pdf completo - Revista Papeis

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Papéis : revista do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens / Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- .
Campo Grande, MS : A Universidade, 1997- .
v. : il. ; 23 cm.
Semestral
Subtítulo anterior: revista de Letras.
ISSN 1517-9257
1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos.
3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul.
CDD (22)-805
CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL E ASSINATURA
Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Centro de Ciências Humanas e Sociais
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Cidade Universitária, Cx. Postal 549, UNIDADE 4, Campo Grande, MS.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
CAPA
REITOR
Eluiza Bortolotto Ghizzi
Manoel Catarino Paes Peró
IMAGEM DE CAPA
VICE-REITOR
Priscila Paula Pessoa, somos as máscaras
Amaury de Souza
que escolhemos usar, 2005, mista sobre
DIRETOR DE CENTRO
tela, 80cm x 80cm, acervo do autor
Luiz Carlos de Mesquita
PROJETO GRÁFICO
COORDENADOR DO PROGRAMA
Eluiza Bortolotto Ghizzi
DE PÓS-GRADUAÇÃO
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Maria Adélia Menegazzo
Teresa Carolina Rocha de Souza
EDITORA CIENTÍFICA
REVISÃO
Maria Adélia Menegazzo
A revisão lingüística e ortográfica é de
EDITORES ADJUNTOS DESTA EDIÇÃO responsabilidade de Eva de Mercedes M.
Edgar Cézar Nolasco
Gomes
Rosana Cristina Zanelatto Santos
TRADUÇÃO PARA O INGLÊS DO TEXTO
DA ORELHA
Priscila Elbert Guimarães
CÂMARA EDITORIAL
Alda Maria Quadros do Couto - Ângela Varela Brasil - Aparecida Negri Isquerdo - Auri
Claudionei Matos Frubel - Edgar Cezar Nolasco dos Santos - Eluiza Bortolotto Ghizzi Hélio Augusto Godoy de Souza - José Genésio Fernandes - Kelcilene Grácia Rodrigues Márcia Gomes Marques - Maria Adélia Menegazzo - Maria Emília Borges Daniel - Rauer
Ribeiro Rodrigues - Rita de Cássica Pacheco Limberti - Rita Maria Baltar Van Der Laan
- Rosana Cristina Zanelatto Santos - Rosangela Villa da Silva - Vânia Maria de Vasconcelos
- Wagner Corsino Enedino
CONSELHO CIENTÍFICO
Álvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [USP] – Clotilde Azevedo
Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira
Elias [UNAES] - Gladis Maria Almeida Barcelos [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA]
– Jaime Ginsburg [USP] – Luiz Carlos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FELARUNESP] – Márcia Valéria Z. Gabbi [FELAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa
de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt [UFPR] – Nilton Hernandes [USP] – Richard
Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCLAR-UNESP] – Thomas Bonnici
[UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL]
Sumário
Apresentação
Literatura
[Artigos]
11 A CRUZ COMO ESPADA: O IMAGINÁRIO DE UM DESBRAVADOR
José Aparecido Amorim/Alda Maria Quadros do Couto
29
EXPERIMENTE O NOVO, BEBA A SUBVERSÃO DE HABEMUS
COCAM
Karina Kristiane Vicelli Blake/Rosana Cristina Zanelatto Santos
47
O FATOR XERAZADI: UM OBSTÁCULO ENTRE O JORNALISMO E
A LITERATURA
Alda Maria Quadros do Couto
65
A PÓS-MODERNIDADE E OS ESTUDOS CULTURAIS NA OBRA DE
RENATO RUSSO: UMA LEITURA DE PERFEIÇÃO
Wagner Corsino Enedino/Paulo Nogueira de Souza Junior
87
CASAMENTO EM PAPÉIS: JOSÉ ALENCAR E MACHADO DE ASSIS
Raquel de Oliveira Fonseca
101 “A ESCURIDÃO” E ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: UMA ABORDAGEM
COMPARATIVA
Ramiro Giroldo
109
A NARRATIVA HÍBRIDA EM LAVOURA ARCAICA
Flávio Adriano Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco
129 OS SONHADORES E AS CITAÇÕES
Priscilla Paula Pessoa/Maria Adélia Menegazzo
153 ProjetoEditorialeNormasparaPublicação
Apresentação
Esta edição da revista traz em seu bojo um conteúdo particularmente
rico, representado por oito artigos agrupados na área de Literatura, numa
comunhão de saberes entre os parceiros pesquisadores.
A qualidade dos trabalhos se avoluma, surpreendendo com as
publicações da comunidade acadêmica docente e discente e distribuindose pela análise, pela interpretação e pela semiótica literárias, pelas trocas
ou empréstimos lingüísticos, nas literaturas e, ainda, por vias próximas dos
estudos culturais.
Abrindo as páginas da revista nos deparamos com o artigo de
José Aparecido Amorim e Alda Maria Quadros do Couto, A cruz como
espada: o imaginário de um desbravador, momento em que os autores
buscam delinear um perfil do imaginário que permeia a obra do
desbravador espanhol Cabeza de Vaca, mediante análise de sua obra
Naufrágios.
A seguir, pelas mãos de Karina Kristiane Vicelli Blake e Rosana
Cristina Zanelatto Santos, transportamo-nos para as telas do artista plástico
Evaristo Prado, buscando, com elas, experimentar o novo e beber da
subversão de habemus cocam. Alda Maria Quadros do Couto nos arrebata
e nos apresenta o fator xerazade, para nos fazer entender as distinções
entre ficção e informação e as relações entre jornalismo e literatura.
Na seqüência dessa viagem cultural, Wagner Corsino Enedino e
Paulo Nogueira de Souza Junior nos fazem partir em busca da perfeição,
conduzindo-nos para a obra de Renato Russo, enfatizando o entrelaçamento
entre projeto literário e projeto político. Já o ensaio de Raquel de Oliveira
Fonseca faz uma análise do tema casamento em textos dramáticos de dois
grandes escritores, José de Alencar e Machado de Assis, quando se pode
observar o tratamento diverso dado à questão da moralidade.
O artigo de Ramiro Giroldo discute comparativamente o romance Ensaio
sobre a cegueira, de José Saramago, e A Escuridão, de André Carneiro, a fim de
alcançar uma nova compreensão dos textos. Flávio Adriano Nantes Nunes e Edgar
Cézar Nolasco entrelaçam seus conhecimentos e tornam-se parceiros para analisar
o texto híbrido em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, revelando-nos que no
interior de uma narrativa pode haver várias formas e textos literários em conluio.
Finalmente, o estudo de Priscilla Paula Pessoa e Maria Adélia Menegazzo,
utilizando definições, conceitos e abordagens próprios da citação literária, aplicados a
uma obra cinematográfica, aponta as intertextualidades e realizar uma análise das
citações existentes no filme Os sonhadores, de Bernardo Bertolucci.
A Revista Papéis vê surgir, assim, mais um volume da sua série. Este fato
nos deixa satisfeitos, seja pela diversidade e qualidade dos temas abordados, seja
pela regularidade de publicações que vemos manter-se, e mesmo pelo número de
colaboradores que nele participam, e a quem somos gratos.
Edgar Cézar Nolasco
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Editores Adjuntos desta edição
Acruzcomoespada:oimagináriodeumdesbravador
JoséAparecidoAmorim
Alda Maria Quadros do Couto
Resumo: Pretende-se com este trabalho delinear um perfil do imaginário que permeia
a obra do desbravador espanhol Alvar Núñez Cabeza de Vaca através da análise
de seu livro Naufrágios. Um relato de viagem escrito no século XVI que, em
um primeiro momento, conteria apenas informações factuais, no entanto,
implicitamente e explicitamente, revelam sentidos diversos. O discurso, nesse
relato, engendra uma figura que incorpora a “imagem” do Cristo. Espera-se
esclarecer como se dá o efeito dessa construção, que se constitui pelas vozes
do narrador, da religião católica e do Estado (poder instituído), independentemente da intencionalidade do autor, em um contexto histórico e social específico.
Palavras-chave: Relatos de viagem. Dialogismo. Imaginário católico/cristão.
Abstract: This criticism to describe the profile of fictional permeates the works of
Spanish pathfinder Alvar Núñez Cabeza de Vaca through of the analysis of your
book Naufrágios. An account of travel written in the 16th century which in the
moment first going to tell alone factual information notwithstanding implicity and
unambiguously disclouses various meaning. The discourse in the relation
engenders a figure which embodies the “likeness” of the Chridt. This work to
hope illustrate as befall the effect from that construction which compose itself
by the narrator´s voices of the Catholic religion and State (established authority)
free of the author´s intention inside a historical context and specific social.
keywords: Accounts of travel. Dialogism. Catholic/christian fictional.
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Preliminares
Este artigo tem por objetivo analisar o livro Naufrágios, de Álvar
Núñez Cabeza de Vaca, focalizando preferencialmente a persona engendrada
pelo discurso, uma figura que se assemelha ao messias, ao redentor; ao
Cristo bíblico; uma figura que é ou faz parte do imaginário ocidental.
O livro de Cabeza de Vaca contém elementos que transitam entre
o real e o ficcional. O fato e a fabulação; o devaneio e a consciência;
o que se tem como concreto e o que se pressupõe abstrato; tudo isso
se confunde e, de certa forma, mescla-se para conformar um discurso
ímpar, um discurso em que prevalece mais o efeito que o fato, um
discurso que emula os atos do Cristo bíblico.
O grande legado de Cabeza de Vaca, enquanto narrador, é ter
deixado uma história verossímil ao relatar fatos que aparentemente são
fantásticos, inacreditáveis e fantasiosos.
Usando de estratégias retóricas e de artifícios originais, Cabeza de
Vaca ordena um discurso que convence e que retém o leitor ao seu
lado, como cativo, como alguém que “aceita” os fatos expostos.
Existem algumas circunstâncias que favorecem esse narrador: uma
delas é que ninguém, absolutamente ninguém, poderia contradizê-lo. Dos,
aproximadamente, trezentos homens que com ele adentraram as terras da
América do Norte só restaram três com vida e, coincidentemente, essas
três figuras estavam de acordo com ele ou não se pronunciaram.
Não havia pessoa alguma que pudesse dizer algo de diferente
sobre o acontecido, tudo era novo: o continente, os habitantes, as
situações; não havia uma contra-palavra.
O discurso pode ser encarado de diversas maneiras. Mas é muito
difícil de se ter uma prova concreta de que aquilo que foi contado fosse
uma inverdade, uma mentira ou uma invenção. Dificilmente, se poderá
dizer, com certeza, que Álvar Núñez Cabeza de Vaca sonhou ou mentiu
quando escreveu a história de suas peripécias pela América do Norte
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entre os anos de 1527 a 1536: dez anos de descaminhos e percalços
por terras desconhecidas das sociedades européias.
A partir da leitura analítica, observa-se o modo como o narrador constrói
uma figura heróica, uma figura que se envolve em situações diversas e pratica
ações que permeiam o imaginário cristão. Essa figura remete ao texto sagrado
da cristandade e, conseqüentemente, ao seu redentor.
De acordo com Roberto Ferrando (Cf. 1984, p. 28), Álvar Núñez
Cabeza de Vaca foi incluído entre as autoridades da Real Academia da
Língua e entre os clássicos da língua espanhola, dentre outras coisas,
porque, em seus Naufrágios, assim como ocorre na maior parte dos
relatos autobiográficos dos exploradores e conquistadores, a língua espanhola
encontra sua máxima qualidade expressiva.
As fronteiras entre a ficção e a realidade não estavam bem
definidas, principalmente no século XVI, pois os descobrimentos do Novo
Mundo eram tão fantásticos quanto os relatos fantasiosos dos romances
de cavalaria (Cf. MAURA, 2000, p. 39).
Em seus capítulos derradeiros, Naufrágios se torna semelhante a
uma crônica de peregrinações; curas e evangelização são realizadas por
Cabeza de Vaca e seus amigos náufragos. No final, o modelo intertextual
seria dado pela tradição hagiográfica do medievo, que glorificava as
façanhas milagrosas (Cf. JUAN-NAVARRO, 1999, p. 207 e 208).
Alguns dos relatos e das crônicas da época da Conquista e,
certamente, também em Naufrágios de Cabeza de Vaca, a recorrência à
ficção objetiva o convencimento, ou a persuasão. Esses traços os
assemelhariam com a tradição novelística que principiava a desenvolver
no século XVI (Cf. JUAN-NAVARRO, 1999, p. 208).
Juan Francisco Maura escreve “cada nación necesita su epopeya, muchas veces
adobada al gusto de los intereses determinados de un pueblo y de su historia.
El autor conoce su público, por tanto si el público pide héroes le dará héroes,
si el público pide oro y aventuras, el autor hará lo máximo posible por
complacerle” (MAURA, 2000, p. 39).
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Em seu “Proemio” de Comentários, Cabeza de Vaca escreve: “ Que cierto
no hay cosa que más deleite a los lectores que las variedades de las cosas
y tiempos y las vueltas de la fortuna, las cuales, aunque al tiempo que se
experimentan no son gustosas, cuando las traemos a la memória y leemos son
agradables” (CABEZA DE VACA, 1984, p. 147).
Para Barrera (1985, p. 26), referindo-se a Naufrágios, fica claro
que, apesar da aparente simplicidade e o propósito documental, a obra
de Cabeza de Vaca demonstra uma intencionalidade artística. Álvar
Núñez é um relator que se preocupa com seu relato no que se refere
à disposição do material e às motivações e dúvidas que experimenta ao
redigir sua obra. “Esta manera de proceder impone al texto um carácter
reflexivo y reflector que, en parte, viene dado por su índole autobiográfica
y el haber sido confiado a la memória”.
Abordagem
Dentre as principais características do relato de viagem, escrito por
Cabeza de Vaca, existe o consenso de que é uma obra seminal de
diversos tipos textuais, em que se mesclam diversas tipologias, tais
como: a épica, a narrativa descritiva, o relato autobiográfico, dentre
outros (Cf. ARENAS, 2000, On-line).
O teórico russo Mikhail Bakhtin escreve que o autor “não cria
escravos mudos (como Zeus), mas pessoas livres capazes de colocarse lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se
contra ele” (BAKHTIN, 1981 p. 02). A figura engendrada pelo discurso
de Cabeza de Vaca parece colocar-se nesse patamar.
Para Paulo Bezerra, referindo-se ao conceito desenvolvido por
Bakhtin, o dialogismo se dá por um processo de “comunicação interativa”,
o qual permite o conhecimento do Eu através do Outro. O Outro permite
que se conheça o Eu, pois somente o Outro tem uma imagem completa
do Eu, por estar de fora, tem uma visão mais acabada e totalizadora.
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“Aí o autor visa a conhecer o homem em sua verdadeira essência como um outro ‘eu’
único, infinito e inacabável; não se propõe conhecer a si mesmo, conhecer seu próprio
eu, propõe-se conhecer o outro, o ‘eu’ estranho” (BEZERRA, 2005, p. 194).
O termo “polifonia”, de acordo com Faraco, “é introduzido no vocabulário
bakhtiniano para designar o modo novo de narrar que, segundo Bakhtin, havia
sido criado por Dostoievski” (FARACO, 2003, p. 74), no qual, todas as
vozes mantêm uma relação valorativa igualitária e estão dialogicamente
relacionadas, dessa forma, constituindo, assim, um grande diálogo.
No entanto, seguindo o conceito de Bakhtin, Faraco considera que
a possibilidade de existência de um mundo onde reine a polifonia, um
mundo completamente polifônico, onde todas as vozes sejam eqüipolentes
seja apenas possível em tese, ou seja, deva ser visto “como a metáfora
que recobre a sua utopia e que ele viu materializada no projeto artístico
de Dostoievski” (FARACO, 2003, p. 74).
Desse modo, o diálogo entre textos e discursos será aqui analisado não
no sentido de se tentar procurar uma “polifonia plena”, mas “traços polifônicos”,
ou seja, o texto será analisado no sentido de se tentar estabelecer relações
dialógicas com outros textos, especificamente com os diversos livros que
compõem a Bíblia, para que se possa delinear um perfil da figura engendrada
pelo discurso religioso presente em certas partes do texto.
Análise
Cabeza de Vaca, após longa e frustrada aventura à América do
Norte, retornando à sua pátria, não levava nada de valor a seu rei. Mas
converteu seu infortúnio em uma história cheia de símbolos e alegorias.
Em princípio, apenas como oficial de uma grande armada, ele
ocupa uma posição de coadjuvante para, aos poucos, assumir o papel
da personagem principal. Era um homem criado e instruído no início do
século XVI, numa Europa que acabara de se livrar das invasões mouras
e com uma igreja católica que estava em franca expansão.
As remissões a situações ou eventos que evocam religiosidade vão
ser distribuídas de maneira muito bem ordenada durante todo o relato.
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Para Juan Francisco Maura (2000, p. 45),
“El sistema interpretativo al que recurre con más frecuencia Alvar Núñez es el
de la simbologia cristiana. [...] Por toda la segunda parte de los Naufragios,
a partir de la conversión de los esclavos españoles en curanderos, hay
paralelismos implícitos con los hechos de Cristo y sus discípulos”
O presságio ou profecia é elemento presente em textos religiosos,
e marcará, de modo singular, a história narrada, pois as “certezas” de
Cabeza de Vaca funcionam como premonições e, no desenrolar dos
fatos, elas acabam se concretizando.
Durante um desentendimento com seu comandante, Narváes, Cabeza
de Vaca relata:
“Viendo que importunándome tanto, yo todavía me excusaba, me preguntó qué
era la causa por que huía de aceptarlo; a lo cual respondí que yo hyía de
encargarme de aquello porque tenía por cierto y sabía que él no había de
ver más los navíos, ni los navíos a él” (CABEZA DE VACA, 2000, p. 90.
Grifo acrescentado).1
Ora, isso realmente acontece na história, configurando-se para o
leitor como um fato que reforça a imagem da figura engendrada.
O narrador também irá escrever:
“Pasados dos días que allí estuvimos, determinamos de ir a buscar el maíz, y no
quisimos seguir el camino de las Vacas, porque es hacia el Norte, y esto era para
nosostros muy gran rodeo, porque siempre tuvimos por cierto que yendo la puesta
de Sol habíamos de hallar lo que deseábamos” (p. 193. Grifo acrescentado).
Segundo Juan Franciso Maura, a palavra “Deus” e suas derivações,
Senhor, Jesus Cristo, aparecem 86 vezes em toda a obra (Cf. 2000,
p. 54). Essas remissões reforçam a imagem de uma figura ligada, pela
fé, ao supremo Deus.
1
Salvo qualquer indicação, todas as citações serão dessa mesma edição.
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Mas como el más cierto remedio sea Dios nuestro Señor, y de este nunca desconfiamos
(p. 103). [...] y cada uno se fue encomendándolo a Dios nuestro Señor, que lo
encaminase por donde Él fuese más servido. Outro día quiso Dios que uno de la
compañía vino diciendo que él haría unos cañones de palo ( p. 104). [...] Después
de habernos mudado, desde a dos días nos encomendamos a Dios nuestro Señor y
nos fuimos huyendo (p. 151). [...] Después de haberlas comido [tunas] encomendámonos
a Dios y partímonos, y hallamos el camino que perdido habíamos (p. 164).
A imagem de Jesus Cristo irá aparecer de forma lenta, porém
sistemática; todas as remissões às figuras ou passagens da tradição
cristã remetem de forma direta ou indireta ao Messias, o Redentor.
Diante das situações extremas, ele invoca a Deus, e isso fará
muitas vezes: Cabeza de Vaca atribui o seu destino a Deus e, a seus
pecados, é atribuída a causa de seu infortúnio. Essas constantes
remissões ao ideário cristão possibilitam uma relação mais aproximativa
com a figura principal engendrada pelo texto: o Messias.
Tal era la tierra em que nuestros pecados nos habían puesto, que con muy gran
trabajo podíamos hallar piedras para lastre y anclas de las barcas, (p.105). [...]
Plugo a nuestro Señor, que en las mayores necesidades suele mostrar su favor,
que a puesta del Sol volvimos una punta que la tierra hace, adonde hallamos mucha
bonanza y abrigo (p. 109). [...] Los trabajos que en esto pasé sería largo de
contarlos, así de peligros y hambres, como de tempestades y fríos, que muchos de
ellos me tomaron en el campo y solo, donde por gran misericordia de Dios nuestro
Señor escapé (p. 134). [...] Plugo a nuestro Señor que, buscando tizones
del fuego que allí habíamos hecho, hallamos lumbre, con que hicimos grandes
fuegos. Así, estuvimos pidiendo a Nuestro Señor misericordia y perdón de
nuestros pecados, derramando muchas lágrimas (p. 120. Grifos acrescentados).
As marcas que Cristo levou no corpo também compõem a personagem
criada pelo narrador:
De esto traía yo los dedos tan gastados, que una paja que me tocase me
hacía sangre de ellos (p. 133). [...] y como traía los pies descalzos, corrióme
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de ellos mucha sangre, y Dios usó conmigo de misericordia, que en todo este
tiempo no ventó el norte, porque de outra manera ningún remedio había de
yo vivir (p. 155). [...] No tenía, cuando estos trabajos me veía, outro
remedio ni consuelo sino pensar en la pasión de nuestro redentor Jesuscristo
y en la sangre que por mí derramó, y considerar cuánto más sería el tormento
de las espinas él padeció que no aquél que yo sufría (p. 162).
Segundo Juan Francisco Maura, “la verdad es que sólo le falta
caminar sobre las aguas y multiplicar los panes y los peces” (MAURA,
2000, p. 44).
O que ocorre é que Álvar Núñez, que tanta fome passou, também
distribui alimentos. Os índios trazem tudo para que eles abençoem e
distribuam como bem entenderem:
Todo cuanto aquella gente hallaban y mataban nos lo ponían delante, sin que
ellos osasen tomar ninguna cosa, aunque muriesen de hambre; que así lo
tenían ya por costumbre después que andaban con nosostros, y sin que
primero lo santiguásemos (p. 184) [...] Muchas veces traíamos com nosotros
tres o cuatro mil personas. Y era tan grande nuestro trabajo, que a cada
uno habíamos de soplar y santiguar lo que habían de comer y beber (p. 185.
Grifos acrescentados).
No evangelho de Marcos (8:6-9)2, as pessoas que se alimentavam na
presença de Jesus e dos apóstolos eram, mais ou menos, quatro mil também.
O desespero diante da morte não o faz se preocupar com sua vida,
e sim valorizar ainda mais a vida dos seus companheiros. A alegoria da
vítima sacrificial, do cordeiro, um símbolo cristão: “Yo cierto aquella hora
2
Cf . Marcos: “E ordenou à multidão que se assentasse no chão. E, tomando os sete
pães, e tendo dado graças, partiu-os, e deu-os aos seus discípulos, para que os
pusessem diante deles, e puseram-nos diante da multidão. Tinham também uns
poucos de peixinhos; e, tendo dado graças, ordenou que também lhos pusessem
diante. E comeram, e saciaram-se; e dos pedaços que sobejaram levantaram sete
alcofas. E os que comeram eram quase quatro mil; e despediu-os.”
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de muy mejor voluntad tomara la muerte, que no ver tanta gente delante
de mi de tal manera” (p. 115).
A figura de Pôncio Pilatos pode ser inferida no discurso através das
falas atribuídas ao seu comandante:
“Él me respondió que ya no era tiempo de mandar unos a otros; que cada
uno hiciese lo que mejor le pareciese que era para salvar la vida; que él así
lo entendía de hacer, y diciendo esto, se alargó con su barca” (p. 114).
Ao colocar o comandante da expedição como alguém que se exime
de suas prerrogativas, o narrador o associa, ainda que indiretamente, à
imagem do inquisidor de Cristo.
O discurso desenvolvido por Cabeza de Vaca margeia o discurso
bíblico por meio de paralelismos3. Algumas situações pelas quais os
náufragos passam se assemelham aos relatos bíblicos.
Outro día la gente comenzó mucho a desmayar, de tal manera, que cuando el
Sol se puso, todos los que en mi barca venían estaban caídos en ella unos sobre
otros, tan cerca de la muerte, que pocos había que tuviesen sentido, y entre
todos ellos a esta hora no había cinco hombres em pie. Cuando vino la noche
no quedamos sino el maestre y yo que pudiésemos marear la barca, y a dos
horas de la noche el maestre me dijo que yo tuviese cargo de ella, porque él
estaba tal, que creía aquella noche morir. Así, yo lo tomé el leme, y pasada
media noche, yo llegué por ver si era muerto el maestre, y él me respondió que
él antes estaba mejor y que él gobernaría hasta el día (p. 115).
Em Lucas (8:22-24), tem-se:
E aconteceu que, num daqueles dias, entrou num barco com seus discípulos,
e disse-lhes: Passemos para a outra banda do lago. E partiram. E, navegando
eles, adormeceu; e sobreveio uma tempestade de vento no lago, e enchiam3
O termo “paralelismo” é utilizado por: (BARRERA, 1985), (MAURA, 2000),
(ARENAS, 2000), (CORDIVIOLA, 2001), dentre outros, para estabelecer comparações
sintáticas e semânticas com outros textos.
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se d’água, estando em perigo. E, chegando-se a ele, o despertaram, dizendo:
Mestre, Mestre, perecemos. E ele, levantando-se, repreendeu o vento e a
fúria da água; e cessaram, e fez-se bonança.
A figura que encarna o ideal cristão, o bom pastor que se dispõe
a fazer sacrifícios para manter seu rebanho unido, é inscrita no discurso
quando ele relata:
“Y pues Dios nuestro Señor había sido servido de guardarme entre tantos
trabajos y enfermedades, y al cabo traerme em su compañía, que ellos
determinaban de huir, que yo los pasaría de los ríos y ancones que
topásemos” (p. 138).
No desenrolar dos acontecimentos, as curas, ou os atos daqueles
que têm o poder de intermediar os índios com Deus, tornam-se mais
freqüentes na medida em que a narrativa se aproxima do final. E esses
acontecimentos serão de fundamental importância para consolidar a
imagem do herói construído: um herói que encarna a figura do Cristo
La manera con que nosotros curamos era santiguándonos y soplarlos, y rezar
un <<Pater Noster>> y un <<Ave María>>, y rogar lo mejor que podíamos
a Dios nuestro Señor y su misericordia que todos aquéllos por quien
suplicamos, luego que los santiguamos decían a los otros que estaban sanos
y buenos (p.130. Grifos do autor). [...] Luego el pueblo nos ofreció muchas
tunas, porque ya ellos tenían noticia de nosotros y cómo curábomos, y de las
maravillas que nuestro Señor con nosotros obraba (p. 151 e 152) [...] Como
por toda la tierra no se hablase sino de los misterios que Dios nuestro Señor
con nosotros obraba, venían de muchas partes a buscarnos para que los
curásemos (p. 157).
Álvar Núñez relata um fato incrível, porém verossímil: um homem que
parecia estar morto, inclusive foi constatado por ele e por seu companheiro
Dorantes que o tal homem não tinha mais pulso, ressuscitaria no dia
seguinte. Após uma massagem e a aplicação de rituais indígenas somados
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A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28]
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a pedidos (rogos) a Deus, o homem é deixado em sua cama para,
no outro dia, se ter a notícia de que ele havia caminhado e se alimentado
entre os demais.
[...] yo vi el enfermo que íbamos a curar que estaba muerto, porque estaba
mucha gente al derredor de él llorando y su casa deshecha, que es señal que
el dueño estaba muerto. Así, cuando yo llegué hallé el indio los ojos vueltos
y sin ningún pulso, y con todas las señales de muerto, según a mí me pareció
y lo mismo dijo Dorantes. Yo le quité una estera que tenía encima, con que
estaba cubierto, y lo mejor que pude apliqué a nuestro Señor fuese servido
de dar salud a aquél y a todos los otros que de ella tenían necesidad. Después
de santiguado y soplado muchas veces, me trajeron un arco y me lo dieron,
y una sera de tunas molidas, y lleváronme a curar a otros muchos que estaban
malos de modorra, y me dieron otras dos seras de tunas, las cuales di a
nuestros indios, que con nosotros habían venido. Hecho esto, nos volvimos a
nuestro aposento, y nuestros indios, a quien di las tunas, se quedaron allá.
A la noche se volvieron a sus casas, y dijeron que aquel que estaba muerto
y yo había curado en presencia de ellos, se había levantado bueno y se había
paseado, y comido, y hablado con ellos, y que todos cuantos había curado
quedaban sanos y muy alegres (157-158).
Esse fato remete, juntamente com as outras referências, ao discurso
que permeia o herói/messias. Os índios são apresentados como um
povo que acredita nos poderes curativos dos espanhóis; têm tanta fé que
se curam ou acreditam na cura.
O arquétipo do demônio em forma de gente insere-se na narrativa
quando uma história estranha é contada pelos índios e recontada por
Cabeza de Vaca: um homem que morava nas profundezas da terra e
que mutilava os índios e matava-os, que os amedrontava; que parecia
não se alimentar e, mesmo assim, vivia. É, então, usada a alegoria do
santo (ou apóstolo) que expulsa o demônio:
“Nosotros les dijimos que aquél era un malo, y de la mejor manera que
pudimos les dábamos a entender que si ellos creyesen en Dios nuestro Señor,
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fuesen cristianos como nosotros, no tendrían miedo de aquel, ni él osaría venir
a hacerles aquellas cosas. Que tuviesen por cierto que en tanto que nosotros
en la tierra estuviésemos él no osaría parecer en ella” (p. 160).
Algumas passagens bíblicas estão, de forma alusiva, presentes no
discurso: “Después que nos partimos de los que dejamos llorando, fuímonos
con los otros a sus casas, y de los que en ellas estaban fuimos bien
recibidos y trajeron sus hijos para que les tocásemos las manos” (p. 174).
O Evangelho de Lucas (18:16) diz: “Mas Jesus, chamando-os para si,
disse: Deixai vir a mim os meninos, e não os impeçais, porque dos tais é
o reino de Deus”.
Logo adiante:
“Y cuando de noche dormíamos, a la puerta del rancho donde estábamos nos
velaban a cada uno de nosotros seis hombres con gran cuidado, sin que nadie
nos osase entrar dentro hasta que el Sol era salido” (p.175).
O livro de Isaías (6:1-2) diz:
“No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto
e sublime trono, e seu séqüito enchia o templo. Os serafins estavam acima
dele; cada um tinha seis asas: com duas cobriam os seus rostos, e com duas
cobriam os seus pés e com duas voavam”.
Os seis homens, a velar o sono dos náufragos, remetem aos
serafins que tinham seis asas e guardavam o trono de Deus.
Existem outras referências bíblicas no texto de Cabeza de Vaca: entre
elas está a passagem em que Jesus se afasta dos apóstolos para rezar
no Getsêmane; no Evangelho de Mateus (26: 36:38) está escrito:
“Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmani, e disse a seus
discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou além orar. E, levando consigo Pedro e
os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se muito. Então
lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até à morte; ficai aqui, e velai comigo”.
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A cruz como espada: o imaginário de um desbravador [11-28]
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Já no texto de Cabeza de Vaca tem-se:
“y yo me salí una noche a dormir en el campo, apartado de ellos. Luego
fueron donde yo estaba, y toda la noche estuvieron sin dormir y con mucho
miedo y hablándome y diciéndome cuán atemorizados estaban rogándonos que
no estuviésemos más enojados” (p. 187).
