DUTRA, Daniel Iturvides. METROPOLIS: AS

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DUTRA, Daniel Iturvides. METROPOLIS: AS
METROPOLIS: AS DIFERENTES FORMAS DE
INTERTEXTUALIDADE ENTRE LITERATURA E CINEMA.
Daniel Iturvides Dutra*
RESUMO: O presente artigo visa fazer uma análise comparativa do filme Metropolis (1927), de Fritz Lang com
a novelização homônima realizada por Thea Von Harbou, que também escreveu o roteiro do filme em parceira
com o diretor. Também analisamos a influência da literatura de ficção-científica, mais especificamente a novela
When the Sleeper Wakes (1899), do escritor britânico H.G. Wells na concepção do filme. O objetivo da análise é
compreender como a relação entre literatura e cinema vai muito além da questão do debate de como textos
literários são adaptados para o cinema e trazer para a discussão sobre literatura e cinema outras formas de
diálogos que ocorrem entre ambas as linguagens.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema, Fritz Lang, H.G. Wells.
ABSTRACT: This article aims to make a comparative analysis of the film Metropolis (1927), by Fritz Lang,
and the homonymous novelization written by Thea von Harbou, who also wrote the movie screenplay with the
director. We also aim to analyze the influence of the novel When the Sleeper Wakes (1899), written by the
British science fiction writer H.G. Wells, in the creative process that originate the motion picture Metropolis.
The goal of analysis is to understand how the relation between literature and film goes far beyond the debate of
how literary texts are adapted to the cinema and bring the debate to a new level.
KEYWORDS: Cinema, Fritz Lang, H.G. Wells
Introdução
O roteiro do filme Metropolis (1927) do cineasta Fritz lang foi escrito a quatro mãos
por Lang e sua então esposa Thea Von Harbou. Esse roteiro serviu de base para que Thea Von
Harbou escrevesse o romance Metropolis, trata-se de uma adaptação do filme de Lang para a
literatura (esse processo é chamado de novelização). Em outras palavras, Metropolis segue o
caminho inverso da maioria dos casos, ou seja, ao invés de ser a adaptação de uma obra
literária para o cinema Metropolis nasceu primeiro como filme para depois renascer nas
páginas da literatura. Além disso, Metropolis por sua vez foi fortemente influenciado pelo
trabalho de escritores como H.G. Wells e Mary Shelley, mais especificamente pelos romances
When the Sleeper Wakes (1899) e Frankenstein (1818) este último escrito por Shelley e o
primeiro de autoria de Wells. Elementos dessas obras se encontram tanto na versão
cinematográfica de Metropolis quanto em sua versão literária. Metropolis é um caso exemplar
*
Mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:
[email protected]
de como literatura e cinema dialogam entre si de variadas formas. Neste artigo iremos analisar
as diferentes relações de intertextualidade que cinema e literatura estabelecem entre si a partir
da análise do filme e romance Metropolis e suas fontes inspiradoras.
1 O diálogo entre Metropolis e When the Sleeper Wakes
De Frankenstein o filme de Fritz Lang aproveita a idéia do cientista obcecado em dar
vida a objetos inanimados e de R.U.R, peça de teatro escrita Karel Capek em 1921, em que o
conceito do robô autômato a serviço do homem é apresentado pela primeira vez. Mas dentre
essas obras When The Sleeper Wakes merece uma atenção especia devidos a semelhança entre
este e o filme de Fritz Lang. When The Sleeper Wakes narra a estória de Graham, um homem
da Inglaterra Vitoriana que entra em um misterioso coma e acorda duzentos anos no futuro,
encontrando uma Londres superpovoada. Confuso Graham é levado aos dirigentes da cidade,
o “White Council”, e preso. Após alguns dias em cativeiro Graham é libertado por um grupo
revolucionário que pretende derrubar o “White Council”. Os revolucionários afirmam que
Graham é uma peça fundamental para o sucesso da revolução, mas não explicam as razões.
