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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil) Papéis : revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo Grande, MS : A Universidade, 1997- . v. : il. ; 23 cm. Semestral Subtítulo anterior: revista de Letras. ISSN 1517-9257 1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos. 3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD (22)-805 CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL E ASSINATURA Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens Centro de Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Cidade Universitária, Cx. Postal 549, UNIDADE 4, Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345-7634 e-mail: [email protected] EDITORA UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Cidade Universitária, Estádio Morenão, Portão 14, Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345-7200 e-mail: [email protected] UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS CAPA REITOR Eluiza Bortolotto Ghizzi Manoel Catarino Paes Peró IMAGEM DE CAPA VICE-REITOR Priscila Paula Pessoa, somos as máscaras Amaury de Souza que escolhemos usar, 2005, mista sobre DIRETOR DE CENTRO tela, 80cm x 80cm, acervo do autor Luiz Carlos de Mesquita PROJETO GRÁFICO COORDENADOR DO PROGRAMA Eluiza Bortolotto Ghizzi DE PÓS-GRADUAÇÃO EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Maria Adélia Menegazzo Teresa Carolina Rocha de Souza EDITORA CIENTÍFICA REVISÃO Maria Adélia Menegazzo A revisão lingüística e ortográfica é de EDITORES ADJUNTOS DESTA EDIÇÃO responsabilidade de Eva de Mercedes M. Edgar Cézar Nolasco Gomes Rosana Cristina Zanelatto Santos TRADUÇÃO PARA O INGLÊS DO TEXTO DA ORELHA Priscila Elbert Guimarães CÂMARA EDITORIAL Alda Maria Quadros do Couto - Ângela Varela Brasil - Aparecida Negri Isquerdo - Auri Claudionei Matos Frubel - Edgar Cezar Nolasco dos Santos - Eluiza Bortolotto Ghizzi Hélio Augusto Godoy de Souza - José Genésio Fernandes - Kelcilene Grácia Rodrigues Márcia Gomes Marques - Maria Adélia Menegazzo - Maria Emília Borges Daniel - Rauer Ribeiro Rodrigues - Rita de Cássica Pacheco Limberti - Rita Maria Baltar Van Der Laan - Rosana Cristina Zanelatto Santos - Rosangela Villa da Silva - Vânia Maria de Vasconcelos - Wagner Corsino Enedino CONSELHO CIENTÍFICO Álvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [USP] – Clotilde Azevedo Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] - Gladis Maria Almeida Barcelos [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP] – Luiz Carlos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FELARUNESP] – Márcia Valéria Z. Gabbi [FELAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt [UFPR] – Nilton Hernandes [USP] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCLAR-UNESP] – Thomas Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL] Sumário Apresentação Literatura [Artigos] 11 A CRUZ COMO ESPADA: O IMAGINÁRIO DE UM DESBRAVADOR José Aparecido Amorim/Alda Maria Quadros do Couto 29 EXPERIMENTE O NOVO, BEBA A SUBVERSÃO DE HABEMUS COCAM Karina Kristiane Vicelli Blake/Rosana Cristina Zanelatto Santos 47 O FATOR XERAZADI: UM OBSTÁCULO ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA Alda Maria Quadros do Couto 65 A PÓS-MODERNIDADE E OS ESTUDOS CULTURAIS NA OBRA DE RENATO RUSSO: UMA LEITURA DE PERFEIÇÃO Wagner Corsino Enedino/Paulo Nogueira de Souza Junior 87 CASAMENTO EM PAPÉIS: JOSÉ ALENCAR E MACHADO DE ASSIS Raquel de Oliveira Fonseca 101 “A ESCURIDÃO” E ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: UMA ABORDAGEM COMPARATIVA Ramiro Giroldo 109 A NARRATIVA HÍBRIDA EM LAVOURA ARCAICA Flávio Adriano Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco 129 OS SONHADORES E AS CITAÇÕES Priscilla Paula Pessoa/Maria Adélia Menegazzo 153 ProjetoEditorialeNormasparaPublicação Apresentação Esta edição da revista traz em seu bojo um conteúdo particularmente rico, representado por oito artigos agrupados na área de Literatura, numa comunhão de saberes entre os parceiros pesquisadores. A qualidade dos trabalhos se avoluma, surpreendendo com as publicações da comunidade acadêmica docente e discente e distribuindose pela análise, pela interpretação e pela semiótica literárias, pelas trocas ou empréstimos lingüísticos, nas literaturas e, ainda, por vias próximas dos estudos culturais. Abrindo as páginas da revista nos deparamos com o artigo de José Aparecido Amorim e Alda Maria Quadros do Couto, A cruz como espada: o imaginário de um desbravador, momento em que os autores buscam delinear um perfil do imaginário que permeia a obra do desbravador espanhol Cabeza de Vaca, mediante análise de sua obra Naufrágios. A seguir, pelas mãos de Karina Kristiane Vicelli Blake e Rosana Cristina Zanelatto Santos, transportamo-nos para as telas do artista plástico Evaristo Prado, buscando, com elas, experimentar o novo e beber da subversão de habemus cocam. Alda Maria Quadros do Couto nos arrebata e nos apresenta o fator xerazade, para nos fazer entender as distinções entre ficção e informação e as relações entre jornalismo e literatura. Na seqüência dessa viagem cultural, Wagner Corsino Enedino e Paulo Nogueira de Souza Junior nos fazem partir em busca da perfeição, conduzindo-nos para a obra de Renato Russo, enfatizando o entrelaçamento entre projeto literário e projeto político. Já o ensaio de Raquel de Oliveira Fonseca faz uma análise do tema casamento em textos dramáticos de dois grandes escritores, José de Alencar e Machado de Assis, quando se pode observar o tratamento diverso dado à questão da moralidade. O artigo de Ramiro Giroldo discute comparativamente o romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, e A Escuridão, de André Carneiro, a fim de alcançar uma nova compreensão dos textos. Flávio Adriano Nantes Nunes e Edgar Cézar Nolasco entrelaçam seus conhecimentos e tornam-se parceiros para analisar o texto híbrido em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, revelando-nos que no interior de uma narrativa pode haver várias formas e textos literários em conluio. Finalmente, o estudo de Priscilla Paula Pessoa e Maria Adélia Menegazzo, utilizando definições, conceitos e abordagens próprios da citação literária, aplicados a uma obra cinematográfica, aponta as intertextualidades e realizar uma análise das citações existentes no filme Os sonhadores, de Bernardo Bertolucci. A Revista Papéis vê surgir, assim, mais um volume da sua série. Este fato nos deixa satisfeitos, seja pela diversidade e qualidade dos temas abordados, seja pela regularidade de publicações que vemos manter-se, e mesmo pelo número de colaboradores que nele participam, e a quem somos gratos. Edgar Cézar Nolasco Rosana Cristina Zanelatto Santos Editores Adjuntos desta edição Acruzcomoespada:oimagináriodeumdesbravador JoséAparecidoAmorim Alda Maria Quadros do Couto Resumo: Pretende-se com este trabalho delinear um perfil do imaginário que permeia a obra do desbravador espanhol Alvar Núñez Cabeza de Vaca através da análise de seu livro Naufrágios. Um relato de viagem escrito no século XVI que, em um primeiro momento, conteria apenas informações factuais, no entanto, implicitamente e explicitamente, revelam sentidos diversos. O discurso, nesse relato, engendra uma figura que incorpora a “imagem” do Cristo. Espera-se esclarecer como se dá o efeito dessa construção, que se constitui pelas vozes do narrador, da religião católica e do Estado (poder instituído), independentemente da intencionalidade do autor, em um contexto histórico e social específico. Palavras-chave: Relatos de viagem. Dialogismo. Imaginário católico/cristão. Abstract: This criticism to describe the profile of fictional permeates the works of Spanish pathfinder Alvar Núñez Cabeza de Vaca through of the analysis of your book Naufrágios. An account of travel written in the 16th century which in the moment first going to tell alone factual information notwithstanding implicity and unambiguously disclouses various meaning. The discourse in the relation engenders a figure which embodies the “likeness” of the Chridt. This work to hope illustrate as befall the effect from that construction which compose itself by the narrator´s voices of the Catholic religion and State (established authority) free of the author´s intention inside a historical context and specific social. keywords: Accounts of travel. Dialogism. Catholic/christian fictional. 11 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. Preliminares Este artigo tem por objetivo analisar o livro Naufrágios, de Álvar Núñez Cabeza de Vaca, focalizando preferencialmente a persona engendrada pelo discurso, uma figura que se assemelha ao messias, ao redentor; ao Cristo bíblico; uma figura que é ou faz parte do imaginário ocidental. O livro de Cabeza de Vaca contém elementos que transitam entre o real e o ficcional. O fato e a fabulação; o devaneio e a consciência; o que se tem como concreto e o que se pressupõe abstrato; tudo isso se confunde e, de certa forma, mescla-se para conformar um discurso ímpar, um discurso em que prevalece mais o efeito que o fato, um discurso que emula os atos do Cristo bíblico. O grande legado de Cabeza de Vaca, enquanto narrador, é ter deixado uma história verossímil ao relatar fatos que aparentemente são fantásticos, inacreditáveis e fantasiosos. Usando de estratégias retóricas e de artifícios originais, Cabeza de Vaca ordena um discurso que convence e que retém o leitor ao seu lado, como cativo, como alguém que “aceita” os fatos expostos. Existem algumas circunstâncias que favorecem esse narrador: uma delas é que ninguém, absolutamente ninguém, poderia contradizê-lo. Dos, aproximadamente, trezentos homens que com ele adentraram as terras da América do Norte só restaram três com vida e, coincidentemente, essas três figuras estavam de acordo com ele ou não se pronunciaram. Não havia pessoa alguma que pudesse dizer algo de diferente sobre o acontecido, tudo era novo: o continente, os habitantes, as situações; não havia uma contra-palavra. O discurso pode ser encarado de diversas maneiras. Mas é muito difícil de se ter uma prova concreta de que aquilo que foi contado fosse uma inverdade, uma mentira ou uma invenção. Dificilmente, se poderá dizer, com certeza, que Álvar Núñez Cabeza de Vaca sonhou ou mentiu quando escreveu a história de suas peripécias pela América do Norte 12 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28] ................................................................................................. entre os anos de 1527 a 1536: dez anos de descaminhos e percalços por terras desconhecidas das sociedades européias. A partir da leitura analítica, observa-se o modo como o narrador constrói uma figura heróica, uma figura que se envolve em situações diversas e pratica ações que permeiam o imaginário cristão. Essa figura remete ao texto sagrado da cristandade e, conseqüentemente, ao seu redentor. De acordo com Roberto Ferrando (Cf. 1984, p. 28), Álvar Núñez Cabeza de Vaca foi incluído entre as autoridades da Real Academia da Língua e entre os clássicos da língua espanhola, dentre outras coisas, porque, em seus Naufrágios, assim como ocorre na maior parte dos relatos autobiográficos dos exploradores e conquistadores, a língua espanhola encontra sua máxima qualidade expressiva. As fronteiras entre a ficção e a realidade não estavam bem definidas, principalmente no século XVI, pois os descobrimentos do Novo Mundo eram tão fantásticos quanto os relatos fantasiosos dos romances de cavalaria (Cf. MAURA, 2000, p. 39). Em seus capítulos derradeiros, Naufrágios se torna semelhante a uma crônica de peregrinações; curas e evangelização são realizadas por Cabeza de Vaca e seus amigos náufragos. No final, o modelo intertextual seria dado pela tradição hagiográfica do medievo, que glorificava as façanhas milagrosas (Cf. JUAN-NAVARRO, 1999, p. 207 e 208). Alguns dos relatos e das crônicas da época da Conquista e, certamente, também em Naufrágios de Cabeza de Vaca, a recorrência à ficção objetiva o convencimento, ou a persuasão. Esses traços os assemelhariam com a tradição novelística que principiava a desenvolver no século XVI (Cf. JUAN-NAVARRO, 1999, p. 208). Juan Francisco Maura escreve “cada nación necesita su epopeya, muchas veces adobada al gusto de los intereses determinados de un pueblo y de su historia. El autor conoce su público, por tanto si el público pide héroes le dará héroes, si el público pide oro y aventuras, el autor hará lo máximo posible por complacerle” (MAURA, 2000, p. 39). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 13 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. Em seu “Proemio” de Comentários, Cabeza de Vaca escreve: “ Que cierto no hay cosa que más deleite a los lectores que las variedades de las cosas y tiempos y las vueltas de la fortuna, las cuales, aunque al tiempo que se experimentan no son gustosas, cuando las traemos a la memória y leemos son agradables” (CABEZA DE VACA, 1984, p. 147). Para Barrera (1985, p. 26), referindo-se a Naufrágios, fica claro que, apesar da aparente simplicidade e o propósito documental, a obra de Cabeza de Vaca demonstra uma intencionalidade artística. Álvar Núñez é um relator que se preocupa com seu relato no que se refere à disposição do material e às motivações e dúvidas que experimenta ao redigir sua obra. “Esta manera de proceder impone al texto um carácter reflexivo y reflector que, en parte, viene dado por su índole autobiográfica y el haber sido confiado a la memória”. Abordagem Dentre as principais características do relato de viagem, escrito por Cabeza de Vaca, existe o consenso de que é uma obra seminal de diversos tipos textuais, em que se mesclam diversas tipologias, tais como: a épica, a narrativa descritiva, o relato autobiográfico, dentre outros (Cf. ARENAS, 2000, On-line). O teórico russo Mikhail Bakhtin escreve que o autor “não cria escravos mudos (como Zeus), mas pessoas livres capazes de colocarse lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele” (BAKHTIN, 1981 p. 02). A figura engendrada pelo discurso de Cabeza de Vaca parece colocar-se nesse patamar. Para Paulo Bezerra, referindo-se ao conceito desenvolvido por Bakhtin, o dialogismo se dá por um processo de “comunicação interativa”, o qual permite o conhecimento do Eu através do Outro. O Outro permite que se conheça o Eu, pois somente o Outro tem uma imagem completa do Eu, por estar de fora, tem uma visão mais acabada e totalizadora. 14 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28] ................................................................................................. “Aí o autor visa a conhecer o homem em sua verdadeira essência como um outro ‘eu’ único, infinito e inacabável; não se propõe conhecer a si mesmo, conhecer seu próprio eu, propõe-se conhecer o outro, o ‘eu’ estranho” (BEZERRA, 2005, p. 194). O termo “polifonia”, de acordo com Faraco, “é introduzido no vocabulário bakhtiniano para designar o modo novo de narrar que, segundo Bakhtin, havia sido criado por Dostoievski” (FARACO, 2003, p. 74), no qual, todas as vozes mantêm uma relação valorativa igualitária e estão dialogicamente relacionadas, dessa forma, constituindo, assim, um grande diálogo. No entanto, seguindo o conceito de Bakhtin, Faraco considera que a possibilidade de existência de um mundo onde reine a polifonia, um mundo completamente polifônico, onde todas as vozes sejam eqüipolentes seja apenas possível em tese, ou seja, deva ser visto “como a metáfora que recobre a sua utopia e que ele viu materializada no projeto artístico de Dostoievski” (FARACO, 2003, p. 74). Desse modo, o diálogo entre textos e discursos será aqui analisado não no sentido de se tentar procurar uma “polifonia plena”, mas “traços polifônicos”, ou seja, o texto será analisado no sentido de se tentar estabelecer relações dialógicas com outros textos, especificamente com os diversos livros que compõem a Bíblia, para que se possa delinear um perfil da figura engendrada pelo discurso religioso presente em certas partes do texto. Análise Cabeza de Vaca, após longa e frustrada aventura à América do Norte, retornando à sua pátria, não levava nada de valor a seu rei. Mas converteu seu infortúnio em uma história cheia de símbolos e alegorias. Em princípio, apenas como oficial de uma grande armada, ele ocupa uma posição de coadjuvante para, aos poucos, assumir o papel da personagem principal. Era um homem criado e instruído no início do século XVI, numa Europa que acabara de se livrar das invasões mouras e com uma igreja católica que estava em franca expansão. As remissões a situações ou eventos que evocam religiosidade vão ser distribuídas de maneira muito bem ordenada durante todo o relato. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 15 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. Para Juan Francisco Maura (2000, p. 45), “El sistema interpretativo al que recurre con más frecuencia Alvar Núñez es el de la simbologia cristiana. [...] Por toda la segunda parte de los Naufragios, a partir de la conversión de los esclavos españoles en curanderos, hay paralelismos implícitos con los hechos de Cristo y sus discípulos” O presságio ou profecia é elemento presente em textos religiosos, e marcará, de modo singular, a história narrada, pois as “certezas” de Cabeza de Vaca funcionam como premonições e, no desenrolar dos fatos, elas acabam se concretizando. Durante um desentendimento com seu comandante, Narváes, Cabeza de Vaca relata: “Viendo que importunándome tanto, yo todavía me excusaba, me preguntó qué era la causa por que huía de aceptarlo; a lo cual respondí que yo hyía de encargarme de aquello porque tenía por cierto y sabía que él no había de ver más los navíos, ni los navíos a él” (CABEZA DE VACA, 2000, p. 90. Grifo acrescentado).1 Ora, isso realmente acontece na história, configurando-se para o leitor como um fato que reforça a imagem da figura engendrada. O narrador também irá escrever: “Pasados dos días que allí estuvimos, determinamos de ir a buscar el maíz, y no quisimos seguir el camino de las Vacas, porque es hacia el Norte, y esto era para nosostros muy gran rodeo, porque siempre tuvimos por cierto que yendo la puesta de Sol habíamos de hallar lo que deseábamos” (p. 193. Grifo acrescentado). Segundo Juan Franciso Maura, a palavra “Deus” e suas derivações, Senhor, Jesus Cristo, aparecem 86 vezes em toda a obra (Cf. 2000, p. 54). Essas remissões reforçam a imagem de uma figura ligada, pela fé, ao supremo Deus. 1 Salvo qualquer indicação, todas as citações serão dessa mesma edição. 16 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28] ................................................................................................. Mas como el más cierto remedio sea Dios nuestro Señor, y de este nunca desconfiamos (p. 103). [...] y cada uno se fue encomendándolo a Dios nuestro Señor, que lo encaminase por donde Él fuese más servido. Outro día quiso Dios que uno de la compañía vino diciendo que él haría unos cañones de palo ( p. 104). [...] Después de habernos mudado, desde a dos días nos encomendamos a Dios nuestro Señor y nos fuimos huyendo (p. 151). [...] Después de haberlas comido [tunas] encomendámonos a Dios y partímonos, y hallamos el camino que perdido habíamos (p. 164). A imagem de Jesus Cristo irá aparecer de forma lenta, porém sistemática; todas as remissões às figuras ou passagens da tradição cristã remetem de forma direta ou indireta ao Messias, o Redentor. Diante das situações extremas, ele invoca a Deus, e isso fará muitas vezes: Cabeza de Vaca atribui o seu destino a Deus e, a seus pecados, é atribuída a causa de seu infortúnio. Essas constantes remissões ao ideário cristão possibilitam uma relação mais aproximativa com a figura principal engendrada pelo texto: o Messias. Tal era la tierra em que nuestros pecados nos habían puesto, que con muy gran trabajo podíamos hallar piedras para lastre y anclas de las barcas, (p.105). [...] Plugo a nuestro Señor, que en las mayores necesidades suele mostrar su favor, que a puesta del Sol volvimos una punta que la tierra hace, adonde hallamos mucha bonanza y abrigo (p. 109). [...] Los trabajos que en esto pasé sería largo de contarlos, así de peligros y hambres, como de tempestades y fríos, que muchos de ellos me tomaron en el campo y solo, donde por gran misericordia de Dios nuestro Señor escapé (p. 134). [...] Plugo a nuestro Señor que, buscando tizones del fuego que allí habíamos hecho, hallamos lumbre, con que hicimos grandes fuegos. Así, estuvimos pidiendo a Nuestro Señor misericordia y perdón de nuestros pecados, derramando muchas lágrimas (p. 120. Grifos acrescentados). As marcas que Cristo levou no corpo também compõem a personagem criada pelo narrador: De esto traía yo los dedos tan gastados, que una paja que me tocase me hacía sangre de ellos (p. 133). [...] y como traía los pies descalzos, corrióme Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 17 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. de ellos mucha sangre, y Dios usó conmigo de misericordia, que en todo este tiempo no ventó el norte, porque de outra manera ningún remedio había de yo vivir (p. 155). [...] No tenía, cuando estos trabajos me veía, outro remedio ni consuelo sino pensar en la pasión de nuestro redentor Jesuscristo y en la sangre que por mí derramó, y considerar cuánto más sería el tormento de las espinas él padeció que no aquél que yo sufría (p. 162). Segundo Juan Francisco Maura, “la verdad es que sólo le falta caminar sobre las aguas y multiplicar los panes y los peces” (MAURA, 2000, p. 44). O que ocorre é que Álvar Núñez, que tanta fome passou, também distribui alimentos. Os índios trazem tudo para que eles abençoem e distribuam como bem entenderem: Todo cuanto aquella gente hallaban y mataban nos lo ponían delante, sin que ellos osasen tomar ninguna cosa, aunque muriesen de hambre; que así lo tenían ya por costumbre después que andaban con nosostros, y sin que primero lo santiguásemos (p. 184) [...] Muchas veces traíamos com nosotros tres o cuatro mil personas. Y era tan grande nuestro trabajo, que a cada uno habíamos de soplar y santiguar lo que habían de comer y beber (p. 185. Grifos acrescentados). No evangelho de Marcos (8:6-9)2, as pessoas que se alimentavam na presença de Jesus e dos apóstolos eram, mais ou menos, quatro mil também. O desespero diante da morte não o faz se preocupar com sua vida, e sim valorizar ainda mais a vida dos seus companheiros. A alegoria da vítima sacrificial, do cordeiro, um símbolo cristão: “Yo cierto aquella hora 2 Cf . Marcos: “E ordenou à multidão que se assentasse no chão. E, tomando os sete pães, e tendo dado graças, partiu-os, e deu-os aos seus discípulos, para que os pusessem diante deles, e puseram-nos diante da multidão. Tinham também uns poucos de peixinhos; e, tendo dado graças, ordenou que também lhos pusessem diante. E comeram, e saciaram-se; e dos pedaços que sobejaram levantaram sete alcofas. E os que comeram eram quase quatro mil; e despediu-os.” 18 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28] ................................................................................................. de muy mejor voluntad tomara la muerte, que no ver tanta gente delante de mi de tal manera” (p. 115). A figura de Pôncio Pilatos pode ser inferida no discurso através das falas atribuídas ao seu comandante: “Él me respondió que ya no era tiempo de mandar unos a otros; que cada uno hiciese lo que mejor le pareciese que era para salvar la vida; que él así lo entendía de hacer, y diciendo esto, se alargó con su barca” (p. 114). Ao colocar o comandante da expedição como alguém que se exime de suas prerrogativas, o narrador o associa, ainda que indiretamente, à imagem do inquisidor de Cristo. O discurso desenvolvido por Cabeza de Vaca margeia o discurso bíblico por meio de paralelismos3. Algumas situações pelas quais os náufragos passam se assemelham aos relatos bíblicos. Outro día la gente comenzó mucho a desmayar, de tal manera, que cuando el Sol se puso, todos los que en mi barca venían estaban caídos en ella unos sobre otros, tan cerca de la muerte, que pocos había que tuviesen sentido, y entre todos ellos a esta hora no había cinco hombres em pie. Cuando vino la noche no quedamos sino el maestre y yo que pudiésemos marear la barca, y a dos horas de la noche el maestre me dijo que yo tuviese cargo de ella, porque él estaba tal, que creía aquella noche morir. Así, yo lo tomé el leme, y pasada media noche, yo llegué por ver si era muerto el maestre, y él me respondió que él antes estaba mejor y que él gobernaría hasta el día (p. 115). Em Lucas (8:22-24), tem-se: E aconteceu que, num daqueles dias, entrou num barco com seus discípulos, e disse-lhes: Passemos para a outra banda do lago. E partiram. E, navegando eles, adormeceu; e sobreveio uma tempestade de vento no lago, e enchiam3 O termo “paralelismo” é utilizado por: (BARRERA, 1985), (MAURA, 2000), (ARENAS, 2000), (CORDIVIOLA, 2001), dentre outros, para estabelecer comparações sintáticas e semânticas com outros textos. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 19 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. se d’água, estando em perigo. E, chegando-se a ele, o despertaram, dizendo: Mestre, Mestre, perecemos. E ele, levantando-se, repreendeu o vento e a fúria da água; e cessaram, e fez-se bonança. A figura que encarna o ideal cristão, o bom pastor que se dispõe a fazer sacrifícios para manter seu rebanho unido, é inscrita no discurso quando ele relata: “Y pues Dios nuestro Señor había sido servido de guardarme entre tantos trabajos y enfermedades, y al cabo traerme em su compañía, que ellos determinaban de huir, que yo los pasaría de los ríos y ancones que topásemos” (p. 138). No desenrolar dos acontecimentos, as curas, ou os atos daqueles que têm o poder de intermediar os índios com Deus, tornam-se mais freqüentes na medida em que a narrativa se aproxima do final. E esses acontecimentos serão de fundamental importância para consolidar a imagem do herói construído: um herói que encarna a figura do Cristo La manera con que nosotros curamos era santiguándonos y soplarlos, y rezar un <<Pater Noster>> y un <<Ave María>>, y rogar lo mejor que podíamos a Dios nuestro Señor y su misericordia que todos aquéllos por quien suplicamos, luego que los santiguamos decían a los otros que estaban sanos y buenos (p.130. Grifos do autor). [...] Luego el pueblo nos ofreció muchas tunas, porque ya ellos tenían noticia de nosotros y cómo curábomos, y de las maravillas que nuestro Señor con nosotros obraba (p. 151 e 152) [...] Como por toda la tierra no se hablase sino de los misterios que Dios nuestro Señor con nosotros obraba, venían de muchas partes a buscarnos para que los curásemos (p. 157). Álvar Núñez relata um fato incrível, porém verossímil: um homem que parecia estar morto, inclusive foi constatado por ele e por seu companheiro Dorantes que o tal homem não tinha mais pulso, ressuscitaria no dia seguinte. Após uma massagem e a aplicação de rituais indígenas somados 20 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28] ................................................................................................. a pedidos (rogos) a Deus, o homem é deixado em sua cama para, no outro dia, se ter a notícia de que ele havia caminhado e se alimentado entre os demais. [...] yo vi el enfermo que íbamos a curar que estaba muerto, porque estaba mucha gente al derredor de él llorando y su casa deshecha, que es señal que el dueño estaba muerto. Así, cuando yo llegué hallé el indio los ojos vueltos y sin ningún pulso, y con todas las señales de muerto, según a mí me pareció y lo mismo dijo Dorantes. Yo le quité una estera que tenía encima, con que estaba cubierto, y lo mejor que pude apliqué a nuestro Señor fuese servido de dar salud a aquél y a todos los otros que de ella tenían necesidad. Después de santiguado y soplado muchas veces, me trajeron un arco y me lo dieron, y una sera de tunas molidas, y lleváronme a curar a otros muchos que estaban malos de modorra, y me dieron otras dos seras de tunas, las cuales di a nuestros indios, que con nosotros habían venido. Hecho esto, nos volvimos a nuestro aposento, y nuestros indios, a quien di las tunas, se quedaron allá. A la noche se volvieron a sus casas, y dijeron que aquel que estaba muerto y yo había curado en presencia de ellos, se había levantado bueno y se había paseado, y comido, y hablado con ellos, y que todos cuantos había curado quedaban sanos y muy alegres (157-158). Esse fato remete, juntamente com as outras referências, ao discurso que permeia o herói/messias. Os índios são apresentados como um povo que acredita nos poderes curativos dos espanhóis; têm tanta fé que se curam ou acreditam na cura. O arquétipo do demônio em forma de gente insere-se na narrativa quando uma história estranha é contada pelos índios e recontada por Cabeza de Vaca: um homem que morava nas profundezas da terra e que mutilava os índios e matava-os, que os amedrontava; que parecia não se alimentar e, mesmo assim, vivia. É, então, usada a alegoria do santo (ou apóstolo) que expulsa o demônio: “Nosotros les dijimos que aquél era un malo, y de la mejor manera que pudimos les dábamos a entender que si ellos creyesen en Dios nuestro Señor, Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 21 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. fuesen cristianos como nosotros, no tendrían miedo de aquel, ni él osaría venir a hacerles aquellas cosas. Que tuviesen por cierto que en tanto que nosotros en la tierra estuviésemos él no osaría parecer en ella” (p. 160). Algumas passagens bíblicas estão, de forma alusiva, presentes no discurso: “Después que nos partimos de los que dejamos llorando, fuímonos con los otros a sus casas, y de los que en ellas estaban fuimos bien recibidos y trajeron sus hijos para que les tocásemos las manos” (p. 174). O Evangelho de Lucas (18:16) diz: “Mas Jesus, chamando-os para si, disse: Deixai vir a mim os meninos, e não os impeçais, porque dos tais é o reino de Deus”. Logo adiante: “Y cuando de noche dormíamos, a la puerta del rancho donde estábamos nos velaban a cada uno de nosotros seis hombres con gran cuidado, sin que nadie nos osase entrar dentro hasta que el Sol era salido” (p.175). O livro de Isaías (6:1-2) diz: “No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e seu séqüito enchia o templo. Os serafins estavam acima dele; cada um tinha seis asas: com duas cobriam os seus rostos, e com duas cobriam os seus pés e com duas voavam”. Os seis homens, a velar o sono dos náufragos, remetem aos serafins que tinham seis asas e guardavam o trono de Deus. Existem outras referências bíblicas no texto de Cabeza de Vaca: entre elas está a passagem em que Jesus se afasta dos apóstolos para rezar no Getsêmane; no Evangelho de Mateus (26: 36:38) está escrito: “Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmani, e disse a seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou além orar. E, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até à morte; ficai aqui, e velai comigo”. 22 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28] ................................................................................................. Já no texto de Cabeza de Vaca tem-se: “y yo me salí una noche a dormir en el campo, apartado de ellos. Luego fueron donde yo estaba, y toda la noche estuvieron sin dormir y con mucho miedo y hablándome y diciéndome cuán atemorizados estaban rogándonos que no estuviésemos más enojados” (p. 187). A relação entre esses dois textos se dá por alusão e por uma seqüência de outras relações anteriores entre a figura principal da narrativa e a figura de Cristo. Outra comparação: Y a puesta de Sol llegamos a cien casas de indios; y antes que llegásemos salió toda la gente que en ellas había a recibirnos con tanta grita que era espanto, y dando en los muslos grandes palmadas. [...] Sin dejarnos poner los pies en el suelo nos llevaron a sus casas, y tantos cargaban sobre nosotros y de tal manera nos apretaban, que nos metimos em las casas que nos tenían hechas (p. 175 e 176). A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém: é essa a imagem à qual alude o narrador. Pois, no livro de João (12:12-15), está escrito: “No dia seguinte, ouvindo uma grande multidão, que viera à festa, que Jesus vinha a Jerusalém, tomaram ramos de palmeiras, e saíram-lhe ao encontro, e clamavam: Hosana: Bendito o rei d’Israel que vem em nome do Senhor”. A imagem do Messias é incorporada, pelo discurso, ao grupo de náufragos e consolidada na figura de quem narra. O Texto bíblico diz: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o principado está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da eternidade, Príncipe da Paz” (ISAIAS, 9:6). O paralelismo se dá quando Cabeza de Vaca escreve: “Por todas estas tierras, los que tenían guerras com los otros se hacían luego amigos para venirnos a recibir y traernos todo cuanto tenían, y de esta manera dejamos toda la tierra en paz” (p. 195 e 196). