Um Poeta no Paraíso - Satúrnia-Letras e Estudos Luso

Transcrição

Um Poeta no Paraíso - Satúrnia-Letras e Estudos Luso
Título:
Um Poeta no Paraíso
Autor:
Manuel Carvalho
Éditions Luso
ISBN 2-9804056-0-4
Dêpot Legal:
Bibliothèque National du Québec-1994
Bibliothèque National du Canadá-1994
Reservados todos os direitos de edição e tradução
2
MANUEL CARVALHO
Um Poeta
No Paraíso
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Do autor:
Saga - Editora Peregrinação-Cacilhas - 1989
Um Poeta no Paraíso - Éditions Luso-Montreal - 1994
Parc du Portugal - Éditions Luso-Montreal - 1997
À beira-Main - Éditions Luso-Montreal – 2003
O homem que falava com as flores – Éditions Saturnia - 2010
Manuel Carvalho nasceu em Cicouro, Miranda do
Douro.
Colares e a Batalha foram lugares que o viram
crescer.
Viveu grande parte da juventude nos Outeiros da
Gândara dos Olivais, nos arredores de Leiria.
Fez a guerra colonial em Angola. Depois, correu
muitas terras até chegar a Montreal, no Canadá, em 1980.
Tem colaboração literária espalhada por diversos
jornais e revistas em Portugal e na diáspora.
É o coordenador da revista on-line "Satúrnia - Letras
e Estudos Luso-Canadianos.
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À São e à Paula,
companheiras na busca do paraíso
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Quando partires para Ítaca, desejo que o caminho seja longo,
rico em peripécias e em experiências (...). Guarda sem cessar Ítaca
presente no teu espírito. O teu escopo final é aí chegares, mas não
encurtes a viagem: mais vale que ela dure longos anos e alcances enfim a
tua ilha nos dias da velhice, rico de tudo o que ganhaste no caminho (...).
C. Cavafy, “Ítaca”
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CHEGADA
O entardecer tropical espargia tons de púrpura pelo
horizonte, já longe a fúria da tempestade.
Uma das mãos bem alta, erguendo firmemente o
manuscrito dos Lusíadas, Luís Vaz de Camões olhou ao seu
redor.
Da nau nem sombras, deglutida pelos vagalhões
assanhados. Aqui e ali, arcas esventradas, pejadas de sedas,
marfins, ouros, as mais inimagináveis riquezas das Índias,
baloiçavam placidamente no dorso das águas finalmente
amansadas.
Talvez cinquenta braçadas para a sua esquerda,
lobrigou o vulto de dois náufragos que espadanavam
atabalhoadamente as águas. Logo nadou vigorosamente até
eles.
Qual não foi o seu espanto e alegria ao reconhecer
naquelas duas criaturas os seus escravos, o fiel Jau e a
adorada Bárbara.
Depois de efusivas manifestações de júbilo, e bem
compenetrados de que eram os únicos sobreviventes do
naufrágio, Luís Vaz de Camões ergueu o olhar para o céu.
- Agora, só nos resta nadar até encontrar terra firme.
Se Deus nos poupou nesta terrível prova, com certeza, nos
seus insondáveis desígnios, nos reserva um destino favorável
e proveitoso.
Acalentados por tão fervorosas palavras, todos
recobraram ânimo e puseram-se a nadar ao encontro do sol
que começava, então, a beijar a linha do horizonte em
chamas.
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*
Após incontáveis dias e noites, as águas arrefeceram
bruscamente.
Os pobres náufragos, enregelados e exangues, já se
sentiam perdidos quando Jau, na crista duma onda, avistou
urna mole escura que subitamente pincelou de esperança a
imensidão do mar.
- Terra! - balbuciou, meio incrédulo. E logo, já certo:
- Estamos salvos.
Era verdade. Num último esforço, iludiram a força da
rebentação e, mal pisaram a magra praia de seixos que se
debatia, aflita, entre o mar e a escarpa abrupta, ajoelharam
numa prece reconhecida.