Porém, Graham percebe que seu despertar é visto pela população sofrida e explorada pelo
“White Council” como a chegada de um Messias, e que ele, de alguma forma que ainda não
compreende, representa um símbolo de esperança. Uma revolta se segue nas ruas de Londres,
o “White Council” é derrubado e Graham toma conhecimento das razões pelo qual ele é tão
importante. Durante o coma de Graham seu primo Warming investiu as economias de
Graham em ações bancárias bem-sucedidas, que graças aos juros acumulados durante seu
coma transformaram-se numa fortuna, tornando Graham o homem mais rico do mundo. A
administração desse dinheiro ficou a cargo de um “trust fund”1, que mais tarde se tornou o
“White Council” e investiu o dinheiro em diversos tipos de negócios, multiplicando a fortuna
de Graham e passando controlar o mundo econômico e político. O planeta se transformou
numa grande multinacional na qual Graham é o dono. Por esta razão o “White Council”
prende Graham quando ele desperta, pois ele é uma ameaça a hegemonia do “White Council”.
Graham encontra Ostrog, o homem por de trás da revolução. Ostrog explica que com a
revolução tudo iria mudar e as pessoas passariam a ter uma vida mais digna. Ostrog pede a
Graham apenas que ele assuma o império financeiro a qual tem direito e o deixe encarregado
1
O “trust fund” é uma espécie de entidade jurídica responsável pela administração dos bens de uma pessoa.
da parte administrativa. Graham assim o faz. Meses se passam e Graham começa a desfrutar
os luxos de seu império enquanto Ostrog cuida dos negócios. Tudo corre bem até Graham
conhecer Helen, a sobrinha de Ostrog, que conta a Graham que as massas que vivem nos
subterrâneos da cidade encaram condições cada vez mais precárias de vida e que Ostrog
nunca teve intenção de fazer melhorias, apenas tomar o poder para si. Graham decide ir aos
subterrâneos da cidade ver por si mesmo a situação das massas, ele se revolta com o que
presencia e descobre que uma nova revolta das massas contra Ostrog está prestes a ocorrer.
Graham confronta Ostrog e este afirma que já sabe da nova revolta e planeja sufocá-la de
forma violenta com o auxilio de uma tropa de soldados especialmente treinados para esse
objetivo. Graham entra num confronto físico com Ostrog enquanto a revolta explode em toda
cidade de Londres.
Metropolis de Fritz Lang, por sua vez, conta a estória de Freder, filho de Joh
Fredersen, um poderoso empresário que no ano de 2027 controla a cidade de Metropolis e
explora seus trabalhadores, que vivem de forma desumana nos subsolos da cidade. Um
encontro causal com Maria, uma espécie de líder espiritual dos operários, o leva a ir aos
subterrâneos e conhecer a dura realidade dos trabalhadores. Revoltado com o que vê Freder
confronta seu pai, que faz pouco caso as queixas do filho. Freder então começa a conspirar
contra seu pai com a ajuda de um ex-empregado de seu pai e de um operário dos subsolos da
cidade. Freder descobre que os operários esperam pela chegada de um Messias, profetizado
por Maria. Enquanto isso, Joh Fredersen vai ao encontro do cientista Rotwang, este criou um
robô, o primeiro da espécie, e a mando de Joh Fredersen Rotwang dá ao robô a forma de
Maria e a seqüestra, enquanto a impostora gera revolta e discórdia na população dos subsolos.
Mas o plano de Fredersen de usar a impostora como meio de manipular as massas dá errado,
pois Rotwang no passado amava uma mulher chamada Hel, que o abandonou para ficar com
Fredersen e morreu ao dar a luz a Freder. Rotwang culpa Fredersen pela morte de Hel e
ordena que a impostora incite os trabalhadores a destruir a casa das máquinas, inundando os
subterrâneos e deixando a cidade de Metropolis na escuridão.