A relação entre esses dois textos se dá por alusão e por uma
seqüência de outras relações anteriores entre a figura principal da
narrativa e a figura de Cristo.
Outra comparação:
Y a puesta de Sol llegamos a cien casas de indios; y antes que llegásemos salió
toda la gente que en ellas había a recibirnos con tanta grita que era espanto, y
dando en los muslos grandes palmadas. [...] Sin dejarnos poner los pies en el suelo
nos llevaron a sus casas, y tantos cargaban sobre nosotros y de tal manera nos
apretaban, que nos metimos em las casas que nos tenían hechas (p. 175 e 176).
A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém: é essa a imagem à qual
alude o narrador. Pois, no livro de João (12:12-15), está escrito:
“No dia seguinte, ouvindo uma grande multidão, que viera à festa, que Jesus
vinha a Jerusalém, tomaram ramos de palmeiras, e saíram-lhe ao encontro,
e clamavam: Hosana: Bendito o rei d’Israel que vem em nome do Senhor”.
A imagem do Messias é incorporada, pelo discurso, ao grupo de
náufragos e consolidada na figura de quem narra. O Texto bíblico diz:
“Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o principado
está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro,
Deus Forte, Pai da eternidade, Príncipe da Paz” (ISAIAS, 9:6).
O paralelismo se dá quando Cabeza de Vaca escreve:
“Por todas estas tierras, los que tenían guerras com los otros se hacían luego
amigos para venirnos a recibir y traernos todo cuanto tenían, y de esta manera
dejamos toda la tierra en paz” (p. 195 e 196).
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Outro caso de paralelismo: “Pasamos por gran número de diversidades
de lenguas; con todas ellas Dios nuestro Señor nos favoreció, porque
siempre nos entendieron y les entendimos” (p. 195).
No livro de Atos está escrito:
“E todos ficaram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras
línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem (2:4)[...]
Havendo-lhes Paulo imposto as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo, e
falavam em línguas e profetizavam (19:6)”.
Com a aproximação do final da narrativa, Cabeza de Vaca escreve:
“Después que vimos rastro claro de cristianos, y entendimos que tan
cerca estábamos de ellos, dimos muchas gracias a Dios nuestro Señor
por querernos sacar de tan triste y miserable cautiverio” (p. 202).
Em Romanos (8:21), está escrito: “na esperança de que também
a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a
liberdade da glória dos filhos de Deus”. E, em Efésios (4:8): “Por isso
foi dito: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens”.
Cabeza de Vaca deixa uma mensagem de fé e esperança em um
novo reino, um reino futuro, onde o rei da Espanha irá dominar:
Dios nuestro Señor por su infinita misericordia, quiera que en los días de
Vuestra Majestad y debajo de vuestro poder y señorío, estas gentes vengan
a ser verdaderamente y con entera voluntad sujetas al verdadero Señor que
las crió y redimió. Lo cual tenemos por cierto que así será, y que Vuestra
Majestad há de ser el que lo há de poner en efecto (que no será difícil de
hacer); porque dos mil leguas que anduvimos por tierra y por la mar en las
barcas, y otros diez meses que después de salidos de cautivos, sin parar,
anduvimos por la tierra, no hallmaos sacrificios ni idolatría (p. 213).
O discurso engendrado revela uma personagem que promete um
novo reino; analogia ao Messias bíblico. Sendo assim, a figura do rei
da Espanha está paralelamente ligada à figura de Deus.
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O final do Livro de Cabeza de Vaca o aproxima ainda mais do
discurso bíblico, pois, assim como na Bíblia, o texto torna-se circular, ou
seja, toda a história remonta ao seu início; remonta a uma profecia:
...después que dejamos los tres navíos porque el outro era ya perdido en la
costa brava. Los cuales quedaban a mucho peligro, y quedaban en ellos has
cien personas con pocos mantenimientos, entre los cuales quedaban diez
mujeres casadas, y una de ellas había dicho al gobernador muchas cosas que
le acaecieron en el viaje, antes que le sucediesen. Esta le dijo, cuando entraba
por la tierra, que no entrase, porque ello creía que él ni ninguno de los que
con él iban no saldrían de la tierra; y que si alguno saliese, que haría Dios
por él grandes milagros; pero creía que fuesen pocos los que escapasen o no
ningunos. El gobernador entonces le respondió que él y todos los que con él
entraban iban a pelear y conquistar muchas y muy extrañas gentes y tierras,
y que tenía por muy cierto que conquistándolas habían de morir muchos; pero
aquéllos que quedasen serían de buena ventura y quedarían muy ricos, por la
noticia que él tenía de la riqueza que en aquélla había. Díjole más, que le
rogaba que ella le dijese las cosas que había dicho pasadas y presentes, ¿quén
se las había dicho? Ella respondió, y dijo que en Castilla una mora de
Hornachos se lo habia dicho, lo cual antes que partiésemos de Castilla nos lo
había a nosotros dicho, y nos había sucedido todo el viaje de la misma manera
que ella nos había dicho (p. 219 e 220).
Tudo o que aconteceu está resumido em uma profecia, apesar de
se tratar de uma narrativa montada na “condicional”, pois foi dita por
uma outra pessoa que não estaria presente, a “moura de Hornachos”;
o texto, em seu sentido profético, assemelha-se ao texto bíblico.
Para Trinidad Barrera, citando Pupo-Walker:
El relato de la Mora de Castilla ofrece una variante de la profecia: las
aventuras y vicisitudes descritas por Alvar Núñez aparecen como previstas y
contenidas en la profecía: ‘lo que ocurre es que Alvar Núñez, al narrar sus
aventuras, no há hecho más que recordar lo profetizado. De esa manera se
cancela por un instante la progresión lineal de la historia que repentinamente
queda supeditada al mundo de la ficción’, y aún la persona de Cabeza de
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Vaca resulta enaltecida através de la profecía: ‘si alguno saliese (com vida)
que haría Dios por él muy grandes milagros’ (BARRERA, 1985 p. 41).
Considerações finais
A maioria das passagens marcantes da vida de Jesus pode ser
inferida a partir da leitura de Naufrágios. Para Santiago Juan-Navarro:
La presentación de si mismo como leal conquistador y evangelizador pacífico,
con dotes de líder político y religioso, conocimiento geográfico y etnológico del
território, así como capacidad retórica para encender la imaginación de sus
lectores, tiene un objetivo que no es principalmente ético, científico ni literário,
sino político y militar: justificar obedientemente sus acciones em la Florida y la
Nueva Galicia y solicitar nuevas “mercedes” del emperador (su nombramiento
como capitán o Adelantado de una nueva expedición) (JUAN-NAVARRRO,
1999, p. 219.)
O Messias está presente no discurso e não somente na figura de
Cabeza de Vaca. E quem rege esse discurso apropria-se dessa figura
e a usa como “espada” para conquistar seus interesses4.
A estrutura discursiva do livro de Cabeza de Vaca é marcadamente
focada nos diversos textos bíblicos. Esses textos são “vozes” que se
coadunam para conformar, por meio da regência do narrador, um herói.
Esse “outro” gerado pelo discurso é dominante do cenário narrativo;
uma personagem que ganha força e sobressai-se no texto.
Curiosamente, a cruz que Cristo carregou e que se tornou o
símbolo de seu martírio aparece no discurso de Cabeza de Vaca como
uma “arma”; uma arma retórica.
O diálogo entre a história contada por Cabeza de Vaca e alguns
livros da Bíblia é evidente. O cruzamento do texto de Cabeza de Vaca
4
Após regressar à Espanha, Cabeza de Vaca capitulou, sem alcançar êxito, seu
retorno à América do Norte na condição de governador. No entanto, conseguiu uma
nomeação de governador da Província do Prata, na América do Sul.
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com algumas passagens presentes em livros, tanto do Velho quanto do
Novo Testamento, engendra uma figura que tem autonomia, pois, enquanto
o náufrago retorna à sua terra nu e faminto, o Cristo permanece vitorioso
e triunfante. Talvez seja esse o motivo de essa história continuar a ter
leitores depois de quase cinco séculos de existência.
REFERÊNCIAS
ARENAS, Carmen V. Vidaurre. La interaccion de diversos tipos textuales en la
obra de álvar núñez. Disponível em: <http://sincronia.cucsh.udg.mx/nunez.htm.>
Data do acesso: 12/10/2006.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução Paulo Bezerra.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
BARRERA, Trinidad. Introdução. Naufrágios, Madrid: Alianza, 1985. P. 7-55.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In.: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. (org).
São Paulo: Contexto, 2005.
BÍBLIA SAGRADA.Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica
do Brasil, 2002.
CABEZA DE VACA, Álvar Núñez. Naufrágios. Madrid: Cátedra, 2000.
_____.Naufragios y Comentários. Madrid: Raycar, 1984. (História 16).
CORDIVIOLA, Alfredo. La palabra expuesta: Los Naufrágios de Cabeza de Vaca.
In: Anuario brasileño de estudios hispânicos. Brasília: Consejería de Educación y
Ciência en Brasil, 2001. P. 153-160.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo: as idéias lingüísticas do círculo
de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.
FERRANDO, Roberto. Introdução. Naufragios y Comentários. Madrid: Raycar,
1984. 7-38. (História 16).
JUAN-NAVARRO, Santiago. Los mitos culturales de la otredad: revisones
contemporâneas de los Naufrágios de Cabeza de Vaca. In. SANTOS, Pedro
Brum; JUAN-NAVARRO, Santiago; YOUNG, Theodore Robert. Santa Maria:
UFMS/CAL, n. 18 e 19, Jan.-Dez., 1999.
MAURA, Juan Francisco. Introdução. Naufrágios. 4. ed. Madrid: Cátedra, 2000. P. 962.
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José A. de Amorim/Alda Maria Q. do Couto [11-28]
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José Aparecido de Amorim é mestrando
no Programa de Pós-Graduação - Mestrado
em Estudos de Linguagens, do Centro de
Ciências Humanas e Sociais da UFMS.
Atua como professor efetivo da Escola
Teotônio Vilela, em Campo Grande-MS.
Alda Maria Quadros do Couto é
doutora em Teoria e História Literária pela
UNICAMP, professora do Programa de
Pós-Graduação - Mestrado em Estudos
de Linguagens, do Centro de Ciências
Humanas e Sociais da UFMS.
Área do artigo: Literatura
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Experimenteonovo,bebadasubversãodehabemus
cocam
KarinaKristianeVicelliBlake
RosanaCristinaZanelattoSantos
Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar uma possível leitura das telas
da exposição Habemus Cocam do artista plástico Evandro Prado. Analisando
como Prado compreende os conceitos de cultura e mundialização definidos por
Renato Ortiz, no livro Mundialização e Cultura, e se também sua obra se
encaixa nas propostas feitas por Italo Calvino para a arte do milênio atual, nas
conferências do livro Seis Propostas para o próximo milênio.
Palavras-chave: Mundialização. Arte. Contemporaneidade. Cultura
Abstract: The aim of this paper is to show a possible reading of the painting of
Habemus Cocam exposition from the artist Evandro Prado. Analysing the way
Prado comprenhends culture and mundialization concepts defined by Renato
Ortiz in his book Mundialization and Culture, and if his artistic creation incases
in the propositions made by Italo Calvino for the actual millenium art at the
conferences of the book Six Memos for the Next Millennium.
Keywords: Mundialization. Art. Contemporary. Culture.
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Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46]
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Pretende-se demonstrar neste artigo como as telas da exposição1
Habemus Cocam, do artista plástico Evandro Prado, compreendem os
conceitos de cultura e mundialização definidos por Renato Ortiz, no livro
Mundialização e Cultura, e se elas também se encaixam nas propostas
feitas por Ítalo Calvino para a arte do milênio atual, nas conferências do
livro Seis Propostas para o próximo milênio. Aparentemente, são textos
díspares, até mesmo contraditórios, já que o primeiro livro trata da
problemática cultural frente à mundialização e o segundo livro refere-se
especificamente à literatura, restringindo muitos de seus exemplos à literatura
italiana. O que se propõe é costurar duas pontas distintas, ação para a
qual os avanços e o andar da crítica literária atual permitem essa visível
incongruência, a associação de um texto que imaginava a literatura de
um milênio que ainda estava por vir, aliado a um texto que abrange o
conceito de cultura na contemporaneidade, promovendo um olhar do que
poderia ser o futuro imaginado e o presente materializado; o que se
imaginava que seria a arte do milênio atual e como ela se apresenta.
Imaginar como será a literatura dos próximos tempos é um exercício
estabelecido em várias épocas dos estudos literários. Na verdade, delimitar
valores literários aparenta, a princípio, ser uma ação ditatorial: como se o que
não se encaixasse nessa delimitação não pudesse ser considerado, estudado
ou até mesmo degustado pelos leitores. No entanto, percebe-se que os
teóricos-oráculos, ao tentarem predizer o futuro, nada mais fazem do que
olhar para o passado, observando o movimento contínuo, renovador e inesgotável
da arte. E, por meio de incursões em obras que geralmente já fazem parte de
um cânone, estabelecem determinados valores do que poderia ser a literatura
do futuro; valores, esses, presentes desde o cerne da arte da escrita.
1
Realizada em Campo Grande, no MARCO (Museu de Arte Contemporânea de MS),
nos meses de maio e junho de 2006.
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Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46]
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Nisso, Ítalo Calvino foi exemplar, ao redigir as conferências Norton,
em 1985, e oferecer em Seis propostas para o próximo milênio uma
projeção da literatura que estava por vir. Inúmeras discussões surgiram
a partir dessa reflexão; algumas a ampliaram, outras a reduziram, como
é o caso de Tres propuestas para o próximo milênio (y cinco dificultades),
do escritor argentino Ricardo Piglia que, além das conferências de Calvino,
também utilizou o texto Cinco dificuldades para escrever a verdade, de
Bertolt Brecht.
Segundo Piglia, o texto de Calvino parte do questionamento de
como seria a literatura no futuro, e tem como pressuposto a certeza de
que há coisas que somente a literatura pode oferecer. Os valores e as
qualidades próprias da literatura, enumeradas por Calvino, são: a leveza,
a rapidez, a exatidão, a visibilidade e a multiplicidade. A sexta conferência
não foi escrita, mas recebeu o título de “consistency” e, de certa forma,
alimenta mais ainda o imaginário dos que se interessam pelo assunto.
Piglia propõe considerar esses valores, mas os reduz a três: a noção da
verdade como horizonte político e objeto de luta, o deslocamento e a
claridade. E avança ao apresentar as cinco dificuldades em relação à
literatura do próximo milênio, que são: o valor de escrever, a perspicácia
de descobri-la, a arte de fazê-la manejável, a inteligência de saber
eleger seus destinatários e, sobretudo, a astúcia de saber difundi-la.
Outra coisa a destacar é que Piglia discute o futuro da literatura em
relação à Hispano-América, que ele considera o subúrbio do mundo,
propondo que se perceba estas questões, não como sujeitos de um país
central, com uma grande tradição cultural, mas como um escritor
argentino poderia utilizar a problemática proposta por Calvino. (PIGLIA,
2001, 0p.13)
Ao posicionar-se à margem, olhando de um lugar marginal, obtémse uma percepção diferente, específica. Piglia pergunta quais seriam os
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valores próprios da literatura que irão persistir no futuro a partir dessa ótica
marginal. Oferece, então, consignar pontos de partida de um debate futuro,
empreendido de um lugar remoto. Assim, aprofunda as discussões a respeito
do futuro da literatura e sobre as relações futuras entre política e literatura.
No entanto, ao abordar a Hispano-América, Piglia restringe-se aos países
falantes do espanhol e deixa de lado o Brasil, onde se fala o português.
E como seria pensar essas questões sobre o futuro da literatura e as
relações entre literatura e política de um país que é a margem da margem?
É desse local que se pretende falar, da margem da margem; fala-se
também de um país sem grande tradição cultural, e questiona-se o motivo
pelo qual Piglia aborda a Hispano-América e não a América-Latina. Se
não fazemos parte da margem, o que seríamos? A submargem? Ou
seríamos o que alguns teóricos chamam de não-lugar? Said afirma que
o intelectual fala de algum lugar, e esse lugar deixa marcas claras em
seu discurso.
O intelectual tem sempre a escolha de situar-se do lado dos mais fracos, dos
menos representados, dos esquecidos ou ignorados, ou então do lado dos mais
poderosos. Quanto ao consenso de uma identidade de grupo ou nacional, o
dever do intelectual é mostrar que o grupo não é uma entidade natural ou
divina, e sim um objeto construído, fabricado, às vezes até mesmo inventado,
com uma história de lutas e conquistas em seu passado, e que algumas vezes
é importante representar (SAID, 2005, p.43).
É imprescindível ressaltar que essas propostas não cabem apenas
na literatura, mas podem relacionar-se às artes como um todo. O
presente milênio, de certa maneira, evoca essa tramitação de valores.
Assim, para apresentar essa possibilidade de análise interartes, ou seja,
aplicar conceitos focalizados na literatura em outro campo de expressão,
opta-se pela obra do jovem artista campo-grandense Evandro Prado,
pois causou celeuma com a série Habemus Cocam baseada em reflexões
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a respeito da religião de consumo, de autoria de Frei Beto, que ficaram
expostas no Museu de Arte Contemporânea de MS (MARCO), nos
meses de maio e junho de 2006. As obras de Evandro causaram
embate por relacionar e subverter ícones como o Papa, Jesus Cristo,
Fidel Castro, Che Guevara, dentre outros, aliados a um dos principais
símbolos do consumismo: a marca coca-cola. O artista foi criticado na
Tribuna da Câmara Municipal de Campo Grande e processado por
denegrir imagens religiosas pela Arquidiocese. Difícil imaginar que, ainda
hoje, a arte possa chocar. Como ponto de análise, foram eleitas
algumas telas da exposição Habemus Cocam.
Na série Habemus Cocam há uma interessante relação entre conceito e
plasticidade. O conjunto de pinturas, que recebe um tratamento de representação
realista, assume a visualidade de comunicação da linguagem publicitária, onde
as formas são pensadas estrategicamente para atrair a nossa atenção. A marca
Coca-Cola, que para o artista é um dos símbolos do consumismo globalizado,
surge como elemento que dá unidade à obra, fazendo uso de maneira irônica
das variações desenvolvidas pela marca. A crítica ao modo de produção
capitalista, onde a propaganda é ferramenta fundamental para a venda e o
consumo em massa de produtos, é uma das questões importantes presentes
na série. Para o artista “o capitalismo é inversão de valores, o mundo colorido,
alegre e brilhante que ele vende, na verdade não existe”. Nesse caso, o
contraponto fica por conta das referências ao sistema político econômico cubano
onde a propaganda tem efeito contrário: lá ela tenta inibir o consumo. Evandro
é contundente ao comentar que para Fidel Castro “a publicidade comercial
semeia sonhos, ilusões e o desejo de consumo impossível” (MALDONADO,
Rafael).2
A tensão surge a partir do estranhamento causado pela forma irônica
como esses símbolos culturais, carregados de pré-significados, são apresentados
2
Curador do MARCO, Museu de Arte Contemporânea de MS, 2006.
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aos que visitaram a exposição. A tela que dá título à exibição apresenta o
pontífice João Paulo II morto, segurando uma garrafa de coca-cola nas mãos;
a ironia insere-se na frase Habemus Cocam, inscrita no mesmo formato e tipo
de letra utilizado pela marca coca-cola, parodiando a expressão Habemus
Papam, dita quando um novo Papa é eleito pelo Vaticano. A metáfora reside
em comparar o Papa a um símbolo do consumismo; ele é apenas mais um
produto a ser lançado no mercado, para que as pessoas também consumam
essa imagem. Poderíamos até brincar com essa crítica bem humorada do
artista e dizer: Beba Papa. O que causou indignidade em religiosos e políticos
oportunistas foi justamente a presença de espírito e o caráter crítico das telas,
mas o que seria da arte sem a quebra de certos valores?
Parafraseando Piglia, pode-se dizer que há um lugar para o artista:
estabelecer onde está uma possibilidade de verdade, atuar como um
investigador, descobrir o secreto que o Estado manipula e revelar o que
está escamoteado. E a possibilidade de verdade que Evandro expõe é
a hipocrisia de símbolos utópicos que foram transformados em objetos de
consumo, ao metaforizar o papa morto com uma coca-cola na mão,
escancara a superficialidade e banaliza a imagem de um ícone.
A diferencia de lo que se suele pensar, la relación entre la literatura – entre novela,
escritura ficcional _ y el estado es uma relación de tensión entre dos tipos de narraciones.
Podríamos decir que también el Estado narra, que también el Estado construye
ficciones, que también el Estado manipula ciertas histórias (PIGLIA, 2001, p.21).
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As telas de Evandro Prado contrariam o relato contado pelos poderosos,
dos que estão acima, sejam eles políticos ou religiosos. O artista se posiciona
de forma irônica, pois todos os símbolos utilizados por ele constituem um
discurso de poder, são ficções narradas por aqueles que detêm o poder.
Habemus Cocam ajuda a questionar a postura que os poderosos adotam como
verdades absolutas e também a questionar a política. De acordo com Piglia,
“la verdade es um relato que outro cuenta. Um relato parcial, fragmentário,
incierto, falso también, que debe ser ajustado com otras versiones y otras
historias” (2001, p.30).
Assim, ao mostrar uma outra versão da verdade, Evandro Prado
oferece ao público o que Piglia chamou de verdade como horizonte
político e objeto de luta. Ao desmontar a força desses ícones, desbanca
a verdade dita absoluta, surgindo, então, o embate e o confronto com
posturas levantadas como bandeira das relações de poder. O que é a
imagem de Che Guevara hoje senão um objeto de consumo?
Além disso, comumente se cria uma expectativa de que o artista de
Mato Grosso do Sul deve expressar em sua obra o espaço em que
reside. Talvez isso ocorra devido ao fato de o Estado ter-se desmembrado
de Mato Grosso em 1977 e, desde então, há uma necessidade em
firmar-se uma identidade local. De certa maneira, resiste ainda na arte
da região a sombra de determinados estigmas simbólicos, e isso é visível
nos telefones públicos do Estado, por exemplo, em forma de araras,
onças, peixes e outros animais do Pantanal. Cobra-se dos artistas que
determinados elementos devem aparecer em suas produções, como
retratos deste Estado, elementos de preferência que exaltem a fauna e
flora da região. Mas como se pode ser local em uma sociedade
globalizada? Muitas vezes, perdura a sensação de que se estar à
margem, tanto do Brasil, quanto do resto do mundo, por se considerar
o estado de Mato Grosso do Sul como uma região insólita e exótica.
Para Ortiz, refletir sobre a mundialização da cultura é de alguma maneira
se contrapor, mesmo que não seja de forma absoluta, à idéia de cultura
nacional (2003, p.116).
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Contraponto é uma das palavras que definem o estilo de Evandro
Prado. Ele vai além do local, do nacional, ao inserir em suas telas
objetos comuns a toda sociedade de consumo, elementos de uma cultura
internacional-popular. Entra em cena, portanto, o conceito que Renato
Ortiz chamou de desterritorialização: “contrariamente aos lugares carregados
de significado relacional e identiário, o espaço desterritorializado ‘se
esvazia’ de seus conteúdos particulares” (2003, p.105). Ao tratar de
ícones como o Papa e a coca-cola é exatamente isso que o artista
consegue, já que são símbolos conhecidos mundialmente, e não símbolos
arraigados apenas em um determinado espaço; se esses elementos estão
presos a algum espaço, esse espaço é o mundo e não os Estados
Unidos da América, o Vaticano ou seu local de origem. A desterritorialização
pode ser equiparada ao conceito que Piglia define como deslocamento,
distância (2001, p.37).
Evandro Prado utiliza objetos comuns a qualquer lugar, desde a imagem
do Papa, presente na casa de muitos devotos, até mesmo um símbolo considerado
revolucionário como Che Guevara, estampado na camiseta de muitos jovens.
Esses nomes conhecidos, seja a marca coca-cola, ou um ícone histórico, são
sinais exteriores da mundialização. Ortiz observa que há um universo habitado
por objetos, e são esses produtos mundializados que demarcam o espaço
mundial. Esse reconhecimento funciona como uma familiaridade que se realiza
no anonimato de uma civilização que minou as raízes geográficas dos homens
e das coisas.
A velocidade das técnicas leva a uma unificação do espaço, fazendo com que
os lugares se globalizem. Cada local, não importa onde se encontre, revela o
mundo, já que os pontos desta malha abrangente são susceptíveis de
intercomunicação (ORTIZ, 2003, p.106).
Retornando às seis propostas para o próximo milênio, a primeira é
a leveza, sobre a qual Ítalo Calvino propõe acepções que são perceptíveis
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Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46]
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nas telas de Evandro Prado: 1) a presença da ironia pelo jogo, já que
há o despojamento da linguagem por meio do qual os significados são
canalizados por um tecido verbal quase imponderável, até assumirem
essa mesma rarefeita consistência; 2) há o lúdico no emblema da
coca-cola, que narra um raciocínio facilmente perceptível, pois atinge
desde as crianças até os adultos; 3) Há o reconhecimento da mensagem,
pela sua ampla divulgação e capacidade de expansão.
No caso da tela Experimente o novo, temos a inscrição do termo
“light”, indicando a idéia de leveza, embora o ícone “Papa” represente
exatamente o oposto; contudo, a imagem do papa não aparece na tela,
apenas sua sombra, iluminada por um foco de luz. Esta inserção da
palavra light explicita também a leveza da luz; embora possa ter sua
massa medida fisicamente, o valor de sua massa é tão ínfimos que se
torna desprezível.
A sombra incute a leveza do corpo, pois consiste na projeção da
luz que incide sobre um corpo e que permite a materialidade corpórea
da sombra, que não é a mesma que a do corpo. A própria idéia de cocacola light aparece implícita, por meio do formato das letras e das bolhas
dispersas na tela que indicam coca-leve, palavra-leve, imagem-leve,
paródia lúdica.
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Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46]
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Aqui se retoma o mito de Perseu explorado por Calvino na conferência
sobre a leveza. Perseu vê a Medusa por meio de um artifício, e consegue
decapitá-la. No entanto, ele enxerga apenas seu reflexo em seu escudo,
visualiza apenas o reflexo da luz que incide sobre o corpo da Górgona, luz
esta que gera seu lado obscuro, embaçado. Ao contrário do olhar fulminante
da Medusa, o reflexo não causa mal algum, em contrapartida, a torna leve,
pois não é o corpo que Perseu enxerga, mas a sua ausência projetada,
refletida difusamente pela luz.
Quanto ao segundo valor, a rapidez, Calvino propõe recomendar ao
próximo milênio um valor especialmente caro: numa época em que os outros
triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente
extenso, arriscando reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e
homogênea, a função da arte é a comunicação entre o que é diverso pelo fato
de ser diverso, não enfraquecendo, mas, antes, exaltando a diferença.
O século da motorização impôs a velocidade como um valor mensurável, cujos
recordes balizam a história do progresso da máquina e do homem. Mas a
velocidade mental não pode ser medida e não permite comparações ou disputas,
nem pode dispor os resultados obtidos numa perspectiva histórica. A velocidade
mental vale por si mesma, pelo prazer que proporciona àqueles que são sensíveis
a esse prazer, e não pela utilidade prática que se possa extrair dela. Um
raciocínio rápido não é necessariamente superior a um raciocínio ponderado, ao
contrário; mas comunica algo de especial que está precisamente nessa ligeireza
(CALVINO, 1990, p.58).
Os ícones utilizados por Evandro Prado são rapidamente compreendidos
pelo olhar do espectador. Porém, por mais comuns que sejam essas
imagens, e por mais veloz que seja o reconhecimento delas nas telas
de Evandro Prado, elas estabelecem uma forma diferente de serem
interpretadas, preservando seu significado primeiro, e acrescentando-lhe
outras possibilidades significativas, resultando num discurso composto por
diferentes realidades.
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Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46]
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Quanto à terceira proposta de Ítalo Calvino, o valor da exatidão, quer
dizer três coisas: 1) um projeto de obra bem definido e calculado; 2)
a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; 3) uma
linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua
capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.
Por que me vem a necessidade de defender valores que a muitos parecerão
simplesmente óbvios? Creio que meu primeiro impulso decorra de uma
hipersensibilidade ou alergia pessoal: a linguagem me parece sempre usada de
modo aproximativo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que
não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo:
sinto um repúdio ainda maior quando me ouço a mim mesmo. Por isso procuro
falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar
cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não digo a me
sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de
insatisfação de que me posso dar conta. A literatura - quero dizer, aquela que
responde a essas exigências - é a Terra Prometida em que a linguagem se
torna aquilo que na verdade deveria ser.
Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade
inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo
essa peste da linguagem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade,
como um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais
genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos,
a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias.
Não me interessa aqui indagar se as origens dessa epidemia devam ser
pesquisadas na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na
homogeneização dos mass-media ou na difusão acadêmica de uma cultura
média. O que me interessa são as possibilidades de salvação. A literatura (e
talvez somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a expansão
desse flagelo lingüístico.
Gostaria de acrescentar não ser apenas a linguagem que me parece atingida
por essa pestilência. As imagens, por exemplo, também o foram. Vivemos sob
uma chuva ininterrupta de imagens; os media todo-poderosos não fazem outra
coisa senão transformar o mundo em imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria
de jogos de espelhos - imagens que em grande parte são destituídas da
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necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como forma e como
significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de significados
possíveis. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamente
como os sonhos que não deixam traços na memória; o que não se dissolve
é uma sensação de estranheza e mal-estar. (CALVINO, 1990, p.72).
Na obra de Evandro Prado, o artista não é um fotógrafo do mundo
real. O mundo visível, cotidiano, pode fornecer as imagens que animarão
suas telas, no entanto, essas imagens se ordenarão de modo inesperado,
segundo uma construção que tem por finalidade ampliar a imaginação do
espectador. De acordo com Calvino, podemos distinguir dois tipos de
processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem
visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal,
assim temos o quarto valor: a visibilidade (CALVINO, 1990, p.99).
Nas telas temos as duas possibilidades, já que o artista sempre insere
palavras, frases, orações. Toda a simbologia presente em Habemus
Cocam remete o leitor/espectador a um universo dominado pela matéria,
recolocando o homem em sua condição de igualdade em relação às
demais coisas, aos objetos desterritorializados. Assim, por meio de seus
deslocamentos bruscos, o artista investe na busca de recursos lingüísticos
e estilísticos que configurem uma nova linguagem, e acaba criticando a
ordem de um mundo canônico e rigidamente construído pelos ícones.
A quinta proposta de Calvino, a multiplicidade, reside na questão
da interpretação. Cada sujeito tem uma formação diferente, e múltiplas
serão as maneiras de interpretar a arte da pós-modernidade.
Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos
possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a
sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário,
respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória
de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é
uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem
de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas
as maneiras possíveis (CALVINO, 1990, p.138).
Podemos conceber a redução feita por Piglia, ao transformar as seis
propostas em três. A claridade compreenderia os cinco valores propostos
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por Calvino: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Já que
a luz é leve, rápida, exata, visível e múltipla, o deslocamento consiste
no fato de os elementos utilizados pertencerem à cultura global e não a
um espaço específico; e, por último, a postura política assumida ao
posicionar o olhar analítico à margem, ligada a uma cultura periférica, em
que abrange o oposto da idéia de leveza proposta por Calvino, o peso
que a obra de arte carrega.