- E o princípio duma vida nova - profetizou Luís Vaz
de Camões. - Estas são as portas dum mundo novo que nos
espera de braços abertos.
Depois de muito caminharem e de esporadicamente
se terem cruzado com gentios que falavam uma língua
arrevesada, aparentada com o gaulês, depararam com uma
cidade aninhada ao redor duma montanha verdejante e
envolvida pelo abraço de dois rios caudalosos.
- Louvado seja Deus Nosso Senhor - alegrou-se Luís
Vaz de Camões, ao avistar uma enorme cruz que coroava a
montanha -, estamos em terra de cristãos.
Em breve souberam que a cidade se chamava
Montreal, próspera colónia de cristandade nas Índias
Ocidentais, paraíso sonhado por levas e levas de emigrantes
visionários.
*
Nos primeiros tempos, para proverem à sua
subsistência, dirigiram-se a uma pequena joalharia na rua St10
Catherine, encravada entre um bar de dançarinas nuas e um
banco, a fim de venderem urna belíssima safira que Jau tinha
providencialmente repescado do naufrágio.
- E isso também são jóias? - perguntou, cobiçoso, o
esquelético judeu que os atendeu, por detrás do balcão
surrado, apontando o volumoso manuscrito que Luís Vaz de
Camões sobraçava.
- E a mais preciosa de todas as jóias - declarou Luís
Vaz de Camões. - É a epopeia da ditosa pátria amada.
Pouco sensibilizado por tão arrebatadas flores de
retórica, o homenzinho tornou a concentrar a sua atenção na
safira que faiscava sobre o balcão.
- Gostaria de vos ser agradável mas a verdade é que
esta safira é de muita má qualidade - disse, franzindo o nariz
rapace.
- Como assim? - indignou-se Luís Vaz de Camões. Esta pedra é duma pureza única.
Mouco às objecções, o homenzinho prosseguiu
imperturbável, direito ao seu objectivo:
- Hoje em dia, as safiras são pedras muito
desvalorizadas e pouco procuradas. Bom, para não dizer que
não vos ofereço nada, dou-vos trezentos dólares.
Após muito regatear, saíram da joalharia com
trezentos e vinte dólares no bolso.
- Agiota miserável - espumava Luís Vaz de Camões.
Mas logo a indignação se desvaneceu. Era Maio. E
havia um céu muito azul. E folhas e relva verdes por todo o
lado. E gente nova de carnes frescas, em oferenda ao sol,
pelos altares dos jardins. E um perceptível jorrar de seiva a
vibrar no ar.
Luís Vaz de Camões desabotoou o jaquetão. Jau
arregaçou as mangas da camisa. Bárbara ofereceu os ombros
redondos e acobreados ao beijo do sol.
- Tenho a certeza que vamos ser muito felizes nesta
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terra - prognosticou Luís Vaz de Camões.
Voltaram à esquerda e começaram a subir, sem
pressas, a St-Laurent. Cruzavam-nos gentes das mais
desvairadas raças: negros retintos do equador; nórdicos de
olhos azuis como o mar e cabelos de linho; indianos de
cabelos dum lustre quase azul e olhos de carvão; árabes de
olhos grandes e apaixonados; paquistaneses de turbante e ar
guerreiro, chineses discretos como sombras.
Até que, de chofre, o inevitável aconteceu. Chegoulhes aos ouvidos o doce linguarejar lusitano. Duas
quarentonas, de grossos fios de ouro ao pescoço, deitavam
altas contas à vida.
- Por este caminho, mais vale regressar a Portugal lamuriava-se a mais alta, arqueando os lábios grossos
pincelados por nutrido buço. - O meu homem já está na
chômage vai para três meses e, para compor a festa, agora o
bossa, lá na fábrica, quer-nos passar a ganhar a peça. É uma
miséria.
- Já lá vai o tempo em que o Canadá era o Canadá concordava a outra, com dois grandes olhos azuis e
pestanudos plantados na cara redonda e rosada de
camponesa minhota. - Quando eu vim para o Canadá, há dez
anos, enchia-se a frisa, de came, com trinta dolas. Agora
nem com trezentas.