Keith Williams comenta sobre as semelhanças temáticas entre Metropolis e When
The Sleeper Wakes:
Freder também é uma espécie de Graham, que acorda após gerações e presencia um
mundo de injustiças sociais. Freder descobre a verdade sobre os trabalhadores dos
subsolos, verdade na qual sua condição econômica privilegiada o deixara alienado
por muito tempo. Igual a Graham, Freder também é a chave para mudanças, porque
seu pai, que se assemelha a figura de Ostrog, é o mestre daquele mundo, e Freder
está frente a frente com a mesma escolha moral de Graham: aceitar o sistema ou
mudá-lo. Graham conhece Helen Wotton, que, assim como Maria, desperta sua
consciência social. Helen convence Graham a visitar o mundo do subsolo, assim
como Maria faz com Freder, disfarçando-o com o uniforme azul dos trabalhadores. 2
(2007, p. 76)
Além da semelhança em termos de enredo entre Metropolis e When The Sleeper
Wakes há as semelhanças no que diz respeito a descrição de espaços e lugares. Entre elas
podemos citar que tanto em Metropolis como When The Sleeper Wakes os operários usam
uniformes azuis e vivem em corredores estreitos nos subsolos repletos de máquinas
industriais, e nos altos dos prédios e coberturas vivem os privilegiados enquanto os menos
favorecidos vivem nos subsolos. A Londres de When The Sleeper Wakes é descrita como
aglomerado de prédios gigantescos e passarelas semelhantes aos mostrados em Metropolis.
Os personagens de When The Sleeper Wakes usam vídeo-fones para se comunicar uns com os
outros, e em Metropolis Fredersen aparece usando o mesmo dispositivo para se comunicar
com seu capataz Gor, entre outros pequenos detalhes.
Porém, é importante ressaltar que as semelhanças entre Metropolis e When The
Sleeper Wakes não se trata de um caso de mera coincidência. Primeiro porque o próprio H.G.
Wells percebeu a semelhança entre When The Sleeper Wakes e Metropolis ao assistir o filme
pela primeira vez em 1928. Wells não gostou de Metropolis e comenta:
Talvez a razão de não ter gostado do filme foi por que eu encontrei fragmentos de
meu próprio trabalho de trinta anos atrás, The Sleeper Awakes, vagando em
Metropolis3 (METROPOLIS WEB ARCHIVE, 2009).
Em segundo lugar – e este é um ponto importante – é que Thea Von Harbou, a autora
responsável tanto pelo roteiro de Metropolis como pela novelização do mesmo, teve contato
com a obra de Wells conforme afirma Elmer Schenkel.
Von Harbou estava familiarizada com livros de fantasia e ficção-científica, entre
eles estavam os trabalhos do autor alemão Karl May, especializado em aventuras
exóticas. [...] Uma influência muito importante, no entanto, foi o livro When The
2
No original: Lang´s Freder is also a kind of Sleeper, awakening to generations of economic injustice. He learns
the truth of the workers underground lot, about which is privileged conditioning made him oblivious. Like
Graham too, he is heir to the future, because his Ostrog-like father is it master, and faded with the same moral
choice: accept the system or change it. Graham meets Helen Wotton, who, like Lang´s Maria, awakens his social
conscience. As does Maria too. Helen inspires Graham to visit the underworld of the dispossessed third,
enslaved by the Labour department, disguised in their blue canvas uniform (tradução minha).
3
No original: Possibly I dislike this soupy whirlpool none the less because I find decaying fragments of my own
juvenile work of thirty years ago, The Sleeper Awakes, floating about in it (tradução minha).
Sleeper Wakes (1899), de H.G. Wells, que apareceu traduzido em 1906 com o título
Wenn der Schäefler envacht […]4 (2005, p. 96)
Agora que traçamos as linhas gerais no que diz respeito a relação entre Metropolis e
When The Sleeper Wakes iremos analisar mais detalhadamente ambos os textos. Dada as
semelhanças entre o filme de Fritz Lang e a obra de H.G. Wells Metropolis poderia a primeira
vista ser encarado como uma espécie de adaptação cinematográfica não-oficial de When the
Sleeper Wakes. Porém, a questão é infinitamente mais complexa, o filme de Fritz Lang é mais
do que uma simples cópia sem identidade própria do texto de H.G. Wells. Metropolis vai
além, pois aproveita apenas algumas idéias de sua fonte de inspiração, reinventando-as e
acrescentando novas idéias. Para entendermos melhor essa questão vamos ver qual a
diferença entre imitação e influência.
