3.4. OUTRAS AÇÕES A MENCIONAR ..................................................................... 101 O NARCOTRÁFICO ............................................................................................................ 103 XIII. A PAZ PRESIDENCIAL ...................................................................................................... 106 XIII.1. UMA BREVE HISTÓRIA DAS NEGOCIAÇÕES DE PAZ ANTES DE BENTACUR CUARTAS 106 XIII.2. O GOVERNO DO PRESIDENTE BELISARIO BETANCUR CUARTAS E OS ACORDOS DE PAZ .................................................................................................................... 109 XIV. BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 114 3 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina I. CARTA DE APRESENTAÇÕES Caros delegados, uma de nossas maiores motivações na construção desse comitê, mesmo com todos os desafios que ele impôs, era inovar, trazer conhecimento novo, experiências novas. As questões colombianas são tão ricas em abordagens e perspectivas, que até então não foram muito exploradas nas simulações, ou mesmo nas áreas de pesquisa brasileiras. Até agora, a jornada pela história de um país tão peculiar, tão próximo de nós ainda que saibamos sobre ele tão pouco, tem sido fascinante. Sejam bem vindos à nona edição do TEMAS. A equipe do Conselho Nacional de Segurança da Colômbia segue se apresentando abaixo. Queridos delegados, me chamo Lídia Generoso, tenho 18 anos, sou a diretora mais nova de vocês. Curso o quarto período de História na Universidade Federal de Minas Gerais. Participo de simulações há quase cinco anos, e posso dizer sem sombra de dúvida que cada uma das experiências foi extremamente enriquecedora. Meu gosto por gabinetes pode ser claramente confirmado por muitas delas. Espero, com essa proposta, fazer da experiência de vocês uma tão proveitosa quanto cada uma das minha foram. Aguardo ansiosamente por vocês na Casa de Nariño. Até logo! Senhores, me chamo Natália Ribeiro, 25 primaveras e sou graduada em História pela UFMG (e, se alguma entidade com poderes cósmicos e fenomenais me ajudar, em breve serei mestranda). Estou na vida ModSim desde 2003 e estamos ai até hoje sem data de validade. Essa será a minha quarta participação no glorioso TEMAS. Tenho gosto por Gabinetes, principalmente militares e tenho certeza que o CNSC será um sucesso, ou pelo menos faremos tudo para que seja! Nos vemos em Bogotá. Caros delegados, meu nome é Raphael Moreira, tenho 24 anos e estudo Relações Internacionais no Uni-BH. Minha única participação em simulações antes do TEMAS foi na sexta edição do Mini-ONU. Optei pelo CNSC por ser um comitê onde posso reunir dois dos meus maiores interesses: América Latina e Estudos Estratégicos. Espero que façamos dessa oportunidade uma ótima experiência. Até mais! Meu nome é Rafaela Grizzo Ragazzi, e atualmente curso Relações Internacionais na Pontifícia Universidade de São Paulo. Iniciei minha experiência no universo das simulações em 2008, e esta me tem sido muito enriquecedora dentro e além do âmbito acadêmico. Espero que a experiência neste comitê lhes proporcione maior conhecimento e familiaridade com a complexa 4 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina problemática do cenário político colombiano, ainda em destaque nos dias atuais.Estou ansiosa para conhecê-los e tenho certeza de que a experiência, lições e amizades extraídas de nosso tempo juntos nesta edição marcarão e transcenderão os quatro dias desta simulação de renomada excelência acadêmica. Com carinho, Rafaela. Meu nome é Felipe Simoni, mas sintam-se à vontade para me chamar de Husky. Estudo Relações Internacionais na PUC-Minas e tenho participado do TEMAS desde a sétima edição. Como prefiro simular em formato "gabinete de guerra", o CNSC foi minha escolha nesta edição em função do grande espaço que este gabinete tem para explorarmos questões estratégicas. Tenho certeza de que esse gabinete será excepcional, nos vemos em breve. Agradecemos por ter escolhido o nosso comitê e esperamos que este guia seja útil em seus estudos! E isso é tudo, pessoal! 5 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina II. BREVE HISTÓRIA COLOMBIANA II.1. TEMPOS PRÉ-COLOMBIANOS E SOB O IMPÉRIO ESPANHOL ([...] – 1781) II.1.1. ANTES DE COLOMBO Uma das primeiras evidências de atividade humana pode ser encontrada próxima à atual Bogotá, onde foram encontrados sepulcros e artefatos funerários anteriores ao ano de 10000 a.C. Não há registros, contudo, de grandes civilizações que puderam ter habitado o que hoje conhecemos por Colômbia. Basicamente, entre todos os pequenos grupos tribais que por ali se encontravam mais notavelmente os Tairona e os Muiscas. Enquanto os Tairona podiam ser considerados um povo urbanizado, os Muiscas se organizaram mais no sentido político e territorial próximo à chegada espanhola. É ao povo Muisca que se atribuem as principais origens do mito de “El Dorado” pois o ouro era um metal muito presente no cotidiano, confeccionando tanto ferramentas e utensílios como armas, lâminas e também eram amplamente empregados nos rituais. Os Muiscas eram um povo agricultor e, embora sua tecnologia não se igualasse à tecnologia Tairona, também produziam tecidos de algodão (que obtinham por meio do comércio) e esculturas. Politicamente os Muiscas não possuíam governo consolidado, embora as organizações fossem de clãs até Confederações. A chegada dos espanhóis se deparou com duas confederações principais, uma localizada onde hoje é Bogotá, cujo líder era chamado Zipa, e outra a noroeste, dirigida pelo chefe Zaque. As regras de sucessão eram hereditárias, não sendo herdado o poder pelo primogênito, mas pelo sobrinho mais velho. Há motivo para se acreditar que caso os espanhóis não intervissem, um dos dois líderes absorveria as posses do outro formando um reino Muisca unido. II.1.2. CHEGADA DOS ESPANHÓIS Após a chegada de Colombo inúmeras expedições foram realizadas ao Caribe e mais tarde no início do século XVI a fim de buscar pérolas, ouro, indígenas e aventuras, sendo a primeira tentativa de colonização no golfo do Urabá (próximo à fronteira com o Panamá) o que iniciou também expedições ao interior do continente, alcançando-se o oceano pacífico em 1513. Contudo, poucos assentamentos se mostraram definitivos, sendo Santa Marta a primeira cidade espanhola, fundada em 1526, próxima à desembocadura do rio Magdalena (território Tairona) servindo, além 6 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina de tudo, como ponto de partida para a conquista dos muiscas. Catargena foi fundada a oeste do mesmo rio em 1533 e se revelou um ponto muito mais interessante, tomando o lugar de Santa Marta enquanto porto e forte. A partir da região ocidental da Venezuela a coroa espanhola havia cedido espaço ao banco alemão Wesler, como pagamento, que enviou expedições ao oeste dirigidas por Nicolás Federmann que cruzou dois braços de cordilheira antes de encontrar a savana de Bogotá, onde outros espanhóis já haviam chegado. Gonzalo Jiménez de Quesada, em 1536, saiu liderando de Santa Marta uma expedição para conquistar os muiscas, batalhas facilmente ganhas (mesmo que com a fuga do Zipa vigente) seguindo para norte onde o Zaque também não impôs muita resistência. Todo esse movimento permitiu que os espanhóis se apoderassem de grande quantia de ouro. O Zipa seguinte realizou uma aliança com os espanhóis para proteger seu território de tribos rivais, mas morreu sofrendo a tortura administrada pelos seus novos aliados que buscavam tesouros. Em 1538 Jiménez de Quesada funda Bogotá sob o nome de Nova Granada(futuramente chamada Santa Fé de Bogotá) e a fez capital do território conquistado. Poucos meses depois, além de Federmann, encontrou uma expedição ordenada do Sul por Pizarro. Diferente do esperado, esse encontro não acabou em um sangrento conflito civil. Pelo contrário, os três grupos concordaram em submeter suas conquistas à coroa espanhola. II.1.3. AS INSTITUIÇÕES, A ORGANIZAÇÃO E A PRODUÇÃO A estrutura institucional colonial seguiu os modelos ibéricos centralistas onde o território era governado pelo Rei e seus conselheiros da metrópole. O Conselho das Índias era o corpo mais importante servindo como órgão legislativo, tribunal administrativo e corte de apelação. No novo mundo, Vice-reis dispunham de uma audiência com funções análogas (menos poderosas) às do Conselho das Índias. Até o século XVIII a Colômbia fazia parte do vice-reinado do Peru, mas em função da grande distância entre Lima (capital do vice reinado do Peru) e Bogotá, foi denominado um Capitão Geral para a Nova Granada. Em 1717 Nova Granada foi elevada à condição de vice-reinado, se consolidando assim apenas em 1739 com o fim de estabelecer uma melhor influência e mais formal na região do Caribe e ao norte da América do Sul. Em 1777, a Venezuela se eleva a Capitania Geral com sua capital em Caracas, fazendo com que o poder do vice-rei de Nova Granada fosse tão pouco em Caracas como antes fora o do vice-rei do Peru em Bogotá. Os membros do cabildo não eram escolhidos de forma democrática sendo sumariamente 7 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina nomeados. Pelo menos deveriam se tratar de residentes locais, fossem espanhóis ou crioulos. A corrupção era uma prática muito comum seja em função de preferências e influências, seja pela necessidade de “adaptações locais”. A corruptibilidade e o fato de que os cabildos eram compostos por locais configuravam os únicos aspectos de representatividade desse sistema. O maior atrativo de Nova Granada era, sem dúvida, o ouro. Havia mão de obra e outras produções, mas nem a mão de obra escrava, nem a tradição da monocultura vingou muito neste vice-reinado. Os indígenas eram controlados por meio de seus chefes a quem os espanhóis davam ordens se estabelecendo como uma classe dominante. Por outro lado, o sistema de Encomiendas era amplamente utilizado, no qual índios eram entregues a um “encomendero” responsável por “civilizá-los” e guiá-los, em troca, os índios pagariam tributos a seus protetores. A coroa espanhola chegou a proibir o pagamento desses tributos com trabalho, embora essa lei fosse constantemente ignorada. Após a abolição desse sistema, as relações de poder se mantiveram, mesmo que não oficialmente. Não havia demanda externa para os produtos de Nova Granada, exceto o ouro. A maior parte da produção era agrícola e pecuária, focada para o consumo interno e para a subsistência. Mesmo que alguma produção por parte de artesãos se desse em Bogotá, o papel econômico da capital era quase parasitário. O nordeste do território contava com produção têxtil em pequena escala para consumo local e não representou muito. Ao se tratar de transporte, as cordilheiras sempre se impunham como obstáculo, elegendo o transporte fluvial como favorito. Ao mesmo tempo, o porto de Catargena se mostrava extremamente bem posicionado como entreposto comercial do istmo do Panamá ou como porto de escoamento do ouro. A influência da igreja também foi peculiar. A perseguição da inquisição condenou, em todo o período colonial, cinco ou seis indivíduos à fogueira enquanto mais de cem casos foram levantados no México e Peru. Ordens missionárias (em especial os jesuítas) ficaram responsáveis pelo cuidado com os poucos indígenas semi-assentados que se encontravam a nordeste. Como a maioria dos serviços sociais também eram papel da igreja, bem como a educação, houve épocas onde havia um membro do clero para cada 750 pessoas, sendo que estes membros se concentravam em centros urbanos. Também se criaram escolas e instituições de educação superior voltadas para os filhos da elite, como as universidades em Bogotá controladas pelos jesuítas. Na Segunda metade do século XVIII Nova Granada era um centro intelectual nas Américas. A criação de novos líderes e o surgimento das primeiras ideias de independência podem ser atribuídos à formação dessa elite intelectual e aos atrativos que a fauna e a flora representaram para as ciências naturais. 8 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina III. PÁTRIA BOBA E NOVA PÁTRIA (1781-1819) A independência das colônias espanholas na América aconteceu em um mesmo período de tempo em vários locais do continente. Seus motivos principais foram a resistência às restrições impostas às atividades econômicas (impostos altos, monopólios, exclusivo metropolitano), o sentimento de identificação dos criollos com sua terra natal, não com a metrópole, a constante discriminação política e comercial dos espanhóis para com aqueles nascidos nas colônias, a insistência espanhola em manter o modelo monarquista absoluto e restringir a participação política. No Vice-Reino de Nova Granada não foi tão diferente assim, salvo alguns detalhes; o pouco dinamismo econômico fez com que por muito tempo as restrições econômicas não incomodassem tanto aos habitantes dali, e o forte isolamento geográfico entre as regiões do ViceReino, com poucas estradas e conexões que dificultavam o intercâmbio de informações e produtos. (BUSHNELL, 2007) Um dos primeiros antecedentes importantes da independência de Nova Granada foi, sem dúvida, a Rebelião dos Comuneros, um movimento popular contra o aumento dos impostos, aprovado pela Espanha para arcar com gastos extras com apoio à independência da Angloamérica. O aumento, direcionado à várias áreas do comércio, intensificou-se em relação aos monopólios do tabaco e da aguardente, causando manifestações semelhantes ao Boston Tea Party que contaram com a queima do tabaco que seria vendido. O povo passou a estabelecer comunas informais, das quais declaravam capitães gerais, também de maneira informal. Milhares marcharam até Bogotá para manifestar, entoando vivas ao rei e morte ao mal governo. As negociações não tiveram bons resultados, e ainda assim, a maioria dos capitães gerais – homens de classe social mais alta escolhidos pelo movimento popular – optam por abandonar a revolta. Entre os poucos que a mantiveram, destacou-se José Antonio Galán, ele e todos que lutaram ao seu lado foram assassinados e supliciados, enquanto aqueles que abandonaram a Revolta dos Comuneros puderam apenas retomar suas vidas cotidianas. (BUSHNELL, 2007) De qualquer maneira, a Revolta dos Comuneros teve um importante papel, já que apresentou à Espanha o potencial revoltoso do Vice-Reino de Nova Granada, mostrando a força popular e unificando parte da população em torno de um objetivo. Estima-se que, em eu seu auge, a Revolta dos Comuneros tenha englobado um terço do Vice-Reino. Esse episódio foi, mais tarde, incorporado ao folclore patriótico. (BUSHNELL, 2007) Um outro precursor importante da independência foi Antonio de Nariño, um homem abastado que costumava manter livros subversivos – Rousseau, por exemplo – em sua casa, onde 9 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina também mantinha encontros e reuniões para discuti-los. O incômodo da coroa com Antonio de Nariño atingiu seu ápice quando esse imprimiu, em sua casa, versões da Declaração dos Direitos do Homem francesa, e após distribuir alguns e vender outros, foi acusado pela Coroa, e condenado à 10 anos de reclusão na África e exílio permanente da América. Conseguiu escapar, entretanto, e foi à Europa buscar apoio para a independência de Nova Granada. Voltou a sua terra natal e é novamente preso pela inquisição. Em 1810, quando os movimentos de independência começaram, Nariño se encontrava preso em Cartagena. (BUSHNELL, 2007) É imprescindível considerar o impacto de fatores externos na independência da Hispanoamérica, em especial o momento de crise da Monarquia Espanhola, causado pelas Guerras Napoleônicas. Na Espanha surge a primeira Junta provisória, a de Sevilha, que jurava fidelidade ao Rei e propunha governo autônomo até que esse retornasse ao poder. As colônias passaram a reivindicar também para si a justiça do auto governo – nas palavras de um outro ícone da independência, Camilo Torres –, insubordinando-se em relação à Junta de Sevilha. Nesse sentido, os avanços napoleônicos significaram avanços da autonomia das colônias espanholas. (BUSHNELL, 2007) Em 1810 estabeleceu-se a primeira Junta na região andina, a junta de Cartagena, seguida pelas de Quito, Caracas e Bogotá. Todas elas juravam, a princípio, fidelidade ao Rei. Entretanto, nenhuma das Juntas andinas eram reconhecidas unanimemente, nem mesmo a de Bogotá sobre Nova Granada, especialmente por ter sido precedida por Cartagena. A pobre interligação entre as províncias do anterior Vice-Reino de Nova Granada e os problemas de infraestrutura prejudicavam a união e acentuavam competições regionalistas por poder e fragmentações provinciais constantes. Pouco mais tarde, fundou-se o que se chamou Províncias Unidas de Nova Granada, uma tentativa de união federalista que, por outro lado, sequer incluía a Província de Bogotá. Seu primeiro presidente foi Camilo Torres. Por outro lado, a Província de Bogotá fundou a Cundinamarca, cujo primeiro presidente foi Antonio Nariño, que tinha um projeto de governo mais centralizador. A Espanha, por sua vez, não se agradava nem um pouco das pretensões autônomas das colônias. Temendo uma possível reconquista espanhola, Nariño, tentou sem sucesso subjugar outras províncias ao mando da Cundinamarca e unificar em torno dela as várias Províncias de Nova Granada, desencadeando com isso uma série de guerras civis. Em 1814, tropas federadas das Províncias Unidas tomaram Bogotá com a ajuda do venezuelano Simón Bolívar, que era ele mesmo defensor de um governo centralizado, mas devia favores às Províncias Federadas. Em função de constantes instabilidades e conflitos internos, convencionou-se chamar o período entre 1810 e a Reconquista Espanhola de Pátria Boba. (BUSHNELL, 2007) 10 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Foi ao longo da Pátria Boba que começaram também as primeiras declarações de independência da Espanha, que a esse ponto, já eram apenas tecnicistas já que as Províncias operavam como independentes de fato. Decisões importantes foram tomadas de maneira autônoma: algumas províncias aboliram a Inquisição, outras aboliram a escravidão, Cartagena declarou a abertura do maior porto de Nova Granada às nações amigas, algumas outras províncias aboliram a cobrança de impostos específicos aos indígenas e incluíram-nos nas cobranças de impostos tradicionais. É importante ressaltar que em poucos casos houveram mudanças sociais profundas nessas novas reformas e medidas, e que a maioria delas não alterava profundamente a ordem social vigente. (BUSHNELL, 2007) A Pátria Boba, com todas suas falhas internas e instabilidades, não resistiu à Reconquista Espanhola. Parte disso interliga-se com a História da Venezuela durante o período. Em 1812, a Primeira República da Venezuela termina, após crises regionais e um forte terremoto que destruiu a capital, Caracas. Pouco depois, Bolívar fundou com apoio de Nova Granada a Segunda República da Venezuela, que durou, também, pouco tempo até ser tomada pelos realistas em 1814, o que fez Bolívar voltar à Nova Granada. Ao longo daquela década, Simón Bolívar passou por Nova Granada e Venezuela constantemente, aumentando os laços entre as localidades. (BUSHNELL, 2007) Em 1816, a Reconquista Espanhola já tinha dominado a maioria das grandes cidades de Nova Granada, espalhando terror, liquidando os subversivos e patriotas para minar as pretensões independentistas. Foi Bolívar quem em 1819, por não conseguir sozinho libertar a Venezuela, foi para Nova Granada e juntou-se aos patriotas que conseguiram escapar da repressão da Reconquista, para juntos lutarem pela liberdade, com apoio da população descontente. Em agosto do mesmo ano Bolívar e seus apoiadores entraram em Bogotá, e paulatinamente foram tomando o restante de Nova Granada. Em 1821 tomaram Cartagena de volta; com a ajuda dos Bolivarianistas colombianos, no mesmo ano, libertou-se a Venezuela; também em 1821 o Panamá fez sua própria revolução de independência; a do Equador tinha começado em 1820, sendo esse de fato liberto em 1822. (BUSHNELL, 2007) Os confrontos pela independência tiveram impactos diferentes em diferentes países andinos. Enquanto na Venezuela os conflitos diretos foram mais intensos e longos, e portanto houveram maiores impactos na economia e na produção agrícola, além do fortíssimo impacto demográfico. Na Colômbia, por outro lado, os conflitos diretos foram mais esporádicos e esses impactos existentes, porem menores. (BUSHNELL, 2007) Houveram grandes libertações de escravos por mérito no serviço militar, e também grandes fugas performadas em momentos de crise. Por outro lado, se analisarmos o período, pouquíssimo 11 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina mudou no que tange a desigualdade social, que se manteve como fortíssima característica da sociedade de Nova Granada, na qual uma fina e estreita classe alta exercia dominação sobre uma grande massa pobre que não logrou acesso à educação ou à participação política após a independência. Além disso, nem todos receberam recompensas e melhorias de condições de vida proporcionais à suas participações na independência, e boa parte das desigualdades e discriminações raciais se mantiveram. (BUSHNELL, 2007) 12 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina IV. GRANCOLÔMBIA (1819-1830) Pouco depois da libertação de Bogotá o Congresso de Angostura determinou que todo o território que anteriormente formava o Vice-Reino de Nova Granada se tornaria uma república apenas, a República da Colômbia (mais tarde diferenciada da república colombiana sendo chamada de Grancolômbia). Ainda que, naquele momento, muitas das regiões ainda estivessem sob domínio espanhol, simbolicamente essas já estavam representadas no Congresso, por exemplo. Poucos anos depois, a libertação das demais regiões com o apoio militar e político de Bolívar tornaram possível colocar em prática as primeiras experiências nesse sentido. Angostura estabelecia, de já, que houvesse um governo central e uma vicepresidência que seriam responsáveis pelo governo de Nova Granada e Venezuela, e que os exércitos dos dois países fossem combinados – o que na prática já acontecia. A Grancolômbia gozou de grande apreço na Hispanoamérica, e teve papel importante na independência de seus países vizinhos e na libertação de algumas de suas regiões ainda cativas do domínio espanhol. (BUSHNELL, 2007) A fundação da Grancolômbia enfrentou alguns desafios: primeiramente, quando acordada no Congresso de Cúcuta, em 1821, não contou com a participação direta das regiões sob domínio realista; em segundo lugar, enfrentou os desafios impostos pelo embate entre centralistas e federalistas, que já era intenso e perceptível desde a década anterior. A proposta centralista triunfou, por apoio expressivo à Bolívar e também por ser essa a melhor alternativa para manutenção e vitória na guerra contra a Espanha. A descentralização do governo haveria de ser rediscutida, se necessário, 10 anos depois, em segurança. A República contaria com separação de poderes, e o voto seria censitário e indireto, através de assembleias eleitorais. Para agilizar a implementação do sistema, o Congresso de Angostura elegeu os primeiros Presidente e Vice Presidente, sendo eles Bolívar (venezuelano) e Santander (novo-granadino). (BUSHNELL, 2007) O Congresso de Cucúta promoveu várias reformas liberais, em defesa das liberdades individuais econômicas, religiosas e políticas; além disso, o Congresso aprovou uma Lei de Ventre Livre para toda a Grancolômbia, ainda que não abolisse a escravidão dos nascidos antes. As reformas fiscais aboliram os impostos específicos para os índios, incorporando-os ao sistema fiscal aplicado aos demais habitantes, que ficou fixado em 10% da produção da terra ou da manufatura. Uma reforma de impacto considerável foi o confisco de monastérios e suas posses, transformadas em espaços para a educação básica e secundária, por outro lado, as ordens femininas foram mantidas normalmente. Outras medidas importantes foram a abolição da Inquisição e da censura prévia, ainda que não as legislações que definiam heresias. Uma justificativa para a limitação das 13 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina mudanças e reformas apresentada por Bushnell é o caráter minoritário dos liberais na sociedade, ainda que fortemente presentes no Congresso; não exerciam tanta influência sobre a população quanto o clero, por exemplo, e por causa de manifestações populares e reações negativas tinham seu escopo de ação limitado. (BUSHNELL, 2007) Ficou decidido que, já que havia uma guerra a ser vencida contra a Espanha, o VicePresidente Santander, devoto dos princípios constitucionais e republicanos, ficaria responsável pela administração civil, enquanto Bolívar continuaria a liderar os exércitos da Grancolômbia. Defensor das liberdades individuais, nunca foi contra a liberdade de imprensa ou fechou a imprensa de oposição, apesar de escrever duras réplicas e postá-las na prensa nacional como se fossem anônimas. Uma de suas medidas mais controversas foi o patronato sem aceitação direta Papal, medida que era conflitiva com o espírito liberal da República Colombiana, mas que refletia certa insegurança em relação à Igreja. (BUSHNELL, 2007) Na libertação do Equador e mais tarde na do Peru, as tropas de Bolívar e sua influência tiveram fortíssimo impacto, tendo esse se tornado incomparável em relação aos demais líderes latinoamericanos. Um sacerdote colombiano do século XX se dirigiu a Bolívar como se fosse uma divindade: << Pai nosso, Libertador Simón Bolívar que está nos céus da Democracia Americana: queremos invocar teu nome1. (BUSHNELL, 2012, p. 74) Ao longo da história latinoamericana, muitos outros ainda se refeririam a ele nesses termos. Do ponto de vista diplomático, a Grancolômbia foi aceita mais rapidamente que as demais nações; reconhecida pelos Estados Unidos em 1822, pela Grã-Bretanha em 1825, com arcebispos indicados pelo Papa em 1827 (o que relativamente equivaleria a um reconhecimento). Além disso, foi a Grancolômbia quem convocou o Primeiro Congresso Interamericano, ainda que esse não tenha conseguido tanto sucesso assim por questões logísticas. A economia ia razoavelmente bem, apesar dos fortes impactos das guerras de independência. (BUSHNELL, 2007) Entretanto, na Venezuela, construía-se um forte sentimento de que o dinheiro não era tão bem empregado assim, de que os liberais no comando do país não respeitavam a Igreja como deveriam, de que o governo centralizado não contava com grande participação Venezuelana, que 1 Tradução livre de: Un sacerdote colombiano del siglo XX se dirigió a Bolívar como si fuera una divinidad: <<Padre nuestro, Libertador Simón Bolívar que estás em los cielos de la Democracia Americana: queremos invocar tu nombre>> 14 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina construíram uma forte animosidade ao longo dos anos, em especial nas grandes cidades. Os venezuelanos, ainda que participassem de maneira tímida do Congresso e dos cargos públicos, eram maioria nos grandes comandos militares; ainda assim, isso não lhes parecia suficiente participação. Também no Equador, que não participava de cargos políticos expressivos ou militares, e que era um país extremamente religioso, a insatisfação crescia. Falava-se de reformas que garantissem mais autonomia às províncias. (BUSHNELL, 2007) Mais tarde, após a reeleição de Santander e Bolívar, surgem entre os venezuelanos as primeiras revoltas que mais tarde causariam a separação da Grancolômbia em algumas das formações políticas que conhecemos hoje. O estopim teria sido a convocação de um dos maiores líderes militares, Paéz, para que fosse avaliado e julgado pelo congresso por acusados abusos de guerra, entre eles obrigar civis de vilarejos a participarem das milícias. Páez se revoltou, e junto com ele grande parte da Venezuela, o que motivou também o aumento dos pedidos por autonomia equatorianos. Todos clamaram por Bolívar, que estava no Peru, para que esse resolvesse os problemas, e alguns equatorianos pediram até mesmo por uma ditadura bolivariana. (BUSHNELL, 2007) Quando Bolívar chegou, não condenou Páez. Ainda, passou a acreditar que Santander havia se precipitado nas reformas liberais, e também que precisava reassumir de certa maneira a liderança política. Na época, Bolívar havia escrito uma Constituição para a Bolívia, que era razoavelmente baseada no direito romano – a existência de um presidente vitalício, líder “moral”, sempre indicado pelo anterior e dotado de poderes constitucionalmente limitados, a existência de censores, de tribunos – e propõe, de certa forma, que essa fosse adotada na Grancolômbia. Foi à Venezuela e perdoou os revoltosos, acabando com as revoltas, agindo como liderança política que era. Suas divergências com Santander e com os liberais de Nova Granada cresceram exponencialmente daí em diante. (BUSHNELL, 2007) Quando surgiram os primeiros pedidos para que fosse chamada uma nova Convenção Nacional, das proporções da de Cúcuta, para revisão constitucional, Bolívar logo se juntou aos pedidos. Essa foi marcada para o início de 1828. Até que a data chegasse, as divergências entre Santander e Bolívar já haviam alcançado fortíssimas proporções; Bolívar chamava a Santander de ingrato, enquanto esse lhe dizia que era um perturbador da república que subvertia as instituições nacionais e democráticas. Santander buscava a manutenção da constituição, enquanto Bolívar defendia a presidência vitalícia e algumas reformas constitucionais. A Convenção seria desfeita quando Santander propôs a implantação do federalismo, após ter se aliado a alguns venezuelanos 15 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina que o defendiam, a os bolivarianos abandonaram a reunião para que não houvesse Quorum para aprovação dessa proposta. (BUSHNELL, 2007) Após esse desfecho, inúmeras reuniões de líderes políticos foram feitas em Bogotá e em toda Grancolômbia; a voz majoritária dizia que era melhor uma ditadura bolivariana que o atual estado de desordem e desavença pública. De 1828 em diante essa foi decretada e inúmeros decretos passaram a ser aprovados pelo presidente, sem serem enviados ao Congresso. Esses eram basicamente reversões das reformas liberais de Santander, aplicadas às mais variadas áreas: aumentou o apoio à Igreja, reverteram-se algumas reformas tributárias, tudo isso sob o baluarte da garantia da ordem nacional e diminuição das tensões. O cargo de Vice-Presidente foi anulado, e os apoiadores de Santander foram retirados de seus cargos na administração pública. Segundo Bushnell, a repressão política não foi significativa até que, mais tarde naquele ano, um grupo de jovens tentou assassinar o presidente. 14 líderes políticos foram mortos por causa do atentado, e muitos dos apoiadores de Santander, inclusive ele mesmo, foram exilados da Grancolômbia. (BUSHNELL, 2007) Apesar disso, diversas oposições se firmaram ao longo de 1828 e 1829: revoltas em Cauca, insatisfação em Caracas com as medidas de apoio à Igreja, insatisfação venezuelana com os aumentos dos impostos que prejudicavam seus agroexportadores e beneficiavam a manufatura têxtil equatoriana, entre outras menores. Em janeiro de 1830 uma nova Convenção Nacional aconteceu, e enquanto isso o país se deteriorava. A Venezuela de Paéz já não participava de Grancolômbia, e em 1830 declarou-se independente dessa de fato, o que não é tão mal recebido por muitos neogranadenses; com uma oposição generalizada à reanexação por vias que não as pacíficas, a Venezuela se consolidou como independente. Essa mesma convenção aprovou uma anistia aos apoiadores de Santander que tinham sido exilados. Mais tarde, em março, Bolívar resignou a presidência, deixando a cargo da Convenção Nacional a escolha do novo presidente, Joaquín Mosquera, e vice-Presidente, Domingo Caicedo. (BUSHNELL, 2007) Os novos presidentes trouxeram apoiadores de Santander para o governo, mas não foram capazes de manter o que restava do país unido; a Venezuela negou-se a negociar, e ainda em 30 o Equador proclamou-se independente e convidou Bolívar para governá-los. Esse, negou-se a fazê-lo por razões pessoais, e morreu, de tuberculose ou envenenamento crônico por arsênico 2, diverge-se, mais tarde naquele ano (17 de dezembro), a espera de uma embarcação que o levasse para a Europa. (BUSHNELL, 2007) 2 Disponível em: http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/southamerica/7690928/Simon-Bolivar-died-of-arsenicpoisoning.html. Acessado em 12/12/2012. 