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 23 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. Outro caso de paralelismo: “Pasamos por gran número de diversidades de lenguas; con todas ellas Dios nuestro Señor nos favoreció, porque siempre nos entendieron y les entendimos” (p. 195). No livro de Atos está escrito: “E todos ficaram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem (2:4)[...] Havendo-lhes Paulo imposto as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo, e falavam em línguas e profetizavam (19:6)”. Com a aproximação do final da narrativa, Cabeza de Vaca escreve: “Después que vimos rastro claro de cristianos, y entendimos que tan cerca estábamos de ellos, dimos muchas gracias a Dios nuestro Señor por querernos sacar de tan triste y miserable cautiverio” (p. 202). Em Romanos (8:21), está escrito: “na esperança de que também a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus”. E, em Efésios (4:8): “Por isso foi dito: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens”. Cabeza de Vaca deixa uma mensagem de fé e esperança em um novo reino, um reino futuro, onde o rei da Espanha irá dominar: Dios nuestro Señor por su infinita misericordia, quiera que en los días de Vuestra Majestad y debajo de vuestro poder y señorío, estas gentes vengan a ser verdaderamente y con entera voluntad sujetas al verdadero Señor que las crió y redimió. Lo cual tenemos por cierto que así será, y que Vuestra Majestad há de ser el que lo há de poner en efecto (que no será difícil de hacer); porque dos mil leguas que anduvimos por tierra y por la mar en las barcas, y otros diez meses que después de salidos de cautivos, sin parar, anduvimos por la tierra, no hallmaos sacrificios ni idolatría (p. 213). O discurso engendrado revela uma personagem que promete um novo reino; analogia ao Messias bíblico. Sendo assim, a figura do rei da Espanha está paralelamente ligada à figura de Deus. 24 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28] ................................................................................................. O final do Livro de Cabeza de Vaca o aproxima ainda mais do discurso bíblico, pois, assim como na Bíblia, o texto torna-se circular, ou seja, toda a história remonta ao seu início; remonta a uma profecia: ...después que dejamos los tres navíos porque el outro era ya perdido en la costa brava. Los cuales quedaban a mucho peligro, y quedaban en ellos has cien personas con pocos mantenimientos, entre los cuales quedaban diez mujeres casadas, y una de ellas había dicho al gobernador muchas cosas que le acaecieron en el viaje, antes que le sucediesen. Esta le dijo, cuando entraba por la tierra, que no entrase, porque ello creía que él ni ninguno de los que con él iban no saldrían de la tierra; y que si alguno saliese, que haría Dios por él grandes milagros; pero creía que fuesen pocos los que escapasen o no ningunos. El gobernador entonces le respondió que él y todos los que con él entraban iban a pelear y conquistar muchas y muy extrañas gentes y tierras, y que tenía por muy cierto que conquistándolas habían de morir muchos; pero aquéllos que quedasen serían de buena ventura y quedarían muy ricos, por la noticia que él tenía de la riqueza que en aquélla había. Díjole más, que le rogaba que ella le dijese las cosas que había dicho pasadas y presentes, ¿quén se las había dicho? Ella respondió, y dijo que en Castilla una mora de Hornachos se lo habia dicho, lo cual antes que partiésemos de Castilla nos lo había a nosotros dicho, y nos había sucedido todo el viaje de la misma manera que ella nos había dicho (p. 219 e 220). Tudo o que aconteceu está resumido em uma profecia, apesar de se tratar de uma narrativa montada na “condicional”, pois foi dita por uma outra pessoa que não estaria presente, a “moura de Hornachos”; o texto, em seu sentido profético, assemelha-se ao texto bíblico. Para Trinidad Barrera, citando Pupo-Walker: El relato de la Mora de Castilla ofrece una variante de la profecia: las aventuras y vicisitudes descritas por Alvar Núñez aparecen como previstas y contenidas en la profecía: ‘lo que ocurre es que Alvar Núñez, al narrar sus aventuras, no há hecho más que recordar lo profetizado. De esa manera se cancela por un instante la progresión lineal de la historia que repentinamente queda supeditada al mundo de la ficción’, y aún la persona de Cabeza de Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 25 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. Vaca resulta enaltecida através de la profecía: ‘si alguno saliese (com vida) que haría Dios por él muy grandes milagros’ (BARRERA, 1985 p. 41). Considerações finais A maioria das passagens marcantes da vida de Jesus pode ser inferida a partir da leitura de Naufrágios. Para Santiago Juan-Navarro: La presentación de si mismo como leal conquistador y evangelizador pacífico, con dotes de líder político y religioso, conocimiento geográfico y etnológico del território, así como capacidad retórica para encender la imaginación de sus lectores, tiene un objetivo que no es principalmente ético, científico ni literário, sino político y militar: justificar obedientemente sus acciones em la Florida y la Nueva Galicia y solicitar nuevas “mercedes” del emperador (su nombramiento como capitán o Adelantado de una nueva expedición) (JUAN-NAVARRRO, 1999, p. 219.) O Messias está presente no discurso e não somente na figura de Cabeza de Vaca. E quem rege esse discurso apropria-se dessa figura e a usa como “espada” para conquistar seus interesses4. A estrutura discursiva do livro de Cabeza de Vaca é marcadamente focada nos diversos textos bíblicos. Esses textos são “vozes” que se coadunam para conformar, por meio da regência do narrador, um herói. Esse “outro” gerado pelo discurso é dominante do cenário narrativo; uma personagem que ganha força e sobressai-se no texto. Curiosamente, a cruz que Cristo carregou e que se tornou o símbolo de seu martírio aparece no discurso de Cabeza de Vaca como uma “arma”; uma arma retórica. O diálogo entre a história contada por Cabeza de Vaca e alguns livros da Bíblia é evidente. O cruzamento do texto de Cabeza de Vaca 4 Após regressar à Espanha, Cabeza de Vaca capitulou, sem alcançar êxito, seu retorno à América do Norte na condição de governador. No entanto, conseguiu uma nomeação de governador da Província do Prata, na América do Sul. 26 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28] ................................................................................................. com algumas passagens presentes em livros, tanto do Velho quanto do Novo Testamento, engendra uma figura que tem autonomia, pois, enquanto o náufrago retorna à sua terra nu e faminto, o Cristo permanece vitorioso e triunfante. Talvez seja esse o motivo de essa história continuar a ter leitores depois de quase cinco séculos de existência. REFERÊNCIAS ARENAS, Carmen V. Vidaurre. La interaccion de diversos tipos textuales en la obra de álvar núñez. Disponível em: <http://sincronia.cucsh.udg.mx/nunez.htm.> Data do acesso: 12/10/2006. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. BARRERA, Trinidad. Introdução. 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Santa Maria: UFMS/CAL, n. 18 e 19, Jan.-Dez., 1999. MAURA, Juan Francisco. Introdução. Naufrágios. 4. ed. Madrid: Cátedra, 2000. P. 962. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 27 José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28] .................................................................................................. José Aparecido de Amorim é mestrando no Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS. Atua como professor efetivo da Escola Teotônio Vilela, em Campo Grande-MS. Alda Maria Quadros do Couto é doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP, professora do Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS. Área do artigo: Literatura 28 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimenteonovo,bebadasubversãodehabemus cocam KarinaKristianeVicelliBlake RosanaCristinaZanelattoSantos Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar uma possível leitura das telas da exposição Habemus Cocam do artista plástico Evandro Prado. Analisando como Prado compreende os conceitos de cultura e mundialização definidos por Renato Ortiz, no livro Mundialização e Cultura, e se também sua obra se encaixa nas propostas feitas por Italo Calvino para a arte do milênio atual, nas conferências do livro Seis Propostas para o próximo milênio. Palavras-chave: Mundialização. Arte. Contemporaneidade. Cultura Abstract: The aim of this paper is to show a possible reading of the painting of Habemus Cocam exposition from the artist Evandro Prado. Analysing the way Prado comprenhends culture and mundialization concepts defined by Renato Ortiz in his book Mundialization and Culture, and if his artistic creation incases in the propositions made by Italo Calvino for the actual millenium art at the conferences of the book Six Memos for the Next Millennium. Keywords: Mundialization. Art. Contemporary. Culture. 29 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. Pretende-se demonstrar neste artigo como as telas da exposição1 Habemus Cocam, do artista plástico Evandro Prado, compreendem os conceitos de cultura e mundialização definidos por Renato Ortiz, no livro Mundialização e Cultura, e se elas também se encaixam nas propostas feitas por Ítalo Calvino para a arte do milênio atual, nas conferências do livro Seis Propostas para o próximo milênio. Aparentemente, são textos díspares, até mesmo contraditórios, já que o primeiro livro trata da problemática cultural frente à mundialização e o segundo livro refere-se especificamente à literatura, restringindo muitos de seus exemplos à literatura italiana. O que se propõe é costurar duas pontas distintas, ação para a qual os avanços e o andar da crítica literária atual permitem essa visível incongruência, a associação de um texto que imaginava a literatura de um milênio que ainda estava por vir, aliado a um texto que abrange o conceito de cultura na contemporaneidade, promovendo um olhar do que poderia ser o futuro imaginado e o presente materializado; o que se imaginava que seria a arte do milênio atual e como ela se apresenta. Imaginar como será a literatura dos próximos tempos é um exercício estabelecido em várias épocas dos estudos literários. Na verdade, delimitar valores literários aparenta, a princípio, ser uma ação ditatorial: como se o que não se encaixasse nessa delimitação não pudesse ser considerado, estudado ou até mesmo degustado pelos leitores. No entanto, percebe-se que os teóricos-oráculos, ao tentarem predizer o futuro, nada mais fazem do que olhar para o passado, observando o movimento contínuo, renovador e inesgotável da arte. E, por meio de incursões em obras que geralmente já fazem parte de um cânone, estabelecem determinados valores do que poderia ser a literatura do futuro; valores, esses, presentes desde o cerne da arte da escrita. 1 Realizada em Campo Grande, no MARCO (Museu de Arte Contemporânea de MS), nos meses de maio e junho de 2006. 30 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46] .................................................................................................. Nisso, Ítalo Calvino foi exemplar, ao redigir as conferências Norton, em 1985, e oferecer em Seis propostas para o próximo milênio uma projeção da literatura que estava por vir. Inúmeras discussões surgiram a partir dessa reflexão; algumas a ampliaram, outras a reduziram, como é o caso de Tres propuestas para o próximo milênio (y cinco dificultades), do escritor argentino Ricardo Piglia que, além das conferências de Calvino, também utilizou o texto Cinco dificuldades para escrever a verdade, de Bertolt Brecht. Segundo Piglia, o texto de Calvino parte do questionamento de como seria a literatura no futuro, e tem como pressuposto a certeza de que há coisas que somente a literatura pode oferecer. Os valores e as qualidades próprias da literatura, enumeradas por Calvino, são: a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade e a multiplicidade. A sexta conferência não foi escrita, mas recebeu o título de “consistency” e, de certa forma, alimenta mais ainda o imaginário dos que se interessam pelo assunto. Piglia propõe considerar esses valores, mas os reduz a três: a noção da verdade como horizonte político e objeto de luta, o deslocamento e a claridade. E avança ao apresentar as cinco dificuldades em relação à literatura do próximo milênio, que são: o valor de escrever, a perspicácia de descobri-la, a arte de fazê-la manejável, a inteligência de saber eleger seus destinatários e, sobretudo, a astúcia de saber difundi-la. Outra coisa a destacar é que Piglia discute o futuro da literatura em relação à Hispano-América, que ele considera o subúrbio do mundo, propondo que se perceba estas questões, não como sujeitos de um país central, com uma grande tradição cultural, mas como um escritor argentino poderia utilizar a problemática proposta por Calvino. (PIGLIA, 2001, 0p.13) Ao posicionar-se à margem, olhando de um lugar marginal, obtémse uma percepção diferente, específica. Piglia pergunta quais seriam os Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 31 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. valores próprios da literatura que irão persistir no futuro a partir dessa ótica marginal. Oferece, então, consignar pontos de partida de um debate futuro, empreendido de um lugar remoto. Assim, aprofunda as discussões a respeito do futuro da literatura e sobre as relações futuras entre política e literatura. No entanto, ao abordar a Hispano-América, Piglia restringe-se aos países falantes do espanhol e deixa de lado o Brasil, onde se fala o português. E como seria pensar essas questões sobre o futuro da literatura e as relações entre literatura e política de um país que é a margem da margem? É desse local que se pretende falar, da margem da margem; fala-se também de um país sem grande tradição cultural, e questiona-se o motivo pelo qual Piglia aborda a Hispano-América e não a América-Latina. Se não fazemos parte da margem, o que seríamos? A submargem? Ou seríamos o que alguns teóricos chamam de não-lugar? Said afirma que o intelectual fala de algum lugar, e esse lugar deixa marcas claras em seu discurso. O intelectual tem sempre a escolha de situar-se do lado dos mais fracos, dos menos representados, dos esquecidos ou ignorados, ou então do lado dos mais poderosos. Quanto ao consenso de uma identidade de grupo ou nacional, o dever do intelectual é mostrar que o grupo não é uma entidade natural ou divina, e sim um objeto construído, fabricado, às vezes até mesmo inventado, com uma história de lutas e conquistas em seu passado, e que algumas vezes é importante representar (SAID, 2005, p.43). É imprescindível ressaltar que essas propostas não cabem apenas na literatura, mas podem relacionar-se às artes como um todo. O presente milênio, de certa maneira, evoca essa tramitação de valores. Assim, para apresentar essa possibilidade de análise interartes, ou seja, aplicar conceitos focalizados na literatura em outro campo de expressão, opta-se pela obra do jovem artista campo-grandense Evandro Prado, pois causou celeuma com a série Habemus Cocam baseada em reflexões 32 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46] .................................................................................................. a respeito da religião de consumo, de autoria de Frei Beto, que ficaram expostas no Museu de Arte Contemporânea de MS (MARCO), nos meses de maio e junho de 2006. As obras de Evandro causaram embate por relacionar e subverter ícones como o Papa, Jesus Cristo, Fidel Castro, Che Guevara, dentre outros, aliados a um dos principais símbolos do consumismo: a marca coca-cola. O artista foi criticado na Tribuna da Câmara Municipal de Campo Grande e processado por denegrir imagens religiosas pela Arquidiocese. Difícil imaginar que, ainda hoje, a arte possa chocar. Como ponto de análise, foram eleitas algumas telas da exposição Habemus Cocam. Na série Habemus Cocam há uma interessante relação entre conceito e plasticidade. O conjunto de pinturas, que recebe um tratamento de representação realista, assume a visualidade de comunicação da linguagem publicitária, onde as formas são pensadas estrategicamente para atrair a nossa atenção. A marca Coca-Cola, que para o artista é um dos símbolos do consumismo globalizado, surge como elemento que dá unidade à obra, fazendo uso de maneira irônica das variações desenvolvidas pela marca. A crítica ao modo de produção capitalista, onde a propaganda é ferramenta fundamental para a venda e o consumo em massa de produtos, é uma das questões importantes presentes na série. Para o artista “o capitalismo é inversão de valores, o mundo colorido, alegre e brilhante que ele vende, na verdade não existe”. Nesse caso, o contraponto fica por conta das referências ao sistema político econômico cubano onde a propaganda tem efeito contrário: lá ela tenta inibir o consumo. Evandro é contundente ao comentar que para Fidel Castro “a publicidade comercial semeia sonhos, ilusões e o desejo de consumo impossível” (MALDONADO, Rafael).2 A tensão surge a partir do estranhamento causado pela forma irônica como esses símbolos culturais, carregados de pré-significados, são apresentados 2 Curador do MARCO, Museu de Arte Contemporânea de MS, 2006. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 33 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. aos que visitaram a exposição. A tela que dá título à exibição apresenta o pontífice João Paulo II morto, segurando uma garrafa de coca-cola nas mãos; a ironia insere-se na frase Habemus Cocam, inscrita no mesmo formato e tipo de letra utilizado pela marca coca-cola, parodiando a expressão Habemus Papam, dita quando um novo Papa é eleito pelo Vaticano. A metáfora reside em comparar o Papa a um símbolo do consumismo; ele é apenas mais um produto a ser lançado no mercado, para que as pessoas também consumam essa imagem. Poderíamos até brincar com essa crítica bem humorada do artista e dizer: Beba Papa. O que causou indignidade em religiosos e políticos oportunistas foi justamente a presença de espírito e o caráter crítico das telas, mas o que seria da arte sem a quebra de certos valores? Parafraseando Piglia, pode-se dizer que há um lugar para o artista: estabelecer onde está uma possibilidade de verdade, atuar como um investigador, descobrir o secreto que o Estado manipula e revelar o que está escamoteado. E a possibilidade de verdade que Evandro expõe é a hipocrisia de símbolos utópicos que foram transformados em objetos de consumo, ao metaforizar o papa morto com uma coca-cola na mão, escancara a superficialidade e banaliza a imagem de um ícone. A diferencia de lo que se suele pensar, la relación entre la literatura – entre novela, escritura ficcional _ y el estado es uma relación de tensión entre dos tipos de narraciones. Podríamos decir que también el Estado narra, que también el Estado construye ficciones, que también el Estado manipula ciertas histórias (PIGLIA, 2001, p.21). 34 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46] .................................................................................................. As telas de Evandro Prado contrariam o relato contado pelos poderosos, dos que estão acima, sejam eles políticos ou religiosos. O artista se posiciona de forma irônica, pois todos os símbolos utilizados por ele constituem um discurso de poder, são ficções narradas por aqueles que detêm o poder. Habemus Cocam ajuda a questionar a postura que os poderosos adotam como verdades absolutas e também a questionar a política. De acordo com Piglia, “la verdade es um relato que outro cuenta. Um relato parcial, fragmentário, incierto, falso también, que debe ser ajustado com otras versiones y otras historias” (2001, p.30). Assim, ao mostrar uma outra versão da verdade, Evandro Prado oferece ao público o que Piglia chamou de verdade como horizonte político e objeto de luta. Ao desmontar a força desses ícones, desbanca a verdade dita absoluta, surgindo, então, o embate e o confronto com posturas levantadas como bandeira das relações de poder. O que é a imagem de Che Guevara hoje senão um objeto de consumo? Além disso, comumente se cria uma expectativa de que o artista de Mato Grosso do Sul deve expressar em sua obra o espaço em que reside. Talvez isso ocorra devido ao fato de o Estado ter-se desmembrado de Mato Grosso em 1977 e, desde então, há uma necessidade em firmar-se uma identidade local. De certa maneira, resiste ainda na arte da região a sombra de determinados estigmas simbólicos, e isso é visível nos telefones públicos do Estado, por exemplo, em forma de araras, onças, peixes e outros animais do Pantanal. Cobra-se dos artistas que determinados elementos devem aparecer em suas produções, como retratos deste Estado, elementos de preferência que exaltem a fauna e flora da região. Mas como se pode ser local em uma sociedade globalizada? Muitas vezes, perdura a sensação de que se estar à margem, tanto do Brasil, quanto do resto do mundo, por se considerar o estado de Mato Grosso do Sul como uma região insólita e exótica. Para Ortiz, refletir sobre a mundialização da cultura é de alguma maneira se contrapor, mesmo que não seja de forma absoluta, à idéia de cultura nacional (2003, p.116). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 35 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. Contraponto é uma das palavras que definem o estilo de Evandro Prado. Ele vai além do local, do nacional, ao inserir em suas telas objetos comuns a toda sociedade de consumo, elementos de uma cultura internacional-popular. Entra em cena, portanto, o conceito que Renato Ortiz chamou de desterritorialização: “contrariamente aos lugares carregados de significado relacional e identiário, o espaço desterritorializado ‘se esvazia’ de seus conteúdos particulares” (2003, p.105). Ao tratar de ícones como o Papa e a coca-cola é exatamente isso que o artista consegue, já que são símbolos conhecidos mundialmente, e não símbolos arraigados apenas em um determinado espaço; se esses elementos estão presos a algum espaço, esse espaço é o mundo e não os Estados Unidos da América, o Vaticano ou seu local de origem. A desterritorialização pode ser equiparada ao conceito que Piglia define como deslocamento, distância (2001, p.37). Evandro Prado utiliza objetos comuns a qualquer lugar, desde a imagem do Papa, presente na casa de muitos devotos, até mesmo um símbolo considerado revolucionário como Che Guevara, estampado na camiseta de muitos jovens. Esses nomes conhecidos, seja a marca coca-cola, ou um ícone histórico, são sinais exteriores da mundialização. Ortiz observa que há um universo habitado por objetos, e são esses produtos mundializados que demarcam o espaço mundial. Esse reconhecimento funciona como uma familiaridade que se realiza no anonimato de uma civilização que minou as raízes geográficas dos homens e das coisas. A velocidade das técnicas leva a uma unificação do espaço, fazendo com que os lugares se globalizem. Cada local, não importa onde se encontre, revela o mundo, já que os pontos desta malha abrangente são susceptíveis de intercomunicação (ORTIZ, 2003, p.106). Retornando às seis propostas para o próximo milênio, a primeira é a leveza, sobre a qual Ítalo Calvino propõe acepções que são perceptíveis 36 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46] .................................................................................................. nas telas de Evandro Prado: 1) a presença da ironia pelo jogo, já que há o despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um tecido verbal quase imponderável, até assumirem essa mesma rarefeita consistência; 2) há o lúdico no emblema da coca-cola, que narra um raciocínio facilmente perceptível, pois atinge desde as crianças até os adultos; 3) Há o reconhecimento da mensagem, pela sua ampla divulgação e capacidade de expansão. No caso da tela Experimente o novo, temos a inscrição do termo “light”, indicando a idéia de leveza, embora o ícone “Papa” represente exatamente o oposto; contudo, a imagem do papa não aparece na tela, apenas sua sombra, iluminada por um foco de luz. Esta inserção da palavra light explicita também a leveza da luz; embora possa ter sua massa medida fisicamente, o valor de sua massa é tão ínfimos que se torna desprezível. A sombra incute a leveza do corpo, pois consiste na projeção da luz que incide sobre um corpo e que permite a materialidade corpórea da sombra, que não é a mesma que a do corpo. A própria idéia de cocacola light aparece implícita, por meio do formato das letras e das bolhas dispersas na tela que indicam coca-leve, palavra-leve, imagem-leve, paródia lúdica. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 37 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. Aqui se retoma o mito de Perseu explorado por Calvino na conferência sobre a leveza. Perseu vê a Medusa por meio de um artifício, e consegue decapitá-la. No entanto, ele enxerga apenas seu reflexo em seu escudo, visualiza apenas o reflexo da luz que incide sobre o corpo da Górgona, luz esta que gera seu lado obscuro, embaçado. Ao contrário do olhar fulminante da Medusa, o reflexo não causa mal algum, em contrapartida, a torna leve, pois não é o corpo que Perseu enxerga, mas a sua ausência projetada, refletida difusamente pela luz. Quanto ao segundo valor, a rapidez, Calvino propõe recomendar ao próximo milênio um valor especialmente caro: numa época em que os outros triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a função da arte é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não enfraquecendo, mas, antes, exaltando a diferença. O século da motorização impôs a velocidade como um valor mensurável, cujos recordes balizam a história do progresso da máquina e do homem. Mas a velocidade mental não pode ser medida e não permite comparações ou disputas, nem pode dispor os resultados obtidos numa perspectiva histórica. A velocidade mental vale por si mesma, pelo prazer que proporciona àqueles que são sensíveis a esse prazer, e não pela utilidade prática que se possa extrair dela. Um raciocínio rápido não é necessariamente superior a um raciocínio ponderado, ao contrário; mas comunica algo de especial que está precisamente nessa ligeireza (CALVINO, 1990, p.58). Os ícones utilizados por Evandro Prado são rapidamente compreendidos pelo olhar do espectador. Porém, por mais comuns que sejam essas imagens, e por mais veloz que seja o reconhecimento delas nas telas de Evandro Prado, elas estabelecem uma forma diferente de serem interpretadas, preservando seu significado primeiro, e acrescentando-lhe outras possibilidades significativas, resultando num discurso composto por diferentes realidades. 38 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46] .................................................................................................. Quanto à terceira proposta de Ítalo Calvino, o valor da exatidão, quer dizer três coisas: 1) um projeto de obra bem definido e calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; 3) uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. Por que me vem a necessidade de defender valores que a muitos parecerão simplesmente óbvios? Creio que meu primeiro impulso decorra de uma hipersensibilidade ou alergia pessoal: a linguagem me parece sempre usada de modo aproximativo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo: sinto um repúdio ainda maior quando me ouço a mim mesmo. Por isso procuro falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não digo a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que me posso dar conta. A literatura - quero dizer, aquela que responde a essas exigências - é a Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser. Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias. Não me interessa aqui indagar se as origens dessa epidemia devam ser pesquisadas na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos mass-media ou na difusão acadêmica de uma cultura média. O que me interessa são as possibilidades de salvação. A literatura (e talvez somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a expansão desse flagelo lingüístico. Gostaria de acrescentar não ser apenas a linguagem que me parece atingida por essa pestilência. As imagens, por exemplo, também o foram. Vivemos sob uma chuva ininterrupta de imagens; os media todo-poderosos não fazem outra coisa senão transformar o mundo em imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria de jogos de espelhos - imagens que em grande parte são destituídas da Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 39 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como forma e como significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de significados possíveis. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamente como os sonhos que não deixam traços na memória; o que não se dissolve é uma sensação de estranheza e mal-estar. (CALVINO, 1990, p.72). Na obra de Evandro Prado, o artista não é um fotógrafo do mundo real. O mundo visível, cotidiano, pode fornecer as imagens que animarão suas telas, no entanto, essas imagens se ordenarão de modo inesperado, segundo uma construção que tem por finalidade ampliar a imaginação do espectador. De acordo com Calvino, podemos distinguir dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal, assim temos o quarto valor: a visibilidade (CALVINO, 1990, p.99). Nas telas temos as duas possibilidades, já que o artista sempre insere palavras, frases, orações. Toda a simbologia presente em Habemus Cocam remete o leitor/espectador a um universo dominado pela matéria, recolocando o homem em sua condição de igualdade em relação às demais coisas, aos objetos desterritorializados. Assim, por meio de seus deslocamentos bruscos, o artista investe na busca de recursos lingüísticos e estilísticos que configurem uma nova linguagem, e acaba criticando a ordem de um mundo canônico e rigidamente construído pelos ícones. A quinta proposta de Calvino, a multiplicidade, reside na questão da interpretação. Cada sujeito tem uma formação diferente, e múltiplas serão as maneiras de interpretar a arte da pós-modernidade. Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis (CALVINO, 1990, p.138). Podemos conceber a redução feita por Piglia, ao transformar as seis propostas em três. A claridade compreenderia os cinco valores propostos 40 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46] .................................................................................................. por Calvino: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Já que a luz é leve, rápida, exata, visível e múltipla, o deslocamento consiste no fato de os elementos utilizados pertencerem à cultura global e não a um espaço específico; e, por último, a postura política assumida ao posicionar o olhar analítico à margem, ligada a uma cultura periférica, em que abrange o oposto da idéia de leveza proposta por Calvino, o peso que a obra de arte carrega. Evandro Prado valoriza intertextos com grandes obras e estabelece a dialogicidade com o kitsch religioso brasileiro, ou melhor, com o kitsch religioso universal. É, ao mesmo tempo, provocante, inusitado, universal e mundializado. Mas, na verdade, não há nada de tão subversivo assim, já que as telas de Evandro Prado tornam-se leves se comparadas às instalações de Maurizio Cattelan, artista italiano. A instalação La Nona Ora, de 1999, em que há o Papa, em tamanho natural, a ser atingido por um meteorito, arrepiaria os conservadores de plantão de Campo Grande. Cattelan define-se como um marginal, e assim se dá a possibilidade de exercer uma crítica ferina e um modo de pôr abaixo muitos cânones. Maurizio Catellan. La Nona Ora (1999). O papa João Paulo II, em tamanho natural, caído ao chão segurando o cajado sobre um tapete vermelho, com um meteoro sobre as pernas e os estilhaços dos vidros, todos esses elementos, ironicamente, remetem à idéia de castigo divino, já que o meteoro advém do céu, uma Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 41 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. providência divina para acabar com o papado do pontífice. Outras leituras podem ser feitas, como a de que o papa estaria preso à imagem, amarrado ao poder, sem poder deixar o local de ícone que ocupa, pois o meteoro está sobre suas pernas, impedindo-o de sair da posição que sustem e também de se livrar do sofrimento. O peso da imagem se faz presente, voltamos ao oposto da primeira proposta de Calvino. Através do peso, o artista provoca, assim, a arte não deixa de ser a medida de o quanto ela invoca das sensações humanas, a arte é a nossa reação perante o objeto artístico. Sem a reação, a arte não se faz, não existe, nem se completa. O alimento da arte está em devorá-la e se fazer sucumbir pela catarse, sentir o que o objeto artístico causa. E é essa sensação incômoda, que nos leva à indignação ou ao êxtase, a que chamamos arte. A arte é o alimento do estranhamento, e o estranhamento é a reação vital da arte. Maurizio Catellan. La Nona Ora (1999). Assim sendo, essas ironias com a religião não são novidades e sim uma constante, elas sempre existiram na história da arte. No Brasil, na década de 50, durante o movimento concretista, há um poema singular de Décio Pignatari que se insere neste contexto: 42 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46] .................................................................................................. Ao substituir a imagem de George Washington por Jesus Cristo, Décio Pignatari ironiza a relação dinheiro e religião. É importante ressaltarmos que no verso da nota de um dólar temos a inserção da frase “In God we trust” (Em Deus nós confiamos), e por que não parafrasear essa frase e afirmar: “In money we trust” ? Será que realmente a sociedade acredita em Deus, ou em um ícone criado pela sociedade de consumo? O poema “Cr$isto é a solução” joga com essa mensagem religiosa do dólar: acreditamos em Deus, assim como acreditamos no dinheiro. A palavra “Cr$isto” no poema transfigura a carga que a imagem de um símbolo religioso adquiriu perante a sociedade de consumo, os ícones religiosos são imagens baratas, comercializáveis, banais. Assim como a coca-cola e o papa o são na história da sociedade capitalista, conceito absorvido, materializado e questionado nas obras de Evandro Prado. Não podemos deixar de lado outro poema famoso de Décio Pignatari, “Cola-cola”, em que o autor produz um anti-slogan, já que ao final do poema equipara coca-cola à cloaca, dando ao produto, símbolo do capitalismo, um sentido pejorativo. beba babe beba babe caco cola coca coca cola cola cola caco c l o a c Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 43 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. Para aprofundar as discussões sobre o que seria a arte do milênio presente, procurou-se mostrar, com os exemplos das telas de Evandro Prado, a existência dos valores propostos por Calvino no milênio passado, reduzidas por Piglia e pensadas, não a partir da Argentina, nem de um país de grande tradição cultural, europeu, mas de um país que seria a margem da margem, o Brasil. As telas de Evandro Prado, assim como as instalações de Maurizio Cattelan, propõem para este milênio a continuidade da ruptura na arte, por meio da destituição dos cânones previamente estabelecidos, seja de um lugar remoto da América Latina, da margem do subúrbio do mundo, ou de um país com uma tradição cultural como a Itália. A mundialização permite o deslimite, evoca a desterritorialização, dá sustentabilidade à subversão e fomenta a transgressão, mola propulsora da arte. Pode-se observar que há muita coisa semelhante entre a expressão dos dois artistas, especialmente o fato de seus trabalhos contraporem a tradição e o respeito por valores que, hoje, não passam de imagens comercializáveis. Pretendeu-se que este artigo proporcionasse, ainda que de forma muito sintética, uma ponte entre um texto que imaginava a arte literária na contemporaneidade e outro que busca definir a cultura da atualidade. Para isto, optou-se por uma compilação dos valores propostos por Calvino, e interpretados por Piglia, aplicando-os a algumas telas de Evandro Prado. Ao mesmo tempo em que os conceitos eram aplicados, foram comparados às conceituações oferecidas por Renato Ortiz sobre a cultura da atualidade. Finalmente, o trabalho de Evandro Prado foi brevemente comparado ao do artista plástico italiano Maurizio Cattelan. Trata-se apenas de uma sucinta reflexão sobre a arte do milênio presente. Faz-se notar, todavia, que ainda há muito que discutir a respeito do assunto, pelo fato de ainda haver um momento de efervescência de valores que contrariam os cânones, 44 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46] .................................................................................................. mas que, obviamente, por seu caráter intertextual, ainda se prende à tradição. Assim, as suposições deste texto são apenas apontamentos para um percurso sedutor e infinito que é o dos Estudos Literários aliados aos Estudos Culturais. Para finalizar, retorna-se o título do artigo, convidando a todos a experimentar o novo, já que o artista provoca uma ampliação no repertório imagético do espectador, ao atribuir uma nova lógica às coisas, múltipla e descontínua. À arte do milênio presente, à pós-modernidade: bebamos, pois, da subversão de Habemus Cocam e de todos os objetos artísticos que permitem a renovação da arte por meio do jogo, do lúdico, da ironia, por fim, da ruptura. REFERÊNCIAS CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte - estudo de literatura brasileira contemporânea. Campo Grande-MS: UFMS, 2004. ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2003. PIGLIA, Ricardo. Tres propuestas para el próximo milênio (y cinco dificultades). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001. p.11 - 42. SAID, Edward. Representações do intelectual. Trad. Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SOUZA, Eneida M. de. Notas sobre a crítica biográfica: In: SOUZA. Crítica Cult. Acesso Acesso Acesso Acesso em: http://www.evandroprado.com.br/ em: http://www.mauriziocattelan.org/ em: http://www.ocabulosodestino.net/ em: http://pt.wikipedia.org/wiki/In_God_We_Trust/ Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 45 Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46] .................................................................................................. Karina Kristiane Vicelli Blake é mestranda no Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Rosana Cristina Zanelatto Santos é doutora em Literatura Portuguesa pela USP-SP, professora dos Programas de Pós-Graduação – Mestrado em Estudos de Linguagens (Câmpus de Campo Grande) e Mestrado em Letras (Câmpus de Três Lagoas), do Centro de Ciências Humanas Área do artigo: Literatura 46 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Ofatorxerazade:umobstáculoentreojornalismoea literatura AldaMariaQuadrosdoCouto Resumo: Trata-se de discutir as relações entre jornalismo e literatura a partir da observação do livro Billete de ida. Los mejores reportajes de un gran viajero, de Javier Reverte, analisando-se trechos das apresentações do autor e de uma das crônicas, em cotejamento com trecho de um conto de Karen Bliksten/Isak Dinesen. Utilizam-se conceitos de teoria da narrativa literária, tais como, narrador, tempo e espaço, e a função estética da linguagem, estabelecida por Roman Jakobson e reconhecida por Tzvetan Todorov, para entender as distinções entre ficção e informação. Por fator Xerazade, entende-se a questão estética do narrador no texto literário, considerado incompatível com a narração jornalística. Palavras-chave: Jornalismo e literatura. Funções estéticas e informação. Abstract: This paper is an analysis about the relations between journalism and literature, from the book Billete de ida. Los mejores reportajes de un gran viajero, by Javier Reverte. In this paper are analysed the presentation of the Author and one of the chronicles, and a comparison with a tale written by Karen Bliksten/ Isak Dinesen. It´s applied concepts of literary narrative theory, such as narrator, time, space, as well as the esthetical function of literature, established by Roman Jakobson and recognized by Tzvetan Todorov, to understand the distinctions between fiction and information. The “Xerazade factor” may be understood exactly as the esthetical function of the narrator in the literary text, which is considered incompatible to the journalistic narrative. Keywords: Journalism and literature. Esthetical functions and information. 47 Alda Maria Quadros do Couto [47-63] .................................................................................................. O jornalista espanhol Javier Reverte escreve relatos de viagem desde 1970, além de artigos, editoriais, entrevistas, crônicas políticas, que denomina como “gêneros do ofício”, de material inflamável, pela urgência como razão de ser em detrimento da qualidade da escrita. Assim, estabelece a qualidade como um fator decisivo entre jornalismo e literatura, lamentando a rapidez com que o jornalista precisa produzir seus textos, todos os dias. Em 2006, teve publicada a segunda edição da coletânea Billete de ida. Los mejores reportajes de un gran viajero, em cujo prólogo o ato de escrever diariamente ao longo de 30 anos é definido como “profesión devoradora que se come lo mejor de ti mismo sin saciarse jamás”. 1 Nesse mesmo prólogo, Reverte lista viajantes que se tornaram escritores, entre os quais há destaque para os que se aventuraram pela África: John Speke, Richard Burton e “para gloria de la literatura, una mujer que se llamaba Isak Dinesen” 2 (REVERTE, 2006, p.18). O presente artigo propõe uma rápida discussão a respeito das concepções defendidas por Reverte, sob um enfoque crítico de tendência imanente, (conforme TODOROV, Crítica de la crítica, 2005), considerando a linguagem e alguns elementos da estrutura narrativa como pontos de referência para o reconhecimento da categoria “literário” a que qualquer texto possa almejar. Não há preocupação em fixar conceitos. Trata-se apenas de levantar algumas questões a partir dos argumentos que o Autor e o Editor estabelecem como critérios para o que qualificam como jornalismo literário. 1 Bilhete de ida – as melhores reportagens de um grande viajante. “Profissão devoradora que come o melhor de ti mesmo sem saciar-se jamais”. As citações mantêm o original em espanhol, anotadas em rodapé traduções literais, da autora, apenas para compreensão geral, se necessário. 2 “para glória da literatura, uma mulher que se chamava Isak Dinesen”. Refere-se a Karen Blixen (1885-1962). (Reverte, 2006, p.18). 48 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 O fator Xerazade [47-63] .................................................................................................. O fator Xerazade é proposto como uma denominação representativa do cânone literário da narrativa, a partir de uma afirmação de Soledad Puértolas, na apresentação de Karen Blixen para a edição espanhola de Siete cuentos góticos,3 utilizado aqui como um contraponto destacado pelo próprio Javier Reverte. Bilhete de ida - válido para sete léguas Segundo Reverte, o jornalista pode chegar ao final de sua carreira com “la sensación de que todo cuanto ha hecho quedó en un papel que sólo sirve para envolver bocadillos o encender el fuego de la chimenea”, mesmo que “tus vísceras y tu alma han sido fagocitadas por un ser invisible que requiere zamparse trozos de tu carne sin descanso” (idem, p.13). 4 A metáfora “vísceras” define a experiência de reunir em livro os, até então, fugazes textos jornalísticos: “es como rescatar parte de tu cuerpo y de tu corazón, salvándolos del fuego del hogar y de la grasa de las sardinas en aceite (...) algo parecido a un trasplante de órganos, recuperar el páncreas o el hígado, una glándula y una víscera a las que, por cierto, ataca con furor el oficio de periodista. El lector podrá imaginar fácilmente por qué razón” (p.14).5 Truculências sugeridas à parte, o jornalista afirma que a, talvez, “mais magnífica entre todas as ocupações” (a sua) dá ao profissional acesso a povos e mundos muito distintos, como palácios e territórios miseráveis, homens de estado e criminosos: “el periodismo te permite meter las narices en la médula de la vida” (p.13). 6 3 4 Sete contos góticos. “a sensação de que tudo o que fez ficou em um papel que só serve para envolver bocados ou acender o fogo da lareira”. “tuas vísceras e tua alma foram devoradas por um ser invisível que se empanturra de pedaços de tua carne sem descanso”. 5 “é como resgatar parte de teu corpo e de teu coração, salvando-os do fogo e da graxa das sardinhas em azeite (...) algo parecido a um transplante de órgãos, recuperar o pâncreas e o fígado, uma glândula e uma víscera às quais, por certo, o ofício de jornalista ataca com furor. O leitor poderá facilmente imaginar por que razão”. 6 “o jornalismo te permite meter o nariz na medula da vida”. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 49 Alda Maria Quadros do Couto [47-63] .................................................................................................. Ao selecionar textos “que resistieran mejor el paso del tiempo”, obteve um conjunto de relatos de viagens (“periodismo viajero”). Em nova seleção, para reduzir de 800 para 400 páginas o resgate de suas glândulas e vísceras, optou pelas reportagens, reservando para outra ocasião artigos e reflexões de viagem, além dos “retratos de ciudades”.7 O resultado é um volume dividido em três partes: reportagens de conteúdo sócio-cultural, mais ou menos turísticas, abrangendo “la ancha geografía del mundo”; 8 reportagens realizadas na própria Espanha; trabalhos de enviado especial a territórios bélicos e de caráter político. Em suas próprias palavras, oferece ao leitor “una serie de vísceras recuperadas, pedazos de corazón perdidos, y ahora rescatados, en el voraz y hermoso ejercicio del periodismo” (p.15). 9 Até aqui se detectam alguns sinais do rumo que a conversa de apresentação do livro toma, desde a epígrafe até o texto da contracapa, provavelmente do editor: “El periodismo y la literatura son dos brazos de un mismo río”, 10 atribuída a Truman Capote. O epigrafado é um dos criadores do new jornalism norte-americano, matriz do, hoje, discutido jornalismo literário, ao qual o livro em questão pretende filiar-se. Podem-se enumerar os seguintes argumentos do Autor: 1 – a classificação de gêneros no âmbito da produção jornalística, na qual os relatos de viagem se destacam como mais “duradouros”; 2 – o ato diário de escrever dado como uma espécie de autofagia intermitente; 3 – a fugacidade do jornal que, depois de lido, só pode ter o destino do embrulho ou do fogo; 7 8 9 “que resistiram melhor ao passar do tempo” (jornalismo de viagem) “retratos de cidades”. “a ampla geografia do mundo”. “uma série de vísceras recuperadas, pedaços de coração perdidos, e agora resgatados, no voraz e formoso exercício do jornalismo”. 10 “O jornalismo e a literatura são dois braços de um mesmo rio”. 50 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 O fator Xerazade [47-63] .................................................................................................. 4 – o envolvimento visceral e espiritual do jornalista com o mundo real em todas as suas dimensões; Após o prólogo, assinado pelas iniciais J.R, o subtítulo “Leer, explorar y luego escribir”, atribui à seqüência o caráter de um processo natural que reúne aventura e literatura “no por casualidad … dos hermosas palabras que riman…” 11 (p.17) O conceito vai se construir por uma associação entre literatura, ou criação literária, com ação – a escrita como ação, as proezas dos aventureiros como forma de reflexão – coroados pela citação de CherryGarrad, em El peor viaje del mundo: “la exploración es la expresión física de la pasión intelectual” 12 (p.17). Assim, viajar e em seguida escrever sobre isso, com “mejor o peor fortuna literaria”, torna-se um processo quase natural, no qual Reverte considera-se inserido. “Leer, viajar, aventurarse y al fin escribir: un camino circular, un constante periplo de ida y vuelta”13 (p.19). O raciocínio se conclui com a relação aventura-escrita-tempo. A referência é uma frase do explorador francês que chegou ao Pólo, PaulEmile Victor, para quem “la aventura es la única manera de robarle tiempo a la muerte”. 14 Chega-se, então, ao eterno binômio literatura (ou qualquer forma de arte) = imortalidade, um lugar-comum que até hoje custa a celebração de mediocridades, especialmente nas academias de letras e na grande mídia. Que este é o desígnio buscado por Reverte não há dúvidas, pois conclui a apresentação de sua antologia com muita clareza: 11 “ler, explorar e logo escrever” – “não por casualidade … duas formosas palabras que rimam”. 12 A pior viagem do mundo: “a exploração é a expressão física da paixão intelectual”. 13 “melhor ou pior qualidade literária”; “ler, viajar, aventurar-se e ao final escrever: um caminho circular, um constante périplo de ida e volta” 14 “a aventura é a única maneira de ganhar tempo diante da morte” Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 51 Alda Maria Quadros do Couto [47-63] .................................................................................................. “y no es acaso la literatura, entre otras muchas cosas, una manera de burlar la enojosa presencia de la muerte, en el enpeño tan noble como inútil de detener el tiempo? “ 15 (p.19) Neste caso, o conceito que orienta a relação jornalismo-literatura é, evidentemente, uma gradação tempo-permanência, desde a fugacidade do veículo impresso que se destina a embrulhos ou a lareiras até a esperança de superar a morte, o tempo concluído de uma existência humana, pelo simbólico alcance da vida dos grandes escritores, lidos séculos depois de mortos. Do jornal ao livro, o jornalista busca um pouco mais de permanência, já que considera o ofício de escrever todo dia igual ao do escritor. Mas em que consiste a “melhor ou pior fortuna, ou qualidade literária”, a “glória da literatura”, a que nem todos os aventureiros e poucos jornalistas alcançam? Ser lido, em livros editados, muitos anos após ter escrito, quanto mais, melhor, é a meta, além dos motivos comerciais, é claro. Mas o que faria Karen Blixten chegar à outra glória, a do prêmio Nobel? Será Javier Reverte um futuro Nobel, terá ele em seu trabalho a chave da “fortuna literária”? Ao observar o título da Antologia – Billete de ida, bilhete de ida, tende-se a crer que sim: há uma carga literária, uma figura de linguagem que toma a parte pelo todo, bilhete como metáfora de viagem, a especificação “de ida” dramatizando o percurso que, sem volta, alude à vida terminada, à morte. No caso, uma vitória do homem sobre a ceifadora, porque o título garantiria a permanência do texto, se toda a questão se resumisse a isso. 15 “E não é acaso a literatura, entre muitas outras coisas, uma maneira de burlar a nauseante presença da morte, no empenho tão nobre quanto inútil de deter o tempo?” 52 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 O fator Xerazade [47-63] .................................................................................................. No entanto, um bom título não garante que a obra inteira tenha o alcance literário que essa primeira, ou última, escolha estabeleceria. O estatuto literário é o objetivo da antologia, cuja editoria, na contracapa, decididamente apresenta o autor como um escritor de muitos êxitos e grande público. (El sueño de África, Vagabundo en África, Corazón de Ulises). O editor ressalta a evolução do estilo da narrativa de viagem e o quanto jornalismo e literatura podem ser “os dois braços do mesmo Rio” de que falava Truman Capote. A contracapa de Billete de ida, anexo à revista Siete Leguas, um periódico destinado ao turismo, afirma que os êxitos do autor “no son fruto de la casualidad, sino que tienen detrás años de trabajo, de caminos recorridos por el ancho mundo y de honda experiencia narrativa”. 16 Sete Léguas é também um bom nome para uma publicação de fomento ao turismo, aponta para a imensidão de estradas a percorrer, lugares a visitar neste torturado planeta. Mas é a alusão à experiência narrativa que pretende estabelecer a ligação entre o jornalismo, no caso a reportagem, e a literatura ficcional, um âmbito da narração de histórias não necessariamente vividas, aliás, preferencialmente inventadas. O jornalista e seu editor parecem ignorar a distinção entre o simples narrador e o ficcionista por trás da estrutura narrativa literária. Pode-se vislumbrar aí o problema, na tênue fronteira entre a realidade e a imaginação. Para o editor de Billete de Ida, os elementos que constituem a maneira de narrar de Javier Reverte são o humor, a ternura, a sobriedade e a honestidade. Qualidades, sem dúvida, mas serão suficientes para a criação literária? Ler os textos, também denominados crônicas pelo próprio autor, é 16 “não são fruto da casualidade, mas resultam de anos de trabalho, de caminhos percorridos pelo mundo e de profunda experiência narrativa”. Itálico acrescentado. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 53 Alda Maria Quadros do Couto [47-63] .................................................................................................. descobrir os chavões que a mídia e a literatura consagraram: os ingleses consideram-se superiores ao resto da humanidade, os franceses são exímios vendedores de perfumes, no Uzbekistan é preciso ter três estômagos para agüentar a quantidade e a consistência da comida, ingleses e franceses odeiam-se… enfim quase nada de que já não se tenha ouvido falar exatamente dessa maneira. Há estrutura narrativa nos textos? Sim: mas as cenas são descritas em diálogos, nos quais aparecem os fatídicos verbos dicendi que tornam o texto jornalístico extremamente monótono e previsível. E aí pode estar o grande senão: a monotonia e a previsibilidade são incompatíveis com a boa literatura. De Capote a Xerazade17: os rios correm para o mar Em conseqüência, Doce-Linguagem e Luz-da-Religião viveram dias felizes, serenos, cheios de paz, até que os veio procurar Aquela que destrói o edifício dos prazeres e dispersa as assembléias. Que Alá nos seja favorável no dia desse encontro! (As mil e uma noites – As paixões viajantes) Uma cena descrita por um jornalista é previsível, factual; elaborada por um ficcionista, abre um leque de possibilidades significantes. Observe-se a estrutura narrativa e os recursos lingüísticos de duas pequenas passagens, Javier Reverte e Karen Blixten, respectivamente, em textos nos quais o narrador-protagonista refere-se a seu coadjuvante em uma cena de refeição: Me ofrece té, frutas, dulces, frutos secos y pan, ceremonia inevitable en cualquier entrevista que el extranjero celebra en Uzbekistán. Y entre té y té va transcurriendo la entrevista: “Los principios básicos de la sociedad socialista 17 Opto pela ortografia Xerazade, estabelecida pela edição consultada, em português, da Brasiliense, 1991. Sherezade, como aparece abaixo, consta na edição espanhola de Siete cuentos, utilizada neste estudo. 54 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 O fator Xerazade [47-63] .................................................................................................. son idénticos que los principios básicos del islam. De ahí nuestro entusiasmo en la actividad social” 18 (REVERTE, 2006, p.40). O texto trata do mundo real e o narrador é, sem dúvidas, o próprio autor no exercício de sua profissão - uma entrevista jornalística. O narrador não é constituído como um elemento interno da estrutura narrativa que o texto aparentemente tem, não há caráter ficcional, não foi criado pelo autor, é o próprio autor em sua experiência vivida. Esse traço é definitivo para desconfigurar o aporte literário do texto. A linguagem cuidada, na enumeração dos alimentos servidos e na metaforização espaço-temporal e hiperbólica do ato de beber muito chá – entre um chá e outro, como de minuto a minuto, de lugar a lugar, de assunto a assunto, um excesso de repetições e minúcias - não é suficiente para instaurar a literariedade. A fala aspada do interlocutor é referencial, ele existe e a questão sóciopolítico-religiosa do islamismo é local, datada e externa à estrutura do texto. Isto é, tudo, na cena, é particular e externo à elaboração ficcional e universalizante do texto literário. E nada surpreende o leitor, a não ser, talvez, uma ou outra informação que desconheça, mas que, a partir da primeira leitura, já fará parte do conhecimento que portará a respeito desse contexto. O discurso do jornalista contém a própria sentença de não-literariedade ao descrever a cerimônia da refeição como “inevitável”, o que estabelece, definitivamente, o óbvio incompatível com o estético-literário. O contraponto esclarece essa distinção em pormenores: Nathalie e yo nos dispusimos a cenar en la habitación templada y tranquila, con la grande y bulliciosa ciudad bajo nosotros. Estaban caídas las cortinas 18 “Me oferece chá, frutas, doces, frutos secos e pão, cerimônia inevitable em qualquer entrevista que o estrangeiro realiza em Uzbekistão. E entre chá e chá vai trancorrendo a entrevista: ‘Os princípios básicos da sociedade socialista são idênticos aos princípios básicos do Islam. Daí nosso entusiasmo pela atividade social.’” Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 55 Alda Maria Quadros do Couto [47-63] .................................................................................................. ocultándonos la noche lluviosa. Éramos como dos lechuzas dentro de una torre arruinada, en lo más espeso de la selva, y nadie en el mundo sabía nada de nosotros. Apoyó un brazo sobre la mesa y descansó su cabeza sobre él. Creo que tenía hambre. Al ver la comida que tenía preparada, caviar e carne de ave en frío, comenzó a mirarme con alegría, a sonreír, a hablarme y a escuchar lo que yo le decía 19 (BLIXTEN, 1999, p.80). A personagem-narrador-protagonista faz parte da estrutura interna dessa cena compartilhada com a mulher chamada Nathalie (reforço a ambigüidade não informando a que conto pertence o trecho, nem se a cena se passa entre um homem e uma mulher ou duas mulheres, prolongando a surpresa até que meu leitor encontre, ou relembre, o livro e nele, entre os sete contos, este – além de referenciar o pseudônimo masculino que a autora usou). A conquista da atenção e do interesse da interlocutora é apresentada nos detalhes gestuais que o narrador-persona capta e transmite ao leitor – a cabeça reclinada no braço, sobre a mesa, o olhar, o sorriso. Não diz que a atenção foi conquistada, sugere, indiretamente, que a situação lhe é favorável. Isso ocorre porque há outro narrador por detrás da cena, o autor implícito, outro elemento interno dessa estrutura narrativa literária, que não deve ser confundido com a pessoa do autor, (cf. TODOROV e DUCROT, 1972, p.308), que escreve o conto no plano externo. Esse narrador, em segundo plano, é o que realmente narra a cena entre as personagens-protagonistas, sendo uma delas alguém que narra os acontecimentos em primeira pessoa. 19 “Nathalie e eu nos dispusemos a cear no quarto fresco e tranqüilo, com a grande e buliçosa cidade abaixo de nós. As cortinas estavam cerradas, ocultando a noite chuvosa. Éramos como duas corujas dentro de uma torre em ruínas, na selva mais profunda, e ninguém no mundo sabia nada de nós. Apoiou um braço sobre a mesa e descansou a cabeça sobre ele. Creio que estava com fome. Ao ver a comida que eu tinha preparado, caviar e carne de ave frios, começou a olhar-me com alegria, a sorrir, a falar e a escutar o que eu lhe dizia.” 56 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 O fator Xerazade [47-63] .................................................................................................. Observa-se que nenhum sintagma empregado é dispensável para que o leitor se apodere da cena e perceba que há um “clima” de envolvimento entre as personagens. O construto eminentemente estético do discurso instala uma realidade que não existe fora da estrutura textual. A cena pode ser semelhante a outras, milhares, vividas por qualquer leitor, mas nenhuma terá sido essa cena, com cada um dos seus traços peculiares, que permanecem cristalizados quando o livro se fecha e a leitura cessa. Em literatura, o único elemento externo é o leitor e, mesmo ele, para realizar a leitura, internaliza-se, como uma espécie de voyeur consentido, necessário mesmo, para que a construção estética da narrativa se efetive. O espaço criado é ao mesmo tempo particular e universal, qualquer cidade movimentada, em qualquer noite chuvosa das quais os protagonistas se isolam pela simples presença das cortinas cerradas no interior de um ambiente cuja magia se instaura pela comparação inusitada: duas corujas isoladas do mundo em uma torre em ruínas, numa selva densa, e tudo isso sem ligação alguma com qualquer “alguém” – nadie – ninguém além das duas pessoas interessadas em conviver naquele momento. Em espanhol, que não é a língua em que o conto foi escrito, mas a da tradução aqui utilizada, coruja – lechuza – é uma palavra com carga conotativa de isolamento e solidão (equivale a buho,20 em português mocho, símbolo do misantropo, “indivíduo macambúzio”, o que vive só, escondido). Essa carga simbólica é extremamente significativa para o desenrolar da narração e para a culminância da trama, quando a personagem-protagonista descobrirá a extensão do isolamento que parecia tão promissor. 20 Devo a observação e a revisão das citações em língua espanhola a Pérez-Montoro. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 José Antonio 57 Alda Maria Quadros do Couto [47-63] .................................................................................................. A possibilidade de estabelecer uma verossimilhança a partir unicamente de nexos metafóricos construídos, de transmitir sabores e sensações que chegam tanto à sensibilidade quanto à razão de quem lê, constitui a esteticidade, a função poética 21 da linguagem que institui a categoria literária. Soledad Puértolas considera Karen Blixten uma “maga da narração (…) da linhagem de Xerazade”, das mil e uma noites de histórias e sobrevivência.22 As narrativas encadeadas, ou emolduradas, em que uma gera outras, são bem o protótipo da narração literária, cujo encantamento transcende o nível meramente referencial do texto. Um jornalista, por melhor executor que seja do texto escrito, não pode apostar na magia, sob pena de perder seu próprio estatuto factual, informativo. Um ficcionista, mesmo que atue nos termos do realismo, não poderá dispensar o imaginário simbólico que estabelece a condição literária. A valorização da estrutura interna do texto literário não significa que ele também não seja feito de idéias e histórias reais, um dado não exclui o outro. O que se trata de sublinhar aqui é a importância do construto simbólico como essência do texto literário em si. Considerações finais Então, bilhete de ida, sete léguas e inúmeros chás inevitáveis podem ser boas figuras, mas permanecem no circuito do lugar comum, enquanto sete contos góticos, uma classificação técnica dos textos reunidos, definem uma categoria desdobrável de sentidos dos quais depende a existência momentânea das personagens e da cena por elas vividas. Bilhete de ida, como título do livro, estabelece uma imagem de que se intui a volta, não mencionada, como uma outra situação, resultante da experiência da viagem. Ou não haverá volta, nos mesmos termos, já 21 A partir da perspectiva lingüística de Roman Jakobson. Prólogo, in BLIXEN, 1999. 22 58 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 O fator Xerazade [47-63] .................................................................................................. que a intenção é alcançar algum tipo de permanência que não transcende a condição humana, apenas “rouba algum tempo à morte”. A concepção da literatura, como, “entre muitas outras coisas, uma maneira de burlar a nauseante presença da morte, no empenho tão nobre quanto inútil de deter o tempo”, (REVERTE, 2006, p.19), acentua a preocupação com fatores e motivos externos, interesses contextuais e não imanentes ao texto produzido na contingência e na brevidade da notícia. Assim, podem-se rever os quatro pontos apontados acima como argumentos: 1 – A classificação de “gêneros” que destaca a “durabilidade” dos relatos de viagem apenas tangencia o que em literatura se constitui em grande e batido tema, fundamentalmente plurissignificado pela metáfora da passagem das várias fases da vida até a culminância da grande travessia - a morte. Quanto a esta insofismável luta pela eternidade, ou por uma existência mais longa, cabe lembrar que no periodismo espanhol a busca pela “perenidade” do literário parece bastante freqüente. A jornalista Rosa Montero, que também escreve romances,23 afirma, em um livro híbrido, entre autobiografia, ensaio e biografias romanceadas: “nós, narradores, somos pessoas mais obcecadas com a morte que a maioria; (…) percebemos a passagem do tempo com especial sensibilidade ou virulência, como se os segundos tiquetaqueassem de maneira ensurdecedora em nossos ouvidos” (MONTERO, 2004, p.10). A denominação de narrador, entre o jornalista e o ficcionista, pode ser um tópico interessante para a reflexão em torno das nuances dos 23 A conferir, em outra oportunidade, essa outra investida do jornalismo na direção da literatura, mais radical, que também tem ocorrido entre jornalistas brasileiros. A Autora também discute a classificação do jornalismo como gênero literário. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 59 Alda Maria Quadros do Couto [47-63] .................................................................................................. discursos jornalístico e literário, passando pela famosa abordagem de Walter Benjamin, impossível na circunstância restrita deste artigo. Por outro lado, Arthur Rimbaud estabeleceu uma fronteira intangível para qualquer linguagem referencial: “a eternidade está no encontro do sol com o mar”. 