[...] o matiz que diferencia as duas noções é que a imitação refere-se a detalhes
materiais como a traços de composição, a episódios, a procedimentos, ou tropos bem
determinados, enquanto a influencia denuncia a presença de uma transmissão menos
material, mais difícil de se apontar, “cujo resultado é uma modificação da forma
mentis e da visão artística e ideológica do receptor”. A imitação é um contato
localizado e circunscrito, enquanto a influência é uma aquisição fundamental que
modifica a própria personalidade artística do escritor (NITRINI, 2000, p.127-128)
Conforme descrito nos parágrafos anteriores o filme possui muitas semelhanças com a
obra de H.G. Wells, mas também muitas diferenças, e são essas diferenças – somadas ao
trabalho de câmera de Fritz Lang, cenários espetaculares e citações a outros textos como
passagens bíblicas, por exemplo – que transformam e ampliam o sentido de Metropolis. A
estória contada em Metropolis não é exatamente a mesma de When The Sleeper Wakes. Ou
seja, os elementos, os “traços de composição” de When The Sleeper Wakes encontram-se
diluídos e transformados em Metropolis, não são tão visíveis e fáceis de identificar.
Ao ato de criação opõe-se o do plágio, cujo sistema falho de digestão desencadeia
um mimetismo extrínseco, deixando visíveis os pedaços das “substâncias dos
outros”. A originalidade é assegurada, também, pela escolha feita pelo autor exposto
a uma influência. A maior originalidade é garantida quando uma obra age sobre o
escritor, não por todas as suas qualidades, mas apenas por algumas delas. (NITRINI,
2000, p.135)
Uma prova sintomática de que os traços When The Sleeper Wakes encontram-se
“digeridos” de uma forma que as qualidades próprias do filme de Fritz Lang se sobressaem
4
No original: Von Harbou was weaned on fantasy and Science fiction books, among them the works of the
German author of exotic adventures, Karl May. […] A very important influence, however, was H.G. Wells
When The Sleeper Wakes (1899), which had appear in translation as Wenn der Schäefler envacht in 1906 […]
(tradução minha).
perante os elementos tomados de empréstimo do romance de H.G. Wells é que o próprio H.G.
Wells se limitou a dizer que viu alguns fragmentos de sua obra em Metropolis. Ou seja, When
The Sleeper Wakes influenciou apenas alguns aspectos da elaboração do filme Metropolis,
mas não influenciou o processo de criação artística da obra como um todo. As influencias e
citações encontradas em Metropolis são extensas e variadas.
Metropolis é uma colagem feita a partir de componentes de diversas origens.
Fragmentos de mitos, contos de fadas, alusões bíblicas, empréstimos das visões
futuriscas da ficção popular da época, elementos do cinema expressionista alemão –
tudo foi combinado em Metropolis em um enredo que provocou já na sua estréia.5
(PFLAUM, 2002, p. 118)
Em última instância, Metropolis é um amalgama de diversas fontes e citações. E é essa
miscelânea de fontes que produz uma oba de valor artístico ímpar.
2. Metropolis: o filme e a novelização
O filme Metropolis é um marco dos efeitos visuais do cinema. Um dos aspectos que
mais chama a atenção na novelização de Thea Von Harbou é que na versão literária do filme
encontramos muitas passagens que inexistem no filme Metropolis. Muitas dessas diferenças
entre livro e filme se devem a maior liberdade criativa que a palavra escrita oferece em
relação ao cinema, não no sentido de uma suposta superioridade da literatura perante o
cinema como forma de manifestação artística, mas no sentido que de que o escritor – ao
exercitar sua imaginação por meio da palavra escrita – não está sujeito aos problemas técnicos
e logísticos de um cineasta ou roteirista, pois este, para expor na tela de cinema suas idéias
depende dos recursos e possibilidades que a mídia cinematográfica oferece. Para demonstrar
nosso argumento faremos uma comparação entre trechos do livro e cenas do filme. Um dos
personagens mais marcantes é a ginóide6 criado pelo cientista Rotwang a imagem e
semelhança de Maria. Vejamos como Thea von Harbou descreve a criatura em seu livro:
O ser era, sem dúvida, uma mulher. No vestido macio havia um corpo, como o
corpo de uma bétula jovem, balançando os pés. Mas, embora fosse uma mulher, não
era humana. O corpo parecia feito de cristal, e através dele se via ossos prateados. O
frio que vinha da pele envidraçada não possuía uma gota de sangue. O ser mantinha
5
No original: Metropolis was itself a collage made up of components from highly divers origins. Fragments
from myths, fairytale motifs, Biblical allusions, borrowings from the futuristic visions in the popular fiction of
the day, elements from the cinema of German Expressionism – were all combined here to a story that already
provoked the critics when it was premiered (tradução minha).