16 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina V. LA NUEVA NOVA GRANADA E O SURGIMENTO DOS PARTIDOS (1830-1849) Após a deterioração de Grancolômbia, forte instabilidade se manifestou, não se sabia qual constituição seguir e revoltas eclodiam no Panamá, em províncias que queriam ser parte da Venezuela ou do Equador, e ainda uma revolta e golpe militar que buscava tomar o poder de Mosquera e Caicedo, liderada por Rafael Urdaneta e apoiada por alguns civis e muitos militares venezuelanos. Urdaneta estabeleceu um governo militar durante alguns meses, substituindo Joaquín Mosquera como presidente, entretanto sua revolta foi derrotada pelos apoiadores de Santander ainda em 1831. Também as outras perderam força, já que a própria Venezuela se negou a aceitar a anexação das províncias que queriam participar dela, o que foi forte elemento desmobilizante, e as demais foram solucionadas mais tarde através das vias diplomáticas. No fim das contas, ainda em 1831 uma Assembleia constituinte restaurou o nome de Nova Granada e elegeu Santander como seu presidente, em um governo provisório. A Constituição mudou pouco desde a de Grancolômbia; era menos centralizada, mas ainda pouco democrática, com voto censitário. O governo provisório retomou também algumas das medidas e reformas liberais, e expulsou do exército a maioria dos líderes da revolta de Urdaneta, além de extinguirem certos benefícios militares como o de não ser julgado em instância civil. (BUSHNELL, 2007) O déficit infraestrutural em Nova Granada impedia grande parte da exportação do país, e fazia com que esse apresentasse baixa entrada de capital. A taxação se limitava aos impostos da aduana e dos monopólios de tabaco e sal, e essa baixa arrecadação fiscal tornava a máquina estatal pobre e praticamente impraticável. Grandes produtores criavam animais, 75% das exportações eram de ouro, e os pequenos produtores voltavam-se para o mercado alimentar interno. A economia continuava majoritariamente dominada pela agricultura, ainda que boa parte da população fizesse também artesanato. As tradições coloniais e monárquicas mantinham a população pobre, mestiça e indígena submissas, mesmo que houvessem poucos trabalhos forçados e escravos num sentido formal. Do ponto de vista socioeconômico, boa parte da Nova Granada estava atravancada em problemas regionais, muitos deles agravados pelas questões de infraestrutura de importação e exportação. Cabem exceções para a região de Antioquia, cujo sucesso agrícola e crescimento demográfico eram significativos, e para a região do Panamá, impulsionada pelos movimentos migratórios rumo à Califórnia e sua corrida do ouro, do qual tornou-se ponto de passagem e parada. (BUSHNELL, 2007) Os centros urbanos e os centros rurais circundantes que não se fundiam em regiões, os regionalismos múltiplos, a baixa arrecadação, a estagnação socioeconômica e as dificuldades de 17 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina conciliação entre santanderistas e bolivarianos foram os principais desafios para o crescimento e para a consolidação de Nova Granada como nação. (BUSHNELL, 2007) Em 1833 começou o mandato de Santanter oficialmente. Como presidente, manteve comportamento similar ao que assumiu quando foi Vice-Presidente, além de estabelecer dura repressão aos conspiradores, ainda que não a todos seus opositores políticos – com os quais não procurou reconciliação. O forte bolivarianismo entre os militares e a baixa arrecadação motivaram uma desmobilização do exército, a mando do Congresso Nacional, com forte apoio do presidente. Santander incentivou e até buscou investir, apesar da baixa arrecadação, em educação primária e secundária, e ainda que nunca tenha alcançado todos jovens em seu governo da maneira que se propusera, aumentou os índices, alcançando um dos mais altos da hispanoamérica, especialmente quanto à educação primária. (BUSHNELL, 2007) As relações com a Igreja melhoraram, em relação a seu primeiro governo, principalmente por que Santander assumiu uma postura mais moderada. Até relações diplomáticas com o Vaticano foram estabelecidas, em função da considerável estabilidade que a Nova Granada havia adquirido, sendo este, aliás, o primeiro país hispanoamericano independente a fazê-lo. (BUSHNELL, 2007) Quando do momento da sucessão de Santander, em 1837 (seu mandato de quatro anos havia começado oficialmente em 1833), seu candidato, José Maria Obando, foi vencido por José Ignacio de Marquéz, que angariou os votos de todos que estiveram insatisfeitos com o regime de Santander, e apoio bolivariano. Sem uma consolidação de maioria de nenhum dos dois nas eleições, essas foram decididas pelo Congresso com a vitória de Marquéz. Ele havia participado do governo de Santander, e tratou de continuar muitas de suas medidas. As dívidas de Grancolômbia foram divididas por um Tratado entre Nova Granada, Venezuela e Equador, e as reformas liberais foram todas mantidas. Entretanto, ele trouxe para o governo alguns dos opositores de Santander que o apoiaram, a fim de promover uma reconciliação, o que causou forte animosidade com seus antigos aliados. (BUSHNELL, 2007) Junto com a Constituição de 1832, foi aprovada uma lei de abolia os monastérios, e que nunca foi efetivada no Pasto por receio de que causassem desavença política e revoltas, já que era uma região fortemente católica e reacionária. Em 1839, quando tentou-se aplicar essa lei ali, suscitou-se uma revolução, que foi vencida pelo Governo. Entretanto, mais tarde, em 1840, José Maria Obando, candidato vencido por Marquéz nas eleições, lançou seu apoio à Pasto naquela causa e reviveu o conflito contraditório. Ainda que Obando não era um reacionário religioso, mas sim um líder liberal, a fim de angariar apoio político e revolucionário tendo em vista suas desavenças com o governo de Marquéz. (BUSHNELL, 2007) 18 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Acontece que em 1840, com a morte de Santander, morre também sua influência entre seus apoiadores e sua defesa do uso das vias pacíficas de oposição. Entre seus seguidores, que passaram a se autointitular progressistas em oposição ao conservadorismo de Marquéz, havia muitos defensores da via armada. Os progressistas, então, assumiram o federalismo como bandeira, e lideraram diversas revoltas de nível regional. Os líderes dessas revoltas foram autointitulando-se chefes supremos disso ou daquilo, o que conferiu à guerra civil seu nome: Guerra dos Supremos. (BUSHNELL, 2007) Terminada em 1842, a Guerra dos Supremos deixou fortes marcas. Para vencê-la, Marquéz se aproximou mais dos antigos bolivarianos do exército, e durante ela o principal líder bolivariano venceu as eleições presidenciais. Pedro Alcantara Herrán foi o terceiro presidente de Nova Granada, e a união política que o elegeu seria o embrião de um novo partido, Partido Ministerial, e que adotou o nome de Partido Conservador a partir de 1848. Gradualmente, seus opositores passaram a se organizar de maneira partidária, todos eles progressistas e anteriormente apoiadores de Santander. Mais tarde deixaram de usar o nome de progressistas e passaram a se intitular Liberais. Daí originou-se os dois partidos mais tradicionais e de maior expressividade na Colômbia da segunda metade do XIX até os dias atuais. Durante muitos anos seguintes, o Partido Conservador contaria com o apoio da Igreja, que temia governos liberais que fossem retirar seus privilégios e diminuir sua influência. A manutenção da Igreja forte, para os Conservadores, ultrapassava apenas o interesse no apoio político: acreditavam que a Igreja era um dos poucos elementos que uniam a nação e que essa auxiliava na manutenção da ordem política e social, evitando com isso a contenda política que, em meio ao regionalismo forte, entrava em erupção tão facilmente na Nova Granada do século XIX. Por isso, eram contra reformas religiosas, especialmente as mais bruscas. (BUSHNELL, 2007) Em 1843, após vencer a Guerra dos Supremos, os ministeriais (futuros conservadores) trataram de reforçar essa aliança com a Igreja. A nova Constituição aprovada nesse ano brindava à ortodoxia católica em seu texto. Além disso, aumentava os poderes concedidos ao executivo em relação ao legislativo e aos poderes regionais. (BUSHNELL, 2007) Em 1845, por fim, foi eleito Tomás Cipriano de Mosquera, também Ministerial. Em seu governo, promoveria uma série de inovações e investimentos em obras públicas e avanços infraestruturais. Foi em seu governo que se iniciou a construção do Capitólio Nacional, situado na Praça de Bolívar, além de ter-se estabelecido com subsídios do governo a navegação a vapor no rio Madalena de maneira oficial e permanente. Foi também ele quem acertou um Tratado de proteção à soberania de Nova Granada com os Estados Unidos (revogados quando do processo de 19 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina independência do Panamá, em 1903), além de acordos e contratos quanto à construção de estradas de ferro em território panamenho. (BUSHNELL, 2007) Por fim, é importantíssimo ressaltar que Tomás Mosquera estabeleceu uma política econômica fortemente liberal a fim de fortalecer o setor privado: aboliu o monopólio do tabaco e abaixou em muito as tarifas sobre produtos importados, diminuindo o protecionismo até então dado aos artesãos nacionais. Se esses, antes, eram protegidos por tarifas e pelos altíssimos custos de transporte interno de produtos causados pelo déficit infraestrutural, as medidas de Tomás Cipriano de Mosquera definitivamente os afetaram direta e negativamente. O caráter liberal de sua política econômica e a influência direta do diálogo com o Partido Liberal durante a elaboração dessa causaram controvérsias internas no Partido Conservador. As desavenças que se mantiveram durante o período eleitoral que sucedeu seu mandato, custaram a presidência, e que levaram à vitória do primeiro Presidente neogranadino pertencente ao Partido Liberal, José Hilário López, eleito em 1849. (BUSHNELL, 2007) 20 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina VI. LIBERAIS E REVOLUCIONÁRIOS (1849-1885) O terceiro quarto do século XIX é a época em que a história da Colômbia – nome que voltou a ser adotado por Nova Granada em 1863- ilustra mais claramente os desenvolvimentos que estavam ocorrendo no amplo cenário latino-americano. A despeito de um moderado aceleramento de seu crescimento econômico, a Colômbia permaneceu como um dos mercados menos articulados como o norte do Atlântico. Estado não muito divergente do de seus vizinhos. No tocante ao âmbito político, a Colômbia é um bom exemplo da maneira como os conflitos entre os alcunhados liberais e conservadores e entre a Igreja Católica e os setores anticlericais se espraiavam de uma nação a outra. Como ocorrido com a maioria de seus Hermanos, na Colômbia foi o predomínio liberal e a imposição de seus programas que marcaram este contexto. VI.1. A METADE DO SÉCULO E O NASCIMENTO DE UMA NOVA GERAÇÃO POLÍTICA A predominância do liberalismo no território de Nova Granada constituía parte de um fenômeno de reação que se repetia em países como México e Argentina ás falhas – reais ou não – dos dirigentes anteriores, do mesmo segmento político daqueles que haviam lutado pela independência e estabelecido as instituições republicanas. A convicção geral, especialmente forte nos mais jovens, era a de que era necessária uma participação maior na área pública, com uma agenda própria, não necessariamente significando o ostracismo completo dos antigos líderes. Esta nova geração, pela primeira vez educada em colégios republicanos e distantes dos ideais coloniais havia possuído contato com os ensinamentos de uma significativa gama de intelectuais estrangeiros. A despeito de a ditadura Bolivariana e seus respectivos ministeriais haverem buscado “purificar” o sistema educacional nacional ao proibir a leitura de autores heterodoxos como Bentham, estas obras célebres eram facilmente obtidas. Além disso, a grande maioria da elite já havia sido influenciada por correntes de valor liberal, fossem estas econômicas, políticas ou sociais. Um exemplo curioso desta presença foi a reação do ministro Mariano Ospina Rodriguez diante da notícia da Revolução de 1848 na França: pôs se a tocar os sinos das igrejas como manifestação de celebração. O recente desenvolvimento econômico de Nova Granada e a ascensão de uma burguesia incipiente também foram fatores que propiciaram uma atmosfera mais amigável ao liberalismo. No entanto, a conjuntura econômica do país ainda constituía – se de um híbrido de elementos capitalistas e pré capitalistas. A economia 21 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina apenas despertara de um longo sono, somada ao paulatino crescimento populacional, e a superação dos danos causados pelo conflito da Independência e suas subsequentes guerras civis aumentaram o crescimento econômico. Melhorias estruturais básicas, como o início da navegação à vapor pelo rio Madalena, também haviam sido introduzidas. No entanto, foi o crescimento dos mercados do Atlântico Norte e as transformações relativas ao intercâmbio comercial que acabaram por favorecer os produtores de matérias-primas. Ao mesmo tempo, o preço das manufaturas estava em notável queda: apresentava- se uma oportunidade que os colombianos não podiam desperdiçar. VI.2. UM RENASCIMENTO A metade do século representou, portanto, o renascimento do espírito de otimismo econômico que, sem muitos alicerces palpáveis, havia prevalecido nos anos imediatamente após a independência. O maior acesso a oportunidades e recursos gerou uma guinada na política econômica de Nova Granada, que passou a orientar seu crescimento na abertura ao capital externo. O fato de que as tímidas reformas dos anos 1830 haviam rendido poucos frutos, e de que os princípios do laissez faire eram não apenas altamente aceitados, mas haviam há pouco sido implementados pela potência comercial da Grã Bretanha, representou forte fator facilitador desta alteração. Esta reorientação econômica parcial de terceiro quarto de século não apenas fortaleceu os setores sociais que nutriam interesses óbvios nas políticas liberais, mas fez parecerem mais atraentes outros elementos da agenda liberal. O resultado foi o mútuo reforço das crenças liberais em assuntos de cunho político, cultural e até mesmo religioso, que partilhavam de um impulso primário: o do desejo da diminuição do controle do governo em decisões e atividades individuais. VI.3. PRIMEIRO CICLO DE REFORMISMO LIBERAL Como já foi previamente citado, a gestão de Tomás Cipriano de Mosquera deu ao país um esboço de em que consistiria o ativismo reformista. No entanto, somente com a eleição à Presidência do candidato liberal José Hilario López, em 1849, que os planos de prática liberal em Nova Granada seriam compreendidos em a toda a sua extensão. Apesar de não haver obtido a maioria simples dos votos, López venceu com ampla vantagem seus oponentes pelo apoio da facção ministerial, que começava a ser denominada de Partido Conservador. Já os liberais, a despeito da derrota em Bogotá, contavam com apoio significativo de grupos como os artesãos organizados e os intelectuais, que visavam obter mais atenção ás suas demandas. No dia em que o Congresso se 22 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina reuniu para decidir quem seria o novo presidente, a Igreja estava abarrotada por indivíduos destes grupos sociais, demonstrando a atmosfera pesada em que se deu a indicação de López. VI.4. UMA NÃO TÃO NOVA POLÍTICA ECONÔMICA A continuidade entre as administrações de López e Mosquera era especialmente clara no tocante à política econômica: o novo governante também elevou os impostos - não o suficiente para satisfazer os desejos protecionistas dos artesãos - e completou a liberação dos cultivadores e comerciantes do monopólio estatal. Estas configurações representaram grande momento para os novos produtores, e, pela primeira vez, a Colômbia tornou-se um grande exportador. Até a metade da década seguinte, o tabaco representaria mais de um quarto das exportações totais, alcançando o posto de produto principal nos anos 1860. Esta mudança representou um turning point na estrutura de comércio exterior do país, havendo pela primeira vez um produto agrícola capaz de fazer frente aos metais preciosos. No entanto, mesmo após a recuperação do ouro como produto central dez anos mais tarde, as outras commodities exportadas mantiveram a balança comercial de Nova Granada em índices positivos. A despeito de estudiosos posteriores divergirem sobre o assunto, o aumento das exportações do tabaco, em seu contexto, foi considerado prova da eficácia das políticas econômicas liberais. De fato, com suas grandes propriedades e um sistema misto de arrendamento e destacamento, o cultivo do tabaco não era dos mais gentis com o povo. Auferindo também os lucros obtidos por intermediários da mercadoria, seria possível dizer que a ascensão do comércio do tabaco aumentou as desigualdades sociais. No entanto, a possibilidade de salário para um pequeno número de camponeses gerou alguma migração da cordilheira Oriental para o Vale de Madalena. VI.5. A QUESTÃO INDÍGENA Outra mudança cujos efeitos socioeconômicos despertaram avaliações antagônicas foi o fim da inalienabilidade das reservas indígenas, ou resguardos por alguns anos após a aquisição. No ano de 1850, o Congresso autorizou que as Assembleias Provinciais regulassem a distribuição destas terras, e eliminando as reservas da maior parte do país, à exceção do sudoeste de maioria indígena em que o governo temia uma insurreição se implementasse a medida. Consequentemente, muitos nativos passaram a não possuir escolha senão a venda de sua força de trabalho e, assim, eram enganados por membros de sua própria comunidade. 23 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Ao passo que a política liberal foi prejudicial aos indígenas de maneira geral, outra minoria sofreria ainda maiores agruras : uma nova lei instituída em Maio de 1851 estipulava que todos os escravos seriam libertados no primeiro de janeiro do ano seguinte. As reações desta população, estimada em 20.000 pessoas e para quem a lei do ventre livre estava em vigência desde 1821 diante da possibilidade ao retorno à escravidão foram fortes: abandonaram os campos mineiros e plantações em que trabalhavam, preocupando os latifundiários da porção ocidental de Nova Granada.A revolta conservadora de 1851, a que voltaremos mais adiante, foi, em certa medida, filha do temor destes proprietários. Entre outras medidas que afetaram as duas minorias colombianas, estava o esforço que visava eliminar as restrições ao fluxo livre de comércio, força de trabalho e propriedade. Entre exemplos desta sorte de lei estavam aquelas que auxiliavam a redenção das hipotecas eclesiásticas e o requisito de diplomas acadêmicos a professores de áreas alheias à farmacêutica, ambas consideradas entrave aos intentos supracitados. A reforma que revogava as leis sobre difamação ou outros princípios que limitassem a liberdade de expressão era apenas mais um exemplo entre muitas outras mudanças que visavam proteger o individualismo. Estas mudanças profundas na sociedade colombiana pareciam marcar o início de uma era de liberdades, em que “o melhor governo é o que menos governa”. No entanto, o Estado não desapareceu e em contrapartida ao fim do recebimento de impostos de monopólio como o do tabaco, houve um aumento significativo na entrada de mercadorias na alfândega enquanto funções tipicamente federais, como a distribuição destes dividendos, foram transferidas para as autoridades provinciais. A despeito disso, o federalismo dos liberais não era completo, uma vez que na nova Constituição, que entrou em vigor em 1853, estabeleceu – se que os governadores provinciais, apesar de serem eleitos localmente, não receberiam as partes principais na distribuição de funções específicas. Esta era destinada às autoridades centrais. Além da compilação das reformas realizadas nos últimos anos, a nova constituição estabelecia o sufrágio universal masculino, medida controversa entre os liberais da sociedade daqueles tempos, que temiam a manipulação dos votos. Entretanto, estes temores seriam superados pela admiração ao exemplo francês e à teoria democrática, sendo logo em seguida instituído o voto direto e elencada uma lista de funcionários públicos importantes, entre eles o Procurador Geral da República, a serem eleitos por voto popular. A legislatura provincial de Vélez deu um passo ainda mais adiante, votando pela extensão do sufrágio às mulheres, e esta medida foi adotada no mesmo ano, dezesseis anos antes de sua incorporação ao estado americano de Wyoming. Todavia, a medida seria anulada pela Suprema Corte pouco tempo depois, alegando que a lei outorgava mais direitos do que a Constituição federal. Já em outro âmbito nacional, a nova Constituição estabeleceu a 24 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina liberdade religiosa em todo o território de Nova Granada, e incluiu a liberdade de culto entre os direitos de todo cidadão e pressupunha a separação entre Igreja e Estado. Aquela não apresentou objeções imediatas, satisfeita com o fim da intromissão nas nomeações clericais. Contudo, a perda de seus privilégios e proteções e a introdução de medidas indesejáveis como a introdução do matrimônio civil e divórcio muito a desagradaram. Este evento apenas representava mais um passo na progressiva deterioração da relação entre o Estado e a Igreja desde a hesitante expulsão dos jesuítas por López, justificada pela suposta luta da companhia contra os princípios libertários do liberalismo. Porém, as justificativas liberais de que o anticlericalismo visava apenas limitar certos poderes civis do clero e nada mais não pareceu legítima aos membros do partido conservador – que manifestaram seu apoio à hierarquia eclesiástica como modo de deslegitimar os liberais – e muito menos aos membros da Igreja. O consenso em relação à importância das liberdades individuais, políticas e econômicas tornava a questão religiosa o ponto mais sensível das divergências no Cenário de Nova Granada. VI.6. OBANDO E AS DIVISÕES LIBERAIS A antipatia conservadora e clerical, entretanto, não constituiu ameaça séria o suficiente para intimidar o regime liberal, especialmente no contexto imediato após a facilmente reprimida Revolução Conservadora de 1851. Durante as eleições de 1853, cientes de sua posição desprivilegiada, os conservadores sequer participaram dos comícios eleitorais, mesmo que o principal candidato, José Maria Obando não fosse exatamente popular. Ainda assim, este foi o primeiro candidato, depois de Santander, a ganhar a presidência com evidente vantagem. Mas a vitória de Obando ocultava cisões entre os políticos liberais, que se tornariam fator de risco muito maior do que a oposição conservadora. Uma das facções liberais dissidentes era composta por reformistas radicais, que ambicionavam eliminar todo tipo de restrições governamentais e corporativas à liberdade individual. Denominados “gólgotas” devido a uma evocação oratória entusiasmada que um dos seus, Mártir del Gólgota, fizera de Jesus Cristo. A despeito da chacota inicial diante do nome, o grupo envolvia altos funcionários do governo, incluindo membros do Congresso e seus porta-vozes eram civis de boa educação e nível social elevado. Significantemente diverso dos ativistas liberais, havia o grupo dos artesãos organizados, que após serem recrutados pelos gólgotas para apoiar a campanha de López se afastaram daquele segmento político. Desde então, um de seus maiores interesses era o de eliminar a reforma taxativa 25 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina conduzida por Mosquera. No entanto, foi aceita a colaboração de jovens liberais de classe alta, membros da Sociedade Democrática de Bogotá, organização que nasceu a partir de uma antiga associação de artesãos. Desiludidos com a ausência de uma verdadeira reforma taxativa, entre outros fatores, levaram ao rompimento definitivo com os gólgotas. Sociedades como a Democrática passaram a se unir para fomentar uma série de ataques violentos, alimentados por um generalizado ressentimento popular com os grandes latifundiários que começaram a usurpar as terras comunais dos municípios. O objetivo de eliminar as propriedades coletivas, no entanto, estava no cerne da reforma liberal, mas o fato era que a maioria dos latifundiários era conservadora. O resultado deste conflito de interesses se explicou por meio da Revolução Conservadora de 1851 e do aumento de tensões dentro do partido liberal, já que alguns de seus membros eram contra a incitação de ressentimentos sociais. A última facção liberal digna de nota ficou conhecida como “draconiana”, que defendia a moderação pragmática na maior parte dos planos de ação e temiam que os gólgotas, em sua frenética busca por maiores liberdades individuais, pudessem sacrificar a ordem social. Um ponto central de dissonância entre as duas facções, e que rendeu à primeira seu nome, era a problemática da pena de morte, que os draconianos defendiam – à exceção de delitos políticos -.Também receosos em relação à redução do número de homens no exército, esta facção possuía conexão mais profunda com as camadas populares do que seus antagonistas. Seu político mais proeminente, José Maria Obando, disfrutava da admiração das massas liberais. Não é surpreendente, que, coma cisões internas do partido liberal, os artesãos se aproximassem dos draconianos, assim como a sociedade democrática de forma geral. Entretanto, foi somente após a eleição de Obando como presidente que o panorama político se definiu. Os gólgotas, a despeito de sua capacidade mínima para evitá-la, haviam se oposto às eleições; e mesmo diante de certa antipatia com suas normas, Obando decidiu outorgá-la. A medida, contudo pareceu insuficiente para mitigar a crescente desconfiança entre a Administração e o Congresso. Finalmente, em Abril de 1854, a pressão do legislativo para que fosse reduzido o contingente militar – incluindo a Guarda Nacional, de papel valioso para os artesãos - fez germinar um Golpe de Estado, chefiado pelo General José María Melo, comandante da guarnição de Bogotá. As intenções do militar eram que Obando aceitasse o golpe como fruto da revolta popular, e suspendesse a Constituição de 1853, juntamente com a dissolução do Congresso Nacional, mantendo o cargo de presidente. Diante da recusa de Obando em acatar estas exigências, Melo assumiu a presidência e instituiu uma Ditadura em Nova Granada. Repudiado também pelo ex- presidente Lopéz, o golpe de 26 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Melo teve suporte apenas de suas tropas e dos artesãos. A maioria dos funcionários públicos rejeitou Melo como presidente, e reconheceu em seu lugar o governo “Constitucionalista” que seus oponentes gólgotas e conservadores instalaram pouco depois. Recuperando paulatinamente os territórios controlados por Melo, no início de dezembro suas forças adentraram Bogotá. Os desfechos da investida foram a rendição de Melo, e seu exílio. A pequena base de apoio do general, constituída de cerca de 300 a 400 seguidores, de maioria artesã, foi confinada no inóspito istmo do Panamá, de onde muitos nunca regressaram. VI.7. PERÍODO CONSERVADOR A aliança entre gólgotas e conservadores contra draconianos e artesãos era bastante lógica, visto que o alto escalão dos dois primeiros grupos possuía origens sociais afins, mas diferenças irreconciliáveis na questão religiosa. Esta combinação operou de forma eficiente até algum tempo após a deposição de Melo. No entanto, os conservadores contavam com colaborações mais expressivas: apesar de aglutinarem menos intelectuais, dispunham de maior apoio popular e de generais e coronéis de grande experiência bélica.Entre os três presidentes militares que chefiaram a repressão aos melistas, Mosquera e Herrán eram conservadores, enquanto o único liberal, López, não pertencia à fileira dos gólgotas. Portanto, não surpreendia que o antigo partido oposicionista houvesse ampliado gradativamente seu papel no governo até alcançar certa preponderância. Quanto a Obando, este nunca retornou à presidência, uma vez que os vencedores da curta guerra civil o acusaram de ser cúmplice dos rebeldes. Havendo sido julgado pelo Congresso Nacional, aquele foi formal e permanentemente retirado do poder. O vice-presidente de Obando, José de Olbadía, foi mais afortunado: após refugiar – se na embaixada americana, encabeçou o governo constitucionalista, retirando-se ao fim de seu mandato, no início de 1855. Nas eleições que se seguiram, seu sucessor foi o conservador Manuel María Mallarino, que continuou a liderar um governo de coalizão, possuindo dois liberais em seu Gabinete. No entanto, o vencedor das eleições de 1857 – a primeira em que foi implementado o sufrágio universal masculino - Mariano Ospina Rodríguez organizou uma administração puramente conservadora. O recém-eleito presidente instituiu medidas discriminatórias contra os jesuítas: enquanto integrante da administração de Mallarino, havia promovido a legalização do divórcio. No entanto, além destas mudanças, pouco foi feito em relação ás reformas do período de 1849 -1853. De certa forma, é possível dizer que os conservadores deram fôlego ao programa liberal, uma vez que sob 27 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina seu mandato, a nação adotou, em 1858, a primeira constituição de fato federalista, sob o nome de Confederação Granadina. A adoção formal do federalismo representava, na realidade, um passo menos radical do que aparentava. A Constituição de 1853, ainda que centralista em princípio, havia sido modificada por um conjunto de atos legislativos que originaram governos regionais semiautônomos. Após o estabelecimento do primeiro, no Panamá, outras comarcas passaram a exigir as mesmas condições, expressando o saldo de uma estrutura governamental federalista, regulamentadora homogênea do status jurídico das diferentes regiões da Confederação. O exemplo americano validou o federalismo como forma de organização política para os conservadores e o fato de o sistema lhes permitir maior controle nas regiões em que possuíam forte influência política representava fatores determinantes para a aceitação do novo sistema. De maneira mais importante, o gérmen federalista atestava a perene debilidade dos laços que mantinham a união em Nova Granada. O Estado, que nunca havia sido especialmente forte, se encontrava ainda mais restrito pelas reformas dos anos cinquenta, e o papel unificador da igreja também se encontrava debilitado. O aceleramento do crescimento econômico focado no capital externo havia prejudicado fortemente o mercado interno. No entanto, a mesma década foi um período chave para a consolidação dos partidos colombianos, devido à expansão da participação política e à seu caráter altamente competitivo. O início do sufrágio universal aproximou a política das massas, com participação política notável em seu contexto histórico. A participação de 100% em alguns distritos levantou a hipótese de fraude, ou de um equivalente colombiano do “voto de cabresto” ou clientelismo. Nas regiões em que o campesinato era mais independente, calculou-se a participação em cerca de 40%. Participação esta fundamental no processo político, após o reerguimento dos conservadores. Durante o restante da década, à exceção do intervalo de Melo, houve aguda e constante competição interpartidária, uma vez que as eleições para diferentes postos do governo, como Presidente e Vice Presidente, se davam em períodos distintos. O resultado foi o recrutamento e doutrinamento constante de pessoal. No entanto, a renovação partidária, expressa pela existência de gólgotas e draconianos, entre outras facções, não rompeu a bipolaridade partidária essencial do sistema, a despeito de haver sofrido forte abalo com a candidatura do ex- presidente Mosquera à presidência em 1856. Havendo improvisado um Partido Nacional Independente obtendo 15% do total de votos, assim como os outros partidos incipientes, o de Mosquera possuiu vida curta. A despeito de o bipartidarismo no século XX não haver sido exclusividade colombiana, sua manutenção até meados do século XX foi inédita entre as nações modernas. Entre as razões apontadas, se destaca a contenda religiosa, mais 28 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina duradoura e árdua, levando-se em conta que seus oponentes estavam à altura um do outro: os anticlericais doutrinários dispunham do financiamento do Partido Liberal, mas, a forte e institucionalizada Igreja também contava com poderosos aliados laicos. Quaisquer que fossem as razões para o fato, o domínio da dicotomia partidarista sobre o país era claro: o conservadorismo era predominante na região das comarcas de Pasto e Antióquia e na região de Tunja e o liberalismo em toda a costa atlântica. Pequenos enclaves liberais em regiões conservadoras, e vice versa, também ocorriam, demonstrando inabalável lealdade à suas convicções. Ainda que, inicialmente, a filiação partidária dos setores populares estivesse ligada à manipulação por clérigos, latifundiários e membros da elite política, havia exceções, como, por exemplo, a autonomia decisória de grupos de artesãos e certas comunidades indígenas. Todavia, a prolongada competição liberal – conservadora acabou por dar vazão à instabilidade política, conflito local e ocasionalmente, guerra civil. Outro aspecto singular e lamentável da cena política colombiana, foi a violência política que, apesar de raramente haver sido bem sucedida em destituir governos, segue como marca indelével do país. Intelectuais como James Payne associam esta configuração à profunda identificação e envolvimento das camadas populares com a política. O único presidente a ser derrubado pelas mãos de um movimento revolucionário foi Mariano Ospina Rodriguez, a quem não faltava popularidade. Cultivador de valores burgueses como a ordem, o sentido prático e o ethos trabalhador, chegou, de fato, a consultar seu ministro em Washington sobre as reais possibilidades de anexar Nova Granada à União Norte Americana. A tentativa não obteve resultados, mas o fato Ospina ter criado um governo unipartidarista após aquele de coalizão liderado por Mallarino, desencadeou tensões com o Partido Liberal e a hostilidade do ex-presidente Mosquera, na época governador do estado de Cauca, no primeiro mandato. Ao passo que este visava ampliar a autonomia de seu Estado, Ospina respaldou uma série de leis aprovadas - com grande resistência liberal - pelo Congresso que conferiam maiores competências ao governo central em assuntos como a supervisão eleitoral do Presidente e do Congresso. O não reconhecimento das alterações legislativas de Ospina por muitos governos regionais seguiram-se de uma série de revoluções locais que anteciparam uma guerra civil generalizada. Iniciada no Estado de Santander, um reduto liberal de gólgotas, estes dirigentes, os quais participaram do reformismo dos anos 1849- 1853 que, entre outras medidas, aboliu a pena de morte, declarou liberdade monetária, propiciou abertura ao setor privado e mudanças de política taxativa, eram conhecidos por seus experimentos utópicos. 