Evandro Prado valoriza intertextos com grandes obras e estabelece a
dialogicidade com o kitsch religioso brasileiro, ou melhor, com o kitsch religioso universal. É, ao mesmo tempo, provocante, inusitado, universal e
mundializado. Mas, na verdade, não há nada de tão subversivo assim, já que
as telas de Evandro Prado tornam-se leves se comparadas às instalações de
Maurizio Cattelan, artista italiano. A instalação La Nona Ora, de 1999, em que
há o Papa, em tamanho natural, a ser atingido por um meteorito, arrepiaria
os conservadores de plantão de Campo Grande. Cattelan define-se como um
marginal, e assim se dá a possibilidade de exercer uma crítica ferina e um
modo de pôr abaixo muitos cânones.
Maurizio Catellan. La Nona Ora (1999).
O papa João Paulo II, em tamanho natural, caído ao chão
segurando o cajado sobre um tapete vermelho, com um meteoro sobre
as pernas e os estilhaços dos vidros, todos esses elementos, ironicamente,
remetem à idéia de castigo divino, já que o meteoro advém do céu, uma
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providência divina para acabar com o papado do pontífice. Outras leituras
podem ser feitas, como a de que o papa estaria preso à imagem,
amarrado ao poder, sem poder deixar o local de ícone que ocupa, pois
o meteoro está sobre suas pernas, impedindo-o de sair da posição que
sustem e também de se livrar do sofrimento. O peso da imagem se faz
presente, voltamos ao oposto da primeira proposta de Calvino. Através
do peso, o artista provoca, assim, a arte não deixa de ser a medida de
o quanto ela invoca das sensações humanas, a arte é a nossa reação
perante o objeto artístico. Sem a reação, a arte não se faz, não existe,
nem se completa. O alimento da arte está em devorá-la e se fazer
sucumbir pela catarse, sentir o que o objeto artístico causa. E é essa
sensação incômoda, que nos leva à indignação ou ao êxtase, a que
chamamos arte. A arte é o alimento do estranhamento, e o estranhamento
é a reação vital da arte.
Maurizio Catellan. La Nona Ora (1999).
Assim sendo, essas ironias com a religião não são novidades e sim
uma constante, elas sempre existiram na história da arte. No Brasil, na
década de 50, durante o movimento concretista, há um poema singular
de Décio Pignatari que se insere neste contexto:
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Ao substituir a imagem de George Washington por Jesus Cristo,
Décio Pignatari ironiza a relação dinheiro e religião. É importante
ressaltarmos que no verso da nota de um dólar temos a inserção da
frase “In God we trust” (Em Deus nós confiamos), e por que não
parafrasear essa frase e afirmar: “In money we trust” ? Será que
realmente a sociedade acredita em Deus, ou em um ícone criado pela
sociedade de consumo?
O poema “Cr$isto é a solução” joga com essa mensagem religiosa
do dólar: acreditamos em Deus, assim como acreditamos no dinheiro. A
palavra “Cr$isto” no poema transfigura a carga que a imagem de um
símbolo religioso adquiriu perante a sociedade de consumo, os ícones
religiosos são imagens baratas, comercializáveis, banais. Assim como a
coca-cola e o papa o são na história da sociedade capitalista, conceito
absorvido, materializado e questionado nas obras de Evandro Prado.
Não podemos deixar de lado outro poema famoso de Décio
Pignatari, “Cola-cola”, em que o autor produz um anti-slogan, já que
ao final do poema equipara coca-cola à cloaca, dando ao produto,
símbolo do capitalismo, um sentido pejorativo.
beba
babe
beba
babe
caco
cola
coca
coca
cola
cola
cola
caco
c l o a c
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Para aprofundar as discussões sobre o que seria a arte do milênio
presente, procurou-se mostrar, com os exemplos das telas de Evandro
Prado, a existência dos valores propostos por Calvino no milênio
passado, reduzidas por Piglia e pensadas, não a partir da Argentina,
nem de um país de grande tradição cultural, europeu, mas de um país
que seria a margem da margem, o Brasil.
As telas de Evandro Prado, assim como as instalações de Maurizio
Cattelan, propõem para este milênio a continuidade da ruptura na arte,
por meio da destituição dos cânones previamente estabelecidos, seja de
um lugar remoto da América Latina, da margem do subúrbio do mundo,
ou de um país com uma tradição cultural como a Itália. A mundialização
permite o deslimite, evoca a desterritorialização, dá sustentabilidade à
subversão e fomenta a transgressão, mola propulsora da arte.
Pode-se observar que há muita coisa semelhante entre a expressão
dos dois artistas, especialmente o fato de seus trabalhos contraporem a
tradição e o respeito por valores que, hoje, não passam de imagens
comercializáveis.
Pretendeu-se que este artigo proporcionasse, ainda que de forma
muito sintética, uma ponte entre um texto que imaginava a arte literária
na contemporaneidade e outro que busca definir a cultura da atualidade.
Para isto, optou-se por uma compilação dos valores propostos por Calvino,
e interpretados por Piglia, aplicando-os a algumas telas de Evandro Prado.
Ao mesmo tempo em que os conceitos eram aplicados, foram comparados
às conceituações oferecidas por Renato Ortiz sobre a cultura da atualidade.
Finalmente, o trabalho de Evandro Prado foi brevemente comparado ao
do artista plástico italiano Maurizio Cattelan. Trata-se apenas de uma
sucinta reflexão sobre a arte do milênio presente. Faz-se notar, todavia,
que ainda há muito que discutir a respeito do assunto, pelo fato de ainda
haver um momento de efervescência de valores que contrariam os cânones,
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Experimente o novo, beba da subversão de habemus cocam [29-46]
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mas que, obviamente, por seu caráter intertextual, ainda se prende à
tradição. Assim, as suposições deste texto são apenas apontamentos para
um percurso sedutor e infinito que é o dos Estudos Literários aliados aos
Estudos Culturais.
Para finalizar, retorna-se o título do artigo, convidando a todos a
experimentar o novo, já que o artista provoca uma ampliação no repertório
imagético do espectador, ao atribuir uma nova lógica às coisas, múltipla e
descontínua. À arte do milênio presente, à pós-modernidade: bebamos,
pois, da subversão de Habemus Cocam e de todos os objetos artísticos
que permitem a renovação da arte por meio do jogo, do lúdico, da ironia,
por fim, da ruptura.
REFERÊNCIAS
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad.
Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Trad.
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte - estudo de literatura brasileira
contemporânea. Campo Grande-MS: UFMS, 2004.
ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2003.
PIGLIA, Ricardo. Tres propuestas para el próximo milênio (y cinco dificultades).
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001. p.11 - 42.
SAID, Edward. Representações do intelectual. Trad. Milton Hatoum. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
SOUZA, Eneida M. de. Notas sobre a crítica biográfica: In: SOUZA. Crítica Cult.
Acesso
Acesso
Acesso
Acesso
em: http://www.evandroprado.com.br/
em: http://www.mauriziocattelan.org/
em: http://www.ocabulosodestino.net/
em: http://pt.wikipedia.org/wiki/In_God_We_Trust/
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Karina K. Vicelli Blake/Rosana C. Zanelatto Santos [29-46]
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Karina Kristiane Vicelli Blake é
mestranda no Programa de Pós-Graduação
- Mestrado em Estudos de Linguagens,
do Centro de Ciências Humanas e
Rosana Cristina Zanelatto Santos é
doutora em Literatura Portuguesa pela
USP-SP, professora dos Programas de
Pós-Graduação – Mestrado em Estudos de
Linguagens (Câmpus de Campo Grande)
e Mestrado em Letras (Câmpus de Três
Lagoas), do Centro de Ciências Humanas
Área do artigo: Literatura
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Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006
Ofatorxerazade:umobstáculoentreojornalismoea
literatura
AldaMariaQuadrosdoCouto
Resumo: Trata-se de discutir as relações entre jornalismo e literatura a partir da observação
do livro Billete de ida. Los mejores reportajes de un gran viajero, de Javier Reverte,
analisando-se trechos das apresentações do autor e de uma das crônicas, em
cotejamento com trecho de um conto de Karen Bliksten/Isak Dinesen. Utilizam-se
conceitos de teoria da narrativa literária, tais como, narrador, tempo e espaço, e a
função estética da linguagem, estabelecida por Roman Jakobson e reconhecida por
Tzvetan Todorov, para entender as distinções entre ficção e informação. Por fator
Xerazade, entende-se a questão estética do narrador no texto literário, considerado
incompatível com a narração jornalística.
Palavras-chave: Jornalismo e literatura. Funções estéticas e informação.
Abstract: This paper is an analysis about the relations between journalism and
literature, from the book Billete de ida. Los mejores reportajes de un gran viajero,
by Javier Reverte. In this paper are analysed the presentation of the Author
and one of the chronicles, and a comparison with a tale written by Karen Bliksten/
Isak Dinesen. It´s applied concepts of literary narrative theory, such as narrator,
time, space, as well as the esthetical function of literature, established by Roman
Jakobson and recognized by Tzvetan Todorov, to understand the distinctions
between fiction and information. The “Xerazade factor” may be understood exactly
as the esthetical function of the narrator in the literary text, which is considered
incompatible to the journalistic narrative.
Keywords: Journalism and literature. Esthetical functions and information.
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Alda Maria Quadros do Couto [47-63]
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O jornalista espanhol Javier Reverte escreve relatos de viagem
desde 1970, além de artigos, editoriais, entrevistas, crônicas políticas,
que denomina como “gêneros do ofício”, de material inflamável, pela
urgência como razão de ser em detrimento da qualidade da escrita.
Assim, estabelece a qualidade como um fator decisivo entre jornalismo e
literatura, lamentando a rapidez com que o jornalista precisa produzir
seus textos, todos os dias.
Em 2006, teve publicada a segunda edição da coletânea Billete de
ida. Los mejores reportajes de un gran viajero, em cujo prólogo o ato
de escrever diariamente ao longo de 30 anos é definido como “profesión
devoradora que se come lo mejor de ti mismo sin saciarse jamás”. 1
Nesse mesmo prólogo, Reverte lista viajantes que se tornaram
escritores, entre os quais há destaque para os que se aventuraram pela
África: John Speke, Richard Burton e “para gloria de la literatura, una
mujer que se llamaba Isak Dinesen” 2 (REVERTE, 2006, p.18).
O presente artigo propõe uma rápida discussão a respeito das
concepções defendidas por Reverte, sob um enfoque crítico de tendência
imanente, (conforme TODOROV, Crítica de la crítica, 2005), considerando
a linguagem e alguns elementos da estrutura narrativa como pontos de
referência para o reconhecimento da categoria “literário” a que qualquer
texto possa almejar.
Não há preocupação em fixar conceitos. Trata-se apenas de levantar
algumas questões a partir dos argumentos que o Autor e o Editor
estabelecem como critérios para o que qualificam como jornalismo literário.
1
Bilhete de ida – as melhores reportagens de um grande viajante. “Profissão
devoradora que come o melhor de ti mesmo sem saciar-se jamais”. As citações
mantêm o original em espanhol, anotadas em rodapé traduções literais, da autora,
apenas
para compreensão geral, se necessário.
2
“para glória da literatura, uma mulher que se chamava Isak Dinesen”. Refere-se
a Karen Blixen (1885-1962). (Reverte, 2006, p.18).
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Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006
O fator Xerazade [47-63]
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O fator Xerazade é proposto como uma denominação representativa do
cânone literário da narrativa, a partir de uma afirmação de Soledad
Puértolas, na apresentação de Karen Blixen para a edição espanhola de
Siete cuentos góticos,3 utilizado aqui como um contraponto destacado pelo
próprio Javier Reverte.
Bilhete de ida - válido para sete léguas
Segundo Reverte, o jornalista pode chegar ao final de sua carreira com
“la sensación de que todo cuanto ha hecho quedó en un papel que sólo sirve
para envolver bocadillos o encender el fuego de la chimenea”, mesmo que
“tus vísceras y tu alma han sido fagocitadas por un ser invisible que requiere
zamparse trozos de tu carne sin descanso” (idem, p.13). 4
A metáfora “vísceras” define a experiência de reunir em livro os,
até então, fugazes textos jornalísticos:
“es como rescatar parte de tu cuerpo y de tu corazón, salvándolos del fuego
del hogar y de la grasa de las sardinas en aceite (...) algo parecido a un
trasplante de órganos, recuperar el páncreas o el hígado, una glándula y una
víscera a las que, por cierto, ataca con furor el oficio de periodista. El lector
podrá imaginar fácilmente por qué razón” (p.14).5
Truculências sugeridas à parte, o jornalista afirma que a, talvez,
“mais magnífica entre todas as ocupações” (a sua) dá ao profissional
acesso a povos e mundos muito distintos, como palácios e territórios
miseráveis, homens de estado e criminosos: “el periodismo te permite
meter las narices en la médula de la vida” (p.13). 6
3
4
Sete contos góticos.
“a sensação de que tudo o que fez ficou em um papel que só serve para envolver
bocados ou acender o fogo da lareira”. “tuas vísceras e tua alma foram devoradas
por
um ser invisível que se empanturra de pedaços de tua carne sem descanso”.
5
“é como resgatar parte de teu corpo e de teu coração, salvando-os do fogo e da
graxa das sardinhas em azeite (...) algo parecido a um transplante de órgãos,
recuperar o pâncreas e o fígado, uma glândula e uma víscera às quais, por certo,
o ofício de jornalista ataca com furor. O leitor poderá facilmente imaginar por que
razão”.
6
“o jornalismo te permite meter o nariz na medula da vida”.
Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006
49
Alda Maria Quadros do Couto [47-63]
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Ao selecionar textos “que resistieran mejor el paso del tiempo”,
obteve um conjunto de relatos de viagens (“periodismo viajero”). Em
nova seleção, para reduzir de 800 para 400 páginas o resgate de suas
glândulas e vísceras, optou pelas reportagens, reservando para outra
ocasião artigos e reflexões de viagem, além dos “retratos de ciudades”.7
O resultado é um volume dividido em três partes: reportagens de
conteúdo sócio-cultural, mais ou menos turísticas, abrangendo “la ancha
geografía del mundo”; 8 reportagens realizadas na própria Espanha;
trabalhos de enviado especial a territórios bélicos e de caráter político.
Em suas próprias palavras, oferece ao leitor “una serie de vísceras
recuperadas, pedazos de corazón perdidos, y ahora rescatados, en el
voraz y hermoso ejercicio del periodismo” (p.15). 9
Até aqui se detectam alguns sinais do rumo que a conversa de
apresentação do livro toma, desde a epígrafe até o texto da contracapa,
provavelmente do editor: “El periodismo y la literatura son dos brazos de
un mismo río”, 10 atribuída a Truman Capote. O epigrafado é um dos
criadores do new jornalism norte-americano, matriz do, hoje, discutido
jornalismo literário, ao qual o livro em questão pretende filiar-se.
Podem-se enumerar os seguintes argumentos do Autor:
1 – a classificação de gêneros no âmbito da produção jornalística,
na qual os relatos de viagem se destacam como mais “duradouros”;
2 – o ato diário de escrever dado como uma espécie de autofagia
intermitente;
3 – a fugacidade do jornal que, depois de lido, só pode ter o
destino do embrulho ou do fogo;
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8
9
“que resistiram melhor ao passar do tempo” (jornalismo de viagem) “retratos de cidades”.
“a ampla geografia do mundo”.
“uma série de vísceras recuperadas, pedaços de coração perdidos, e agora
resgatados, no voraz e formoso exercício do jornalismo”.
10
“O jornalismo e a literatura são dois braços de um mesmo rio”.
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4 – o envolvimento visceral e espiritual do jornalista com o mundo
real em todas as suas dimensões;
Após o prólogo, assinado pelas iniciais J.R, o subtítulo
“Leer, explorar y luego escribir”, atribui à seqüência o caráter de um processo
natural que reúne aventura e literatura “no por casualidad … dos hermosas
palabras que riman…” 11 (p.17)
O conceito vai se construir por uma associação entre literatura, ou
criação literária, com ação – a escrita como ação, as proezas dos
aventureiros como forma de reflexão – coroados pela citação de CherryGarrad, em El peor viaje del mundo: “la exploración es la expresión
física de la pasión intelectual” 12 (p.17).
Assim, viajar e em seguida escrever sobre isso, com “mejor o peor
fortuna literaria”, torna-se um processo quase natural, no qual Reverte
considera-se inserido. “Leer, viajar, aventurarse y al fin escribir: un
camino circular, un constante periplo de ida y vuelta”13 (p.19).
O raciocínio se conclui com a relação aventura-escrita-tempo. A
referência é uma frase do explorador francês que chegou ao Pólo, PaulEmile Victor, para quem “la aventura es la única manera de robarle
tiempo a la muerte”. 14
Chega-se, então, ao eterno binômio literatura (ou qualquer forma
de arte) = imortalidade, um lugar-comum que até hoje custa a
celebração de mediocridades, especialmente nas academias de letras e
na grande mídia.
Que este é o desígnio buscado por Reverte não há dúvidas, pois
conclui a apresentação de sua antologia com muita clareza:
11
“ler, explorar e logo escrever” – “não por casualidade … duas formosas palabras
que
rimam”.
12
A
pior
viagem do mundo: “a exploração é a expressão física da paixão intelectual”.
13
“melhor ou pior qualidade literária”; “ler, viajar, aventurar-se e ao final escrever:
um
caminho circular, um constante périplo de ida e volta”
14
“a aventura é a única maneira de ganhar tempo diante da morte”
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“y no es acaso la literatura, entre otras muchas cosas, una manera de burlar
la enojosa presencia de la muerte, en el enpeño tan noble como inútil de
detener el tiempo? “ 15 (p.19)
Neste caso, o conceito que orienta a relação jornalismo-literatura é,
evidentemente, uma gradação tempo-permanência, desde a fugacidade do
veículo impresso que se destina a embrulhos ou a lareiras até a esperança
de superar a morte, o tempo concluído de uma existência humana, pelo
simbólico alcance da vida dos grandes escritores, lidos séculos depois de
mortos.
Do jornal ao livro, o jornalista busca um pouco mais de permanência,
já que considera o ofício de escrever todo dia igual ao do escritor. Mas
em que consiste a “melhor ou pior fortuna, ou qualidade literária”, a
“glória da literatura”, a que nem todos os aventureiros e poucos
jornalistas alcançam?
Ser lido, em livros editados, muitos anos após ter escrito, quanto
mais, melhor, é a meta, além dos motivos comerciais, é claro. Mas o
que faria Karen Blixten chegar à outra glória, a do prêmio Nobel? Será
Javier Reverte um futuro Nobel, terá ele em seu trabalho a chave da “fortuna
literária”?
Ao observar o título da Antologia – Billete de ida, bilhete de ida,
tende-se a crer que sim: há uma carga literária, uma figura de
linguagem que toma a parte pelo todo, bilhete como metáfora de viagem,
a especificação “de ida” dramatizando o percurso que, sem volta, alude
à vida terminada, à morte. No caso, uma vitória do homem sobre a
ceifadora, porque o título garantiria a permanência do texto, se toda a
questão se resumisse a isso.
15
“E não é acaso a literatura, entre muitas outras coisas, uma maneira de burlar a
nauseante presença da morte, no empenho tão nobre quanto inútil de deter o
tempo?”
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No entanto, um bom título não garante que a obra inteira tenha
o alcance literário que essa primeira, ou última, escolha estabeleceria.
O estatuto literário é o objetivo da antologia, cuja editoria, na
contracapa, decididamente apresenta o autor como um escritor de muitos
êxitos e grande público. (El sueño de África, Vagabundo en África,
Corazón de Ulises).
O editor ressalta a evolução do estilo da narrativa de viagem e o
quanto jornalismo e literatura podem ser “os dois braços do mesmo Rio”
de que falava Truman Capote.
A contracapa de Billete de ida, anexo à revista Siete Leguas, um
periódico destinado ao turismo, afirma que os êxitos do autor “no son fruto de
la casualidad, sino que tienen detrás años de trabajo, de caminos recorridos
por el ancho mundo y de honda experiencia narrativa”. 16
Sete Léguas é também um bom nome para uma publicação de
fomento ao turismo, aponta para a imensidão de estradas a percorrer,
lugares a visitar neste torturado planeta. Mas é a alusão à experiência
narrativa que pretende estabelecer a ligação entre o jornalismo, no caso
a reportagem, e a literatura ficcional, um âmbito da narração de histórias
não necessariamente vividas, aliás, preferencialmente inventadas.
O jornalista e seu editor parecem ignorar a distinção entre o simples
narrador e o ficcionista por trás da estrutura narrativa literária.
Pode-se vislumbrar aí o problema, na tênue fronteira entre a
realidade e a imaginação. Para o editor de Billete de Ida, os elementos
que constituem a maneira de narrar de Javier Reverte são o humor, a
ternura, a sobriedade e a honestidade. Qualidades, sem dúvida, mas
serão suficientes para a criação literária?
Ler os textos, também denominados crônicas pelo próprio autor, é
16
“não são fruto da casualidade, mas resultam de anos de trabalho, de caminhos
percorridos pelo mundo e de profunda experiência narrativa”. Itálico acrescentado.
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descobrir os chavões que a mídia e a literatura consagraram: os ingleses
consideram-se superiores ao resto da humanidade, os franceses são
exímios vendedores de perfumes, no Uzbekistan é preciso ter três
estômagos para agüentar a quantidade e a consistência da comida,
ingleses e franceses odeiam-se… enfim quase nada de que já não se
tenha ouvido falar exatamente dessa maneira.
Há estrutura narrativa nos textos? Sim: mas as cenas são descritas
em diálogos, nos quais aparecem os fatídicos verbos dicendi que tornam
o texto jornalístico extremamente monótono e previsível. E aí pode estar
o grande senão: a monotonia e a previsibilidade são incompatíveis com
a boa literatura.
De Capote a Xerazade17: os rios correm para o mar
Em conseqüência, Doce-Linguagem e Luz-da-Religião viveram dias felizes,
serenos, cheios de paz, até que os veio procurar Aquela que destrói o edifício
dos prazeres e dispersa as assembléias.
Que Alá nos seja favorável no dia desse encontro!
(As mil e uma noites – As paixões viajantes)
Uma cena descrita por um jornalista é previsível, factual; elaborada
por um ficcionista, abre um leque de possibilidades significantes.
Observe-se a estrutura narrativa e os recursos lingüísticos de duas
pequenas passagens, Javier Reverte e Karen Blixten, respectivamente,
em textos nos quais o narrador-protagonista refere-se a seu coadjuvante
em uma cena de refeição:
Me ofrece té, frutas, dulces, frutos secos y pan, ceremonia inevitable en
cualquier entrevista que el extranjero celebra en Uzbekistán. Y entre té y té
va transcurriendo la entrevista: “Los principios básicos de la sociedad socialista
17
Opto pela ortografia Xerazade, estabelecida pela edição consultada, em português,
da Brasiliense, 1991. Sherezade, como aparece abaixo, consta na edição espanhola
de Siete cuentos, utilizada neste estudo.
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son idénticos que los principios básicos del islam. De ahí nuestro entusiasmo
en la actividad social” 18 (REVERTE, 2006, p.40).
O texto trata do mundo real e o narrador é, sem dúvidas, o próprio
autor no exercício de sua profissão - uma entrevista jornalística. O
narrador não é constituído como um elemento interno da estrutura
narrativa que o texto aparentemente tem, não há caráter ficcional, não foi
criado pelo autor, é o próprio autor em sua experiência vivida. Esse
traço é definitivo para desconfigurar o aporte literário do texto. A
linguagem cuidada, na enumeração dos alimentos servidos e na metaforização
espaço-temporal e hiperbólica do ato de beber muito chá – entre um
chá e outro, como de minuto a minuto, de lugar a lugar, de assunto a
assunto, um excesso de repetições e minúcias - não é suficiente para
instaurar a literariedade.
A fala aspada do interlocutor é referencial, ele existe e a questão sóciopolítico-religiosa do islamismo é local, datada e externa à estrutura do texto.
Isto é, tudo, na cena, é particular e externo à elaboração ficcional e universalizante
do texto literário. E nada surpreende o leitor, a não ser, talvez, uma ou outra
informação que desconheça, mas que, a partir da primeira leitura, já fará parte
do conhecimento que portará a respeito desse contexto.
O discurso do jornalista contém a própria sentença de não-literariedade
ao descrever a cerimônia da refeição como “inevitável”, o que estabelece,
definitivamente, o óbvio incompatível com o estético-literário.
O contraponto esclarece essa distinção em pormenores:
Nathalie e yo nos dispusimos a cenar en la habitación templada y tranquila, con
la grande y bulliciosa ciudad bajo nosotros. Estaban caídas las cortinas
18
“Me oferece chá, frutas, doces, frutos secos e pão, cerimônia inevitable em qualquer
entrevista que o estrangeiro realiza em Uzbekistão. E entre chá e chá vai trancorrendo
a entrevista: ‘Os princípios básicos da sociedade socialista são idênticos aos princípios
básicos do Islam. Daí nosso entusiasmo pela atividade social.’”
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ocultándonos la noche lluviosa. Éramos como dos lechuzas dentro de una torre
arruinada, en lo más espeso de la selva, y nadie en el mundo sabía nada de
nosotros. Apoyó un brazo sobre la mesa y descansó su cabeza sobre él. Creo
que tenía hambre. Al ver la comida que tenía preparada, caviar e carne de
ave en frío, comenzó a mirarme con alegría, a sonreír, a hablarme y a
escuchar lo que yo le decía 19 (BLIXTEN, 1999, p.80).
A personagem-narrador-protagonista faz parte da estrutura interna dessa
cena compartilhada com a mulher chamada Nathalie (reforço a ambigüidade
não informando a que conto pertence o trecho, nem se a cena se passa entre
um homem e uma mulher ou duas mulheres, prolongando a surpresa até que
meu leitor encontre, ou relembre, o livro e nele, entre os sete contos, este –
além de referenciar o pseudônimo masculino que a autora usou).
A conquista da atenção e do interesse da interlocutora é apresentada
nos detalhes gestuais que o narrador-persona capta e transmite ao leitor –
a cabeça reclinada no braço, sobre a mesa, o olhar, o sorriso. Não diz que
a atenção foi conquistada, sugere, indiretamente, que a situação lhe é
favorável.
Isso ocorre porque há outro narrador por detrás da cena, o autor
implícito, outro elemento interno dessa estrutura narrativa literária, que
não deve ser confundido com a pessoa do autor, (cf. TODOROV e
DUCROT, 1972, p.308), que escreve o conto no plano externo. Esse
narrador, em segundo plano, é o que realmente narra a cena entre as
personagens-protagonistas, sendo uma delas alguém que narra os
acontecimentos em primeira pessoa.
19
“Nathalie e eu nos dispusemos a cear no quarto fresco e tranqüilo, com a grande
e buliçosa cidade abaixo de nós. As cortinas estavam cerradas, ocultando a noite
chuvosa. Éramos como duas corujas dentro de uma torre em ruínas, na selva mais
profunda, e ninguém no mundo sabia nada de nós. Apoiou um braço sobre a mesa
e descansou a cabeça sobre ele. Creio que estava com fome. Ao ver a comida que
eu tinha preparado, caviar e carne de ave frios, começou a olhar-me com alegria,
a sorrir, a falar e a escutar o que eu lhe dizia.”
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Observa-se que nenhum sintagma empregado é dispensável para
que o leitor se apodere da cena e perceba que há um “clima” de
envolvimento entre as personagens. O construto eminentemente estético
do discurso instala uma realidade que não existe fora da estrutura
textual. A cena pode ser semelhante a outras, milhares, vividas por
qualquer leitor, mas nenhuma terá sido essa cena, com cada um dos
seus traços peculiares, que permanecem cristalizados quando o livro se
fecha e a leitura cessa.
Em literatura, o único elemento externo é o leitor e, mesmo ele,
para realizar a leitura, internaliza-se, como uma espécie de voyeur
consentido, necessário mesmo, para que a construção estética da
narrativa se efetive.
O espaço criado é ao mesmo tempo particular e universal, qualquer
cidade movimentada, em qualquer noite chuvosa das quais os protagonistas
se isolam pela simples presença das cortinas cerradas no interior de um
ambiente cuja magia se instaura pela comparação inusitada: duas corujas
isoladas do mundo em uma torre em ruínas, numa selva densa, e tudo isso
sem ligação alguma com qualquer “alguém” – nadie – ninguém além das duas
pessoas interessadas em conviver naquele momento.
Em espanhol, que não é a língua em que o conto foi escrito, mas a da
tradução aqui utilizada, coruja – lechuza – é uma palavra com carga conotativa
de isolamento e solidão (equivale a buho,20 em português mocho, símbolo
do misantropo, “indivíduo macambúzio”, o que vive só, escondido). Essa
carga simbólica é extremamente significativa para o desenrolar da narração e
para a culminância da trama, quando a personagem-protagonista descobrirá
a extensão do isolamento que parecia tão promissor.
20
Devo a observação e a revisão das citações em língua espanhola a
Pérez-Montoro.
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A possibilidade de estabelecer uma verossimilhança a partir unicamente
de nexos metafóricos construídos, de transmitir sabores e sensações que
chegam tanto à sensibilidade quanto à razão de quem lê, constitui a esteticidade,
a função poética 21 da linguagem que institui a categoria literária.
Soledad Puértolas considera Karen Blixten uma “maga da narração
(…) da linhagem de Xerazade”, das mil e uma noites de histórias e
sobrevivência.22 As narrativas encadeadas, ou emolduradas, em que uma
gera outras, são bem o protótipo da narração literária, cujo encantamento
transcende o nível meramente referencial do texto.
Um jornalista, por melhor executor que seja do texto escrito, não pode
apostar na magia, sob pena de perder seu próprio estatuto factual, informativo.
Um ficcionista, mesmo que atue nos termos do realismo, não poderá
dispensar o imaginário simbólico que estabelece a condição literária.
A valorização da estrutura interna do texto literário não significa que
ele também não seja feito de idéias e histórias reais, um dado não
exclui o outro. O que se trata de sublinhar aqui é a importância do
construto simbólico como essência do texto literário em si.
Considerações finais
Então, bilhete de ida, sete léguas e inúmeros chás inevitáveis podem ser
boas figuras, mas permanecem no circuito do lugar comum, enquanto sete
contos góticos, uma classificação técnica dos textos reunidos, definem uma
categoria desdobrável de sentidos dos quais depende a existência momentânea
das personagens e da cena por elas vividas.
Bilhete de ida, como título do livro, estabelece uma imagem de que
se intui a volta, não mencionada, como uma outra situação, resultante
da experiência da viagem. Ou não haverá volta, nos mesmos termos, já
21
A partir da perspectiva lingüística de Roman Jakobson.
Prólogo, in BLIXEN, 1999.
22
58
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que a intenção é alcançar algum tipo de permanência que não transcende a condição humana, apenas “rouba algum tempo à morte”.
A concepção da literatura, como, “entre muitas outras coisas, uma
maneira de burlar a nauseante presença da morte, no empenho tão
nobre quanto inútil de deter o tempo”, (REVERTE, 2006, p.19),
acentua a preocupação com fatores e motivos externos, interesses
contextuais e não imanentes ao texto produzido na contingência e na
brevidade da notícia.