6
Termo usado para designar robôs com traços femininos.
suas belas pressionadas contra seu peito, que estava parado, com um gesto de
determinação, quase de desafio7 (Von Harbou, 1963, p. 52).
A criatura descrita por Thea Von Harbou difere drasticamente de sua versão
cinematográfica como podemos ver pelo trecho acima extraído do livro. Criar um ser sem
rosto, feito de cristal transparente e ossos prateados era algo que dificilmente poderia ser
realizado com os recursos técnicos e efeitos especiais da época. Como criar tal ser sem rosto
no cinema? E ainda mostrá-lo se movimentando e contracenando com atores de verdade
enquanto os espectadores enxergam seus ossos prateados sob uma camada de cristal
transparente? Diante dessas dificuldades a ginóide da versão cinematográfica de Metropolis
foi representada nas telas de cinema de forma completamente diferente.
Portanto, no lugar de uma criatura sem rosto, de ossos prateados e feitos de cristal
transparente temos uma figura metálica dourada de rosto e formas femininas bem definidas.
Trata-se de uma espécie de armadura de plástico feita a partir do molde do corpo da atriz
Brigitte Helm conforme mostram as fotos abaixo. Tanto a ginóide quanto a personagem Maria
são interpretadas pela atriz.
Figura 1
Fonte: http://www.jeffbots.com/maria-large.jpg
7
Figura 2
Fonte: http://io9.com/maria/
No original: The being was, indubitably, a woman. In the soft garment which it wore stood a body, like the
body of a young birch tree, swaying on feet set fast together. But, although it was a woman, it was not human.
The body seemed as though made of crystal, through which the bones shone silver. Cold streamed from the
glazen skin which did not contain a drop of blood. The being held its beautiful hands pressed against its breast,
Outro exemplo trata-se de uma cena inexistente no filme. A ação ocorre dentro de um
avião e envolve o personagem Josaphat, um dos amigos do protagonista Freder.
“Eu queria voltar. Eu pedi ao piloto. Mas ele se recusou. Ele queria me lever contra
minha vontade cada vez mais longe de Metropolis. Ele era obstinado de uma forma
que um homem consegue apenas quando Slim está atrás dele. Eu implorei e o
ameacei. Mas de nada adiantou. Então, usando uma de suas próprias ferramentas eu
esmaguei seu crânio.” Os dedos de Freder, que reposusavam no braço de Josaphat, o
apertaram, mas logo soltaram seu braço. “Então eu pulei do avião, eu estava tão
longe de Metropolis que a garota que me encontrou no campo não conhecia a grande
cidade de Metropolis nem de nome”8(Von Harbou, 1963, p. 52).
Esta passagem é interessante por dois motivos. O primeiro motivo é porque tratase de uma passagem que, embora uma suposta transposição dessa passagem para o cinema
envolvesse certas dificuldades técnicas, não é nada que estivesse além da capacidade
tecnológica da época. Os recursos cinematográficos da época permitiam simular a cena de um
homem pulando de um avião sem maiores problemas, porém não é difícil imaginar as
complicações que filmar tal cena acarretaria para uma produção como Metropolis, que já
enfrentava todo tipo de desafio. O segundo motivo, e o mais importante, é que essa passagem
faz parte de uma subtrama que no filme é desenvolvida apenas an passant, onde um
personagem secundário, Josaphat, na novelização de Thea von Harbou ganha muito mais
destaque e importância. Tendo essas observações em mente concluímos que a novelização de
Metropolis, além de apresentar personagens e situações que não puderam ser representada no
cinema devido a restrições técnicas e tecnológicas, explora também outros aspectos do roteiro
cinematográfico, aprofundando-os e os ampliando.