29 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Na opinião dos conservadores, a atmosfera era de anarquia e aglutinaram-se em revolta, fazendo com que a administração de Ospina declarasse estado de emergência de ordem pública no fim do ano de 1859. A declaração foi feita em respaldo ao uso das forças públicas para retomar a tranquilidade. Em maio do ano seguinte, Mosquera lideraria as facções liberais com o intuito de derrubar Ospina. A empreitada, que envolveu quase todo o país e um altíssimo número de baixas, foi bem sucedida: em 1961, Mosquera tomou Bogotá e estabeleceu o destino do conflito. O ex – presidente Ospina seguiu para exílio na Guatemala, onde se dedicaria a estudar a florescente indústria cafeeira. VI.8. REPÚBLICA RADICAL A vitória liberal na guerra civil daria início a um período de grandes reformas, ainda mais radical do que aquele entre os anos quarenta e cinquenta. Iniciando seus trabalhos com a Igreja, atacou as estruturas básicas que a primeira reforma liberal manteve intacta, expedindo uma série de decretos que conferiam ao governo o direito de tutela sobre a Igreja, expulsando, novamente, a Companhia de Jesus e expropriando a maior parte dos bens eclesiásticos que não eram de fins religiosos. Os valores das hipotecas e os demais bens foram transferidos para o Estado, que se comprometeu a reparar anualmente 6% do valor subtraído. Seguiram–se à essas uma série de medidas anticlericais, como a abolição de outras ordens religiosas de monges e frades. Após prender o arcebispo de Antonio Herrán - irmão do ex presidente Herrán- devido à suas objeções enérgicas às medidas anticlericais, Mosquera foi excomungado pelo Papa. Esta postura dramática e ofensiva em relação à Igreja era reflexão não apenas do triunfo liberal e da recente vitória militar, mas também um impulso vingativo pela íntima colaboração do clero com os derrotados conservadores desde o governo de Rodríguez. De qualquer forma, as razões mais óbvias para a reforma eram econômicas: os liberais estavam convictos de que a circulação dos bens da Igreja estimularia a economia doméstica e auxiliaria no pagamento das dívidas do governo, incluindo os custos da revolução. Mosquera também esperava que a racional distribuição das propriedades produzisse justiça social. A necessidade de rápida obtenção de capital fez com que Mosquera propusesse a emissão de títulos do tesouro soldados pelos bens eclesiásticos. Ao fim, como esta proposta tolhia a ambição da elite de aumentar seus patrimônios, decidiu- se pela venda rápida e direta, gerando muito menos renda do que o esperando. As evidências também apontam que, sob a tutela de seus novos proprietários, as terras eclesiásticas eram tão improdutivas quanto antes. A maior conseqüência das desamortizações, ao fim das contas, acabou por ser a perda de 30 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina fontes de renda consideráveis por parte da Igreja. Seus resultados sociais, no entanto, foram nefastos: o clero tornou-se incapaz de manter seus serviços educacionais e sociais em um contexto em que o Estado era incapaz de fazê-lo. O próximo alvo da reforma dos liberais foi o próprio Estado Central: em 1863 reuniu-se em Rionegro uma convenção constituinte, que redigiu uma nova Constituição, mais extremista em seu federalismo do que qualquer outra carta formal do hemisfério. O país agora se chamava Estados Unidos da Colômbia, e seus estados receberam poderes muito mais amplos do que no modelo anglo-americano. Sendo responsável apenas pelas rotas de transporte “interoceânico”, o Governo Federal delegou aos Estados todas as outras funções. Com efeito, a Câmara alta do Congresso passou a se chamar Senado de Plenipotenciários, como se seus representantes falassem por nações soberanas. O presidente passou a ser eleito com um voto por estado, cujos requisitos de votação estes eram livres em estabelecer. No entanto, a maioria dos estados aproveitou-se desta prerrogativa para revigar o sufrágio universal masculino, impondo requisitos como alfabetismo e qualificações econômicas. Cada reforma constitucional requereria, também, a aprovação de todos os nove estados do país; E, limitando ainda mais a eficácia da administração federal, fixou o mandato do presidente em um período de dois anos, sem possibilidade reeleição imediata. Esta última medida evidenciava a desconfiança dos liberais para com Mosquera, que obviamente seria o novo presidente. O aspecto individualista do liberalismo tornou-se ainda mais evidente na Carta de Rionegro, em que a total liberdade de imprensa da década de 1850 ampliou-se, cobrindo a liberdade de palavra com proteção constitucional. A carta também abolia a pena de morte em todas as circunstâncias, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, garantia o direito de posse de armas e munições de comércio bélico em tempos de paz. O teste para o verdadeiro escopo do espírito federalista viria pouco depois, em 1864: Manuel Morillo Toro, o mais celébre dos liberais radicais, sucedeu Mosquera como chefe do executivo federal. A região de Antioquia, historicamente conservadora, havia acabado de depor seus governantes liberais e a designar o conservador Pedro Justo Berrío para o cargo. Era necessário que Toro decidisse por aceitar a media ou invocar o princípio da nova constituição que permitia ao Presidente federal “zelar pela ordem”. Ao decidir-se pela aceitação do governo de Berrío, Toro esclareceu que colocaria em prática o princípio da autodeterminação estatal. O mandatário seccional e seu partido passaram a fazer de Antioquia uma espécie de modelo, intuito favorecido pela relativa homogeneidade social da região e a união de sua burguesia comercial. No setor de educação e obras públicas, os avanços 31 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina eram modestos, mas constantes. No entanto, o foco religioso da educação feminina secundária e sua negação em colaborar com a expropriação dos bens eclesiásticos evidenciavam a estreita cooperação dos conservadores antioquenhos com o poderoso clero local. Mais tarde, os conservadores também conseguiram o controle dos estados de Tolima e Cundinamarca, esta última não lhes sendo permitido dominar, uma vez que era a capital do país. Enquanto vigorou a Constituição de 1863, prevaleceram os governadores liberais, e afastaram-se os conservadores do poder por todos os meios necessários, incluindo intimidação e fraude eleitoral. As quedas de governos estatais, em que o Presidente cessou a interferência após aprovação da lei de 1867*, dava-se, portanto, geralmente à disputas entre facções liberais. A existência de fraudes também nestes contextos deu origem ao ditado popular que afirma que “el que escruta, elige”. No entanto, a despeito desta sorte de prática e de intervenções que constantemente violavam os espíritos e princípios da Constituição, os estados desfrutaram de grande autonomia neste período. Alguns deles a utilizaram para ocupar-se de assuntos negligenciados ou mal administrados por Bogotá, contudo, a maioria dispunha de recursos mínimos. Fato não surpreendente, uma vez que o governo federal retinha as rendas das alfândegas, umas das principais fontes de renda pública do país. A devolução das funções governamentais aos Estados significou, portanto, a ratificação das desigualdades regionais, posto que a maioria dos estados apenas dispusesse dos recursos para pagar a pequena lista de funcionários públicos e as taxas correspondentes. Inevitavelmente, o Tesouro Nacional iniciou o pagamento de concessões federais que, somadas ao fato de que o governo nacional havia assumido diversas funções atribuídas por interpretações superficiais da Constituição, debilitaram ligeiramente o governo federal. Entretanto, não tardaria muito para que a experiência federalista encontrasse seu abrupto fim: em escala nacional e estatal, os liberais haviam demonstrado grande respeito pelas liberdades individuais e de imprensa, e as sucessões na presidência ocorriam com relativa tranquilidade. A exceção ocorreu em 1867, quando Tomás Cipriano de Mosquera foi, novamente, eleito presidente. A antiga desconfiança entre este e os altos líderes da facção radical aumentaram consideravelmente devido à certas medidas implantadas, como, por exemplo, a fiscalização das propriedades confiscadas da igreja durante a administração Toro, que incomodou, além deste, diversos proprietários. O estopim da problemática, no entanto, deu-se com a descoberta de que Mosquera tentara comprar, com diversas irregularidades, em Nova York, um navio de guerra para ser utilizado pelo Peru em conflito contra a Espanha. Diante do escândalo, o presidente dissolveu o corpo legislativo, tomou para si poderes ditatoriais e convocou o apoio dos setores militar e popular. Porém, um grupo 32 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina de militares constitucionalistas, que, como em 1854, contava com o respaldo de radicais e conservadores, derrubou o então presidente. Os líderes radicais, ainda que muito capazes e competentes, eram sectários de suas ideias políticas e estavam envolvidos com interesses econômicos específicos ou diretamente vinculados à economia de exportação. Provenientes principalmente dos estados centro- orientais de Boyacá, Cundinamarca e Santander, acreditavam que a estratégia econômica de abertura externa, como a adotada nos anos 40, trariam o bem estar a todos os colombianos. Considerando quaisquer medidas governamentais de auxílio aos necessitados contraproducentes, eram a favor de um estado não intervencionista. Leais à visão política de Santander, eram favoráveis a privatização do sistema de ensino colombiano, mas contribuíram fortemente para o desenvolvimento do ensino público no país. Um dos resultados deste paradigma foi a fundação da Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá. Anulando medidas tomadas nos anos cinquenta, que extinguiram as universidades existentes e as integraram ao sistema de colégios secundários, a nova universidade dispunha de cursos tradicionais, como Direito, Medicina e Filosofia. A ênfase adicional em estudos técnicos refletia o ímpeto em sincronizar o país com a era industrial, também presente na administração de Rodríguez na década de quarenta. No tocante à educação primária, foi central um decreto expedido em 1870 no mandato de Salgar, estabelecendo a educação primária e laica como gratuita e obrigatória a nível nacional. Entretanto, a educação, de responsabilidade tanto do governo central como dos estados e municípios, carecia de fundos deste último, um grande obstáculo para a realização do projeto. Não tão significativo, no entanto, quanto à hostilidade do Partido Conservador e de ativistas católicos, que pressionaram fortemente todas as camadas da sociedade civil para que abandonassem as escolas públicas. Consequentemente, alguns estados rejeitaram o decreto, proclamando a obrigatoriedade da educação religiosa. A presença de alemães protestantes nas missões educacionais só fazia agravar o cenário do que se tornaria a rebelião conservadora de 1876. Considerada a mais grave alteração da ordem pública desde a guerra civil do início dos anos sessenta, a rebelião desaceleraria a melhoria educacional no ensino primário. É neste contexto em que tem início a Guerra Civil de 1876. Desencadeada por outras questões além do conteúdo educacional nacional, as raízes do conflito também residiam na insatisfação conservadora com os poucos cargos de poder que lhe eram conferidos, à exceção de Antioquia e Tolima. As clivagens internas no partido liberal, por sua vez, deixavam esperançosos os conservadores: as diferenças entre as facções radical e mosquerista haviam se tornado bastante definitivas.Os grupos dividiram-se entre a oligarquia radical e os autodenominados 33 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina “independentes”, estes incluindo os seguidores de Mosquera retornados do exílio e os liberais descontentes com o excessivo domínio as fileiras radicais da Cordilheira Oriental. O incidente relativo à construção da Linha Férrea do Norte, que recebeu fundos inconstitucionais do governo, foi o estopim para a insatisfação dos liberais radicais. Consequentemente, é possível afirmar que a candidatura de Rafael Núñez à presidência em 1876, apoiada pelos autodenominados independentes, possuía como principal questão não as discrepâncias doutrinárias com os radicais. O seu intento-chave era por fim ao monopólio do governo central que, historicamente, privilegiava regiões como Santander, Cundinamarca e Boyacá. A vitória do candidato radical, Aquileo Parra seguiu-se, como esperado, de uma revolta por parte de uma minoria dos independentes. Repelidos pelo aparente extremismo dos ideais anticlericais, a maioria dos independentes considerava a administração de Parra “ um mal menor” . O governo, ao dispêndio de muitos recursos e vidas, conseguiu retomar o controle da região no decorrer de menos de um ano e depôs os governantes de Antioquia e Tolima, que havia apoiado os rebeldes. No entanto, uma ameaça aos conservadores permaneceu mesmo após o fim do conflito: o prestígio adquirido pelo general liberal independente Julián Trujillo, seguido do fim do ciclo exportador e do consequente malogro econômico constituíram uma ameaça potencial ao predomínio conservador. A despeito do modelo exportador haver se mantido durante boa parte do período liberal, os preços das manufaturas importadas continuaram caindo, de modo que o poder aquisitivo das exportações colombianas crescesse nove vezes no período entre 1881 e 1883. O aumento no cultivo do tabaco que, por razões não muito claras, o qual provou-se transitório, mas o produto seguiu como um dos mais importantes até os anos 70. No entanto, nos próximos trinta anos, seria a exportação medicinal de quina que dominaria o mercado colombiano, até, subitamente, ser suplantada pela eficiência do cultivo indo-asiático. Outros dois produtos importantes no ciclo exportador colombiano foram o algodão e o anil.A escassez do primeiro, relacionada ao período pós guerra de secessão dos Estados Unidos da América também proporcionou apenas um período curto de bonança aos cultivadores colombianos. O fato de o anil, que nas duas últimas décadas do século XIX foi o principal produto exportado no país, ter perdido seu posto assim que os mercados internacionais se normalizaram, evidencia uma característica importante da economia doméstica colombiana. Mesmo que capazes de detectar condições favoráveis ao cultivo de certas commodities, os colombianos eram incapazes de tomar as providências necessárias para a instalação duradoura e competitiva de qualquer produto. No entanto, era compreensível que com os altos custos de estabelecimento de infraestruturas 34 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina especializadas e transporte, não se focasse em culturas duradouras. A existência de duas áreas de expansão mais duradoura, a de gado e café, cujo cultivo expandiu – se com impressionante rapidez. Predominante em Santander e Cundinamarca, o cultivo de café dava – se em grandes propriedades, em uma espécie de combinação de trabalho assalariado e arrendamentos. Contudo, o padrão dominante que se estabeleceria no cultivo cafeeiro foi das pequenas propriedades familiares. Apesar do auge da agroexportação durante as últimas décadas do século XIX, o comércio de metais preciosos seguia como fatia importante do mercado, a despeito de o crescimento geral de exportações ter sido pequeno. O aparente êxito da política econômica exportadora colombiana era, na verdade, quase superficial: esta sofreu uma depressão em meados da década de 70, e a chamada “depressão severa” no início da década de 80. No entanto, foi este boom que possibilitou uma série de melhoras infraestruturais no país, como a construção da linha férrea do Panamá e o início de nove outras. Faciliatadoras do comércio exterior e portas de entrada da Colômbia para o mundo industrial, ainda assim as suas linhas eram poucas se comparadas a de outros países. No entanto, a custosa expansão ferroviária ocorreu em detrimento da construção de estradas, que foram definitivamente legadas ao esquecimento com a chegada do telégrafo. Assim como as malhas ferroviárias, a estrutura financeira do país passou por transformações no terceiro quarto do século XX. Destituída de um sistema bancário formal até os anos cinquenta, a Colômbia possuía a maior parte de suas transações financeiras efetuadas por instituições religiosas que forneciam empréstimos hipotecários e comerciantes especuladores. A escassez de capital líquido e o alto índice de incerteza política dificultavam o estabelecimento de bancos e foi apenas em 1870, depois da falha tentativa do banco de Londres, México e América do Sul em se estabelecer, que foi inaugurado o Banco de Bogotá. O desenvolvimento da produção de bens para o mercado externo, e as ondas migratórias geradas pelo café e cultivo de gado teve como consequência a redução das chamadas “áreas livres”, que representavam uma alternativa para os trabalhadores rurais e escape do crescimento demográfico. Além disso, não eram raros os casos de latifundiários que se apropriavam de terras de modo a assegurarem a presença de mão de obra. A instabilidade das flutuações de câmbio e, consequentemente, na mão de obra não permite determinar exatamente o nível de afetamento das massas rurais pela abertura econômica. Conclui-se, no entanto, que este não foi expressivo. A despeito da sucessão de crescimentos no índice de exportações, a produção para consumo interno, a despeito de ser muito maior do que a externa, estava longe de possuir a mesma importância no quadro econômico generalizado. A aceleração comercial deu origem a centros comerciais, como os cafeeiros Bucaramanga e Cúcuta a fluvial Barranquilla, contribuindo também 35 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina para o crescimento das cidades de Bogotá e Mendelín. Ainda assim, população chega à este período do século sendo predominantemente rural, a despeito de um leve aumento no contingente urbano. Os artesãos locais passaram a encontrar dificuldades em sua subsistência com aumento das importações e passaram a produzir para sua subsistência ou alterar sua área de atuação. Mesmo que por quase toda a era liberal, os governos estiveram comprometidos com os impostos baixos como motor do crescimento internacional, decisões como aquela tomada em 1861, que taxou diversos produtos importados, tornou mais oneroso o consumo de produtos populares, enquanto favoreceu o consumo de bens de luxo. Desta forma, os artesãos cuja produção se concentrava em bens de baixo custo, foram levemente favorecidos. Após a eleição de Rafael Núñez à presidência em 1880, o protecionismo das últimas duas décadas tornou se gritante, como parte de sua política econômica ativista. Mudança esta, que era mais relativa à forma do que ao conteúdo. De forma similar, os liberais radicais não foram completamente coerentes com sua clássica doutrina de não intervenção. Além de garantir aos artesãos proteção mínima, subsidiaram a construção de obras tão públicas quanto o sistema de educação em que investiram. Colaboraram com o conservador Mosquera na expropriação de propriedades eclesiásticas, ao mesmo tempo em que sua administração foi, de forma geral, organizada e bem intencionada. Infelizmente, entretanto, foram poucos os avanços feitos em prol de uma nação realmente unificada. A Colômbia continuava um país marcado por flagrantes diferenças de ordem regional e social. 36 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina VII. A REGENERAÇÃO E O POSITIVISMO COLOMBIANO (1885-1904) O período de predomínio liberal na Colômbia encontrou seu fim graças a fatores como o radicalismo das medidas liberais em relação à Igreja, ao federalismo debilitador da ordem pública e aos crescentes questionamentos que as políticas liberais geraram. Ao passo que o anticlericalismo impedia a adesão sincera da população, predominantemente católica, o liberalismo fragilizou o já titubeante Estado nacional. Visando colocar em prática a doutrina smithosoniana1 referente à autoregulação do mercado, supôs que, seus indivíduos fossem liberados de restrições arbitrárias, e, consequentemente, o crescimento viria como resultado natural. A fórmula provou-se questionável quando, ao fim da demanda por produtos colombianos no exterior, a crise dos mercados internacionais prejudicou fortemente a economia do país. Era o estopim para aqueles que, há muito, estavam insatisfeitos com as medidas liberais. VII.1. NÚÑEZ: ORDEM E PROGRESSO? Sendo exitoso em finalmente formar uma forte coalizão oposicionista ao estabelecimento liberal, Rafael Núñez – antigo liberal doutrinário - representava a escola de pensamento positivista colombiana. A despeito de não ser seguidor estrito das premissas positivistas clássicas, rechaçava ideologias abstratas de forma geral, e priorizava a concentração em metas práticas de ordem e progresso. Influenciado por Spencer, vislumbrava a sociedade como organismo complexo e passível de evolução dirigida. No entanto, acreditava que esta não poderia se dar de forma abrupta. Crendo que a Constituição de 1863 havia fortalecido por demais os Estados e aleijado o Executivo, decidiuse por reformá-la. Não religioso, acreditava que era necessário que fosse negociado um acordo amigável entre a Igreja e o Estado, uma vez que a primeira instituição era intrínseca à sociedade colombiana. Considerava, portanto, vantajoso aceitar a presença eclesiástica e conceder- lhe posição de destaque e influência. No campo das políticas econômicas, era a favor de maior presença estatal, acreditando que o governo deveria promover a indústria nacional através de medidas protecionistas, como os impostos. Os críticos de Núñez alegavam que este discurso, e todos os outros que se afastassem dos ideais liberais, tratava-se apenas de uma artimanha para conseguir os votos da população artesã. Todavia, seu pragmatismo e desapego doutrinário atestavam ainda mais seu supracitado caráter 37 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina positivista, que em nada agradava seus antigos companheiros de partido. Alegavam que ele havia se tornado conservador, observação tecnicamente incorreta. Durante os próximos anos, Núñez ascenderia à líder da facção independente do partido liberal, em oposição aos puristas radicais que visavam controlar o governo central. Ao contrário do político, a divisão política regional da Colômbia seguia a mesma: os radicais possuíam mais influência em Boyacá, Cundinamarca e Santander, e os independentes, na costa e em Cauca. Falhando em ser eleito à presidência em 1876, Rafael foi vitorioso nas eleições de 1880. Contando com os votos dos liberais independentes e dos conservadores – para quem representava uma alternativa ao perigo liberal - ampliou a autoridade do executivo por meio de certas medidas. Entre elas, está o aumento dos impostos. Entretanto, o objetivo central do presidente, a completa institucionalização dos câmbios, requereria reforma constitucional, a qual necessitava de consentimento unânime dos nove estados colombianos. A desconfiança dos radicais da aliança de Núñez com os conservadores e seu domínio teórico em um estado e prático em alguns outros levou a obstruir a proposta. Reeleito em 1864, Núñez conseguiu rapidamente suplantar a revolta liberal que se seguiu com auxílio conservador. O fato de que a revolta se dia, principalmente, pelo temor de que o presidente reformasse a constituição fez do contexto a oportunidade ideal para que este projeto se concretizasse. A despeito de o feito haver aumentado sua dependência dos conservadores, Rafael nunca filiou – se ao partido, mas sim criou o Partido Nacional, com o auxílio de colegas independentes, e alguns simpatizantes conservadores. Consequentemente, a maioria dos liberais manifestou sua antipatia ao presidente e seus ideais partidários, em que predominavam progressivamente mais ex- conservadores e não liberais. De fato, após a morte de Núñez, em 1894, o Partido Nacional transformaria – se em pouco mais do que uma ala do Partido Conservador. A despeito do fracasso da criação de um partido alternativo, como é de praxe, Rafael conquistou quase todos os seus objetivos: A Constituição de 1886, escrita pelo conservador Miguel Antonio Caro se manteria até 1991. Fortemente centralista, renomeou os estados como departamentos, as assembleias passaram a ser eleitas com poderes regionais limitados e os governadores, diretamente nomeados pelo presidente. Ou seja, o partido que obtivesse a presidência seria capaz de controlar todo o poder executivo. A completa exclusão de um dos partidos políticos nacionais acirraria a competição, e como um resultado, as chances de violência. Além de estender o mandato presidencial a seis anos e permitir a reeleição imediata, retroceder no sufrágio universal masculino para as eleições nacionais, diminuir as liberdades civis, restabeleceu-se a pena capital. 38 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina A contribuição do regenerador 12 também incluiu a criação do Hino Nacional, de forma a fortalecer o sentimento nacional. As associações cristãs na letra clarificaram as intenções de estabelecer uma versão mais ortodoxa do credo católico, opostas ao período político anterior, de predominância liberal. As ideias a este respeito, não expressas na constituição de 1886, passaram a integrar o Acordo estabelecido com o Vaticano em 1887. À exceção da tolerância religiosa e da não obrigatoriedade do dízimo, todas as outras reformas liberais foram deixadas de lado. As propriedades eclesiásticas foram retornadas à sua proprietária original, esta, devidamente indenizada, e houve o retorno de ordens religiosas como a Companhia de Jesus, somada ao restabelecimento de uma versão reduzida do Foro Eclesiástico. Além disso, a Constituição que atrelava a educação pública aos dogmas da Igreja Católica, resultando no poder de veto clerical à bibliografia escolar, ao currículo e nomeação de professores. No entanto, ao artigo do decreto que causou mais agitação pública foi aquele que determinava a validação passada e presente de todos os matrimônios católicos, invalidando até o divórcio e segundo casamento do presidente Núñez. Felizmente para as suas relações coma Igreja, sua primeira esposa faleceu logo depois. Como Benito Juárez no México, o “regenerador” objetivava evitar que as controvérsias religiosas delineassem os debates políticos. Contudo, a Colômbia foi o único país latino-americano a firmar explícita aliança com os conservadores, restabelecendo formalmente os privilégios e poderes eclesiásticos. Na esfera econômica, apesar de as medidas do presidente serem menos significativas do que nos âmbitos político e religioso, houveram mudanças dignas de nota : o aumento dos impostos em prol dos artesãos que no entanto, não foi o suficiente em sua sistemática para estimular o nascimento de uma indústria nacional. A criação do Banco Nacional de Bogotá, por sua vez, gerou a emissão inaugural de papel moeda por parte do governo, substituindo os bilhetes de instituições políticas privadas. Entretanto, a emissão levemente excessiva de moedas acarretou certo efeito inflacionário. A reação da oposição liberal e da dissidência conservadora foi criticar as políticas monetárias regeneracionistas, alegando que representavam uma ofensa à ortodoxia teórica e uma ameaça às possibilidades de crédito internacional do país. Algumas camadas sociais também se inquietaram com o fato de que, nesta configuração econômica, o aumento dos salários era negativamente desproporcional a o dos preços. Concomitantemente, a desvalorização do peso no mercado internacional implicou o aumento dos preços das importações, agradando aos artesãos e indignando os importadores. A consequente melhora na posição competitiva das exportações 39 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina colombianas impactou positiva e particularmente a venda de sacas de café, levando o país a se tornar o segundo líder mundial, superado apenas pelo Brasil. Em decorrência dos resultados fiscais da centralização política, o governo nacional recuperou o controle sobre algumas das entradas que eram anteriormente recebidas pelos estados. Gerou – se também novos impostos, como duramente criticado sobre o café por significar, supostamente, um entrave para a integração colombiana aos mercados mundiais. A despeito de o tributo só haver se instituído após a morte de Núnez, este aprovava a geração de novos impostos, pois reconhecia a flagrante necessidade de aumentar a participação do governo como promotor de estradas de ferro e outras obras públicas de modo a melhorar a lamentável falta de infraestrutura colombiana. A primeira conquista neste sentido foi a pequena estrada de ferro até Bogotá, seguida pela linha de Cúcuta até Zulia, finalizada em 1888. No entanto, a bancarrota inesperada da companhia francesa responsável pela construção do Canal do Panamá representou um retrocesso desta sorte de políticas. A despeito do intuito de Núñez de construir um Estado mais centralizado e intervencionista, não ocorreu verdadeiro rompimento com a anterior agenda econômica liberal, sendo os maiores fatores determinantes da evolução e produção nacionais permaneceram sendo o mercado internacional e os recursos e topografias nacionais. Mesmo diante do progresso modesto na modernização do sistema público de transporte, algumas mudanças – impulsionadas pelo setor privado – começaram a ocorrer nas cidades mais importantes. As mudanças eram mais distintas em Bogotá, onde o primeiro telefone começou a funcionar em 1884, no mesmo ano em que uma empresa privada contratada pela prefeitura construiu o moderno aqueduto metálico que veio a substituir o arcaico sistema colonial. No entanto, estas benesses eram quase exclusividade dos centros, edifícios públicos e residências de classe alta. Na verdade, o progresso colombiano do fim do século XIX não apenas trouxe à luz, mas agravou as discrepâncias sociais preexistentes. Entretanto, o que incomodava os liberais era o extremismo político do presidente. Ainda que este passasse a maior parte do tempo em sua nativa Cartagena, encarregando o vice e futuro presidente Caro da gestão em Bogotá. De qualquer modo, o avis liberal, aqueles foram anos de profunda repressão, em que estes foram impossibilitados de ocupar quaisquer tipos de cargos executivos. Igualmente, os liberais se queixavam de que não lhes haviam permitido o acesso de direito no Congresso Nacional, assembleias departamentais de conselhos municipais. Entre os anos de 1896 e 1904, os liberais somente puderam eleger dois membros da Câmara de Representantes, e apesar de desfrutar de apoio minoritário em âmbito nacional, poderia 40 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina ter lhes sido possível alcançar a vitória em diversos distritos eleitorais caso as eleições houvessem sido conduzidas de forma justa. Muitos dos liberais foram exilados e jornais da oposição, silenciados. Entre outras vítimas da repressão oficial figuravam os artesãos de Bogotá, que, ainda que beneficiados pela reforma tarifária de Núñez se viam afetados pela contínua carestia. Consequentemente, em janeiro de 1893, foram às ruas em um protesto – em que se reporta a morte de quarenta e cinco pessoas - contra um jornal oficialista que colocava em dúvida suas qualidades morais. Além de atividade econômica restrita, os artesãos estavam sendo submetidos a severa vigilância pelas incipientes forças policias da capital. As queixas do partido liberal, portanto, representavam ameaça significativa à ordem política. Seus julgamentos do domínio conservador como ditadura eram de fato extremos, porém a situação era grave o suficiente para incitar falhas revoltas armadas em diversas ocasiões. Um destes casos foi o do levante liberal de 1895. A Guerra dos Mil Dias, entre 1899 e 1902, no entanto, constituir-se-ia de teor muito mais grave. A Guerra dos Mil Dias e a questão Panamense: dias difíceis A despeito de se autoproclamar o regenerador colombiano, as políticas de Rafael Núñez engatilhou duas catástrofes independentes durante a virada do século XIX: o desmembramento de seu território e a mais sangrenta de suas guerras civis. Esta se deu após um acirrado processo eleitoral, em que os liberais acusaram os conservadores de haver imposto como presidente o candidato de sua preferência. A tomada de posse de Manuel A. Sanclemente, homem de mais de oitenta anos e saúde debilitada despertou na ala libera a suspeita de que Caro pretendia governar o país indiretamente, impossibilitando qualquer mudança de cenário político. Outra causa apontada para a deflagração da Guerra dos Mil Dias foi o início de uma nova crise econômica: a depreciação dos produtos de exportação associada ao fim de hegemonia liberal havia impulsionado as importações de café no início da Regeneração, mas a rápida otimização da produção acarretou repentina queda de preços internacionais na segunda metade da década de 80. Os críticos da situação afirmaram que as políticas oficiais apenas fizeram agravar a problemática por meio de má administração monetária e imposição de obrigações fiscais às exportações de café em 1895. A veracidade destas afirmações é de difícil verificação, porém, foi eficaz em aumentar a oposição dos liberais e conservadores dissidentes, cuja maioria habitava a província cafeeira de Antioquia. Os dissidentes, que se autodenominaram Históricos ou Conservadores Históricos e, em contraste com os Nacionalistas de Caro, influenciados pelo legado de Núñez e seu Partido Nacional, nunca se aliaram formalmente aos liberais. Contudo, seu desapontamento lhes deu esperanças e debilitou o governo de Bogotá, e, em meados de 1889, militantes liberais geraram o novo conflito 41 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina civil, que acarretaria três anos de violência e a perda do território do Panamá. Mesmo que nas entranhas do próprio partido liberal, houvesse uma facção ciente das possíveis sequelas do conflito, o descontentamento popular já havia atingido níveis insustentáveis. Para a decepção dos liberais, assim que o conflito tomou suas devidas proporções, os conservadores históricos optaram por aliar-se ao governo ao invés de unirem forças. Em certa medida, é possível associar este padrão de comportamento ao dos liberais independentes para com os rebeldes conservadores de 1876. No entanto, estes liberais muito rapidamente mobilizaram um exército muito bem sucedido nos combates terrestres, que ocorreram especialmente no departamento de Santander, em que os liberais radicais possuíam ampla influência durante o período federalista. Apesar do sofrimento de uma derrota liberal em Bucaramanga, ao fim de 1899, seguiu-se uma vitória decisiva em que as forças rebeldes – lideradas pelos generais Rafael Uribe Uribe e Benjamín Herrera – subjugaram um importante exército estatal na batalha de Peralonso. No entanto, ao invés de estender sua vitória a Bogotá, embriagados pela confiança da vitória, aguardaram concessões governamentais. Estas jamais viriam, e o que ocorreria seria a definitiva vitória conservadora na batalha de Palonegro, entre 11 e 26 de maio de 1900. O embate entre os dois exércitos, aglutinou mais de 25.000 homens somou mais de 4.000 baixas, em sua maioria liberais. Muitos combatentes feridos eram abandonados, uma vez que o contingente de médicos e enfermeiras – em especial do lado revolucionário – era insuficiente para auxiliar a todos. A contaminação das fontes de água aumentou ainda mais o número de mortes, e os liberais nunca se recuperaram da massiva perda de pessoal, equipamentos e armas sofridas durante os mil dias de conflito. Após a batalha de Palonegro, os liberais apenas voltariam a lutar convencionalmente no Panamá e em intervalos no litoral, sendo reduzidos a uma espécie de guerrilha sem reais perspectivas de abalar o governo central. Esta sorte de ativismo guerrilheiro predominou na região alta de Madgalena e região, em que a colonização cafeeira estava em franco processo de expansão. Em pouco tempo, a guerra de guerrilhas passaria a possuir como marca definidora espasmos de brutalidade e banditismo de ambas as partes até que os liberais armados de classe alta se tornaram gradativamente partidários de uma solução negociada. As possibilidades de negociação pareceram brevemente favoráveis até o final de 1900, com a promoção de um golpe conservador depôs o idoso Presidente Sanclemente em favor de seu vice-presidente, José Manuel Marroquín. Este se mostrou tão intransigente quanto seu predecessor, contribuindo para que o a guerra civil apenas se findasse em 1902. O fato de que 2,5% da população 42 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina colombiana havia padecido no conflito e seu impacto econômico negativo aumentaram as exigências de paz. Atividades econômicas como a produção e o comércio foram interrompidas inúmeras vezes durante a guerra, apesar de tanto liberais como conservadores haverem contribuído com seu quinhão para a reconstrução do país, aqueles sofreram medidas punitivas. A inflação, contudo, não elege favoritos. O uso frequente da emissão de moeda de modo a cobrir as despensas militares governamentais, entre outros fatores, gerou um cenário em que o dólar, cuja cotação era de aproximadamente quatro pesos no período imediatamente anterior à guerra, fosse cotado em 100 pesos ao fim de 1902. A deterioração das relações com os Estados Unidos também promoveu o estabelecimento da paz: as negociações sobre a construção do Canal do Panamá, em que o governo colombiano expressou discordância com o desejo estadunidense de garantirem a segurança da estrada. O fato de que esse departamento havia sido um dos principais cenários da etapa final da guerra era algo sem dúvida inconveniente, e a incapacidade do governo em prosseguir com as negociações de maneira adequada neste período agravava ainda mais a situação. A diminuição de capacidade de negociação colombiana também afetaria negativamente a possível construção do canal de Nicarágua. De modo oportuno, o tratado que pôs fim ao conflito civil foi nomeado “Tratado de Winsconsin”14. Assinado em novembro de 1902 a bordo de navio estadunidense de mesmo nome estacionado na costa panamenha, o acordo oferecia garantias de proteção pessoal a exrevolucionários, mas nenhuma clara promessa de mudanças de natureza política. A tradicional ineficácia do uso da força pelos liberalistas de modo a alcançar seus objetivos exemplifica-se também neste contexto. No entanto, seria apenas um ano mais tarde que o desastroso resultado da questão do canal culminaria na bem sucedida separação do departamento do Panamá. As raízes seccionsitas da região, todavia, antecediam a Guerra dos Mil Dias: as autoridades espanholas a transferiram da jurisdição peruana para a de Nova Granada em um período em que o istmo passava por delicado reajuste econômico. Após a independência, as normas alfandegárias e distúrbios civis colombianos eram considerados pelos líderes panamenhos como entrave à verdadeira vocação da região: ser um empório mundial do livre comércio. Todavia, todas as anteriores declarações de independência – até o momento – haviam culminado na reintegração do istmo ao território colombiano. Preletores do federalismo como maximizador de sua autonomia regional, sentiram um forte golpe em seus objetivos no período ultra centralizador da Regeneração. Entre as principais queixas dos panamenhos estava a de que, por meio dos impostos gerados pelo trânsito, as taxas pagas pela Companhia da Estrada de Ferro do 43 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Panamá – entre outras fontes - o istmo produzia mais para o tesouro de Bogotá do que dele recebia em préstimos governamentais. O status de subordinados era tolerável aos panamenhos desde que pudessem continuar a usufruir do negócio do trânsito, que representaria a ruptura final com a Colômbia. O fracasso francês na construção de um canal ao nível do mar havia deixado o Panamá sem o sonhado canal, e o tráfego de carga e passageiros contínuo, restringido aos que já faziam uso da estrada de ferro preexistente, enquanto se conduziam as negociações com os Estados Unidos. A construção do canal em outra região era algo a ser evitado a todo custo pelos panamenhos, portanto a mera possibilidade de construção do canal em Nicarágua – caso falhassem as negociações colombianas - fez com que o Panamá conduzisse o acordo de forma independente. Em setembro de 1902, pouco tempo antes do fim da Guerra, o emissário colombiano em Washington, Tomás Herrán, finalmente firmou um tratado com o secretário de Estado norte americano John Hay para que a construção do canal de desse através do istmo. Entretanto, o acordo cedia aos Estados Unidos o controle permanente da estrita porção de terra em que seria construído o canal. Na visão dos líderes panamenhos, esta cláusula era a própria reflexão da incapacidade negociadora da Colômbia, no entanto, para a elite do istmo e para os promotores internacionais, os termos exatos do tratado eram menos importantes que sua assinatura. Ainda que alguns setores da sociedade de Bogotá não levassem a sério a afirmação americana de que, caso a Colômbia não ratificasse os termos do tratado, o país se engajaria em negociações com Nicarágua, os panamenhos recusavam-se a correr este risco. As grandes chances de que o Panamá se separasse caso o tratado não fosse ratificado pelo Senado colombiano eram evidentes antes do próprio início efetivo das deliberações a respeito. Em outros setores do país, também existiam aqueles que acreditavam que seria de mais valia obter um canal em termos poucos favoráveis ao país do que possuir canal sem alguma participação colombiana. No debate que se seguiu, no entanto, estas vozes se calaram. Sob a liderança do ex-presidente Miguel Antonio Caro - cuja imperícia em assumir compromissos de caráter doméstico influenciou o início da Guerra Civil - aqueles que se opunham ao tratado argumentaram de maneira acertada que ceder o controle permanente da região aos americanos violaria a soberania colombiana, o que tornaria o tratado inaceitável. Convencidos por Caro ou temerosos de demonstrar fragilidade em assuntos de defesa nacional, manipularam o panorama político e rejeitaram por unanimidade o tratado Hay-Herrán. É importante notar que a supracitada unanimidade se deu diante da ausência de um senador panamenho no momento da votação. 