Assim, podem-se rever os quatro pontos apontados acima como
argumentos:
1 – A classificação de “gêneros” que destaca a “durabilidade” dos
relatos de viagem apenas tangencia o que em literatura se constitui em
grande e batido tema, fundamentalmente plurissignificado pela metáfora da
passagem das várias fases da vida até a culminância da grande travessia
- a morte.
Quanto a esta insofismável luta pela eternidade, ou por uma
existência mais longa, cabe lembrar que no periodismo espanhol a busca
pela “perenidade” do literário parece bastante freqüente. A jornalista
Rosa Montero, que também escreve romances,23 afirma, em um livro
híbrido, entre autobiografia, ensaio e biografias romanceadas:
“nós, narradores, somos pessoas mais obcecadas com a morte que a maioria;
(…) percebemos a passagem do tempo com especial sensibilidade ou
virulência, como se os segundos tiquetaqueassem de maneira ensurdecedora
em nossos ouvidos” (MONTERO, 2004, p.10).
A denominação de narrador, entre o jornalista e o ficcionista, pode
ser um tópico interessante para a reflexão em torno das nuances dos
23
A conferir, em outra oportunidade, essa outra investida do jornalismo na direção da
literatura, mais radical, que também tem ocorrido entre jornalistas brasileiros. A Autora
também discute a classificação do jornalismo como gênero literário.
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discursos jornalístico e literário, passando pela famosa abordagem de
Walter Benjamin, impossível na circunstância restrita deste artigo. Por
outro lado, Arthur Rimbaud estabeleceu uma fronteira intangível para
qualquer linguagem referencial: “a eternidade está no encontro do sol
com o mar”.
2 – O destaque do ato auto-fágico de escrever as próprias vísceras
como fonte e moto-contínuo, situa o hibridismo entre jornalismo e
literatura como mais uma “entredevoração” de modelos ou cânones,
“formas de marronage a partir das quais o ‘modelo’ é freqüentemente
transgredido” (BERND, 1992 , p. 84). 24
Os modelos jornalístico e literário tradicionais são então transgredidos pelo jornalismo literário. Até onde essa transgressão pode chegar?
3 – A fugacidade como característica do suporte e do próprio texto
jornalístico pode ser amenizada pela publicação em livro, mas não é no
meio que reside o status literário: o jornalista superará o destino do
embrulho ou do fogo, mas seu texto não deixará de ser “datado” – essa
lápide que sepulta qualquer aspiração literária.
4 – O envolvimento visceral e espiritual do jornalista com o mundo
real em todas as suas dimensões pode ser, ao mesmo tempo, um dos
seus grandes méritos e o maior impedimento para a autenticidade literária
do seu texto.
O descompasso do “braço jornalístico”, pelo menos no caso de Billete
de ida, rio que corre para o mar, (se uma metáfora gasta pode ser esclarecedora)
é bem caracterizado pela pueril alegria de apontar a rima entre aventura e
literatura, rima infelizmente pobre, além do fato de que rimas não fazem parte
da prosa narrativa, nem sequer da poesia moderna, que há muito tempo tem
sua estrutura sonora estabelecida sobre o ritmo bem mais rico da acentuação
tônica, de assonâncias, consonâncias e pontuação.
24
O termo é usado pela autora ao tratar da Antropofagia na formação da literatura
brasileira.
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Já o fator Xerazade, aqui entendido como a trama narrativa em
seus diversos níveis de narração combinados à maior intensidade da
função poética, que culmina na metáfora mais significativa do tema – a
solidão, a incomunicabilidade, no conto de Karen Blixten –, estabelece
um dos obstáculos que o jornalismo teria que transpor para transformarse em literatura. Mas será esse o objetivo do texto jornalístico que se
propõe a ultrapassar seus próprios limites?
Os vários níveis de narração – do narrador ao autor –, no
jornalismo, se caracterizam pelo extremo oposto do texto literário: a
narração jornalística se dá sempre no plano da realidade referencial, isto
é, o jornalista pode narrar o que sua fonte ou seu entrevistado lhe
houver narrado. Qualquer terceiro nível de narração comprometerá a
compreensão imediata do texto, este sim seu maior objetivo.
Os níveis do discurso, ou do estilo, (cf. TODOROV e DUCROT,
1977, p.290), não explorados pela pequena análise dos dois trechos
aqui apresentados, também são ilustrativos do que está aquém da
literatura, na linguagem jornalística. No máximo, o jornalista usará o
discurso direto e/ou indireto. O discurso indireto livre, que mescla ao
discurso indireto, do narrador, tanto semântica quanto sintaticamente,
propriedades da enunciação, quer dizer, do discurso da personagem,
está fora de cogitação no jornalismo, pela condição sine qua non da
compreensão imediata. O problema da legitimidade literária para o
jornalismo se agrava, se lembrarmos que o estilo indireto livre é uma
das principais características da linguagem literária pós-moderna, entendendo
a designação apenas cronológica da produção literária do século vinte,
a partir dos anos trinta.
Da mesma forma, enquanto a comparação com “duas corujas” na
“torre em ruínas”, na “selva profunda”, das quais “ninguém sabia nada”
assinala os múltiplos significados que a cena relatada pode imprimir ao
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Alda Maria Quadros do Couto [47-63]
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tema subjacente do texto literário, no caso o conto de Blixten, a mera
enumeração “entre chá e chá” apenas insere o recurso da hipérbole, talvez
alguma ironia, um arranjo de linguagem que não chega a instaurar a função
estético-literária.
A função estética é responsável pela discutida ambigüidade do texto
literário, que Rosa Montero, apesar de considerar o jornalismo de articulista
e repórter um gênero literário como outro qualquer, reconhece como um
valor que antepõe jornalismo e literatura em extremos opostos (MONTERO,
2004, p.130). Apenas se deve questionar a anteposição entre clareza
como valor jornalístico e ambigüidade como valor literário, porque ambigüidade,
em literatura, significa plurissignificação, e não é sinônimo de confusão.
Talvez seja mais correto entender que o texto jornalístico é claro e evita
sugerir múltiplas interpretações, enquanto o texto literário tem na possibilidade
de inúmeras interpretações a sua razão de ser. Ou seja, quem lê um
texto literário não está em busca de exatidão, sabe que tem um encontro
com o imaginário, enquanto um leitor de ensaios ou reportagens procura
informação e opiniões.
Em termos mais ou menos apaziguadores para esse conflito, cabe
lembrar Roland Barthes, com a provocativa definição de texto de prazer
e texto de fruição: o melhor jornalismo e a melhor literatura têm em
comum a distância da euforia dada pelo texto que não contesta a cultura
nem rompe as práticas confortáveis da leitura de quem prefere o prazer.
Ao contrário, ambos apostam no risco da fruição: oferecem eficácia para
crises de perda, desconforto, rupturas com as bases históricas, culturais,
psicológicas, gostos, valores e recordações do leitor, além de sacudir o
uso e a interpetação da própria linguagem (BARTHES, 1974, p.49).
Há quem considere a questão jornalismo-literatura uma bobagem
sem sentido, um “gênero” inexistente. Talvez se deva reconhecer o
jornalismo literário exatamente como ele é, diferenciado, um texto que já
não corresponde ao jornalismo diário, mas também não pode ser
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Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006
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classificado como puramente literário. Do mesmo modo que a crônica já
não é mais uma notícia, mas também não é um conto. Da habilidade
lingüística de cada autor depende o teor, a carga literária que esses
textos híbridos, geralmente muito agradáveis de ler, possam apresentar.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1974.
BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS,1992.
BLIXTEN, Karen. (Isak Dinesen) Siete cuentos góticos. Madrid: El mundo
Unidad Editorial, 1999.
KHAWAN, René R. (texto estabelecido); SILVA, Rolando R. da. (tradução).
As mil e uma noites. 2 ed. S. Paulo: Brasiliense, 1991.
MONTERO, Rosa. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
PUÉRTOLAS, Soledad. “Prólogo” in BLIXEN, Karen. (Isak Dinesen) Siete
cuentos góticos. Madrid: El mundo Unidad Editorial, 1999.
REVERTE, Javier. Billete de ida. Los mejores reportajes de un gran viajero.
2000. Madrid: Unidad Editorial para Revista Siete Leguas, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Crítica de la crítica. Barcelona, Buenos Aires, México:
Paidós, Colección Surcos, 2005.
TODOROV, Tzvetan; DUCROT, Oswald. Dicionário enciclopédico das ciências da
linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1977.
Alda Maria Quadros do Couto é doutora
em Teoria da Literatura pela UNICAMP,
professora do Programa de Pós-Graduação
- Mestrado em Estudos de Linguagens, do
Centro de Ciências Humanas e Sociais da
UFMS.
Área do artigo: Literatura
Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006
63
Após-modernidadeeosestudosculturaisnaobrade
RenatoRusso:umaleituradeperfeição
WagnerCorsinoEnedino
PauloNogueiradeSouzaJunior
Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a letra da canção Perfeição, de
Renato Russo, enfatizando o entrelaçamento entre projeto literário e projeto
político, fazendo, assim, uma análise entre o período que a música foi composta
com a atual conjuntura nacional. Ancora-se, esta análise, nas contribuições de
Lagazzi (1988), sobre o modo como se organiza a questão do poder nos
sujeitos enunciadores, nas observações de Escosteguy (2000), sobre como se
articulam os mecanismos dos Estudos Culturais e suas relações com elementos
que rediscutem e questionam a questão do cânone literário, e nos estudos
desenvolvidos por Jameson (1997), sobre as estreitas relações pós-modernas
com o espírito consumidor. O trabalho traz uma síntese histórica do desenvolvimento
dos Estudos Culturais, bem como falar de Renato Russo e sua projeção na
música brasileira e internacional. Os elementos que regem a pós-modernidade
são fatores relevantes para a configuração de efeito de sentido em Perfeição.
Constata-se que o poder, na sua forma de coerção, de que decorre a
exploração dos grupos e indivíduos socialmente excluídos, subjaz como temática
fundamental da obra, que insinua uma crítica à ordem estabelecida.
Palavras-chave: Renato Russo. Estudos culturais. Pós-modernidade.
Abstract: The objective of this work is to analyze the letter of the song Perfeição,
of Renato Russo, emphasizing the interlacement between literary project and
political project, doing, in that way, an analysis among the period in that the
music was composed and the current national conjuncture. The analysis leans
65
Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85]
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on in the contributions of Lagazzi (1988), on the way as it is organized the
subject of the power in the subjects enunciators, in the observations of
Escosteguy (2000), on as they pronounce the mechanisms of the Cultural
Studies and their relationships with elements that rediscuss and they question
the subject of the literary canon, and in the studies developed by Jameson
(1997), about the narrow post-modern relationships with the consuming spirit.
The study brings a historical synthesis of the development of the Cultural
Studies, as well as to speak of Renato Russo and his projection in the Brazilian
and international music. The elements that govern to post-modernity are
relevant factors for the configuration of sense effect in Perfeição. It is verified
that the power, in its coercion form, that it elapses the exploration of the groups
and individuals socially excluded, he shows as the fundamental theme of the
literary work, it insinuates a critic to the established order.
Keywords: Renato Russo. Cultural studies. Post-modernity.
Ancorando-se nas contribuições de Lagazzi (1988), sobre o modo
como se organiza a questão do poder nos sujeitos enunciadores, nas
observações de Escosteguy (2000), sobre como se articulam os
mecanismos dos Estudos Culturais e suas relações com elementos que
rediscutem e questionam a questão do cânone literário, e nos estudos
desenvolvidos por Jameson (1997), sobre as estreitas relações pósmodernas com o espírito consumidor, este estudo tem como objeto de
análise a letra da canção Perfeição e busca enfatizar a dimensão universal
ali explorada, evidenciando o entrelaçamento entre projeto literário e projeto
político: um projeto artístico que quer falar às massas e formar consciências,
dramatizando a vida dos que estão submetidos à condição de subemprego/
desemprego e ao poder dos exploradores. Importa ressaltar que o poder,
na sua forma de coerção, subjaz como temática fundamental do trabalho,
uma vez que, “Abordando as relações entre os indivíduos, podemos trazer
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A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85]
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à tona o complexo sistema social, mostrando os modos de opressão que
o constituem [...]” (LAGAZZI, 1988, p. 27).
A carência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de
Renato Russo parece ser decorrente de distintos fatores, entre os quais
o falacioso argumento de que a obra do músico carioca seria de baixa
qualidade estética. Esse “preconceito estético” pode ser, todavia, um
artifício para mascarar preconceitos ideológicos de duas origens diversas:
de um lado, o desconhecimento, pela academia, das matrizes sociais
que alimentam o real significado da obra; de outro, o esquivar-se,
intencionalmente ou por razões políticas, do universo histórico-cultural e
ideológico do período em que os textos do autor foram produzidos.
Isso não quer significar que a qualidade estética da produção de
Renato Russo seja irrepreensível, ou que os estudos de sua obra devam
priorizar o político em detrimento do literário, ou vice-versa. A obra de
Renato Russo, centrada, geralmente, na denúncia da exploração capitalista
e de sua ideologia, traz para a “arena da luta de classes” elementos
de cunho social que procuram entender o processo em que estão
envolvidos e lutam por sua superação.
A opção por Perfeição não é, portanto, aleatória: o texto é
constituído de significativas disposições políticas, marcadas pelo signo do
poder. A obra, envolta num discurso contestatório, foi escrita sob a égide
da contestação política, com a vertente artística de um trabalho que
procurou provocar no público uma reação de inconformidade com o status
quo a que determinadas populações são submetidas.
Assim, este trabalho justifica-se porque se funda no estudo de
problemas atuais, figurativizados em uma obra também atual e de
temática universal, constituindo-se como uma aventura cognitiva que
busca verificar como a realidade vivida foi (re)produzida para a
composição ficcional (LEENHARDT e PESAVENTO, 1998), quais recursos
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Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85]
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do poder criador do artista Renato Russo fizeram suas letras transformaremse em evocação de vidas humanas, com uma estrutura artística desenvolvida
por meio de uma linguagem poética.
Sem a pretensão de preencher todos os vazios do texto analisado,
o trabalho remete, antes, ao aspecto provisório da leitura, configurandose como um primeiro passo em direção ao denso mundo representado
por Renato Russo durante sua trajetória de criação artística, em cujos
produtos fundem-se o local e o universal.
Estudos culturais: uma breve introdução
Para se ter uma dimensão sobre o que são os Estudos Culturais,
é necessário fazer uma recuperação histórica do percurso dessa linha de
pensamento desde a sua gênese até os nossos dias. Fazer um
mapeamento pormenorizado da trajetória desse campo de estudo tornase algo dificultoso, levando em consideração as inúmeras contribuições
teóricas que vem recebendo ao longo de sua existência.
Torna-se necessário estabelecer um recorte para se ter a real noção da
diversidade e da pluralidade dos Estudos Culturais. Estabelece-se aqui dentro dos limites e propósitos deste trabalho - a recuperação de pressupostos
teóricos que nortearam o desenvolvimento das discussões sobre a relação
cultura/comunicação de massa e, por conseguinte, os produtos da cultura
popular.
Os Estudos Culturais foram, originalmente, uma invenção britânica;
atualmente, atingiram âmbito internacional, rompendo as fronteiras da Inglaterra
e dos Estados Unidos para alcançar os mais variados territórios, desde a
Austrália até a América Latina, o que não implica, todavia, um “corpo fixo
de conceitos que possa ser transportado de um lugar para outro e que
opere de forma similar em contextos nacionais diversos” (ESCOSTEGUY,
2000, p.136).
Levando em consideração as peculiaridades históricas do contexto
britânico, percebe-se a abrangência que o político exerceu sobre o meio
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A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85]
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acadêmico, o que determinou as diretrizes teórico-políticas dos Estudos
Culturais. Deve-se ter a clara consciência de que esse campo de estudo
foi concebido, antes de mais nada, com a pretensão de estabelecer, do
ponto de vista teórico, um projeto político, ou seja, a intenção era
definitivamente construir um novo campo de pensamento, por meio da
interdisciplinaridade como elemento fundamental para um aprofundamento
analítico sobre questões de ordem político-cultural da sociedade.
Do ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser enquadrados
como um mecanismo de “correção política”, o que os aproxima dos inúmeros
movimentos sociais que emergiam na época de seu surgimento. Ocorre que
os mentores dessa área de pesquisa procuraram não difundir uma postura
rígida e absoluta de sua proposta. Surge, então, em 1964, fundado por
Richard Hoggart, o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS),
relacionado às mudanças de valores tradicionais da classe operária inglesa do
pós-guerra. Esse centro de estudos surge ligado ao Departamento de Língua
Inglesa da Universidade de Birmingham, para se constituir, depois, como
centro de pós-graduação dessa mesma instituição, cujo principal foco de
pesquisa são as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade.
No final dos anos 1950 e início de 1960, as bases dos Estudos Culturais
foram tratadas em três relevantes textos: The uses of literacy (1957), de
Richard Hoggart, Culture and society (1958), de Raymond Willians, e The
making of the english working-class (1963), de E.P. Thompson.
A pesquisa realizada por Hoggart concede especial atenção aos
materiais culturais ligados à cultura popular e dos mass media. Com
esse trabalho, inicia-se um percurso de teorização sobre práticas de
resistência e não tão somente de submissão do âmbito popular, o que
mais tarde será alvo dos estudos dos meios massivos. Embora Hoggart
traga novas contribuições teóricas sobre os Estudos Culturais, a sua
visão recupera aspectos relacionados aos meios sociais, especialmente
da classe trabalhadora.
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No que concerne à contribuição teórica de Raymond Willians
(1958), é de fundamental relevância para os Estudos Culturais, uma
vez que consegue discutir elementos da análise literária usando como
pano de fundo a investigação social.
Em The long revolution (1962), Willians traz à baila um intenso
debate sobre o grandioso impacto que os veículos de comunicação de
massa causam sobre as camadas populares, demonstrando com isso
certo pessimismo em relação à própria existência da cultura popular, bem
como aos meios de comunicação de massa.
No que diz respeito à contribuição de Thompson, pode-se afirmar que
seus estudos – amparados pela tradição marxista - exerceram influência sobre
o desenvolvimento da história social britânica. Tanto para Willians quanto para
Thompson, o papel da cultura está relacionado com um conjunto de práticas
e relações em que o indivíduo desempenha papel principal. Ocorre que Thompson
mantinha certa resistência para conceber a cultura como uma forma de vida
global; na sua visão, a cultura deveria ser entendida como uma luta entre
modos de vida diferentes.
Outro teórico que ofereceu significativas contribuições na formação
dos Estudos Culturais foi Stuart Hall, cujas pesquisas procuraram incentivar
o desenvolvimento dos estudos etnográficos, bem como as análises dos
meios de comunicação de massa e a investigação de atividades de
resistência no âmbito das subculturas.
Originalmente, os Estudos Culturais apareceram no cenário mundial
com uma proposta de cunho mais político que propriamente analítico.
Revestida de um viés marxista, a história dessa linha de pesquisa
encontra-se relacionada com a trajetória da New Left, de determinados
movimentos sociais (Worker’s Educational Association, Campaign for
Nuclear Disarmament) e de publicações (como a New Left Review)
que surgiram em torno de respostas políticas à esquerda.
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A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85]
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Mais tarde, no período pós-68, os Estudos Culturais impulsionaram
o pensamento intelectual de esquerda, proporcionando um grande impacto
no âmbito teórico e político, e suas diretrizes ultrapassaram as fronteiras
do espaço acadêmico, trazendo para a Inglaterra um forte compromisso
de militância que visava a mudanças sociais radicais.
Ao fim dos anos 1960, a atenção dos pesquisadores de Birmingham
recai sobre a recepção e a densidade dos consumos midiáticos. Tal
pensamento ganha notoriedade a partir da divulgação do texto Enconding
and decoding in television discourse, de Stuart Hall, publicado em 1973.
Por meio de noções relacionadas à concepção marxista sobre ideologia,
Hall enfoca a pluralidade, socialmente determinada, das práticas que
envolvem a recepção dos programas televisivos. Segundo Escosteguy
(2000, p. 151), o autor argumenta:
[...] podem ser identificadas três posições hipotéticas de interpretação da
mensagem televisiva: uma posição “dominante” ou “preferencial”, quando o
sentido da mensagem é decodificado segundo as referências da sua construção;
uma posição “negociada”, quando o sentido da mensagem entra “em
negociação” com as condições particulares dos receptores; e uma posição de
“oposição”, quando o receptor entende a proposta dominante da mensagem,
mas a interpreta segundo uma estrutura de referência alternativa.
Durante os anos 1970, os Estudos Culturais se aproximaram dos
Estudos Feministas, tendo como fundamento as relações entre sujeito,
poder e dominação. Mais adiante, foram acrescidas à noção de gênero
questões relacionadas à raça e à etnia.
As pesquisas do Centro de Birmingham acerca de gênero começam
a surgir em 1978, com a publicação de Womem take issue, de 1978.
Charlotte Brundson, Marion Jordon, Dorothy Hobson, Christine Geraghty
e Angela McRobbie são autoras que “revêem suposições do senso
comum sobre os meios de comunicação reivindicando que a audiência,
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no caso, feminina, tem autoridade sobre suas práticas de leitura”
(ESCOSTEGUY, 2000, p. 152).
Durante a década de 1980, eclodem estudos acerca dos meios de
comunicação de massa, tendo como especial referência os programas
televisivos. Ocorre, também, nessa esteira, um redimensionamento dos
protocolos de investigação científica, fazendo surgir trabalhos de natureza
etnográfica. É importante ressaltar que algumas das pesquisas dessa
época concederam especial importância ao ambiente doméstico, bem
como às relações familiares, para a formação de leituras diferenciadas.
Para se ter uma dimensão das diferenças existentes no âmbito dos
estudos sobre cultura entre as décadas de 1980 e 1990, é necessário
considerar que, durante a primeira, existia uma compreensão das relações
entre poder, ideologia e resistência, ao passo que, nos anos 1990, a
preocupação em recuperar as “leituras negociadas” dos receptores
viabilizaria a valorização da liberdade individual desse receptor e tornaria
menos valorizados os efeitos da ordem social.
Para alguns teóricos, os Estudos Culturais mudaram seu direcionamento
ao longo de sua trajetória, como pode se exemplificado no conceito de
“classe”, que deixou de ser o conceito crítico central. Concomitantemente,
o centro das discussões passou a ser questões relacionadas à subjetividade
e à identidade. Em síntese, os Estudos Culturais tiveram ampla contribuição
social, à medida que trouxeram à tona questões relacionadas aos
produtos advindos da cultura popular e dos mass media, que refletiam os
rumos e diretrizes da sociedade contemporânea.
Nesse momento, tentaram resgatar determinadas tradições teóricas
de cunho sociológico, em detrimento do funcionalismo norte-americano,
sob a alegação de que este não era suficientemente capaz de compreender
as temáticas propostas. Com isso, a Inglaterra passou por um processo
de recuperação de perspectivas como a fenomenologia, a etnometodologia
e o interacionalismo simbólico.
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A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85]
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Como o significado de cultura tornou-se algo bastante extenso, o foco
viria a recair sobre toda a produção de sentido. Como ponto de partida,
dedica-se especial atenção às estruturas sociais (de poder) e ao contexto
histórico, considerados fatores determinantes para a compreensão da ação
dos meios massivos, bem como o deslocamento do sentido de cultura, encravado
no tradicionalismo elitista, para as práticas cotidianas.
Os Estudos Culturais atribuem à cultura um papel que a esfera econômica
não consegue explicar totalmente. O marxismo e os Estudos Culturais mantêm
uma relação desenvolvida por meio da crítica ao reducionismo e ao economicismo,
o que resulta num modo de contestação do modelo base-superestrutura. A
visão marxista trouxe subsídios aos Estudos Culturais no sentido de compreender
a cultura na sua “autonomia relativa”, ou seja, ela não mantém uma relação
de dependência econômica, nem seu reflexo, porém tem influência sobre e
sofre conseqüências das relações político-econômicas. Na esteira do pensamento
de Althusser, a força econômica, a força política e a força cultural são concebidas
como determinantes na composição da complexa unidade que é a sociedade.
Outro fator relevante para este campo diz respeito ao conceito de
ideologia proposto por Althusser: a ideologia é “provedora de estruturas
de entendimento através das quais os homens interpretam, dão sentido,
experienciam e ‘vivem’ as condições materiais nas quais eles próprios se
encontram” (HALL, 1980 apud ESCOTEGUY, 2000, p.145-6). Nesse
primeiro momento, as pesquisas em Estudos Culturais – ainda plenamente
concentradas na perspectiva da Escola de Birmingham – restringiam-se
às áreas das subculturas, das condutas desviantes, das sociabilidades
operárias, da escola, da música e da linguagem:
Discordando do entendimento dos meios de comunicação de massa como
simples instrumentos de manipulação e controle da classe dirigente, os Estudos
Culturais compreendem os produtos culturais como agentes da reprodução
social, acentuando sua natureza complexa, dinâmica e ativa na construção da
hegemonia (ESCOSTEGUY, 2000, p.146-7).
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De acordo com essa linha de raciocínio, as estruturas e os procedimentos
por meio dos quais são estudados os meios de comunicação de massa ganham
especial importância, uma vez que sustentam e reproduzem a estabilidade
social e cultural. Isso não é realizado, todavia, dentro de um processo mecânico,
mas no interior de um percurso que vai se adaptando às pressões e às
contribuições que surgem dentro do universo social, de forma que se integre
ao sistema cultural.
Gramsci contribuiu de maneira significativa para uma maior compreensão
dos processos de mudanças que podem ser construídos dentro do
sistema. Sua teoria norteia-se pelas complexas relações que ocorrem
entre as culturas populares e a cultura hegemônica. Nessa perspectiva,
o que se pode evidenciar é que não existe um rígido confronto entre as
diferentes culturas:
Na prática, o que acontece é um sutil jogo de intercâmbios entre eles. Elas
não são vistas como exteriores entre si, mas comportando cruzamentos,
transações, intersecções. Em determinados momentos, a cultura popular resiste
e impugna a cultura hegemônica; em outros, reproduz a concepção de mundo
e de vida das classes hegemônicas (ESCOSTEGUY, 2000, p.147).
No que diz respeito às linhas de pesquisa implementadas pelos
Estudos Culturais, destaca-se aquela que prioriza as relações de consumo
da comunicação de massa, sendo esta o lugar onde se realiza a
negociação entre práticas comunicativas diferentes. De maneira geral,
pode-se entender o Centro de Birmingham, desde a sua fundação até
meados dos anos 1980, como um pólo de pesquisas que detém um
grande número de teorias diversificadas, cuja atenção recai sobre as
culturas de massa e culturas populares e que, mais tarde, trouxe para
o centro das discussões questões relacionadas às identidades étnicas e
sexuais, além de propagar estudos heterogêneos originados das inúmeras
e diversificadas teorias que estudam os mais variados temas.
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A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85]
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Com o surgimento de novos teóricos como Michel de Certeau,
Michel Foucault, Pierre Bourdieu, entre outros, no final dos anos 1970
e início dos anos 1980, os Estudos Culturais passam por um processo
de internacionalização, tornando escassas as análises em que o fundamental
são “luta” e “resistência”. Para alguns analistas, tal comportamento
marca o início da despolitização dos Estudos Culturais.
A partir dos anos 1990, nota-se, em determinados casos, uma
fragmentação, inconsistência e trivialização desse campo de estudos,
embora possam ser detectados aspectos consistentes na proposta de
análise das nuances culturais que marcam a contemporaneidade. Nessa
fase, os Estudos Culturais passam por um período de relaxamento quanto
à sua vinculação política, e o pensamento que marcou o início dessa
linha de pesquisa sobre o estudo de algo “novo” já não existe mais.
Todavia, mesmo fragmentada, existe uma relação de continuidade.
Torna-se importante avaliar que a relação cultura/comunicação de massa
e as suas várias diretrizes, como os problemas das culturas populares
também sofrem alterações na trajetória dos estudos Culturais.
Tais questões são extremamente relevantes para se ter uma visão
dos Estudos Culturais. Ocorre que existem outras diretrizes importantes
no universo desse campo de estudo, como, por exemplo, a discussão da
pós-modernidade, cujo enfoque recai sobre questões como a globalização,
a influência das migrações e o papel do Estado, bem como a cultura
nacional e suas repercussões sobre o processo de construção das
identidades.
Outro ponto relevante acerca dos Estudos Culturais está relacionado
ao seu vínculo com o modo de vida globalizado, em que as diferenças
aparecem de forma acentuada. Esse pensamento é avaliado por Cevasco
(2003), ao apresentar a visão de Raymond Williams, cujos estudos
estão centrados no percurso teórico nas práticas sociais concretas. Para
o teórico, as idéias, as estruturas de sentimentos e as formações na
linguagem estão relacionadas com uma determinada ordem social e se
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reproduzem por meio de investigação histórico-literária, materializadas
pelo estilo da escrita de cada autor, caracterizando uma profunda
consciência política.
Estudos culturais e cultura brasileira
Classificar a cultura brasileira é algo muito difícil, uma vez que os
aspectos que compõem a sua noção são contraditórios, revestidos de
dinamismo e pluralidade. Conceituar de forma pormenorizada a questão
da cultura nacional também é algo um tanto complexo, pois as respostas
a questionamentos acerca da noção de “identidade brasileira” não terão
univocidade, haja vista que a sociedade brasileira é composta por
elementos contrastantes e conflituosos.
Qualquer tentativa de se fazer um mapeamento dos caminhos que
a cultura nacional trilhou entre os anos de 1950 e 1980, necessariamente,
precisará recorrer a aspectos relacionados com as manifestações artísticas
e culturais deste País, sobretudo o teatro, quer pela relevância dessa
modalidade artística, quer pela contundência com que trabalhou elementos
ligados à representação dos dilemas nacionais.
Nesse período, o País passou por um forte processo de industrialização,
o que trouxe subsídios para impulsionar o grande fenômeno sociocultural que
ocorreu nos últimos trinta anos do século XX. Concomitantemente ao advento
da moderna indústria cultural brasileira, o País enfrentou questões que influenciaram
consideravelmente os discursos e ações de artistas e intelectuais que marcaram
o ápice da cultura engajada, que buscava transmitir ao público uma representação
aproximada de um país com seus conflitos e contradições. No entanto, as
forças conservadoras (na maioria, ligadas à indústria cultural ou ao Estado)
não ficaram impassíveis perante a cultura engajada e apresentaram rapidamente
suas respostas e projetos para o Brasil.
Nesse momento, o País passava por uma fase em que coexistiam elementos
ligados ao âmbito rural e componentes cada vez mais urbanos e industrializados.
No que diz respeito à cultura popular, esse processo de coexistência representou
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A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85]
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um cruzamento de elementos de raízes folclóricas com elementos relacionados
ao espaço urbano das novas massas de trabalho. Por conseguinte, a “cultura
de elite”, envolta no tradicionalismo do século XX, também buscou mecanismos
artístico-culturais modernos e cosmopolitas para o pleno desenvolvimento de
seus interesses.
É nesse segmento que o músico Renato Russo faz ecoar sua voz nos
ouvidos das autoridades de um país mergulhado num obscuro regime de
exclusão. Com letras que buscam transmitir ao público uma mensagem de
contestação, Russo mantém um projeto estético ligado às minorias, àqueles
que efetivamente estão à margem da sociedade, trazendo para o centro das
discussões questões múltiplas como etnias, relações de poder e, especialmente,
a política, fatores que favorecem o desenvolvimento dos Estudos Culturais.