2 – O destaque do ato auto-fágico de escrever as próprias vísceras como fonte e moto-contínuo, situa o hibridismo entre jornalismo e literatura como mais uma “entredevoração” de modelos ou cânones, “formas de marronage a partir das quais o ‘modelo’ é freqüentemente transgredido” (BERND, 1992 , p. 84). 24 Os modelos jornalístico e literário tradicionais são então transgredidos pelo jornalismo literário. Até onde essa transgressão pode chegar? 3 – A fugacidade como característica do suporte e do próprio texto jornalístico pode ser amenizada pela publicação em livro, mas não é no meio que reside o status literário: o jornalista superará o destino do embrulho ou do fogo, mas seu texto não deixará de ser “datado” – essa lápide que sepulta qualquer aspiração literária. 4 – O envolvimento visceral e espiritual do jornalista com o mundo real em todas as suas dimensões pode ser, ao mesmo tempo, um dos seus grandes méritos e o maior impedimento para a autenticidade literária do seu texto. O descompasso do “braço jornalístico”, pelo menos no caso de Billete de ida, rio que corre para o mar, (se uma metáfora gasta pode ser esclarecedora) é bem caracterizado pela pueril alegria de apontar a rima entre aventura e literatura, rima infelizmente pobre, além do fato de que rimas não fazem parte da prosa narrativa, nem sequer da poesia moderna, que há muito tempo tem sua estrutura sonora estabelecida sobre o ritmo bem mais rico da acentuação tônica, de assonâncias, consonâncias e pontuação. 24 O termo é usado pela autora ao tratar da Antropofagia na formação da literatura brasileira. 60 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 O fator Xerazade [47-63] .................................................................................................. Já o fator Xerazade, aqui entendido como a trama narrativa em seus diversos níveis de narração combinados à maior intensidade da função poética, que culmina na metáfora mais significativa do tema – a solidão, a incomunicabilidade, no conto de Karen Blixten –, estabelece um dos obstáculos que o jornalismo teria que transpor para transformarse em literatura. Mas será esse o objetivo do texto jornalístico que se propõe a ultrapassar seus próprios limites? Os vários níveis de narração – do narrador ao autor –, no jornalismo, se caracterizam pelo extremo oposto do texto literário: a narração jornalística se dá sempre no plano da realidade referencial, isto é, o jornalista pode narrar o que sua fonte ou seu entrevistado lhe houver narrado. Qualquer terceiro nível de narração comprometerá a compreensão imediata do texto, este sim seu maior objetivo. Os níveis do discurso, ou do estilo, (cf. TODOROV e DUCROT, 1977, p.290), não explorados pela pequena análise dos dois trechos aqui apresentados, também são ilustrativos do que está aquém da literatura, na linguagem jornalística. No máximo, o jornalista usará o discurso direto e/ou indireto. O discurso indireto livre, que mescla ao discurso indireto, do narrador, tanto semântica quanto sintaticamente, propriedades da enunciação, quer dizer, do discurso da personagem, está fora de cogitação no jornalismo, pela condição sine qua non da compreensão imediata. O problema da legitimidade literária para o jornalismo se agrava, se lembrarmos que o estilo indireto livre é uma das principais características da linguagem literária pós-moderna, entendendo a designação apenas cronológica da produção literária do século vinte, a partir dos anos trinta. Da mesma forma, enquanto a comparação com “duas corujas” na “torre em ruínas”, na “selva profunda”, das quais “ninguém sabia nada” assinala os múltiplos significados que a cena relatada pode imprimir ao Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 61 Alda Maria Quadros do Couto [47-63] .................................................................................................. tema subjacente do texto literário, no caso o conto de Blixten, a mera enumeração “entre chá e chá” apenas insere o recurso da hipérbole, talvez alguma ironia, um arranjo de linguagem que não chega a instaurar a função estético-literária. A função estética é responsável pela discutida ambigüidade do texto literário, que Rosa Montero, apesar de considerar o jornalismo de articulista e repórter um gênero literário como outro qualquer, reconhece como um valor que antepõe jornalismo e literatura em extremos opostos (MONTERO, 2004, p.130). Apenas se deve questionar a anteposição entre clareza como valor jornalístico e ambigüidade como valor literário, porque ambigüidade, em literatura, significa plurissignificação, e não é sinônimo de confusão. Talvez seja mais correto entender que o texto jornalístico é claro e evita sugerir múltiplas interpretações, enquanto o texto literário tem na possibilidade de inúmeras interpretações a sua razão de ser. Ou seja, quem lê um texto literário não está em busca de exatidão, sabe que tem um encontro com o imaginário, enquanto um leitor de ensaios ou reportagens procura informação e opiniões. Em termos mais ou menos apaziguadores para esse conflito, cabe lembrar Roland Barthes, com a provocativa definição de texto de prazer e texto de fruição: o melhor jornalismo e a melhor literatura têm em comum a distância da euforia dada pelo texto que não contesta a cultura nem rompe as práticas confortáveis da leitura de quem prefere o prazer. Ao contrário, ambos apostam no risco da fruição: oferecem eficácia para crises de perda, desconforto, rupturas com as bases históricas, culturais, psicológicas, gostos, valores e recordações do leitor, além de sacudir o uso e a interpetação da própria linguagem (BARTHES, 1974, p.49). Há quem considere a questão jornalismo-literatura uma bobagem sem sentido, um “gênero” inexistente. Talvez se deva reconhecer o jornalismo literário exatamente como ele é, diferenciado, um texto que já não corresponde ao jornalismo diário, mas também não pode ser 62 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 O fator Xerazade [47-63] .................................................................................................. classificado como puramente literário. Do mesmo modo que a crônica já não é mais uma notícia, mas também não é um conto. Da habilidade lingüística de cada autor depende o teor, a carga literária que esses textos híbridos, geralmente muito agradáveis de ler, possam apresentar. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1974. BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS,1992. BLIXTEN, Karen. (Isak Dinesen) Siete cuentos góticos. Madrid: El mundo Unidad Editorial, 1999. KHAWAN, René R. (texto estabelecido); SILVA, Rolando R. da. (tradução). As mil e uma noites. 2 ed. S. Paulo: Brasiliense, 1991. MONTERO, Rosa. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. PUÉRTOLAS, Soledad. “Prólogo” in BLIXEN, Karen. (Isak Dinesen) Siete cuentos góticos. Madrid: El mundo Unidad Editorial, 1999. REVERTE, Javier. Billete de ida. Los mejores reportajes de un gran viajero. 2000. Madrid: Unidad Editorial para Revista Siete Leguas, 2006. TODOROV, Tzvetan. Crítica de la crítica. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós, Colección Surcos, 2005. TODOROV, Tzvetan; DUCROT, Oswald. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1977. Alda Maria Quadros do Couto é doutora em Teoria da Literatura pela UNICAMP, professora do Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS. Área do artigo: Literatura Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 63 Após-modernidadeeosestudosculturaisnaobrade RenatoRusso:umaleituradeperfeição WagnerCorsinoEnedino PauloNogueiradeSouzaJunior Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a letra da canção Perfeição, de Renato Russo, enfatizando o entrelaçamento entre projeto literário e projeto político, fazendo, assim, uma análise entre o período que a música foi composta com a atual conjuntura nacional. Ancora-se, esta análise, nas contribuições de Lagazzi (1988), sobre o modo como se organiza a questão do poder nos sujeitos enunciadores, nas observações de Escosteguy (2000), sobre como se articulam os mecanismos dos Estudos Culturais e suas relações com elementos que rediscutem e questionam a questão do cânone literário, e nos estudos desenvolvidos por Jameson (1997), sobre as estreitas relações pós-modernas com o espírito consumidor. O trabalho traz uma síntese histórica do desenvolvimento dos Estudos Culturais, bem como falar de Renato Russo e sua projeção na música brasileira e internacional. Os elementos que regem a pós-modernidade são fatores relevantes para a configuração de efeito de sentido em Perfeição. Constata-se que o poder, na sua forma de coerção, de que decorre a exploração dos grupos e indivíduos socialmente excluídos, subjaz como temática fundamental da obra, que insinua uma crítica à ordem estabelecida. Palavras-chave: Renato Russo. Estudos culturais. Pós-modernidade. Abstract: The objective of this work is to analyze the letter of the song Perfeição, of Renato Russo, emphasizing the interlacement between literary project and political project, doing, in that way, an analysis among the period in that the music was composed and the current national conjuncture. The analysis leans 65 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. on in the contributions of Lagazzi (1988), on the way as it is organized the subject of the power in the subjects enunciators, in the observations of Escosteguy (2000), on as they pronounce the mechanisms of the Cultural Studies and their relationships with elements that rediscuss and they question the subject of the literary canon, and in the studies developed by Jameson (1997), about the narrow post-modern relationships with the consuming spirit. The study brings a historical synthesis of the development of the Cultural Studies, as well as to speak of Renato Russo and his projection in the Brazilian and international music. The elements that govern to post-modernity are relevant factors for the configuration of sense effect in Perfeição. It is verified that the power, in its coercion form, that it elapses the exploration of the groups and individuals socially excluded, he shows as the fundamental theme of the literary work, it insinuates a critic to the established order. Keywords: Renato Russo. Cultural studies. Post-modernity. Ancorando-se nas contribuições de Lagazzi (1988), sobre o modo como se organiza a questão do poder nos sujeitos enunciadores, nas observações de Escosteguy (2000), sobre como se articulam os mecanismos dos Estudos Culturais e suas relações com elementos que rediscutem e questionam a questão do cânone literário, e nos estudos desenvolvidos por Jameson (1997), sobre as estreitas relações pósmodernas com o espírito consumidor, este estudo tem como objeto de análise a letra da canção Perfeição e busca enfatizar a dimensão universal ali explorada, evidenciando o entrelaçamento entre projeto literário e projeto político: um projeto artístico que quer falar às massas e formar consciências, dramatizando a vida dos que estão submetidos à condição de subemprego/ desemprego e ao poder dos exploradores. Importa ressaltar que o poder, na sua forma de coerção, subjaz como temática fundamental do trabalho, uma vez que, “Abordando as relações entre os indivíduos, podemos trazer 66 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. à tona o complexo sistema social, mostrando os modos de opressão que o constituem [...]” (LAGAZZI, 1988, p. 27). A carência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de Renato Russo parece ser decorrente de distintos fatores, entre os quais o falacioso argumento de que a obra do músico carioca seria de baixa qualidade estética. Esse “preconceito estético” pode ser, todavia, um artifício para mascarar preconceitos ideológicos de duas origens diversas: de um lado, o desconhecimento, pela academia, das matrizes sociais que alimentam o real significado da obra; de outro, o esquivar-se, intencionalmente ou por razões políticas, do universo histórico-cultural e ideológico do período em que os textos do autor foram produzidos. Isso não quer significar que a qualidade estética da produção de Renato Russo seja irrepreensível, ou que os estudos de sua obra devam priorizar o político em detrimento do literário, ou vice-versa. A obra de Renato Russo, centrada, geralmente, na denúncia da exploração capitalista e de sua ideologia, traz para a “arena da luta de classes” elementos de cunho social que procuram entender o processo em que estão envolvidos e lutam por sua superação. A opção por Perfeição não é, portanto, aleatória: o texto é constituído de significativas disposições políticas, marcadas pelo signo do poder. A obra, envolta num discurso contestatório, foi escrita sob a égide da contestação política, com a vertente artística de um trabalho que procurou provocar no público uma reação de inconformidade com o status quo a que determinadas populações são submetidas. Assim, este trabalho justifica-se porque se funda no estudo de problemas atuais, figurativizados em uma obra também atual e de temática universal, constituindo-se como uma aventura cognitiva que busca verificar como a realidade vivida foi (re)produzida para a composição ficcional (LEENHARDT e PESAVENTO, 1998), quais recursos Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 67 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. do poder criador do artista Renato Russo fizeram suas letras transformaremse em evocação de vidas humanas, com uma estrutura artística desenvolvida por meio de uma linguagem poética. Sem a pretensão de preencher todos os vazios do texto analisado, o trabalho remete, antes, ao aspecto provisório da leitura, configurandose como um primeiro passo em direção ao denso mundo representado por Renato Russo durante sua trajetória de criação artística, em cujos produtos fundem-se o local e o universal. Estudos culturais: uma breve introdução Para se ter uma dimensão sobre o que são os Estudos Culturais, é necessário fazer uma recuperação histórica do percurso dessa linha de pensamento desde a sua gênese até os nossos dias. Fazer um mapeamento pormenorizado da trajetória desse campo de estudo tornase algo dificultoso, levando em consideração as inúmeras contribuições teóricas que vem recebendo ao longo de sua existência. Torna-se necessário estabelecer um recorte para se ter a real noção da diversidade e da pluralidade dos Estudos Culturais. Estabelece-se aqui dentro dos limites e propósitos deste trabalho - a recuperação de pressupostos teóricos que nortearam o desenvolvimento das discussões sobre a relação cultura/comunicação de massa e, por conseguinte, os produtos da cultura popular. Os Estudos Culturais foram, originalmente, uma invenção britânica; atualmente, atingiram âmbito internacional, rompendo as fronteiras da Inglaterra e dos Estados Unidos para alcançar os mais variados territórios, desde a Austrália até a América Latina, o que não implica, todavia, um “corpo fixo de conceitos que possa ser transportado de um lugar para outro e que opere de forma similar em contextos nacionais diversos” (ESCOSTEGUY, 2000, p.136). Levando em consideração as peculiaridades históricas do contexto britânico, percebe-se a abrangência que o político exerceu sobre o meio 68 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. acadêmico, o que determinou as diretrizes teórico-políticas dos Estudos Culturais. Deve-se ter a clara consciência de que esse campo de estudo foi concebido, antes de mais nada, com a pretensão de estabelecer, do ponto de vista teórico, um projeto político, ou seja, a intenção era definitivamente construir um novo campo de pensamento, por meio da interdisciplinaridade como elemento fundamental para um aprofundamento analítico sobre questões de ordem político-cultural da sociedade. Do ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser enquadrados como um mecanismo de “correção política”, o que os aproxima dos inúmeros movimentos sociais que emergiam na época de seu surgimento. Ocorre que os mentores dessa área de pesquisa procuraram não difundir uma postura rígida e absoluta de sua proposta. Surge, então, em 1964, fundado por Richard Hoggart, o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), relacionado às mudanças de valores tradicionais da classe operária inglesa do pós-guerra. Esse centro de estudos surge ligado ao Departamento de Língua Inglesa da Universidade de Birmingham, para se constituir, depois, como centro de pós-graduação dessa mesma instituição, cujo principal foco de pesquisa são as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade. No final dos anos 1950 e início de 1960, as bases dos Estudos Culturais foram tratadas em três relevantes textos: The uses of literacy (1957), de Richard Hoggart, Culture and society (1958), de Raymond Willians, e The making of the english working-class (1963), de E.P. Thompson. A pesquisa realizada por Hoggart concede especial atenção aos materiais culturais ligados à cultura popular e dos mass media. Com esse trabalho, inicia-se um percurso de teorização sobre práticas de resistência e não tão somente de submissão do âmbito popular, o que mais tarde será alvo dos estudos dos meios massivos. Embora Hoggart traga novas contribuições teóricas sobre os Estudos Culturais, a sua visão recupera aspectos relacionados aos meios sociais, especialmente da classe trabalhadora. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 69 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. No que concerne à contribuição teórica de Raymond Willians (1958), é de fundamental relevância para os Estudos Culturais, uma vez que consegue discutir elementos da análise literária usando como pano de fundo a investigação social. Em The long revolution (1962), Willians traz à baila um intenso debate sobre o grandioso impacto que os veículos de comunicação de massa causam sobre as camadas populares, demonstrando com isso certo pessimismo em relação à própria existência da cultura popular, bem como aos meios de comunicação de massa. No que diz respeito à contribuição de Thompson, pode-se afirmar que seus estudos – amparados pela tradição marxista - exerceram influência sobre o desenvolvimento da história social britânica. Tanto para Willians quanto para Thompson, o papel da cultura está relacionado com um conjunto de práticas e relações em que o indivíduo desempenha papel principal. Ocorre que Thompson mantinha certa resistência para conceber a cultura como uma forma de vida global; na sua visão, a cultura deveria ser entendida como uma luta entre modos de vida diferentes. Outro teórico que ofereceu significativas contribuições na formação dos Estudos Culturais foi Stuart Hall, cujas pesquisas procuraram incentivar o desenvolvimento dos estudos etnográficos, bem como as análises dos meios de comunicação de massa e a investigação de atividades de resistência no âmbito das subculturas. Originalmente, os Estudos Culturais apareceram no cenário mundial com uma proposta de cunho mais político que propriamente analítico. Revestida de um viés marxista, a história dessa linha de pesquisa encontra-se relacionada com a trajetória da New Left, de determinados movimentos sociais (Worker’s Educational Association, Campaign for Nuclear Disarmament) e de publicações (como a New Left Review) que surgiram em torno de respostas políticas à esquerda. 70 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. Mais tarde, no período pós-68, os Estudos Culturais impulsionaram o pensamento intelectual de esquerda, proporcionando um grande impacto no âmbito teórico e político, e suas diretrizes ultrapassaram as fronteiras do espaço acadêmico, trazendo para a Inglaterra um forte compromisso de militância que visava a mudanças sociais radicais. Ao fim dos anos 1960, a atenção dos pesquisadores de Birmingham recai sobre a recepção e a densidade dos consumos midiáticos. Tal pensamento ganha notoriedade a partir da divulgação do texto Enconding and decoding in television discourse, de Stuart Hall, publicado em 1973. Por meio de noções relacionadas à concepção marxista sobre ideologia, Hall enfoca a pluralidade, socialmente determinada, das práticas que envolvem a recepção dos programas televisivos. Segundo Escosteguy (2000, p. 151), o autor argumenta: [...] podem ser identificadas três posições hipotéticas de interpretação da mensagem televisiva: uma posição “dominante” ou “preferencial”, quando o sentido da mensagem é decodificado segundo as referências da sua construção; uma posição “negociada”, quando o sentido da mensagem entra “em negociação” com as condições particulares dos receptores; e uma posição de “oposição”, quando o receptor entende a proposta dominante da mensagem, mas a interpreta segundo uma estrutura de referência alternativa. Durante os anos 1970, os Estudos Culturais se aproximaram dos Estudos Feministas, tendo como fundamento as relações entre sujeito, poder e dominação. Mais adiante, foram acrescidas à noção de gênero questões relacionadas à raça e à etnia. As pesquisas do Centro de Birmingham acerca de gênero começam a surgir em 1978, com a publicação de Womem take issue, de 1978. Charlotte Brundson, Marion Jordon, Dorothy Hobson, Christine Geraghty e Angela McRobbie são autoras que “revêem suposições do senso comum sobre os meios de comunicação reivindicando que a audiência, Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 71 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. no caso, feminina, tem autoridade sobre suas práticas de leitura” (ESCOSTEGUY, 2000, p. 152). Durante a década de 1980, eclodem estudos acerca dos meios de comunicação de massa, tendo como especial referência os programas televisivos. Ocorre, também, nessa esteira, um redimensionamento dos protocolos de investigação científica, fazendo surgir trabalhos de natureza etnográfica. É importante ressaltar que algumas das pesquisas dessa época concederam especial importância ao ambiente doméstico, bem como às relações familiares, para a formação de leituras diferenciadas. Para se ter uma dimensão das diferenças existentes no âmbito dos estudos sobre cultura entre as décadas de 1980 e 1990, é necessário considerar que, durante a primeira, existia uma compreensão das relações entre poder, ideologia e resistência, ao passo que, nos anos 1990, a preocupação em recuperar as “leituras negociadas” dos receptores viabilizaria a valorização da liberdade individual desse receptor e tornaria menos valorizados os efeitos da ordem social. Para alguns teóricos, os Estudos Culturais mudaram seu direcionamento ao longo de sua trajetória, como pode se exemplificado no conceito de “classe”, que deixou de ser o conceito crítico central. Concomitantemente, o centro das discussões passou a ser questões relacionadas à subjetividade e à identidade. Em síntese, os Estudos Culturais tiveram ampla contribuição social, à medida que trouxeram à tona questões relacionadas aos produtos advindos da cultura popular e dos mass media, que refletiam os rumos e diretrizes da sociedade contemporânea. Nesse momento, tentaram resgatar determinadas tradições teóricas de cunho sociológico, em detrimento do funcionalismo norte-americano, sob a alegação de que este não era suficientemente capaz de compreender as temáticas propostas. Com isso, a Inglaterra passou por um processo de recuperação de perspectivas como a fenomenologia, a etnometodologia e o interacionalismo simbólico. 72 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. Como o significado de cultura tornou-se algo bastante extenso, o foco viria a recair sobre toda a produção de sentido. Como ponto de partida, dedica-se especial atenção às estruturas sociais (de poder) e ao contexto histórico, considerados fatores determinantes para a compreensão da ação dos meios massivos, bem como o deslocamento do sentido de cultura, encravado no tradicionalismo elitista, para as práticas cotidianas. Os Estudos Culturais atribuem à cultura um papel que a esfera econômica não consegue explicar totalmente. O marxismo e os Estudos Culturais mantêm uma relação desenvolvida por meio da crítica ao reducionismo e ao economicismo, o que resulta num modo de contestação do modelo base-superestrutura. A visão marxista trouxe subsídios aos Estudos Culturais no sentido de compreender a cultura na sua “autonomia relativa”, ou seja, ela não mantém uma relação de dependência econômica, nem seu reflexo, porém tem influência sobre e sofre conseqüências das relações político-econômicas. Na esteira do pensamento de Althusser, a força econômica, a força política e a força cultural são concebidas como determinantes na composição da complexa unidade que é a sociedade. Outro fator relevante para este campo diz respeito ao conceito de ideologia proposto por Althusser: a ideologia é “provedora de estruturas de entendimento através das quais os homens interpretam, dão sentido, experienciam e ‘vivem’ as condições materiais nas quais eles próprios se encontram” (HALL, 1980 apud ESCOTEGUY, 2000, p.145-6). Nesse primeiro momento, as pesquisas em Estudos Culturais – ainda plenamente concentradas na perspectiva da Escola de Birmingham – restringiam-se às áreas das subculturas, das condutas desviantes, das sociabilidades operárias, da escola, da música e da linguagem: Discordando do entendimento dos meios de comunicação de massa como simples instrumentos de manipulação e controle da classe dirigente, os Estudos Culturais compreendem os produtos culturais como agentes da reprodução social, acentuando sua natureza complexa, dinâmica e ativa na construção da hegemonia (ESCOSTEGUY, 2000, p.146-7). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 73 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. De acordo com essa linha de raciocínio, as estruturas e os procedimentos por meio dos quais são estudados os meios de comunicação de massa ganham especial importância, uma vez que sustentam e reproduzem a estabilidade social e cultural. Isso não é realizado, todavia, dentro de um processo mecânico, mas no interior de um percurso que vai se adaptando às pressões e às contribuições que surgem dentro do universo social, de forma que se integre ao sistema cultural. Gramsci contribuiu de maneira significativa para uma maior compreensão dos processos de mudanças que podem ser construídos dentro do sistema. Sua teoria norteia-se pelas complexas relações que ocorrem entre as culturas populares e a cultura hegemônica. Nessa perspectiva, o que se pode evidenciar é que não existe um rígido confronto entre as diferentes culturas: Na prática, o que acontece é um sutil jogo de intercâmbios entre eles. Elas não são vistas como exteriores entre si, mas comportando cruzamentos, transações, intersecções. Em determinados momentos, a cultura popular resiste e impugna a cultura hegemônica; em outros, reproduz a concepção de mundo e de vida das classes hegemônicas (ESCOSTEGUY, 2000, p.147). No que diz respeito às linhas de pesquisa implementadas pelos Estudos Culturais, destaca-se aquela que prioriza as relações de consumo da comunicação de massa, sendo esta o lugar onde se realiza a negociação entre práticas comunicativas diferentes. De maneira geral, pode-se entender o Centro de Birmingham, desde a sua fundação até meados dos anos 1980, como um pólo de pesquisas que detém um grande número de teorias diversificadas, cuja atenção recai sobre as culturas de massa e culturas populares e que, mais tarde, trouxe para o centro das discussões questões relacionadas às identidades étnicas e sexuais, além de propagar estudos heterogêneos originados das inúmeras e diversificadas teorias que estudam os mais variados temas. 74 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. Com o surgimento de novos teóricos como Michel de Certeau, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, entre outros, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, os Estudos Culturais passam por um processo de internacionalização, tornando escassas as análises em que o fundamental são “luta” e “resistência”. Para alguns analistas, tal comportamento marca o início da despolitização dos Estudos Culturais. A partir dos anos 1990, nota-se, em determinados casos, uma fragmentação, inconsistência e trivialização desse campo de estudos, embora possam ser detectados aspectos consistentes na proposta de análise das nuances culturais que marcam a contemporaneidade. Nessa fase, os Estudos Culturais passam por um período de relaxamento quanto à sua vinculação política, e o pensamento que marcou o início dessa linha de pesquisa sobre o estudo de algo “novo” já não existe mais. Todavia, mesmo fragmentada, existe uma relação de continuidade. Torna-se importante avaliar que a relação cultura/comunicação de massa e as suas várias diretrizes, como os problemas das culturas populares também sofrem alterações na trajetória dos estudos Culturais. Tais questões são extremamente relevantes para se ter uma visão dos Estudos Culturais. Ocorre que existem outras diretrizes importantes no universo desse campo de estudo, como, por exemplo, a discussão da pós-modernidade, cujo enfoque recai sobre questões como a globalização, a influência das migrações e o papel do Estado, bem como a cultura nacional e suas repercussões sobre o processo de construção das identidades. Outro ponto relevante acerca dos Estudos Culturais está relacionado ao seu vínculo com o modo de vida globalizado, em que as diferenças aparecem de forma acentuada. Esse pensamento é avaliado por Cevasco (2003), ao apresentar a visão de Raymond Williams, cujos estudos estão centrados no percurso teórico nas práticas sociais concretas. Para o teórico, as idéias, as estruturas de sentimentos e as formações na linguagem estão relacionadas com uma determinada ordem social e se Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 75 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. reproduzem por meio de investigação histórico-literária, materializadas pelo estilo da escrita de cada autor, caracterizando uma profunda consciência política. Estudos culturais e cultura brasileira Classificar a cultura brasileira é algo muito difícil, uma vez que os aspectos que compõem a sua noção são contraditórios, revestidos de dinamismo e pluralidade. Conceituar de forma pormenorizada a questão da cultura nacional também é algo um tanto complexo, pois as respostas a questionamentos acerca da noção de “identidade brasileira” não terão univocidade, haja vista que a sociedade brasileira é composta por elementos contrastantes e conflituosos. Qualquer tentativa de se fazer um mapeamento dos caminhos que a cultura nacional trilhou entre os anos de 1950 e 1980, necessariamente, precisará recorrer a aspectos relacionados com as manifestações artísticas e culturais deste País, sobretudo o teatro, quer pela relevância dessa modalidade artística, quer pela contundência com que trabalhou elementos ligados à representação dos dilemas nacionais. Nesse período, o País passou por um forte processo de industrialização, o que trouxe subsídios para impulsionar o grande fenômeno sociocultural que ocorreu nos últimos trinta anos do século XX. Concomitantemente ao advento da moderna indústria cultural brasileira, o País enfrentou questões que influenciaram consideravelmente os discursos e ações de artistas e intelectuais que marcaram o ápice da cultura engajada, que buscava transmitir ao público uma representação aproximada de um país com seus conflitos e contradições. No entanto, as forças conservadoras (na maioria, ligadas à indústria cultural ou ao Estado) não ficaram impassíveis perante a cultura engajada e apresentaram rapidamente suas respostas e projetos para o Brasil. Nesse momento, o País passava por uma fase em que coexistiam elementos ligados ao âmbito rural e componentes cada vez mais urbanos e industrializados. No que diz respeito à cultura popular, esse processo de coexistência representou 76 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. um cruzamento de elementos de raízes folclóricas com elementos relacionados ao espaço urbano das novas massas de trabalho. Por conseguinte, a “cultura de elite”, envolta no tradicionalismo do século XX, também buscou mecanismos artístico-culturais modernos e cosmopolitas para o pleno desenvolvimento de seus interesses. É nesse segmento que o músico Renato Russo faz ecoar sua voz nos ouvidos das autoridades de um país mergulhado num obscuro regime de exclusão. Com letras que buscam transmitir ao público uma mensagem de contestação, Russo mantém um projeto estético ligado às minorias, àqueles que efetivamente estão à margem da sociedade, trazendo para o centro das discussões questões múltiplas como etnias, relações de poder e, especialmente, a política, fatores que favorecem o desenvolvimento dos Estudos Culturais. Considerando os Estudos Culturais como mecanismo de “correção política” próximo dos movimentos sociais que emergiam na época de seu surgimento, pode-se afirmar que uma análise da obra de Renato Russo à luz dessa nova “teoria” é mais que pertinente. Nesse sentido, as pesquisas em Estudos Culturais restringem-se às áreas das subculturas, das condutas desviantes, das sociabilidades operárias, da escola, da música e da linguagem: Discordando do entendimento dos meios de comunicação de massa como simples instrumentos de manipulação e controle da classe dirigente, os Estudos Culturais compreendem os produtos culturais como agentes da reprodução social, acentuando sua natureza complexa, dinâmica e ativa na construção da hegemonia (ESCOSTEGUY, 2000, p.146-7). De acordo com essa linha de raciocínio, as estruturas e os procedimentos por meio dos quais são estudados os meios de comunicação de massa ganham especial importância, uma vez que sustentam e reproduzem a estabilidade social e cultural. Isso não é realizado, todavia, dentro de um processo mecânico, mas no interior de um percurso que vai se adaptando às pressões e às contribuições que surgem dentro do universo social, de forma que se integre ao sistema cultural. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 77 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. Sob o signo da “perfeição” capital Renato Manfredine Junior nasceu no dia 27 de março de 1960, em Humaiatá, zona Sul do Rio de Janeiro. O autor passou por várias fases, que, mais tarde, seriam “carro chefe” para suas composições. Criou o nome artístico “Russo” inspirando-se num de seus pensadores favoritos, o inglês Bertrand Russell, e também no filósofo Jean-Jacques Rousseau, bem como no pintor primitivista Henri Rousseau. O artista escreveu muitas composições, dentre as quais inúmeros poemas líricos. Suas primeiras tentativas como escritor e compositor ocorreram na época da extinta banda Aborto Elétrico, em Brasília. Várias composições foram escritas na época e ainda permanecem inéditas; outras foram gravadas posteriormente pela Legião Urbana. Com o fim do Aborto Elétrico, Renato Russo passa a se apresentar sozinho como o Trovador Solitário e, mais tarde, juntamente com Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha, formou a banda Legião Urbana. Perfeição, letra escrita em 1993, num lapso de tensão política nacional, revela-se um objeto de análise bastante propício para mergulhar na problemática social que permeia o âmbito nacional: tematiza o momento histórico e insinua uma inserção nas discussões políticas do tempo. A nova arte política deve ater-se ao verdadeiro objeto do pósmodernismo – o espaço mundial do capital internacional – e buscar uma maneira de representá-lo, a fim de que entendamos nosso papel como sujeitos individuais e coletivos e recuperemos nossa capacidade de agir e lutar (no espaço e na escala social). Ambíguo, o título da letra suscita – antes da leitura da obra e de sua vinculação ao autor – a metáfora de um país mergulhado em incertezas e injustiças que irrompem a história do Brasil. Metaforicamente, remete-se a um “país das maravilhas”, com suas belezas naturais, com suas práticas futebolísticas e carnavalescas criadas a partir de uma visão internacional sob a égide do 78 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. capitalismo. Assim considerada, a obra parece aproximar-se da estética pósmoderna, uma vez que uma das funções da pós-modernidade é: [...] correlacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica – chamada freqüente e eufemisticamente de modernização, sociedade de consumo, sociedade dos mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional (JAMESON, 1997, p. 17). Nesse sentido, afirma Jameson (1997) que a produção estética pósmoderna está integrada à produção de mercadorias e que a nova cultura pós-moderna é americana, pois expressa a dominação militar e econômica dos Estados Unidos sobre o resto do mundo. Assim, o pós-modernismo não é, para ele, um estilo, mas uma dominante cultural: um todo em que coexistem várias características bem distintas entre si, mas que se subordinam umas às outras, de modo que também não se trata de uma ruptura com o modernismo. Também é interessante ressaltar que, atualmente, no estágio pósmoderno, as fronteiras entre arte e a vida são cada vez mais tênues. Os mecanismos que regem as diretrizes da pós-modernidade podem ser uma forma produtiva de se ver, descrever, compreender e interpretar o mundo por meio de diferentes manifestações culturais, como acontece, por exemplo, nas letras de Renato Russo, uma vez que o autor focaliza a organização dos espaços urbanos, suas fronteiras e formas de produção permeadas pela lógica do sistema capitalista. O título da composição abriga, ainda, um tom de ironia, pois segundo o dicionário Aurélio (1975, p.1068), a palavra Perfeição origina-se “do latim, perfectio, estado do que é correto, exato, impecável.” Ocorre que o sentido que fundamenta o texto é exatamente o oposto, uma vez que remete à noção de perfeição imperfeita, em que o jogo dos contrários inserido no título/texto traz para o ouvinte/leitor fundamentos da ordem de ser/parecer. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 79 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. Segundo Mora (2001), a palavra perfeição está relacionada a algo que é perfeito, “completado”, de tal modo que não lhe falte nada, mas tampouco nada lhe sobra para ser o que é. Nesse sentido, dizse que algo é perfeito quando é justo e exemplar. Essa idéia de perfeição inclui a idéia de “limitação”, e se o perfeito é algo “limitado”, tudo que for ilimitado será imperfeito. A idéia de perfeição teve considerável importância em toda a história do pensamento ocidental, sobretudo a partir do cristianismo, isto é, quando Deus foi concebido como modelo de perfeição. Somente Deus poderia ser considerado como o arquétipo de perfeição absoluta, cabendo ao restante uma perfeição relativa. Nessa perspectiva, Renato Russo parece encaminhar, com a obra, duas questões: o que somos? Que País é este? Por meio da primeira, parece propor a discussão da des-humanização do brasileiro submetido a um trabalho desqualificador “Nosso castelo de cartas marcadas/ O trabalho escravo e nosso pequeno universo”; com a segunda, traz para a cena os efeitos do sistema político-econômico do País, cuja gente “trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a nada”. Quando a letra Perfeição foi composta, em 1993, uma composição que pertence ao disco O descobrimento do Brasil, o País estava, ainda, sob os efeitos de uma grande turbulência política, provocada pelo rápido governo da chamada “Era Collor”. No entanto, desde a sua concepção até os dias de hoje, as realidades focalizadas na canção se mantêm atuais: Na eterna dialética entre ética pública e privada na vida e obra de Renato, O descobrimento do Brasil, trazia também um impressionante retrato do país, filme queimado e tudo. Pois o Brasil também havia conseguido sobreviver a Fernando Collor de Melo, apeado do poder a 29 de dezembro de 1992. O Brasil que sobrara para o vice-presidente Itamar Franco estava por inteiro na música Perfeição, incrivelmente amarga, mas no final das contas otimista. Ninguém era poupado (DAPIEVE, 2003, p. 141). 80 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. É necessário salientar que, mesmo em maior escala, a letra é permeada de aspectos negativos em relação à situação político-social do País, mas ao final denota um tom otimista: “Venha, o amor tem sempre a porta aberta/E vem chegando a primavera/Nosso futuro recomeça/ Venha, que o que vem é perfeição.” A letra enfoca, de forma cortante e irônica, os aspectos de um país naufragado em corrupção política e descaso social: “Vamos celebrar a estupidez humana/ A estupidez de todas as nações/ O meu país e sua corja de assassinos/ Covardes, estupradores e ladrões [...]/ Celebrar a juventude sem escolas/ As crianças mortas/ Celebrar nossa desunião”. Outra questão relevante no texto é quanto ao processo de alienação da população frente aos diversos problemas de ordem social, pois sob o ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser vistos como um sinônimo de “correção política”, podendo ser identificado como a política cultural dos vários movimentos sociais. Tal correção é apresentada pelo autor com nuances de crítica voraz e contundente: “Vamos comemorar como idiotas/ A cada fevereiro ou feriado [...].” É interessante frisar que Renato Russo traz para a sua composição aspectos referentes à mitologia greco-romana, como os deuses gregos citados na letra: “Vamos celebrar Eros e Thanatus/ Perséfone e Hades.” Perséfone, filha de Zeus e Deméter, casara com Hades e tornara-se a rainha dos mortos. Nesse aspecto, Eros está relacionado ao amor, o Deus que desperta paixões, Hades é o sombrio Deus do mundo subterrâneo e Thanatus, o mais ativo dos imortais. Em Perfeição, todos os aspectos apontam para o comportamento dos oprimidos em face do poder. Para o autor é necessário comemorar “Toda a hipocrisia e toda a afetação/ Todo o roubo e toda a indiferença [...] “A corrupção, a chantagem, a contravenção, que surgem pela voz cáustica do artista, desferem contra os mecanismos que regem o poder toda Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 81 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. inconformidade com o status quo e apresenta o Estado como símbolo da manutenção desse poder. Em consonância, a população mantém um quadro de conivência com o poder instituído: “Vamos celebrar epidemias/ É a festa da torcida campeã.” Acrescentada uma tentativa de discurso da união, o autor tenta buscar a adesão do enunciatário com uso de comprometimento “ideológico” que garanta o alcance do objeto: a união (ou o ajuntamento) poderia constituir um movimento consistente, capaz de exercer influência sobre a situação de exclusão e marginalização social, mas Renato Russo apresenta, de forma metafórica, a discussão de elementos de alienação por parte da população brasileira, representada pelos componentes da escala social dependentes de um mísero “salário”, os quais buscam, na televisão, um elemento de alienação social: “Vamos celebrar a estupidez do povo/ Nossa polícia e televisão/ Vamos celebrar o nosso governo/ E nosso estado que não é nação.” Por meio de uma linguagem ácida, o autor também faz alusão ao poder instituído do capitalismo, que explora sem nenhuma benevolência a mão-de-obra dos trabalhadores do País, o que resulta em descaso e completo abandono das autoridades, pois, segundo Russo, é preciso “Celebrar a juventude sem escolas/ As crianças mortas/ Celebrar nossa desunião.” Deve-se levar em consideração que o autor emprega, também, muitas vezes, o discurso do senso comum - graças à sua força argumentativa e ao fato de atingir o status de verdade, universalmente aceita, incontestável - para conseguir a adesão do seu interlocutor, porque: “Situar as grandes verdades acima de todos os sistemas, colocando-as como verdades do senso comum, possibilita que a reflexão não entre em choque com o poder vigente” (LAGAZZI, 1988, p.30). O discurso do senso comum vem ao encontro dos anseios do artista em atingir a grande massa da população: “Venha, meu coração está 82 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. com pressa/ Quando a esperança está dispersa/ Só a verdade me liberta/ Chega de maldade e ilusão.” Assim, o autor apresenta o discurso da descrença que, envolto num clima de constante exploração, perde qualquer sonho de mudança do status quo: “Vamos celebrar a fome/ Não ter a quem ouvir/ Não se ter a quem amar”. Com essa canção, Renato Russo, mais uma vez, direciona suas letras para dentro da realidade nacional. Uma realidade que remete os excluídos a uma reflexão sobre a sua real condição. Essa reflexão culmina na voz da juventude que tenta conseguir alcançar um futuro melhor. A função que a linguagem alcança no texto é fator determinante para estabelecer as relações de poder entre exploradores e explorados. A ideologia subjacente ao discurso do autor ganha dimensão por meio da linguagem porque, como afirma Lagazzi (1988, p. 26), “A linguagem é lugar de poder e de tensão, mas ela também nos oferece recursos para jogar com esse poder e essa tensão. O poder procura, no entanto, eliminar as possibilidades que a linguagem nos dá para fugir ao controle que ele quer absoluto”. Com efeito, Perfeição, de Renato Russo, traz para o centro das discussões, questões relacionadas ao processo de exclusão e alienação social, fazendo uso de uma linguagem ácida e contundente de um autor que esteve ao lado do rock brasileiro como um ícone de rebeldia e contestação, mas sempre com torneios estéticos relevantes. Considerações finais Em Perfeição, atrás das palavras que permeiam o texto, há a palavra, há as intenções e a história do autor. Um autor que concebeu o universo do rock’ n’ roll como um espaço que lhe permitiu tomar parte no debate político. Ao que parece, Renato Russo construiu a letra da Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 83 Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85] .................................................................................................. canção em torno de sua ideologia; sem perder sua identidade, o texto encarna seus princípios e concepções de mundo. Parece que, para o artista, o sofrimento e a dor causados pela alienação/exclusão vêm revelar-se como um novo padrão de música, porque a obra também aborda possibilidades de melhoria do País. A letra remete a seres envolvidos num clima de ameaça à segurança e à vida que se estende à comunidade e culmina no anseio lírico, que pode conduzir a população a participar efetivamente das questões de vertente social da sociedade. Num texto que parece dialogar com o jornalismo, como é o caso de Perfeição, encontra-se o retrato de um Brasil alienado e às vezes inenarrável pela grande imprensa, criando para o autor uma imagem que oscila entre aspectos positivos e aspectos negativos; entre o “belo” e o “feio”; entre o agradável e o desagradável. Assim, Renato Russo nunca esteve distante da desigualdade social; ao contrário, esteve sempre mergulhado na realidade, procurando cumprir um compromisso radical com os seres humanos que a sociedade deixa à margem. Com efeito, Perfeição teve a virtude de mostrar que a arte é social em dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação, e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. 84 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85] .................................................................................................. REFERÊNCIAS CEVASCO, M. E. Dez Lições Sobre Estudos Culturais. São Paulo: Boitempo, 2003. DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. 8 ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. ESCOSTEGUY, A. C. Estudos Culturais: uma introdução. In: SILVA, T. T. (Org.). O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.135-166. JAMESON, Fredric. A lógica cultural do capitalismo tardio. In: Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco; revisão da trad. Iná Camargo Costa. São Paulo: Ática, 1997. LAGAZZI, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988. LEENHARDT, Jacques e PESAVENTO, Sandra Jatahy (orgs.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. (Coleção Momento) MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. HOLANDA, Aurélio Buarque. Novo Dicionário Aurélio da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. Wagner Corsino Enedino é doutor em Letras pela UNESP, professor adjunto do Câmpus de Coxim e do Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Paulo Nogueira de Souza Junior é professor da rede pública estadual de ensino de Mato Grosso do Sul. Área do artigo: Literatura Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 85 Casamentoempapéis:JosédeAlencareMachadode Assis RaqueldeOliveiraFonseca Resumo: Análise do tema casamento em textos dramáticos de dois escritores, influenciados pela força da comédia realista: de um lado O demônio familiar de José de Alencar, aplaudido pela crítica; de outro, Lições de Botânica de Machado de Assis que não alcança o mesmo prestígio. O direcionamento dado ao tema, nos textos, nos conduz à distinta representação da naturalidade e o diverso tratamento à questão da moralidade tão caras no contexto. Palavras-chave: Texto dramático. Casamento. Moralidade. Crítica. Abstract: Analysis of the subject marrige in dramatic texts of two writes, influenced by the strenght of the realistic comedy: on a side, “O Dêmônio Familiar” from José de Alencar, applauded by the criticizers; on the other “Lições de Botânica” from Machado de Assis that does not achieve the same prestige. The given addressing to the subject, in the texts, drives us to distinct representation of the naturalness and the diverse handling to the question of the morality so expensive in the context. Keywords: Dramatic text. Marriage. Morality. Criticizes. 87 Raquel de Oliveira Fonseca [87-99] .................................................................................................. Em meados da décadas de 1850 e no decorrer da década de 1860, a comédia realista encontrou espaço favorável para seu aparecimento e desenvolvimento no cenário da dramaturgia brasileira. Com o apoio da crítica, contagiada pelo gênero em voga na França, O demônio familiar(1857), de José de Alencar, torna-se o texto a assumir a vanguarda do gênero entre nós. O próprio dramaturgo observa que recorreu a modelos franceses, em especial os textos de Dumas para a criação da obra e, enquanto folhetinista, pode dar o seu parecer a respeito dos elementos que julgava essenciais à comédia de costumes, gênero que considerava o mais importante da dramaturgia. As características que mais ressalta em seus comentários são a moralidade e a naturalidade que deveriam ser a linha mestra pela qual o dramaturgo dever-se ia orientar em sua criação. Por meio da moralidade, o artista desempenharia a sua função de educar; o teatro possibilitava mostrar os “vícios” que assomam à sociedade, como, também, orientar a platéia para os princípios que se julgasse adequados. A naturalidade, por sua vez, era responsável pela credibilidade do real que deveria ser despertada na platéia, ou seja, quanto mais o texto se aproximasse do real, mais o público poderia ver a si mesmo representado no palco. Por esses tempos, Machado de Assis, ainda bastante jovem, inicia a apresentação de suas primeiras críticas à literatura dramática brasileira. Concorda com a opinião vigente de que a comédia de costumes era o gênero ideal a ser seguido pelos dramaturgos, e observa que o texto dramático brasileiro merecia prioridade e o nosso teatro necessitava de apoio por parte do governo a fim de que pudesse desenvolver-se, dada a sua função civilizadora. Como crítico teatral, Machado mostra-se cada vez mais competente, o que não teria ocorrido em relação a sua tentativa como dramaturgo. A respeito de seus textos teatrais, entre os quais citamos: O caminho da porta, O protocolo, Tu só, tu puro amor, 88 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99] .................................................................................................. Lição de botânica, em carta a Quintino Bocaiúva, confessara que eram apenas parte de um caminho que pretendia trilhar a fim de chegar à alta comédia. Tal caminho, porém, não chegou a ser concluído. Quintino Bocaiúva, tomando por modelo a comédia realista, avalia com rigor excessivo os textos como “frios e insensíveis”. O fato é que o jovem escritor muda os planos e não mais escreve para o teatro. Cabem aqui as palavras de João Roberto Faria que a, esse respeito, observa: Esse julgamento um tanto peremptório selou o destino da obra dramática de Machado de Assis junto aos críticos e historiadores da nossa literatura, que não se cansaram de repeti-lo ao longo dos anos. Já é tempo de discordar desse julgamento, lembrando, por um lado, que algumas das comédias do nosso maior romancista já passaram pela prova do palco com sucesso... (2001) Por certo, uma leitura da obra dramática machadiana, despida de (pré)conceitos, deverá chegar a conclusão diversa. Dito isso, apresentamos nossa proposta de trabalho: a análise comparativa dos textos O demônio familiar e Lição de botânica, quanto ao tratamento que reservam ao tema do casamento. Como observamos acima, ambos os escritores são grandemente influenciados pela idéia da moralidade que deveria estar presente nos textos e, o casamento, instituição burguesa, é valor a ser preservado por essa sociedade. Enquanto a obra de José de Alencar é uma comédia realista, a obra dramática machadiana, conforme João Roberto Faria, filia-se à tradicional comédia de salão, ou provérbio dramático; de forma breve, elegante, sem vulgaridades ou comicidade farsesca; gênero marcado pela vivacidade de estilo e a espiritualidade. O demônio familiar pode ser considerado um texto teatral longo, possui quatro atos e várias personagens. Observa-se que o autor alcançou um retrato abrangente das situações que ocorriam no interior Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 89 Raquel de Oliveira Fonseca [87-99] .................................................................................................. das famílias, ao trazer para cena diferentes personagens, com posicionamentos singulares. A figura masculina, responsável pelo lar, é representada por Eduardo, filho da viúva D. Maria, dona da casa, e irmão da jovem Carlotinha. Soma-se a estas personagens femininas, Henriqueta, que deseja ser esposa de Eduardo. As demais personagens masculinas, amigos da família, com suas idéias distintas a respeito do casamento, enriquecem os diálogos do texto, permitindo que os ideais morais de Eduardo, que age como porta-voz da sociedade, sejam expostos mais enfaticamente. Destaca-se a personagem Pedro, escravo que tem a liberdade de conviver em meio à família, cuja presença traz para cena a intromissão dos mais contrários posicionamentos à ética e também à moral familiar, não apenas por meio de suas palavras, mas, sobretudo, por suas ações, estas responsáveis por imprimir ao texto os maiores conflitos. Iniciemos por Azevedo, uma das mais interessantes personagens; sendo brasileiro, ama Paris, acredita-se mais esperto, experiente, que os demais, visto que, sua estada em França, fê-lo mais maduro. Sua perspectiva em relação ao casamento está limitada a questões de interesse pelo status social, pela vida pública. Aspira a ser político e, para tanto, a companhia de uma esposa bonita é a certeza de ser melhor recebido na sociedade. AZEVEDO – Decerto!... Uma mulher é indispensável e uma mulher bonita!... É o meio pelo qual um homem se distingue no grand monde!... Um círculo de adoradores cerca imediatamente a senhora elegante, espirituosa, que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! ( ...) Ora como no matrimônio existe a comunhão de corpos e bens, os apaixonados da mulher tornam-se amigos do marido, e vice-versa; o triunfo que tem a beleza de uma, lança reflexo sobre a posição do outro. E assim consegue-se tudo! Azevedo torna-se noivo de Henriqueta em troca de uma dívida do pai da moça, mas com a convivência encanta-se pela espirituosidade e graça de 90 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99] .................................................................................................. Carlotinha, já que a noiva ama outro e não se importa em agradá-lo. Ele mostra-se ridículo pela maneira de falar que mistura palavras francesas ao português, como, também, por causa da supervalorização que faz de sua própria pessoa e que não recebe crédito das demais. O conceito de casamento, vivenciado pelo ridículo Azevedo, como instrumento que faculta a abertura das portas sociais é, de forma distinta, partilhado por Pedro. Este, visto como criança por Eduardo, arma todas as suas “peraltices” porque deseja ser escravo de um dono rico, que possa dar-lhe um outro ofício que julga mais importante, o de cocheiro. Somente com o casamento de Eduardo com a viúva rica, ou de Carlotinha com Azevedo, seu sonho de ascensão social poderia ser alcançado. Pedro não poupa esforços para alcançar seu objetivo e causa os maiores transtornos aos jovens; criativo, consegue enganar as pessoas fazendo-as acreditar em planos que arquiteta para unir os pares que julga válidos; suas ações estão sempre firmadas na crença de que o dinheiro e a posição social são a única maneira de trazer a felicidade a todos. Ele age de forma excessiva - enganando, mentindo - na consecução dos seus planos que julga corretos; essas “peraltices” do menino Pedro tornamno a figura do mal, visto como demônio que causa danos à família. Observa-se, no texto, que a ingenuidade pode ser a facilitadora de ações incorretas de uma pessoa. Eduardo, ao contrário, pela experiência de vida adquirida opta por ser uma pessoa moralmente correta. A sua idoneidade e inteireza de caráter, somadas à essa experiência torna-o o representante mais hábil da moralidade -” também fui levado pela imaginação que dourava esses prazeres efêmeros, (...) ensinaram-me a estimar aquilo que eu antes não sabia apreciar; fizeram-me voltar ao seio da família”; é ele o herói que livrará sua família e amigos do mal causado pelo ingênuo Pedro. Caracteriza-se, portanto, o texto, por um caráter maniqueísta. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 91 Raquel de Oliveira Fonseca [87-99] .................................................................................................. As personagens Alfredo e Eduardo são representantes de uma categoria de homens que prezam pela sua integridade moral e das pessoas com as quais convivem. Ambos desejam casar-se, formar família, com a jovem a quem escolheram por afeição. Alfredo ama Carolina e, para enamorá-la, acredita dever apropriar-se da forma usual de namoro na sociedade. Nisto diverge da postura de Eduardo que, como responsável pela irmã, surpreende a todos com uma visão diversa. Eduardo não obriga Alfredo à promessa antecipada de desposar Carolina, antes permite que freqüente sua casa, aproximando-se da moça; acredita que a moça deva conhecer o provável marido, pois a convivência, ante os olhos da família, pode fortalecer os laços de um sentimento verdadeiro ou desfazê-los, se o sentimento não for real. A educação que a moça recebeu da família é a fiança de que ela pode receber tal confiança. A credibilidade que a mulher recebe, no entanto, cessa aqui. Se as moças nesta sociedade são educadas antes para a sala que para a cozinha, fica claro também que não o são para o exterior da casa, para o salão. Antes, Eduardo, sente saudades de uma sociedade que priorizava os encontros no seio da família, os antigos serões. As mulheres são, portanto, ingênuas, não têm experiência como o homem, que conhece o mundo; cabe a este protegê-las e honrá-las sempre em suas ações. Eduardo – Ninguém conhece melhor o homem que ama, do que a própria mulher amada; mas para isso é preciso que o veja de perto, sem o falso brilho, sem as cores enganadoras que a imaginação empresta aos objetos desconhecidos e misteriosos. Numa carta apaixonada, numa entrevista alta noite, um desses nossos elegantes do Rio de Janeiro pode parecer como um herói de romance aos olhos de uma menina inxperiente; numa sala, conversando, são, quando muito, moços espirituosos ou frívolos. (...) 92 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99] .................................................................................................. D. Maria – Desculpa, Eduardo. Sou mulher, sou mãe, sei adorar meus filhos, viver para eles, mas não conheço o mundo como tu. Assustei-me vendo que um perigo ameaçava tua irmã; tuas palavras, porém, tranquilizam-me completamente. As moças, Carlotinha e Henriqueta, mostram-se inteligentes; em especial, a primeira é espirituosa, perspicaz, decerto porque seu irmão não é rígido quanto o pai da outra; entretanto, no relacionamento com o homem a quem amam costumam manifestar um comportamento infantil “Eduardo – Desejo que vejas de perto o homem que te interessa (...); Carlotinha (com arrufo) – Não quero!... Não gosto dele.” Ou, ainda, o comportamento é romântico, “Henriqueta – Creio que aos pés do altar, se ele me chamasse, eu ainda me voltaria para dizer-lhe, enquanto sou livre, que o amo e que só amarei a ele”. São submissas, acatando as decisões do chefe da família, como ocorre com Henriqueta que aceita ser tratada como objeto do qual o pai dispõe a fim de quitar uma dívida. Como temos observado, a liberdade que encontram as moças é bastante restrita, o trecho abaixo confirma isso, quando Eduardo pede a Henriqueta que espere porque ele tem os meios para que o noivado dela com Azevedo tenha fim: Henriqueta- Ah! Tem segredos para mim? Eduardo – É injusta fazendo-me esta exprobação, Henriqueta. Se não lhe falo francamente, é porque não desejo que partilhe, ainda mesmo em pensamento, os desgostos, as contrariedades que eu há um mês tenho sofrido para conseguir esse meio de que lhe falei. Henriqueta – mas Eduardo uma parte dessas contrariedades me pertence, e por dois títulos; porque se trata de mim, e porque... nos estimamos! Eduardo – Porque nos amamos: é verdade! Mas nessa partilha igual que fazem duas almas da sua dor e do seu prazer, há a diferença das forças. À mulher cabe a parte do consolo, ou da ternura; ao homem, a parte da coragem e do trabalho. (ato IV, cena II) As jovens não manifestam nenhum pensamento diferente com relação à perspectiva de vida, senão a de casarem-se, e a realização maior é Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 93 Raquel de Oliveira Fonseca [87-99] .................................................................................................. que possam fazê-lo com o homem amado. Essa perspectiva, comum às mulheres no século XIX, está presente também em Lições de botânica de Machado de Assis, publicado em 1906. O texto machadiano possui um único ato de quatorze cenas, e a presença de quatro personagens, sendo três mulheres e um cientista sueco, o Barão Segismundo. Este homem, numa postura radical (e cômica), decide desposar a ciência e não uma mulher. Vemo-lo abaixo, apresentando-se a D. Leonor: Barão – Sou o Barão, Segismundo de Kernoberg, seu vizinho, botânico de vocação, profissão e tradição, membro da Academia de Estocolmo, e comissionado pelo governo da Suécia para estudar a flora da América do Sul. V. Exª dispensa minha biografia? (D. Leonor faz gesto afirmativo) Direi somente que o tio de meu tio foi botânico, meu tio botânico, eu botânico e meu sobrinho há de ser. Todos somos botânicos de tios a sobrinhos. A leve intriga surge da decisão pelo celibato que o Barão decide impôr também a Henrique, o sobrinho que vive em sua companhia. Suas razões, em momento algum, desqualificam o casamento, tema que nem ao menos é levantado pelo Barão. A sua decisão está pautada no fato de que a ciência merece e exige dedicação exclusiva. É possível verificar, no texto, que o Barão realmente é apaixonado pela ciência; ele fala e age sempre em seu favor. Essa sua coerência, entretanto, não poderá ser mantida até o final do texto, quando decidirá por desposar a viúva Helena. Nesta obra machadiana, também as personagens femininas se revelam mais interessantes que as masculinas. São vizinhas do Barão: a tia, D. Leonor, e as sobrinhas, Helena e Cecília. Nesta casa, não há homens para responsabilizar-se pelas senhoras; na verdade, cada uma dessas mulheres tem um perfil diferente: a tia é a dona da casa, responsável pelas duas moças, ocupa, portanto, o 94 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99] .................................................................................................. lugar de um homem, se pensamos no texto de José de Alencar. È à D. Leonor que caberá a permissão de um provável namoro ou casamento das moças. Observa-se que entre a D. Leonor e a D. Maria, do texto anterior, a diferença é enorme. A personagem machadiana tem poder de decisão e desempenha seu papel com afinco, mostra-se aberta ao diálogo, tem senso de humor e sabedoria. Durante a visita do Barão às senhoras para pedir a D. Leonor que feche as portas de sua casa ao sobrinho, pode-se perceber a desenvoltura desta senhora. D. Leonor – ... Direi primeiramente que ignoro se há paixão da parte de seu sobrinho; em segundo lugar, perguntarei se na Suécia estes pedidos são usuais. Barão – Na geografia intelectual não há Suécia nem Brasil; os países são outros: astronomia, geologia, matemáticas; na botânica são obrigatórios. D. Leonor – Todavia, à força de andar com flores... deviam os botânicos trazê-las consigo. Barão – Ficam no gabinete. D. Leonor – Trazem os espinhos somente. Barão – V. Ex.