44 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina VII.2. A REVOLUÇÃO PANAMENHA: O ESCÂNDALO DA COMPLICIDADE IANQUE Três meses após a rejeição do Tratado Hay – Herrán, no dia 13 de novembro, ocorreu a Revolução Panamenha. A evidente cumplicidade americana, apesar de gerar fortes relações no âmbito doméstico colombiano, impediu que medidas contrarrevolucionárias eficazes fossem tomadas. Em algumas cidades do país, tiveram lugar manifestações antiamericanistas, e houve rumores sobre uma subjugação forçosa do Panamá. Os Estados Unidos, entretanto, justificou a proibição da entrada das tropas colombianas com o receio de que estas obstruiriam o livre comércio mercantil, também garantido no tratado. Os líderes locais do movimento americano – entre eles o promotor Phillipe Bunau – Varilla, ligado ao setor privado francês – buscaram obter a complacência da pequena força colombiana no Panamá por meio de subornos e redes sociais e pessoais de influência. A despeito de a revolução panamenha não haver disposto de apoio massivo, inexistiram manifestações de oposições viscerais ao golpe, ao passo que o reconhecimento diplomático do novo governo panamenho pelos Estados Unidos tardou poucos dias. O mesmo foi feito por diversos governos incluindo – para a insatisfação colombiana – o de países latino-americanos. O único aspecto menos grave no tocante à independência panamenha era o fato de que nunca havia existido forte solidariedade nacional entre estes e os colombianos. De fato, os laços da coesão colombiana eram frágeis, e vozes isoladas proclamavam que o exemplo panamenho não apenas não era reprovável, como deveria ser mimetizado por outras províncias. Em longo prazo, contudo, a perda do istmo acabou por integrar o longo e doloroso processo de nascimento da identidade nacional colombiana, contribuindo para o aumento da homogeneidade doméstica, fornecendo – lhes uma alteridade comum de efeito coesivo. Primeiramente, a Guerra dos Mil Dias somada à separação panamenha funcionaram como um abalo positivo para o setor político do país, ao expor a necessidade de transcender-se a antiga dicotomia partidária e de atuar coordenadamente no interminado dever de construção da nação. 45 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina VIII. ASPECTOS POLÍTICOS E ECONÔMICOS DO INÍCIO DO SÉCULO XX Desde a perda do território panamenho até a Grande Depressão de 1929, a Colômbia vivenciou o seu maior período de estabilidade interna na sua história como nação independente. Os partidos políticos tradicionais demonstraram uma incrível capacidade de diálogo, debate pacífico e competência, contrastando de maneira surpreendente com o cenário anterior (BUSHNELL,2007). Por sua vez, a economia batia recordes de crescimento. Em franca expansão e lucro, a produção cafeeira ocupava um lugar especial enquanto a indústria manufatureira e o petróleo ocupavam o segundo lugar no crescimento econômico. Tal panorama fazia os políticos colombianos vibrarem, ainda mais dentro do contexto lationamericano, embora a questão social do país demandasse maiores cuidados. VIII.1. A CORREÇÃO DOS EXCESSOS DA REGENERACIÓN: O LEGADO DE RAFAEL REYES Embora derrotado na Guerra dos Mil Dias e por ter fracassado no objetivo de apagar os atos chaves da Regenaración de Nuñes, o liberalismo colombiano demonstrou que o país não poderia ser governado de maneira correta enquanto um dos partidos fosse excluído do poder. Os conservadores mantiveram um ponot de vista exclusivista todo o tempo, e, enquanto o território do Panamá era perdido, se empenharam em trabalhar para a reconciliação nacional. Mas em momento algum os conservadores vencedores demonstraram alguma inclinação a fazer algum tipo de concessão significativa. (BUSNELL,2007). O general Rafael Reyes foi um dos defensores da colaboração partidária. Ganhou a primeira eleição presidencial pós-guerra, tomando posse em agosto de 1904. Natural do departamento3 de Boyacá, Reyes fazia parte da alta sociedade colombiana. Fez fama e fortuna na região do Cauca como empresário de êxito durante o boom da exploração da quinina amazônica4, mas perdeu parte de sua riqueza na tentativa de colonizar a zona marginal da Amazônia colombiana. De caráter conservador, lutou nas guerras civis de 1885 e 1895, onde se destacou como um grande oficial do exército. Desde o período já rejeitava as diferenças candentes entre os 3 Departamento: termo que designa a divisão politico-administrativa do território da Colômbia. Atualmente existem 32 departamentos. 4 Quina ou quinina (Cinchona spp.) é um arbusto originário das florestas tropicais da América do Sul. Sua casca foi largamente exportada e utilizada na Europa, no fim do século XIX, para fins medicinais, sendo eficaz no tratamento da malária. 46 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina partidos, assim como a rigidez ideológica que os norteava. Reyes estava totalmente convencido de que os colombianos precisavam superar as lutas partidárias e concentrar no progresso nacional. En tiempos pasados fue la Cruz o el Corán, la espada o el libro, los que hicieron las conquistas de la civilización; actualmente es la poderosa locomotora, volando sobre el brillante riel, respirando como un volcán, la que despierta los pueblos al progreso, al bienestar y a la libertad… y a los que sean refractarios al progreso los aplasta bajo sus ruedas. (BUSNELL, 2007) As palavras acima foram proferidas por Reyes, na Conferência Panamericana de 1901, ocorrida na Cidade do México, enquanto a Colômbia estava mergulhada na Guerra dos Mil Dias. Reyes se manteve fora do país durante a maior parte do conflito, regressando em seu término. Em seu retorno, tomou para si a responsabilidade pela luta para conciliar as vozes liberais e conservadoras da Colômbia, além de defender o Tratado Herrán-Hay5. Mesmo criticado por defender o Tratado e pelos esforços - em vão - para recuperar o território panamenho, Reyes conquistou a presidência, em 1904, com o apoio dos conservadores moderados e de alguns liberais, já que não competiu com um candidato liberal, e sim com outro conservador, Joaquín Fernando Vélez. Ações fraudulentas também fizeram parte do pleito eleitoral. […] Reyes contaba con la ayuda de un jefe local en la península de la Guajira, quien le dio los votos de sus electores mediante ciertas argucias. Finalmente, este acto fraudulento le permitió obtener el margen de victoria, pero fue un fraude beneficioso que aseguro el triunfo del candidato más popular: si los liberales hubiesen estado en posición de votar libremente, Reyes habría vencido en forma aplastante a su principal rival, un conservador menos flexible. (BUSNELL, 2007) Ao ocupar a presidência, Reyes prontamente buscou fazer o que propôs: a reconciliação nacional. Nomeou liberais para ocupar duas das cinco cadeiras do gabinete presidencial. Designou membros da oposição para ocupar cargos menos importantes, além de introduzir o principio de representação garantida da minoria em conformidade com os corpos deliberativos, desde os 5 O Tratado Herrán-Hay (1903) permitia aos EUA o controle de uma parte do território do Panamá (aproximadamente 9km), durante 99 anos (renováveis mediante novo pagamento), por US$10 milhões que deveriam ser pagos à Colômbia. 47 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Conselhos Municipais até o Congresso Nacional. Também se empenhou em reformar as forças armadas colombianas, profissionalizando seus serviços além de colocá-las acima dos interesses partidários, reforçando a necessidade de defesa das fronteiras nacionais e de manter a ordem constitucional do território sem restrições. Tal empreitada demandava uma reorganização da educação militar, que contou com a ajuda de uma missão chilena, haviam sido previamente instruídos por uma série de missões alemãs. Um dos efeitos diretos deste contato foi a adoção de uniformes militares de estilo prussiano. Outra medida de Reyes foi encorajar as famílias liberais a mandarem seus filhos para o serviço militar, a fim de equilibrar a questão partidária no seio das forças armadas. Mesmo com as medidas, Reyes sabia que a disputa partidária não evanesceria da noite para o dia. Houve bastante resistência dos oficiais em aceitar as mudanças, principalmente porque sua composição no alto escalão era de políticos conservadores que ocuparam cargos militares e que se tornaram receosos quanto a aceitação do presidente de se deixar cercar pelo inimigo liberal. Apesar do desacato às novas regras, o exército colombiano manteve, até 1953 (a época da Violência), um histórico de subordinação à autoridade civil. O trabalho de Reyes não enfrentava resistência apenas na ala tradicional das forças armadas. O Congresso também impunha uma série de entraves as demandas do presidente, como negar os pedidos para revisão do sistema tributário, de concessão de contratos para a construção de ferrovias, dentre outros. O presidente respondeu com a convocação de uma Assembleia Nacional, em 1905, cujos membros deveriam ser nomeados pelos administradores departamentais. A Assembleia adotou o principio de representação garantida da minoria, citado anteriormente, para as eleições futuras, e modificou a organização territorial da Colômbia, criando novos departamentos através do desmembramento dos existentes (que eram os mesmos desde o período federal), com o intento de diminuir os regionalismos tradicionais e melhorar a administração. Também outorgou ao presidente plenos poderes de decisão em assuntos econômicos e fiscais, além de estender o seu mandado: até dez anos de exercício. Estas medidas ilustravam o personalismo de Reyes, como também sua tendência a ignorar a Assembleia Nacional ou induzi-la a retirar do seu caminho qualquer empecilho legislativo. Reyes também tratou seus críticos com intransigência e arbitrariedade. Seu ato mais duro foi ter ordenado a execução sumária de quatro indivíduos envolvidos em uma tentativa de assassinato do presidente, em 1906. Essa foi a última vez que um presidente da Colômbia sofreu um atentado. Seu mandato, que durou cinco anos - conhecidos como o quinquênio - e não dez, como planejava, foi considerado uma ditadura moderada. 48 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Apesar de ter um caráter despótico, o mandato de Reyes também possui aspectos positivos e construtivos para a Colômbia, como a tentativa de trazer os liberais para o cenário político do país e promover a modernização econômica e tecnológica, principalmente através das ferrovias, como ocorrido na ditadura de Porfírio Diaz, no México (BUSNELL, 2007). Reyes também instituiu o Ministério de Obras Públicas, com o objetivo de melhorar e otimizar as vias de acesso das cidades e do país. Não obstante, suas políticas de recuperação econômica também deram novo fôlego ao país. A reforma monetária permitiu a queda inflacionária, e o novo peso passou a valer 100 vezes mais do que o peso anterior, facilitando transições comerciais e a aliviando o bolso do cidadão colombiano ao devolver a paridade de valor em relação ao dólar americano. As políticas fiscais de Reyes, consideradas ortodoxas, permitiram a manutenção do valor da nova moeda. Também renegociou a dívida externa da Colômbia diretamente com os credores internacionais, o que restabeleceu o crédito com a banca internacional, algo que não ocorria desde muito antes da Guerra dos Mil Dias. Para tanto, Reyes teve que aceitar a maioria das demandas dos credores, mas se beneficiou com a criação de um clima mais favorável ao investimento estrangeiro, que considerava imprescindível para o crescimento da Colômbia. Reyes também apoiou o crescimento industrial, concedendo benefícios fiscais e subsídios para a agricultura de exportação e indústria manufatureira. Rafael Reyes também buscou a melhoria das relações entre a Colômbia e os Estados Unidos da América, o que aumentou a oposição ao seu governo, já que as relações estavam abaladas desde o impasse envolvendo o Panamá. Contudo, Reyes sabia que poderia tirar benefícios das relações com os norte-americanos para trazer mais força e prosperidade para a Colômbia. Em troca do reconhecimento formal da independência do Panamá, negociou um acordo indenizatório com tratamento preferencial no uso do futuro canal. O fim do mandato de Reyes fora marcado por um profundo sentimento de rejeição: imprensa, intelectuais e políticos da oposição investiram em uma propaganda “antirreyista”, que resultou em vários protestos contra o governo, em 1909, contra o Tratado Urrutia-Thompson, que culminaram na partida de Reyes do país. VIII.2. AS ÚLTIMAS DÉCADAS DA HEGEMONIA CONSERVADORA Mesmo que a negociação do Tratado Urrutia-Thompson entre Colômbia e EUA tenham acelerado a queda de Reyes do poder, havia uma razão igualmente plausível ao ressentimento em relação ao Panamá para que o presidente se afastasse do cargo: o caráter ditatorial do governo de 49 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Reyes. A ditadura irritava tanto os liberais quanto os conservadores, pois limitava a oportunidade de políticos de ambos os partidos se destacarem no cenário político. Contudo, o modus vivendi pacífico entre os partidos, idealizado por Reyes, sobreviveu ao seu exílio. A Reforma Constitucional de 1910 manteve o principio de representação garantida da minoria, tanto no Congresso quanto em outros corpos deliberativos, além de reduzir o mandato presidencial para quatro anos, proibir a reeleição imediata e abolir a vice-presidência. Os conservadores ganharam as eleições presidenciais até 1930, mantendo o legado de Reyes de nomear liberais para cargos administrativos importantes. E, ao contrário de Reyes, mantiveram-se longe das práticas de caráter ditatorial, respeitando o tempo de mandato. Os liberais, por sua vez, não se sentiram satisfeitos com as nomeações para cargos e com as posições adquiridas eleitoralmente (BUSNELL, 2007). Sofriam com intimidações e fraudes eleitorais por parte de partidos ultraconservadores, principalmente nos departamentos mais remotos, como o de Guasca. Mesmo com os entraves, as velhas querelas que separaram os partidos durante o século XIX – como a questão constitucional e as relações entre Igreja e Estado – haviam perdido sua importância. Os liberais mantinham seu descontentamento com os privilégios concedidos à Igreja durante o período da Regeneración, mas aprenderam a coexistir com eles, estabelecendo instituições de ensino privadas e laicas, a fim de minimizar o controle eclesiástico na educação de seus filhos. Também haviam reconhecido que foi necessário o fortalecimento do poder central, tal como Nuñes havia feito. Estas medidas, no entanto, fizeram com que os liberais perdessem interesse pelo federalismo, buscando um fortalecimento periférico, através do aumento do seu poder e influência em escala nacional (BUSHNELL, 2007). Rafael Uribe, importante dirigente liberal da Guerra dos Mil Dias e seguidor das ideias de Reyes, era defensor do “socialismo de Estado”, uma ideia que flertava diretamente com o reformismo social-democrático. Uribe foi assassinado em 1914 sem nem ter tido a oportunidade de colocar em prática suas ideias, mas outros liberais passaram a defender reformas sociais e trabalhistas, ao menos para moderar o surgimento de pequenos núcleos socialistas e radicais na década de 1920, inspirados pelas revoluções Russa e Mexicana.O incipiente movimento político e trabalhista de esquerda teve repercussões na esfera intelectual, representadas através de publicações radicais e na formação de pequenos grupos socialistas de discussão em Bogotá e outras cidades. O último presidente da série conservadora foi Miguel Abadía Méndez (1926-1930), um professor de direito constitucional, que manteve sua cátedra quando eleito, ministrando aulas no Palácio Presidencial. Sua acessibilidade com certeza era um diferencial em relação aos outros presidentes. Enfrentou uma revolta dos coletores de banana, que foram reprimidos pelo exército. O 50 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina presidente mais notável desde Reyes até Abadía Méndez foi Marco Fidel Suaréz (1918-1921), filho ilegítimo de uma campesina antioquenha6, que renunciou antes que terminasse o mandato. Admirador fervoroso dos Estados Unidos da América e de Abraham Lincoln, principalmente por partilhar com este o berço ilegítimo. Trabalhou por melhorias na política externa colombiana, lançando a “Doutrina Estrela Polar”, segundo a qual a Colômbia deveria se guiar pelo norte (Estados Unidos) para encontrar um modelo de democracia social e política, assim como encontrar um colaborador de assuntos políticos e econômicos. Suárez comprometeu-se em conseguir a ratificação do Tratado Urrutia-Thompson, que determinava o pagamento de uma indenização no valor de 25 milhões de dólares pelos americanos pela intervenção que resultou na perda do território panamenho e regularizava as relações entre Colômbia, Estados Unidos e a jovem República do Panamá. Quando percebeu a pressão que o Congresso colombiano fazia para a não ratificação do tratado, resolveu renunciar e deixou para o seu sucessor a tarefa de conduzir o Tratado a uma resolução favorável. Pedro Nel Ospina, eleito em 1922, foi uma figura que carregou um entusiasmo similar ao de Reyes em relação à construção da economia colombiana. Graças ao pagamento da indenização pelos americanos e pela extrema abertura que Wall Street dava em relação a concessão de empréstimos, Ospina dispôs de muito mais recursos do que qualquer antecessor, que utilizou na construção de ferrovias e outras obras públicas importantes. Um grande avanço foi a criação, em 1919, da Sociedad Colombo-Alemana de Transporte Aéreo (Scadta), uma corporação colombiana de aviação criada por uma colônia alemã de Barranquilla. Foi reorganizada durante a Segunda Guerra Mundial, passando a ser conhecida como Avianca, a mais antiga companhia de aviação comercial do continente americano e atualmente uma das maiores do mundo. A Scadta foi um sucesso imediato que desafogava o transporte terrestre e naval colombiano, que apesar dos investimentos, ainda era bastante precário. E também não esperou para que aeroportos fossem construídos: operava com hidroplanos. Ospina foi o primeiro presidente a viajar em um avião comercial, de acordo com a própria Avianca. Um dado difícil de ser provado, mas que é de extremo interesse para um presidente que pretendia fazer um alto investimento nos transportes nacionais. Apesar dos investimentos em obras públicas e de uma economia em expansão, pouco era feito pelos programas de educação e bem-estar social das camadas populares. As medidas de combate ao analfabetismo só começaram, de maneira ostensiva, em 1930. No mesmo ano houve um aumento pequeno, mas significativo, da expectativa de vida do cidadão colombiano: de 30,5 (em 6 Tradução livre. Nascida no departamento da Antioquia, Colombia. 51 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina 1910) para 34 anos, demonstrando uma grande necessidade de investimento nos programas de saúde pública da Colômbia. Mas as obras públicas continuaram sendo o foco de investimento, inclusive em detrimento das forças armadas. Este ponto, em particular, demonstra uma política típica do conservadorismo, totalmente civil em espírito, que receia até certo ponto o poder militar. Outra observação pertinente é a necessidade dos conservadores colombianos em embasar os mandatos presidenciais na tradição social e nas relações com a Igreja, em detrimento das classes sociais mais baixas, cuja inferioridade era considerada natural. A década de 1920 foi marcada pelo estreitamento das relações com a Igreja Católica, algo visto anteriormente apenas no século XIX (BUSNELL, 2007). Vale ressaltar que essa relação não era entre a Igreja e o Estado, e sim entre a Igreja e o Partido Conservador. Os sacerdotes católicos exerciam uma grande influência para o êxito dos conservadores nas eleições, e também alimentavam uma luta contra os liberais, esquecendo-se das injustiças sociais e econômicas, que, aliás, eram justificadas pelo desígnio divino: a ordem social existente fazia parte da Providência. Poucas eram as regiões que tinham pouco controle eclesiástico, como a costa do Caribe. A região com predominância religiosa era, certamente, importante para a manutenção dos interesses do Partido Conservador. VIII.3. CAFÉ, TECIDO, PETRÓLEO E BANANA Até certo ponto, a relativa tranquilidade que predominou nos anos seguintes ao mandato de Reyes resultou que tanto os liberais quanto os conservadores conseguiram canalizar suas energias de oposição através dos investimentos industriais, sobretudo na produção cafeeira. O aumento significativo das exportações anuais durante a década de 1920 deve-se, principalmente, ao café. A Colômbia era o segundo maior produtor de café da época, posto ocupado anteriormente pela Venezuela, perdendo apenas para o Brasil, que ocupava com folga o primeiro lugar na produção e exportação mundial. As condições de demanda mundial pelo grão devem-se, primeiramente, ao alargamento do mercado consumidor, que estimulou as inovações no processamento do café. América do Norte e Europa estenderam seu costume de consumo da bebida a todas as classes sociais. Nos Estados Unidos, em particular, o café era um artigo de consumo popular. Em segundo lugar, a campanha brasileira pela manutenção do preço do café no mercado mundial, iniciada em 1906, ajudaram a manter uma margem de lucro estável e favorável à produção contínua. Por outro lado, o investimento no transporte ferroviário foi também de grande importância para a indústria cafeeira. A otimização das ligações entre indústria e porto também impulsionou a criação de novas 52 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina povoações e o crescimento dos núcleos urbanos. O café ajudou na conservação da ordem socioeconômica capitalista e da ordem política liberal-conservadora ao tornar as massas rurais mais maleáveis à aceitação destas. Mesmo com o café sendo o produto em destaque, outras áreas merecem ser citadas, como a indústria de tecidos, a extração petrolífera e o cultivo da banana. As fábricas de tecidos surgiram como pequenas empresas, especialmente na região de Mendellín, com força laboral formada principalmente por mulheres e crianças da classe trabalhadora local. Essas indústrias tinham um caráter fortemente paternalista. As funcionarias recebiam um tratamento especial, desde dormitórios vigiados, que contavam com educação eclesiástica e cursos de superação pessoal nas horas vagas. Com o tempo, o homem começa a tomar um espaço significativo, como mão de obra especializada, mas ainda tímida pelo alto valor de seu serviço. Desde o início do século XX, por interesses tanto estrangeiros quanto nacionais, o petróleo passou a ser procurado, com impulso principalmente das indústrias petrolíferas americanas, como a New Jersey’s Standard Oil Company (que subsidia a Tropical Oil Company), que investiram na extração, refinamento e transporte – com a construção de oleodutos até os portos de Cartagena – primeiramente para o consumo interno colombiano, e posteriormente para exportação. A Colombian Petroleum era subsidiada pela Gulfy Socony e enfrentou uma série de problemas legais com seus direitos de concessão e somente na década de 1930 pôde iniciar uma produção significativa. A exportação de banana corresponde a 6% do total de exportações do país. A United Fruit Company, de Boston, é a empresa responsável por controlar a indústria bananeira, não só na Colômbia, mas também de alguns países da América Central e do Caribe. Na Colômbia, a empresa controlava a ferrovia de Santa Marta, responsável pelo transporte do produto até o porto, além de controlar também a distribuição de água para a zona de plantio e alguns políticos locais e nacionais, a fim de manter seus privilégios através de “representantes legais”. Os níveis salariais para os trabalhadores das plantações eram significativamente maiores em relação a outros trabalhadores relacionados com a agricultura. 53 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina IX. A REPÚBLICA LIBERAL (1930-1946) A Colômbia é uma das poucas nações latino-americanas que não sofreram uma mudança de governo por meios revolucionários ou golpistas durante os anos da Grande Depressão. Pelo contrário, o governo conservador caiu em eleições livres e transferiu pacificamente seus poderes a um presidente liberal. Iniciou-se desta maneira um período marcado por um rápido câmbio social e uma controvérsia política que duraria até 1946, quando os conservadores voltariam a assumir o controle do governo. O fator decisivo para o afastamento do partido conservador do governo, em 1930, foi que estes haviam dividido seus votos entre dois candidatos diferentes, para a sorte do candidato liberal Enrique Olaya Herrera que levou as eleições, mesmo que por maioria simples. Em outras ocasiões em que o partido conservador havia se portado da mesma maneira, solicitavam ao Arcebispo de Bogotá que servisse de árbitro e apoiasse a decisão do prelado. Em 1930, o arcebispo teve dificuldades de se decidir e apoiou cada um dos candidatos, em tempos diferentes. Com a falta de articulação, o partido liberal voltava ao poder depois de cinquenta anos nos bastidores da oposição. A crescente crise econômica e a reação contra o governo conservador por sua inflexibilidade diante da revolta dos bananeiros em 1928, assim como outros erros e omissões acumulados não só abaixaram visivelmente o apoio ao governo como também impulsionou as campanhas da oposição. Em 1930, o problema do partido liberal era o longo distanciamento do poder que esteve condicionado, ocupando apenas cargos reservados a oposição, corpos colegiados e outros cargos de prebenda, cedido pelos conservadores. Durante quase meio século sem conseguir ocupar o governo, o partido liberal guardou vários rancores e insatisfações. Olaya Herrera sabia que muitos problemas poderiam surgir a partir destes desagrados e procurou tornar o processo de transição o menos brusco possível através de um governo de coalizão, com membros do partido conservador no gabinete e em outros cargos do governo. No que tange a relação entre as cúpulas dos partidos, a coalizão teve relativo sucesso, mas em vários departamentos se registraram problemas e alguns episódios violentos. Em alguns casos, houve liberais em busca de um acerto de contas por desavenças e injustiças – reais ou imaginárias – causadas durante o mandato de adversários. E também houve conservadores que não queriam entregar o poder pacificamente. O saldo de mortos e feridos foi insignificante se comparado ao período da Violência, nas décadas de 1940 e 1950 e não teve uma grande notoriedade frente a espetacular mudança de poder que ocorria em Bogotá. Com a onda de violência controlada, o único incidente verdadeiramente dramático durante a administração de Olaya Herrera foi o conflito fronteiriço na região amazônica, que se iniciou 54 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina quando um grupo de aventureiros peruanos tomou a estreita extensão territorial colombiana que cobre o rio Amazonas, na población de Letícia. Mesmo que o grupo não tivesse instruções expressas do governo de Lima, o feito provocou o entusiasmo da população peruana, que clamava o território para si, mesmo após o tratado de fronteiras firmado em 1922. Houve um breve conflito armado, e a reafirmação por parte do Peru em relação à posse do território de Letícia a Colômbia. O conflito teve lados positivos, como o fortalecimento do patriotismo colombiano e o auge do gasto militar, cujo efeito do fomento para a atividade econômica ajudou o país a se recuperar da crise mundial mais rápido do que o previsto. É válido ressaltar que os efeitos da crise não foram tão traumáticos no caso colombiano. A população rural combinava agricultura de subsistência com produção para o mercado e assim pôde absorver um grande número de trabalhadores que ficaram desempregados nos centros urbanos. Na indústria cafeeira, a baixa dos preços foi compensada em parte pelo aumento do volume do café vendido. Mas as medidas que foram adotadas conscientemente para manobrar os efeitos da crise econômica tiveram vários fatores contraditórios. De um lado, como toda a América Latina durante o período em questão, a Colômbia desvalorizou sua moeda através de medidas cambiais, para tornar suas exportações mais competitivas, e mais escassas e caras as importações. Tais medidas defensivas serviam para estimular uma industrialização que substituísse as importações. Por outro lado, Olaya Herrera tinha um comportamento bastante complacente com o governo e empresários norte-americanos, alimentado pela expectativa de que os Estados Unidos da América pudesse ajudar a Colômbia a resistir frente a Depressão. Olaya Herrera tivera algumas complicações que envolviam seu relacionamento com o governo e as empresas norte-americanas na Colômbia. Quando precisou nomear um novo Ministro das Indústrias, cargo responsável pelo petróleo e a banana, o presidente buscou conselhos do embaixador norte-americano para se certificar que a nomeação seria satisfatória para eles. A sugestão dada por Olaya para o cargo era boa, mas o funcionário assinalou que o candidato tivera problemas com a United Fruit Company e que, portanto, o presidente deveria checar diretamente com o gerente local da companhia. Este, por sua vez, levou a consulta do presidente até a sede, em Boston. E só após a aprovação de Boston que o presidente nomeou o candidato para o cargo. Isso demonstrava que Olaya confiava bastante nos Estados Unidos, e que também era favorável aos interesses norte-americanos, novamente impulsionados pela crença de que Wall Street seria complacente com a Colômbia frente a Depressão, o que nunca aconteceu de fato. Atarefado com a Depressão e o caso de Letícia, o presidente Olaya não teve muito espaço para promover mudanças significativas, embora tenha sido durante sua administração que os 55 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina liberais adotaram algumas medidas visando o futuro político. Os trabalhadores conquistaram alguns avanços nas políticas trabalhistas, como jornada fixa de oito horas por dia e o direito de organização de sindicatos. Outra conquista foi o direito de conferir o grau de bachiller7nos colégios femininos, indispensável para entrar na universidade. Resultado disso foi o ingresso de 284 estudantes mulheres nas universidades, no ano de 1938. Também houve a revisão do Código Civil para outorgar às mulheres o direito legal de gozar e dispor de propriedades enquanto casadas. Essa mudança gerou uma série de protestos por aqueles que consideravam a medida ameaçadora aos valores tradicionais da família. Mas as controvérsias sobre estas ações foram bem menores se comparado com as mudanças ocorridas durante a gestão do presidente Alfonso López Pumarejo, sucessor de Olaya Herrera, eleito sem oposição em 1934. IX.1. A REVOLUCIÓN EN MARCHA Alfonso López Pumarejo desempenhou na Colômbia um papel semelhante ao de Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos da América, e, sem dúvida, se inspirou no New Deal para resolver diversos assuntos. Pumarejo foi o primeiro presidente a centrar o debate político nos temas trabalhistas e sociais, despertando a oposição de vários políticos e empresários tradicionalistas. Mas seu governo promoveu bruscas mudanças no país. Como Roosevelt, Pumarejo era um homem de posses, um banqueiro, portanto sabia bem que a Colômbia não podia continuar ignorando os problemas de alienação política e falta de interesse no crescimento nacional por parte da classe economicamente ativa, que chegou a descrever como “esa vasta classe económica miserable que no lee, que no escribe, que no se viste, que no se calza, que apenas come, que permanece... al margen de la vida nacional”8 (BUSHNELL, 2007). Em sua opinião, tal abandono não era somente errôneo, mas também perigoso, pois mais cedo ou mais tarde as massas exigiriam uma maior participação nas comodidades da vida. López Pumarejo acreditava que seu partido deveria tomar a iniciativa e canalizar tais demandas de forma pacífica, o mais breve possível. Já havia alguns indícios de insatisfação popular e reclamações a nível socioeconômico, bastante diferente dos convencionais estalos de violência política entre liberais e conservadores. O exemplo mais ilustre foi a greve dos bananeiros, em 1928. Outras regiões do país apresentavam grande agitação, principalmente na zona agrária, perceptíveis àqueles que acompanhavam o assunto 7 Grau equivalente ao segundo grau completo. 8 “essa vasta classe econômica miserável que não lê, que não escreve, que não se veste, que não se calça, que apenas come, e que permanece... na margem da vida nacional” (tradução livre). 