- Mas olhe que em Portugal a vida também está pela
hora da morte. A minha irmã veio de lá esta semana e diz
que aquilo é um horror, as dolas voam das algibeiras que é
um disparate.
- Mas os cafés e os restaurantes estão sempre cheios.
Não sei onde é que aquela gente vai roubar o dinheiro.
Quando lá vamos de férias, nas praias já nem há espaço para
estender urna toalha. Eu já disse ao meu homem, se tudo
correr bem, e se Deus Nosso Senhor nos ajudar, pró ano
vamos mas é a Florida. Gasta-se metade das dolas e goza-se
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muito mais, as águas quentes que é um regalo.
- Por favor, minhas senhoras - interrompeu-as Luís
Vaz de Camões.
As mulheres suspenderam a tagarelice, meio
desconfiadas.
- As senhoras podem-nos, por favor, informar onde
poderemos alugar um apartamento? - continuou Luís Vaz de
Camões. - Chegámos há pouco a este país e ainda não temos
um tecto onde nos abrigar.
- Olhe, por acaso veio parar a boa porta - disse a
minhota, com um sorriso aberto. - Eu sou concierge dum
prédio, ali na St-Dominique com a St-Urbain, e, mesmo
ontem, vagou um três-e-meio que deve estar a calhar para os
senhores. Essa senhora é sua esposa?
Luís Vaz de Camões olhou enleado para Bárbara.
- Isso não tem importância - riu a mulher -, aqui uma
pessoa vê de tudo, já não estranha. Venham comigo que o
prédio é já ali adiante. O meu nome é Maria da Graça. - E
voltando-se para a amiga: - Logo à noite, vai ao baile do
Benfica? Apareça, agora que o meu marido é da direcção,
estamos sempre lá caídos.
*
Depois de muita argumentação e dum rápido
telefonema ao dono do prédio, a senhora Maria da Graça lá
concordou em receber duzentos dólares como primeira
entrada da renda mensal de quatrocentos dólares, com
aquecimento e luz incluídos. E bom coração como revelou
ter, ainda lhes emprestou uma mesa de cozinha, três cadeiras
e dois colchões que tinha arrumados na cave.
- Enquanto não arranjarem emprego e puderem
comprar mobílias ao vosso gosto, podem muito bem dormir
nesses colchões. Para mais agora que o verão vem aí,
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também não precisam de muita roupa.
- Nunca lhe poderemos pagar este favor - agradeceu
Luís Vaz de Camões.
- Estamos neste mundo para nos ajudar uns aos
outros. Quando arranjarem emprego vão ver como tudo
muda.
Terminado o novelo da conversa, a mulher lá partiu,
deixando-os a sós na solidão do apartamento meio
escalavrado e vazio onde um fogão e um frigorífico
mutilados eram o único luxo visível.
- Um tecto já nós temos - sorriu Luís Vaz de Camões
-, o resto virá a seu tempo.
- Eu não preciso de mais nada para ser feliz - falou,
pela primeira vez após o naufrágio, Bárbara.
Luís Vaz de Camões aflorou-lhe os cabelos com um
beijo enternecido.
Discreto, Jau voltou costas às efusões amorosas dos
companheiros e foi esborrachar o nariz contra a vidraça da
janela donde se avistava um pedaço de rua onde os carros
passavam sem parar. Subiu a rua com os olhos e lá estava,
mais uma vez, omnipresente, a montanha e ainda, sempre,
no topo, etérea, a cruz. Um eflúvio carregado de sortilégio e
premonição envolveu-o, num frémito.
“Uma vida nova começou hoje”, atravessou-lhe o
espírito. Eram as primeiras febres do american dream.
Sobre um dos colchões, Bárbara gemia docemente.
*
Ainda nessa noite, o senhor José, o marido da
porteira, bateu-lhes à porta para oferecer os seus préstimos.
Era um homem à beira dos cinquenta anos, de olhos
tristes e cara roída pelas saudades do torrão natal. No
cocuruto da cabeça, um punhado de cabelos cor de palha
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lutava contra a razia dos anos.