Considerando os Estudos Culturais como mecanismo de “correção política” próximo dos movimentos sociais que emergiam na época de seu surgimento,
pode-se afirmar que uma análise da obra de Renato Russo à luz dessa nova
“teoria” é mais que pertinente. Nesse sentido, as pesquisas em Estudos
Culturais restringem-se às áreas das subculturas, das condutas desviantes,
das sociabilidades operárias, da escola, da música e da linguagem:
Discordando do entendimento dos meios de comunicação de massa como
simples instrumentos de manipulação e controle da classe dirigente, os Estudos
Culturais compreendem os produtos culturais como agentes da reprodução
social, acentuando sua natureza complexa, dinâmica e ativa na construção da
hegemonia (ESCOSTEGUY, 2000, p.146-7).
De acordo com essa linha de raciocínio, as estruturas e os procedimentos
por meio dos quais são estudados os meios de comunicação de massa ganham
especial importância, uma vez que sustentam e reproduzem a estabilidade
social e cultural. Isso não é realizado, todavia, dentro de um processo mecânico,
mas no interior de um percurso que vai se adaptando às pressões e às
contribuições que surgem dentro do universo social, de forma que se integre
ao sistema cultural.
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Sob o signo da “perfeição” capital
Renato Manfredine Junior nasceu no dia 27 de março de 1960, em
Humaiatá, zona Sul do Rio de Janeiro. O autor passou por várias fases,
que, mais tarde, seriam “carro chefe” para suas composições. Criou o
nome artístico “Russo” inspirando-se num de seus pensadores favoritos,
o inglês Bertrand Russell, e também no filósofo Jean-Jacques Rousseau,
bem como no pintor primitivista Henri Rousseau.
O artista escreveu muitas composições, dentre as quais inúmeros
poemas líricos. Suas primeiras tentativas como escritor e compositor
ocorreram na época da extinta banda Aborto Elétrico, em Brasília. Várias
composições foram escritas na época e ainda permanecem inéditas;
outras foram gravadas posteriormente pela Legião Urbana. Com o fim do
Aborto Elétrico, Renato Russo passa a se apresentar sozinho como o
Trovador Solitário e, mais tarde, juntamente com Marcelo Bonfá, Dado
Villa-Lobos e Renato Rocha, formou a banda Legião Urbana.
Perfeição, letra escrita em 1993, num lapso de tensão política
nacional, revela-se um objeto de análise bastante propício para mergulhar
na problemática social que permeia o âmbito nacional: tematiza o
momento histórico e insinua uma inserção nas discussões políticas do
tempo. A nova arte política deve ater-se ao verdadeiro objeto do pósmodernismo – o espaço mundial do capital internacional – e buscar uma
maneira de representá-lo, a fim de que entendamos nosso papel como
sujeitos individuais e coletivos e recuperemos nossa capacidade de agir
e lutar (no espaço e na escala social).
Ambíguo, o título da letra suscita – antes da leitura da obra e de sua
vinculação ao autor – a metáfora de um país mergulhado em incertezas e
injustiças que irrompem a história do Brasil. Metaforicamente, remete-se a um
“país das maravilhas”, com suas belezas naturais, com suas práticas futebolísticas
e carnavalescas criadas a partir de uma visão internacional sob a égide do
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A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85]
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capitalismo. Assim considerada, a obra parece aproximar-se da estética pósmoderna, uma vez que uma das funções da pós-modernidade é:
[...] correlacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com
a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica
– chamada freqüente e eufemisticamente de modernização, sociedade de
consumo, sociedade dos mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional
(JAMESON, 1997, p. 17).
Nesse sentido, afirma Jameson (1997) que a produção estética pósmoderna está integrada à produção de mercadorias e que a nova cultura
pós-moderna é americana, pois expressa a dominação militar e econômica
dos Estados Unidos sobre o resto do mundo. Assim, o pós-modernismo
não é, para ele, um estilo, mas uma dominante cultural: um todo em que
coexistem várias características bem distintas entre si, mas que se subordinam
umas às outras, de modo que também não se trata de uma ruptura com o
modernismo.
Também é interessante ressaltar que, atualmente, no estágio pósmoderno, as fronteiras entre arte e a vida são cada vez mais tênues. Os
mecanismos que regem as diretrizes da pós-modernidade podem ser
uma forma produtiva de se ver, descrever, compreender e interpretar o
mundo por meio de diferentes manifestações culturais, como acontece,
por exemplo, nas letras de Renato Russo, uma vez que o autor focaliza
a organização dos espaços urbanos, suas fronteiras e formas de produção
permeadas pela lógica do sistema capitalista.
O título da composição abriga, ainda, um tom de ironia, pois
segundo o dicionário Aurélio (1975, p.1068), a palavra Perfeição
origina-se “do latim, perfectio, estado do que é correto, exato, impecável.”
Ocorre que o sentido que fundamenta o texto é exatamente o oposto,
uma vez que remete à noção de perfeição imperfeita, em que o jogo dos
contrários inserido no título/texto traz para o ouvinte/leitor fundamentos
da ordem de ser/parecer.
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Segundo Mora (2001), a palavra perfeição está relacionada a
algo que é perfeito, “completado”, de tal modo que não lhe falte nada,
mas tampouco nada lhe sobra para ser o que é. Nesse sentido, dizse que algo é perfeito quando é justo e exemplar. Essa idéia de
perfeição inclui a idéia de “limitação”, e se o perfeito é algo “limitado”,
tudo que for ilimitado será imperfeito. A idéia de perfeição teve considerável
importância em toda a história do pensamento ocidental, sobretudo a
partir do cristianismo, isto é, quando Deus foi concebido como modelo
de perfeição. Somente Deus poderia ser considerado como o arquétipo
de perfeição absoluta, cabendo ao restante uma perfeição relativa.
Nessa perspectiva, Renato Russo parece encaminhar, com a obra,
duas questões: o que somos? Que País é este? Por meio da primeira,
parece propor a discussão da des-humanização do brasileiro submetido
a um trabalho desqualificador “Nosso castelo de cartas marcadas/ O
trabalho escravo e nosso pequeno universo”; com a segunda, traz para
a cena os efeitos do sistema político-econômico do País, cuja gente
“trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a
nada”.
Quando a letra Perfeição foi composta, em 1993, uma composição que
pertence ao disco O descobrimento do Brasil, o País estava, ainda, sob os
efeitos de uma grande turbulência política, provocada pelo rápido governo da
chamada “Era Collor”. No entanto, desde a sua concepção até os dias de
hoje, as realidades focalizadas na canção se mantêm atuais:
Na eterna dialética entre ética pública e privada na vida e obra de Renato,
O descobrimento do Brasil, trazia também um impressionante retrato do país,
filme queimado e tudo. Pois o Brasil também havia conseguido sobreviver a
Fernando Collor de Melo, apeado do poder a 29 de dezembro de 1992. O
Brasil que sobrara para o vice-presidente Itamar Franco estava por inteiro na
música Perfeição, incrivelmente amarga, mas no final das contas otimista.
Ninguém era poupado (DAPIEVE, 2003, p. 141).
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É necessário salientar que, mesmo em maior escala, a letra é
permeada de aspectos negativos em relação à situação político-social do
País, mas ao final denota um tom otimista: “Venha, o amor tem sempre
a porta aberta/E vem chegando a primavera/Nosso futuro recomeça/
Venha, que o que vem é perfeição.”
A letra enfoca, de forma cortante e irônica, os aspectos de um país
naufragado em corrupção política e descaso social: “Vamos celebrar a
estupidez humana/ A estupidez de todas as nações/ O meu país e sua
corja de assassinos/ Covardes, estupradores e ladrões [...]/ Celebrar
a juventude sem escolas/ As crianças mortas/ Celebrar nossa desunião”.
Outra questão relevante no texto é quanto ao processo de alienação
da população frente aos diversos problemas de ordem social, pois sob
o ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser vistos como um
sinônimo de “correção política”, podendo ser identificado como a política
cultural dos vários movimentos sociais. Tal correção é apresentada pelo
autor com nuances de crítica voraz e contundente: “Vamos comemorar
como idiotas/ A cada fevereiro ou feriado [...].”
É interessante frisar que Renato Russo traz para a sua composição
aspectos referentes à mitologia greco-romana, como os deuses gregos
citados na letra: “Vamos celebrar Eros e Thanatus/ Perséfone e
Hades.” Perséfone, filha de Zeus e Deméter, casara com Hades e
tornara-se a rainha dos mortos. Nesse aspecto, Eros está relacionado ao
amor, o Deus que desperta paixões, Hades é o sombrio Deus do mundo
subterrâneo e Thanatus, o mais ativo dos imortais.
Em Perfeição, todos os aspectos apontam para o comportamento dos
oprimidos em face do poder. Para o autor é necessário comemorar “Toda
a hipocrisia e toda a afetação/ Todo o roubo e toda a indiferença [...]
“A corrupção, a chantagem, a contravenção, que surgem pela voz cáustica
do artista, desferem contra os mecanismos que regem o poder toda
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Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85]
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inconformidade com o status quo e apresenta o Estado como símbolo da
manutenção desse poder. Em consonância, a população mantém um quadro
de conivência com o poder instituído: “Vamos celebrar epidemias/ É a
festa da torcida campeã.” Acrescentada uma tentativa de discurso da união,
o autor tenta buscar a adesão do enunciatário com uso de comprometimento
“ideológico” que garanta o alcance do objeto: a união (ou o ajuntamento)
poderia constituir um movimento consistente, capaz de exercer influência
sobre a situação de exclusão e marginalização social, mas Renato Russo
apresenta, de forma metafórica, a discussão de elementos de alienação
por parte da população brasileira, representada pelos componentes da
escala social dependentes de um mísero “salário”, os quais buscam, na
televisão, um elemento de alienação social: “Vamos celebrar a estupidez
do povo/ Nossa polícia e televisão/ Vamos celebrar o nosso governo/
E nosso estado que não é nação.”
Por meio de uma linguagem ácida, o autor também faz alusão ao
poder instituído do capitalismo, que explora sem nenhuma benevolência
a mão-de-obra dos trabalhadores do País, o que resulta em descaso e
completo abandono das autoridades, pois, segundo Russo, é preciso
“Celebrar a juventude sem escolas/ As crianças mortas/ Celebrar nossa
desunião.”
Deve-se levar em consideração que o autor emprega, também, muitas
vezes, o discurso do senso comum - graças à sua força argumentativa
e ao fato de atingir o status de verdade, universalmente aceita, incontestável
- para conseguir a adesão do seu interlocutor, porque:
“Situar as grandes verdades acima de todos os sistemas, colocando-as como
verdades do senso comum, possibilita que a reflexão não entre em choque com
o poder vigente” (LAGAZZI, 1988, p.30).
O discurso do senso comum vem ao encontro dos anseios do artista
em atingir a grande massa da população: “Venha, meu coração está
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A pós-modernidade e os estudos culturais na obra de Renato Russo [65-85]
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com pressa/ Quando a esperança está dispersa/ Só a verdade me
liberta/ Chega de maldade e ilusão.”
Assim, o autor apresenta o discurso da descrença que, envolto num
clima de constante exploração, perde qualquer sonho de mudança do
status quo: “Vamos celebrar a fome/ Não ter a quem ouvir/ Não se ter
a quem amar”. Com essa canção, Renato Russo, mais uma vez,
direciona suas letras para dentro da realidade nacional. Uma realidade
que remete os excluídos a uma reflexão sobre a sua real condição. Essa
reflexão culmina na voz da juventude que tenta conseguir alcançar um
futuro melhor.
A função que a linguagem alcança no texto é fator determinante
para estabelecer as relações de poder entre exploradores e explorados.
A ideologia subjacente ao discurso do autor ganha dimensão por meio
da linguagem porque, como afirma Lagazzi (1988, p. 26),
“A linguagem é lugar de poder e de tensão, mas ela também nos oferece recursos para jogar com esse poder e essa tensão. O poder procura, no entanto,
eliminar as possibilidades que a linguagem nos dá para fugir ao controle que ele
quer absoluto”.
Com efeito, Perfeição, de Renato Russo, traz para o centro das
discussões, questões relacionadas ao processo de exclusão e alienação
social, fazendo uso de uma linguagem ácida e contundente de um autor
que esteve ao lado do rock brasileiro como um ícone de rebeldia e
contestação, mas sempre com torneios estéticos relevantes.
Considerações finais
Em Perfeição, atrás das palavras que permeiam o texto, há a
palavra, há as intenções e a história do autor. Um autor que concebeu
o universo do rock’ n’ roll como um espaço que lhe permitiu tomar parte
no debate político. Ao que parece, Renato Russo construiu a letra da
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Wagner Corsino Enedino/Paulo N. de Souza Junior [65-85]
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canção em torno de sua ideologia; sem perder sua identidade, o texto
encarna seus princípios e concepções de mundo.
Parece que, para o artista, o sofrimento e a dor causados pela
alienação/exclusão vêm revelar-se como um novo padrão de música,
porque a obra também aborda possibilidades de melhoria do País. A letra
remete a seres envolvidos num clima de ameaça à segurança e à vida
que se estende à comunidade e culmina no anseio lírico, que pode conduzir
a população a participar efetivamente das questões de vertente social da
sociedade.
Num texto que parece dialogar com o jornalismo, como é o caso
de Perfeição, encontra-se o retrato de um Brasil alienado e às vezes
inenarrável pela grande imprensa, criando para o autor uma imagem que
oscila entre aspectos positivos e aspectos negativos; entre o “belo” e o
“feio”; entre o agradável e o desagradável.
Assim, Renato Russo nunca esteve distante da desigualdade social;
ao contrário, esteve sempre mergulhado na realidade, procurando cumprir
um compromisso radical com os seres humanos que a sociedade deixa
à margem.
Com efeito, Perfeição teve a virtude de mostrar que a arte é social
em dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se
exprimem na obra em graus diversos de sublimação, e produz sobre os
indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do
mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais.
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REFERÊNCIAS
CEVASCO, M. E. Dez Lições Sobre Estudos Culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.
DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. 8 ed. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2003.
ESCOSTEGUY, A. C. Estudos Culturais: uma introdução. In: SILVA, T. T. (Org.).
O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.135-166.
JAMESON, Fredric. A lógica cultural do capitalismo tardio. In: Pós-modernismo: a
lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco; revisão da trad. Iná
Camargo Costa. São Paulo: Ática, 1997.
LAGAZZI, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988.
LEENHARDT, Jacques e PESAVENTO, Sandra Jatahy (orgs.). Discurso histórico e
narrativa literária. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. (Coleção Momento)
MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
HOLANDA, Aurélio Buarque. Novo Dicionário Aurélio da Lingua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
Wagner Corsino Enedino é doutor em
Letras pela UNESP, professor adjunto do
Câmpus de Coxim e do Programa de
Pós-Graduação - Mestrado em Estudos
de Linguagens, do Centro de Ciências
Paulo Nogueira de Souza Junior é
professor da rede pública estadual de
ensino de Mato Grosso do Sul.
Área do artigo: Literatura
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Casamentoempapéis:JosédeAlencareMachadode
Assis
RaqueldeOliveiraFonseca
Resumo: Análise do tema casamento em textos dramáticos de dois escritores,
influenciados pela força da comédia realista: de um lado O demônio familiar de
José de Alencar, aplaudido pela crítica; de outro, Lições de Botânica de
Machado de Assis que não alcança o mesmo prestígio. O direcionamento dado
ao tema, nos textos, nos conduz à distinta representação da naturalidade e o
diverso tratamento à questão da moralidade tão caras no contexto.
Palavras-chave: Texto dramático. Casamento. Moralidade. Crítica.
Abstract: Analysis of the subject marrige in dramatic texts of two writes, influenced
by the strenght of the realistic comedy: on a side, “O Dêmônio Familiar” from
José de Alencar, applauded by the criticizers; on the other “Lições de Botânica”
from Machado de Assis that does not achieve the same prestige. The given
addressing to the subject, in the texts, drives us to distinct representation of the
naturalness and the diverse handling to the question of the morality so
expensive in the context.
Keywords: Dramatic text. Marriage. Morality. Criticizes.
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Raquel de Oliveira Fonseca [87-99]
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Em meados da décadas de 1850 e no decorrer da década de 1860, a
comédia realista encontrou espaço favorável para seu aparecimento e
desenvolvimento no cenário da dramaturgia brasileira. Com o apoio da crítica,
contagiada pelo gênero em voga na França, O demônio familiar(1857), de
José de Alencar, torna-se o texto a assumir a vanguarda do gênero entre nós.
O próprio dramaturgo observa que recorreu a modelos franceses,
em especial os textos de Dumas para a criação da obra e, enquanto
folhetinista, pode dar o seu parecer a respeito dos elementos que julgava
essenciais à comédia de costumes, gênero que considerava o mais
importante da dramaturgia. As características que mais ressalta em seus
comentários são a moralidade e a naturalidade que deveriam ser a linha
mestra pela qual o dramaturgo dever-se ia orientar em sua criação.
Por meio da moralidade, o artista desempenharia a sua função de
educar; o teatro possibilitava mostrar os “vícios” que assomam à sociedade,
como, também, orientar a platéia para os princípios que se julgasse
adequados. A naturalidade, por sua vez, era responsável pela credibilidade
do real que deveria ser despertada na platéia, ou seja, quanto mais o
texto se aproximasse do real, mais o público poderia ver a si mesmo
representado no palco.
Por esses tempos, Machado de Assis, ainda bastante jovem, inicia
a apresentação de suas primeiras críticas à literatura dramática brasileira.
Concorda com a opinião vigente de que a comédia de costumes era o
gênero ideal a ser seguido pelos dramaturgos, e observa que o texto
dramático brasileiro merecia prioridade e o nosso teatro necessitava de
apoio por parte do governo a fim de que pudesse desenvolver-se, dada
a sua função civilizadora. Como crítico teatral, Machado mostra-se cada
vez mais competente, o que não teria ocorrido em relação a sua
tentativa como dramaturgo. A respeito de seus textos teatrais, entre os
quais citamos: O caminho da porta, O protocolo, Tu só, tu puro amor,
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Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99]
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Lição de botânica, em carta a Quintino Bocaiúva, confessara que eram
apenas parte de um caminho que pretendia trilhar a fim de chegar à alta
comédia. Tal caminho, porém, não chegou a ser concluído.
Quintino Bocaiúva, tomando por modelo a comédia realista, avalia
com rigor excessivo os textos como “frios e insensíveis”. O fato é que
o jovem escritor muda os planos e não mais escreve para o teatro.
Cabem aqui as palavras de João Roberto Faria que a, esse respeito,
observa:
Esse julgamento um tanto peremptório selou o destino da obra dramática de
Machado de Assis junto aos críticos e historiadores da nossa literatura, que não
se cansaram de repeti-lo ao longo dos anos. Já é tempo de discordar desse
julgamento, lembrando, por um lado, que algumas das comédias do nosso
maior romancista já passaram pela prova do palco com sucesso... (2001)
Por certo, uma leitura da obra dramática machadiana, despida de
(pré)conceitos, deverá chegar a conclusão diversa.
Dito isso, apresentamos nossa proposta de trabalho: a análise
comparativa dos textos O demônio familiar e Lição de botânica, quanto
ao tratamento que reservam ao tema do casamento. Como observamos
acima, ambos os escritores são grandemente influenciados pela idéia da
moralidade que deveria estar presente nos textos e, o casamento,
instituição burguesa, é valor a ser preservado por essa sociedade.
Enquanto a obra de José de Alencar é uma comédia realista, a
obra dramática machadiana, conforme João Roberto Faria, filia-se à
tradicional comédia de salão, ou provérbio dramático; de forma breve,
elegante, sem vulgaridades ou comicidade farsesca; gênero marcado pela
vivacidade de estilo e a espiritualidade.
O demônio familiar pode ser considerado um texto teatral longo,
possui quatro atos e várias personagens. Observa-se que o autor
alcançou um retrato abrangente das situações que ocorriam no interior
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das famílias, ao trazer para cena diferentes personagens, com
posicionamentos singulares. A figura masculina, responsável pelo lar, é
representada por Eduardo, filho da viúva D. Maria, dona da casa, e
irmão da jovem Carlotinha. Soma-se a estas personagens femininas,
Henriqueta, que deseja ser esposa de Eduardo. As demais personagens
masculinas, amigos da família, com suas idéias distintas a respeito do
casamento, enriquecem os diálogos do texto, permitindo que os ideais
morais de Eduardo, que age como porta-voz da sociedade, sejam
expostos mais enfaticamente.
Destaca-se a personagem Pedro, escravo que tem a liberdade de
conviver em meio à família, cuja presença traz para cena a intromissão
dos mais contrários posicionamentos à ética e também à moral familiar,
não apenas por meio de suas palavras, mas, sobretudo, por suas
ações, estas responsáveis por imprimir ao texto os maiores conflitos.
Iniciemos por Azevedo, uma das mais interessantes personagens; sendo
brasileiro, ama Paris, acredita-se mais esperto, experiente, que os demais,
visto que, sua estada em França, fê-lo mais maduro. Sua perspectiva em
relação ao casamento está limitada a questões de interesse pelo status social,
pela vida pública. Aspira a ser político e, para tanto, a companhia de uma
esposa bonita é a certeza de ser melhor recebido na sociedade.
AZEVEDO – Decerto!... Uma mulher é indispensável e uma mulher bonita!...
É o meio pelo qual um homem se distingue no grand monde!... Um círculo
de adoradores cerca imediatamente a senhora elegante, espirituosa, que fez a
sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! ( ...) Ora como no
matrimônio existe a comunhão de corpos e bens, os apaixonados da mulher
tornam-se amigos do marido, e vice-versa; o triunfo que tem a beleza de
uma, lança reflexo sobre a posição do outro. E assim consegue-se tudo!
Azevedo torna-se noivo de Henriqueta em troca de uma dívida do pai da
moça, mas com a convivência encanta-se pela espirituosidade e graça de
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Carlotinha, já que a noiva ama outro e não se importa em agradá-lo. Ele
mostra-se ridículo pela maneira de falar que mistura palavras francesas ao
português, como, também, por causa da supervalorização que faz de sua
própria pessoa e que não recebe crédito das demais.
O conceito de casamento, vivenciado pelo ridículo Azevedo, como instrumento
que faculta a abertura das portas sociais é, de forma distinta, partilhado por
Pedro. Este, visto como criança por Eduardo, arma todas as suas “peraltices”
porque deseja ser escravo de um dono rico, que possa dar-lhe um outro ofício
que julga mais importante, o de cocheiro. Somente com o casamento de
Eduardo com a viúva rica, ou de Carlotinha com Azevedo, seu sonho de
ascensão social poderia ser alcançado.
Pedro não poupa esforços para alcançar seu objetivo e causa os
maiores transtornos aos jovens; criativo, consegue enganar as pessoas
fazendo-as acreditar em planos que arquiteta para unir os pares que julga
válidos; suas ações estão sempre firmadas na crença de que o dinheiro
e a posição social são a única maneira de trazer a felicidade a todos.
Ele age de forma excessiva - enganando, mentindo - na consecução dos
seus planos que julga corretos; essas “peraltices” do menino Pedro tornamno a figura do mal, visto como demônio que causa danos à família.
Observa-se, no texto, que a ingenuidade pode ser a facilitadora de ações
incorretas de uma pessoa.
Eduardo, ao contrário, pela experiência de vida adquirida opta por
ser uma pessoa moralmente correta. A sua idoneidade e inteireza de
caráter, somadas à essa experiência torna-o o representante mais hábil
da moralidade -” também fui levado pela imaginação que dourava esses
prazeres efêmeros, (...) ensinaram-me a estimar aquilo que eu antes
não sabia apreciar; fizeram-me voltar ao seio da família”; é ele o herói
que livrará sua família e amigos do mal causado pelo ingênuo Pedro.
Caracteriza-se, portanto, o texto, por um caráter maniqueísta.
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As personagens Alfredo e Eduardo são representantes de uma
categoria de homens que prezam pela sua integridade moral e das
pessoas com as quais convivem. Ambos desejam casar-se, formar
família, com a jovem a quem escolheram por afeição. Alfredo ama
Carolina e, para enamorá-la, acredita dever apropriar-se da forma usual
de namoro na sociedade. Nisto diverge da postura de Eduardo que,
como responsável pela irmã, surpreende a todos com uma visão diversa.
Eduardo não obriga Alfredo à promessa antecipada de desposar Carolina,
antes permite que freqüente sua casa, aproximando-se da moça; acredita
que a moça deva conhecer o provável marido, pois a convivência, ante
os olhos da família, pode fortalecer os laços de um sentimento verdadeiro
ou desfazê-los, se o sentimento não for real. A educação que a moça
recebeu da família é a fiança de que ela pode receber tal confiança.
A credibilidade que a mulher recebe, no entanto, cessa aqui. Se as
moças nesta sociedade são educadas antes para a sala que para a
cozinha, fica claro também que não o são para o exterior da casa, para
o salão. Antes, Eduardo, sente saudades de uma sociedade que
priorizava os encontros no seio da família, os antigos serões. As
mulheres são, portanto, ingênuas, não têm experiência como o homem,
que conhece o mundo; cabe a este protegê-las e honrá-las sempre em
suas ações.
Eduardo – Ninguém conhece melhor o homem que ama, do que a própria
mulher amada; mas para isso é preciso que o veja de perto, sem o falso
brilho, sem as cores enganadoras que a imaginação empresta aos objetos
desconhecidos e misteriosos. Numa carta apaixonada, numa entrevista alta
noite, um desses nossos elegantes do Rio de Janeiro pode parecer como um
herói de romance aos olhos de uma menina inxperiente; numa sala, conversando,
são, quando muito, moços espirituosos ou frívolos.
(...)
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D. Maria – Desculpa, Eduardo. Sou mulher, sou mãe, sei adorar meus filhos,
viver para eles, mas não conheço o mundo como tu. Assustei-me vendo que
um perigo ameaçava tua irmã; tuas palavras, porém, tranquilizam-me completamente.
As moças, Carlotinha e Henriqueta, mostram-se inteligentes; em
especial, a primeira é espirituosa, perspicaz, decerto porque seu irmão
não é rígido quanto o pai da outra; entretanto, no relacionamento com
o homem a quem amam costumam manifestar um comportamento infantil
“Eduardo – Desejo que vejas de perto o homem que te interessa (...);
Carlotinha (com arrufo) – Não quero!... Não gosto dele.” Ou, ainda,
o comportamento é romântico, “Henriqueta – Creio que aos pés do altar,
se ele me chamasse, eu ainda me voltaria para dizer-lhe, enquanto sou
livre, que o amo e que só amarei a ele”. São submissas, acatando as
decisões do chefe da família, como ocorre com Henriqueta que aceita ser
tratada como objeto do qual o pai dispõe a fim de quitar uma dívida.
Como temos observado, a liberdade que encontram as moças é
bastante restrita, o trecho abaixo confirma isso, quando Eduardo pede a
Henriqueta que espere porque ele tem os meios para que o noivado
dela com Azevedo tenha fim:
Henriqueta- Ah! Tem segredos para mim?
Eduardo – É injusta fazendo-me esta exprobação, Henriqueta. Se não lhe falo
francamente, é porque não desejo que partilhe, ainda mesmo em pensamento,
os desgostos, as contrariedades que eu há um mês tenho sofrido para
conseguir esse meio de que lhe falei.
Henriqueta – mas Eduardo uma parte dessas contrariedades me pertence, e
por dois títulos; porque se trata de mim, e porque... nos estimamos!
Eduardo – Porque nos amamos: é verdade! Mas nessa partilha igual que
fazem duas almas da sua dor e do seu prazer, há a diferença das forças.
À mulher cabe a parte do consolo, ou da ternura; ao homem, a parte da
coragem e do trabalho. (ato IV, cena II)
As jovens não manifestam nenhum pensamento diferente com relação
à perspectiva de vida, senão a de casarem-se, e a realização maior é
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que possam fazê-lo com o homem amado. Essa perspectiva, comum às
mulheres no século XIX, está presente também em Lições de botânica de
Machado de Assis, publicado em 1906.
O texto machadiano possui um único ato de quatorze cenas, e a
presença de quatro personagens, sendo três mulheres e um cientista
sueco, o Barão Segismundo. Este homem, numa postura radical (e
cômica), decide desposar a ciência e não uma mulher. Vemo-lo
abaixo, apresentando-se a D. Leonor:
Barão – Sou o Barão, Segismundo de Kernoberg, seu vizinho, botânico de
vocação, profissão e tradição, membro da Academia de Estocolmo, e comissionado
pelo governo da Suécia para estudar a flora da América do Sul. V. Exª
dispensa minha biografia? (D. Leonor faz gesto afirmativo) Direi somente que
o tio de meu tio foi botânico, meu tio botânico, eu botânico e meu sobrinho
há de ser. Todos somos botânicos de tios a sobrinhos.
A leve intriga surge da decisão pelo celibato que o Barão decide
impôr também a Henrique, o sobrinho que vive em sua companhia. Suas
razões, em momento algum, desqualificam o casamento, tema que nem
ao menos é levantado pelo Barão. A sua decisão está pautada no fato
de que a ciência merece e exige dedicação exclusiva. É possível
verificar, no texto, que o Barão realmente é apaixonado pela ciência; ele
fala e age sempre em seu favor. Essa sua coerência, entretanto, não
poderá ser mantida até o final do texto, quando decidirá por desposar
a viúva Helena.
Nesta obra machadiana, também as personagens femininas se
revelam mais interessantes que as masculinas. São vizinhas do Barão:
a tia, D. Leonor, e as sobrinhas, Helena e Cecília.
Nesta casa, não há homens para responsabilizar-se pelas senhoras;
na verdade, cada uma dessas mulheres tem um perfil diferente: a tia é
a dona da casa, responsável pelas duas moças, ocupa, portanto, o
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Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99]
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lugar de um homem, se pensamos no texto de José de Alencar. È à
D. Leonor que caberá a permissão de um provável namoro ou casamento
das moças.
Observa-se que entre a D. Leonor e a D. Maria, do texto anterior,
a diferença é enorme. A personagem machadiana tem poder de decisão
e desempenha seu papel com afinco, mostra-se aberta ao diálogo, tem
senso de humor e sabedoria. Durante a visita do Barão às senhoras
para pedir a D. Leonor que feche as portas de sua casa ao sobrinho,
pode-se perceber a desenvoltura desta senhora.
D. Leonor – ... Direi primeiramente que ignoro se há paixão da parte de seu
sobrinho; em segundo lugar, perguntarei se na Suécia estes pedidos são
usuais.
Barão – Na geografia intelectual não há Suécia nem Brasil; os países são
outros: astronomia, geologia, matemáticas; na botânica são obrigatórios.
D. Leonor – Todavia, à força de andar com flores... deviam os botânicos
trazê-las consigo.
Barão – Ficam no gabinete.
D. Leonor – Trazem os espinhos somente.
Barão – V. Ex.ª tem espírito. Compreendo a afeição de Henrique a esta casa.