56 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina com atenção: disputa sobre títulos de propriedades, conflitos entre proprietários e locatários, movimentos do campesinato que inutilizavam as grandes fazendas. Tais episódios demonstravam a extrema insatisfação dos trabalhadores agrários, cujas necessidades não eram atendidas pelos patrões. Em um extremo, grandes latifúndios ociosos durante a maior parte do tempo estavam reservados à pecuária extensiva, enquanto no outro extremo estavam uma enorme quantidade de camponeses cuja propriedade estava demarcada em precárias e minúsculas extensões de terra que não geravam o sustento apropriado para as famílias que ali residiam (BUSHNELL, 2007). Nas cidades a população também dava sinais de descontentamento. À medida que os núcleos urbanos cresciam, também cresciam as demandas. Bogotá sofreu com o ritmo acelerado da urbanização ocorrida na primeira metade do século XX, assim como ocorreu também nas cidades de Mendellín e Barranquilla. O crescimento urbano se dava através da expansão de serviços e da construção civil e também da indústria manufatureira. Entre 1929 e 1945, a atividade industrial duplicou sua porcentagem dentro da produção total do país. Esse crescimento foi estimulado principalmente pelo impacto da Depressão, que causou a diminuição dos preços dos produtos de exportação, fazendo com que os preços de importação se tornassem impraticáveis para os consumidores colombianos, desencadeando assim um nacionalismo econômico, como já mencionado anteriormente. Durante a década de 1930, a produção têxtil em particular havia crescido em um ritmo anual maior do que o registrado na Inglaterra durante a fase de “despegue” da Revolução Industrial. Por outro lado, essa indústria de tecidos não provocou um processo duradouro, nem autossuficiente, de crescimento econômico na Colômbia como foi à Inglaterra no século XVIII. Posto que a tecnologia era em sua maioria importada, a expansão não teve a mesma amplitude nos efeitos secundários sobre o resto da economia, e a falta de poder aquisitivo das massas colombianas acabou por impor certas limitações que foram muito menos perceptíveis na Inglaterra – especialmente porque no caso inglês a indústria voltava-se principalmente para a exportação, o que não ocorria na Colômbia. As fábricas colombianas não foram o palco principal para as ações da militância trabalhista, esta se tornou bastante expressiva entre os trabalhadores dos transportes. Sem embargo, o progresso da industrialização colocou em evidência que mais cedo ou mais tarde havia de se enfrentar problemas de ordem trabalhista. O presidente López Pumarejo testemunhou, portanto, o começo de problemas sociais potencialmente graves e procurou fazer algo a respeito antes que a situação se tornasse realmente crítica. Adotou um programa que denominou como a “revolución en marcha”, embora não tivesse nenhum caráter de luta ou violência radical, comum aos levantes ditos “revolucionários” que a América Latina observava à época. Pumarejo também não tinha nenhum intento de desmontar o 57 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina sistema social e político colombiano. A intenção do presidente se dava principalmente em ajudar a massa miserável e pobre do país a alcançar uma participação mais significativa nos benefícios do sistema, assim como fez o presidente Roosevelt nos Estados Unidos da América e Lázaro Cárdenas no México. A revolução mexicana, que estava muito mais em concordância com o espírito revolucionário que o programa de López – apesar de não ser estritamente marxista em sua orientação ideológica – passava pelo seu momento mais radical como movimento em busca de mudanças socioeconômicas; além de o caso mexicano ter servido como modelo para algumas das reformas que seriam promovidas na Colômbia(BUSHNELL, 2007). O presidente colombiano então patrocinou a primeira lei de reforma agrária no país, em 1936. Tratava-se de uma medida moderada, que estabelecia aos camponeses a posse das terras ociosas tomadas por estes, desde que não detivessem posse de outra propriedade. O governo também impôs tributos mais altos às terras que não apresentavam uma boa utilização ou eficiência em termos produtivos, e em algumas regiões o governo passou a comprar propriedades privadas que foram divididas e redistribuídas a camponeses agricultores. Na verdade, essa tática fora uma herança do governo de Olaya Herrera, utilizada por ele para amenizar tensões em zonas críticas de conflito entre camponeses e proprietários. Como era uma medida bastante dispendiosa, não podia ser utilizada extensivamente, mas sem dúvida foi a mais eficiente para superar o descontentamento rural, e mesmo com alguns pequenos pontos contraproducentes, as tensões agrárias diminuíram visivelmente nos anos posteriores a lei de reforma agrária de 1936. De forma geral, o governo de López era reconhecido como protetor da classe trabalhadora, não exatamente por ter imposto uma legislação específica no campo social, mas principalmente por abandonar uma prática sustentada, as vezes de modo indiscriminado, pelos governos conservadores: colocar o Estado e seus serviços em favor dos proprietários e patrões e suas demandas nas disputas trabalhistas. Para López, se os patrões não pudessem contar com o poder coercitivo do Estado que favorecesse seus interesses, então se tornariam mais receptivos e justos com as demandas de seus trabalhadores. Ao mesmo tempo, a formação de sindicatos trabalhistas ganhou total apoio e estímulo do Estado, duplicando seu número ao fim do mandato de López. Em 1936, foi criada a primeira confederação nacional de trabalhadores, a “Confederación de Trabajadores de Colombia” (CTC). De certa forma, podia ser considerado o braço trabalhista do Partido Liberal ou pelo menos sua ala mais ativista, pois também contou com a participação destacada de seus membros comunistas. Em ensejo, é prudente ressaltar que não havia muitos comunistas na Colômbia, em parte devido a própria natureza do sistema de partidos políticos do país, cujo caráter bicameral 58 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina deixava pouco espaço para o estabelecimento de outros grupos ideológicos. Chegou a ser formado um pequeno e inexpressivo partido comunista, que não ganhava nenhum tipo de apoio do governo. López também aumentou expressivamente os gastos públicos com a educação, em rodovias e acessos (principalmente em áreas rurais), e na reforma do sistema fiscal. A Colômbia já contava com um moderado sistema de imposto de renda, estabelecido durante a era conservadora, mas López elevou as porcentagens, uma vez que reforçou o sistema de arrecadação fiscal, mesmo que o interesse em erradicar a evasão das declarações fosse baixo. Elevou as taxas e melhorou a arrecadação, especialmente das firmas estrangeiras, como as americanas Tropical Oil Company – que pagou em um ano a quantidade equivalente aos oito anos anteriores ao governo López – e a United Fruit Company, que sofreu igualmente com os ajustes fiscais, motivado em parte por certo rancor liberal pelas concessões dadas pelos governos conservadores a companhia, que acabaram por gerar a greve bananeira de 1928. A United Fruit ainda teve que lidar com o apoio do Estado aos seus funcionários colombianos em disputas trabalhistas em tramitação, além de ter recebido severas punições pelas denúncias de conduta do gerente local da companhia, que chegou a ser preso por alguns dias. Por fim, López promoveu uma série de reformas constitucionais adotadas em 1936, envolvendo três pontos principais: o aumento do poder do Estado em assuntos econômicos, deixando entendido que os direitos de propriedade devem ser limitados pelos direitos e obrigações sociais. Essa medida deu bases constitucionais expressas a todas as inovações que o liberalismo já havia adotado em assuntos socioeconômicos, e, por sua vez, abriu caminho para posteriores mudanças. O segundo ponto foi a eliminação do artículo que dava à religião católica total responsabilidade na condução da educação pública nacional. López não pretendia fechar colégios católicos ou retirar dali a direção religiosa, apenas queria deixar claro que a autoridade máxima no campo educativo era o Estado, e não a Igreja. O ministro da educação também incentivou a educação mista em instituições oficiais, mas de maneira bastante discreta, já que o assunto ainda era tabu, além de convidar catedráticos europeus humanísticos liberais para lecionarem em colégios e universidades, provavelmente com o intuito de formar uma massa que pudesse posteriormente confrontar a Igreja e seus valores morais e religiosos. Por último, houve a supressão do requisito do analfabetismo para votar, já que na década de 1930, a grande maioria dos cidadãos ainda era analfabeta. O voto feminino, embora fortemente apoiado pelo Partido Liberal, ainda teria que esperar, pois, na concepção do governo as mulheres eram mais suscetíveis às influências da Igreja, podendo assim serem levadas a votarem no Partido Conservador, que estava bastante comprometido 59 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina com o ponto de vista de que as mulheres haviam sido criadas por Deus para cultivarem as virtudes domésticas e não para participarem de atividades políticas. A extensão do sufrágio era importante por seu conteúdo simbólico, como evidência do compromisso do governo de que as classes baixas participariam do sistema político, assim como todas as outras reformas de López foram desenhadas para que o grupo pudesse participar dos benefícios do sistema econômico e social. Até certo ponto as medidas de López aumentaram as desigualdades, uma vez que beneficiou e melhorou a situação de um ambicioso segmento popular médio, superior à população camponesa e dos trabalhadores urbanos organizados, mas, em termos gerais, não beneficiou em nada a maioria da população. Evidencia disso foi a extinção da segunda classe dos vagões dos trens colombianos, mantendo-se a primeira e terceira classe, sem meio termo, explicado pelos funcionários das ferrovias como uma adaptação “mejor del servicio a las modalidades del público... y simplificar la formación de trenes”9. Em outras palavras, a maioria popular somente podia pagar pelos duros assentos de madeira da terceira classe, enquanto as classes médias em ascensão buscavam o conforto – e status – oferecido na primeira classe, não sobrando clientela para a segunda classe. Portanto, o maior legado de López Pumarejo foi dar o primeiro passo para enfrentar os problemas sociais da nação. Problemas que até mesmo a sua oposição não poderia negar a existência. Por esta razão, López pode ser considerado, nas palavras de um conservador, como “el personaje más importante que hemos tenido en este siglo”10. Como parte da mesma contribuição, fez com que amplos segmentos da população trabalhadora tomassem consciência pela primeira vez de que não estavam condicionados a uma marginalidade e que a sua situação poderia ser melhor. López despertou a esperança da população muito mais rápido do que o seu partido havia calculado, e evidentemente aumentou o número de votantes liberais. Por outro lado, as frustações se acumularam na mesma rapidez que a esperança havia desabrochado além de provocar uma amarga oposição do Partido Conservador. Uma circunstância política agravante foi a crescente influência da “direita radical”, principalmente nas filas do Partido Conservador. Até o início da década de 1930, mesmo que ambos os partidos não praticassem sempre o que pregavam, a crença teórica na democracia política era um consenso, mas na metade de década os partidos passaram a ter certo apreço pelas diferenças a este respeito. Os liberais não mudaram suas crenças políticas, tampouco a maioria dos conservadores, mas alguns destes começaram a questionar os princípios básicos do governo democrático. Havia 9 “melhor do serviço as modalidades do público... e simplificar a formação de trens”. (tradução livre) 10 “o personagem mais importante que tivemos neste século”. (tradução livre) 60 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina uma influencia estrangeira, vinda principalmente dos governos fascistas estabelecidos na Itália, Alemanha e Espanha, aliás, alguns dos membros conservadores eram alinhados politicamente com Francisco Franco e seus nacionalistas da guerra civil espanhola (1936-1939). Porém o assunto era mais complicado, e o caso mais complexo foi o do doutor Laureano Gómez, que surgiu autodenominado como o líder inquestionável do Partido Conservador. Engenheiro com vasta carreira política e com uma excelente folha de serviços enquanto ministro de obras públicas durante a última década do governo conservador, Gómez havia sido crítico das ditaduras nazifascistas no começo da década de 1930, mas suas críticas se tornavam cada vez mais amenas e inócuas com o passar do tempo – o debate sobre a “mudança” de lado de Gómez é um debate controverso entre os estudiosos e, portanto, não será levado a cabo neste guia. Não obstante, estava de acordo com os fascistas em alguns pontos e sem dúvida havia recebido destes uma grande influência: seu ódio pelos bolcheviques, ser abertamente antissemita e apoiador de Franco, além de estar de acordo que a democracia ocidental era decadente. Já haviam aparecido conservadores da mais lunática e extrema direita evocando a implementação de uma ditadura totalitária de corte, nos moldes alemães e italianos, assim como também existiram liberais de extrema esquerda que eram companheiros de rota da intentona comunista. Gómez não buscava tal extremismo, mas sim criticava a democracia liberal que se dava no país – especialmente quando os liberais estavam no poder – e começava a questionar se o vazio entre a teoria liberal e a prática colombiana. Aparentemente, Gómez não havia definido como lidaria com o poder caso tivesse a oportunidade de ascender. Aperfeiçoou-se em um estilo político de confrontação e utilizou abertamente seu jornal “El Siglo” para denunciar as políticas liberais como indignantes além de dar grandes dimensões a qualquer pequeno deslize do governo, buscando sempre o nível do escândalo nacional. Por seu negativismo, Gómez ficara conhecido entre os liberais como “El Monstruo”. IX.2. PAUSA EM CASA E GUERRA NO EXTERIOR O mandato de López Pumarejo chegou ao fim em meio a uma crescente polarização do debate político. Na luta pela nomeação liberal para o período seguinte, o candidato mandatário perdeu ante o favorito dos liberais mais moderados. Tratava-se do doutor Eduardo Santos, dono do principal jornal do país “El Tiempo” e que, em 1938, ganhou a presidência, mais uma vez sem oposição, pois os conservadores não conseguiram lançar um candidato, no entanto alegaram que não podiam contar com uma eleição justa e supuseram que a ausência de um candidato estimularia as lutas internas entre os liberais. Por outro lado, os conservadores demonstraram uma boa 61 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina disposição em relação a Santos, candidato que pretendia dar ao país uma “trégua” de quatro anos: não revogou nenhuma mudança de López e também não promoveu nenhuma alteração expressiva em nenhuma esfera do governo. A única mudança de destaque foi aumentar a participação do Estado no desenvolvimento nacional através da criação do “Instituto de Fomento Industrial” (IFI), cujo encargo era colaborar com o estabelecimento de novas indústrias através de créditos subsidiados e outros benefícios. No entanto, Santos não mostrou tanto interesse pelos problemas agrários e trabalhistas como por ajudar os industriais, e seu estilo foi definitivamente bem menos combativo que o de López. Com as devidas considerações, seu governo foi bastante passivo nos assuntos domésticos, ficando conhecido como o governo da “la gran pausa de Eduardo Santos”. Paradoxalmente, o mesmo pode ser dito do governo sucessor de Santos, liderado novamente pelo tão aclamado Alfonso López Pumarejo, presidente pela segunda vez. López voltava a presidência, em 1942, período turbulento devido a Segunda Guerra. As repercussões do contexto mundial chegaram até a Colômbia, dificultando o mandato de López e sua intenção de retomar a “revolución en marcha”. Em 1944, foi feita uma revisão da lei da reforma agrária de 1936, tornando mais complicado para os camponeses o processo de reclamação de terrenos. Em 1945, uma nova lei trabalhista aumentou alguns benefícios dos trabalhadores, ampliou a definição de empresas prestadoras de serviço público e proibiu nestas o direito de greve. Os anos imediatamente anteriores a guerra, assim como o período de sua duração, constituíram-se como um momento de considerável importância do ponto de vista das relações internacionais da Colômbia. Durante a primeira administração de López, os assuntos externos foram deixados de lado em detrimento dos assuntos internos. O próprio López nunca se mostrou muito aberto a cordialidades externas, principalmente no que tange o relacionamento do país com os Estados Unidos da América, como era de praxe no governo de seu antecessor, Olaya Herrera. López consentiu o atraso no pagamento da dívida externa, principalmente se proveniente de credores norte-americanos e concentrou seus recursos em programas domésticos. Eduardo Santos havia investido novamente nas relações com os Estados Unidos da América, trazendo as primeiras missões militares norte-americanas à Colômbia e buscou colocar em dia o pagamento da dívida externa, permitindo que o país ganhasse novas linhas de crédito dos estadunidenses, através do Export-Import Bank. O início dos programas de assistência técnica norte-americanos também data da administração de Santos, e desde então, todos os governos colombianos posteriores mantiveram uma variedade de programas bilaterais com Washington, seja por honesta convicção ou pela sensação de que os interesses do país requerem a manutenção de uma boa relação com a principal potência econômica e política do hemisfério. 62 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Santos mantinha um menor entusiasmo com as relações estadunidenses que Olaya. Inclusive uma vez fora caracterizado como um antiamericano, mas em troca era um francófilo fanático e havia passado boa parte de sua vida em Paris. Chegou a presidência as vésperas da Segunda Guerra Mundial e estava totalmente alinhado com as democracias contra o Eixo, e procurou buscar nos Estados Unidos algum tipo de apoio para a França, Colômbia e o resto do mundo contra Adolf Hitler. Por sua parte, durante a guerra os Estados Unidos buscou aliados confiáveis no cone sul. No entanto, a afinidade partidária entre os liberais colombianos e os democratas estadunidenses ajudou a estreitar os laços diplomáticos entre os países juntamente com os eventos mundiais. Uma vez iniciada a guerra, a Colômbia cooperou sem restrições com os Estados Unidos, tanto antes quanto depois que a potência havia de fato entrado na Guerra, em 1942. A administração de Santos nunca declarou guerra, mas participou ativamente na exportação de suprimentos estratégicos além de não medir esforços na cooperação em reuniões interamericanas para a defesa do hemisfério. Um exemplo desta cooperação foi a maneira como Santos ajudou a eliminar a influência alemã da aviação civil colombiana. A Scadta, linha aérea doméstica fundada por alemães da comunidade colombo-alemã de Barranquilla depois da Primeira Guerra, possuía uma excelente ficha de serviços. A gestão tão exemplar demonstrou interesse em ampliar suas conexões, agora com rotas internacionais, despertando a atenção da Pan American Airways, que começou a comprar, de maneira discreta, a maioria das ações da Scadta. A PanAm manteve a administração colomboalemã devido sua eficiência e não demonstrou maiores preocupações quando esta continuou a trazer pilotos alemães para o serviço colombiano, com serviços prestados a Luftwaffe. Com o crescente conflito mundial, os Estados Unidos ligaram o alarme de atenção da PanAm para com os seus pilotos alemãs que haviam sobrevoado de maneira estranha o Canal do Panamá e pressionou a companhia a retirar os colaboradores alemães da gestão e de postos importantes da linha aérea, além de trabalhar com o governo colombiano na substituição da Scadta por uma companhia “menos perigosa” para a segurança do cone sul, surgindo dai a Avianca, atual linha aérea nacional colombiana, que manteve a frota de aviões da Scadta, mas substituiu todos os seus pilotos, além de ser colocada sob uma administração ligada diretamente ao governo colombiano. A Guerra também trouxe grandes transtornos para a Colômbia, principalmente na questão de importação de bens duráveis. Seguindo o fluxo da América Latina, a Colômbia voltou novamente seus esforços para o estímulo industrial local para reduzir o impacto da queda das importações. Assim surgiu a primeira indústria produtora de aros, em parte através da cooperação de uma firma norte-americana juntamente com o IFI. Ao mesmo tempo, a guerra produziu um 63 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina virtual colapso na indústria bananeira colombiana. A causa imediata foi a disseminação de uma praga chamada “sigatoka”, que poderia ser facilmente eliminada, mas mediante uso de pesticidas e sistemas de controle de plantação. A United Fruit, empresa responsável pela colheita e distribuição da banana se negou a tomar a responsabilidade da eliminação da praga, mesmo com as petições e intervenções do governo colombiano e da embaixada americana. A postura da United Fruit se deve principalmente pela baixa perspectiva de mercado para o produto durante a guerra, e também pelo futuro da empresa na própria Colômbia, que, desde a greve dos bananeiros de 1928, tem imposto severas políticas fiscais e controle rígido à empresa, A banana voltaria a ocupar uma posição de destaque na indústria colombiana somente em 1960, agora sob responsabilidade nacional. A colaboração com os Estados Unidos da América durante a guerra conduziu a declaração de guerra contra o Eixo durante o segundo mandato de López Pumarejo, como retaliação por ataques alemães a navios colombianos no Caribe. A decisão contou com o apoio do Partido Liberal e por boa parte da ala conservadora, mas causou problemas com a direita radical liderada por Laureano Gómez, que desde o fim do mandato de Santos criticava severamente a posição da Colômbia em relação ao conflito mundial. O fim da curta “lua de mel” com o governo de Santos se deu finalmente no episódio protagonizado pela polícia liberal, que atirou contra um grupo de camponeses conservadores. A partir daí, Gómez mudou suas táticas de obstrução: passou a rechaçar todas as ações de Santos – e posteriormente as de López – nos assuntos internacionais, chegando a publicar que a Colômbia havia se reduzido a um reles satélite dos Estados Unidos da América. Comentaristas internacionais e alguns liberais colombianos atribuíam a atitude de Gómez e seus seguidores como fruto de sua simpatia pelo Eixo e suas políticas. Uma ínfima parcela da população colombiana apoiava realmente o Eixo, e Gómez aparentemente não fazia parte dela. Mesmo com a oposição afirmando o contrário, seja qual for sua opinião sobre Hitler (sendo na maior parte desfavorável), Laureano Gómez não perdoava a Alemanha pelos feitos de Martinho Lutero. Preferia que a Colômbia tivesse tomado a posição de neutralidade – ou não alinhamento. A consequência prática da neutralidade de Gómez era inevitavelmente antiamericana, e assim antiliberal, devido ao contexto político da Colômbia. Paradoxalmente seu jornal “El Siglo” dependia da publicidade de algumas empresas norte-americanas, que chegou a ser retirada, o que causou uma mudança abrupta do conselho editorial do jornal, que se tornou de certa forma mais amistoso, uma vez que não tinha forças para suportar a enorme pressão da retirada publicitária e que acabou por ceder. IX.3. FIM DA REPÚBLICA LIBERAL 64 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina A receptividade às pressões dos Estados Unidos da América ilustra o evidente oportunismo tático de Gómez, que formava parte de sua atividade política, junto com uma providencial rigidez ideológica que chamou a atenção de seus contemporâneos. A combinação destas características fez de Gómez um excelente opositor. E a segunda administração de López, marcada por frustrações e problemas econômicos causados pela guerra, além de vários casos de má conduta do funcionalismo público, parecia feita sob medida para o talento de Gómez. Entre outras coisas, Gómez atiçou o descontentamento dos militares, grupo onde muitos ocultavam sua simpatia pela figura através da posição de neutralidade. Conhecendo tais simpatias, o presidente López tendeu a valorizar as forças da Polícia e deixando de lado o Exército. Em julho de 1944, houve um fracassado golpe de Estado, e o presidente chegou a ficar preso por um curto tempo. O movimento pode ter sido facilmente reprimido, mas não deixava de ser preocupante, a Colômbia não presenciava algo similar havia muito tempo. Desmotivado e desanimado, López renunciou o cargo e permitiu que Alberto Lleras, um homem de confiança, terminasse o seu mandato. A maior ameaça para a sobrevivência do regime liberal crescia internamente. Várias discordâncias entre seus membros, o crescimento de grupos dissidentes, desrespeito com a hierarquia do partido minaram sua coordenação. Um movimento de rebeldes populistas dentro do partido, liderado por Jorge Eliécer Gaitán, chamavam Alfonso López de “representante del establecimiento opresivo”. Gaitán era um personagem completamente diferente de López: este era um banqueiro, elegante e educado cavalheiro, enquanto Gaitán vinha do setor médio-baixo da sociedade, era mestiço, seu pai, um homem rígido, era dono de uma pequena livraria e um político liberal pouco proeminente, sua família lutou para se manter. Era um jovem político formado pelas vicissitudes da vida, algo extremamente incomum na Colômbia. Gaitán era em todos os sentidos um homem talentoso, se dedicou ao Direito, ganhando uma bolsa de estudos na Itália, e se especializou em criminalística. Ganhou notoriedade nacional através de denúncias sobre o manejo que o regime conservador havia dado à greve dos bananeiros de 1928. Dotado orador, Gaitán popularizou a palavra oligarquia na Colômbia, e seu significado negativo: uma reduzida, rica e educada elite que supostamente manejava o governo, a Igreja, o Exército, os negócios e os partidos. Segundo ele, os oligarcas liberais e conservadores competiam por prestígio e poder, ignorando a necessidade das massas e estavam unidos por uma aliança tácita que impedia mudanças significativas na política. De certo modo, Gaitán utilizava uma retórica muito similar a de seu contemporâneo argentino Juan Domingo Perón, e, em alguns momentos, parecia-se também com Benito Mussolini, cujo estilo oratório parecia ter influenciado o jovem estudante no período que passou na Itália. Mas isso não torna determinante em até que ponto 65 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina compartilhava dos ideais de Perón, tampouco de Mussolini, principalmente porque, diferente destes, Gaitán nunca obteve o controle do governo. Na realidade, Gaitán nunca chegou a articular um programa político. Discursava sobre socialismo, mas não era marxista, embora tenha algumas influências desta ideologia. Sem dúvida sua proposta era ir além das políticas de López, referente a intervenção estatal, reformas trabalhistas e bem estar social, mas em essência mantinha-se o mesmo, as diferenças eram prioritariamente sociais e em estilo. López era um aristocrata com espírito público que pretendia falar pelas massas, mas mantinha distância delas; Gaitán se identificava com a gente comum, pois cresceu neste meio, apelava explicitamente para o ressentimento de classe e buscava uma luta contra a oligarquia. Herbert Braun, estudioso da carreira de Gaitán, caracterizou este como um líder reformista “petitbourgeois”. Nenhum dos pontos que agitava amenizava realmente a ordem socioeconômica existente ou o sistema político, mas a maneira que os expressava, buscando estabelecer uma relação direta com as classes não privilegiadas, à custa dos líderes dos partidos tradicionais, provocaram amargos ressentimentos contra ele. Seu estilo também ficou marcado como um exemplo de “populismo” latino-americano do século XX. Desde o final da hegemonia conservadora, Gaitán oscilou entre a possibilidade de criar seu próprio movimento independente de centro-esquerda, e se ascender para alcançar seus objetivos através da colaboração com a direção do Partido Liberal. Havia sido prefeito de Bogotá e ministro da educação na administração de Santos, mas não durou muito nos cargos. Demonstrou ser capaz como administrador, mas como prefeito provocou uma série de protestos dos taxistas quando tentou uniformizá-los. Como ministro da Educação, despertou ressentimentos por seu empenho de aumentar o controle nacional sobre as autoridades escolares municipais e departamentais. A segunda administração de López deu sua grande oportunidade, cujas deficiências, reais e supostas, sacudiram o prestígio do Partido Liberal da classe dominante colombiana. Gaitán se apresentou como candidato liberal para as eleições de 1946. Mas a ala superior do partido não aceitou e nomeou seu candidato oficial o capaz, mas pouco carismático, Gabriel Turbay, um liberal moderado. Os conservadores decidiram não candidatar seu chefe máximo, Laureano Gómez, temerosos que o ódio liberal contra este poderia por fim as disputas internas do partido. Escolheram então Mariano Ospina Pérez, milionário, ativo da indústria cafeeira e bacharel em engenharia pela Louisiana State University. Ospina era neto de um ex-presidente conservador e sobrinho de outro. Por suas distinções sociais e econômicas, era um oligarca como nunca houve. Portanto, três candidatos, dois liberais (Gaitán e oficialmente Turbay) e um conservador (Pérez) concorreram as eleições de 1946. Os liberais em conjunto obtiveram mais da metade da 66 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina votação total, mas Turbay sairia ganhador, pois, como candidato oficial, tinha a prioridade de indicação na orientação de voto nas poblaciones rurais. Turbay ganhou apoio do alto comando comunista, assim como a maioria dos líderes sindicais, cujos interesses estavam ligados à administração liberal. Mas os chefes sindicais foram menos efetivos que os caciques políticos em seu recrutamento de votos, de maneira que Gaitán não somente ganhou em Bogotá, mas também em outras cidades importantes. Ganhou um grande número de sufrágio por fora das cidades grandes da costa do Caribe, onde captou um apoio significativo dentro das secretarias do partido. Mas, quem havia levado as eleições gerais havia sido o conservador Ospina Pérez, por uma porção minoritária do total de votos registrados. As eleições de 1946 foram idênticas as eleições de 1930, que havia colocado fim a hegemonia conservadora, com a diferença que agora os partidos estavam invertidos. A república liberal chegou ao fim. 67 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina X. A GRANDE VIOLÊNCIA O período compreendido entre os anos de 1946 e 1957 ficou conhecido pelos colombianos como “la era de la Violencia”. Foi uma combinação da luta entre os partidos Liberal e Conservador, rebelião social nas zonas rurais, guerrilhas e banditismo, que alcançou níveis tão extremos que não foi possível reconstruir a sociedade e o Estado (PALACIOS apud HOBSBAWN, 2012). Os confrontos armados entre liberais e conservadores remontavam ao século XIX, mas foi a partir de 1946 que a situação se agravou. Quando Mariano Ospina Pérez foi empossado como presidente da Colômbia em agosto de 1946, chegou a ser comparado com o general e então futuro presidente dos Estados Unidos, por sua habilidade conciliatória. Por este motivo, foi considerado a figura ideal para coordenar a transição de poder entre o Partido Liberal, que havia governado a Colômbia nos dezesseis anos anteriores e o seu partido, o Conservador. A idéia de um governo que reunisse elementos de ambos os partidos não era nova. Quando os liberais assumiram o governo em 1930, após décadas de supremacia conservadora, buscaram um candidato capaz de acalmar os ânimos de ambos os lados, facilitando a mudança de governo (BUSHNELL, 2007). Entretanto houve mais semelhanças com o ano de 1930. Os conservadores, assim como seus rivais haviam feito antes, buscaram vingança por ofensas e humilhações sofridas durante os governos liberais. E alguns liberais, inconformados com a derrota, não transmitiram seus cargos sem opor resistência e gerar mais violência. Só que ao contrário de 1930, em 1946 a violência não foi algo momentâneo e acabou por se espalhar por todo o país (BUSHNELL, 2007). A série de conflitos que perdurou por uma década, pode ser entendida como uma “bola de neve correndo encosta abaixo” (PALACIOS apud GUZMÁN, FALS & UMAÑA, 2012). Discordâncias políticas, intrínsecas à democracia, sobre o uso do poder acabaram por desencadear um enfrentamento aberto e maçante que passou por distintas fases, que podem ser resumidas em “confilto dirigido” e “conflito pleno ou de aniquilação". O primeiro trata-se do uso político da força para alcançar metas racionais e pode ser identificado nos períodos que compreendem os anos de 1930 a 1932 e 1948 a 1950, quando os partidos que governavam procuravam impor suas idéias e se colocavam como a melhor opção para a Colômbia. Já o chamado “conflito pleno” refere-se aos anos entre 1950 e 1953 e 1956 e 1958, quando houve um excesso no uso dos métodos de coerção, o que levou a perda da “ideologia do conflito” (PALACIOS apud GUZMÁN, FALS & UMAÑA, 2012). Estes fatos levaram alguns autores como Guzmán, Fals & Umaña a concluírem que houve na Colômbia uma “revolução social fracassada”, onde os ânimos foram acirrados, mas sem haver 68 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina uma conscientização racional e ideológica da população e sem a presença de lideranças capazes e interessadas em conduzir o povo colombiano a uma luta social. Desta maneira, o conflito tomou um caráter darwiniano de luta pela sobrevivência dos grupos em questão (PALACIOS apud GUZMÁN, FALS & UMAÑA, 2012). Os liberais passaram a advogar pela “resistência civil”, o que lhes permitiu diversificar seus meios de atuação contra o governo conservador, inclusive através de ações armadas, sem assumir nenhuma responsabilidade direta. Os conservadores procuravam construir uma nova hegemonia e, para isso, passaram a combinar atos legais e ilegais, contrariando seus próprios princípios, para alcançar seus objetivos. A falta de meios humanos, econômicos e materiais impediu que os conservadores fossem capazes de estabelecer uma perseguição mais focada nos liberais, o que levou a uma repressão indiscriminada. Isso favoreceu a guerrilha liberal, que passou a ser vista como uma força protetora em algumas regiões ao dar segurança aos membros de seu partido e frustrar as ações governamentais (PALACIOS, 2012). A Colômbia sofria uma desarticulação territorial que impedia a autoridade do governo central de se impor em todas as regiões, o que facilitou a atuação de grupos guerrilheiros. X.1. O 9 DE ABRIL Durante os dezesseis anos em que governou a Colômbia, o Partido Liberal sofreu um grande desgaste, que gerou divisões internas e culminou na derrota eleitoral de agosto de 1946. No período posterior a eleição, quando foi desencadeada uma onda de violência pelos dois partidos, os liberais não tinham outra opção senão se reorganizar. Jorge Eliécer Gaitán, que não havia perdido tanto prestígio como outros e por isso era a personalidade mais carismática do partido, foi incumbido de liderar este ressurgimento liberal, apesar de grande parte dos políticos do alto escalão do partido não estarem de acordo (BUSHNELL, 2007). Em pouco tempo Gaitán passou a ser visto como o único possível candidato do Partido Liberal. Porém, conforme David Bushnell relata em sua obra “Colombia – Uma nación a pesar de si misma”, Gaitán não poderia guiar o partido naquele período. A desconfiança que tinha tanto nos líderes liberais quanto nos conservadores, o impedia de fazer acordos, em uma época onde o compartilhamento de poder com o adversário era fundamental para que houvesse governabilidade e paz. Não demorou para que rompesse a aliança com o governo de Ospina, retirando todos os liberais de seus cargos. A violência seguia sua escalada. No dia 9 de abril, durante a realização da 69 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina conferência que deu origem a Organização dos Estados Americanos (OEA), Gaitán foi assassinado logo após deixar seu escritório. Era o motivo que faltava para a Colômbia definitivamente mergulhar em uma onda de violência. As violentas manifestações que se seguiram ao assassinato de Jorge Eliécer Gaitán ficaram conhecidos pelo mundo como “Bogotazo”, mas para os colombianos foram o “9 de abril”. Apesar de a maior tragédia ter acontecido em Bogotá, com saques, agressões e assassinatos, a expressão “Bogotazo” se refere somente aos acontecimentos ocorridos na capital, enquanto “9 de abril” compreende todos os eventos que abarcaram o país inteiro, principalmente nas localidades de maioria liberal (BUSHNELL, 2007). Para exemplificar o que se passou no interior colombiano, Bushnell relembra o “puerto tejadazo”, quando liberais de Puerto Tejada assassinaram e decapitaram alguns conservadores e depois jogaram futebol com suas cabeças em uma das praças da cidade. Entre os manifestantes não estavam apenas apoiadores de Gaitán, mas também oportunistas, que aproveitaram para assaltar estabelecimentos comerciais e residências, e pessoas que não se sentiam integradas à ordem social vigente e se rebelaram contra a mesma (BUSHNELL, 2007). Parte dos policiais que foram enviados para reprimir e controlar os manifestantes se uniram à eles, enquanto outros disparavam suas armas de fogo indiscriminadamente. Não fosse o apoio do Exército, que se manteve leal, e a falta de decisão ou apego às normas legais por parte dos liberais, o governo de Ospina Pérez poderia ter sido derrotado. O povo permaneceu nas ruas sem liderança, o que permitiu aos militares restabelecer a ordem aos poucos (BUSHNELL, 2007). Fontes oficiais e extra-oficiais do governo colombiano declararam que as manifestações do 9 de abril” eram conseqüência de “instigação comunista proveniente do exterior”, na tentativa de se desvincularem dos eventos e manter uma boa imagem perante a opinião pública mundial, já que a Colômbia sediava a Conferência Pan-Americana (BUSHNELL, 2007). Uma hipótese que foi muito difundida, principalmente entre a esquerda colombiana e parte considerável dos liberais, é que o governo conservador teria tramado o assassinato de Gaitán. No entanto, é muito improvável, pois não o fariam durante uma conferência internacional. O mais plausível é que Gaitán tenha sido morto por um assassino qualquer e que as manifestações surgiram espontaneamente, sem planejamento algum (BUSHNELL, 2007). É importante ressaltar que a onda de violência que tomou a Colômbia não começou em 9 de abril de 1948. Ela já tinha começado em 1946, e o efeito imediato após os protestos pela morte de Jorge Eliécer Gaitán foi uma redução da violência. No dia 10 de abril o Partido Liberal concordou em formar uma nova coalizão com os conservadores e voltou a participar do governo. 