Sendo assim, Metropolis mostra que, se por um lado restrições técnicas e
tecnológicas impedem a realização de certas idéias e concepções contidas no roteiro
cinematográfico (ou conforme foram primeiramente idealizadas pelo cineasta e/ou roteirista),
por outro lado Metropolis mostra que, no caso de novelizações de filmes, o escritor tem total
liberdade artística de imaginar o que quiser sem se preocupar com limitações de qualquer
tipo, sejam estas técnicas, financeiras, etc., que são comuns no mundo do cinema. Mas visto
por outro ângulo o caso de Metropolis também mostra que a falta de recursos pode funcionar
which was motionless, with a gesture of determination, almost of defiance (tradução minha).
8
No original: “I wanted to turn back. I asked the pilot. He wouldn't. He wanted to carry me away by force,
farther and farther from Metropolis. He was as obstinate as only a man can be when he knows Slim's will to be
behind him. I begged and I threatened. But nothing was of any use. So then, with one of his own tools, I smashed
in his skull." Freder's fingers, which were still resting on Josaphat's arm, tightened their hold a little; but they lay
still again immediately. [...] "Then I jumped out, and I was so far away from Metropolis that a young girl who
picked me up in the field did not know the great Metropolis even by name” (tradução minha).
a favor de um filme. Dito de outra forma, a impossibilidade de representar a ginóide como
uma criatura de cristal e sem rosto levou Fritz Lang e sua equipe a buscar uma outra
alternativa que terminou revelando-se tão surpreendente quanto a idéia original. A visão da
criatura dourada com as feições da atriz Brigitte Helm é inesquecível e impactante, e filme
traz uma série de cenas marcantes envolvendo a ginóide. A ginóide do filme Metropolis
tornou-se uma imagem icônica do cinema mundial.
Conclusão
A relação entre cinema e literatura é uma via de mão dupla. Se por um lado o cinema
busca na literatura obras que possam ser transformadas em filmes o contrário também ocorre,
ou seja, filmes também são adaptados para a literatura.
Ana Lúcia de Almeida Soutto Mayor, ao analisar a questão da transposição de textos
literários para a mídia cinematográfica se utiliza do conceito de “vazio”, proposto
por Wolfgang Iser e surgido no âmbito dos estudos da Estética da Recepção, para
abordar o tema. O conceito de “vazio” seria o seguinte: o “vazio” de um texto são
“espaços latentes de significação que devem ser preenchidos pelo leitor no ato de
leitura” (2006, p.133). Sendo assim, o leitor deve completar esses vazios com sua
imaginação. Mayor se apropria desse conceito e afirma que ele pode ser pensado
também em termos de adaptações cinematográficas, ou seja, que a transposição do
texto literário para o cinema seria um ato, por parte do realizador fílmico, de leitura.
Dessa forma, o realizador fílmico vê nos “vazios” do texto literário espaços que
podem ser preenchidos pela sua imaginação, com o auxílio da mídia cinematográfica
(DUTRA, 2010, p. 133).
A proposição de Ana Lúcia de Almeida Soutto Mayor de que o realizador fílmico se
utiliza dos “vazios” do texto literário como um meio de ampliar ou reinventar o sentido de um
texto literário pelo viés cinematográfico pode ser pensado de forma inversa, ou seja, o autor
que se propõe a fazer uma novelização de um filme também estaria se utilizando dos “vazios”
do texto cinematográfico para ampliar ou reinventar certos aspectos da obra fílmica através da
literatura.
Embora Metropolis seja um precursor das novelizações nas últimas décadas a
adapatação de filmes para a literatura tem crescido consideravelmente. Arthur C. Clarke
escreveu a novelização do filme 2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968) a partir do roteiro
que o autor escreveu junto com o cineasta Stanley Kubrick. Filmes como Fuga de Nova
Iorque (1982), Alien – o 8° Passageiro (1979) e Viagem Fantástica (1966) ganharam
novelizações pelas mãos de autores como Mike McQuay, Alan Dean Foster e Isaac Asimov
respectivamente. Alguns como Alan Dean Foster fizeram carreira se especializando em
novelizações de filmes, no caso de Foster ele também adaptou Star Wars (1977) e episódios
do seriado Jornada nas Estrelas para a literatura. Os exemplos citados possuem dois pontos
em comum: o primeiro ponto é que as novelizações, na falta de uma palavra melhor,
“expandem” certos conceitos, idéias, situações e personagens que, por uma razão ou outra,
não foram devidamente desenvolvidos na versão cinematográfica. O segundo ponto é que
todos os exemplos citados pertencem ao gênero ficção-científica. Embora existam
novelizações de filmes não pertencentes ao gênero ficção-científica há uma predominância do
gênero. A razão é que, no que diz respeito a ficção-científica no cinema, a palavra escrita dá
ao autor uma liberdade de criação que a câmera e demais recursos cinematográficos nem
sempre possibilitam.