Helena e Cecília, embora sob a responsabilidade da tia, têm
postura e condição civil distinta. A primeira, que já passara pela
experiência do casamento, revela-se uma mulher esperta, inteligente que
sabe manipular as situações a fim de alcançar seus objetivos; ainda,
mostra-se satisfeita com sua condição, pois revela que não está interessada
em um novo casamento. Cecília, que ama Henrique, é uma jovem
donzela ingênua, que conta com a irmã Helena para defendê-la.
Sugere-se aqui que o casamento muda a mulher, tornando-a madura?
Frente à oposição do Barão ao possível casamento de seu sobrinho
e Cecília, atentemos para as reações das três mulheres.
D. Leonor se aborrece com a falta de fineza do enfadonho Barão
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e decide cumprir seu pedido à risca: fechar às portas a Henrique.
“Perdôo-lhe em nome da ciência. Fique com suas ervas e não nos
aborreça mais, nem ele nem o sobrinho(...) nem o criado nem o cão
se o houver”. Ela não demonstra qualquer preocupação com os sentimentos que a jovem possua, esta deve sujeitar-se às circunstâncias,
conformando-se com o fim do namoro; importa-lhe apenas o fato de
que não haverá de faltar casamentos à sobrinha.
Cecília, por sua vez, é tímida, não manifesta atitudes que possam mudar
a situação que lhe atinge diretamente. Numa postura romântica, adverte que
sem este amor morrerá. Sua única esperança é que a irmã interfira com suas
idéias “Ah! Conspiram todos contra mim. Sou muito infeliz! Que mal fiz a
essa gente? Helena, salva-me! Ou eu mato-me!”
Helena, personagem mais complexa, reage enfrentando a situação;
de início, já sugere a tia “Reconciliemo-nos com o Barão”. Como a
sugestão não é aceita, ela busca meios de fazê-lo sozinha. O motivo
para o enfrentamento fica claro no trecho abaixo quando responde à tia
que exige o fim do namoro:
D. Helena – Não é fácil. O Henrique é um perfeito cavalheiro; ambos são
dignos um do outro. Por que razão impediremos que dous corações...
D. Leonor – Não sei de corações, não hão de faltar casamentos a Cecília.
D. Helena Certamente que não, mas os casamentos não se improvisam nem se
projetam na cabeça; são atos do coração, que a Igreja santifica. Tentemos outra
cousa.
A bela Helena, fingindo interessar-se pela botânica, revela-se
ardilosa na busca do consentimento do namoro da irmã, a ponto de
mudar as convicções do Barão. Suas ações estão fundamentadas no
respeito pelo interior do pessoa, pelos sentimentos; a existência do amor
é o que justifica o seu empenho para que este casamento se realize.
No diálogo com o Barão, a moça provoca o assunto casamento e,
de início, parece aceitar a opinião dele. No desenrolar do diálogo, com
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Casamento em papéis: José de Alencar e Machado de Assis [87-99]
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argúcia, a moça faz calar o Barão, já bastante envolvido com sua prosa.
Após comentar a respeito da surpreendente juventude do cientista, já que
diz tê-lo imaginado um velho macilento, retorna ao tema do casamento
sob o seu ponto de vista.
D. Helena – Só uma coisa lhe acho inaceitável. (...)A teoria de que o amor
e a ciência são incompatíveis.(...)
Barão – Sabe que Mafona não permite o uso do vinho a seus sectários. Que
fazem os turcos? Extraem o suco de uma planta... Esse licor se nós o
bebêssemos, matar-nos-ia. O casamento para nós é o vinho turco.
(...)
D. Helena – Não fale assim. A esposa fortifica a alma do sábio. Deve ser um
quadro delicioso para o homem que despende as suas horas na investigação
da natureza, fazê-lo ao lado da mulher que o ampara e anima...O aplauso
público e mais ruidoso, mas muito menos tocante que a aprovação doméstica
Barão (depois de um instante de hesitação e luta) – Falemos da nossa lição.
A surpresa do enredo é o surgimento de mais um casamento a se
realizar. Vinte minutos de diálogo é suficiente para que a sábia Helena consiga
a permissão do casamento de Cecília e Henrique como também a conversão
do Barão, o abandono do celibato. A viúva já sentira que o Barão tinha-se
afeiçoado a ela do mesmo modo que ela estava gostando de sua companhia;
logo, ele dá mostra de sua fraqueza: “Há em mim alguma coisa mais do que
eu mesmo. Há a poesia das afeições por baixo da prova científica...o que tem
sido a minha vida? Um claustro.” No final, ela o ajuda no pedido que, para
ele, parece difícil concluir.
Barão – Minha senhora, atrevo-me a fazer outro pedido.
D. Leonor – Ensinar botânica a Helena? Já me deu vinte e quatro horas para
responder.
Barão – Peço-lhe mais do que isso, V. Ex.ª que é, por assim dizer, irmã
mais velha de sua sobrinha pode intervir junto dela para...
D. Leonor – Para...
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Raquel de Oliveira Fonseca [87-99]
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D Helena Acabo eu. O que o Sr. Barão deseja é a minha mão.
Barão – Justamente!
Observa-se, no texto de Machado de Assis, a prevalência da temática
do casamento como resultado do sentimento. O Barão muda suas convicções
porque se apaixona pela moça que se lhe apresenta bela e inteligente.
Nem se cogita a possibilidade do casamento por razões monetárias; D.
Leonor não dá importância aos sentimentos que Cecília possui, por certo,
por acreditar que ela, sendo tão jovem, poderá amar outra pessoa cuja
família a aceite.
No texto alencariano, o tema do casamento passa por leituras
distintas que, por vezes, se contradizem, enriquecendo o diálogo;
outrossim, o texto machadiano parece-nos mais leve, ou seja, a questão
da moralidade, tão valorizada pela crítica e escritores, pouco se manifesta
no texto. Enquanto o primeiro se aprofunda no tema por meio da
aproximação da realidade, o segundo consegue trazer ao centro da cena
personagem incomum, Helena.
Comparativamente, ambos os escritores, enquanto romancistas, são
responsáveis pela criação de algumas das mais interessantes personagens
femininas da literatura brasileira do século XIX. Não nos atendo a classificações
de períodos literários, observa-se que as mulheres alencarianas, como
Aurélia e Lucíola, embora essencialmente românticas, manifestam ações,
atitudes inovadoras capazes de expor a instituição do casamento a situações
não usuais.
Enquanto, em José de Alencar, as personagens femininas constroem
a sua própria história, como a genial Capitu, que nos lança sempre no
insolável de suas intensões.
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REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. O demônio familiar.
ASSIS, Machado. Obra Completa. (org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro:
Nova Aguilar S.A, 1997
FARIA, João Roberto. Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo:
Perspectiva: FAPESP, 2001
PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Editora
Perspectiva. 1993.
Raquel de Oliveira Fonseca é graduada e
mestre em Letras pela UFMS, professora
titular da UEMS.
Área do artigo: Literatura
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“Aescuridão”eensaiosobreacegueira-uma
abordagemcomparativa
RamiroGiroldo
Resumo: Este artigo pretende discutir comparativamente o romance Ensaio sobre a
cegueira, de José Saramago, e o conto “A Escuridão”, de André Carneiro.
Ambos os textos, segundo uma lógica interpretativa, serão tomados como
alegorias políticas distintas, apesar das semelhanças conceituais. A fim de
alcançar uma nova compreensão dos textos, será útil discutir brevemente a
ficção científica como gênero literário.
Palavras-Chave: André Carneiro. José Saramago. Ficção científica.
Abstract: This article intends to comparatively discuss the novel Ensaio sobre a
cegueira, by José Saramago, and the short-story “A Escuridão”, by André
Carneiro. Both texts, according to an interpretative logic, will be taken as
different political allegories, despite the conceptual similarities. In order to achieve
a new understanding of the texts, it will be useful to briefly discuss the science
fiction as literary genre.
Keswords: André Carneiro. José Saramago. Science fiction.
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Ramiro Giroldo [101-107]
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Apesar do ponto de partida análogo, as obras literárias que aqui
serão tratadas parecem apresentar marcas algo distintas. Pretende-se
observar o tratamento na construção do texto em dois autores de
expressões literárias diversas, cada um com escolhas que implicam em
substanciais diferenças em suas obras. O objetivo aqui é alcançar, com
um viés comparativista, uma nova percepção de “A escuridão”, de André
Carneiro, e de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.
O conto “A escuridão”, de André Carneiro foi, pela primeira vez,
publicado no volume Diário da nave perdida, de 1963. No enredo, todo
o planeta é engolido por uma profunda escuridão que a ciência é incapaz
de explicar. Não apenas tudo escurece, como impede a combustão. Um
grupo de cegos, acostumados que estão a viver sem a luz, tratam de
abrigar e auxiliar o protagonista e alguns amigos. Na Chácara Modelo,
resistem às adversidades, enquanto fora, ao que parece, tudo se deteriora.
Por fim, a escuridão parte, mas é sugerido que a humanidade não será
mais a mesma.
No romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, uma
epidemia de cegueira branca atinge a humanidade. Branca porque tudo
que os atingidos enxergam é um grande clarão. Dentre as personagens,
aquela que é referida apenas como “mulher do médico” não sucumbe
ao mal branco. Durante toda a obra, ela será a testemunha e a guia
dos que não vêem, presenciando todo o caos que é instaurado. Pelas
autoridades, os cegos e os suspeitos de contaminação vão sendo confinados
num manicômio. Quando o local é incendiado, eles precisam se adaptar
à vida na cidade, até o dia em que, por fim, lhes retorna a visão.
O universo ficcional de “A escuridão” e de Ensaio sobre a cegueira
têm pontos em comum na formulação da verossimilhança. O elemento
maravilhoso, em ambos os casos, apenas frustra as personagens que
tentam lhe desvendar a explicação científica, mas o desvendamento não
é um ponto central nas narrativas. É passada a impressão de que, a
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partir de dado momento, as personagens são forçadas a aceitar o
mistério e apenas esperar que o fenômeno seja passageiro, impotentes
que são para mudá-lo e para desvendá-lo.
Mary Elizabeth Ginway já abordou esse aspecto de “A Escuridão”:
A história certamente sofre de um alto grau de implausibilidade científica. Além
do inexplicável desaparecimento e reaparecimento do sol, há o fato intrigante
de que a Terra permanece quente durante o hiato de dezoito dias do sol. A
tolerância desse alto grau de implausibilidade na ficção científica brasileira
sublinha a de-ênfase na ciência, e o correspondente destaque dado aos temas
humanistas (GINWAY, 2005, p. 243).
Para que este texto possa se beneficiar plenamente das assertivas
de Ginway, algumas considerações sobre o gênero em que ela coloca
“A Escuridão” se fazem necessárias. Como o objetivo aqui não é
propriamente discutir uma conceituação da ficção científica, cuidemos
apenas de responder porque enquadrar o referido conto no gênero. Em
seguida, poderemos definir se será proveitoso estender a classificação ao
romance de Saramago.
Ginway não parece compartilhar do ponto de vista exposto por Darko
Suvin em seu trabalho Pour une poétique de la science-fiction. Para o
teórico, a ficção científica, grosso modo, parte de uma hipótese fictícia
(literária), e a desenvolve com rigor totalizante (científico). Rigor científico
que, como já pudemos observar, falta ao conto em questão.
Interessante notar que o pensamento teórico-crítico de André Carneiro,
neste caso, se encontra em perfeita assonância com a noção de ciência
expressa em “A Escuridão”:
Torna-se difícil conciliar os termos ciência e ficção. Ciência é a forma de pesquisa e
conhecimento que exige raciocínio preciso, dados exatos, onde a especulação sem
base é praticamente impossível. Ficção é criada pela imaginação, suas fontes reais são
elásticas, a coerência que dela se exige não é de ordem objetiva, diz mais respeito
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Ramiro Giroldo [101-107]
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ao estilo, à qualidade literária, ao poder de emocionar o leitor, transmitir-lhe alguma
coisa. (...) [A] ficção científica é contraditória, instável e mutável, como a própria
época em que vivemos, onde as definições são necessariamente passageiras, relativas
e enganadoras (CARNEIRO, 2004, pp. 1-2).
Assim, ao chamar o conto de ficção científica, é preciso que se
encare tal definição genérica como algo fugidio e provisório, nunca
estanque e definitivo. Desta forma, alcançamos uma compreensão que
nos permite enquadrar no gênero até um romance como Ensaio sobre a
cegueira, que, à primeira vista, sequer dialoga com as convenções da
ficção científica.
Em “A escuridão”, é o fenômeno do título que força o homem a
repensar seus valores. Logo no primeiro parágrafo, temos uma esclarecedora
notação, que nos permite uma leitura alegórica do conto:
Lembrou-se da revolução, na sua juventude. Algo que irrompe, à nossa revelia,
e nos carrega para um destino que não escolhemos. Mas fora diferente a
revolução. Tiros, bombardeios, mortes. Agora era um fenômeno estranho, é
verdade, mas que não atingiria a altura de calamidade pública (CARNEIRO,
1963, p. 115).
No trecho, a personagem se engana ao pensar que o fenômeno
não originaria a calamidade pública e, talvez, se engane também em
outro ponto: será a escuridão diferente da revolução? Se o narrador
colocou, logo no início do conto, uma comparada à outra, talvez seja
esta uma produtiva direção interpretativa.
Numa marca fabular, o enredo de A escuridão é relativamente
atemporal. As notações tecnológicas, por exemplo, são generalizantes –
fala-se em automóveis e pseudoteorias astronômicas, mas não há dados
que permitam relação direta com alguma época específica. Assim, também
a referida revolução deve ser encarada em seu caráter universal, ou seja,
não relacionada a um momento histórico específico, embora seja tentadora
e válida uma relação com o que acontecia no Brasil nos anos 1960.
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“A escuridão” e ensaio sobre a cegueira [101-107]
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O destino que a civilização não escolheu, mas é obrigada a seguir
é a ascensão do excluído antes tratado com paternalismo:
Aqueles mesmos homens de bengala branca e óculos escuros que perguntavam
humildes qual o ônibus que vinha, ou se distanciavam devagar, atravessando os
olhares piedosos dos passantes, eram agora rápidos, eficientes, milagrosos com
sua habilidade manual. (...) Tornara-se de todo o mundo a desgraça particular
deles. Alguns esqueciam-se, às vezes, que aqueles homens que contavam sua
vida de um mês atrás no mundo das luzes e cores, tornavam-se inexperientes
como criancinhas na negridão que eles dominavam. (...) Quanta piedade hipócrita
e superficial teriam suportado com seus óculos escuros e bengalas brancas
(CARNEIRO, 1963, p. 151).
É a escuridão, assim, um fenômeno capaz de fornecer condições
de vida iguais à “elite” (os de visão tida como perfeita) e aos
excluídos (os cegos). Curiosamente, os, antes marginalizados, são
justamente os que se saem melhor no mundo escuro; eles, afinal, estão
melhor acostumados a condições adversas.
Sugestivo é o nome do local em que se passa boa parte do conto:
Chácara Modelo. A situação instaurada no local pela escuridão seria um
exemplo, uma representação em pequena escala para lidar com o
insólito, um “sistema de governo” fundado na mútua cooperação.
Modelar, mas em outro sentido, é o lugar em que são confinados os
cegos no romance de Saramago. A própria circunstância em que a
reclusão acontece é diversa; as personagens estão lá em quarentena,
guardadas por soldados prontos a matá-las caso desobedeçam às regras
impostas. Submetidos a condições miseráveis e crescentemente degradantes,
os cegos confinados despem-se de suas máscaras sociais, primeiro, e
pessoais, por fim.
Boa parte da perspectiva do romance nos é filtrada pela ótica da
“mulher do médico”. Apenas ela, afinal, de fato presencia os que a cercam
abandonarem preceitos e preconceitos do arruinado mundo “civilizado”.
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Ramiro Giroldo [101-107]
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Duas passagens assentam particularmente tais assertivas: “Provavelmente,
só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são, disse
o médico” (SARAMAGO, 2003, p. 128), e “A mulher do médico disse ao
marido, O mundo está todo aqui dentro” (SARAMAGO, 2003, p. 102).
Para Sandra Aparecida Ferreira,
Ensaio sobre a cegueira (...) pode ser lido como um experimento em que
Saramago se propõe a simular uma situação limite, na qual o ser humano se
vê forçado a contemplar-se de frente, na sua inteira fragilidade e ferocidade,
quando os dispositivos da civilização são abolidos (FERREIRA, 2006, p. 356).
Um traço que distingue o ponto de partida tomado pelo romance
Ensaio sobre a cegueira, do escolhido por Carneiro, é decisivo na
definição dos caminhos que cada texto toma.
Em Saramago, a cegueira é clara, é o mal branco. Uma escuridão
paradoxalmente iluminadora, que revelará quem o homem é em seu âmago.
Em Carneiro, o fenômeno que cega a todos tem outra carga, pois obriga
o homem a abandonar o preconceito e a mesquinharia para sobreviver.
A destruição dos dispositivos da civilização a que Ferreira se refere é,
em “A Escuridão”, um fator benéfico, já que nos é sugerido que eles
são os verdadeiros responsáveis pelas mazelas do ser humano. A escuridão
traz consigo uma ironia: nela, o homem enxerga melhor o mundo.
REFERÊNCIAS
CARNEIRO, André. A escuridão. In: Diário da nave perdida. São Paulo: EdArt,
1963.
_________________. Introdução ao estudo da “science fiction”. 2004. Texto
mimeografado.
FERREIRA, Sandra Aparecida. Formas híbridas de representação da barbárie em
Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. In: Caderno de Resumos – 54º
Seminário do GEL. São Paulo: Ferrari Editora e Artes Gráficas, 2006.
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“A escuridão” e ensaio sobre a cegueira [101-107]
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GINWAY, Mary Elizabeth. Ficção Científica Brasileira. Tradução de Roberto de Sousa
Causo. São Paulo: Devir, 2005.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letra,
2003.
SUVIN, Darko. Pour une poétique de la science-fiction. Québec: LesPresses de
L’Université du Québec, 1977.
Ramiro Giroldo é graduado em Letras
pela UFMS. Atualmente, mestrando no
Programa de Pós-Graduação - Mestrado
em Estudos de Linguagens, do Centro de
Ciências Humanas e Sociais da UFMS.
Área do artigo: Literatura
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AnarrativahíbridaemLavouraArcaica
FlávioAdrianoNantesNunes
EdgarCézarNolasco
Resumo: O presente trabalho é parte de algumas reflexões acerca da dissertação
que está sendo desenvolvida a partir do híbrido, em Lavoura arcaica, de
Raduan Nassar. Entender o gênero como uma forma “impura” é estar de
acordo que no interior de uma narrativa pode haver várias formas literárias,
portanto, a análise da narrativa híbrida nassariana demonstra os diferentes
gêneros que perpassam por ela, construindo, assim, um texto híbrido por
excelência.
Palavras-chave: Gênero literário. Hibridismo das formas. Raduan Nassar.
Abstract: The current work is part of some reflections about the dissertation that
is being developed from the hybrid in Lavoura arcaica by Raduan Nassar.
Understanding the gender as an “impure” form, is the same as greeing that
within a narration may exist several literary forms, therefore, the analysis of
“nassarian” hybrid narration shows the different gender that pass through it,
thus building a hybrid text in excellence.
Keywords: Literary gender; hybridism of forms; Raduan Nassar.
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O presente artigo visa, a partir da leitura de Lavoura arcaica,
analisar o hibridismo do gênero literário, e demonstrar o quanto ele se
apresenta de forma fragmentada e diluída em outras formas literárias.
Com base no conceito de fragmentação cultural, posto por Moser
(1999), onde todas as culturas são formadas a partir de fragmentos
culturais do passado, evidenciaremos como o gênero literário se fragmenta
da mesma maneira que a esfera cultural de onde emerge.
Estendendo esse conceito até à produção artística, podemos afirmar
que, na literatura contemporânea, há fragmentação, atentando para o fato
de que a linearidade existe também no Barroco, isso porque a produção
literária é um constructo que emerge do interior de uma dada esfera
cultural, também, fragmentada. Assim, se a cultura é fragmentada e, por
extensão, a literatura, conseqüentemente, o gênero também o é.
Trataremos, ainda, acerca dos outros textos que estão disseminados
ao longo da narrativa nassariana, buscando uma dialética entre Lavoura
arcaica e textos como a narrativa bíblica (“a parábola do filho pródigo”),
Édipo rei e Electra. A partir da visualização desses textos literários, iremos
analisar como as formas dessas narrativas operam na construção do
romance de Nassar.
Com o estudo do gênero e de seu caráter dinâmico, arriscar-nos-emos
a afirmar que as formas literárias são cambiantes de tal forma que quanto mais
houver produção literária, tanto mais haverá transformações do gênero.
Na produção moderna e pós-moderna, inclui-se aqui a contemporânea,
o trabalho artístico tem-se fundamentado por um constante re-fazer do
que já foi posto. O pastiche, por exemplo, é uma maneira de recontextualizar histórico-culturalmente o que foi produzido no passado,
portanto, com o gênero literário passa-se o mesmo, ao ser recuperado
e re-contextualizado em outras épocas, sofre uma série de transformações.
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A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128]
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A problemática acerca dos gêneros literários tem levantado uma série
de discussões no tocante à sua sistematização, ou ainda, à incerteza que
paira neste estudo. A falta de pureza nas formas literárias, a constante
dinamicidade e as transformações pelas quais o gênero passa contribuem
para o seu caráter incerto ou impreciso. Estes adjetivos postos não são
depreciativos nem postulam uma falta de critério acerca da questão, são,
antes, a representação de uma visão mais ampla e dialética, como
veremos mais adiante.
Para Mello (1998), o gênero, entendido como codificação de
propriedades do discurso literário, sofre alterações ao longo da produção
literária, ou seja, o gênero vai transformando-se de acordo com o contexto
sócio-histórico, assim, a tipologia de um gênero de uma dada produção
artística, a oitocentista, por exemplo, não é a mesma de uma produção
contemporânea.
Convém lembrar, entretanto, que, embora haja esse dinamismo para
o gênero, ele também carrega uma carga tipológica universal, isto é, há
rasgos que são comuns a determinados gêneros. Para melhor esclarecer,
vejamos o que a autora diz, fazendo referência a Todorov: (...) a literatura
situa-se do lado do género, da universalidade, do sistema; já as obras
individuais colocam-se no plano da realização histórica dos géneros (1998,
p. 37). Há, portanto, duas perspectivas para o estudo dos gêneros, uma
universal, que trata dos caracteres genéricos de um dado gênero e, outra,
individual, isto é, aquela que se presentifica no ato da produção artística.
Uma não pode se desvincular da outra, pois a primeira é a que permite
a existência dos gêneros literários e a segunda trata das transformações
do gênero, pois, se assim não fosse, a forma do romance romântico, por
exemplo, seria a mesma da produção literária de outras épocas.
É importante lembrar, ainda citando Mello (1998), que, assim
como a literatura, os gêneros também são um constructo que nascem a
partir de uma dada esfera cultural e,
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Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128]
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(...) através da conjunção de perspectivas da teoria do texto e da enunciação,
esboçam-se, nos últimos anos (desde a década de 70), uma teorização semiótica
dos géneros que, tendo em conta a natureza pragmática da literatura, privilegia cada
vez mais os contextos de produção e recepção dos textos literários (p. 38).
A partir da idéia da produção literária, num dado contexto sociocultural,
podemos afirmar que o texto literário realista tem forma diferente na
produção literária contemporânea, embora, na contemporaneidade, haja
obras com características realistas.
Com relação à recepção dos textos literários, o gênero fica a critério
do leitor, que aciona, por intermédio da leitura, a dialética entre os
diversos textos que configuram seu próprio acervo de leitura. Em outras
palavras, o leitor relaciona um texto que possua um determinado gênero
literário com outro que possua gênero distinto, trazendo para dentro da
obra mais de um gênero, construindo, dessa forma, o hibridismo de
gênero. Isso nos permite pressupor que não há um gênero puro para a
obra literária; assim, nosso ensaio visa demonstrar o hibridismo de
gêneros na narrativa de Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, evidenciando
algumas obras que dialogam com a narrativa nassariana, ratificando seu
caráter palimpséstico.
Seldmayer (1997) afirma que, como a Bíblia,
(...) Lavoura arcaica é um palimpsesto. Encontramos, nessa narrativa, rastros
de palavras que também foram escritas sob outras palavras. Em alguns
momentos reconhecemos versos inteiros, principalmente dos poetas nacionais que
tinham como proposta “restaurar a poesia em Cristo”, como, por exemplo, Jorge
de Lima e Murilo Mendes; em outras passagens são os Evangelhos que inundam
a narrativa e que, misturados a contos árabes, tais os de As mil e uma noites,
formam um texto-tecido, um amontoado de lembranças literárias que compartilham
entre si a tarefa de falar de um real indizível (1997, p. 20).
A partir dessa citação, podemos extrair elementos que se relacionam
com a questão dos gêneros, embora haja uma série de textos (que serão
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retomados mais adiante, na análise da obra literária em questão), como,
poesia, narrativas e contos, que demonstram seu caráter palimpséstico e
evidenciam a presença de outros textos. Tal análise vem confirmar o caráter
“impuro” da narrativa com relação ao gênero, assim, a intertextualidade,
por meio da recepção, demonstra a presença de outros textos e,
conseqüentemente, de outros gêneros em um determinado texto literário.
O hibridismo de gêneros evidencia a necessidade de atualização de
determinadas formas literárias, pois, tal
(...) como as formas básicas do agir humano podem ocorrer em simultâneo
num mesmo momento e situação, também as formas naturais da literatura
podem manifestar-se numa mesma obra. Assim, numa obra em que dominem
traços da forma épica, não se exclui, em teoria, a presença de elementos de
outras formas (MELLO, 1998, p. 40).
Observando-se essa citação, percebemos claramente o hibridismo e a
atualização”recuperação de um determinado gênero na produção artística
literária.
Mello (1998) nos lembra, ainda, que a imitação dos gêneros também
é uma forma de ativar seu dinamismo, levando em consideração que, a cada
época e”ou contexto sócio-cultural, um determinado gênero sofre transformações.
Assim, mesmo que um gênero seja imitado, sempre vai apresentar modificações,
pois o elemento a ser imitado pertence a uma época cultural diferente daquela
da “imitação”. Para a autora, caracterizando-se
(...) o sistema literário do Classicismo pela imitação dos modelos da
Antigüidade greco-clássica (de que Homero, na épica, e Sófocoles e
Eurípedes, na tragédia, são referências emblemáticas), as poéticas clássicas
que os divulgaram constituíram condicionamentos da sua prática e metalinguagem
literárias. No entanto, neste período de imitação dos modelos greco-clássicos,
as formas literárias não se mantiveram estagnadas, processando-se a evolução
de acordo com a transformação de elementos particulares (p. 70).
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Ressalta-se, aqui, o constante dinamismo dos gêneros literários e
como eles se modificam, mesmo quando imitados, para serem atualizados
em outros contextos. Essa questão, voltada ao nosso objeto de investigação,
indica que a narrativa nassariana tem caráter híbrido que resgata outros
gêneros, como, a poesia e as formas variadas do gênero narrativo, tais
como: os contos d’As mil e uma noites e algumas narrativas bíblicas.
Entretanto, tais gêneros, ao serem atualizados por Raduan Nassar, em
Lavoura arcaica, passam por transformações, o que, talvez, nos permita
afirmar que, a cada obra, excetuando determinados rasgos genéricos, o
gênero literário passa por alterações. Em outras palavras, enquanto houver
produção literária, haverá, também, mobilizações no tocante ao gênero.
É conveniente lembrar, com relação à questão das transformações
dos gêneros, que foi a partir do Modernismo e do pós-modernismo
(inclui-se a literatura contemporânea) que houve um acentuado rompimento
das regras impostas para a criação artística que visava ao gênero
estanque. Os gêneros passaram, então, a ser realizados em profunda
liberdade. Nesse sentido, Mello afirma que as poéticas da modernidade,
na esteira do Romantismo, orientam a realização dos géneros na prática
literária de um modo distinto do sistema literário e, também, que (...)
as transformações que os gêneros sofrem contribuem para o surgimento
de novas poéticas (1998, p. 72). Assim, a realização do gênero se
dá na prática do fazer artístico e suas transformações podem fazer surgir
outros tipos de gênero.
Voltando à questão do surgimento do gênero como um construto que
emerge de um determinado contexto cultural, podemos afirmar que o
constructo artístico é uma extensão do homem, pois nele estão guardadas
as marcas culturais, idiossincráticas, além das pessoais, ou seja,
(...) as marcas do social e da fragmentação do sujeito inscrevem-se na obra
literária, nela se expondo uma dissolução do sujeito numa imagem, elaborada
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A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128]
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como que em espelho, da ‘literatura como autocrítica’ e da ‘crítica como
literatura (MELLO, p.77).
Lavoura arcaica é uma produção contemporânea, uma narrativa
fragmentada, sem linearidade e com ecos de gêneros literários distintos
perpassados ao longo do texto. Não queremos dizer que a forma
fragmentada do texto literário faz parte somente da contemporaneidade,
faz parte, ainda, do Romantismo, onde os estudos da mistura dos
gêneros (“impuros”) foram iniciados, como afirma Moisés (1997, p.
243). Também o Barroco tem uma tipologia extremamente fragmentada
e sem linearidade. Assim, a fragmentação das formas, tão utilizada pela
produção contemporânea, vem sendo recuperada faz algum tempo.
O termo fragmentação nos faculta levantar uma discussão sobre as
ruínas, pois a fragmentação só passa a existir quando um objeto, idéias
ou fenômenos se ruem. Pode-se pensar, então, que as culturas
anteriores todas são ruínas ou, ainda, passaram por um processo que as
tornam escombros. Assim, seguindo esse processo inerente às culturas,
o que se vive atualmente, ou seja, a época contemporânea, também, no
futuro, tornar-se-á escombro cultural, ou apenas fragmentos cristalizados
na memória cultural que se transformaram em imagens. O que a história
possui, então, enquanto acervo cultural, são fragmentos de diversas
culturas que foram sendo empilhados ao longo dos séculos.
Para Moser, fenomenalmente, a cultura
(...) se elabora num campo de restos, de fragmentos, de escombros, de
ruínas, até mesmo de dejetos. Destruídas e decaídas, as culturas do passado
estão, entretanto, materialmente presentes sob a forma de destroços que
irrompem no presente, que se impõem à paisagem cultural contemporânea. Esses
destroços são inúmeros e estão em toda parte. O presente é percebido como
a descarga das culturas do passado. O espaço cultural é um campo de
escombros (1999: p. 39).
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Conforme a citação do texto de Moser, a cultura tem um caráter
extremamente fragmentário porque se forma a partir de ruínas, dejetos,
fragmentos de culturas anteriores que passaram pelo processo de degradação.
O rasgo híbrido que as culturas atuais possuem deve-se, portanto, à
fragmentação de diversas culturas do passado que se fixou nas do presente.
Ainda na esteira de Moser (1999), os diversos destroços, ou
ainda, o empilhamento de elementos culturais heterogêneos fazem com
que haja um esgotamento cultural, uma saturação de objetos culturais
deixados, como legado, pelos produtores de diversas culturas para as
gerações do presente.
Para os que vivem no contexto da contemporaneidade, há duas
possibilidades de manejo com os fragmentos culturais, uma negativa e
outra positiva. Na primeira, o agente que lança mão dos elementos
culturais para desenvolver uma produção qualquer (o trabalho artístico
literário, por exemplo) não consegue levar a termo seu intento de
produção, por acreditar que o excesso de elementos já existentes
impede, ou melhor, impossibilita o ato criativo inédito.