70 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Contudo, a aliança não durou mais que um ano e, ao ser rompida, a violência voltou a crescer e se tornou uma guerra civil não declarada entre conservadores e liberais, que durou até o princípio da década de 1960. X.2. A COLÔMBIA APÓS O 9 DE ABRIL As eleições legislativas de 1949 foram vencidas pelo Partido Liberal, que conquistou uma pequena maioria. Apesar disso, o vencedor da eleição presidencial foi Laureano Gómez, candidato conservador, que foi eleito sem oposição. Os liberais se retiraram da disputa alegando que não havia segurança para irem até os locais de votação com a violência que assolava o país. A deterioração contínua da ordem pública estava diretamente ligada ao processo eleitoral (BUSHNELL, 2007). Os liberais tinham um argumento válido, já que após os distúrbios do 9 de abril os conservadores estavam dispostos a fazer o possível para se manterem no poder. E pelo mesmo argumento, os liberais decidiram não reconhecer a Gómez como presidente legítimo, quando este assumiu o cargo no ano seguinte. Isto passou a ser uma justificativa para todo e qualquer ato de violência contra o governo, enquanto os conservadores passaram a considerar desleais os membros do Partido Liberal e assim justificar os ataques aos mesmos (BUSHNELL, 2007). Os enfrentamentos entre os dois partidos se intensificaram e não houve trégua durante os quatro anos da gestão de Gómez. Mesmo tendo acontecido predominantemente nas áreas rurais, com exceção do 9 de abril, nenhuma região do país escapou às confrontações. Em algumas localidades, como Los Llanos Orientales, surgiram guerrilhas liberais que combatiam as forças governamentais e protegiam os simpatizantes do Partido Liberal. Em contrapartida os conservadores organizaram grupos armados com nomes curiosos como “chulavitas” e “pájaros”, que foram responsáveis por assassinatos e assaltos, aparentemente sem sofrer represálias do governo. O saldo de mortos neste período da história colombiana gira entre 100.000 e 200.000 mortos (BUSHNELL, 2007). Muitas foram as obras de cunho histórico e sociológico que surgiram procurando explicar este fenômeno. As justificativas vão desde argumentos simplistas como a luta de classes até interpretações mais complexas, como o “impacto cultural da modernização” (BUSHNELL, 2007). Alguns atos violentos foram perpetrados por grupos que não passavam de vândalos e assassinos comuns e liberais ou conservadores que haviam sido expulsos de suas posses por rivais e buscavam vingança ou encontravam no crime uma maneira fácil para sobreviver. Era relativamente comum o uso de motivações políticas para conseguir objetivos escusos. Membros de um partido ameaçavam 71 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina seus adversários com o pretexto de vingar alguma atrocidade, quando o real intuito era tomar as terras do intimidado. Os lugares mais corriqueiros para que isso acontecesse eram aqueles onde já havia disputas de terras, de recente colonização ou onde os títulos de propriedade não eram claros. (BUSHNELL, 2007). Foram raros, para não dizer inexistentes, conflitos por terra que opuseram camponeses liberais e coronéis liberais ou camponeses conservadores ou coronéis conservadores. Normalmente os embates ocorriam entre camponeses liberais e conservadores, enquanto os coronéis e as lideranças políticas de ambos os lados gozavam de relativa paz e segurança nas cidades. A “era de la Violencia” tinha suas raízes na hereditária rivalidade partidária entre liberais e conservadores e era alimentada pelos acontecimentos políticos. Porém o fator determinante para que o caos e a violência se espalhassem pela Colômbia foi o baixo desenvolvimento sócioeconômico no campo. Como dito por Bashnell, seria impensável uma situação semelhante onde a população rural possuísse instrução razoável e tivesse consciência de como funcionava a política do país. Em grande parte por isso, a “Violencia” foi um fenômeno que predominou no meio rural. As cidades, onde havia mais educação e meios de subsistência, não foram tão afetadas. A religião também foi um motivo para os ataques. A comunidade protestante foi um alvo de conservadores e católicos. Suas igrejas foram apedrejadas e seus pastores agredidos. O governo colombiano dizia que todos os protestantes eram liberais (assim como havia uma ligação histórica entre católicos e conservadores) e sofriam ataques não por causa de seu credo religioso, mas sim por suas crenças políticas. Não passavam de vítimas da violência política que assolava a Colômbia. Além disso, o governo ainda apontava que os protestantes tinham responsabilidade nas agressões de que eram alvo por terem atacado as crenças e práticas católicas, o que havia gerado uma grande hostilidade entre as duas partes. Assim como a associação entre protestantes e liberais relatada pelo governo, também havia certa veracidade neste último argumento. Praticamente todos os grupos protestantes atacados eram exatamente aqueles anticatólicos (BUSHNELL, 2007). Paradoxalmente, durante os anos da “Violencia” houve um crescimento econômico considerável. O produto interno bruto colombiano aumentou, em média, 5% por ano durante o período compreendido entre 1945 e 1955. A produção industrial chegou aos 9% anuais. Apesar de continuar sendo majoritariamente propriedade de colombianos, a indústria passou a receber mais investimentos estrangeiros. Enquanto isso, a população urbana alcançou 39% em 1951 e em 1964 já correspondia a 52%. O êxodo rural foi estimulado pelos eventos violentos no campo, mas era uma tendência natural da América Latina à época. Os camponeses fugiam da falta de trabalho e das 72 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina condições de vida precárias na zona rural em busca de oportunidades de emprego nas indústrias e nos centros urbanos (BUSHNELL, 2007). O crescimento econômico da Colômbia atingiu excelentes índices internos, mas se comparado aos outros Estados da América Latina, correspondia a média e estava bem abaixo do aumento conseguido pelos países desenvolvidos. O pós-guerra favoreceu a melhora da economia colombiana. A balança comercial era favorável, os preços dos produtos de exportação eram mais altos que os de importação, mesmo aqueles necessários para o processo de industrialização. A posição política e a história pessoal dos presidentes também ajudaram. Ospina Pérez era um empresário que havia estudado nos Estados Unidos e possuía bons contatos para negócios, dentro e fora da Colômbia. Laureano Gómez não tinha os mesmos atributos de Pérez, mas foi capaz de controlar os gastos do Estado e reduzir um pouco a dívida pública. O compromisso assumido pelos governos de serem parceiros e respeitarem as empresas privadas fez com que os investidores não se preocupassem tanto com a violência rural (BUSHNELL, 2007). Os governos conservadores adotaram uma política econômica um pouco mais nacionalista que a praticada pelos liberais. A industrialização foi incentivada e o modelo escolhido foi a substituição de exportações. Foi criada uma indústria siderúrgica nacional por iniciativa do governo, desconsiderando o desinteresse da sociedade pelo tema. O governo também criou a Ecopetrol, a empresa petroleira nacional, a partir do vencimento da concessão da Tropical Oil, em 1951 (BUSHNELL, 2007). Ao contrário do que essas atitudes nacionalistas podem dar a entender, o investimento estrangeiro na Colômbia continuou sendo bem-vindo e incentivado, mesmo nas áreas onde o Estado havia criado empresas. Entretanto não houve distribuição de renda e a maior parte dos lucros ficou nas mãos de uma minoria, que detinha tanto o poder político quanto o econômico. As greves foram reprimidas e a Central de Trabalhadores da Colômbia (CTC) esteve próxima de seu fim, graças à repressão governamental e às divisões internas, entre liberais e comunistas, acirradas pela Guerra Fria. A União de Trabalhadores da Colômbia (UTC), outra central sindical fundada em 1946 e que era favorecida pelo governo, foi beneficiada pela situação e começou a crescer. Alguns de seus integrantes eram religiosos e conservadores, mas não possuía laços oficiais nem com a Igreja, nem com o Partido Conservador. Esta certa independência lhe permitia criticar a CTC por estar comprometida com o Partido Liberal. A UTC abordava temas relativos à subsistência, sem entrar em discussões mais profundas, o que fez com que o governo conservador incentivasse ainda mais seu crescimento (BUSHNELL, 2007). 73 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Outro paradoxo durante o governo de Gómez foi a participação colombiana na Guerra da Coréia. Por decisão do próprio presidente, foram enviados um batalhão e uma embarcação de guerra. Enquanto o país estava vivenciando uma guerra civil não declarada, suas Forças Armadas combatiam do outro lado do mundo. A Colômbia foi a única nação latino-americana a enviar um contingente para o conflito. Muitas foram as especulações sobre as razões de Gómez para entrar na guerra. A mais próxima da realidade talvez seja a que coloca esta atitude como uma forma de demonstrar solidariedade aos Estados Unidos, com o objetivo de garantir e melhorar o auxílio contínuo deste país à Colômbia nas áreas econômica e militar. A postura anticomunista de Laureano Gómez também ajuda a entender a atitude tomada. Gómez acreditava que a democracia liberal permitia espaços para a ideologia marxista e, ir à guerra contra um Estado declaradamente adepto desse pensamento era uma maneira de reduzir essa “ameaça” (BUSHNELL, 2007). A Colômbia vivia sob estado de sítio desde 1949. A imprensa sofria com a censura e os direitos civis eram limitados e passíveis de violação. E apesar de a oposição não ter sido dizimada e a aplicação do estado de sítio ter ignorado e relevado algumas de suas normas, não é incorreto dizer que o país esteve sob uma espécie de ditadura civil, do período final do governo de Ospina Pérez até o fim o mandato de Laureano Gómez (BUSHNELL, 2007). Gómez não tinha a intenção de criar um regime totalitário, ainda que tenha defendido a ampliação dos poderes do Executivo e o enfraquecimento do Congresso. Aceitava o sistema eleitoral onde o presidente era eleito através do voto popular e pela maioria dos mesmos, assim como aceitava o mesmo sistema para a eleição da Câmara de Representantes. No entanto, acreditava que o Senado deveria ser escolhido por organizações de classe e sociais, como os sindicatos, a associação de industriais e a Igreja, que deveria ter um senador próprio. Estas idéias, em especial a última, eram uma clara inspiração no modelo fascista. Outra influência do fascismo – neste caso mais especificamente do franquismo – foi a proposição feita por Gómez para que somente os chefes de família votassem nas eleições municipais (BUSHNELL, 2007). Estas idéias e iniciativas propostas por Gómez geraram uma grande oposição do Partido Liberal e também de alguns setores de seu próprio partido. Entre eles estavam os seguidores de Ospina Pérez, que não concordavam com as medidas antidemocráticas que Gómez queria adotar. Para estes conservadores, a reforma constitucional que o presidente queria dar seguimento era uma das razões para que a “Violencia” não houvesse terminado. Quando os ospinistas se uniram aos liberais, Laureano Gómez não pôde mais dar continuidade ao seu mandato. Os conservadores dissidentes eram ligados à vários militares do alto escalão, dentre eles o então chefe das Forças Armadas, general Gustavo Rojas Pinilla. Gómez 74 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina pensou que Rojas ajudava na organização de um golpe de Estado e tentou retirá-lo do país, sem sucesso, acabando por destituí-lo do cargo. No entanto Rojas estava preparado e destituiu Gómez, que se tornou o primeiro presidente colombiano deposto por um golpe de Estado desde Manuel Antonio Sanclemente, em 1900. O general deixou o cargo à disposição de outro conservador civil, mas como não houve aceite de sua proposta, ele mesmo se tornou presidente (BUSHNELL, 2007). X.3. O GOVERNO ROJAS PINILLA Gustavo Rojas Pinilla assumiu a presidência com apoio quase unânime. A oposição liberal e todo o Partido Conservador, com exceção da ala fiel a Laureano Gómez, acreditavam que o novo presidente era o único capaz de apaziguar o país. Entretanto Rojas Pinilla não estava preparado o suficiente para o que viria a enfrentar durante seu mandato. Não tinha um programa de governo claro, somente declarava que seus ideais eram cristãos e bolivarianos, como a Colômbia deveria ser (BUSHNELL, 2007). Rojas Pinilla era católico e acreditava realmente que uma parceira entre o Estado e a Igreja poderia tornar a Colômbia um país moralmente adequado, como desejava. Os protestantes passaram a sofrer mais restrições do que durante o governo de Gómez, mas ao menos os casos de violência reduziram (BUSHNELL, 2007). O Bolivarianismo que pregava era simplório e vago. Correspondia a ser “patriota, valente, leal e sincero”. A reconciliação dos partidos Conservador e Liberal e a união nacional também faziam parte dos ideais bolivarianos de Rojas. Um gesto que levou essa vontade para o campo prático foi a anistia concedida às guerrilhas liberais, desde que entregassem as armas. Laureano Gómez havia tentado fazer o mesmo, sem sucesso. O fato de Rojas Pinilla ser um homem de armas ajudou a ganhar a confiança dos guerrilheiros liberais. Muitos grupos aceitaram a proposta e quase toda a região oriental do país foi pacificada (BUSHNELL, 2007). Rojas Pinilla assumiu a presidência com o apoio de conservadores e liberais, mas seu governo não foi de coalizão, como era esperado. A composição administrativa da gestão foi majoritariamente civil e conservadora. Não havia a presença de liberais no alto escalão do governo e, ainda que os militares tenham desempenhado um papel mais preponderante durante os anos de Rojas Pinilla, não foram favorecidos em detrimento dos civis. Os adeptos de Gómez foram afastados de seus cargos. O estado de sítio prosseguiu e uma Assembléia Nacional Constituinte foi convocada (BUSHNELL, 2007). 75 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina A principal função da Assembléia seria dar continuidade à revisão da Constituição iniciada na administração anterior, mas acabou por servir para legitimar Rojas Pinilla como presidente, que com o auxílio de alguns liberais foi eleito para um mandato até 1954. Foram feitas diversas reformas, sendo a mais significativa o estabelecimento do voto feminino, que na prática só se concretizou após o fim da gestão de Rojas Pinilla, já que antes disso não foram convocadas eleições com voto popular. A Colômbia foi o último país latino-americano a permitir que as mulheres votassem se antecipando apenas ao Paraguai (BUSHNELL, 2007). Rapidamente o governo de Rojas assumiu um caráter forte e arbitrário, que levou os dois partidos para a oposição. Esses fatos, juntamente com as reformas sócio-econômicas que propôs e o novo aumento da “Violencia”, deram fim ao período de paz e concórdia do princípio da gestão (BUSHNELL, 2007). Aqueles que foram e são críticos à gestão do general argumentam que foi sua postura intransigente que fez com que ambos os partidos passassem à oposição e causou o mais um revés no processo de pacificação colombiano. Para eles, as reformas idealizadas por Rojas Pinilla foram apenas uma tentativa de captar apoio popular para seu governo e formar uma base política para se contrapor às forças tradicionais. Já para seus defensores foram as reformas que levaram os partidos Liberal e Conservador a se posicionarem contra o governo e o comportamento irresponsável e agressivo de ambos os partidos que obrigaram o general a adotar uma forma de administração mais rígida (BUSHNELL, 2007). A ditadura de Rojas Pinilla foi moderada, apesar da pouca liberdade de imprensa e de alguns eventos violentos isolados, como o “Masacre de la Plaza de Toros”, ocorrido em Bogotá, no ano de 1956, quando partidários do general atacaram os populares que se negaram a ovacionar o presidente. Cerca de oito pessoas foram mortas (BUSHNELL, 2007). Os liberais se voltaram contra Rojas Pinilla quando perceberam que o general continuaria no cargo, o que frustrou seus planos de recuperar o poder. Já os conservadores deixaram o presidente por motivações diversas, mas a principal talvez tenha sido o fato de Rojas ter chegado à presidência sem ter ocupado nenhum outro cargo político anteriormente, o que para muitos era uma conquista sem o devido merecimento (BUSHNELL, 2007). Além das questões políticas, a principal discordância entre as forças tradicionais colombianas e Rojas Pinilla era a sua política sócio-econômica. Seus adversários acreditavam que as medidas que o general defendia eram simplesmente uma forma de se colocar como o defensor das massas populares contra os abusos da oligarquia, agindo praticamente da mesma maneira que Gaitán havia tentado anos antes (BUSHNELL, 2007). 76 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina É verdade que Rojas investiu parte dos impostos em programas de bem estar social e elevou as taxas para os cidadãos mais abastados. O cenário gerado pela “Violencia” não poderia ser mais propício para a adoção de tais medidas. Foi criado o Secretariado Nacional de Assistência Social (Sendas), responsável por coordenar e fiscalizar essas ações. Muitas foram as obras públicas iniciadas na gestão do general, como a ferrovia que ligou Bogotá a Santa Marta, no litoral atlântico colombiano, ainda que tenha sido concluída apenas em 1961, quatro anos depois da derrubada de Rojas (BUSHNELL, 2007). Contudo Rojas Pinilla não defendeu e muito menos promoveu qualquer tipo de reforma estrutural. Não levantou debates sobre questões cruciais para a população mais pobre, como a reforma agrária. Ao contrário, o próprio presidente estava comprando grandes propriedades de terra (BUSHNELL, 2007). Rojas buscou fazer da classe trabalhadora um de seus pilares de sustentação no poder, em conjunto com as Forças Armadas. Era uma atitude muito semelhante à do presidente argentino e também militar Juan Domingo Perón. Rojas Pinilla não se apoiou na UTC, a maior central sindical à época, nem na CTC, a mais antiga, mas na Confederação Nacional de Trabalhadores (CNT), que lhe pareceu mais fácil de ser controlada. A CNT estava ligada a uma confederação latino-americana chamada ATLAS, de forte influência peronista. Por isso, a CNT se declarou justicialista11 e adepta da terceira via pregada por Perón, uma posição política que se distanciava tanto do comunismo quanto do capitalismo (BUSHNELL, 2007). Mesmo que tenha sido influenciado pelo peronismo, Rojas Pinilla não teve a intenção de reproduzir na Colômbia exatamente a mesma política imposta por Perón na Argentina. Haviam semelhanças, mas a situação colombiana se diferenciava por não ter uma saúde financeira tão sólida quanto a do país platino no pós-guerra e ter uma força de trabalho menor e menos organizada (BUSHNELL, 2007). A Igreja também causou problemas ao general. Sua associação com Perón não era bem vista e a UTC recebia suporte eclesiástico, inclusive contra a CNT. Os bispos chegaram a condenar a CNT publicamente, o que fez o governo retirar seu apoio oficial a organização pouco tempo depois, pois Rojas Pinilla considerava que era necessário manter o apoio da Igreja ao governo (BUSHNELL, 2007). Apesar das diversas críticas que sofreu, Rojas Pinilla adotou uma política que estava certa, de forma geral, no que dizia respeito a tentar esquecer os acontecimentos do passado entre liberais e conservadores em favor de procurar soluções para os problemas básicos do país. E para ele a 11 Justicialista é o nome oficial do Partido Peronista. 77 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina melhor maneira de alcançar esse objetivo era através de uma aliança entre o povo, o governo e as Forças Armadas (BUSHNELL, 2007). No entanto, a falta de coordenação política interna e a não aplicação correta das políticas públicas pregadas pelo general prejudicaram seu governo. O fato de ter sido alvo de denúncias de corrupção, ainda que notoriamente exageradas, também lhe causou prejuízos. Nunca esteve envolvido com atividades ilícitas, mas se comportou de maneira a permitir que seus adversários suspeitassem e lançassem dúvidas nesses termos sobre ele. Foi negligente no combate a corrupção, ignorou o tráfico de influências e aceitou vantagens que não deveria receber, como terras e gado (BUSHNELL, 2007). O principal fracasso do governo de Rojas Panilla foi não conseguir acabar com o período da “Violencia”, apesar de ter conseguido reduzir significativamente os eventos no início de seu mandato. A anistia que concedeu foi aceita por muitos guerrilheiros, principalmente na porção oriental do país, mas em outras áreas os grupos não demonstraram o mesmo interesse. Alguns porque haviam se envolvido profundamente com ações criminosas, outros por serem membros de destacamentos de autodefesa comunistas, que nunca receberam propostas governamentais como havia ocorrido com os guerrilheiros liberais – pelo contrário, o governo não tolerou nenhum tipo de ação comunista, chegando a declarar o partido comunista ilegal, pela primeira e única vez na história da Colômbia – e ainda havia os guerrilheiros que preferiram manter suas armas e aguardar durante algum tempo para ver o que aconteceria (BUSHNELL, 2007). Esta resistência guerrilheira não era esperada pelo governo e, quando ficou claro que alguns grupos não iam depor suas armas, o general decidiu empreender uma forte campanha de repressão contra os resistentes. Porém, os que mais sofreram foram os inocentes, o que invalidou a ação e a afastou de seu objetivo inicial (BUSHNELL, 2007). A forma como lidou com a “Violencia” abalou profundamente o governo de Rojas Pinilla e reduziu seu apoio inicial, e a queda do preço do café aumentou a insatisfação popular. Rojas não soube interpretar o momento e começou a se preparar para um segundo mandato, o que irritou seus adversários, que formaram uma aliança para trabalhar contra seu governo e partilhar o poder pacificamente após a vitória. As organizações empresariais e de trabalhadores convocaram uma greve geral no mês de maio de 1957, em que todas as empresas e fábricas mantiveram suas portas fechadas. É inegável que Rojas Pinilla mantinha uma razoável base de apoio entre as massas populares, mas ninguém saiu em sua defesa. Os trabalhadores concordaram em permanecer em paz e o general não teve outra opção senão se exilar quando o alto escalão militar lhe propôs a renúncia, para o bem da Colômbia (BUSHNELL, 2007). 78 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina XI. COLÔMBIA ATUAL (DE 1957 ATÉ HOJE) XI.1. PANORAMA DA VIOLÊNCIA Marco Palacios, afirma que no caso Colombiano manifesta-se uma forma especial de violência, chamada pelo autor de violência pública. Seu caráter público exige que aquele que a exerce o faça sempre embasado em um discurso que legitime seu uso. É importante perceber nesse contexto que a violência passa a ser vista como forma de ação política, reconhecida como tal tanto pelos setores revolucionários da sociedade quanto pelo governo, mas não apenas por esses. É importante ressaltar que, mais que a violência criminal simples, a violência da qual falamos tem caráter essencialmente político e social, e não pode ser percebida deslocada do contexto no qual é produzida. Essa violência surge em meio a um verdadeiro hiato entre a lei social de que o país precisaria, e a lei prática, que muitas vezes mantinha e até mesmo endossava a desigualdade social e econômica extrema (PALACIOS, 2012). Não é preciso dizer que essa visão, é claro, não é necessariamente compartilhada pelas elites participantes do governo. Muitos estudiosos se propuseram ao longo de extensa bibliografia a compreender a história colombiana e a permanente relação entre política e violência no país; Gonzálo Sanchéz diz que o país encontra-se em “conflito armado permanente e endêmico” 12. Essa ideia é difundida em muitos outros autores sobre a história colombiana, segundo os quais a violência política é um fator constante que marca e define a forma como a política é feita no país durante toda sua história. A Colômbia é internacionalmente conhecida como um dos países mais institucionais e liberais do continente americano, e ao mesmo tempo, um dos países com os mais altos índices de violência do hemisfério (PALACIOS, 2012). Ainda que alguns autores critiquem essa abordagem da violência colombiana como permanente, ressaltando períodos de paz como o período hegemônico conservador (BUSHNELL, 2007), nos parece claro que os períodos de violência aberta podem ser percebidos na história colombiana como regra muito mais que como exceção. Lisset Péréz afirma que é preciso reconhecer que a própria tradição guerreira, de uso da força como meio de imposição política e social no país, molda a forma como esse estabelece suas relações políticas, econômicas e sociais. A guerra, aqui, escapa o conceito moderno da guerra entre Estados e se transporta para o plano civil, trazendo um contexto de guerra civil, segundo essa autora, para a análise do conflito colombiano. 12 SANCHEZ, Gonzalo. La Violencia in Colombia: New Research, New Questions. Hispanic American Historical Review, vol. 65, No 4, novembro de 1985, p. 789. 79 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Outro autor importante, Daniel Pécault afirma ser apenas possível analisar o conflito colombiano sob uma perspectiva em que convivem, em simbiose, ordem e violência. Essa simbiose promove uma constante desarticulação – quando não impossibilidade de ação – daqueles que não são parte do governo em alterarem a política através das vias democráticas. Afasta a sociedade civil – ou ao menos uma enorme parte dela que não participa do governo – da tomada de decisões. Perpetrada durante La Violencia, essa forma de organização do poder público não se modificou significativamente durante o governo da Frente Nacional, apenas incluiu os liberais na repartição do bolo. A política seguia fragmentada em si e agindo como fragmentadora da sociedade civil e da própria identidade nacional, que se constrói em meio ao conflito constante. Dados do ACNUR13 apresentados por Palacios comparam a quantidade de deslocados internos pelas práticas violentas do século XX na Colômbia, e essa se aproxima dos índices de países como o Afeganistão, o Sudão, as Filipinas, Ruanda e Somália ao fim das guerras civis que afetaram esses países ao longo desse mesmo século. Decidir se há uma predominância da violência ou uma forte presença em momentos alternados, com intensidades diferentes, ou ainda, decidir entre chamar a crise de conflito armado ou guerra civil, ou alternância de ambos, não altera por completo a conclusão. Ao longo dos anos, a sociedade colombiana construiu, portanto, uma relação própria entre a consciência popular e a violência. Conclui-se que a percepção popular é a de que o uso da violência apresenta-se como uma forma de gerir e solucionar conflitos. Retomando Palacios, o discurso legitimador das práticas violentas – em um ambiente de violência pública constante – acaba sendo, em vários momentos da história colombiana, reconhecido pela população civil. Tanto em prol de um grupo quanto de outro, em casos diferentes e de maneiras fluídas. Parte desse reconhecimento advém da própria história, reconhecem a violência por não reconhecerem ou legitimarem por completo o sistema que ela combate. Um sistema no qual parte dessa população se encontrava historicamente excluída social e politicamente das vias democráticas, um sistema que constitucionalmente anulava votos e que passou por algumas eleições polêmicas e de resultados questionáveis. Mas não conhecem uma 'democracia' que funcione de maneira diferente. Ainda, a violência é reconhecida como parte da vida política, já experimentada em diversos momentos anteriores, quando do assassinato de grandes líderes, por exemplo. Gaitán é um exemplo distante, mas longe de isolado ou esquecido. A Frente Nacional garantiu que as grandes oligarquias colombianas nunca fossem derrotadas politicamente. No regime da Frente Nacional, bipartidarista, os votos dados a candidatos 13 ACNUR. Em http://www.acnur.org/index.php?id_pag=565. (citado em Palacios, 2012.) 80 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina que não fossem nem conservadores nem liberais chegaram a ser anulados como inconstitucionais – como no caso da candidatura de Michelsen, do Movimento Revolucionário Liberal, MRL, candidato a presidência da esquerda liberal e legal que em 1962 recebeu 24% dos votos populares, sendo todos esses anulados constitucionalmente. A eleição já pertencia a um conservador, e o candidato sequer seria eleito com esses votos, e ainda assim esses foram anulados. (PALACIOS, 2012) Parte dessa garantia frentenacionalista vinha do uso constante de práticas clientelistas, enquanto outra parte significativa dessa garantia vinha da própria manipulação (até mesmo constitucional!) das eleições. Outra questão é que a própria história política colombiana colocava os partidos Liberal e Conservador em constante embate. Em sua análise, Andrea Lisset Peréz afirma que o próprio bipartidarismo dividia a nação. Segundo ela, “o controle social ficou completamente a mercê do partido político que estava no poder, prevalecendo um estilo de governo parcial e de exclusão” (Tradução livre de: “el control social quedó completamente a merced del partido político que estaba en el poder, prevaleciendo un estilo de gobierno parcial y de exclusiones.”). Um partido constantemente acusava ao outro de ser a razão das mazelas do país, e a política passava constantemente a ser guiada por uma briga de partidos, em que um sempre era posto como vilão pelo outro e poucos projetos em comum progrediam. Para Lisset Peréz, o uso da máquina pública do Estado e até mesmo das próprias instituições jurídicas nesse embate dicotômico modificou a forma como o Estado funcionava, na prática, e também a forma como ele era percebido pela população. A Frente Nacional em seus termos constitucionais, previstos no Ato Legislativo número um do Congresso, termina em 1974, mas muitas de suas práticas (a manutenção da paridade de posições em cargos ministeriais entre membros do partido conservador e do partido liberal, por exemplo) se mantiveram até os dias atuais. Segue abaixo o texto do Ato Legislativo Número 1: Art. 1. Nos três períodos constitucionais compreendidos entre o sete (7) de agosto de 1962 e o sete de agosto de 1974, o cargo de Presidente da República será desempenhado, alternativamento, por cidadãos que pertençam aos dois partidos tradicionais, o conservador e o liberal; de tal maneira que o presidente que se eleja para qualquer um dos ditos períodos pertença ao partido distinto do de seu imediato antecessor. Por consequente, para iniciar a alternação a que se refere esse artigo, o cargo de Presidente da República durante o período constitucional 81 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina compreendido entre o 7 de agosto de 1962 e o sete de agosto de 1966 será desempenhado por um cidadão que pertença ao partido conservador (…) (Tradução livre de: Art. 1. En los tres períodos constitucionales comprendidos entre el siete (7) de agosto de 1962 y el siete (7) de agosto de 1974, el cargo de Presidente de la República será desempeñado, alternativamente, por ciudadanos que pertenezcan a los dos partidos tradicionales, el conservador y el liberal; de tal manera que el presidente que se elija para uno cualquiera de dichos períodos, pertenezca al partido distinto del de su inmediato antecesor. Por consiguiente, para iniciar la alternación a que se refiere este artículo, el cargo de Presidente de la República en el período constitucional comprendido entre el 7 de agosto de 1962 y el 7 de agosto de 1966, será desempeñado por un ciudadano que pertenezca al partido conservador (...).) A Revolução Cubana trouxe a Guerra Fria para o centro da América Latina. Em um contexto de Guerra Fria, a Colômbia alinhou-se por completo com os Estados Unidos da América, seguindo a Política de Segurança Nacional e a Doutrina de Contra Insurgência que os Estados Unidos exportaram para o continente como um todo, com ainda maior intensidade a partir da Revolução Cubana e a consolidação de seu sucesso. A partir da Aliança para o Progresso, várias mudanças foram acordadas, muitas delas relacionadas à política interna. Na prática, o foco de toda a política de segurança implantada pela maioria dos Estados Latino-Americanos, em especial aqueles sob influência dos EUA, desloca-se da proteção ao país para o combate ao inimigo público e interno. Intercâmbio de técnicas e experiências em contra insurgência com os EUA, similares às que foram postas em prática em outros países da América Latina, foram implementadas na Colômbia. Os objetivos eram, em suma, impedir que os movimentos internos de esquerda se aproveitassem do contexto para fazer em outros países da América Latina o que foi feito em Cuba. Essas técnicas e experiências compartilhadas voltavam-se para a área de informação – sua obtenção e seu processamento –, mas não se limitavam a isso. As políticas de contra insurgência na América Latina foram, em diferentes gradações, violentas em sua prática repressiva. A Colômbia não se apresentou como ponto fora dessa curva. Além disso, a política tinha fortes influências culturais: o 82 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina país chegou a promover uma revisão historiográfica dos governos de Pinilla e do assassinato de Gaitán, passando a contar versões oficiais que desqualificavam esses e suas propostas 'populistas' e perigosas, assim como a vilanização da esquerda como um todo. Enfim, os anos sessenta tiveram na Colômbia um impacto semelhante ao que tiveram no resto da América Latina, mas é importante perceber que o regime de Frente Nacional e a própria Revolução Cubana e os esforços para seu combate são praticamente contemporâneos. Esses foram fortemente responsáveis por moldar, em certa medida, os caminhos de ação daquele, especialmente através da influência internacional. A Doutrina de Segurança Nacional norte-americana, quando aplicada na Colômbia, trouxe mais violência e repressão a um país que tinha acabado de deixar um regime de violência quase generalizada. Esse mesmo contexto provocou profundas mudanças nos movimentos de esquerda e em sua atuação na Colômbia. As guerrilhas que surgiram durante La Violencia já pretendiam organizar o país e o pensamento social na ordem da luta de classes, em torno dos grandes centros produtivos. O que muda é que agora, o fazem ora com apoio de cunho Castrista, vindo diretamente de Cuba, ora com instruções enviadas do governo chinês, ora seguindo as diretrizes do PC da União Soviética passadas ao PC nacional. As guerrilhas cresceram gradativamente em sua expressividade, mas também crescem as divergências entre elas. Os projetos de país e as próprias formas de implementar esse projeto – através de uma revolução imediata, através da implementação de uma “Sierra Maestra nos Andes” como se propunham os Castristas, entre outras, faziam com que a própria esquerda entrasse em conflitos internos. Palacios é um dos autores que atribui a pouca expressividade das guerrilhas na década de 60 e boa parte da de 70 não só à repressão, mas também a essa constante indefinição quanto às formas aos “meios de fazer a revolução”. Vale ainda destacar a formação de uma elite intelectual revolucionária que se opõe ao regime Frente Nacionalista; parte dessa viria a integrar o MRL, Movimento Revolucionário Liberal, de cunho socialista, que mencionamos previamente. É, inclusive, de divergências internas do MRL, em particular da JMRL, juventude do partido, que surge posteriormente o ELN (Exército de Liberação Nacional), grupo guerrilheiro que ganha considerável expressão nacional. Nas ultimas décadas, o país tem se dividido em ilhas de legitimidade e territórios de poderes de fato – do Estado ou das guerrilhas -, e o que restasse do país no meio. Isso se deu por que o próprio Estado que se propunha mínimo, e impondo baixíssimos impostos às classes que o regiam, não era capaz de garantir os direitos constitucionais básicos à vida e propriedade aos cidadãos, em especial aos que viviam muito afastados do meio urbano. Esses, em muitos casos se aliavam ou situavam sob a proteção de guerrilhas variadas, ou ainda grupos paramilitares, que 83 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina estabelecem nessas regiões suas próprias lideranças políticas e até mesmo sistemas de justiça parcialmente aceitos pela própria população. Na década de 70, começa a atuar no interior da Colômbia um novo elemento: o narcotráfico. Quase simultaneamente, entram em ação a produção de cannabis sativa exportada diretamente aos Estados Unidos da América, e a importação ilegal de cigarros Marlboro por garimpeiros de esmeraldas; em Cali e Medellín, os primeiros grupos começam importar a pasta básica do Peru e da Bolívia, transformar em alcalóide e exportar, também para os Estados Unidos. O fortalecimento desses grupos regionais e as pressões norte-americanas para que a Colômbia estabelecesse controle do país e erradicasse a produção e exportação de entorpecentes deixam o país com não mais um inimigo interno, mas dois: as guerrilhas e o narcotráfico. Enquanto fumigações aéreas das áreas de produção de cannabis e as pressões internas e externas pareceram ser suficientes para elevar custos e extinguir a atividade, a questão da cocaína ainda traria imensos desafios aos governos colombianos. Outro elemento de grande importância são as forças paramilitares antiinsurgentes, ora compostas e financiadas por narcotraficantes, ora por outros membros da sociedade civil. A Lei 48, aprovada em 1968, durante um dos muitos estados de sítio pelos quais o país passou nos últimos anos, permitia que as Forças Armadas armassem a população civil para fins de manutenção da união nacional – daí o fortalecimento e a 'proliferação' das organizações paramilitares de autodefesa, que na prática, funcionaram como contra insurgentes. Os propósitos da autodefesa dessas organizações, como afirmado pelo Human Rights Watch em uma de suas denúncias da situação colombiana, eram a “rejeição violenta de ações guerrilheiras em sua região” (Tradução livre de: violent rejection of guerrilla actions in their region14). Fato é que essas organizações paramilitares estão em direto conflito com as guerrilhas; Palacios afirma que durante o fim da década de 70 e começo da de 80 as guerrilhas tenham perdido mais espaço para o narcotráfico e outras organizações paramilitares de extrema-direita do que para ações governamentais. O Human Rights Watch estima que 80% das violações de direitos humanos na Colômbia nos últimos anos tenham sido feitas por grupos paramilitares. Além disso, esse embate nunca diretamente ligado ao governo é apontado como um meio “excelente” para ocultar e maquiar índices relacionados aos direitos humanos, já que o Estado fornece armas aos violadores mas não há nenhuma ligação direta entre o Estado e as violações per se. (PALACIOS, 2012, Human Rights Watch, 1996) 14 Comando del Ejército, Reglamento de Combate de Contraguerrillas, EJC 3-10 Reserved, 1969 (periodicamente atualizado). Citado por Human Rights Watch em THE HISTORY OF THE MILITARY-PARAMILITARY PARTNERSHIP .Disponível em: http://www.hrw.org/legacy/reports/1996/killer2.htm#22. Acessado em 03/11/2012. 