Paralelamente cinema e literatura se relacionam também pela via da inspiração,
homenagem e alusão. Assim como o filme Metropolis se inspirou na obra de H.G. Wells
também o clássico do cinema mudo Nosferatu (1922) faz diversas alusões ao romance
Drácula (1897) 9 de Bram Stoker. A trilogia de filmes Matrix (1999-2003) por sua vez toma
de empréstimo muito da obra Neuromancer (1984), de William Gibson.
A série Matrix expande, reduz, homenageia ou simplesmente pilha Neuromancer?
Essa é uma discussão infindável. Todas as evidências estão (foram plantadas?) lá.
Das chamadas Zion aos filosóficos e “desplugados” rastafaris (Tank e Dozer em
Matrix, Maelcum e Aerol em Neuromancer) [...] Digamos que Neuromancer e
Matrix ( principalmente a partir da sua segunda parte) se parecem com a versão
adulta e juvenil de uma mesma história. Ou que Matrix é o esboço da adaptação de
Neuromancer para o cinema, que vem sendo há anos e sempre adiada (ANTUNES,
2003, p.7).
Concluindo, muito pouco se tem pesquisado sobre as outras formas de relação entre
literatura e cinema além do tradicional enfoque de analisar o texto literário e o filme que
nasceu como adaptação cinematográfica do primeiro. No caso das novelizações talvez a razão
que as leve a não receber a devida atenção seja por que o filme faça sombra a ela, relegando
as novelizações a categoria de subproduto do filme. Porém, as novelizações, como foi visto
pela análise do romance de Thea Von Harbou, demonstram que o estudo de novelizações tem
seu próprio valor e que muito tem a contribuir as pesquisas referentes as relações entre
literatura e cinema.
9
O diretor F. W. Murnau não conseguiu os direitos autorais com a viúva de Bram Stoker, e por isso produziu
uma versão inspirada no texto de Stoker.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Alex. Prefácio à edição brasileira. In: GIBSON, William. Neuromancer. São
Paulo: Aleph, 2003.
Capek, Karel. R.U.R.. Disponível em: http://ebooks.adelaide.edu.au/c/capek/karel/rur/ acesso
21 de abril de 2011
DUTRA, Daniel Iturvides. Literatura de ficção-científica no cinema: a máquina do tempo –
do livro ao filme. Pelotas/RS: Editora UFPEL, 2010.
LANG, Fritz. Metropolis. Continental. São Paulo: CONTINENTAL. DVD – NTSC. (223
min.)
NITRINI, Sandra M. Literatura comparada. São Paulo: EDUSP, 1997.
PFLAUM, Hans Günther. German silent movie classics. Wiesbaden, Alemanha: FriedrichWilhelm-Murnau-Stiftung, 2002.
SCHENKEL, Elmer. White Elefants and Black Machines: H.G. Wells and German Culture.
In: The Reception of HG Wells in Europe. London: John Partington Books, 2005.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. London: Penguin Books Ltd, 1994.
VON HARBOU, Thea. Metropolis. New York: Ace Books, 1963.
WILLIAMS, Keith. H.G. Wells, modernity and the movies. Liverpool University Press, 2007.
WELLS, H. G. Metropolis. Disponível em:
<http://web.archive.org/web/20020613114118/http://www.uow.edu.au/~morgan/Metroh.html
>. Acesso em: 30 mar.2009
WELLS, H. G. When The Sleeper Wakes. London: Penguin Classics. 1984.

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