Os artistas contemporâneos se encontram imersos nessa situação
cultural, em que a produção artística já se esgotou (tudo já foi feito).
Todavia, o fato de o artista estar vivendo tal época, não implica que ele
não consiga vencer a exaustão cultural e de produção, pois, se assim
não fosse, a produção contemporânea estaria fadada ao fracasso.
Na atitude positiva, porém, o excesso de objetos culturais é visto como
um tesouro que pode ser aproveitado no ato criador. Assim, o escritor,
por exemplo, tem à sua disposição uma série de materiais que o auxiliam
a construir seu objeto. Portanto, o artista que detém uma visão positiva
acerca do acúmulo de objetos culturais heterogêneos não entende esse
excesso como um obstáculo, mas, antes, como elementos disponíveis para
o fazer artístico. Ele [o criador] deve, tão somente, estar disposto a criar
em cima de objetos culturais já postos em vigência, visto a
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A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128]
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(...) densidade de materiais culturais que o envolve pode então ser vista como
uma riqueza que lhe é oferecida, e que pode aproveitar enquanto criador. Isso
com a condição de que ele aceite a partir de uma mesa cultural já posta e
onde reina a abundância. Com a condição de que ele aceite trabalhar com os
materiais que já estão ali (MOSER, 1999, p. 39-40).
Evidencia-se, aqui, a posição do autor com relação ao trabalho
que o artista desempenha em recuperar os elementos de épocas
anteriores já postos em vigência, construindo outros elementos “novos”.
Nesse sentido, Menegazzo (2004) dispõe que a produção artística
contemporânea não tem menos força criativa que um Picasso ou um Proust,
pelo fato de não haver condições para uma criação que comporte “novos”
estilos. No entanto, o pastiche – como recuperação de produções anteriores
– não é uma mera cópia de modelos já postos, mas uma maneira de recontextualizar tais modelos, dando, portanto, ao objeto “pastichado”, uma
nova perspectiva.
Na esteira do pensamento de Menegazzo, podemos afirmar que a
produção contemporânea forma-se a partir de fragmentos, restos, entulhos de
modelos criados anteriormente. Tal prática não desqualifica a produção
contemporânea, pelo contrário, ela a ressalta, pois é, sobretudo, na
contemporaneidade que os produtores do fazer artístico aceitam criar, a partir
do acúmulo, o empilhamento de objetos culturais heterogêneos postos em
vigência nas sociedades.
Menegazzo (2004) refere que,
Na América Latina e, particularmente, no Brasil, as formas pós-modernistas de
fragmentação, heterogeneidade, descentramento, paródia, etc., podem ser
concretamente encontradas nas artes, sem que isso signifique cópia ou
acomodação a um “modelo” internacional de pós-modernismo.
No entanto, é muito mais eficaz ressaltar que o pós-modernismo possibilitou avanços
na discussão do multiculturalismo, da diferença e do descentramento, do que se fazer
um mero levantamento de autores e obras pós-modernistas (2004, p. 34-35).
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No entender de Menegazzo, a recuperação ou re-contextualização
das formas é bastante vigente nas produções pós-modernistas (entendase contemporânea), em que os artistas recuperam objetos para suas
produções paródicas. Ademais, tal prática contribuiu para o avanço de
discussões acerca das diversas culturas: o multiculturalismo e,
conseqüentemente, a heterogeneidade ou hibridismo de diversos fragmentos
culturais guardados em uma dada esfera social.
A produção artística, a partir de destroços e fragmentos, pode ser
considerada “nova” pelo fato de haver emergido após algo que a
precedeu. Para Moser (1999, p. 44), o chegar-depois, ou o estaraí-depois é o núcleo de sua temporalidade. O tempo, ou melhor, a
época, o contexto sócio-cultural, tem um elo com a produção artística.
Se os objetos culturais da contemporaneidade se formaram a partir de
fragmentos advindos do passado, formando o “novo”, é-nos permitido
afirmar que a produção de nossa época um dia irá fragmentar-se e
servirá, portanto, como objeto para uma nova produção, uma posterior à
nossa. O ‘vir-depois’, então, se traduz num ‘ser-tarde’ que designa
mais uma condição ôntica, uma maneira de ser no tempo, do que uma
relação de sucessão (MOSER, 1999, p. 45). O “ser-tarde” é uma
condição, ou ainda, essência, da produção atual, pois constrói-se a
partir de objetos culturais já existentes, entretanto, o artista recupera
esses objetos, os re-contextualiza e eles ganham uma perspectiva do
“novo”. Conclui-se que não há uma sucessão de inúmeros projetos
literários, mas uma produção que emerge a partir de uma série de
objetos, entulhos, culturais já existentes.
Assim, ainda citando Moser (1999, p. 46), o ‘ser-tarde’ faz parte
intrinsecamente das características do poeta moderno. Generalizando,
poder-se-ia dizer que faz (...) parte das condições da modernidade
em todo o domínio da produção cultural. O poeta moderno, por
definição, é aquele que (chegou) tarde (...) Dessa maneira, “Sertarde” é um rasgo do artista contemporâneo.
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Com relação ao nosso objeto de análise, o que dizer de Lavoura
arcaica, um romance, uma prosa poética, um romance lírico? Não temos
uma resposta objetiva ou fixa, mas isso não nos parece um problema,
pois, como já vimos em Massaud Moisés (1997), o gênero deixou de
ser considerado uma instituição pura, ganhando, pois, o estatuto de
“impuro” desde o Romantismo.
Segundo Rodrigues (2006),
Lavoura Arcaica não é um romance tradicional, alheio a seu tempo. Trata-se
de uma obra que, sem deixar de ser prosa, é lírica e trágica ao mesmo
tempo, como é ao mesmo tempo una e fragmentária, circular e espiral, mítica
e histórica, o que me parece mais moderno que muita literatura que assim se
proclama. O que caracteriza a obra de Raduan Nassar é a recusa de toda
e qualquer fórmula e a utilização de tudo o que lhe pareceu útil aos seus
objetivos (2006, p. 155).
Conforme citação de Rodrigues (2006), em Ritos da paixão em
Lavoura arcaica, percebe-se o caráter “movediço” ou instável na tentativa
de enquadrar a narrativa nassariana dentro de uma forma. Entretanto,
arriscamo-nos a caracterizá-lo como romance, mesmo havendo uma
série de elementos dispostos de maneira fragmentada no texto, que
pertencem a outros gêneros literários.
Já, para Sedlmayer (1997), Lavoura arcaica, apesar dos diversos
textos alheios, é um romance que percorre um caminho singular na literatura
brasileira, pois em qualquer tentativa de contextualizá-lo fica clara sua condição solitária. Tampouco quando se procuram parentescos, os laços entre
eles são rígidos, pois quando a narrativa nassariana se aproxima, por exemplo, da narrativa bíblica, o faz de uma maneira oposta, ou, como sugere
Perrone-Moisés (1996), Lavoura arcaica (...) é uma versão moderna da
parábola do filho pródigo (p. 62). Ou, ainda, (...) o romance todo é uma
versão negra da parábola do filho pródigo, sem final feliz (p. 66).
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Com relação à poesia disposta na narrativa, comecemos pela
imagem que emerge a partir do texto poético. Ela nasce da articulação
dos fonemas, palavras e frases. Nesse sentido, a imagem, no poema,
como bem afirma Bosi (2000), é uma palavra articulada, assim, o
texto literário, construído a partir da articulação das palavras, proporciona
ao leitor, entre outras coisas, a possibilidade de criar imagens mentais.
Ainda que a criação das imagens, a partir do poema, fique a cargo do
leitor, cabe ao artista o trabalho com as palavras (fazer artístico) para que
as imagens possam emergir a partir dessa articulação. De acordo com Bosi
(2000), a realidade da imagem está no ícone. A verdadeira imagem está
no símbolo verbal (...) Para o autor, a palavra criativa busca, de fato,
alcançar o coração da figura no relâmpago do instante (p. 46). Assim, a
imagem se aloja na palavra (ícone) e, se o trabalho artístico for criativo,
as palavras tão rápidas aos olhos do leitor podem gerar imagens altamente
duradouras.
Para demonstrar a lavoura de Raduan Nassar com as imagens,
tomemos, como exemplo, o início do primeiro capítulo de Lavoura
arcaica:
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto
é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, o quarto catedral, onde, nos
intervalos da angústia, se colhe de um áspero caule, na palma da mão, a rosa
branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão
primeiro os objetos do corpo (...) minha mão, pouco antes dinâmica e em
dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas
dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito
ainda quente (1989: p. 09-10).
Partindo dos conceitos acerca das imagens, encontramos, nesse
fragmento, uma série de imagens que emergem a partir da articulação entre
as palavras postas por Nassar. Percebemos a angústia, a solidão e o
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A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128]
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ato masturbatório do narrador-personagem mediante determinadas palavras
que, se lidas literalmente, o leitor não conseguirá visualizar tal ação. Dessa
forma, o autor soube, com extrema acuidade, selecionar o léxico, as
metáforas – “áspero caule”, “rosa branca do desespero”, “objetos do
corpo”, “veneno”, indicando a presença do poético na narrativa, além
das investidas sonoras e das repetições das palavras, assim, alguns
fragmentos da narrativa dispõem verdadeiros poemas, conforme esclarece
Perrone-Moisés (1996).
Segundo Stalloni (2003), o lírico é uma forma que está presente
em tantas outras formas literárias. O sentido mais atual para o lirismo é
designado por um caráter de expressão pessoal dos sentimentos, por
meio de vias ritmadas ou musicais. Assim, emana do “eu” poético toda
uma carga de sentimento, como, sofrimento, tristeza, melancolia. Tais
aspectos estão, sobremaneira, dispostos em Lavoura arcaica, quando,
André, personagem-protagonista, decide revelar a Pedro, seu irmão, os
sentimentos de revolta com relação ao pai, ao sistema patriarcal em que
a família é governada, a falta de voz e, também, o sentimento
incestuoso que sentia por Ana, sua irmã. Isso é claramente visível no
trecho abaixo:
Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu
silêncio! Tinha textura a minha raiva!) (p. 35). (...) Eu berrei transfigurado, essa transfiguração que há muito devia ter-se dado em casa “eu sou
um epilético” fui explodindo, convulsionado mais do que nunca pelo fluxo
violento que me corria o sangue (...) eu berrava e soluçava dentro de mim
(p. 41). “Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de
repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão
maduro e pestilento, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela
o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio
impertinente dos meus testículos” (...) (p. 109).
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Conforme os fragmentos selecionados do corpo da narrativa, ficam
evidentes os sentimentos que emanam nas falas de André, como:
revolta, raiva, desejo de se impor como um sujeito autônomo perante o
pai: “essa transfiguração que há muito devia ter-se dado em casa”.
Observamos, também, que o sentimento incestuoso por parte do protagonista,
ora o salva, ora o destrói: “Ana minha fome”, “Ana a minha enfermidade”,
“ela o meu respiro, a minha lâmina”. Assim, o lirismo fica marcado nas
falas de André, e seus sentimentos mais ocultos, acerca da família, de
Ana e do pai Iohána, são “jorrados” pelo protagonista.
Ainda na esteira do pensamento de Stalloni (2003), alguns
elementos que pertencem essencialmente ao gênero poético podem estar
disseminados em prosas, estabelecendo o que se denomina prosa poética:
(...) a prosa, encontra-se diferenciada pela simples afetação de uma
tonalidade, de um verniz, essencialmente formal e dificilmente definível, o toque
‘poético’. E na verdade não é raro, ocasionalmente ou de forma contínua, que
uma obra literária em prosa dê mostras, por seu valor musical, estilístico ou
lexical, de afinidades como o texto poético (p.168).
Assim, o gênero poético pode estar disposto, também, na narrativa,
não para deteriorá-la e nem suprimi-la, mas para modificá-la, aproximála da poesia.
Se estivermos de acordo que a literatura é um constructo que
emerge dessa esfera cultural toda fragmentada, como já comentado, a
produção literária não deixa de ser toda fragmentada, pois nasce de um
lugar entulhado de fragmentos, assim, também, o gênero, na esteira
desse pensamento, espalha seus fragmentos em outras formas literárias.
Retornando ao questionamento que dispomos anteriormente, acerca
de um possível enquadramento de Lavoura arcaica em determinado
gênero, seria, o texto de Nassar, um romance, uma prosa poética, um
romance lírico? Do que foi disposto, incluímos o romance no rol das
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narrativas, ainda que carregado de elementos líricos e poéticos, confirmando,
assim, o caráter “impuro” dos gêneros literários.
A tragédia também está estilhaçada em Lavoura arcaica, exercendo
a mesma função do poético, pois o texto não perde seu caráter
narrativo. O elemento trágico, como todos os gêneros, passou por uma
série de transformações ao longo da história.
Stalloni (2003) dispõe algumas características que julga importantes
para a tragédia. Segundo ele, nela deve haver: um assunto nobre e um
herói que tenha condições de desenvolver uma ação não menos nobre;
necessidade de uma ação que não seja simples, e que culmine na
convergência de todos os atos. Assim, a culminância da tragédia
(geralmente a morte) é o resultado da soma de todos os acontecimentos
da história nela disposta; outro rasgo seria o registro, isto é, uma
estrutura lingüística que não ofereça ao espectador cenas triviais ou
brutais, nessa característica fica evidente que esse gênero foi desenvolvido
a priori para ser encenado; no trágico, há o encontro do herói com a
infelicidade e dela não existe possibilidade de fuga.
Para melhor entender as posições de Stalloni, dispomos um fragmento
do final do texto de Lavoura arcaica, para demonstrar que na tragédia há uma
ação que culmina na convergência de todos os acontecimentos da história.
(...) a testa nobre de meu pai, ele próprio ainda úmido de vinho, brilhou um
instante à luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de um branco
súbito e tenebroso, e a partir daí todas as rédeas cederam, desencadeandose o raio numa velocidade fatal: o alfanje estava ao alcance de sua mão, e,
fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe
a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo,
que frieza mais torpe nos meus olhos!) (...) era o próprio patriarca, ferido
nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!) era o
guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava (...) (p. 192-193).
A partir da extensa citação, podemos propor algumas inferências acerca
da tragédia, disposta no texto de Raduan Nassar. Aqui, o pai, ao saber
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do sentimento incestuoso entre os irmãos, Ana e André, com excesso de
cólera, mata a filha (dançarina ocidental) com um golpe certeiro,
demonstrando, assim, que o final de toda história de Ana, André e da
família culmina com a morte da filha. Em outras palavras, o término da
história abrange a convergência de todos os atos voltados, principalmente,
a Ana e a André.
Em Lavoura arcaica, o pai é o herói da tragédia, pois é ele que
sempre diz o que deve ser feito e as regras que devem ser cumpridas
para que a família permaneça sempre unida. É ele [o pai] quem faz os
sermões, dispondo acerca da tradição mediterrânea: a terra, o trigo, o
pão, a mesa, a família, o amor e o trabalho, demonstrando, com isso,
sua nobreza de espírito e seu comprometimento com sentimentos nobres.
Também é o pai, como herói da tragédia nassariana que, ao matar
a filha, vai ao encontro de sua infelicidade, não podendo dela fugir, pois
é ele quem deve exterminar o sentimento incestuoso entre os irmãos; assim,
a culminância da história (a morte da filha) revela a nobreza praticada
pelo herói.
Com relação ao registro, isto é, à estrutura lingüística, verificamos
que o tema do incesto, que culmina com a morte de Ana, não é nada
trivial. Contudo, o autor consegue demonstrar todo esse horror sem
dispor elementos brutais que choquem os espectadores; pelo contrário, a
construção do texto é magistral, o autor escolhe um repertório de
palavras disponibilizando ao leitor todas as informações de forma a
contemplar a “beleza do horror”.
Outro elemento que liga Lavoura arcaica à tragédia diz respeito à
dialética, com duas obras trágicas, Édipo rei e Electra, em que ambos os
textos literários demonstram heróis que matam o pai e a mãe, Édipo e
Electra, respectivamente. No caso da narrativa nassariana, o pai exerce a
ação matando a filha. Em nenhuma das três obras, o herói consegue fugir
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ao seu destino infeliz e, em todos os casos, os heróis assassinos têm uma
justificativa nobre para suas ações. Nesse sentido, Rodrigues dispõe que,
no texto nassariano,
(...) podemos lançar mão da teoria dos gêneros não no sentido substantivo
e sim adjetivo dos termos e dizer que Lavoura Arcaica é um romance trágico,
não só porque a morte da filha pelas mãos do patriarca é um acontecimento
trágico por excelência, mas sobretudo porque há uma atitude trágica como há
uma atitude lírica, fazendo que elementos caracterizados do trágico se encontrem
entranhados no romance tanto quanto elementos líricos (2006: p. 158).
Assim, vemos que o trágico está sedimentado ao longo da narrativa,
bem como elementos líricos, confirmando, desse modo, o hibridismo de
gêneros em Lavoura arcaica e que não há possibilidade de criar
fronteiras rígidas entre as formas literárias, pois a própria tragédia e o
lírico também têm vestígios de outros gêneros.
Lavoura arcaica é uma narrativa que dialoga, explicitamente, com diversos
outros textos, como nas parábolas da Bíblia Sagrada (1996), que perpassam
em muitos dos eventos da narrativa nassariana. “A parábola do filho pródigo”,
por exemplo, situada no Evangelho de Lucas, tem uma relação direta com
a obra de Nassar. A narrativa bíblica relata a história de um filho que saiu
da casa do pai, em busca de prazeres mundanos. Ao acabar o dinheiro
que herdara, o filho, encontrando-se em uma situação miserável, resolve
voltar e reconciliar-se com o pai: Pai, pequei contra o céu e perante ti, já
não sou digno de ser chamado teu filho (Lucas: 15, 21). O pai, em
resposta ao filho pródigo, diz: este meu filho estava morto, e reviveu, tinhase perdido e foi achado. E começaram a alegrar-se (Lucas: 15, 24).
Já, o filho pródigo de Lavoura arcaica, apesar de fazer mais ou
menos o mesmo percurso que o da narrativa bíblica, não tem um final
feliz, pois sua volta ao lar culmina com a tragédia na festa em
comemoração pelo retorno do filho desgarrado.
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Até certo momento do texto de Nassar, o leitor tem a impressão
que o resultado final será muito semelhante ao do filho pródigo bíblico,
como observamos nos discurso do pai de André:
_ Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz nova sobre
esta mesa, sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa
que você causou ao abandonar nossa casa, apagando depressa o pesadelo
que vivemos há pouco (p. 170-171).
Há, nas palavras de ambos os pais, um tom de alegria pela volta
do filho que se havia perdido e, ao voltar, reviveu. No entanto, o pai
nassariano mata a filha, ao saber por Pedro, o filho primogênito, do
sentimento incestuoso entre os irmãos, André e Ana, causando no leitor
um efeito de estranhamento, por não esperar essa ação de um pai que
sempre apregoou, em seus sermões, o amor e a união da família.
Nesse sentido, o trabalho de Raduan Nassar é composto a partir da
(sub) versão do texto bíblico, o que não significa que o texto sagrado
esteja sendo dessacralizado, mas antes, ganha uma outra versão sem
final feliz, pois de acordo com Perrone-Moisés, o romance todo é uma
versão negra da parábola do filho pródigo (p. 66).
Que relação existe entre o hibridismo dos gêneros e os textos que
dialogam com Lavoura? Arriscamos-nos a dizer que os textos de
Raduan Nassar têm, entre outras, a função de intensificar o caráter
dinâmico do gênero, assim, a narrativa do romance em questão é
dinamizada pelo trabalho do autor, confirmando o que já foi disposto,
que, em toda nova produção literária, o gênero pode sofrer alterações.
Ademais, esses textos que dialogam com a narrativa nassariana disseminam
seu gênero nela, gerando o hibridismo das formas.
A obra de arte moderna inclui a produção contemporânea e se
caracteriza por um alto grau de liberdade com relação à criação de suas
formas, recusando, as imposições e modelos que, às vezes, tentam
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A narrativa híbrida em Lavoura Arcaica [109-128]
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prescrever às artes, assim, o século XX, como bem afirma Satalloni
(2003), vai aderir implicitamente a essa estética da novidade, da
originalidade, da surpresa (p.178). O que se enquadra, perfeitamente,
à Lavoura arcaica, onde qualquer tipo de classificação genérica, sem
aludir a outros elementos, seria, facilmente, solapado.
Não é nossa pretensão afirmar uma aniquilação dos gêneros literários,
tanto que adotamos a forma narrativa para o romance em estudo, mas
a possibilidade de lançar, ao texto literário, uma visão sob diversas
perspectivas, aumentando, assim, seu horizonte de investigação e,
principalmente, sem enquadrá-lo a nenhuma esfera rígida, com fronteiras
bastante delimitadas.
REFERÊNCIAS
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BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
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Coimbra: Livraria Almedina, 1998.
MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética do recorte: estudo de literatura brasileira
contemporânea. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2004.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 1997.
MOSER, Walter. “Spätzeit” In: _________. Narrativas da modernidade. MIRANDA,
Wander Melo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
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PERRONE-MOISÉS, L. Da cólera ao silêncio. Cadernos de Literatura Brasileira
Raduan Nassar, S.Paulo, v. 2, p. 61-77, 1996.
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SEDLMAYER, Sabrina. Ao lado esquerdo do pai. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro:
DIFEL, 2003.
Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006
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Flávio A. Nantes Nunes/Edgar Cézar Nolasco [109-128]
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Flávio Adriano Nantes Nunes é
mestrando no Programa de Pós-Graduação
- Mestrado em Estudos de Linguagens,
do Centro de Ciências Humanas e Sociais
da UFMS.
Edgar Cézar Nolasco é doutor em
Estudos Literários pela UFMG, professor
dos Programas de Pós-Graduação –
Mestrado em Estudos de Linguagens
(Câmpus de Campo Grande) e Mestrado
em Letras (Câmpus de Três Lagoas), do
Centro de Ciências Humanas e Sociais da
UFMS
Área do artigo: Literatura
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Papéis, Campo Grande, MS, v.10, n.20, jul./dez. 2006
Ossonhadores&ascitações
PriscillaPaulaPessoa
MariaAdéliaMenegazzo
Resumo: O estudo “Os Sonhadores e as Citações” procura apontar as intertextualidades
e realizar uma análise das citações existentes no filme Os Sonhadores, de
Bernardo Bertolucci, utilizando, para isso, definições, conceitos e abordagens
próprios da citação literária aplicados a uma obra cinematográfica. O trabalho
identifica os momentos em que o filme faz uso do recurso da citação e
apresenta possíveis leituras sobre a presença dessas inserções fazendo uma
análise de cenas nas quais ocorrem as citações e identificando a relevância e
significação delas no contexto do filme.
Palavras-Chave: Citação. Intertexto. Cinema.
Abstract: The study “The Dreamers and the Citations” intends to point the intertexts
and to carry through one analyzes of existing citations in the film The Dreamers,
of Bernardo Bertolucci, using for this definitions, concepts and applied proper
boardings of the literary citation to a cinematographic work. This text identifies
the moments when the film makes use of the resource of the citation and
presents possible readings on the presence of these insertions making an
analysis of scenes in which the citations occur and identifying to the relevance
and meaning of them in the context of the film.
Keywords: Intertext. Citation. Movies.
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Assim como na famosa lei de Lavoisier, no cinema, a transformação
das imagens cria outras imagens. Da respeitosa citação à simples
referência, o cinema dentro do cinema é uma constante cada vez maior,
e isto pode se observar explicitamente em Os sonhadores (The Dreamers),
filme de Bernardo Bertolucci, de 2003.
Baseado em livro homônimo de Gilbert Adair (que assina o roteiro),
no filme, Matthew (Michael Pitt) é um estudante americano em Paris.
Apaixonado por cinema, freqüenta assiduamente a Cinemateca Francesa
justamente na Primavera de 1968, quando explodem revoltas estudantis
por toda a Europa. É nessa situação que Matthew conhece Isabelle (Eva
Green) e Théo (Louis Garrel), irmãos gêmeos, tão apaixonados por
cinema quanto ele. Quando os pais dos franceses se ausentam do grande
apartamento em que moram, os irmãos convidam-no para passar um tempo
com eles – Matthew acaba testemunhando o relacionamento incestuoso dos
gêmeos, participando de seus jogos e, no processo, se apaixona por
Isabelle. Os três acabam envolvendo-se mais profundamente, justamente
pelo cinema, conteúdo de seus jogos de adivinhação.
Nessas trívias, um integrante do trio imita a cena de algum filme
clássico e os outros têm que adivinhar qual a película, sob pena de
sofrer castigo escolhido pelo jogador oponente. Nesses momentos, cenas
da imitação são intercaladas com cenas de filmes antigos - na sua
maioria pouco óbvios - numa citação direta, se emprestarmos aqui
termos da literatura. Só para exemplificar algumas, Bertolucci intercala
uma famosa seqüência de Bande à Part (1964), de Jean-Luc Goddard,
com uma adaptação – três amigos atravessam o Louvre desviando dos
guardas do local. Outras passagens, em sintonia com Os Sonhadores:
Rainha Cristina (1933), com Greta Garbo, Scarface – A Vergonha de
uma Nação (1932), (utilizada em um dos jogos de adivinhações entre
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os personagens), O Picolino (1935), com Fred Astaire e Ginger
Rogers (justificando o incômodo de um barulho), entre outras.
Além dessas citações explícitas, Os sonhadores traz várias outras
intertextualidades mais sutis (como fotos do filme Persona (1954)
sobre uma escrivaninha) e está todo permeado por paixão ao cinema,
tanto da parte do cineasta quanto do espectador que, caso seja cinéfilo,
com imenso prazer reconhece fragmentos de obras-primas.
O presente trabalho se propõe a analisar as citações existentes em
Os Sonhadores e, para isso, se divide em três partes; a primeira traz
uma definição de citação e faz algumas considerações a respeito dessa
forma de intertextualidade, explicando de que forma tal conceito, tão caro
aos livros, pode ser aplicado a um filme; na segunda, faz-se a
apresentação da obra que serve de corpus; por fim, apresenta-se uma
reflexão sobre a presença dessas inserções (fazendo uma ponte com o
primeiro capítulo) e uma análise de cenas nas quais ocorrem as
citações, identificando a relevância delas no contexto do filme.
A citação
Segundo França, em seu livro sobre normas para publicação de
trabalhos científicos (1996, p. 128), “as citações são trechos transcritos
ou informações retiradas das publicações consultadas para a realização
do trabalho”. As citações são mencionadas no texto, e no caso do
nosso objeto, no filme, com a finalidade de esclarecer ou completar as
idéias do autor, ilustrando e sustentando afirmações. Sua função é
oferecer ao leitor o respaldo necessário para que ele possa comprovar
a veracidade das informações fornecidas e possibilitar o seu aprofundamento
se desejar. A citação direta refere-se à transcrição integral de uma parte
do texto pesquisado. A citação indireta é a transcrição das idéias do
autor consultado, porém, usando as suas palavras, ou seja, parafraseando.
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Inicialmente, cabe fazer uma distinção entre as formas de citação.
Quando ela é implícita, não percebida por seu leitor ou espectador, e
o autor propõe isso conscientemente, estamos diante de um plágio de outra
obra, simplesmente. Por outro lado, quando a citação é explícita, feita
de modo consciente, proposta com a intenção de homenagear ou parodiar,
aí sim se faz um dialogismo intertextual, reconhecido como normal dentro
do processo de concepção artística, e é esse tipo de citação que ocorre
em Os Sonhadores.
Isso vem desde muito tempo, como nas pinturas de Rembrandt que,
em suas obras, eventualmente, dialogava com quadros de outros pintores
contemporâneos a ele. Outros exemplos de citacionismo na pintura são as
obras de VanGogh nas quais aparecem, como parte do ambiente, gravuras
japonesas que serviram de referência para todo seu trabalho. E, nesses
sentidos, de diálogo e de reverência, funciona também a citação no filme
de Bertolucci.
Intertextualidade
Fiorin (2000) define o termo intertextualidade como sendo a
“incorporação de um texto em outro”. O autor também estabelece uma
classificação para a intertextualidade, nos seguintes tipos: citação (referência
literal a outro texto, usando parte deste); alusão (reprodução de
construções sintáticas, substituindo algumas figuras do texto original por
outras); estilização (reprodução do estilo de outrem, seja no plano da
expressão ou no do conteúdo), entre outras segmentações. No primeiro
tipo de intertextualidade, a citação, é que este estudo irá se concentrar.
Nas obras literárias, a intertextualidade se apresenta de forma mais
consistente e até natural, como um fenômeno cumulativo, em que quanto
mais se absorve a mensagem, mais se percebem vestígios de textos
anteriores presentes naquele que se lê. Assim, o ambiente cultural no
qual as pessoas estão inseridas constitui uma rede de interseções
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textuais, em que, a cada texto que se leia, arregimentam-se referências
para a identificação de novos textos citados nos anteriormente lidos. E,
nesse processo de recepção da obra, Ferrara (1981) escreve:
“A participação do receptor – aviltada, desejada, repelida, solicitada, estimulada,
exigida – é tônica que perpassa os manifestos da arte moderna em todos os
seus momentos e caracteriza a necessidade de justificar a sua especificidade”.
No caso específico de Os sonhadores, a plena apreensão dessa
intertextualidade demanda uma enorme bagagem cinematográfica por parte do
espectador.
A citação: fundamento primeiro da textualidade
De acordo com Babo (1986), o termo citar tem uma significação
etimológica diversa do seu uso atual. Ele indica uma ordem, remete para
uma injunção de comparecer perante a justiça para depor ou testemunhar.
A citação é, nos seus primórdios, um ato lingüístico de testemunho, mas
também um ato de legitimação que autentica a verdade do discurso.
Citar torna-se, assim, o discurso da autoridade.
Citar é, talvez, o único “roubo” consentido: uma repetição comentada,
um confronto entre sujeitos. Como ato de leitura, a citação integra-se,
pois, numa operação de corte e de transposição; como ato de escrita,
ela opera uma repetição do já escrito e uma reinserção num novo
contexto.
Para Compagnon (cit. In BABO, 1986), a primeira forma de
citação encontra-se já no ato de sublinhar. A leitura, neste sentido, é
uma forma de adesão ou apropriação do texto. Enquanto leitura, a
citação aparece como solicitação do texto à repetição; o que se cita é
aquilo que o texto primeiro convida a retirar e compele a repetir. E citar
torna-se um produto da excitação operada previamente no texto-leitura.
Mas, ao ser reescrita, a citação manifesta uma incitação, uma inserção
a formar de novo texto ou sentido. Como incitação, ela é mais do que
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pura reprodução porque, ao repetir-se, cria um excesso significante.
Mais do que repetição de sentido, ela instaura o sentido da repetição,
isto é, a mais valia do sentido primeiro.
Ainda de acordo com Babo, o texto trabalhado pela citação é um
texto que releva muito da interpretação. A citação, posta como repetição,
não fixa ou fecha o sentido, mas abre-o à significância através da
criação de um espaço intervalar por onde o não-dito se lê, se marca.