84 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Nenhuma área de atuação do Estado se sentiu tão afrontada pelas ações guerrilheiras quanto as Forças Armadas; em 1979, integrantes do M-19 roubaram armas de um próprio quartel do Exército e tornaram esse fato público. O Exército via nas guerrilhas o único inimigo interno a ser combatido; aliás, desde 1981 o Exército colocou o narcotráfico exclusivamente sob responsabilidade e controle da Polícia Nacional e foi combater seus verdadeiros inimigos: ELN, EPL, FARC, MAQL, M-19, entre outros de menor expressão. Na tentativa de controlar as guerrilhas, o Exército conseguiu autorização presidencial – através de uma lei promulgada também em estado de sítio – para julgar guerrilheiros e civis apoiadores da insurgência em corte marcial. Ainda, o Exército recorria a violações constantes de direitos humanos para promover a contra insurgência e as denúncias de tortura e desaparecimentos inexplicáveis tramitam constantemente por órgãos da justiça civil. A partir de 1980, passa-se a chamar-se a crise colombiana de conflito armado, conceito que passaremos a utilizar a partir de agora. Ainda que os principais elementos dessa caracterização já se manifestassem, não o faziam em níveis tão significativos e alarmantes quanto passaram a fazêlo a partir dessa década. Segue a definição de conflito armado que acreditamos ser muito adequada: la lucha insurreccional llevada a cabo por organizaciones guerrilleras con el propósito de transformar revolucionariamente el orden social y el Estado que lo protege, y la repuesta estatal y paramilitar. Esta lucha no se libra exclusivamenteen el plano de las armas. Los contendientes emplean tácticas y estrategias económicas, sociales, políticas y psicológicas. (PALACIOS, 2000) (Tradução livre: “A luta insureccional conduzida por organizações guerrilheiras com o propósito de transformar revolucionariamente a ordem social e o Estado que a protege, e a resposta estatal e paramilitar. Essa luta não se dá apenas no plano armado. Os contingentes empregam táticas e estratégias econômicas, sociais, políticas e psicológicas.”) Essa mudança conceitual se dá pois durante os anos 60 e 70 a atuação guerrilheira, já existente, tinha um caráter marginal, e no fim da década de 70 essa passa por fases significativas de expansão tanto geográfica quanto do número de combatentes. (PALACIOS, 2012) A atuação do narcotráfico teve forte impacto na expansão do conflito armado, já que ofereceu condições para a 85 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina expansão da ação das guerrilhas e ao mesmo tempo ofereceu novos desafios ao governo. Também a formação de grupos paramilitares a partir de 1968 deve ser considerada em seu caráter essencial para o agravamento da violência nos anos seguintes. Se o Estado Hobbesiano deve ser detentor de um monopólio absoluto do uso da força, e portanto da violência, esse definitivamente não se manifesta na Colômbia atual. Se 'não há na Terra poder que se compare ao seu' (do Leviatán), na Colômbia diferentes poderes convivem e se sobrepõe. Em uma soma hobbesiana, as guerrilhas revolucionárias colombianas, ainda que com limitações de localização e atuação, são uma clara – e de difícil combate – afronta ao Estado. Mesmo os grupos paramilitares do narcotráfico, com sua abundância de recursos e até apoio Estatal (direto ou indireto), vão contra a lógica estatal hobbesiana e moderna. (PALACIOS, 2012; GONZÁLEZ, 2010). XI.2. AS GUERRILHAS As guerrilhas são a parte fundamental do conflito armado colombiano, sendo essa afirmação dificilmente discutível. Cada um dos movimentos guerrilheiros colombianos tinha em sua fundação objetivos revolucionários, quer acreditando em grandes ações que funcionassem como publicidade positiva e causassem comoção nacional em prol de uma nova democracia – como fez o M-19 –, quer acreditando em uma revolução socialista que viria das grandes serras e varreria o país – como na metodologia castrista – modificando o campo de forças formador da sociedade colombiana, ou ainda nos ideais de Lin Piao em prol da “guerra popular prolongada”. Todos os grupos pretendiam alcançar seus objetivos através do uso das armas. Os movimentos guerrilheiros que se integram a essa já existente cultura de resistência – e se propõe a construí-la, onde ela não há – pretendem alcançar uma mudança que se dará através da revolução popular – o único e melhor caminho enxergado por esse para sobrepor-se a um Estado opressor, mantenedor das desigualdades de classe. O resultado dessa proposta é, segundo Palacios, que: Las guerrillas colombianas contemporâneas (es decir, 1950 en adelante) no luchan contra fuerzas de ocupacción extranjera sino que entran directamente en el laberinto de la guerra fratricida. No empuñan las armas para salvar la nación existente, sino para alcanzar un proyecto alternativo de nación: Colombia contra Colombia. (PALACIOS, 2012).- (Tradução livre: As guerrilhas 86 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina colombianas contemporâneas (diga-se, 1950 em diante) não lutam contra forças de ocupação estrangeira, mas entram diretamente no labirinto da guerra fratricida. Não empunham as armas para salvar uma nação existente, mas para alcançar um projeto alternatido de nação: Colômbia contra Colômbia.) No contexto bipartidarista colombiano, é no conflito armado que as lutas políticas e sociais ganham atenção e assumem o tom que os movimentos guerrilheiros almejam. Ainda mais importante, em um ambiente de violência pública, como argumenta Marco Palacios em teoria previamente exposta, é através desse reconhecimento na esfera pública que o movimento armado ganha legitimação. Mantém-se assim como uma pedra no sapato do Estado, e tenta deixar acesa a luta por direitos sociais e políticos. Tenta não deixar que a exclusão de partidos (que não o liberal e o conservador) do jogo político, praticada pelo regime frentenacionalista, transforme os partidos marginais (expressão aqui utilizada no sentido de à margem do sistema) e suas propostas de Colômbia em fantasmas deliberadamente e completamente ignorados nas agendas governamentais. Em obra sobre a resistência temporal indiscutível das guerrilhas colombianas ao longo das décadas, a cientista política e antropóloga Andrea Lisset Peréz 15 diz que a longa duração das guerrilhas colombianas se dá em grande parte por causa do “papel das tradições de resistência nos conflitos sociais” (Tradução livre de: “el papel de las tradiciones de resistencia en los conflictos sociales”). Esse trecho nos trás duas informações muito importantes que não podem ser esquecidas. Quando da análise das ações de guerrilhas, é preciso percebê-las como mais que um movimento armado que retira legitimidade do Estado e causa mortes, mas como parte de um contexto social e político em que se utiliza da luta armada, ou ao menos, uma faceta desse movimento. Nenhuma guerrilha é apenas militar, sem influência de projetos de país, ideologia ou reivindicações próprias. Ainda que essas reivindicações tenham sido fluídas ao longo da existência das guerrilhas e se modificado ao longo das décadas, sua presença e importância é muito significativa. Essa interpretação, inclusive, está no seio da interpretação do presidente Belisario Betancur para as negociações e projetos de paz que serão abordados posteriormente. Uma segunda informação importante advinda da afirmação de Andrea Lisset Pérez é que as guerrilhas se integram, segundo a autora, a toda uma cultura de resistência que é intrínseca às classes camponesas e operárias colombianas, que passaram pelo período de La Violencia e foram transformadas por ele. 15 LISSET PÉREZ, Andrea. Tradiciones De Resistencia Y Lucha: Un análisis sobre el surgimiento y la permanencia de las guerrillas en Colombia. anal.polit. Vol.23 no.70 Bogotá. Sept./Dec. 2010. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?pid=S0121-47052010000300004&script=sci_arttext#2. Acessado em: 04/11/2012. 87 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Em consonância com essa teoria, Camilo Torres Restrepo afirma que “La Violencia constituiu na Colômbia a mudança socio-cultural mais importante das áreas camponesas desde a Conquista feita pelos espanhóis.” (Tradução livre de: La Violencia ha constituido para Colombia el cambio socio-cultural más importante en las áreas campecinas desde la Conquista efectuada por los españoles)16, já que integrou a classe campesina e lançou as bases para a criação de uma sub-cultura rural de cunho revolucionário, que como ficará claro na abordagem específica dos movimentos, teve caráter crucial na formação das guerrilhas e em suas relações com o campo. (TORRES RESTREPO, apud PALACIOS, 2012) Isso fica claro também em Pizarro, citado por Lisset Pérez: La evidencia histórica sugiere que los experimentos guerrilleros emprendidos en los años setenta florecieron justamente en las mismas áreas rurales y entre la misma población que acababa de experimentar el fenómeno conocido como la 'Violencia'. Esta evidencia no puede ser ignorada o calificada como mera coincidencia" (Pizarro, 1996: 111 apud Lisset Pérez, 2010) (Tradução livre: A evidência história sugere que as experiências guerrilheiras empreendidas nos anos setenta florecenram justamente nas mesmas áreas rurais e entre a mesma população que acabava de experienciar o período conhecido como a Violência. Essa evidência não pode ser ignorada ou qualificada como mera coincidência. Mario Luna Benítez afirma que parte dos motivos pelos quais as guerrilhas se espalharam por toda a América Latina – com maior ou menor sucesso em uns que em outros, e sucesso, aqui, deve ser percebida como um julgamento de ordem consideravelmente moral e subjetiva. O autor destaca a importância da influência de Che Guevara nesse processo, o guerrilheiro incentivava a não espera pelas condições certas para as revoluções da América Latina, e afirmava que os próprios movimentos poderiam criar essas condições necessárias. O castrismo, em parte supra explicado, incentiva a formação guerrilheira em todo continente, enquanto os autores Lisset Pérez, Restrepo e Palacios explicam a guerrilha com um enfoque específico na Colômbia. Acreditamos que ambas 16 TORRES RESTREPO, Camilo. La Violencia y los cambios socioculturales en las áreas rurales colombianas. Ponencia presentada en el Primer Congresso Nacional de Sociología. Bogotá. Acessado em: http://www.elnvoces.com/webanterior/pensamiento/camilo/index.html. Citado por Palacios, 2012. 88 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina explicações não sejam explicações excludentes, já que o panorama continental de Che se fazia presente na Colômbia, permeado pelas especificidades. Por fim, o autor afirma que é necessário ressaltar que os grupos não são os mesmos desde sua formação, nem é o mesmo o contexto em que se inserem. Há um grau de fluidez e de modificações constantes na luta guerrilheira e na forma como essa se dá; Luna Benítez afirma ainda que o M-19 modificou a luta como um todo, alterando paradigmas. Em geral, as formas de ação dos movimentos guerrilheiros giram em torno do sequestro e da extorsão para fins de financiamento do movimento; essa prática foi comum nas ações de todas as guerrilhas que abordaremos aqui. A partir da década de 80, cresce gradativamente o papel do narcotráfico na sustentação financeira de alguns movimentos guerrilheiros e nos grandes desafios impostos a outros; essa relação se apresenta de forma difusa entre guerrilhas e cartéis em diferentes momentos e localidades. Casos específicos serão abordados nas descrições particulares. Feita essa apresentação geral, seguem as principais guerrilhas que atuam com grande destaque no cenário colombiano atual. Nos propusemos a fazer uma breve abordagem histórica dessas, além das formas e focos de suas ações. XI.2.1. AS FORÇAS ARMADAS REVOLUCIONÁRIAS DA COLÔMBIA Hay en este país una serie de Repúblicas Independientes que no reconocen la soberanía del Estado colombiano, donde el ejército colombiano no puede entrar, donde se le dice que su presencia es nefasta, que ahuyenta al pueblo, o a los habitantes. (Tradução livre: Existem nesse país uma série de Repúblicas Independentes que não reconhecem a soberania do Estado Colombiano, onde o exército colombiano não pode entrar, onde se diz que sua presença é nefasta, que afronta o povo, os habitantes...). Álvaro Gómez Hurtado, em discurso no Congresso da República, em 25 de outubro de 17 1961 17 Disponível em: http://www.semana.com/multimedia-conflicto/queda-farc/601.aspx. Acesso em 01/11/2012. 89 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Fala-se da existência de 16 repúblicas independentes, formadas durante a Grande Violência para proteção mútua dos campesinos da grande brutalidade do regime. Essas repúblicas alternavam constantemente entre funcionarem como guerrilhas armadas móveis – em períodos de grande repressão - e comunidades de autodefesa campesina apoiadas pelo PCC, em períodos mais 'calmos'. Com o início do governo frentenacionalista e a anistia aprovada pelo presidente Alberto Lleras Camargo, e sob a proteção do Partido Comunista Colombiano, essas comunidades passaram a levar vidas campesinas regulares. Nessas comunidades conviviam indígenas camponeses; em muitos casos mantiveram-se unidas aos guerrilheiros que ali atuavam desde período da Violência, mas sem promoverem lutas armadas novas. Entre essas repúblicas, é extremamente importante mencionar aquela que ficou conhecida como República de Marquetalia, “o mito fundador das FARC” 18. O discurso acima transcrito foi proferido por um congressista do partido conservador, fez parte do início da contra insurgência do governo colombiano, que durante os primeiros anos da década de 60 desencadeou uma série de ataques às repúblicas independentes. Essas passaram a ser vistas cada vez mais como o “'perigo comunista' encarnado” (PALACIOS, 2012) pelos governos frentenacionalistas, e sofreram com ataques diversos, inclusive bombardeios aéreos. Esses ataques fizeram com que as repúblicas voltassem a atuar como guerrilhas móveis; juntas, Marquetalia, Riochiquito, Sumapáz, El Pato, Guayabero e Ariari, formaram o que foi chamado de Bloque Sur – um bloco de guerrilhas em movimento constante pelo interior do país. Sob constante ataque das Forças Armadas, alguns guerrilheiros fugiram para a selva ou as montanhas. Mais tarde, em 1964, fundariam a organização que foi formalmente chamada de Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Diverge-se quanto a análise dos ataques a Marquetalia e as outras repúblicas independentes; há quem diga ter sido essa uma faceta da atuação da Aliança Para o Progresso, e portanto, resultado de uma pressão continental, não de uma necessidade enxergada pelo governo nacional. Outros dizem que sempre existiram no seio do Partido Comunista Colombiano os elementos para a criação das Forças, já que seu estatuto aceitava “todas as formas de luta revolucionária” (LEONGOMÉZ, 2004). De qualquer maneira, os ataques à Marquetalia ficaram conhecidos como o mito fundacional das FARC, tanto para seus integrantes quanto para a população civil, em especial a camponesa diretamente ligada às ações do grupo por motivos geográficos ou através de alianças. O grupo tem uma atuação expressiva em grandes parcelas do território nacional, com foco para a ação em grupos camponeses. A região das repúblicas independentes continua sob grande 18 PIZARRO LEONGOMÉZ, Eduardo. Marquetalia: el mito fundacional de las FARC. Disponível em: http://historico.unperiodico.unal.edu.co/Ediciones/57/03.htm. Acessado em: 02/11/2012. 90 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina influência das FARC. Sua atuação se dá majoritariamente no campo e na selva, em especial ao Sul de Tolima e na região Amazônica. Informes da inteligência afirmam que as FARC negociaram recentemente 'autorizações' para que o narcotráfico pudesse ser praticado em suas zonas protegidas, à princípio, mas a trégua entre a guerrilha e o narcotráfico não durou muito e não é uniforme, o que torna o termo narco-guerrilla19 utilizado pelo Embaixador dos EUA na Colômbia em abril do ano passado, deveras, exagerado. Aliás, estima-se que as FARC e outras guerrilhas interioranas tenham perdido mais espaço para o narcotráfico paramilitar do que para ações das Forças Armadas colombianas nos últimos anos. Ao mesmo tempo em que se propõem a proteger os camponeses e representar seus interesses, as ações das FARC excluem (desterram e expulsam) o camponês que se recusa a integrar-se no sistema das FARC e defender suas propostas comunistas. Não se pode falar, por tanto, de apoio unânime ao grupo. Por outro lado, os apoios que são dados, quando são, estendemse do logístico indireto à participação direta, muitas das vezes em troca de proteção. (LUNA BENíTEZ, 2006) A relação entre as FARC e o Partido Comunista Colombiano é explicita, as FARC sem dúvidas surgiram de guerrilheiros do PCC situados nas repúblicas independentes. Atualmente, eles claramente têm fortes identificações políticas. Em 1973, o Secretário Geral do PCC afirmou abertamente que o PCC participava da luta armada através das FARC; em suas palavras, citadas por Palacios: “Hoy en día, el hecho real es que el PCC participa de la lucha armada, tiene una organización, las FARC, y cree que ese movimiento tiene perspectivas de crescimiento y desarollo. [...] [L]os comunistas estamos seguros de que esas agrupaciones guerrilleras [...] van a convertirse en focos de atracción para grandes sectores del pueblo colombiano y en la forma principal de lucha para nuestro pueblo."20 Até o ano passado, havia divergências entre as organizações, apesar do trecho acima. As FARC não se reconhecem mais como organização subordinada ao PCC, mas dotada de mandantes e lideranças próprias e independentes. FARC e PCC, sem dúvida, se aproximaram bastante após serem assinados os Acordos de Paz de la Uribe com o governo colombiano, em maio do ano passado, nos quais as FARC e o PCC 19 Citada por Marco Palacios. Collazos, Ó. & Valverde, U. Colombia. Tres vías a la Revolución. Bogotá, 1973. Circulo Rojo Editores, p, 57. 20 91 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina criaram formalmente uma aliança política chamada União Patriótica (UP), de caráter estritamente político. Alguns membros de seções desmilitarizadas do Exército de Libertação Nacional também fazem parte da UP. As FARC nunca saíram oficialmente dos Acordos supracitados, entretanto são claras as violações constantes feitas por esse grupo ao cessar-fogo estabelecido em maio do ano passado. XI.2.2. O EXÉRCITO DE LIBERTAÇÃO NACIONAL (ELN) Em 1962 a Juventude Movimento Revolucionário Liberal se proclamou leninistamarxista, adotando a bandeira vermelha e preta e o mote "!Ni un paso atrás!"; esses emblemas seriam herdados pelo Exércido de Libertação Nacional – uma organização inicialmente clandestina urbana – fundada dois anos depois. Em seus primeiros anos, a chave do recrutamento do ELN seria o movimento estudantil. A história consagrada de sua fundação diz Na imagem estão presentes elementos que representam toda a Colômbia (elementos naturais), a luta armada (fuzil), os símbolos da classe operária e do campesinato (machete e martelo). Também representa-se o caráter continental da luta, simbolizado pelo mapa da América Latina. Por fim, vale observar as palavras de ordem. – Acessada em 11/11/2012. que o ELN se formou após a ida de estudantes colombianos a Cuba, sob orientações do próprio Che Guevara dadas em 11 de novembro de 1962, e formação da Brigada pela Libertação Nacional José Antonio Galán. Aos poucos o ELN foi abandonando seu caráter urbano, mais tarde definiram que a revolução se faz à la Pancho Villa21, e todos reconheceram a necessidade de subir à montanha. (PALACIOS, 2012) Juntamente com as comunidades campesinas, o ELN construiu um "tejido de solidaridades y apoyos regionales, producto de construcciones a través del tiempo en las propias luchas sociales" (Vargas apud LISSET PÉREZ, 1998: 102). Apesar de não ter surgido das camadas populares, 21 Pancho Villa é notoriamente conhecido como um dos líderes regionais da Revolução Mexicana, visto por muitas guerrilhas, como se pode ver no texto, como exemplo a ser seguido na luta revolucionária. Informalmente chamado de “robin hood latinoamericano”, Pancho e seu grupo roubavam de fazendas e com isso financiavam a revolução e distribuíam o que sobrava aos campesinos mexicanos pobres. 92 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina pesquisas indicam que esse grupo soube se integrar às causas populares e os movimentos populares ao longo de sua história. O ELN passou por diversas crises internas. Logo em seus primeiros anos, as lideranças do ELN trazem para o movimento o Pe. Camilo Torres Restrepo (sim, o mesmo citado lá acima, quando falávamos das guerrilhas em uma abordagem geral), com a proposta de integrar a com a proposta de integrar a guerrilha à lógica da Teologia da Libertação e trazia consigo o apoio da Frente Unidos do Povo (FUP), e de todo seu aparato. A crise vem quando da morte do Pe. Camilo Torres em uma de suas primeiras participações em batalha. Seguiram a essa morte uma grande militarização, e divergências internas que levaram ao fuzilamento de muitos dos membros do ELN. Em 1972, em função de falhas de segurança – não codificação de mensagens, por exemplo – o Exército foi capaz de acessar e ler correspondências do ELN e, com essa informação, destruir praticamente toda rede de domínio do grupo. (PALACIOS, 2012) O ELN passou por reorganizações, em 1976 se dividiu em três grupos, por área de atuação, indo para o sul de Bolívar, Segovia e Antioquia (PALACIOS, 2012). A presença da Teologia da Libertação na figura de Camillo Torres tinha comovido outros padres colombianos, e a própria população, reforçando o discurso de legitimação do ELN e trazendo novos integrantes – muitos deles sacerdotes – para os quadros dessa guerrilha. Essa forte presença sacerdotal deu ao movimento um cunho menos militarista; desde 1983 o ELN é comandado por um sacerdote Manuel Pérez Martínez. O ELN se recupera de uma substantiva crise, e até hoje não formalizou nenhum acordo de paz com o governo de Belisaio Betancur Cuartas através das negociações de paz. XI.2.3. O EXÉRCITO POPULAR DE LIBERTAÇÃO Desde sua fundação, o Partido Comunista Colombiano tinha girado em torno do Partido Comunista da União Soviética; as novas determinações Khruschevistas de 56, pregando a transição pacífica ao socialismo e a convivência pacífica com o imperialismo criaram fortes divergências internas nos Partidos Comunistas ao redor do mundo. Em 1963 há o rompimento chino-soviético, e 93 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina em 1965 uma vertente do Partido Comunista Colombiano sai do PCC em um congresso paralelo e forma o Partido Comunista Colombiano Marxista Leninista (PCC-ML). O faz com apoio e instrução das lideranças do Partido Comunista Chinês: a guerra popular prolongada seria a única via para o socialismo em Ásia, América e África. O PCC-ML funda, em 1967, o Exército Popular de Libertação (EPL). (PALACIOS, 2012) O grupo agiu de 1967 a 1975, quando os integrantes foram detidos por autoridades estatais. Voltou a ativa em 1978, segundo informes do Sistema de Inteligência, e romperam com suas origens maoístas, como deixou claro o PCC-ML em 1980. O foco de sua ocupação está voltado para os grandes centros de desenvolvimento agroindustrial, em especial Urabá e outras regiões da Antioquia e Córdoba. (CASTILLA, 1997) O Exército Popular de Libertação assinou em 23 de Agosto de 1984 um acordo de paz com o Governo Nacional. Monitoramentos do Sistema de Inteligência Colombiano indicam que, entretanto, durante esse período de cessar-fogo o grupo tem buscado aumentar seu contingente humano e bélico. (CASTILLA, 1997) XI.2.4. O MOVIMENTO ARMADO QUINTÍN LAME (MAQL) O MAQL é uma guerrilha consideravelmente recém-formada, que surgiu de Movimentos Indígenas já existentes na região do Cauca, em especial movimentos de autodefesa que tinham como objetivo a proteção dos índios de alegados ataques feitos por fazendeiros às suas vidas e terras. Até então, o Grupo Quintín Lame tinha recebido treinamento do PC-ML, desde 1974, mas não promovia confrontos diretos. Surgido no ano passado (1984) sob a forma de Guerrilha, promoveu sua primeira ofensiva armada, atacando fazendas na região de Castilla e tomando a cidade de Santander de Quilichao, ambos na província de Cauca. Novamente, o MAQL é formado majoritariamente por indígenas, com o apoio de guerrilheiros de diferentes grupos. Entre os apoios, destaca-se a participação do M19, especialmente através de influência desses desenovistas no Conselho Regional Indígena do Cauca. (LUNA BENÍTEZ, 2006, MONTAÑA MESTIZO, 2009) Entre suas ações destacam-se a invasão de fazendas da região sob a égide de recuperar terras indígenas ocupadas pelos fazendeiros ao longo da história e a continuidade às práticas de autodefesa. Seus objetivos são estender a faixa de terra de “posse” indígena. (MONTAÑA MESTIZO, 2009) 94 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina XI.3. O MOVIMENTO 19 DE ABRIL (M-19) Luna Benítez afirma que o surgimento e o formato do M-19 representou um verdadeiro câmbio das formas de atuação da guerrilha. A ação passa do reativo à situação social e política – e até mesmo às ações violentas do governo –, predominante nas décadas de 60 e 70, para um modelo que buscava promover a própria crise política e social do regime, que até então não era percebida pela população em toda sua dimensão. Nas palavras de Jaime Batemán, o objetivo era que “cada bala contivesse mais de política” (Tradução livre de: 'cada bala contenga más de política” apud LUNA BENÍTEZ, 2006), o que significava colocar as armas, acima de tudo, a serviço de uma revolução política. Contraditoriamente como possa soar, o M-19 se propunha ao uso da violência para combater os próprios legados de La Violencia: a apatia frente a democracia, a rigidez do sistema frentenacionalista tradicional, a recorrência estatal ao uso da violência e da repressão para solução de questões políticas e sociais, a fortíssima influência da tradição militar na política. A 'criação' da crise expandia as guerrilhas, que até então encontravam-se confinadas nos extremos da fronteira agrícola, distante, por exemplo, das populações urbanas e da aprovação dessa parcela da população. Suas ações deslocaram parte da ação guerrilheira, até então praticamente enclausurada no interior do país, para a urbanidade, quase intocada pelas guerrilhas, suas ideologias e – também, há de se convir – intocada por boa parte da violência de que ela se utilizava. O M-19 se apresentou, desde sua fundação, como opositor político direto ao regime frentenacionalista, buscando agir como um dos interlocutores da vida e da percepção política popular. As ações do M-19 figuram como a expressão mais clara da violência pública de Marco Palacios, já que suas ações se davam no plano da influência à opinião pública mais que em qualquer outro âmbito. Buscava através de suas ações causar comoção popular, trazer a população civil para as grandes movimentações; utilizava-se das armas para intimidar e ameaçar, mas principalmente, para apontar as falhas do sistema e da segurança oferecida pelo Estado. Logo em suas primeiras ações, fica claro o convite feito à população para que aderisse à uma maior participação, se mobilizasse, e com isso, o M-19 dialogou com as classes médias, os estudantes universitários, os movimentos sociais operários, e falou diretamente até mesmo com os empresários. Segundo Gonzaléz: Esse movimento guerrilheiro se especializou em executar ações que resultavam tão extravagantes que a população civil passou a perceber o grupo como uma “guerrilha-espetáculo”. (GONZALÉZ, 95 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina 2010) - (Tradução livre de: Este movimiento guerrillero se especializó en ejecutar acciones que resultaban tan extravagantes que la población civil empezó a concebir al grupo como una “guerrilla espectáculo”;) Nenhum grupo afrontou tão abertamente a capacidade do Exército Colombiano enquanto mantenedor da ordem interna quanto esse, como ficará claro quando narrarmos as principais ações do M-19 até os dias atuais, entre elas a do Cantón Norte. É importante perceber que o M-19 se diferenciava em muitos aspectos das outras guerrilhas, mas tinha elementos fortes em comum com elas. Um deles que vale a pena mencionar é a prática constante de sequestros e cobrança de altíssimos valores de resgate, com objetivos de financiar as ações guerrilheiras. XI.3.1. O SURGIMENTO O M-19 surge em 1974, em um contexto político complicado. Gustavo Rojas Pinilla havia, em 1970, perdido eleições cuja apuração levantava dúvidas, e tinha acabado com a eleição de seu opositor, do partido conservador, Misael Pastraña, por uma diferença de votos relativamente pequena, 63,557. A ANAPO se dividiu, nesse contexto, em duas vertentes: uma que não aceitava o resultado das eleições, chamada socialista, e que formaria o M-19 posteriormente, e outra liderada pela filha do General Rojas que optou pela via democrática. As bases do movimento não estão na ação coletiva campesina como era tradicional das outras guerrilhas, ainda que experiências prévias de alguns dos membros nesse sentido tenham tido forte influência na forma de agir desse grupo. Entre essas experiências destaca-se o contato de Iván Marino Ospina e Afranio Parra com guerrilhas surgidas de La Violencia na década de 60. Sua principal liderança encontrava-se na figura pessoal de Jaime Batemán.(LUNA BENÍTEZ, 2006). Dissidências variadas das FARC e do PCC, assim como quadros da Alianza Nacional Popular (ANAPO) de Rojas Pinilla, também compuseram o M-19 no momento de sua fundação. (LUNA BENÍTEZ, 2006, PALACIOS, 2012) Em palavras de um de seus fundadores, Alvaro Fayad: Não queríamos nos conformar com uma simples guerrilha que sobrevivesse, nem um movimento popular, como o da ANAPO, que não foi capaz de enfrentar as fraudes da oligarquia; nem um 96 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina movimento operário, dividido, que não participava da luta política; nem um movimento camponês, que toma terras somente, que não se expressa de maneira polícia nem no campo militar. […] O que nos interessava era encontrar essa nova maneira de lutar, de se organizar, de se unir, de se ligar como movimento armado ao movimento popular, de conjugar a força da política com a força das armas, de fazer a revolução do povo. (LARA apud Informe Final da Comissão da Verdade, p 44) - (Tradução livre de: No queríamos conformar una simple guerrilla para sobrevivir, ni un movimiento popular, como el de la ANAPO, que no fuera capaz de enfrentar los fraudes de la oligarquía; ni un movimiento obrero, dividido, que no saltara a la lucha política; ni un movimiento campesino, de toma de tierras solamente, que no se expresara en lo político ni en lo militar.