ª tem espírito. Compreendo a afeição de Henrique a esta casa. Helena e Cecília, embora sob a responsabilidade da tia, têm postura e condição civil distinta. A primeira, que já passara pela experiência do casamento, revela-se uma mulher esperta, inteligente que sabe manipular as situações a fim de alcançar seus objetivos; ainda, mostra-se satisfeita com sua condição, pois revela que não está interessada em um novo casamento. Cecília, que ama Henrique, é uma jovem donzela ingênua, que conta com a irmã Helena para defendê-la. Sugere-se aqui que o casamento muda a mulher, tornando-a madura? Frente à oposição do Barão ao possível casamento de seu sobrinho e Cecília, atentemos para as reações das três mulheres. D. Leonor se aborrece com a falta de fineza do enfadonho Barão Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 95 Raquel de Oliveira Fonseca [87-99] .................................................................................................. e decide cumprir seu pedido à risca: fechar às portas a Henrique. “Perdôo-lhe em nome da ciência. Fique com suas ervas e não nos aborreça mais, nem ele nem o sobrinho(...) nem o criado nem o cão se o houver”. Ela não demonstra qualquer preocupação com os sentimentos que a jovem possua, esta deve sujeitar-se às circunstâncias, conformando-se com o fim do namoro; importa-lhe apenas o fato de que não haverá de faltar casamentos à sobrinha. Cecília, por sua vez, é tímida, não manifesta atitudes que possam mudar a situação que lhe atinge diretamente. Numa postura romântica, adverte que sem este amor morrerá. Sua única esperança é que a irmã interfira com suas idéias “Ah! Conspiram todos contra mim. Sou muito infeliz! Que mal fiz a essa gente? Helena, salva-me! Ou eu mato-me!” Helena, personagem mais complexa, reage enfrentando a situação; de início, já sugere a tia “Reconciliemo-nos com o Barão”. Como a sugestão não é aceita, ela busca meios de fazê-lo sozinha. O motivo para o enfrentamento fica claro no trecho abaixo quando responde à tia que exige o fim do namoro: D. Helena – Não é fácil. O Henrique é um perfeito cavalheiro; ambos são dignos um do outro. Por que razão impediremos que dous corações... D. Leonor – Não sei de corações, não hão de faltar casamentos a Cecília. D. Helena Certamente que não, mas os casamentos não se improvisam nem se projetam na cabeça; são atos do coração, que a Igreja santifica. Tentemos outra cousa. A bela Helena, fingindo interessar-se pela botânica, revela-se ardilosa na busca do consentimento do namoro da irmã, a ponto de mudar as convicções do Barão. Suas ações estão fundamentadas no respeito pelo interior do pessoa, pelos sentimentos; a existência do amor é o que justifica o seu empenho para que este casamento se realize. No diálogo com o Barão, a moça provoca o assunto casamento e, de início, parece aceitar a opinião dele. No desenrolar do diálogo, com 96 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99] .................................................................................................. argúcia, a moça faz calar o Barão, já bastante envolvido com sua prosa. Após comentar a respeito da surpreendente juventude do cientista, já que diz tê-lo imaginado um velho macilento, retorna ao tema do casamento sob o seu ponto de vista. D. Helena – Só uma coisa lhe acho inaceitável. (...)A teoria de que o amor e a ciência são incompatíveis.(...) Barão – Sabe que Mafona não permite o uso do vinho a seus sectários. Que fazem os turcos? Extraem o suco de uma planta... Esse licor se nós o bebêssemos, matar-nos-ia. O casamento para nós é o vinho turco. (...) D. Helena – Não fale assim. A esposa fortifica a alma do sábio. Deve ser um quadro delicioso para o homem que despende as suas horas na investigação da natureza, fazê-lo ao lado da mulher que o ampara e anima...O aplauso público e mais ruidoso, mas muito menos tocante que a aprovação doméstica Barão (depois de um instante de hesitação e luta) – Falemos da nossa lição. A surpresa do enredo é o surgimento de mais um casamento a se realizar. Vinte minutos de diálogo é suficiente para que a sábia Helena consiga a permissão do casamento de Cecília e Henrique como também a conversão do Barão, o abandono do celibato. A viúva já sentira que o Barão tinha-se afeiçoado a ela do mesmo modo que ela estava gostando de sua companhia; logo, ele dá mostra de sua fraqueza: “Há em mim alguma coisa mais do que eu mesmo. Há a poesia das afeições por baixo da prova científica...o que tem sido a minha vida? Um claustro.” No final, ela o ajuda no pedido que, para ele, parece difícil concluir. Barão – Minha senhora, atrevo-me a fazer outro pedido. D. Leonor – Ensinar botânica a Helena? Já me deu vinte e quatro horas para responder. Barão – Peço-lhe mais do que isso, V. Ex.ª que é, por assim dizer, irmã mais velha de sua sobrinha pode intervir junto dela para... D. Leonor – Para... Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 97 Raquel de Oliveira Fonseca [87-99] .................................................................................................. D Helena Acabo eu. O que o Sr. Barão deseja é a minha mão. Barão – Justamente! Observa-se, no texto de Machado de Assis, a prevalência da temática do casamento como resultado do sentimento. O Barão muda suas convicções porque se apaixona pela moça que se lhe apresenta bela e inteligente. Nem se cogita a possibilidade do casamento por razões monetárias; D. Leonor não dá importância aos sentimentos que Cecília possui, por certo, por acreditar que ela, sendo tão jovem, poderá amar outra pessoa cuja família a aceite. No texto alencariano, o tema do casamento passa por leituras distintas que, por vezes, se contradizem, enriquecendo o diálogo; outrossim, o texto machadiano parece-nos mais leve, ou seja, a questão da moralidade, tão valorizada pela crítica e escritores, pouco se manifesta no texto. Enquanto o primeiro se aprofunda no tema por meio da aproximação da realidade, o segundo consegue trazer ao centro da cena personagem incomum, Helena. Comparativamente, ambos os escritores, enquanto romancistas, são responsáveis pela criação de algumas das mais interessantes personagens femininas da literatura brasileira do século XIX. Não nos atendo a classificações de períodos literários, observa-se que as mulheres alencarianas, como Aurélia e Lucíola, embora essencialmente românticas, manifestam ações, atitudes inovadoras capazes de expor a instituição do casamento a situações não usuais. Enquanto, em José de Alencar, as personagens femininas constroem a sua própria história, como a genial Capitu, que nos lança sempre no insolável de suas intensões. 98 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99] .................................................................................................. REFERÊNCIAS ALENCAR, José de. O demônio familiar. ASSIS, Machado. Obra Completa. (org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.A, 1997 FARIA, João Roberto. Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2001 PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Editora Perspectiva. 1993. Raquel de Oliveira Fonseca é graduada e mestre em Letras pela UFMS, professora titular da UEMS. Área do artigo: Literatura Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 99 “Aescuridão”eensaiosobreacegueira-uma abordagemcomparativa RamiroGiroldo Resumo: Este artigo pretende discutir comparativamente o romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, e o conto “A Escuridão”, de André Carneiro. Ambos os textos, segundo uma lógica interpretativa, serão tomados como alegorias políticas distintas, apesar das semelhanças conceituais. A fim de alcançar uma nova compreensão dos textos, será útil discutir brevemente a ficção científica como gênero literário. Palavras-Chave: André Carneiro. José Saramago. Ficção científica. Abstract: This article intends to comparatively discuss the novel Ensaio sobre a cegueira, by José Saramago, and the short-story “A Escuridão”, by André Carneiro. Both texts, according to an interpretative logic, will be taken as different political allegories, despite the conceptual similarities. In order to achieve a new understanding of the texts, it will be useful to briefly discuss the science fiction as literary genre. Keswords: André Carneiro. José Saramago. Science fiction. 101 Ramiro Giroldo [101-107] .................................................................................................. Apesar do ponto de partida análogo, as obras literárias que aqui serão tratadas parecem apresentar marcas algo distintas. Pretende-se observar o tratamento na construção do texto em dois autores de expressões literárias diversas, cada um com escolhas que implicam em substanciais diferenças em suas obras. O objetivo aqui é alcançar, com um viés comparativista, uma nova percepção de “A escuridão”, de André Carneiro, e de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. O conto “A escuridão”, de André Carneiro foi, pela primeira vez, publicado no volume Diário da nave perdida, de 1963. No enredo, todo o planeta é engolido por uma profunda escuridão que a ciência é incapaz de explicar. Não apenas tudo escurece, como impede a combustão. Um grupo de cegos, acostumados que estão a viver sem a luz, tratam de abrigar e auxiliar o protagonista e alguns amigos. Na Chácara Modelo, resistem às adversidades, enquanto fora, ao que parece, tudo se deteriora. Por fim, a escuridão parte, mas é sugerido que a humanidade não será mais a mesma. No romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, uma epidemia de cegueira branca atinge a humanidade. Branca porque tudo que os atingidos enxergam é um grande clarão. Dentre as personagens, aquela que é referida apenas como “mulher do médico” não sucumbe ao mal branco. Durante toda a obra, ela será a testemunha e a guia dos que não vêem, presenciando todo o caos que é instaurado. Pelas autoridades, os cegos e os suspeitos de contaminação vão sendo confinados num manicômio. Quando o local é incendiado, eles precisam se adaptar à vida na cidade, até o dia em que, por fim, lhes retorna a visão. O universo ficcional de “A escuridão” e de Ensaio sobre a cegueira têm pontos em comum na formulação da verossimilhança. O elemento maravilhoso, em ambos os casos, apenas frustra as personagens que tentam lhe desvendar a explicação científica, mas o desvendamento não é um ponto central nas narrativas. É passada a impressão de que, a 102 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 “A escuridão” e ensaio sobre a cegueira [101-107] .................................................................................................. partir de dado momento, as personagens são forçadas a aceitar o mistério e apenas esperar que o fenômeno seja passageiro, impotentes que são para mudá-lo e para desvendá-lo. Mary Elizabeth Ginway já abordou esse aspecto de “A Escuridão”: A história certamente sofre de um alto grau de implausibilidade científica. Além do inexplicável desaparecimento e reaparecimento do sol, há o fato intrigante de que a Terra permanece quente durante o hiato de dezoito dias do sol. A tolerância desse alto grau de implausibilidade na ficção científica brasileira sublinha a de-ênfase na ciência, e o correspondente destaque dado aos temas humanistas (GINWAY, 2005, p. 243). Para que este texto possa se beneficiar plenamente das assertivas de Ginway, algumas considerações sobre o gênero em que ela coloca “A Escuridão” se fazem necessárias. Como o objetivo aqui não é propriamente discutir uma conceituação da ficção científica, cuidemos apenas de responder porque enquadrar o referido conto no gênero. Em seguida, poderemos definir se será proveitoso estender a classificação ao romance de Saramago. Ginway não parece compartilhar do ponto de vista exposto por Darko Suvin em seu trabalho Pour une poétique de la science-fiction. Para o teórico, a ficção científica, grosso modo, parte de uma hipótese fictícia (literária), e a desenvolve com rigor totalizante (científico). Rigor científico que, como já pudemos observar, falta ao conto em questão. Interessante notar que o pensamento teórico-crítico de André Carneiro, neste caso, se encontra em perfeita assonância com a noção de ciência expressa em “A Escuridão”: Torna-se difícil conciliar os termos ciência e ficção. Ciência é a forma de pesquisa e conhecimento que exige raciocínio preciso, dados exatos, onde a especulação sem base é praticamente impossível. Ficção é criada pela imaginação, suas fontes reais são elásticas, a coerência que dela se exige não é de ordem objetiva, diz mais respeito Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 103 Ramiro Giroldo [101-107] .................................................................................................. ao estilo, à qualidade literária, ao poder de emocionar o leitor, transmitir-lhe alguma coisa. (...) [A] ficção científica é contraditória, instável e mutável, como a própria época em que vivemos, onde as definições são necessariamente passageiras, relativas e enganadoras (CARNEIRO, 2004, pp. 1-2). Assim, ao chamar o conto de ficção científica, é preciso que se encare tal definição genérica como algo fugidio e provisório, nunca estanque e definitivo. Desta forma, alcançamos uma compreensão que nos permite enquadrar no gênero até um romance como Ensaio sobre a cegueira, que, à primeira vista, sequer dialoga com as convenções da ficção científica. Em “A escuridão”, é o fenômeno do título que força o homem a repensar seus valores. Logo no primeiro parágrafo, temos uma esclarecedora notação, que nos permite uma leitura alegórica do conto: Lembrou-se da revolução, na sua juventude. Algo que irrompe, à nossa revelia, e nos carrega para um destino que não escolhemos. Mas fora diferente a revolução. Tiros, bombardeios, mortes. Agora era um fenômeno estranho, é verdade, mas que não atingiria a altura de calamidade pública (CARNEIRO, 1963, p. 115). No trecho, a personagem se engana ao pensar que o fenômeno não originaria a calamidade pública e, talvez, se engane também em outro ponto: será a escuridão diferente da revolução? Se o narrador colocou, logo no início do conto, uma comparada à outra, talvez seja esta uma produtiva direção interpretativa. Numa marca fabular, o enredo de A escuridão é relativamente atemporal. As notações tecnológicas, por exemplo, são generalizantes – fala-se em automóveis e pseudoteorias astronômicas, mas não há dados que permitam relação direta com alguma época específica. Assim, também a referida revolução deve ser encarada em seu caráter universal, ou seja, não relacionada a um momento histórico específico, embora seja tentadora e válida uma relação com o que acontecia no Brasil nos anos 1960. 104 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 “A escuridão” e ensaio sobre a cegueira [101-107] .................................................................................................. O destino que a civilização não escolheu, mas é obrigada a seguir é a ascensão do excluído antes tratado com paternalismo: Aqueles mesmos homens de bengala branca e óculos escuros que perguntavam humildes qual o ônibus que vinha, ou se distanciavam devagar, atravessando os olhares piedosos dos passantes, eram agora rápidos, eficientes, milagrosos com sua habilidade manual. (...) Tornara-se de todo o mundo a desgraça particular deles. Alguns esqueciam-se, às vezes, que aqueles homens que contavam sua vida de um mês atrás no mundo das luzes e cores, tornavam-se inexperientes como criancinhas na negridão que eles dominavam. (...) Quanta piedade hipócrita e superficial teriam suportado com seus óculos escuros e bengalas brancas (CARNEIRO, 1963, p. 151). É a escuridão, assim, um fenômeno capaz de fornecer condições de vida iguais à “elite” (os de visão tida como perfeita) e aos excluídos (os cegos). Curiosamente, os, antes marginalizados, são justamente os que se saem melhor no mundo escuro; eles, afinal, estão melhor acostumados a condições adversas. Sugestivo é o nome do local em que se passa boa parte do conto: Chácara Modelo. A situação instaurada no local pela escuridão seria um exemplo, uma representação em pequena escala para lidar com o insólito, um “sistema de governo” fundado na mútua cooperação. Modelar, mas em outro sentido, é o lugar em que são confinados os cegos no romance de Saramago. A própria circunstância em que a reclusão acontece é diversa; as personagens estão lá em quarentena, guardadas por soldados prontos a matá-las caso desobedeçam às regras impostas. Submetidos a condições miseráveis e crescentemente degradantes, os cegos confinados despem-se de suas máscaras sociais, primeiro, e pessoais, por fim. Boa parte da perspectiva do romance nos é filtrada pela ótica da “mulher do médico”. Apenas ela, afinal, de fato presencia os que a cercam abandonarem preceitos e preconceitos do arruinado mundo “civilizado”. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 105 Ramiro Giroldo [101-107] .................................................................................................. Duas passagens assentam particularmente tais assertivas: “Provavelmente, só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são, disse o médico” (SARAMAGO, 2003, p. 128), e “A mulher do médico disse ao marido, O mundo está todo aqui dentro” (SARAMAGO, 2003, p. 102). Para Sandra Aparecida Ferreira, Ensaio sobre a cegueira (...) pode ser lido como um experimento em que Saramago se propõe a simular uma situação limite, na qual o ser humano se vê forçado a contemplar-se de frente, na sua inteira fragilidade e ferocidade, quando os dispositivos da civilização são abolidos (FERREIRA, 2006, p. 356). Um traço que distingue o ponto de partida tomado pelo romance Ensaio sobre a cegueira, do escolhido por Carneiro, é decisivo na definição dos caminhos que cada texto toma. Em Saramago, a cegueira é clara, é o mal branco. Uma escuridão paradoxalmente iluminadora, que revelará quem o homem é em seu âmago. Em Carneiro, o fenômeno que cega a todos tem outra carga, pois obriga o homem a abandonar o preconceito e a mesquinharia para sobreviver. A destruição dos dispositivos da civilização a que Ferreira se refere é, em “A Escuridão”, um fator benéfico, já que nos é sugerido que eles são os verdadeiros responsáveis pelas mazelas do ser humano. A escuridão traz consigo uma ironia: nela, o homem enxerga melhor o mundo. REFERÊNCIAS CARNEIRO, André. A escuridão. In: Diário da nave perdida. São Paulo: EdArt, 1963. _________________. Introdução ao estudo da “science fiction”. 2004. Texto mimeografado. FERREIRA, Sandra Aparecida. Formas híbridas de representação da barbárie em Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. In: Caderno de Resumos – 54º Seminário do GEL. São Paulo: Ferrari Editora e Artes Gráficas, 2006. 106 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 “A escuridão” e ensaio sobre a cegueira [101-107] .................................................................................................. GINWAY, Mary Elizabeth. Ficção Científica Brasileira. Tradução de Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Devir, 2005. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letra, 2003. SUVIN, Darko. Pour une poétique de la science-fiction. Québec: LesPresses de L’Université du Québec, 1977. Ramiro Giroldo é graduado em Letras pela UFMS. Atualmente, mestrando no Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS. Área do artigo: Literatura Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 107 AnarrativahíbridaemLavouraArcaica FlávioAdrianoNantesNunes EdgarCézarNolasco Resumo: O presente trabalho é parte de algumas reflexões acerca da dissertação que está sendo desenvolvida a partir do híbrido, em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Entender o gênero como uma forma “impura” é estar de acordo que no interior de uma narrativa pode haver várias formas literárias, portanto, a análise da narrativa híbrida nassariana demonstra os diferentes gêneros que perpassam por ela, construindo, assim, um texto híbrido por excelência. Palavras-chave: Gênero literário. Hibridismo das formas. Raduan Nassar. Abstract: The current work is part of some reflections about the dissertation that is being developed from the hybrid in Lavoura arcaica by Raduan Nassar. Understanding the gender as an “impure” form, is the same as greeing that within a narration may exist several literary forms, therefore, the analysis of “nassarian” hybrid narration shows the different gender that pass through it, thus building a hybrid text in excellence. Keywords: Literary gender; hybridism of forms; Raduan Nassar. 109 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. O presente artigo visa, a partir da leitura de Lavoura arcaica, analisar o hibridismo do gênero literário, e demonstrar o quanto ele se apresenta de forma fragmentada e diluída em outras formas literárias. Com base no conceito de fragmentação cultural, posto por Moser (1999), onde todas as culturas são formadas a partir de fragmentos culturais do passado, evidenciaremos como o gênero literário se fragmenta da mesma maneira que a esfera cultural de onde emerge. Estendendo esse conceito até à produção artística, podemos afirmar que, na literatura contemporânea, há fragmentação, atentando para o fato de que a linearidade existe também no Barroco, isso porque a produção literária é um constructo que emerge do interior de uma dada esfera cultural, também, fragmentada. Assim, se a cultura é fragmentada e, por extensão, a literatura, conseqüentemente, o gênero também o é. Trataremos, ainda, acerca dos outros textos que estão disseminados ao longo da narrativa nassariana, buscando uma dialética entre Lavoura arcaica e textos como a narrativa bíblica (“a parábola do filho pródigo”), Édipo rei e Electra. A partir da visualização desses textos literários, iremos analisar como as formas dessas narrativas operam na construção do romance de Nassar. Com o estudo do gênero e de seu caráter dinâmico, arriscar-nos-emos a afirmar que as formas literárias são cambiantes de tal forma que quanto mais houver produção literária, tanto mais haverá transformações do gênero. Na produção moderna e pós-moderna, inclui-se aqui a contemporânea, o trabalho artístico tem-se fundamentado por um constante re-fazer do que já foi posto. O pastiche, por exemplo, é uma maneira de recontextualizar histórico-culturalmente o que foi produzido no passado, portanto, com o gênero literário passa-se o mesmo, ao ser recuperado e re-contextualizado em outras épocas, sofre uma série de transformações. 110 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. A problemática acerca dos gêneros literários tem levantado uma série de discussões no tocante à sua sistematização, ou ainda, à incerteza que paira neste estudo. A falta de pureza nas formas literárias, a constante dinamicidade e as transformações pelas quais o gênero passa contribuem para o seu caráter incerto ou impreciso. Estes adjetivos postos não são depreciativos nem postulam uma falta de critério acerca da questão, são, antes, a representação de uma visão mais ampla e dialética, como veremos mais adiante. Para Mello (1998), o gênero, entendido como codificação de propriedades do discurso literário, sofre alterações ao longo da produção literária, ou seja, o gênero vai transformando-se de acordo com o contexto sócio-histórico, assim, a tipologia de um gênero de uma dada produção artística, a oitocentista, por exemplo, não é a mesma de uma produção contemporânea. Convém lembrar, entretanto, que, embora haja esse dinamismo para o gênero, ele também carrega uma carga tipológica universal, isto é, há rasgos que são comuns a determinados gêneros. Para melhor esclarecer, vejamos o que a autora diz, fazendo referência a Todorov: (...) a literatura situa-se do lado do género, da universalidade, do sistema; já as obras individuais colocam-se no plano da realização histórica dos géneros (1998, p. 37). Há, portanto, duas perspectivas para o estudo dos gêneros, uma universal, que trata dos caracteres genéricos de um dado gênero e, outra, individual, isto é, aquela que se presentifica no ato da produção artística. Uma não pode se desvincular da outra, pois a primeira é a que permite a existência dos gêneros literários e a segunda trata das transformações do gênero, pois, se assim não fosse, a forma do romance romântico, por exemplo, seria a mesma da produção literária de outras épocas. É importante lembrar, ainda citando Mello (1998), que, assim como a literatura, os gêneros também são um constructo que nascem a partir de uma dada esfera cultural e, Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 111 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. (...) através da conjunção de perspectivas da teoria do texto e da enunciação, esboçam-se, nos últimos anos (desde a década de 70), uma teorização semiótica dos géneros que, tendo em conta a natureza pragmática da literatura, privilegia cada vez mais os contextos de produção e recepção dos textos literários (p. 38). A partir da idéia da produção literária, num dado contexto sociocultural, podemos afirmar que o texto literário realista tem forma diferente na produção literária contemporânea, embora, na contemporaneidade, haja obras com características realistas. Com relação à recepção dos textos literários, o gênero fica a critério do leitor, que aciona, por intermédio da leitura, a dialética entre os diversos textos que configuram seu próprio acervo de leitura. Em outras palavras, o leitor relaciona um texto que possua um determinado gênero literário com outro que possua gênero distinto, trazendo para dentro da obra mais de um gênero, construindo, dessa forma, o hibridismo de gênero. Isso nos permite pressupor que não há um gênero puro para a obra literária; assim, nosso ensaio visa demonstrar o hibridismo de gêneros na narrativa de Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, evidenciando algumas obras que dialogam com a narrativa nassariana, ratificando seu caráter palimpséstico. Seldmayer (1997) afirma que, como a Bíblia, (...) Lavoura arcaica é um palimpsesto. Encontramos, nessa narrativa, rastros de palavras que também foram escritas sob outras palavras. Em alguns momentos reconhecemos versos inteiros, principalmente dos poetas nacionais que tinham como proposta “restaurar a poesia em Cristo”, como, por exemplo, Jorge de Lima e Murilo Mendes; em outras passagens são os Evangelhos que inundam a narrativa e que, misturados a contos árabes, tais os de As mil e uma noites, formam um texto-tecido, um amontoado de lembranças literárias que compartilham entre si a tarefa de falar de um real indizível (1997, p. 20). A partir dessa citação, podemos extrair elementos que se relacionam com a questão dos gêneros, embora haja uma série de textos (que serão 112 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. retomados mais adiante, na análise da obra literária em questão), como, poesia, narrativas e contos, que demonstram seu caráter palimpséstico e evidenciam a presença de outros textos. Tal análise vem confirmar o caráter “impuro” da narrativa com relação ao gênero, assim, a intertextualidade, por meio da recepção, demonstra a presença de outros textos e, conseqüentemente, de outros gêneros em um determinado texto literário. O hibridismo de gêneros evidencia a necessidade de atualização de determinadas formas literárias, pois, tal (...) como as formas básicas do agir humano podem ocorrer em simultâneo num mesmo momento e situação, também as formas naturais da literatura podem manifestar-se numa mesma obra. Assim, numa obra em que dominem traços da forma épica, não se exclui, em teoria, a presença de elementos de outras formas (MELLO, 1998, p. 40). Observando-se essa citação, percebemos claramente o hibridismo e a atualização”recuperação de um determinado gênero na produção artística literária. Mello (1998) nos lembra, ainda, que a imitação dos gêneros também é uma forma de ativar seu dinamismo, levando em consideração que, a cada época e”ou contexto sócio-cultural, um determinado gênero sofre transformações. Assim, mesmo que um gênero seja imitado, sempre vai apresentar modificações, pois o elemento a ser imitado pertence a uma época cultural diferente daquela da “imitação”. Para a autora, caracterizando-se (...) o sistema literário do Classicismo pela imitação dos modelos da Antigüidade greco-clássica (de que Homero, na épica, e Sófocoles e Eurípedes, na tragédia, são referências emblemáticas), as poéticas clássicas que os divulgaram constituíram condicionamentos da sua prática e metalinguagem literárias. No entanto, neste período de imitação dos modelos greco-clássicos, as formas literárias não se mantiveram estagnadas, processando-se a evolução de acordo com a transformação de elementos particulares (p. 70). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 113 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. Ressalta-se, aqui, o constante dinamismo dos gêneros literários e como eles se modificam, mesmo quando imitados, para serem atualizados em outros contextos. Essa questão, voltada ao nosso objeto de investigação, indica que a narrativa nassariana tem caráter híbrido que resgata outros gêneros, como, a poesia e as formas variadas do gênero narrativo, tais como: os contos d’As mil e uma noites e algumas narrativas bíblicas. Entretanto, tais gêneros, ao serem atualizados por Raduan Nassar, em Lavoura arcaica, passam por transformações, o que, talvez, nos permita afirmar que, a cada obra, excetuando determinados rasgos genéricos, o gênero literário passa por alterações. Em outras palavras, enquanto houver produção literária, haverá, também, mobilizações no tocante ao gênero. É conveniente lembrar, com relação à questão das transformações dos gêneros, que foi a partir do Modernismo e do pós-modernismo (inclui-se a literatura contemporânea) que houve um acentuado rompimento das regras impostas para a criação artística que visava ao gênero estanque. Os gêneros passaram, então, a ser realizados em profunda liberdade. Nesse sentido, Mello afirma que as poéticas da modernidade, na esteira do Romantismo, orientam a realização dos géneros na prática literária de um modo distinto do sistema literário e, também, que (...) as transformações que os gêneros sofrem contribuem para o surgimento de novas poéticas (1998, p. 72). Assim, a realização do gênero se dá na prática do fazer artístico e suas transformações podem fazer surgir outros tipos de gênero. Voltando à questão do surgimento do gênero como um construto que emerge de um determinado contexto cultural, podemos afirmar que o constructo artístico é uma extensão do homem, pois nele estão guardadas as marcas culturais, idiossincráticas, além das pessoais, ou seja, (...) as marcas do social e da fragmentação do sujeito inscrevem-se na obra literária, nela se expondo uma dissolução do sujeito numa imagem, elaborada 114 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. como que em espelho, da ‘literatura como autocrítica’ e da ‘crítica como literatura (MELLO, p.77). Lavoura arcaica é uma produção contemporânea, uma narrativa fragmentada, sem linearidade e com ecos de gêneros literários distintos perpassados ao longo do texto. Não queremos dizer que a forma fragmentada do texto literário faz parte somente da contemporaneidade, faz parte, ainda, do Romantismo, onde os estudos da mistura dos gêneros (“impuros”) foram iniciados, como afirma Moisés (1997, p. 243). Também o Barroco tem uma tipologia extremamente fragmentada e sem linearidade. Assim, a fragmentação das formas, tão utilizada pela produção contemporânea, vem sendo recuperada faz algum tempo. O termo fragmentação nos faculta levantar uma discussão sobre as ruínas, pois a fragmentação só passa a existir quando um objeto, idéias ou fenômenos se ruem. Pode-se pensar, então, que as culturas anteriores todas são ruínas ou, ainda, passaram por um processo que as tornam escombros. Assim, seguindo esse processo inerente às culturas, o que se vive atualmente, ou seja, a época contemporânea, também, no futuro, tornar-se-á escombro cultural, ou apenas fragmentos cristalizados na memória cultural que se transformaram em imagens. O que a história possui, então, enquanto acervo cultural, são fragmentos de diversas culturas que foram sendo empilhados ao longo dos séculos. Para Moser, fenomenalmente, a cultura (...) se elabora num campo de restos, de fragmentos, de escombros, de ruínas, até mesmo de dejetos. Destruídas e decaídas, as culturas do passado estão, entretanto, materialmente presentes sob a forma de destroços que irrompem no presente, que se impõem à paisagem cultural contemporânea. Esses destroços são inúmeros e estão em toda parte. O presente é percebido como a descarga das culturas do passado. O espaço cultural é um campo de escombros (1999: p. 39). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 115 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. Conforme a citação do texto de Moser, a cultura tem um caráter extremamente fragmentário porque se forma a partir de ruínas, dejetos, fragmentos de culturas anteriores que passaram pelo processo de degradação. O rasgo híbrido que as culturas atuais possuem deve-se, portanto, à fragmentação de diversas culturas do passado que se fixou nas do presente. Ainda na esteira de Moser (1999), os diversos destroços, ou ainda, o empilhamento de elementos culturais heterogêneos fazem com que haja um esgotamento cultural, uma saturação de objetos culturais deixados, como legado, pelos produtores de diversas culturas para as gerações do presente. Para os que vivem no contexto da contemporaneidade, há duas possibilidades de manejo com os fragmentos culturais, uma negativa e outra positiva. Na primeira, o agente que lança mão dos elementos culturais para desenvolver uma produção qualquer (o trabalho artístico literário, por exemplo) não consegue levar a termo seu intento de produção, por acreditar que o excesso de elementos já existentes impede, ou melhor, impossibilita o ato criativo inédito. Os artistas contemporâneos se encontram imersos nessa situação cultural, em que a produção artística já se esgotou (tudo já foi feito). Todavia, o fato de o artista estar vivendo tal época, não implica que ele não consiga vencer a exaustão cultural e de produção, pois, se assim não fosse, a produção contemporânea estaria fadada ao fracasso. Na atitude positiva, porém, o excesso de objetos culturais é visto como um tesouro que pode ser aproveitado no ato criador. Assim, o escritor, por exemplo, tem à sua disposição uma série de materiais que o auxiliam a construir seu objeto. Portanto, o artista que detém uma visão positiva acerca do acúmulo de objetos culturais heterogêneos não entende esse excesso como um obstáculo, mas, antes, como elementos disponíveis para o fazer artístico. Ele [o criador] deve, tão somente, estar disposto a criar em cima de objetos culturais já postos em vigência, visto a 116 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. (...) densidade de materiais culturais que o envolve pode então ser vista como uma riqueza que lhe é oferecida, e que pode aproveitar enquanto criador. Isso com a condição de que ele aceite a partir de uma mesa cultural já posta e onde reina a abundância. Com a condição de que ele aceite trabalhar com os materiais que já estão ali (MOSER, 1999, p. 39-40). Evidencia-se, aqui, a posição do autor com relação ao trabalho que o artista desempenha em recuperar os elementos de épocas anteriores já postos em vigência, construindo outros elementos “novos”. Nesse sentido, Menegazzo (2004) dispõe que a produção artística contemporânea não tem menos força criativa que um Picasso ou um Proust, pelo fato de não haver condições para uma criação que comporte “novos” estilos. No entanto, o pastiche – como recuperação de produções anteriores – não é uma mera cópia de modelos já postos, mas uma maneira de recontextualizar tais modelos, dando, portanto, ao objeto “pastichado”, uma nova perspectiva. Na esteira do pensamento de Menegazzo, podemos afirmar que a produção contemporânea forma-se a partir de fragmentos, restos, entulhos de modelos criados anteriormente. Tal prática não desqualifica a produção contemporânea, pelo contrário, ela a ressalta, pois é, sobretudo, na contemporaneidade que os produtores do fazer artístico aceitam criar, a partir do acúmulo, o empilhamento de objetos culturais heterogêneos postos em vigência nas sociedades. Menegazzo (2004) refere que, Na América Latina e, particularmente, no Brasil, as formas pós-modernistas de fragmentação, heterogeneidade, descentramento, paródia, etc., podem ser concretamente encontradas nas artes, sem que isso signifique cópia ou acomodação a um “modelo” internacional de pós-modernismo. No entanto, é muito mais eficaz ressaltar que o pós-modernismo possibilitou avanços na discussão do multiculturalismo, da diferença e do descentramento, do que se fazer um mero levantamento de autores e obras pós-modernistas (2004, p. 34-35). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 117 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. No entender de Menegazzo, a recuperação ou re-contextualização das formas é bastante vigente nas produções pós-modernistas (entendase contemporânea), em que os artistas recuperam objetos para suas produções paródicas. Ademais, tal prática contribuiu para o avanço de discussões acerca das diversas culturas: o multiculturalismo e, conseqüentemente, a heterogeneidade ou hibridismo de diversos fragmentos culturais guardados em uma dada esfera social. A produção artística, a partir de destroços e fragmentos, pode ser considerada “nova” pelo fato de haver emergido após algo que a precedeu. Para Moser (1999, p. 44), o chegar-depois, ou o estaraí-depois é o núcleo de sua temporalidade. O tempo, ou melhor, a época, o contexto sócio-cultural, tem um elo com a produção artística. Se os objetos culturais da contemporaneidade se formaram a partir de fragmentos advindos do passado, formando o “novo”, é-nos permitido afirmar que a produção de nossa época um dia irá fragmentar-se e servirá, portanto, como objeto para uma nova produção, uma posterior à nossa. O ‘vir-depois’, então, se traduz num ‘ser-tarde’ que designa mais uma condição ôntica, uma maneira de ser no tempo, do que uma relação de sucessão (MOSER, 1999, p. 45). O “ser-tarde” é uma condição, ou ainda, essência, da produção atual, pois constrói-se a partir de objetos culturais já existentes, entretanto, o artista recupera esses objetos, os re-contextualiza e eles ganham uma perspectiva do “novo”. Conclui-se que não há uma sucessão de inúmeros projetos literários, mas uma produção que emerge a partir de uma série de objetos, entulhos, culturais já existentes. Assim, ainda citando Moser (1999, p. 46), o ‘ser-tarde’ faz parte intrinsecamente das características do poeta moderno. Generalizando, poder-se-ia dizer que faz (...) parte das condições da modernidade em todo o domínio da produção cultural. O poeta moderno, por definição, é aquele que (chegou) tarde (...) Dessa maneira, “Sertarde” é um rasgo do artista contemporâneo. 118 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. Com relação ao nosso objeto de análise, o que dizer de Lavoura arcaica, um romance, uma prosa poética, um romance lírico? Não temos uma resposta objetiva ou fixa, mas isso não nos parece um problema, pois, como já vimos em Massaud Moisés (1997), o gênero deixou de ser considerado uma instituição pura, ganhando, pois, o estatuto de “impuro” desde o Romantismo. Segundo Rodrigues (2006), Lavoura Arcaica não é um romance tradicional, alheio a seu tempo. Trata-se de uma obra que, sem deixar de ser prosa, é lírica e trágica ao mesmo tempo, como é ao mesmo tempo una e fragmentária, circular e espiral, mítica e histórica, o que me parece mais moderno que muita literatura que assim se proclama. O que caracteriza a obra de Raduan Nassar é a recusa de toda e qualquer fórmula e a utilização de tudo o que lhe pareceu útil aos seus objetivos (2006, p. 155). Conforme citação de Rodrigues (2006), em Ritos da paixão em Lavoura arcaica, percebe-se o caráter “movediço” ou instável na tentativa de enquadrar a narrativa nassariana dentro de uma forma. Entretanto, arriscamo-nos a caracterizá-lo como romance, mesmo havendo uma série de elementos dispostos de maneira fragmentada no texto, que pertencem a outros gêneros literários. Já, para Sedlmayer (1997), Lavoura arcaica, apesar dos diversos textos alheios, é um romance que percorre um caminho singular na literatura brasileira, pois em qualquer tentativa de contextualizá-lo fica clara sua condição solitária. Tampouco quando se procuram parentescos, os laços entre eles são rígidos, pois quando a narrativa nassariana se aproxima, por exemplo, da narrativa bíblica, o faz de uma maneira oposta, ou, como sugere Perrone-Moisés (1996), Lavoura arcaica (...) é uma versão moderna da parábola do filho pródigo (p. 62). Ou, ainda, (...) o romance todo é uma versão negra da parábola do filho pródigo, sem final feliz (p. 66). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 119 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. Com relação à poesia disposta na narrativa, comecemos pela imagem que emerge a partir do texto poético. Ela nasce da articulação dos fonemas, palavras e frases. Nesse sentido, a imagem, no poema, como bem afirma Bosi (2000), é uma palavra articulada, assim, o texto literário, construído a partir da articulação das palavras, proporciona ao leitor, entre outras coisas, a possibilidade de criar imagens mentais. Ainda que a criação das imagens, a partir do poema, fique a cargo do leitor, cabe ao artista o trabalho com as palavras (fazer artístico) para que as imagens possam emergir a partir dessa articulação. De acordo com Bosi (2000), a realidade da imagem está no ícone. A verdadeira imagem está no símbolo verbal (...) Para o autor, a palavra criativa busca, de fato, alcançar o coração da figura no relâmpago do instante (p. 46). Assim, a imagem se aloja na palavra (ícone) e, se o trabalho artístico for criativo, as palavras tão rápidas aos olhos do leitor podem gerar imagens altamente duradouras. Para demonstrar a lavoura de Raduan Nassar com as imagens, tomemos, como exemplo, o início do primeiro capítulo de Lavoura arcaica: Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, o quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo (...) minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente (1989: p. 09-10). Partindo dos conceitos acerca das imagens, encontramos, nesse fragmento, uma série de imagens que emergem a partir da articulação entre as palavras postas por Nassar. Percebemos a angústia, a solidão e o 120 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. ato masturbatório do narrador-personagem mediante determinadas palavras que, se lidas literalmente, o leitor não conseguirá visualizar tal ação. Dessa forma, o autor soube, com extrema acuidade, selecionar o léxico, as metáforas – “áspero caule”, “rosa branca do desespero”, “objetos do corpo”, “veneno”, indicando a presença do poético na narrativa, além das investidas sonoras e das repetições das palavras, assim, alguns fragmentos da narrativa dispõem verdadeiros poemas, conforme esclarece Perrone-Moisés (1996). Segundo Stalloni (2003), o lírico é uma forma que está presente em tantas outras formas literárias. O sentido mais atual para o lirismo é designado por um caráter de expressão pessoal dos sentimentos, por meio de vias ritmadas ou musicais. Assim, emana do “eu” poético toda uma carga de sentimento, como, sofrimento, tristeza, melancolia. Tais aspectos estão, sobremaneira, dispostos em Lavoura arcaica, quando, André, personagem-protagonista, decide revelar a Pedro, seu irmão, os sentimentos de revolta com relação ao pai, ao sistema patriarcal em que a família é governada, a falta de voz e, também, o sentimento incestuoso que sentia por Ana, sua irmã. Isso é claramente visível no trecho abaixo: Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! Tinha textura a minha raiva!) (p. 35). (...) Eu berrei transfigurado, essa transfiguração que há muito devia ter-se dado em casa “eu sou um epilético” fui explodindo, convulsionado mais do que nunca pelo fluxo violento que me corria o sangue (...) eu berrava e soluçava dentro de mim (p. 41). “Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos” (...) (p. 109). Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 121 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. Conforme os fragmentos selecionados do corpo da narrativa, ficam evidentes os sentimentos que emanam nas falas de André, como: revolta, raiva, desejo de se impor como um sujeito autônomo perante o pai: “essa transfiguração que há muito devia ter-se dado em casa”. Observamos, também, que o sentimento incestuoso por parte do protagonista, ora o salva, ora o destrói: “Ana minha fome”, “Ana a minha enfermidade”, “ela o meu respiro, a minha lâmina”. Assim, o lirismo fica marcado nas falas de André, e seus sentimentos mais ocultos, acerca da família, de Ana e do pai Iohána, são “jorrados” pelo protagonista. Ainda na esteira do pensamento de Stalloni (2003), alguns elementos que pertencem essencialmente ao gênero poético podem estar disseminados em prosas, estabelecendo o que se denomina prosa poética: (...) a prosa, encontra-se diferenciada pela simples afetação de uma tonalidade, de um verniz, essencialmente formal e dificilmente definível, o toque ‘poético’. E na verdade não é raro, ocasionalmente ou de forma contínua, que uma obra literária em prosa dê mostras, por seu valor musical, estilístico ou lexical, de afinidades como o texto poético (p.168). Assim, o gênero poético pode estar disposto, também, na narrativa, não para deteriorá-la e nem suprimi-la, mas para modificá-la, aproximála da poesia. Se estivermos de acordo que a literatura é um constructo que emerge dessa esfera cultural toda fragmentada, como já comentado, a produção literária não deixa de ser toda fragmentada, pois nasce de um lugar entulhado de fragmentos, assim, também, o gênero, na esteira desse pensamento, espalha seus fragmentos em outras formas literárias. Retornando ao questionamento que dispomos anteriormente, acerca de um possível enquadramento de Lavoura arcaica em determinado gênero, seria, o texto de Nassar, um romance, uma prosa poética, um romance lírico? Do que foi disposto, incluímos o romance no rol das 122 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. narrativas, ainda que carregado de elementos líricos e poéticos, confirmando, assim, o caráter “impuro” dos gêneros literários. A tragédia também está estilhaçada em Lavoura arcaica, exercendo a mesma função do poético, pois o texto não perde seu caráter narrativo. O elemento trágico, como todos os gêneros, passou por uma série de transformações ao longo da história. Stalloni (2003) dispõe algumas características que julga importantes para a tragédia. Segundo ele, nela deve haver: um assunto nobre e um herói que tenha condições de desenvolver uma ação não menos nobre; necessidade de uma ação que não seja simples, e que culmine na convergência de todos os atos. Assim, a culminância da tragédia (geralmente a morte) é o resultado da soma de todos os acontecimentos da história nela disposta; outro rasgo seria o registro, isto é, uma estrutura lingüística que não ofereça ao espectador cenas triviais ou brutais, nessa característica fica evidente que esse gênero foi desenvolvido a priori para ser encenado; no trágico, há o encontro do herói com a infelicidade e dela não existe possibilidade de fuga. Para melhor entender as posições de Stalloni, dispomos um fragmento do final do texto de Lavoura arcaica, para demonstrar que na tragédia há uma ação que culmina na convergência de todos os acontecimentos da história. (...) a testa nobre de meu pai, ele próprio ainda úmido de vinho, brilhou um instante à luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de um branco súbito e tenebroso, e a partir daí todas as rédeas cederam, desencadeandose o raio numa velocidade fatal: o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus olhos!) (...) era o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!) era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava (...) (p. 192-193). A partir da extensa citação, podemos propor algumas inferências acerca da tragédia, disposta no texto de Raduan Nassar. Aqui, o pai, ao saber Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 123 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. do sentimento incestuoso entre os irmãos, Ana e André, com excesso de cólera, mata a filha (dançarina ocidental) com um golpe certeiro, demonstrando, assim, que o final de toda história de Ana, André e da família culmina com a morte da filha. Em outras palavras, o término da história abrange a convergência de todos os atos voltados, principalmente, a Ana e a André. Em Lavoura arcaica, o pai é o herói da tragédia, pois é ele que sempre diz o que deve ser feito e as regras que devem ser cumpridas para que a família permaneça sempre unida. É ele [o pai] quem faz os sermões, dispondo acerca da tradição mediterrânea: a terra, o trigo, o pão, a mesa, a família, o amor e o trabalho, demonstrando, com isso, sua nobreza de espírito e seu comprometimento com sentimentos nobres. Também é o pai, como herói da tragédia nassariana que, ao matar a filha, vai ao encontro de sua infelicidade, não podendo dela fugir, pois é ele quem deve exterminar o sentimento incestuoso entre os irmãos; assim, a culminância da história (a morte da filha) revela a nobreza praticada pelo herói. Com relação ao registro, isto é, à estrutura lingüística, verificamos que o tema do incesto, que culmina com a morte de Ana, não é nada trivial. Contudo, o autor consegue demonstrar todo esse horror sem dispor elementos brutais que choquem os espectadores; pelo contrário, a construção do texto é magistral, o autor escolhe um repertório de palavras disponibilizando ao leitor todas as informações de forma a contemplar a “beleza do horror”. Outro elemento que liga Lavoura arcaica à tragédia diz respeito à dialética, com duas obras trágicas, Édipo rei e Electra, em que ambos os textos literários demonstram heróis que matam o pai e a mãe, Édipo e Electra, respectivamente. No caso da narrativa nassariana, o pai exerce a ação matando a filha. Em nenhuma das três obras, o herói consegue fugir 124 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. ao seu destino infeliz e, em todos os casos, os heróis assassinos têm uma justificativa nobre para suas ações. Nesse sentido, Rodrigues dispõe que, no texto nassariano, (...) podemos lançar mão da teoria dos gêneros não no sentido substantivo e sim adjetivo dos termos e dizer que Lavoura Arcaica é um romance trágico, não só porque a morte da filha pelas mãos do patriarca é um acontecimento trágico por excelência, mas sobretudo porque há uma atitude trágica como há uma atitude lírica, fazendo que elementos caracterizados do trágico se encontrem entranhados no romance tanto quanto elementos líricos (2006: p. 158). Assim, vemos que o trágico está sedimentado ao longo da narrativa, bem como elementos líricos, confirmando, desse modo, o hibridismo de gêneros em Lavoura arcaica e que não há possibilidade de criar fronteiras rígidas entre as formas literárias, pois a própria tragédia e o lírico também têm vestígios de outros gêneros. Lavoura arcaica é uma narrativa que dialoga, explicitamente, com diversos outros textos, como nas parábolas da Bíblia Sagrada (1996), que perpassam em muitos dos eventos da narrativa nassariana. “A parábola do filho pródigo”, por exemplo, situada no Evangelho de Lucas, tem uma relação direta com a obra de Nassar. A narrativa bíblica relata a história de um filho que saiu da casa do pai, em busca de prazeres mundanos. Ao acabar o dinheiro que herdara, o filho, encontrando-se em uma situação miserável, resolve voltar e reconciliar-se com o pai: Pai, pequei contra o céu e perante ti, já não sou digno de ser chamado teu filho (Lucas: 15, 21). O pai, em resposta ao filho pródigo, diz: este meu filho estava morto, e reviveu, tinhase perdido e foi achado. E começaram a alegrar-se (Lucas: 15, 24). Já, o filho pródigo de Lavoura arcaica, apesar de fazer mais ou menos o mesmo percurso que o da narrativa bíblica, não tem um final feliz, pois sua volta ao lar culmina com a tragédia na festa em comemoração pelo retorno do filho desgarrado. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 125 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. Até certo momento do texto de Nassar, o leitor tem a impressão que o resultado final será muito semelhante ao do filho pródigo bíblico, como observamos nos discurso do pai de André: _ Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz nova sobre esta mesa, sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa que você causou ao abandonar nossa casa, apagando depressa o pesadelo que vivemos há pouco (p. 170-171). Há, nas palavras de ambos os pais, um tom de alegria pela volta do filho que se havia perdido e, ao voltar, reviveu. No entanto, o pai nassariano mata a filha, ao saber por Pedro, o filho primogênito, do sentimento incestuoso entre os irmãos, André e Ana, causando no leitor um efeito de estranhamento, por não esperar essa ação de um pai que sempre apregoou, em seus sermões, o amor e a união da família. Nesse sentido, o trabalho de Raduan Nassar é composto a partir da (sub) versão do texto bíblico, o que não significa que o texto sagrado esteja sendo dessacralizado, mas antes, ganha uma outra versão sem final feliz, pois de acordo com Perrone-Moisés, o romance todo é uma versão negra da parábola do filho pródigo (p. 66). Que relação existe entre o hibridismo dos gêneros e os textos que dialogam com Lavoura? Arriscamos-nos a dizer que os textos de Raduan Nassar têm, entre outras, a função de intensificar o caráter dinâmico do gênero, assim, a narrativa do romance em questão é dinamizada pelo trabalho do autor, confirmando o que já foi disposto, que, em toda nova produção literária, o gênero pode sofrer alterações. Ademais, esses textos que dialogam com a narrativa nassariana disseminam seu gênero nela, gerando o hibridismo das formas. A obra de arte moderna inclui a produção contemporânea e se caracteriza por um alto grau de liberdade com relação à criação de suas formas, recusando, as imposições e modelos que, às vezes, tentam 126 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128] .................................................................................................. prescrever às artes, assim, o século XX, como bem afirma Satalloni (2003), vai aderir implicitamente a essa estética da novidade, da originalidade, da surpresa (p.178). O que se enquadra, perfeitamente, à Lavoura arcaica, onde qualquer tipo de classificação genérica, sem aludir a outros elementos, seria, facilmente, solapado. Não é nossa pretensão afirmar uma aniquilação dos gêneros literários, tanto que adotamos a forma narrativa para o romance em estudo, mas a possibilidade de lançar, ao texto literário, uma visão sob diversas perspectivas, aumentando, assim, seu horizonte de investigação e, principalmente, sem enquadrá-lo a nenhuma esfera rígida, com fronteiras bastante delimitadas. REFERÊNCIAS A BÍBLIA SAGRADA. Trad. de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Vida, 1996. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MELLO, Cristina. O ensino da literatura e a problemática dos gêneros literários. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte: estudo de literatura brasileira contemporânea. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2004. MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 1997. MOSER, Walter. “Spätzeit” In: _________. Narrativas da modernidade. MIRANDA, Wander Melo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. PERRONE-MOISÉS, L. Da cólera ao silêncio. Cadernos de Literatura Brasileira Raduan Nassar, S.Paulo, v. 2, p. 61-77, 1996. RODRIGUES, Luiz André. Ritos da paixão em Lavoura arcaica. São Paulo: Edusp, 2006. SEDLMAYER, Sabrina. Ao lado esquerdo do pai. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 127 Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128] .................................................................................................. Flávio Adriano Nantes Nunes é mestrando no Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS. Edgar Cézar Nolasco é doutor em Estudos Literários pela UFMG, professor dos Programas de Pós-Graduação – Mestrado em Estudos de Linguagens (Câmpus de Campo Grande) e Mestrado em Letras (Câmpus de Três Lagoas), do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS Área do artigo: Literatura 128 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Ossonhadores&ascitações PriscillaPaulaPessoa MariaAdéliaMenegazzo Resumo: O estudo “Os Sonhadores e as Citações” procura apontar as intertextualidades e realizar uma análise das citações existentes no filme Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci, utilizando, para isso, definições, conceitos e abordagens próprios da citação literária aplicados a uma obra cinematográfica. O trabalho identifica os momentos em que o filme faz uso do recurso da citação e apresenta possíveis leituras sobre a presença dessas inserções fazendo uma análise de cenas nas quais ocorrem as citações e identificando a relevância e significação delas no contexto do filme. Palavras-Chave: Citação. Intertexto. Cinema. Abstract: The study “The Dreamers and the Citations” intends to point the intertexts and to carry through one analyzes of existing citations in the film The Dreamers, of Bernardo Bertolucci, using for this definitions, concepts and applied proper boardings of the literary citation to a cinematographic work. This text identifies the moments when the film makes use of the resource of the citation and presents possible readings on the presence of these insertions making an analysis of scenes in which the citations occur and identifying to the relevance and meaning of them in the context of the film. Keywords: Intertext. Citation. Movies. 129 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. Assim como na famosa lei de Lavoisier, no cinema, a transformação das imagens cria outras imagens. Da respeitosa citação à simples referência, o cinema dentro do cinema é uma constante cada vez maior, e isto pode se observar explicitamente em Os sonhadores (The Dreamers), filme de Bernardo Bertolucci, de 2003. Baseado em livro homônimo de Gilbert Adair (que assina o roteiro), no filme, Matthew (Michael Pitt) é um estudante americano em Paris. Apaixonado por cinema, freqüenta assiduamente a Cinemateca Francesa justamente na Primavera de 1968, quando explodem revoltas estudantis por toda a Europa. É nessa situação que Matthew conhece Isabelle (Eva Green) e Théo (Louis Garrel), irmãos gêmeos, tão apaixonados por cinema quanto ele. Quando os pais dos franceses se ausentam do grande apartamento em que moram, os irmãos convidam-no para passar um tempo com eles – Matthew acaba testemunhando o relacionamento incestuoso dos gêmeos, participando de seus jogos e, no processo, se apaixona por Isabelle. Os três acabam envolvendo-se mais profundamente, justamente pelo cinema, conteúdo de seus jogos de adivinhação. Nessas trívias, um integrante do trio imita a cena de algum filme clássico e os outros têm que adivinhar qual a película, sob pena de sofrer castigo escolhido pelo jogador oponente. Nesses momentos, cenas da imitação são intercaladas com cenas de filmes antigos - na sua maioria pouco óbvios - numa citação direta, se emprestarmos aqui termos da literatura. Só para exemplificar algumas, Bertolucci intercala uma famosa seqüência de Bande à Part (1964), de Jean-Luc Goddard, com uma adaptação – três amigos atravessam o Louvre desviando dos guardas do local. Outras passagens, em sintonia com Os Sonhadores: Rainha Cristina (1933), com Greta Garbo, Scarface – A Vergonha de uma Nação (1932), (utilizada em um dos jogos de adivinhações entre 130 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. os personagens), O Picolino (1935), com Fred Astaire e Ginger Rogers (justificando o incômodo de um barulho), entre outras. Além dessas citações explícitas, Os sonhadores traz várias outras intertextualidades mais sutis (como fotos do filme Persona (1954) sobre uma escrivaninha) e está todo permeado por paixão ao cinema, tanto da parte do cineasta quanto do espectador que, caso seja cinéfilo, com imenso prazer reconhece fragmentos de obras-primas. O presente trabalho se propõe a analisar as citações existentes em Os Sonhadores e, para isso, se divide em três partes; a primeira traz uma definição de citação e faz algumas considerações a respeito dessa forma de intertextualidade, explicando de que forma tal conceito, tão caro aos livros, pode ser aplicado a um filme; na segunda, faz-se a apresentação da obra que serve de corpus; por fim, apresenta-se uma reflexão sobre a presença dessas inserções (fazendo uma ponte com o primeiro capítulo) e uma análise de cenas nas quais ocorrem as citações, identificando a relevância delas no contexto do filme. A citação Segundo França, em seu livro sobre normas para publicação de trabalhos científicos (1996, p. 128), “as citações são trechos transcritos ou informações retiradas das publicações consultadas para a realização do trabalho”. As citações são mencionadas no texto, e no caso do nosso objeto, no filme, com a finalidade de esclarecer ou completar as idéias do autor, ilustrando e sustentando afirmações. Sua função é oferecer ao leitor o respaldo necessário para que ele possa comprovar a veracidade das informações fornecidas e possibilitar o seu aprofundamento se desejar. A citação direta refere-se à transcrição integral de uma parte do texto pesquisado. A citação indireta é a transcrição das idéias do autor consultado, porém, usando as suas palavras, ou seja, parafraseando. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 131 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. Inicialmente, cabe fazer uma distinção entre as formas de citação. Quando ela é implícita, não percebida por seu leitor ou espectador, e o autor propõe isso conscientemente, estamos diante de um plágio de outra obra, simplesmente. Por outro lado, quando a citação é explícita, feita de modo consciente, proposta com a intenção de homenagear ou parodiar, aí sim se faz um dialogismo intertextual, reconhecido como normal dentro do processo de concepção artística, e é esse tipo de citação que ocorre em Os Sonhadores. Isso vem desde muito tempo, como nas pinturas de Rembrandt que, em suas obras, eventualmente, dialogava com quadros de outros pintores contemporâneos a ele. Outros exemplos de citacionismo na pintura são as obras de VanGogh nas quais aparecem, como parte do ambiente, gravuras japonesas que serviram de referência para todo seu trabalho. E, nesses sentidos, de diálogo e de reverência, funciona também a citação no filme de Bertolucci. Intertextualidade Fiorin (2000) define o termo intertextualidade como sendo a “incorporação de um texto em outro”. O autor também estabelece uma classificação para a intertextualidade, nos seguintes tipos: citação (referência literal a outro texto, usando parte deste); alusão (reprodução de construções sintáticas, substituindo algumas figuras do texto original por outras); estilização (reprodução do estilo de outrem, seja no plano da expressão ou no do conteúdo), entre outras segmentações. No primeiro tipo de intertextualidade, a citação, é que este estudo irá se concentrar. Nas obras literárias, a intertextualidade se apresenta de forma mais consistente e até natural, como um fenômeno cumulativo, em que quanto mais se absorve a mensagem, mais se percebem vestígios de textos anteriores presentes naquele que se lê. Assim, o ambiente cultural no qual as pessoas estão inseridas constitui uma rede de interseções 132 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. textuais, em que, a cada texto que se leia, arregimentam-se referências para a identificação de novos textos citados nos anteriormente lidos. E, nesse processo de recepção da obra, Ferrara (1981) escreve: “A participação do receptor – aviltada, desejada, repelida, solicitada, estimulada, exigida – é tônica que perpassa os manifestos da arte moderna em todos os seus momentos e caracteriza a necessidade de justificar a sua especificidade”. No caso específico de Os sonhadores, a plena apreensão dessa intertextualidade demanda uma enorme bagagem cinematográfica por parte do espectador. A citação: fundamento primeiro da textualidade De acordo com Babo (1986), o termo citar tem uma significação etimológica diversa do seu uso atual. Ele indica uma ordem, remete para uma injunção de comparecer perante a justiça para depor ou testemunhar. A citação é, nos seus primórdios, um ato lingüístico de testemunho, mas também um ato de legitimação que autentica a verdade do discurso. Citar torna-se, assim, o discurso da autoridade. Citar é, talvez, o único “roubo” consentido: uma repetição comentada, um confronto entre sujeitos. Como ato de leitura, a citação integra-se, pois, numa operação de corte e de transposição; como ato de escrita, ela opera uma repetição do já escrito e uma reinserção num novo contexto. Para Compagnon (cit. In BABO, 1986), a primeira forma de citação encontra-se já no ato de sublinhar. A leitura, neste sentido, é uma forma de adesão ou apropriação do texto. Enquanto leitura, a citação aparece como solicitação do texto à repetição; o que se cita é aquilo que o texto primeiro convida a retirar e compele a repetir. E citar torna-se um produto da excitação operada previamente no texto-leitura. Mas, ao ser reescrita, a citação manifesta uma incitação, uma inserção a formar de novo texto ou sentido. Como incitação, ela é mais do que Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 133 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. pura reprodução porque, ao repetir-se, cria um excesso significante. Mais do que repetição de sentido, ela instaura o sentido da repetição, isto é, a mais valia do sentido primeiro. Ainda de acordo com Babo, o texto trabalhado pela citação é um texto que releva muito da interpretação. A citação, posta como repetição, não fixa ou fecha o sentido, mas abre-o à significância através da criação de um espaço intervalar por onde o não-dito se lê, se marca. Assim, a citação não pode ser entendida como simples fenômeno de imitação, mas acarreta, inevitavelmente, ao reproduzir-se, uma perturbação do sentido. Se essa integração poderia funcionar como identificação, o que se verifica é, antes, uma desmultiplicação da identidade, a emergência da alteridade no texto. Apesar de a citação poder funcionar no discurso como confirmação de valores consentidos ou consensuais, ela não deixa de formar, no entanto, uma rede de ressonâncias a deixar resto ou rastro, a criar dissonâncias. Nessa medida, o jogo da citação pode, em última análise, produzir efeitos semelhantes ao jogo da paródia que, etimologicamente, significa cantar ao lado, noutro tom. O texto paródia, tal como o texto citação, consiste na transposição de um texto de um registro nobre para um registro vulgar. Citação no cinema A interdisciplinaridade se observa por meio da utilização de diversas técnicas ou saberes com o objetivo de conhecer ou explicar um mesmo objeto. Para que se possa aplicar o conceito de citação (usado principalmente quando se trata de linguagem escrita) numa análise de linguagem cinematográfica, optou-se por adotar uma acepção muito ampla de texto. Segundo Aguiar e Silva (1988), o termo texto origina-se do substantivo latino textus, que significa tecido, urdidura, encadeamento e descende do particípio passado do verbo texere, que significa tecer, 134 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. entrançar e entrelaçar. O conceito de texto, tal como proposto por Barthes (1985), é “como um campo metodológico que se mantém na linguagem, só existe se tomado num discurso e cujo movimento constitutivo é a travessia”. Esse conceito nos permite, de imediato, prover nosso objeto de uma sustentação teórica, considerando, também, o filme como um texto e abrindo-o para a questão que buscaremos responder com o projeto proposto: quais os efeitos de sentido, poéticos e estéticos, decorrentes da inserção de citações (cenas de outros filme) dentro do filme Os Sonhadores. Retomando a definição de citação, como forma de intertextualidade - segundo Fiorin (2002), de referência literal a outro texto - o cinema usufrui deste recurso criativo com desenvoltura. Uma única obra cinematográfica pode gerar uma grande variação de citações em cima de uma mesma cena clássica, evidentemente icônica; contundente o bastante para se tornar perene no imaginário coletivo, transpondo barreiras culturais e temporais. O filme Cliente Morto Não Paga (1982), do qual se falou durante as aulas no mestrado, citou, como parte integrante de sua narrativa, pelo menos outras quinze obras cinematográficas. Essa citação fragmentada também está presente em Cinema Paradiso (1988). OSSONHADORES Apresentação do filme Uma vez definidos os conceitos acerca de citação e sua aplicabilidade na análise proposta, passamos ao objeto de análise, o filme. Os Sonhadores, de 2003, é o 23o. filme da carreira do diretor Bernardo Bertolucci e, também, o mais recente; muitos críticos enxergam nele o fechamento de uma trilogia do diretor, pois, junto a O Último Tango em Paris e O Assédio, Os Sonhadores parece fechar uma trilogia “entre quatro paredes” – em que Bertolucci explora toda a tensão sexual que pode ser contida em pequenos cômodos. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 135 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. A trama acontece entre fevereiro e maio de 1968, em Paris, no cerne da revolução que colocou estudantes frente a frente com a polícia e entrou para a história mundial. O filme começa no exato momento que Henri Langlois é demitido da direção da Cinemateca francesa pelo escritor André Malraux, ministro da cultura do presidente Charles De Gaulle. A demissão deixa revoltados estudantes e os maiores cineastas de todo mundo, como Godard, Truffaut, Kurosawa, Fellini e até o brasileiro Glauber Rocha, protestam contra a demissão. Uma manifestação em frente à Cinemateca é dispersa com bombas e cacetetes sobre estudantes, cineastas e escritores. É nesse cenário que o estudante de intercâmbio norte-americano Matthew (Michael Pitt) conhece a francesa Isabelle (Eva Green). Eles já se conheciam de vista, das sessões de filmes de arte na Cinemateca. Isabelle está protestando contra a demissão de Langlois, acorrentada na porta da Cinemateca. Minutos depois é a vez de Theo (Louis Garrel) entrar em cena. Ele é irmão de Isabelle, também cinéfilo e revolucionário. O trio se torna amigo. Logo, Matthew deixa a pensão em que vive para ir passar alguns dias na casa dos irmãos. O amor e o sexo cega os jovens para o mundo externo. Sozinhos em uma casa, o trio experimenta os prazeres da carne, jogos de sedução, bebidas, incesto e rock. Ávidos espectadores de cinema, Matthew, Isabelle e Theo respiram a energia fascinante das películas que idolatram, mimetizando cenas e ações de algumas obras. Além da paixão pelo cinema, o outro mote do filme é a sexualidade latente vivida pelos personagens dentro da casa e o pano de fundo dos acontecimentos é a Paris de maio de 1968 e sua efervescência revolucionária. Enfim, como define o próprio Bertolucci no documentário sobre a produção do filme, trata-se de uma história de sexo, cinema e política, em substituição ao jargão sexo, drogas e rock´n roll. 136 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. Os sonhadores recebeu uma indicação ao Goya de Melhor Filme Europeu e 2 indicações ao European Film Awards, nas categorias de Melhor Diretor pelo Júri Popular e Melhor Atriz pelo Júri Popular. Análise das citações em os sonhadores Os Sonhadores é um filme inteiramente permeado por intertextualidades (conjunto de discursos a que um discurso remete). Especialmente, duas categorias de intertexto podem ser identificadas dentro do nosso objeto: alusões e citações. A utilização da alusão (referência a temas ou figuras para contextualização) é constante no decorrer do filme. Segundo consta do próprio documentário que acompanha a edição em DVD, inúmeros objetos de cena foram pensados exclusivamente para aludir sutilmente a outros filmes. Dois exemplos são as alusões aos filmes Persona (1966) e A Chinesa (1967). Quanto à primeira obra, há a foto de uma cena famosa estampada na capa de uma revista que está sobre a escrivaninha (fig. 1); e um pôster de A Chinesa (fig. 2) decora o quarto onde se passa grande parte da ação de Os Sonhadores. Tais inserções servem para criar a atmosfera de absoluta devoção ao cinema em que vivem os jovens moradores da casa - mesma utilidade funcional de diversos objetos de cena que também informam o espectador sobre as referências políticas dos jovens, ou sobre sua classe social. Mas a escolha desses filmes específicos pode suscitar outras leituras de sentido mais profundo, como, por exemplo, se lembrarmos que A Chinesa é um filme sobre cinco jovens que, como os personagens de Os Sonhadores, se trancam em um apartamento dentro do qual experimentam o marxismo-leninismo. É, portanto, uma referência na construção do nosso filme-objeto que se procura evidenciar através da presença do pôster, já que, apesar do pseudo-sentimento revolucionário de Theo, os três jovens permanecem, Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 137 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. por tempos, praticamente enfurnados na casa dos gêmeos, vivendo o sexo de forma alienadora. Só vão para a rua lutar pelo que dizem, quando a rua vai até eles. Fig.1: Cena do filme “Os Sonhadores” Fig.2: Cena do filme “Os Sonhadores” São diversas as alusões a outras obras cinematográficas inseridas no cenário e em outros elementos do filme Os Sonhadores, e a análise dos mesmos seria tarefa para outro trabalho como este. Isso sem contarmos ainda a possibilidade de se pensar nas referências retomadas na obra, sendo a mais patente a associação com Jules et Jim (1967). Porém, o que aqui nos interessa é outro tipo de intertextualidade, muito mais evidente e utilizada de maneira muito peculiar no filme analisado: as citações. Considerando a citação como sendo a referência literal a outro texto, diremos aqui que, sempre que no filme são inseridos trechos de outros filmes, teremos exemplos de citação direta (transcrição fiel de um trecho duma obra em outra). São essas inserções que formam o objeto desta análise. Considerações sobre a citação em os Sonhadores O constante recurso das citações no nosso filme-objeto é utilizado sobretudo para caracterizar de forma credível e entusiasmante a paixão dos protagonistas pela sétima arte. Ávidos espectadores de cinema, Matthew, Isabelle e Theo respiram a energia das películas que idolatram, mimetizando cenas e ações de algumas obras - o que nos faz lembrar 138 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. da citação como um ato de legitimação que autentica a verdade do discurso, segundo Babo (1996). Citar literalmente partes de outros filmes torna-se assim o discurso da autoridade, como se aqueles trechos ali inseridos não deixassem dúvida da intenção do diretor: filmar a cinefilia como uma verdadeira filosofia de vida. Tal apropriação e assimilação da arte cinematográfica acabam por suscitar um tênue limite entre o real e o ficcional, servindo para reforçar o universo particularíssimo criado pelos jovens, para quem os filmes, mais do que representações da vida, são genuínas experiências existenciais que marcam todo o seu comportamento. Além dessa função específica das citações em Os Sonhadores, é necessário sublinhar outros aspectos. Retomamos aqui a idéia de Compagnon (cit. In Babo, 1986), já abordada no primeiro capítulo, para quem a primeira forma de citação encontra-se já no ato de sublinhar; o que se cita é aquilo que o texto (ou o cinema, no nosso caso) primeiro convida a retirar e compele a repetir. E citar torna-se um produto da excitação operada previamente no texto-leitura. Ora, em Os Sonhadores, Bertolucci proporciona uma declaração de amor ao cinema e ao poder inspirador e transfigurador das suas imagens, recheando assim o filme de passagens de seus clássicos e diretores favoritos. A escolha desse ou daquele trecho tem a ver portanto com essa primeira forma da citação, em que o diretor se vê impelido a fazer o recorte e colá-lo em sua obra: Bernardo Betolucci (como ele mesmo afirmou em entrevista ao jornal Estadão de 06/12/2004) filmava na Itália quando aconteceu a Revolução de 68, momento histórico em que se ambienta Os Sonhadores , porém se revela um aficionado pela força dessa revolução e especialmente, pela participação do cinema como estopim de tudo, tendo como carro chefe a Nouvelle Vague e seu enfoque crítico do mundo. Apesar de não participar do grupo específico Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 139 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. da Nouvelle Vague Francesa, o diretor italiano sempre se declarou um admirador e credor dessa tendência cinematográfica; portanto, não é a toa que a maior parte das citações presentes no filme analisado pertencem a esse segmento e tem como autores os diretores que Bertolucci sempre cita como seus favoritos: Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol. Por fim, a cinefilia não é só o atributo que faz com que Bertolucci insira trechos de seus filmes amados como continuidade das cenas de sua própria obra: ele também conta com o grau de cinefilia do seu espectador. Assim como se trata de uma excitação no momento em que é escolhida pelo diretor, ao ser inserida em sua obra a citação manifesta uma incitação, e quem ele deseja incitar é o público, que, sendo cinéfilo, se delicia com os trechos de filmes que ele reconhece, e não sendo, intriga-se com aquelas presenças alienígenas à obra que escolheu ver; em uma ou outra situação, o ambiente cultural no qual as pessoas estão inseridas constitui uma rede de interseções em que, a cada filme que se veja, arregimentam-se referências para a identificação dos filmes citados. Sobre esse processo de recepção da obra, Ferrara (1981) escreve: “A participação do receptor – aviltada, desejada, repelida, solicitada, estimulada, exigida – é tônica que perpassa os manifestos da arte moderna em todos os seus momentos e caracteriza a necessidade de justificar a sua especificidade”. No caso específico de Os sonhadores, a plena apreensão dessa intertextualidade demanda uma enorme bagagem cinematográfica por parte do espectador, porém não possuí-la ou tê-la somente em parte não retira o deleite de assistir ao filme. Cenas citadas A primeira citação que ocorre no filme é a que mais difere das outras, pois é a única que faz parte do contexto e não forma uma espécie de “parênteses”: Na primeira cena, enquanto Mathew conta, em 140 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. off, sobre sua estada em Paris e sobre sua paixão pelo cinema, é mostrado na Cinemateca (fig.3) assistindo ao filme Paixões que alucinam (Fig. 4); pode se dizer que o filme faz parte do cenário, e é o único que é “assistido” pelo personagem e pelo espectador. Fig. 3: Cena do filme “Os Sonhadores”: Mathew na Cinemateca Francesa. Fig. 4: Cena do filme “Os Sonhadores”: na tela, é exibido o filme “Paixões que alucinam”. Não é por acaso que justamente essa citação abre o filme: Paixões que alucinam é um filme que inspirou a Nouvelle Vague Francesa por sua postura de crítica às instituições políticas e preceitos de moral, escandalizando a sociedade americana da época. É como se esse enxerto prenunciasse também o que se vê mais adiante na película, ainda que a crítica não seja tão contundente, nem a moral tão rígida, e nem o público tão escandalizável. A segunda citação cinematográfica (Fig 6) é um trecho de Rainha Cristina (1933). Aqui vemos a inserção da citação como ocorre na maior parte das vezes que se segue: intercalada com o jogo de adivinhação proposto pelos irmãos, em que se imita a cena de um filme para que se adivinhe qual é. Depois de acordar Mathew, Isabelle começa a tatear os objetos do quarto, e imagens da atriz Eva Green (fig.5) são intercaladas com as de Greta Garbo, intérprete da rainha Cristina original. Mesmo as falas das duas atrizes, num dado momento, são repetidas: Estou memorizando esse quarto. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 141 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. Tal intertexto funciona como um bonito jogo estético, mas, mais que isso, é uma citação direta de uma cena que “ilustra” a trívia proposta pela personagem; assim, podemos aplicar integralmente uma das definições da função da citação, dada por França (1996): “... sua função é oferecer ao leitor o respaldo necessário para que ele possa comprovar a veracidade das informações fornecidas e possibilitar o seu aprofundamento se desejar”. Fig.5: Cena do filme “Os Sonhadores”: Isabelle memoriza o quarto. Fig.6: Cena do filme “Rainha Cristina”: Cristina memoriza o quarto. Em outra seqüência, há a velha discussão sobre quem é melhor: Charles Chaplin ou Buster Keaton? Enquanto Mathew e Theo expõem seus pontos de vista, filmes dos atores discutidos são citados na tela (Fig 7 e 8). Fig.7: Cena do filme “Luzes da Cidade”: Charles Chaplin Fig.8: Cena do filme “Marinheiro por Descuido”: Buster Keaton Especialmente quando Théo apresenta suas razões para crer na superioridade de Chaplin, podemos observar a função da citação como um ato lingüístico de testemunho, mas também um ato de legitimação que autentica 142 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. a verdade do discurso: enquanto Théo fala de uma sensação única que Chaplin consegue dar no filme Luzes da Cidade (1931), quando a moça cega enxerga pela primeira vez e, segundo ele, vemos o mundo por seus olhos virgens de imagens, a cena descrita aparece na tela, como que atestando a opinião do jovem. Se o filme fosse um texto, com certeza essa inserção se daria depois de um início como “De acordo com Chaplin...”. Enquanto acontece a discussão entre os dois rapazes, Isabelle está alheia e ouve um disco. Théo se incomoda e a obriga a parar, o que suscita mais uma das adivinhações: em que filme um barulho insuportável enlouquece a personagem? A resposta não é fácil nem para o inquirido Mathew nem mesmo para o mais cinéfilo dos cinéfilos espectadores, pois não há mimetização da cena e, portanto, não se tem a citação intercalada com o filme, como ocorreu com Rainha Cristina, mas ainda assim Mathew responde acertadamente que o filme é O Picolino (1936). Só então um trecho (Fig.9) é inserido no filme, como que confirmando ao espectador que aquela é a resposta certa. Aqui vemos como a citação poder funcionar no discurso como confirmação de valores consensuais. Na cena que se segue, os três jovens fazem a travessia em corrida pelo Museu do Louvre, imitando o clássico Bande à Parte (1964). Toda a corrida de Os sonhadores é intercalada com cenas de Bande à Parte, de forma sincronizada (figs. 10 e 11). A citação, que poderia ser considerada o grau Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 143 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. zero da relação interdiscursiva, dado que o trecho citado não sai maculado, revela-se, apesar disso, como um processo mais complexo. A cena trabalhada pela citação releva da interpretação e não pode ser entendida como simples fenômeno de imitação, mas acarreta, inevitavelmente, ao reproduzir-se, uma perturbação do sentido. Fig.10: Cena de “Bande à Parte”: Travessia do Louvre Fig.11: Cena de “Os Sonhadores”: Travessia do Louvre A próxima citação difere das que foram feitas até então. Todas as outras eram, de alguma forma, identificadas pelas personagens; eles diziam o nome do filme citado em algum momento, seja na primeira inserção, (assistida por Mathew no cinema e cuja obra de onde se retirou o trecho é credenciada na narração), ou como nos enxertos que se seguiram até aqui, nas quais o nome do filme era a resposta de uma adivinhação. O filme citado é Monstros (1932), e aparece quando Mathew, após a corrida do Louvre, é aceito como parte do “grupo” formado por Théo e Isabelle (Fig.12 e 13): em coro com o trecho extraído de Monstros, eles cantam: Um de nós, um de nós. Fig.12: Cena de “Monstros” 144 Fig.13: Cena de “Monstros” Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. Essa citação que, se comparada às outras, foi inserida sutilmente e sem alarde, (o nome do filme só aparece nos créditos finais) nos diz muito sobre o que aconteceria depois em Os Sonhadores: funciona quase como que a epígrafe de um novo capítulo, pois a partir daí o filme muda de rumo: quando Mathew é aceito pela dupla como um autêntico conhecedor de cinema, os três se trancam no apartamento e passam as tardes a discutir filmes, política, revoluções. Até que o americano percebe, chocado, a relação incestuosa entre Theo e Isabelle e se envolve num triângulo, se torna um de nós, um freak (aberração, em inglês, e título original da obra citada). Dentro do apartamento, o mundo dos três jovens continua marcado por brincadeiras cinéfilas, mas agora com altas doses de erotismo. A primeira delas vem também acompanhada de uma citação, colocada a partir da imitação de um clássico, feita por Isabelle (Fig14), mesclada com imagens do filme Vênus Loira (1932). A revelação da resposta para a trívia é intercalada com a revelação da atriz que se encontra sob as vestes de gorila (Fig15) no filme citado - Marlene Dietrich. A inserção desse trecho também serve de gancho para a “prenda” que deve ser paga por Théo, iniciando os jogos sexuais: Isabelle pede como prêmio que ele se masturbe em frente a um pôster da atriz alemã, assistido por ela e por Mathew. Fig.14: Cena de “Os Sonhadores” Fig.15: Cena de “Vênus Loira” Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 145 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. Na penúltima citação, é Théo quem propõe o jogo: deita-se no chão sobre a sombra de uma janela (que se assemelha a uma cruz) e pergunta a Mathew em que filme essa imagem se repete na cena final (Fig.16). Mathew não sabe a resposta e então aparece um trecho de Scarface (1932), acompanhando a solução do enigma. Temos, mais uma vez, a citação como um testemunho de autoridade, de autenticidade do discurso. Fig.16: Cena de “Os Sonhadores” Fig.17: Cena de “Scarface” A prenda exigida dessa vez é que Mathew tenha uma relação sexual com Isabelle na frente de Théo. Curiosamente, a partir desse momento, as citações cinematográficas são interrompidas, só reaparecendo no final do filme. Uma hipótese para isso é que, a partir daí, o filme muda totalmente sua tônica (do amor ao cinema) para a relação entre os personagens; é como se as citações não fossem mais necessárias, uma vez que o tema mudou. Inteligentemente, Bertolucci não as insere a esmo apenas para enfeitar o filme quando elas já não têm mais a mesma função. A última citação ocorre quando Isabelle descobre que seus pais estiveram no apartamento e viram os três jovens adormecidos nus. Ela resolve se matar, e o desenrolar da mangueira de gás mimetiza o movimento de uma menina rolando na ribanceira no filme Mouchette (1967) (fig18). 146 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. Fig.18: Cena de “Mouchette” Cabe aqui relembrar de que trata o filme citado: adolescente, Mouchette é filha de pai alcoólatra e mãe enferma. Taciturna e infeliz, ela quase não cativa a simpatia de seus amigos. Numa noite de tempestade, ao se perder na floresta, aceita a hospitalidade de um caçador que abusa dela. De volta a casa, Mouchette vê sua mãe morrer, mas não tem tempo de se confidenciar a ela. Por não encontrar compreensão da parte de ninguém, a garota termina por se deixar escorregar para dentro de um poço. Para quem desconhece o filme, a citação funciona apenas como uma montagem poética, de beleza plástica obtida com a continuidade entre o rolamento de Mouchette e o desenrolar da mangueira. Mas é inegável também a intertextualidade entre o tema da obra citada e a maneira como Isabelle se sente naquele momento; sua relação íntima com o cinema aponta para que a citação foi ali inserida como reveladora do seu desespero e sensação de abandono naquele momento. Essa derradeira análise trás à pauta a questão do processo de recepção da obra. A participação do receptor é indispensável para a plena apreensão dos sentidos gerados pela intertextualidade no filme; a ocorrência dessa apreensão em sua totalidade demanda uma enorme bagagem cinematográfica por parte do espectador, porém, não possuí-la ou tê-la somente em parte, não retira o deleite de assistir ao filme. Conclusão No filme Os Sonhadores, as vidas de Isabelle e Theo imitam o cinema da forma mais apaixonada possível. Eles têm uma relação, no Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 147 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. mínimo insólita, com a sétima arte, em que a vida e o cinema se misturam. Assim, o recurso utilizado pelo diretor para mostrar nas telas tal grau de mistura entre a realidade de seus personagens e o mundo dos filmes no qual eles também habitam foi inserir trechos de obras cinematográficas em algumas cenas. No trabalho que aqui se conclui, essas inserções são consideradas como formas de citação, aplicando a mesma fundamentação usada na literatura em nosso objeto e analisandoo a partir desse prisma. Tomamos como princípio a definição da intertextualidade como sendo a incorporação de um texto em outro, e a citação tida como a referência literal a outro texto, usando parte deste; se considerarmos que o filme, numa acepção ampla do termo texto pode ser visto como um objeto passível de leitura, pode se dizer que a incorporação de um filme em outro é uma forma de intertextualidade e que quando essa incorporação se dá pela inserção direta de uma parte de outra obra cinematográfica, temos uma citação. Concluiu-se, então, que o recorrente uso de citações em Os Sonhadores, além de ser um recurso poético (mérito não abordado aqui), funciona primeiramente como um ato de legitimação que autentica a verdade do discurso; citar literalmente partes de outros filmes torna-se assim o discurso da autoridade, como se aqueles trechos ali inseridos não deixassem dúvida da intenção do diretor: filmar a cinefilia como uma verdadeira filosofia de vida. Considerando-se que a existência de uma citação é produto da excitação operada previamente no texto-leitura (ou no ato de assistir um filme, no caso de nosso objeto), em Os Sonhadores, Bertolucci proporciona uma declaração de amor ao cinema e a escolha desse ou daquele trecho tem a ver, portanto, com essa primeira forma da citação, que nos faz concluir que o que se estabelece aqui é uma relação de diálogo com as obras citadas, mas também de reverência, homenagem. Por fim, a cinefilia não é só o atributo que faz com que Bertolucci insira trechos de seus filmes amados como continuidade das cenas de sua 148 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. própria obra: ele também conta com o grau de cinefilia do seu espectador. É a excitação com a citação, o grau de bagagem cinematográfica que quem assiste possui que pode fazer com que ele veja o filme de diferentes maneiras e encare as citações: respostas criativas para os jogos de adivinhação do filme ou um intertexto muito mais elaborado e completo. E só a cinefilia pode explicar, também, a paixão por um tema a ponto de, mais que apreciá-lo, pesquisar, pensar e escrever sobre ele. REFERÊNCIAS AGUIAR E SILVA, V.M. Teoria da literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1988. BABO, Maria Da Intertextualidade. Disponível em: <http://www.cecl.com.pt/rcl/ 03/rcl03-08.html>. Acesso em 13/07/2006. FERRARA, L. D. Leitura sem Palavras. São Paulo: Ática, 1991. FIORIN, J. L. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 2002. FRANÇA, Junia. Manual para a Normalização de Publicações Tecno-Cientificas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. KRISTEVA, J. Introdução a Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. METZ, C. Linguagem e Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980. PIGNATARI, D. Informação Linguagem Comunicação. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002. FILMOGRAFIA A CHINESA Título Original: La Chinoise Tempo de Duração: 90 minutos Ano/Local: Francia, 1967 Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard. Elenco: Jean-Pierre Leaud, Anne Wiazemsky, Michel Semeniako, Juliet Berto, Lex de Bruijn. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 149 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. BANDE À PART Título Original: BANDE À PART Tempo de Duração: 90 minutos Ano/Local: França, 1964 Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard, Dolores Hitchens. Elenco: Anna Karina, Claude Brasseur, Sami Frey, Luisa Colpeyn, Danièle Girard, Ernest Menzer. LUZES DA CIDADE Título Original: City Lights Tempo de Duração: 87 minutos Ano/Local: USA, 1931 Direção: Charlie Chaplin. Roteiro: Charlie Chaplin. Elenco: Ch. Chaplin, Harry Myers, Virginia Cherrill, Florence Lee, Allan Garcia. MARINHEIRO POR DESCUIDO Título Original: The Navigator Ano/Local: USA, 1924 Direção: Buster Keaton, Donald Crisp Roteiro: Buster Keaton. Elenco: B. Keaton, K. Mcguire, F. Vroom, N. Johnson, C. Burton MONSTROS Título Original: Freaks Tempo de Duração: 64 minutos Ano/Local: USA, 1932 Direção: Tod Browning. Roteiro: Willis Goldbeck, Leon Gordon, Edgar Allan Wolf Elenco: Wallace Ford, Leila Hyams, Olga Baclanova, Roscoe Ates, Henry Victor, Harry Earles, Daisy Earles. MOUCHETTE Título Original: Mouchette Tempo de Duração: 82 minutos Ano/Local: França, 1967 Direção: Robert Bresson Roteiro: Robert Bresson. Elenco: Nadine Nortier, Jean-Claude Guilbert, Paul Hébert, Marie Cardinal, Jean Vimenet. OSSONHADORES Título Original: The Dreamers Tempo de Duração: 130 minutos Ano /Local: (EUA / França / Itália): 2003 Direção: Bernardo Bertolucci Roteiro: Gilbert Adair 150 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 Os sonhadores & as citações [129-152] ................................................................................................. Elenco: Michael Pitt, Eva Green, Louis Garrel, Robin Renucci, Anna Chancellor, Florian Cadiou. PAIXÕES QUE ALUCINAM Título Original: Shock Corridor Tempo de Duração: 87 minutos Ano/Local: USA, 1963 Direção: Samuel Fuller. Roteiro: Samuel Fuller Elenco: Peter Breck, Constance Towers, Gene Evans, James Best. PERSONA Título Original: Persona Tempo de Duração: 90 minutos Ano/Local: 1966 Direção: Ingmar Bergman. Roteiro: Ingmar Bergman. Elenco: Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margaretha Krook. PICOLINO Título Original: Top Hat Tempo de Duração: 90 minutos Ano/Local: USA, 1935, Direção: Mark Sandrich. Roteiro: M. Sandrich, Allan Scott. Elenco: Fred Astaire, Ginger Rogers, Helen Broderick, Edward Everett Horton, Eric Blore. RAINHA CRISTINA Título Original: Queen Christina Tempo de Duração: 103 minutos Ano/Local: USA, 1933 Direção: Rouben Mamoulian. Roteiro: Salka Viertel, H.M. Harwood, S.N. Behrman, Ben Hetch Elenco: Greta Garbo, John Gilbert, Ian Keith, Lewis Stone, Elizabeth Young, Reginald Owen, C. Aubrey Smith. SCARFACE, A VERGONHA DE UMA NAÇÃO Título Original: Scarface, the Shame of a Nation Tempo de Duração: 90 minutos Ano/Local: USA, 1932 Direção: Howard Hawks. Roteiro: Ben Hetch, Seton I. Miller, John Lee Mahin, William R. Burnett Elenco: Paul Muni, George Raft, Ann Dvorak, Boris Karloff, Vince Barnett, Karen Morley. Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 151 Priscilla de P. Pessoa/Maria Adélia Menegazzo [129-152] .................................................................................................. Priscilla Paula Pessoa é mestranda no Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS. Área do artigo: Literatura 152 Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006 ProjetoEditorialeNormasparaPublicação Projetoeditorial PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens tem como objetivo a divulgação de ensaios inéditos, resenhas, entrevistas, elaborados por professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação, voltados para a grande área de Letras, Lingüística e Artes, mais especificamente para as linhas de pesquisa do Programa, e que apresentem contribuições relevantes para a ampliação e o aprofundamento do debate teórico, da análise de questões estéticas e culturais. Os trabalhos que atendam à linha editorial da revista são submetidos ao conselho editorial e encaminhados para análise por dois pareceristas ad hoc. A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com a seguinte temática: As edições de número ímpar se dedicam aos estudos da literatura e as de número par, aos estudos lingüísticos e de semiótica. Paraosestudosliterários,aceitam-seartigossobre: Poéticas modernas e contemporâneas, em abordagens individuais ou inter-relacionadas; comparações entre objetos de linguagens diferentes (artes visuais, artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa. Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários em suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como manifestações de uma dada cultura. Para os estudos lingüísticos e de semiótica, aceitam-se artigos sobre: Constituição do saber lingüístico: estudos relativos às várias dimensões do saber lingüístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza sociocultural e histórica. Produção de sentido no texto/discurso: estudos sobre os procedimentos de organização textual, as variáveis sócio-históricas ou condições de produção que engendram o sentido do discurso em relação ao contexto. Normasparapublicação O artigo deve ter extensão máxima, preferencialmente, de quinze laudas e vir acompanhado de resumo, contendo de três a cinco palavras-chave, e de abstract e keywords. Formatação: papel A4, margens de 3 cm, fonte Times New Roman, corpo 12, parágrafos justificados, primeira linha com recuo de 0,8 cm, espaçamento 1,5 entre linhas. 153 Estrutura: título alinhado à esquerda na primeira linha, nome do autor alinhado à direita na segunda linha, subtítulos das seções alinhados à esquerda, em negrito e sem recuo de parágrafo. Citações bibliográficas: o sobrenome aparece apenas com a primeira letra em maiúscula - Ex.: Hernandes (2006, p. 30) - ou com todas as letras maiúsculas - Ex: (HERNANDES, 2006, p. 30). Notas: se necessárias, devem constar do rodapé, com corpo 10 e espaçamento simples. Referências bibliográficas: apresentadas ao final do texto, de acordo com as normas da ABNT. (Ver exemplos abaixo). Livro: HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006. Ensaio em periódico: NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados, Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006. Capítulo de livro: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO, Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (1994-2004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252. Documentos eletrônicos: CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em: www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm. Acesso em 08 mai. 2007. Os autores deverão encaminhar, separadamente, sua identificação (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações, etc) em texto que não ultrapasse 6 linhas; endereço, telefones para contato e e-mail. Envio dos originais: os textos devem ser enviados por e-mail, em dois arquivos diferentes; o primeiro contendo identificação (nome, função, instituição e endereço); o segundo, o texto sem identificação de autoria. Para: [email protected] Assunto: Revista Papéis Obs.: 1. O nome dos arquivos a serem enviados à revista devem iniciar sempre com o último nome do autor, seguido de outras informações para identificação do mesmo. Ex: no caso de o nome do autor ser Maria Fernanda Pereira, o nome do primeiro arquivo poderá ser ‘pereira_identificação’ e o do segundo ‘pereira_texto’. 2. No caso de o texto ser acompanhado de imagens essas deverão ser encaminhadas em arquivo separado (nomeado com o último nome do autor, seguido do número da figura, conforme citada no texto), com largura mínima de 10 cm e resolução mínima de 300x300 dpi. 154