Assim, a citação não pode ser entendida como simples fenômeno de
imitação, mas acarreta, inevitavelmente, ao reproduzir-se, uma perturbação
do sentido. Se essa integração poderia funcionar como identificação, o
que se verifica é, antes, uma desmultiplicação da identidade, a emergência
da alteridade no texto.
Apesar de a citação poder funcionar no discurso como confirmação de
valores consentidos ou consensuais, ela não deixa de formar, no entanto, uma
rede de ressonâncias a deixar resto ou rastro, a criar dissonâncias. Nessa
medida, o jogo da citação pode, em última análise, produzir efeitos semelhantes ao jogo da paródia que, etimologicamente, significa cantar ao lado, noutro
tom. O texto paródia, tal como o texto citação, consiste na transposição de um
texto de um registro nobre para um registro vulgar.
Citação no cinema
A interdisciplinaridade se observa por meio da utilização de diversas
técnicas ou saberes com o objetivo de conhecer ou explicar um mesmo
objeto. Para que se possa aplicar o conceito de citação (usado
principalmente quando se trata de linguagem escrita) numa análise de
linguagem cinematográfica, optou-se por adotar uma acepção muito
ampla de texto.
Segundo Aguiar e Silva (1988), o termo texto origina-se do
substantivo latino textus, que significa tecido, urdidura, encadeamento e
descende do particípio passado do verbo texere, que significa tecer,
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entrançar e entrelaçar. O conceito de texto, tal como proposto por
Barthes (1985), é “como um campo metodológico que se mantém na
linguagem, só existe se tomado num discurso e cujo movimento constitutivo
é a travessia”. Esse conceito nos permite, de imediato, prover nosso
objeto de uma sustentação teórica, considerando, também, o filme como
um texto e abrindo-o para a questão que buscaremos responder com o
projeto proposto: quais os efeitos de sentido, poéticos e estéticos,
decorrentes da inserção de citações (cenas de outros filme) dentro do
filme Os Sonhadores.
Retomando a definição de citação, como forma de intertextualidade
- segundo Fiorin (2002), de referência literal a outro texto - o cinema
usufrui deste recurso criativo com desenvoltura. Uma única obra
cinematográfica pode gerar uma grande variação de citações em cima de
uma mesma cena clássica, evidentemente icônica; contundente o bastante
para se tornar perene no imaginário coletivo, transpondo barreiras
culturais e temporais. O filme Cliente Morto Não Paga (1982), do qual
se falou durante as aulas no mestrado, citou, como parte integrante de
sua narrativa, pelo menos outras quinze obras cinematográficas. Essa
citação fragmentada também está presente em Cinema Paradiso (1988).
OSSONHADORES
Apresentação do filme
Uma vez definidos os conceitos acerca de citação e sua aplicabilidade
na análise proposta, passamos ao objeto de análise, o filme. Os
Sonhadores, de 2003, é o 23o. filme da carreira do diretor Bernardo
Bertolucci e, também, o mais recente; muitos críticos enxergam nele o
fechamento de uma trilogia do diretor, pois, junto a O Último Tango em
Paris e O Assédio, Os Sonhadores parece fechar uma trilogia “entre quatro
paredes” – em que Bertolucci explora toda a tensão sexual que pode ser
contida em pequenos cômodos.
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A trama acontece entre fevereiro e maio de 1968, em Paris, no
cerne da revolução que colocou estudantes frente a frente com a polícia
e entrou para a história mundial. O filme começa no exato momento que
Henri Langlois é demitido da direção da Cinemateca francesa pelo
escritor André Malraux, ministro da cultura do presidente Charles De
Gaulle. A demissão deixa revoltados estudantes e os maiores cineastas
de todo mundo, como Godard, Truffaut, Kurosawa, Fellini e até o
brasileiro Glauber Rocha, protestam contra a demissão. Uma manifestação
em frente à Cinemateca é dispersa com bombas e cacetetes sobre
estudantes, cineastas e escritores. É nesse cenário que o estudante de
intercâmbio norte-americano Matthew (Michael Pitt) conhece a francesa
Isabelle (Eva Green). Eles já se conheciam de vista, das sessões de
filmes de arte na Cinemateca. Isabelle está protestando contra a demissão
de Langlois, acorrentada na porta da Cinemateca. Minutos depois é a
vez de Theo (Louis Garrel) entrar em cena. Ele é irmão de Isabelle,
também cinéfilo e revolucionário. O trio se torna amigo. Logo, Matthew
deixa a pensão em que vive para ir passar alguns dias na casa dos
irmãos. O amor e o sexo cega os jovens para o mundo externo.
Sozinhos em uma casa, o trio experimenta os prazeres da carne, jogos
de sedução, bebidas, incesto e rock. Ávidos espectadores de cinema,
Matthew, Isabelle e Theo respiram a energia fascinante das películas que
idolatram, mimetizando cenas e ações de algumas obras.
Além da paixão pelo cinema, o outro mote do filme é a sexualidade
latente vivida pelos personagens dentro da casa e o pano de fundo dos
acontecimentos é a Paris de maio de 1968 e sua efervescência
revolucionária. Enfim, como define o próprio Bertolucci no documentário
sobre a produção do filme, trata-se de uma história de sexo, cinema e
política, em substituição ao jargão sexo, drogas e rock´n roll.
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Os sonhadores recebeu uma indicação ao Goya de Melhor Filme
Europeu e 2 indicações ao European Film Awards, nas categorias de
Melhor Diretor pelo Júri Popular e Melhor Atriz pelo Júri Popular.
Análise das citações em os sonhadores
Os Sonhadores é um filme inteiramente permeado por intertextualidades
(conjunto de discursos a que um discurso remete). Especialmente, duas
categorias de intertexto podem ser identificadas dentro do nosso objeto:
alusões e citações.
A utilização da alusão (referência a temas ou figuras para
contextualização) é constante no decorrer do filme. Segundo consta do
próprio documentário que acompanha a edição em DVD, inúmeros
objetos de cena foram pensados exclusivamente para aludir sutilmente a
outros filmes. Dois exemplos são as alusões aos filmes Persona (1966)
e A Chinesa (1967). Quanto à primeira obra, há a foto de uma cena
famosa estampada na capa de uma revista que está sobre a escrivaninha
(fig. 1); e um pôster de A Chinesa (fig. 2) decora o quarto onde se
passa grande parte da ação de Os Sonhadores. Tais inserções servem
para criar a atmosfera de absoluta devoção ao cinema em que vivem os
jovens moradores da casa - mesma utilidade funcional de diversos
objetos de cena que também informam o espectador sobre as referências
políticas dos jovens, ou sobre sua classe social. Mas a escolha desses
filmes específicos pode suscitar outras leituras de sentido mais profundo,
como, por exemplo, se lembrarmos que A Chinesa é um filme sobre
cinco jovens que, como os personagens de Os Sonhadores, se trancam
em um apartamento dentro do qual experimentam o marxismo-leninismo.
É, portanto, uma referência na construção do nosso filme-objeto que se
procura evidenciar através da presença do pôster, já que, apesar do
pseudo-sentimento revolucionário de Theo, os três jovens permanecem,
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por tempos, praticamente enfurnados na casa dos gêmeos, vivendo o
sexo de forma alienadora. Só vão para a rua lutar pelo que dizem,
quando a rua vai até eles.
Fig.1: Cena do filme “Os Sonhadores”
Fig.2: Cena do filme “Os Sonhadores”
São diversas as alusões a outras obras cinematográficas inseridas no
cenário e em outros elementos do filme Os Sonhadores, e a análise dos
mesmos seria tarefa para outro trabalho como este. Isso sem contarmos ainda
a possibilidade de se pensar nas referências retomadas na obra, sendo a mais
patente a associação com Jules et Jim (1967). Porém, o que aqui nos
interessa é outro tipo de intertextualidade, muito mais evidente e utilizada de
maneira muito peculiar no filme analisado: as citações.
Considerando a citação como sendo a referência literal a outro texto,
diremos aqui que, sempre que no filme são inseridos trechos de outros filmes,
teremos exemplos de citação direta (transcrição fiel de um trecho duma obra
em outra). São essas inserções que formam o objeto desta análise.
Considerações sobre a citação em os Sonhadores
O constante recurso das citações no nosso filme-objeto é utilizado
sobretudo para caracterizar de forma credível e entusiasmante a paixão
dos protagonistas pela sétima arte. Ávidos espectadores de cinema,
Matthew, Isabelle e Theo respiram a energia das películas que idolatram,
mimetizando cenas e ações de algumas obras - o que nos faz lembrar
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da citação como um ato de legitimação que autentica a verdade do
discurso, segundo Babo (1996). Citar literalmente partes de outros
filmes torna-se assim o discurso da autoridade, como se aqueles trechos
ali inseridos não deixassem dúvida da intenção do diretor: filmar a
cinefilia como uma verdadeira filosofia de vida. Tal apropriação e
assimilação da arte cinematográfica acabam por suscitar um tênue limite
entre o real e o ficcional, servindo para reforçar o universo particularíssimo
criado pelos jovens, para quem os filmes, mais do que representações
da vida, são genuínas experiências existenciais que marcam todo o seu
comportamento.
Além dessa função específica das citações em Os Sonhadores, é
necessário sublinhar outros aspectos. Retomamos aqui a idéia de Compagnon
(cit. In Babo, 1986), já abordada no primeiro capítulo, para quem a
primeira forma de citação encontra-se já no ato de sublinhar; o que se
cita é aquilo que o texto (ou o cinema, no nosso caso) primeiro
convida a retirar e compele a repetir. E citar torna-se um produto da
excitação operada previamente no texto-leitura. Ora, em Os Sonhadores,
Bertolucci proporciona uma declaração de amor ao cinema e ao poder
inspirador e transfigurador das suas imagens, recheando assim o filme de
passagens de seus clássicos e diretores favoritos.
A escolha desse ou daquele trecho tem a ver portanto com essa
primeira forma da citação, em que o diretor se vê impelido a fazer o
recorte e colá-lo em sua obra: Bernardo Betolucci (como ele mesmo
afirmou em entrevista ao jornal Estadão de 06/12/2004) filmava na
Itália quando aconteceu a Revolução de 68, momento histórico em que
se ambienta Os Sonhadores , porém se revela um aficionado pela força
dessa revolução e especialmente, pela participação do cinema como
estopim de tudo, tendo como carro chefe a Nouvelle Vague e seu
enfoque crítico do mundo. Apesar de não participar do grupo específico
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da Nouvelle Vague Francesa, o diretor italiano sempre se declarou um
admirador e credor dessa tendência cinematográfica; portanto, não é a
toa que a maior parte das citações presentes no filme analisado
pertencem a esse segmento e tem como autores os diretores que
Bertolucci sempre cita como seus favoritos: Jean-Luc Godard, François
Truffaut, Claude Chabrol.
Por fim, a cinefilia não é só o atributo que faz com que Bertolucci insira
trechos de seus filmes amados como continuidade das cenas de sua própria
obra: ele também conta com o grau de cinefilia do seu espectador. Assim como
se trata de uma excitação no momento em que é escolhida pelo diretor, ao ser
inserida em sua obra a citação manifesta uma incitação, e quem ele deseja
incitar é o público, que, sendo cinéfilo, se delicia com os trechos de filmes que
ele reconhece, e não sendo, intriga-se com aquelas presenças alienígenas
à obra que escolheu ver; em uma ou outra situação, o ambiente cultural no
qual as pessoas estão inseridas constitui uma rede de interseções em que, a
cada filme que se veja, arregimentam-se referências para a identificação dos
filmes citados.
Sobre esse processo de recepção da obra, Ferrara (1981) escreve: “A participação do receptor – aviltada, desejada, repelida, solicitada,
estimulada, exigida – é tônica que perpassa os manifestos da arte
moderna em todos os seus momentos e caracteriza a necessidade de
justificar a sua especificidade”. No caso específico de Os sonhadores, a
plena apreensão dessa intertextualidade demanda uma enorme bagagem
cinematográfica por parte do espectador, porém não possuí-la ou tê-la
somente em parte não retira o deleite de assistir ao filme.
Cenas citadas
A primeira citação que ocorre no filme é a que mais difere das
outras, pois é a única que faz parte do contexto e não forma uma
espécie de “parênteses”: Na primeira cena, enquanto Mathew conta, em
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off, sobre sua estada em Paris e sobre sua paixão pelo cinema, é
mostrado na Cinemateca (fig.3) assistindo ao filme Paixões que alucinam
(Fig. 4); pode se dizer que o filme faz parte do cenário, e é o único
que é “assistido” pelo personagem e pelo espectador.
Fig. 3: Cena do filme “Os Sonhadores”:
Mathew na Cinemateca Francesa.
Fig. 4: Cena do filme “Os Sonhadores”:
na tela, é exibido o filme “Paixões que
alucinam”.
Não é por acaso que justamente essa citação abre o filme: Paixões
que alucinam é um filme que inspirou a Nouvelle Vague Francesa por
sua postura de crítica às instituições políticas e preceitos de moral,
escandalizando a sociedade americana da época. É como se esse enxerto
prenunciasse também o que se vê mais adiante na película, ainda que
a crítica não seja tão contundente, nem a moral tão rígida, e nem o público
tão escandalizável.
A segunda citação cinematográfica (Fig 6) é um trecho de Rainha
Cristina (1933). Aqui vemos a inserção da citação como ocorre na
maior parte das vezes que se segue: intercalada com o jogo de
adivinhação proposto pelos irmãos, em que se imita a cena de um filme
para que se adivinhe qual é. Depois de acordar Mathew, Isabelle
começa a tatear os objetos do quarto, e imagens da atriz Eva Green
(fig.5) são intercaladas com as de Greta Garbo, intérprete da rainha
Cristina original. Mesmo as falas das duas atrizes, num dado momento,
são repetidas: Estou memorizando esse quarto.
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Tal intertexto funciona como um bonito jogo estético, mas, mais que isso,
é uma citação direta de uma cena que “ilustra” a trívia proposta pela personagem;
assim, podemos aplicar integralmente uma das definições da função da citação,
dada por França (1996): “... sua função é oferecer ao leitor o respaldo
necessário para que ele possa comprovar a veracidade das informações fornecidas
e possibilitar o seu aprofundamento se desejar”.
Fig.5: Cena do filme “Os Sonhadores”:
Isabelle memoriza o quarto.
Fig.6: Cena do filme “Rainha Cristina”:
Cristina memoriza o quarto.
Em outra seqüência, há a velha discussão sobre quem é melhor: Charles
Chaplin ou Buster Keaton? Enquanto Mathew e Theo expõem seus pontos de
vista, filmes dos atores discutidos são citados na tela (Fig 7 e 8).
Fig.7: Cena do filme “Luzes da
Cidade”: Charles Chaplin
Fig.8: Cena do filme “Marinheiro
por Descuido”: Buster Keaton
Especialmente quando Théo apresenta suas razões para crer na superioridade de Chaplin, podemos observar a função da citação como um ato
lingüístico de testemunho, mas também um ato de legitimação que autentica
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a verdade do discurso: enquanto Théo fala de uma sensação única que
Chaplin consegue dar no filme Luzes da Cidade (1931), quando a moça
cega enxerga pela primeira vez e, segundo ele, vemos o mundo por seus
olhos virgens de imagens, a cena descrita aparece na tela, como que atestando a opinião do jovem. Se o filme fosse um texto, com certeza essa inserção
se daria depois de um início como “De acordo com Chaplin...”.
Enquanto acontece a discussão entre os dois rapazes, Isabelle está
alheia e ouve um disco. Théo se incomoda e a obriga a parar, o que
suscita mais uma das adivinhações: em que filme um barulho insuportável
enlouquece a personagem? A resposta não é fácil nem para o inquirido
Mathew nem mesmo para o mais cinéfilo dos cinéfilos espectadores, pois
não há mimetização da cena e, portanto, não se tem a citação
intercalada com o filme, como ocorreu com Rainha Cristina, mas ainda
assim Mathew responde acertadamente que o filme é O Picolino (1936).
Só então um trecho (Fig.9) é inserido no filme, como que confirmando
ao espectador que aquela é a resposta certa. Aqui vemos como a
citação poder funcionar no discurso como confirmação de valores consensuais.
Na cena que se segue, os três jovens fazem a travessia em corrida pelo
Museu do Louvre, imitando o clássico Bande à Parte (1964). Toda a corrida
de Os sonhadores é intercalada com cenas de Bande à Parte, de forma
sincronizada (figs. 10 e 11). A citação, que poderia ser considerada o grau
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zero da relação interdiscursiva, dado que o trecho citado não sai maculado,
revela-se, apesar disso, como um processo mais complexo. A cena trabalhada
pela citação releva da interpretação e não pode ser entendida como simples
fenômeno de imitação, mas acarreta, inevitavelmente, ao reproduzir-se, uma
perturbação do sentido.
Fig.10: Cena de “Bande à Parte”:
Travessia do Louvre
Fig.11: Cena de “Os Sonhadores”:
Travessia do Louvre
A próxima citação difere das que foram feitas até então. Todas as
outras eram, de alguma forma, identificadas pelas personagens; eles
diziam o nome do filme citado em algum momento, seja na primeira
inserção, (assistida por Mathew no cinema e cuja obra de onde se
retirou o trecho é credenciada na narração), ou como nos enxertos que
se seguiram até aqui, nas quais o nome do filme era a resposta de uma
adivinhação. O filme citado é Monstros (1932), e aparece quando
Mathew, após a corrida do Louvre, é aceito como parte do “grupo”
formado por Théo e Isabelle (Fig.12 e 13): em coro com o trecho
extraído de Monstros, eles cantam: Um de nós, um de nós.
Fig.12: Cena de “Monstros”
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Fig.13: Cena de “Monstros”
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Essa citação que, se comparada às outras, foi inserida sutilmente e
sem alarde, (o nome do filme só aparece nos créditos finais) nos diz
muito sobre o que aconteceria depois em Os Sonhadores: funciona
quase como que a epígrafe de um novo capítulo, pois a partir daí o
filme muda de rumo: quando Mathew é aceito pela dupla como um
autêntico conhecedor de cinema, os três se trancam no apartamento e
passam as tardes a discutir filmes, política, revoluções. Até que o
americano percebe, chocado, a relação incestuosa entre Theo e Isabelle
e se envolve num triângulo, se torna um de nós, um freak (aberração,
em inglês, e título original da obra citada).
Dentro do apartamento, o mundo dos três jovens continua marcado
por brincadeiras cinéfilas, mas agora com altas doses de erotismo. A
primeira delas vem também acompanhada de uma citação, colocada a
partir da imitação de um clássico, feita por Isabelle (Fig14), mesclada
com imagens do filme Vênus Loira (1932). A revelação da resposta
para a trívia é intercalada com a revelação da atriz que se encontra sob
as vestes de gorila (Fig15) no filme citado - Marlene Dietrich. A
inserção desse trecho também serve de gancho para a “prenda” que
deve ser paga por Théo, iniciando os jogos sexuais: Isabelle pede como
prêmio que ele se masturbe em frente a um pôster da atriz alemã,
assistido por ela e por Mathew.
Fig.14: Cena de “Os Sonhadores”
Fig.15: Cena de “Vênus Loira”
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Na penúltima citação, é Théo quem propõe o jogo: deita-se no
chão sobre a sombra de uma janela (que se assemelha a uma cruz)
e pergunta a Mathew em que filme essa imagem se repete na cena final
(Fig.16). Mathew não sabe a resposta e então aparece um trecho de
Scarface (1932), acompanhando a solução do enigma. Temos, mais
uma vez, a citação como um testemunho de autoridade, de autenticidade
do discurso.
Fig.16: Cena de “Os Sonhadores”
Fig.17: Cena de “Scarface”
A prenda exigida dessa vez é que Mathew tenha uma relação
sexual com Isabelle na frente de Théo. Curiosamente, a partir desse
momento, as citações cinematográficas são interrompidas, só reaparecendo no final do filme. Uma hipótese para isso é que, a partir daí, o filme
muda totalmente sua tônica (do amor ao cinema) para a relação entre
os personagens; é como se as citações não fossem mais necessárias,
uma vez que o tema mudou. Inteligentemente, Bertolucci não as insere
a esmo apenas para enfeitar o filme quando elas já não têm mais a
mesma função.
A última citação ocorre quando Isabelle descobre que seus pais
estiveram no apartamento e viram os três jovens adormecidos nus. Ela
resolve se matar, e o desenrolar da mangueira de gás mimetiza o
movimento de uma menina rolando na ribanceira no filme Mouchette
(1967) (fig18).
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Fig.18: Cena de “Mouchette”
Cabe aqui relembrar de que trata o filme citado: adolescente,
Mouchette é filha de pai alcoólatra e mãe enferma. Taciturna e infeliz,
ela quase não cativa a simpatia de seus amigos. Numa noite de
tempestade, ao se perder na floresta, aceita a hospitalidade de um
caçador que abusa dela. De volta a casa, Mouchette vê sua mãe
morrer, mas não tem tempo de se confidenciar a ela. Por não encontrar
compreensão da parte de ninguém, a garota termina por se deixar
escorregar para dentro de um poço.
Para quem desconhece o filme, a citação funciona apenas como uma
montagem poética, de beleza plástica obtida com a continuidade entre o
rolamento de Mouchette e o desenrolar da mangueira. Mas é inegável também
a intertextualidade entre o tema da obra citada e a maneira como Isabelle se
sente naquele momento; sua relação íntima com o cinema aponta para que a
citação foi ali inserida como reveladora do seu desespero e sensação de
abandono naquele momento. Essa derradeira análise trás à pauta a questão
do processo de recepção da obra. A participação do receptor é indispensável
para a plena apreensão dos sentidos gerados pela intertextualidade no filme;
a ocorrência dessa apreensão em sua totalidade demanda uma enorme bagagem
cinematográfica por parte do espectador, porém, não possuí-la ou tê-la somente
em parte, não retira o deleite de assistir ao filme.
Conclusão
No filme Os Sonhadores, as vidas de Isabelle e Theo imitam o
cinema da forma mais apaixonada possível. Eles têm uma relação, no
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mínimo insólita, com a sétima arte, em que a vida e o cinema se
misturam. Assim, o recurso utilizado pelo diretor para mostrar nas telas
tal grau de mistura entre a realidade de seus personagens e o mundo
dos filmes no qual eles também habitam foi inserir trechos de obras
cinematográficas em algumas cenas. No trabalho que aqui se conclui,
essas inserções são consideradas como formas de citação, aplicando a
mesma fundamentação usada na literatura em nosso objeto e analisandoo a partir desse prisma.
Tomamos como princípio a definição da intertextualidade como sendo a
incorporação de um texto em outro, e a citação tida como a referência literal
a outro texto, usando parte deste; se considerarmos que o filme, numa acepção
ampla do termo texto pode ser visto como um objeto passível de leitura, pode
se dizer que a incorporação de um filme em outro é uma forma de intertextualidade
e que quando essa incorporação se dá pela inserção direta de uma parte de
outra obra cinematográfica, temos uma citação.
Concluiu-se, então, que o recorrente uso de citações em Os Sonhadores,
além de ser um recurso poético (mérito não abordado aqui), funciona
primeiramente como um ato de legitimação que autentica a verdade do discurso;
citar literalmente partes de outros filmes torna-se assim o discurso da autoridade,
como se aqueles trechos ali inseridos não deixassem dúvida da intenção do
diretor: filmar a cinefilia como uma verdadeira filosofia de vida.
Considerando-se que a existência de uma citação é produto da
excitação operada previamente no texto-leitura (ou no ato de assistir um
filme, no caso de nosso objeto), em Os Sonhadores, Bertolucci proporciona
uma declaração de amor ao cinema e a escolha desse ou daquele
trecho tem a ver, portanto, com essa primeira forma da citação, que nos
faz concluir que o que se estabelece aqui é uma relação de diálogo com
as obras citadas, mas também de reverência, homenagem.
Por fim, a cinefilia não é só o atributo que faz com que Bertolucci
insira trechos de seus filmes amados como continuidade das cenas de sua
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própria obra: ele também conta com o grau de cinefilia do seu espectador.
É a excitação com a citação, o grau de bagagem cinematográfica que
quem assiste possui que pode fazer com que ele veja o filme de diferentes
maneiras e encare as citações: respostas criativas para os jogos de
adivinhação do filme ou um intertexto muito mais elaborado e completo.
E só a cinefilia pode explicar, também, a paixão por um tema a
ponto de, mais que apreciá-lo, pesquisar, pensar e escrever sobre ele.
REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, V.M. Teoria da literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1988.
BABO, Maria Da Intertextualidade. Disponível em: <http://www.cecl.com.pt/rcl/
03/rcl03-08.html>. Acesso em 13/07/2006.
FERRARA, L. D. Leitura sem Palavras. São Paulo: Ática, 1991.
FIORIN, J. L. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 2002.
FRANÇA, Junia. Manual para a Normalização de Publicações Tecno-Cientificas.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
KRISTEVA, J. Introdução a Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
METZ, C. Linguagem e Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980.
PIGNATARI, D. Informação Linguagem Comunicação. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2002.
FILMOGRAFIA
A CHINESA
Título Original: La Chinoise
Tempo de Duração: 90 minutos
Ano/Local: Francia, 1967
Direção: Jean-Luc Godard.
Roteiro: Jean-Luc Godard.
Elenco: Jean-Pierre Leaud, Anne Wiazemsky, Michel Semeniako, Juliet Berto, Lex de
Bruijn.
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BANDE À PART
Título Original: BANDE À PART
Tempo de Duração: 90 minutos
Ano/Local: França, 1964
Direção: Jean-Luc Godard.
Roteiro: Jean-Luc Godard, Dolores Hitchens.
Elenco: Anna Karina, Claude Brasseur, Sami Frey, Luisa Colpeyn, Danièle Girard,
Ernest Menzer.
LUZES DA CIDADE
Título Original: City Lights
Tempo de Duração: 87 minutos
Ano/Local: USA, 1931
Direção: Charlie Chaplin.
Roteiro: Charlie Chaplin.
Elenco: Ch. Chaplin, Harry Myers, Virginia Cherrill, Florence Lee, Allan Garcia.
MARINHEIRO POR DESCUIDO
Título Original: The Navigator
Ano/Local: USA, 1924
Direção: Buster Keaton, Donald Crisp
Roteiro: Buster Keaton.
Elenco: B. Keaton, K. Mcguire, F. Vroom, N. Johnson, C. Burton
MONSTROS
Título Original: Freaks
Tempo de Duração: 64 minutos
Ano/Local: USA, 1932
Direção: Tod Browning.
Roteiro: Willis Goldbeck, Leon Gordon, Edgar Allan Wolf
Elenco: Wallace Ford, Leila Hyams, Olga Baclanova, Roscoe Ates, Henry Victor,
Harry Earles, Daisy Earles.
MOUCHETTE
Título Original: Mouchette
Tempo de Duração: 82 minutos
Ano/Local: França, 1967
Direção: Robert Bresson
Roteiro: Robert Bresson.
Elenco: Nadine Nortier, Jean-Claude Guilbert, Paul Hébert, Marie Cardinal, Jean
Vimenet.
OSSONHADORES
Título Original: The Dreamers
Tempo de Duração: 130 minutos
Ano /Local: (EUA / França / Itália): 2003
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Gilbert Adair
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Elenco: Michael Pitt, Eva Green, Louis Garrel, Robin Renucci, Anna Chancellor,
Florian Cadiou.
PAIXÕES QUE ALUCINAM
Título Original: Shock Corridor
Tempo de Duração: 87 minutos
Ano/Local: USA, 1963
Direção: Samuel Fuller.
Roteiro: Samuel Fuller
Elenco: Peter Breck, Constance Towers, Gene Evans, James Best.
PERSONA
Título Original: Persona
Tempo de Duração: 90 minutos
Ano/Local: 1966
Direção: Ingmar Bergman.
Roteiro: Ingmar Bergman.
Elenco: Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margaretha Krook.
PICOLINO
Título Original: Top Hat
Tempo de Duração: 90 minutos
Ano/Local: USA, 1935,
Direção: Mark Sandrich.
Roteiro: M. Sandrich, Allan Scott.
Elenco: Fred Astaire, Ginger Rogers, Helen Broderick, Edward Everett Horton,
Eric Blore.
RAINHA CRISTINA
Título Original: Queen Christina
Tempo de Duração: 103 minutos
Ano/Local: USA, 1933
Direção: Rouben Mamoulian.
Roteiro: Salka Viertel, H.M. Harwood, S.N. Behrman, Ben Hetch
Elenco: Greta Garbo, John Gilbert, Ian Keith, Lewis Stone, Elizabeth Young,
Reginald Owen, C. Aubrey Smith.
SCARFACE, A VERGONHA DE UMA NAÇÃO
Título Original: Scarface, the Shame of a Nation
Tempo de Duração: 90 minutos
Ano/Local: USA, 1932
Direção: Howard Hawks.
Roteiro: Ben Hetch, Seton I. Miller, John Lee Mahin, William R. Burnett
Elenco: Paul Muni, George Raft, Ann Dvorak, Boris Karloff, Vince Barnett, Karen
Morley.
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Priscilla Paula Pessoa é mestranda no
Programa de Pós-Graduação - Mestrado
em Estudos de Linguagens, do Centro de
Ciências Humanas e Sociais da UFMS.
Área do artigo: Literatura
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ProjetoEditorialeNormasparaPublicação
Projetoeditorial
PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens
tem como objetivo a divulgação de ensaios inéditos, resenhas, entrevistas,
elaborados por professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação,
voltados para a grande área de Letras, Lingüística e Artes, mais especificamente
para as linhas de pesquisa do Programa, e que apresentem contribuições
relevantes para a ampliação e o aprofundamento do debate teórico, da análise
de questões estéticas e culturais.
Os trabalhos que atendam à linha editorial da revista são submetidos ao
conselho editorial e encaminhados para análise por dois pareceristas ad hoc.
A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com
a seguinte temática:
As edições de número ímpar se dedicam aos estudos da literatura e as de
número par, aos estudos lingüísticos e de semiótica.
Paraosestudosliterários,aceitam-seartigossobre:
Poéticas modernas e contemporâneas, em abordagens individuais ou
inter-relacionadas; comparações entre objetos de linguagens diferentes (artes
visuais, artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa.
Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários
em suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como
manifestações de uma dada cultura.
Para os estudos lingüísticos e de semiótica, aceitam-se artigos
sobre:
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saber lingüístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza
sociocultural e histórica.
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que engendram o sentido do discurso em relação ao contexto.
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acompanhado de resumo, contendo de três a cinco palavras-chave, e de
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Formatação: papel A4, margens de 3 cm, fonte Times New Roman, corpo 12, parágrafos
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153
Estrutura: título alinhado à esquerda na primeira linha, nome do autor alinhado
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Citações bibliográficas: o sobrenome aparece apenas com a primeira letra em
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maiúsculas - Ex: (HERNANDES, 2006, p. 30).
Notas: se necessárias, devem constar do rodapé, com corpo 10 e espaçamento
simples.
Referências bibliográficas: apresentadas ao final do texto, de acordo com as
normas da ABNT. (Ver exemplos abaixo).
Livro:
HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto,
2006.
Ensaio em periódico:
NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista
Cerrados, Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006.
Capítulo de livro:
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO,
Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura.
(1994-2004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252.
Documentos eletrônicos:
CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em:
www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm. Acesso em
08 mai. 2007.
Os autores deverão encaminhar, separadamente, sua identificação (nome do artigo,
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