[…]. Lo que nos interesaba era encontrar esa nueva manera de luchar, de organizarse, de unirse, de ligarse c omo movimiento armado al movimiento popular, de conjugar la fuerza de la política con la fuerza de las armas, de hacer la revolución del pueblo) 97 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina A primeira atuação do M-19 foi precedida por anúncios colocados em jornais. Dizia-se: “Parasitas, vermes, falta de memória, inatividade? Aguarde, M-19” (Tradução livre de: “Parasítos? Gusanos? Falta de memoria? Inactividad? Ya viene M-19”. No mesmo dia do último anúncio, que dizia apenas “Ya Vene M-19”, roubaram a Espada de Simón Bolívar da Casa-Museu onde essa ficava, chamada Quinta de Bolívar22. Deixaram um bilhete que, segundo o Informe Final da Comissão da Verdade, dizia “Bolívar, sua espada volta à luta” (Tradução livre de: “Bolívar, tu espada vuelve a la lucha”). Roubar a Espada de Bolívar significou mais que um début extravagante para um movimento cujos propósitos eram atrair a atenção e modificar a opinião pública; era para os guerrilheiros um resgate ideológico do bolivarianismo tão louvado pela tradição da esquerda Colombiana, e ao mesmo tempo, uma clara afronta à ordem e às Forças Armadas, que se viram incapazes de proteger um item de tamanho valor para a história nacional. Crê-se que atualmente a Espada se encontra em Cuba, tendo sido levada para lá em 1980, após outro ato ainda mais extravagante do M-19. XI.3.2. O ASSALTO AO CANTÓN NORTE Conhecida como a primeira ação de grande porte do grupo, o assalto ao Cantón Norte foi uma das maiores afrontas já feitas por grupos guerrilheiros às Forças Armadas colombianas. Denominada pelos guerrilheiros de Operação Baleia Azul, e levada a cabo em dezembro de 1978, essa operação efetuou o roubo de milhares de armas de uma instalação do Exército Nacional. Para isso, compraram uma casa nas proximidades e construíram um túnel que ligava a casa a um dos maiores (e supostamente mais seguros) depósitos de armas da instituição. (GONZALÉZ, 2010) Ao mesmo tempo em que colocou em cheque as capacidades das Forças Armadas, e feriu o orgulho da instituição, essa operação desencadeou uma gigantesca busca por todos os guerrilheiros envolvidos nela, tornando deveras difíceis as possíveis outras ações do grupo. É a partir da Operação Baleia Azul que as Forças Armadas passam a ver no M-19 um inimigo a sua altura, e não apenas um movimento que chamava atenção popular. Desse momento em diante o exército passou a ver a dizimação do M-19 pelas vias militares como o melhor – e único – caminho a ser seguido. (GONZALÉZ, 2010) 22 As informações aqui veiculadas acerca desse roubo foram retiradas de crônica publicada no site da Quinta de Bolívar. A crônica é de Manuel Francisco Carreño e consta nas referências dessa obra. 98 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina A Brigada de Institutos Militares, sob o comando do general Miguel Vega Uribe (nosso atual Ministro da Defesa), conseguiu recuperar, logo em uma intensa operação que durou 16 dias, a maioria das armas roubadas. Depois, ao longo desse ano (o texto fala do fim de 1978, logo, esse ano corresponde a 1979), conseguiu o desmantelamento do grupo subversivo: dezenas de seus líderes foram capturados, vários sequestrados foram resgatados e se descobriram pelo menos cinco covas subterrâneas batizadas pelo M-19 de “cárceres do povo”, nas quais eram mantidos os reféns em condições subhumanas. (PLAZAS VEGA, 2000, apud GONZALÉZ, 2010.) (Tradução livre de: La Brigada de Institutos Militares, bajo el comando del general Miguel Vega Uribe, logró recuperar, luego de una intensa operación que duró 16 días, la mayoría de las armas robadas. Después, a lo largo de ese año, se logró el desmantelamiento del grupo subversivo: decenas de sus líderes fueron capturados, varios secuestrados fueron rescatados y se descubrieron por lo menos cinco cuevas subterráneas bautizadas por el M-19 como “cárceles del pueblo”, en las cuales eran mantenidos los plagiados en condiciones infrahumanas.) XI.3.3. A EMBAIXADA DA REPÚBLICA DOMINICANA Ao contrário do que nos leva a acreditar a citação acima, as Brigadas de Institutos Militares e as ações do Exército não desmantelaram o M-19, o que ficou claro quando o Movimento colocou em prática uma ação ainda mais extravagante que as anteriores, logo no ano seguinte, 1980. No dia 27 de Fevereiro, um grupo de guerrilheiros invadiu a Embaixada da República Dominicana, onde acontecia uma festa nacional, contando com a presença de diversos outros embaixadores de outros países, além de outros convidados, todos tomados como reféns pelos guerrilheiros. Entre os países representados, cita-se embaixadores e/ou cônsules de Brasil, Áustria, Suíça, Estados Unidos da América, Costa Rica, Haiti, Guatemala, Uruguai, Egito, Israel, México, Peru e Venezuela. O lema da operação era “vencer ou morrer” (Informe Final da Comissão da 99 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Verdade, 2010). A operação recebeu o nome de “Operação pela democracia e a liberdade”, e tinha como objetivo Denunciar as violações de direitos humanos por parte do exército, recusar a justiça penal militar para julgamento de civis e negociar a liberdade dos presos políticos do M-19. (Informe Final da Comissão da Verdade, 2010, apud GONZÁLEZ, 2010) (Tradução livre de: denunciar las violaciones a los derechos humanos por parte del ejército, rechazar la justicia penal militar para el juzgamiento de civiles, y negociar la libertad de los presos políticos del M-19.) As forças militares tentaram recuperar o prédio através do uso de atiradores, gás lacrimogêneo, e lançamento de granadas. Esse primeiro combate durou algumas horas, sob coro dos embaixadores que pediam por um cessar-fogo. Feriram-se o embaixador venezuelano, e dois cônsules, paraguaio e peruano, e morreram dois guerrilheiros. Após esses conflitos iniciais, os militares pediram autorização presidencial para executar a retomada do prédio, ao que foram respondidas com a proibição do presidente Turbay à execução de qualquer ação sem sua expressa autorização e a ordem de manutenção de conexão direta. O presidente ordenou três grupos de ação em torno da Embaixada, um do Exército, responsável por assegurar a não entrada de suprimentos ou novas pessoas no perímetro, uma da Polícia Nacional, responsável pela segurança dos moradores da região, e uma incumbida ao SIC (Sistema de Inteligência Colombiano), responsável por adquirir informação. (Informe da Comissão da Verdade, 2010) Os militantes expuseram suas exigências na noite da invasão, sendo elas: um comprometimento governamental com a não retomada da Embaixada através do uso da força, ou morreriam todos; o fim das torturas e violações de direitos humanos impostas aos presos políticos através liberação dos presentes em uma lista a ser apresentada; 50 milhões de dólares; e transmissão de informes do M-19 na imprensa nacional e nos países de onde vinham os reféns. Na manhã seguinte, as mulheres presentes na embaixada e o pessoal responsável pelos serviços da festa foram liberados, como uma “mostra de boa vontade” dos guerrilheiros, que demonstraria sua intenção de negociar com o governo. (GONZÁLEZ, 2010, Informe Final da Comissão da Verdade, 2010) Negociações foram praticadas por um total de dois meses, entre o governo e os guerrilheiros, com apoio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ao fim dessas, os 100 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina guerrilheiros voaram em um avião cubano para Havana, juntamente com alguns dos reféns, e a guerrilha recebeu do Governo uma quantia que totalizou dois milhões de dólares. Os presos políticos das guerrilhas não foram libertos. (GONZÁLEZ, 2010) Esse momento deve ser percebido em sua grande importância por ter sido a primeira vez em que o Estado colombiano aceitou um movimento guerrilheiro como interlocutor, mesmo que a contragosto. (ZULUAGA, 1996) As constantes demonstrações de amizade entre Jaime Batemán, chefe do M-19, e o presidente cubano Fidel Castro, demonstradas na época, causaram o rompimento de relações diplomáticas entre a Colômbia e Cuba em 1980. (Informe Final da Comissão da Verdade) XI.3.4. OUTRAS AÇÕES A MENCIONAR Outras ações menos emblemáticas mas deveras interessantes foram praticadas pelo M-19, e acreditamos que vale a pena mencioná-las também. As ações variaram de ataques frontais a embaixadas pela postura política dos países que representam ao sequestro de aviões e pessoas de grande importância. Em 1980 o M-19 veiculou em canais da televisão nacional suas demandas para as discussões da Lei da Anistia que aconteciam no Congresso. Em 1982 promoveu o sequestro de um avião com passageiros dentro, dos 128, 46 foram liberados em Calli e os demais conduzidos a Havana juntamente com os guerrilheiros. Também em 1982, tomaram um trem, pintaram nele as insígnias do movimento e distribuíram os seus passageiros comida e folhetos propagandísticos. Chegaram a assaltar, em vários momentos, supermercados, e distribuir chocolates e leite nas regiões carentes de Bogotá; aliás, a última vez em que isso foi feito foi há poucos dias atrás. (Informe Final da Comissão da Verdade, 2010) O M-19 se envolveu também em assuntos relacionados à política externa; em 1981 atacou frontalmente à Embaixada de Israel em Bogotá, como atestado de solidariedade à Organização para a Libertação Palestina (OLP), e mais tarde, em 1982, o fez novamente com uma bazuca após os massacres ocorridos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila em Beirut. Em 1983 dinamitou a Embaixada de Honduras e condenou a postura do país, acusando-o de ser cúmplice dos Estados Unidos da América em sua prática de auxílio aos contras, grupos paramilitares que combatiam o governo de Sandino. (Informe Final da Comissão da Verdade, 2010) Entre os sequestros que protagonizou, vale citar o de Donald Cooper, gerente da Sears Roebuck & Co. Colombia, pelo qual recebeu a quantia de 1 milhão de de dólares, e o de um apresentador de televisão, ao qual encarregou a entrega de condições do M-19 ao presidente 101 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina Turbay, em 82. Outro importantíssimo sequestro a ser mencionado é o de Martha Nieves Ochoa Vásquez, feito em 1981, pelo qual o M-19 recebeu a fúria do Cartel Medellín. Acontece que Martha era membro de uma família importante do Cartel, irmã dos Irmãos Ochoa e seu sequestro foi visto como uma afronta pelo cartel, que criou um movimento chamado Muerte a Los Secuestradores, o MAS, um grupo paramilitar com ligações pouco explicadas com membros das Forças Armadas. (Informe Final da Comissão da Verdade, 2010) Desde junho desse ano, os acordos de paz entre o M-19 e o Governo estão suspensos em função de vários fatores, sendo o principal deles o conflito em Yarumales, e as escalações dos embates que aconteceram desde então. Esses aspectos serão abordados com maior aprofundamento na seção 'O Governo do presidente Belisario Betancur Cuartas e os Acordos de Paz' dessa obra. 102 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina XII. O NARCOTRÁFICO As primeiras manifestações significativas do narcotráfico colombiano começam a se manifestarem na década de 70. Em recantos do país começa-se a produzir cannabis sativa e essa passa a ser ilegalmente exportada para os Estados Unidos da América, enquanto garimpeiros de esmeraldas promoviam o contrabando de cigarros da marca Marlboro. Iniciam-se em fins da década de 70 e início da década de 80 as primeiras pressões estadunidenses para que o governo colombiano levasse a cabo operações que impedissem a continuidade dessa produção em seu território. Em resposta a essas pressões, o governo inicia fumigações feitas com aviões do exército, que matavam a produção de cannabis in loco, e rapidamente aumentaram muito os custos e levaram ao fim da produção. (PALACIOS, 2010) Também em meados da década de 70, em Calli e Medelín, começam os primeiros movimentos de importação da pasta básica da cocaína do Peru e da Bolívia, transformada em alcalóide e de exportação também para os Estados Unidos. Há quem diga que esses grupos tenham herdado do contrabando e da exportação de marijuana algumas formas primitivas de organização, mas as ligações entre eles não são percebidas de maneira tão clara. O contexto de crise econômica e da exportação do café no fim da década de 80 abriu espaço para que começassem as primeiras produções agrícolas internas da coca; o crescimento dessa produção começou a desalocar produções tradicionais como algodão e café. Mais que isso, a condição colombiana é favorável à criação constante de novos espaços de produção em fronteiras agrícolas ou da própria ocupação humana; primeiro chega o campesinato e a produção, e ambos se organizam de maneira autônoma, distantes do aparato governamental. Esse aparato, se chega, quando chega, o faz posteriormente e já em um contexto de difícil imposição da lei sobre uma comunidade já, de certa forma, independente. Além disso, há pouco ou nenhum conhecimento da bacia hidrográfica dessas regiões, que é plenamente conhecida e mapeada pelos grupos que ali se instalaram. Essas condições mostram-se propícias tanto à formação das guerrilhas quanto à sustentação da produção ilegal de entorpecentes (cultivo, processamento químico, transporte). (PALACIOS, 2010) Com o passar do tempo, as organizações anteriores, de Calli, Medelin e da produção de cannabis sativa perderam espaço para uma nova organização: a dos grandes cartéis. Esses deslocam a tomada de decisões do campo para os grandes centros urbanos, de onde passam a vir decisões estratégicas para a condução do narcotráfico. É nos centros urbanos e nessa nova forma de organização que surgem os acordos políticos de caráter fortemente ilegal entre narcotraficantes e 103 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina setores do poder público, por exemplo. É nesse novo contexto que surgem personalidades tão notoriamente conhecidas como a de Pablo Escobar, chefe do que chamamos por cartel Medelín, e os irmãos Rodríguez Orejuela, do que conhecemos como Cartel de Calli. A princípio, as drogas eram percebidas nesse contexto não como um problema interno, mas como um problema dos Estados Unidos da América, que por sua vez impunham constante pressão para sua solução. Primeiramente, os Estados Unidos, pressionavam para que houvessem reformas penais que criminalizassem a produção e a venda – criando, penalmente, o tráfico – e que levassem à uma militarização da luta contra as drogas. A questão das drogas tanto não era vista como um problema nacional que era menosprezado e deixada de lado pelo próprio Exército, que atribui desde 1981 a responsabilidade pelo controle do narcotráfico exclusivamente à Polícia Nacional; para os militares, lutar contra o narcotráfico só traria a antipatia das populações camponesas envolvidas no cultivo e corrupção para as filas do Exército. Por outro lado, a tentativa de implementação das exigências estadunidenses finalmente colocaram os problemas em foco, e tornaram perceptível ao Estado colombiano o tamanho da influência e poder que tinham sido acumulados pelos cartéis. (PALACIOS, 2010) No fim da década de 70 os EUA passam a pedir pela firmação de tratados de extradição de traficantes, e os primeiros tratados de extradição são assinados em 1979, com aprovação do Congresso em 1980. A partir daí, acontece uma escalada da situação de conflito, até então difusa. Isso se dá por que os chefes dos cartéis, em especial Pablo Escobar, detinham enorme poder, e passaram a impor uma perseguição – permeada de ameaças e extorsões – aos principais defensores e promotores da lei 27, que aprovava no Congresso Nacional o Tratado de Extradição. (GONZÁLEZ, 2010) Nesse contexto surgem Los Extraditables, um grupo de narcotraficantes que abertamente eram contra os Tratados de Extradição, expondo contrariedade tanto em jornais quanto através do uso da violência, do plantio de bombas em locais públicos, de ameaças e de extorsões. Atribui-se a eles a célebre frase: “Preferimos uma tumba na Colômbia que uma cela nos Estados Unidos” (Tradução livre de: Preferimos una tumba en Colombia a una cárcel en Estados Unidos). Em 1985 a Lei 27, e consequentemente o Tratado de Extradição com os Estados Unidos, são declarados inconstitucionais, e a questão passa a julgamento pela Corte Suprema de Justiça. Esse processo deslocou a atenção do narcotráfico para os magistrados da Corte, que passam a ser pressionados e ameaçados para que tomem decisões favoráveis aos interesses dos grandes cartéis. (GONZÁLEZ, 2010) 104 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina No início do ano passado, após uma operação da Polícia Nacional, coordenada com apoio do Drug Enforcement Administration estadunidense, encontrou-se destruída a Tranquilandia, uma das maiores bases de distribuição do Cartel Medellín. 14 toneladas de cocaína foram destruídas nessa operação. Lamentavelmente, esse fortíssimo golpe ao narcotráfico motivou a ordem de assassinato a seu principal idealizador, o Ministro da Justiça Rodrigo Lara Bonilla, efetivada em abril do ano passado. Desde então o gabinete é ocupado pelo ministro Enrique Parejo González. (PALACIOS, 2010) É equivocado afirmar sobre a existência de uma narco-guerrilha, já que as relações entre esses grupos nunca foram absolutamente pacíficas, muito menos em narco-Estado como se afirma levianamente nos Estados Unidos da América. A influência do narcotráfico na sociedade (e até mesmo na política) colombiana existe, mas não de forma institucionalizada, muito menos absoluta. Como apresentamos até agora, é preciso perceber que as relações entre o narcotráfico e as guerrilhas eram difusas e de difícil definição; modificam-se constantemente em função do surgimento e desaparecimento de interesses mútuos que façam valer conflitos diretos ou a formação de alianças. No presente momento, sabe-se que houveram acordos entre as FARC e os cartéis para que se permita a produção (cultivo, processamento, aeroportos legais na selva que permitiam o transporte) de coca em regiões de domínio da guerrilha. Essas autorizações não foram em nenhum momento homogêneas em todas regiões sob domínio das FARC, nem mesmo estáveis, e sabe-se da deterioração de muitos desses acordos. Sabe-se por outro lado que as relações entre o Cartel Medelín e o M-19 não é nada estável ou positiva desde o sequestro de Martha Nieves Ochoa Vásquez, em 1981. Após esse, o Cartel Medelín criou o MAS, e muitos dos guerrilheiros do M-19 foram assassinados em diferentes cidades colombianas. Martha foi liberada pouco tempo depois, e ainda assim as atividades do MAS contra o M-19 e outras guerrilhas se prolongaram por meses, enquadrando esse no conceito de grupo paramilitar que apresentamos na sessão Panorama da Violência. 105 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina XIII. A PAZ PRESIDENCIAL Se não o maior, uma das maiores questões que afligem a sociedade e a política colombiana é a questão guerrilheira, que perpassa desde a necessidade do fim dessas para a promoção da paz às próprias formas de fazê-lo. O debate evidencia um embate não só de opiniões, mas também posicionamentos políticos e disputas de poder muito claras. A predominância do caráter presidencial dessas decisões é característica de um país cuja história está permeada de estados de exceção e sítio e uma certa predominância do executivo na tomada de decisões relacionadas à questões de segurança, e portanto, as próprias decisões acerca da paz passam a depender do caráter militarista ou democrático do presidente e das disputas de poder e influência em que ele está imerso. De qualquer forma, ainda que os meios de implementação sejam divergência absoluta, todos os presidentes colombianos tiveram alguns objetivos comuns: Cessar o conflito armado, abandono das armas por parte das organizações à margem da lei e instauração do monopólio da força estatal. (RESTREPO, Apud ARIAS) - (Tradução livre de: cesación del conflicto armado, abandono de las armas por parte de las organizaciones al margen de la ley e instauración del monopolio de la fuerza estatal)23 É das primeiras negociações entre Governo e guerrilha que surge o nome Paz Presidencial, usado predominantemente após a eleição de Belisário Betancur Cuartas. (PALACIOS, 2010). XIII.1. UMA BREVE HISTÓRIA DAS NEGOCIAÇÕES DE PAZ ANTES DE BENTACUR CUARTAS Até o governo de Alfonso López Michelsen (1974-1978) as discussões acerca do papel das guerrilhas e das formas de negociar com ela eram muito claras: o presidente afirmava que só se podia negociar com uma guerrilha já desmilitarizada. Essa forma tradicional de encarar o crescente conflito armado não permitia nenhum tipo de negociação entre os atores. A negociação com a guerrilha desmilitarizada era ideal para o Estado e inconcebível para as organizações à sua margem. Nesse contexto, o Estado luta contra a guerrilha, que não abre mão da luta contra o Estado. 23 Restrepo, Luis Alberto. Los arduos dilemas de la democracia en Colombia. En: Nuestra guerra sin nombre. Transformaciones del conflicto en Colombia. Bogotá: Norma, IEPRI y Universidad Nacional, 2006, p. 317. 106 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina O mandato de Alfonso López Michelsen foi seguido pelo de Julio César Turbay Ayala. Logo no início do mandato de Turbay esse tratou de implementar o Estatuto de Segurança Nacional, em resposta a pressões internacionais – que colocavam medidas de contenção social em prática em toda América Latina – e pressões internas da ala militar. O Estatuto de Segurança Nacional consistia em limitar os direitos da população e conceder um maior nível de autonomia às Forças Armadas no que se tratava da contra insurgência e do tratamento interno. Essa era uma resposta, também, às demandas das classes altas, incomodadas com o crescimento da subversão política, que com o surgimento do M-19, alcançavam cada vez mais expressivamente o meio urbano e certo apoio popular e sindical. Outras conjunturas se conjugavam a essa: a crise econômica de exportação do café obrigava o governo a promover cortes de gastos públicos por causa da diminuição significativa da arrecadação; os movimentos sociais se fortaleciam; as guerrilhas se fortaleciam; criava-se um período de considerável crise de legitimidade. (ZUALAGA, 1996; ARIAS, 2008) Ao garantir maiores direitos às Forças Armadas, os índices de violência e violações dos direitos humanos aumentaram consideravelmente, causando comoção social que culminou, em novembro, em grandes manifestações populares contra a repressão violenta que havia se instaurado. Jornais e o próprio Congresso ponderavam sobre ser essa a melhor opção de ação. Logo em 1979 surge o primeiro Forum pela Defesa dos Direitos Humanos e a Colômbia passa a atrair a atenção de organizações internacionais como a Anistia Internacional, o Human Rights Watch e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ao longo de 1979, uma grande divisão da opinião pública se formou; os esforços do presidente eram apoiados pela maioria dos jornais do país, mas a ineficiência da repressão militar no controle da subversão e o aumento das taxas de violência deixava espaço para duras críticas por alguns setores da sociedade (movimentos sociais, movimentos estudantis), alguns poucos jornais como El Espectador, e até mesmo de setores do Partido Liberal. (ZUALAGA, 1996) Após a tomada da Embaixada da República Dominicana pelo M-19, o governo do presidente Julio Cesar Turbay Ayala levou ao Congresso uma proposta de Anistia, aprovada em 1981; a proposta não correspondeu e maneira alguma às expectativas e demandas dos movimentos guerrilheiros. Condicionava a liberdade à deposição de armas e apresentarem-se à juízes posteriormente para julgamento, além de não anistiar todos os crimes cometidos. (ZUALAGA, 1996) A recusa dessa proposta deu espaço à escalada dos conflitos; por outro lado, nas palavras do presidente em carta ao ex-presidente Carlos Lleras Restrepo, Eu não penso que a anistia tenha falhado por falta de diálogo com a subversão, mas por que foi concebida para delitos políticos sem 107 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina incluir delitos como sequestro, extorsão, homicídio fora de combate e outros considerados como delinquência comum. (Julio Cesar Turbay apud ARIAS, 2008)24– (Tradução livre de: yo no pienso que la amnistía haya fallado por falta de diálogo con la subversión, sino porque fue concebida para delitos políticos sin incluir delitos como secuestro, la extorsión, el homicidio fuera de combate y otros considerados como delincuencia común) Ainda em setembro desse ano, sob fortes pressões diversas, o presidente Julio Cesar Turbay cria a primeira Comissão de Paz colombiana, sob administração do ex-presidente Carlos Lleras Restrepo (1966-1970). A Comissão era formada por 12 membros escolhidos por Turbay e Restrepo, entre eles militares, representantes da Igreja Católica e civis, responsáveis pela formulação de uma análise e de sugestões de ação a serem enviadas ao presidente. O presidente reforçou publicamente o caráter representativo e nacional da Comissão. Entre as formulações da Comissão, seguiram-se os pedidos de regulamentação das prisões preventivas por 10 dias previstas na Constituição – que eram feitas à revelia, em alguns momentos -, a elaboração de um novo projeto de Anistia e as primeiras bases para um possível acordo futuro com o M-19. O trecho da carta acima citada foi retrato de apenas uma das desavenças entre o Governo e as afirmações da Comissão de Paz. Entre abril e maio de 1982, 7 dos membros da Comissão, inclusive seu chefe Lleras Restrepo, abandonaram essa, sob a alegação de que suas sugestões não eram propriamente consideradas pelo Governo de Julio César Turbay. (ARIAS, 2008) A Comissão, como entidade criada para apontar alternativas que permitissem o fim de uma política reativa por parte do Governo e a reintegração dos grupos guerrilheiros à sociedade civil, falhou miseravelmente. Não tinha poder político para implementar o que defendia por não ser plenamente apoiada pelo presidente; esse, afirmou não poder aceitar as indicações da Comissão por causa de seu impacto na moral das Forças Armadas e por estabelecerem precedentes para que crimes como sequestro e homicídio ficassem sujeitos a penas condicionais. Esse capítulo dos esforços pela paz se encerra assim, sem grandes sucessos palpáveis. 24 Carta del Presidente de la República (Julio Cesar Turbay Ayala) al Ex Presidente de la República doctor Carlos Lleras Restrepo. Septiembre 17 de 1981. Citada por Arias, p 12. 108 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina XIII.2. O GOVERNO DO PRESIDENTE BELISARIO BETANCUR CUARTAS E OS ACORDOS DE PAZ A campanha política que seguiu o mandato de Turbay teve como eixo fundamental as propostas para o alcance da paz, sendo esse o centro de boa parte dos debates e um dos principais focos da campanha de Belisario Betancur Cuartas, um conservador aliado ao que se chamou Movimento Nacional, que se pretendia suprapartidário. Cuartas oferecia uma nova via para lidar-se com a subversão armada através do diálogo, que surpreendia o país. Para Cuartas, era possível o reconhecimento da existência de causas objetivas e subjetivas para a luta armada. Apenas através desse reconhecimento é que se permitia o estabelecimento do diálogo, sendo as causas objetivas a pobreza, a injustiça, a dificuldade de participação política direta, a fome, o desemprego, e as causas 'subjetivas' ligadas à fatores em especial ideológicos, que faziam com que os movimentos percebessem a luta armada como o único meio de promover as mudanças que julgavam necessárias. (ZUALAGA, 1996) As causas subjetivas tenderiam a impor enormes desafios às negociações de paz, vez que dentro da lógica da luta armada (…) a solução política é quase impossível por que para eles – grupos guerrilheiros – não é a melhor solução. Por que por ser a menos custosa – para o estabelecimento – é a mais custosa para eles. (Fernando Cepeda Ulloa, 2003, apud ARIAS, 2008)25 - (Tradução livre de: (…) la solución política es casi imposible porque para ellos – grupos guerrilleros– no es la mejor solución. Porque por ser la menos costosa – para el establecimiento – es la más costosa para ellos.) De qualquer maneira, desafios a parte, a forma de Cuartas de conceber o conflito armado e suas perspectivas de resolução foram significativas para sua eleição, em 1982. A partir dessa, seu governo implementou um verdadeiro câmbio nas formas de manejar o conflito armado e político, estabelecendo uma política de paz com diversas instâncias de diálogo, e recusando a repressão como forma de solução. (ARIAS, 2008) Para solução do que chamava causas objetivas, o governo de Cuartas buscou formular reformas de cunho político, econômico e social desde o início de seu mandato. A partir de seu reconhecimento do caráter político da luta dos grupos armados, o governo de Cuartas estabeleceu diversas instâncias de diálogo e negociação com esses grupos. Ainda em 1982, decreta-se a reabertura e reformulação da Comissão de Paz, que passa a ser chamada Comissão de Paz Assessora do Governo Nacional, que volta a ser liderada pelo ex-presidente Carlos Lleras Restrepo; 25 Fernando Cepeda Ulloa. Abogado y ex Ministro de Gobierno durante el gobierno de Virgilio Barco Vargas. Entrevista realizada el día 18 de diciembre de 2003. En la actualidad es el Embajador de Colombia ante el gobierno francés. 109 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina ele passaria a chefia da Comissão 10 dias depois, por motivos de saúde, a Otto Morales Benítez. A nova Comissão Assessora de Paz contaria com 40 membros, ao invés dos anteriores 12 membros, entre eles a atual Ministra de Comunicações Nohemí Sanín. Além das suas incumbências anteriores, a Comissão de Paz passa a ser responsável também pelo envio de projetos e recomendações relacionados à inclusão social, desenvolvimento das regiões mais pobres, combate à fome e à miséria, melhoramentos na justiça e na segurança da população, reincorporação e reabilitação de regiões e sub-regiões afetadas pela violência ao sistema político, entre outras medidas que enfrentariam as 'causas objetivas'. Ainda no fim do ano de 1982 o Congresso Nacional aprova uma nova e mais ampla Lei de Anistia. É aprovado também o PNR, Programa Nacional de Reabilitação. (ARIAS, 2008) O M-19 enviou ao governo uma série de sugestões de participantes para a Comissão, para que essa representasse a nação, e essas não foram aderidas. Apesar disso, ainda em novembro de 1982 a Comissão Assessora de Paz entrega ao Presidente um primeiro pacote de recomendações, e é autorizada por ele a estabelecer diálogo com quaisquer grupos da sociedade colombiana que julgasse necessário. Além disso, a iniciativa de buscar o diálogo conferia ao governo uma vantagem política grande e legitimadora. No final de janeiro de 1983 as primeiras reuniões diretas entre membros da Comissão Assessora de Paz e membros do Estado Maior das FARC começam; são também nomeados os primeiros Altos Comissionários para a Paz, pessoas responsáveis pela fiscalização da implementação das recomendações que fossem adotadas. Também em 1983 indica-se o Alto Comissionado para a Paz no Madalena Médio, em função da urgência do controle do conflito entre grupos paramilitares e guerrilheiros naquela região. Nem tudo eram flores, quase nada, na realidade. Setores importantes e expressivos da sociedade e do próprio governo eram contrários à proposta de paz de Belisario Betancur Cuartas, e poucas reformas estruturais significativas foram postas em prática, o que afastava o apoio dos movimentos sociais, operários, estudantis. Além disso, as pressões políticas exercidas por eles levaram em março de 1983 à renúncia de Otto Morales Benítez ao cargo de chefia da Comissão Assessora de Paz, esse a passaria a John Agudelo Ríos em 1983. Todas as instâncias de decisão sobre os processos de paz sofriam com as mesmas pressões política, inclusive os próprios Altos Comissionados. Em sua carta de renúncia, Morales Benítez diz claramente que faltava combater os inimigos da paz e da reabilitação, que estão de tocaia (a tradução literal seria agachados) dentro e fora do governo. Essas forças reacionárias em outras épocas lutaram, como hoje, 110 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina com sutileza contra a paz, e conseguiram golpeá-la. Por isso nunca saímos desse ambiente de tensão. (MORALES BENÍTEZ, 1983, apud ARIAS, 2008)26 (Tradução livre de: combatir contra los enemigos de la paz y la rehabilitación, que están agazapados por fuera y por dentro del gobierno. Esas fuerzas reaccionarias en otras épocas lucharon, como hoy, con sutileza contra la paz, y lograron torpedearla. Por ello nunca hemos salido de ese ambiente de zozobra) De qualquer maneira, a partir de 1983 as negociações começam a se tornar mais efetivas, em especial com as FARC-EP, o M-19, a ADO e alguns setores do ELN. Os primeiros resultados palpáveis foram os Acordos de La Uribe, firmados na cidade desmilitarizada de Uribe entre o governo, representado pela Comissão Assessora de Paz e as FARC-EP, em 29 de Março de 1984, conhecido historicamente como o primeiro acordo de paz entre guerrilha e governo colombiano. A resistência das Forças Armadas às novas abordagens e acordos entre o Governo e as guerrilhas era forte e significativa. Durante o processo de negociação dos Acordos de Uribe, o Ministro da Defesa General Fernando Reyes chegou a renunciar, sendo substituído pelo General Gustavo Matamoros D'Costa. Em maio de 1984, a partir da assinatura do Acordo de La Uribe, é criada a Comissão Nacional de Verificação, responsável por acompanhar o cumprimento dos termos do Acordo, e assegurara assim a manutenção da paz. Em julho do mesmo ano, com o objetivo de ampliar os acordos e estendê-los a outros grupos armados, Belisario Betancur Cuartas cria a Comissão Nacional de Negociação e Diálogo , formados por membros do governo e da sociedade civil e chefes dos movimentos armados. Entre 23 e 24 de Agosto, os movimentos de maior expressão nacional assinam acordos com o governo que firmam cessar-fogo e estabelecem diálogos. Cada acordo aproximava-se mais de findar um histórico de combate que fazia parte das práticas das Forças Armadas, marcado por ressentimentos guardados tanto pela guerrilha quanto pelo exército. Ora, uma guerrilha havia roubado armas do Cantón Norte e efetuado outras ações que tinham ridicularizado as Forças Armadas, que desde então buscaram caçá-lo e submetê-lo à justiça e à ordem. Se a luta contra a subversão antes traziam prestígio, verba e direitos às Forças Armadas, 26 Carta de Otto Morales Benítez al Presidente de la República”, 25 de mayo de 1983. Véase también la carta de Otto Morales a la Comisión de Paz y la respuesta de Agudelo Ríos en: El Espectador, 9 de junio de 1983, p. 15. 111 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina esses eram paulatinamente retirados por Cuartas. Se Julio Cesar Turbay dizia que “na Colômbia ou se governa com os militares ou não se governa por completo” (TURBAY, Julio Cesar apud GONZÁLEZ, p. 7) (Tradução livre de: en Colombia se gobierna con los militares o no se gobierna del todo)27, Betancur fazia questão de não governar com os militares e recusar as práticas permissivas de até então. Mais que isso, a Suprema Corte de Justiça encontrava-se julgando, com a autorização do presidente, as denúncias de torturas e abusos praticados pelas Forças Armadas durante o mandato de Julio Cesar Turbay, o que criava animosidade entre essa instituição e as Forças Armadas, e aumentava ao mesmo tempo o descontentamento das Forças Armadas com o governo Cuartas. (GONZÁLEZ, 2010) Além disso, as Forças Armadas acreditavam que acordos com a guerrilha eram apenas hiatos, durante os quais as guerrilhas conseguiriam se fortalecer ainda mais em contingente e capacidade bélica para, posteriormente, retomar o conflito armado. Permitir isso não era, para as Forças Armadas, uma alternativa na busca pela paz, e sim uma demonstração de fraqueza frente ao inimigo – uma visão completamente contrária ao que acreditava o Presidente e seu projeto de governo. (GONZÁLEZ, 2010; PALACIOS, 2010) Em junho de 1985, após um conflito em torno do acampamento do M-19 em Yarumales, sobre o qual se apresentam versões conflituosas. Após firmados os acordos, o M-19 teria se acampado em Yarumales, próximos de Cali, e cercaram o acampamento, não permitindo acesso do Exército a esse território colombiano – o que seria contra a lei e indicaria que Yarumales era, na verdade, uma fortaleza militar. Segundo os Acordos, o acampamento não poderia ser atacado pelo Exército, que por sua vez afirmava que o acampamento era um centro de treinamento militar para novos combatentes e, portanto, uma ameaça à paz e às negociações. Fato é que houve um confronto armado entre o M-19 e as Forças Armadas em Yarumales, cujas versões divergem, mas que levou o M-19 a declarar o fim da trégua por ter se sentido traído pelo governo. Após as constantes renúncias, a falta de apoio de alas dos Partidos Conservador e Liberal, e setores da sociedade civil, tornaram insustentável o trabalho das Comissões de Paz, Negociação e Verificação, o governo trata de uní-las em uma só, em outubro de 1985, na tentativa de manter alguns dos avanços e acordos que foram firmados em 1984. As renúncias continuam durante todo o mês de outubro. 27 Ver Maya y Petro. Prohibido Olvidar. Dos miradas sobre la toma del Palacio de Justicia. p. 46. Citada em: GONZÁLEZ, Viviana. Análisis de los diferentes actores y factores de poder que influyeron en la toma del Palacio de Justicia. Disponível em Repositorio Institucional de la Universidad do Rosario. Disponível em: http://hdl.handle.net/10336/1837 . Acesso em 01/10/2012. 112 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina O Exército continua afirmando que os cessar-fogo acordados são apenas facilitadores para o fortalecimento dos grupos militares, e há alguns indícios de que alguns grupos possam estar – de fato – ampliando seu contingente militar e bélico durante esse período, sem serem combatidos pelo governo ou pelas Forças Armadas. Ainda em outubro desse ano, aconteceu um atentado contra a vida do General do Exército Rafael Samudio Molina, e nesse mesmo mês diversas ações do M-19, entre elas o roubo de caminhões de leite e chocolates em Bogotá e a distribuição desses à crianças carentes, que culminou em diversos confrontos armados espalhados pela cidade e na morte de alguns guerrilheiros e alguns membros do Exército e da Polícia Nacional. 113 CNSC - 1985 | TEMAS 9 – América Latina XIV. BIBLIOGRAFIA ARIAS O., Gerson Ivan. Una mirada atrás: procesos de paz y dispositivos de negociación del gobierno colombiano. Working Paper #4. 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