Se vocês não estão legalizados é uma porra sintetizou, bem à portuguesa, os seus pensamentos. - Com os
abusos que para aí têm havido, as leis da imigração estão
muito severas. Mas como é que vocês conseguiram cá
entrar?
- A nado - respondeu Luís Vaz de Camões.
- A nado?! - Mas, como homem discreto que era,
deixou por aqui a sua estupefacção. Além disso, já vira casos
bem mais estranhos nos vinte e tal anos que levava de
andarilho por esse mundo fora, primeiro na Franca e depois
no Canadá. - Olhem, se aceitam o meu conselho, digam-se
refugiados políticos ou religiosos. Aqui há uns tempos,
houve para aí muito português que conseguiu entrar como
refugiado religioso. Enquanto averiguam e não, folgam as
costas.
Luís Vaz de Camões soltou uma gargalhada. A
primeira desde há muito tempo.
- Posso-me declarar judeu perseguido pela inquisição.
- Olhe que não é má ideia - concordou o homem. - E
se não houver provas em contrário...! - Mas logo com o
desejo de ajudar a empurrá-lo: - Entretanto, se quiserem,
posso falar aí a um rapaz grego meu amigo que tem um
restaurante e aqui o seu amigo pode ir trabalhar para lá, a
lavar pratos. Não é dinheiro por aí além mas é debaixo da
mesa.
- Debaixo da mesa? - interessou-se Jau.
- Por debaixo da mesa é uma forma de dizer que vai
trabalhar sem estar legalizado e sem pagar impostos.
- Se algum de nós for trabalhar, serei eu - cortou Luís
Vaz de Camões.
O tom de voz glacial gelou as boas intenções do
homem.
- Os senhores é que decidem das vossas vidas mas
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olhem que, nos tempos que correm, não é fácil arranjar
emprego. Bom, devem estar mortos de cansaço e a precisar
duma boa noite de repouso. Eu sei como são as viagens, com
essa coisa diabólica dos fusos horários que nos
destrambelham o organismo todo.
*
Dias depois, graças ao empenho duma esforçada
funcionária do Centro Português, que o senhor José lhe
apresentara, Luís Vaz de Camões conseguiu uma entrevista
com um editor.
Com o manuscrito dos Lusíadas debaixo do braço,
apanhou o autocarro 55 que o deixou nas imediações do
Complex Desjardins onde estava instalado o escritório do
editor.
Bem instruído pela funcionária do Centro, não lhe foi
difícil localizar a torre sul e apanhar o elevador que o
despejou no vigésimo andar, mesmo em frente da suite 2015
onde uma deslumbrante recepcionista, rodeada de aparelhos
electrónicos por todos os lados, o acolheu com um sorriso
que o fez estremecer.
- O senhor director vai recebê-lo imediatamente.
O director era um homem jovial e jovem, na casa dos
trinta, com uns olhos azuis muito vivos no rosto bronzeado
por frequentes férias nas Caraíbas.
- O meu nome é Denis Crosby. Chame-me Denis.
Sente-se, por favor - convidou com um gesto largo, depois
dum forte aperto de mão.
Luís Vaz de Camões afundou-se na cadeira
confortável, impressionado pela decoração requintada do
gabinete. Pela janela panorâmica, rasgada a toda a largura da
parede, avistava-se o rio St-Laurent e a ponte Jacques
Cartier.
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- A Joana Cruz, que, por sinal, é uma grande amiga
minha, falou-me do seu livro em termos muito elogiosos disse Denis, instalando-se por sua vez na cadeira de coiro de
espaldar alto e entrelaçando as pernas em cima da secretária.
- A minha editora tem como principal preocupação a
descoberta e o lançamento de novos valores literários. Agora
já deve compreender qual a razão por que lhe marquei, com
tanta urgência, esta entrevista. Traz consigo o produto?
Luís Vaz de Camões apresentou-lhe o manuscrito que
o homem se pôs a folhear, de imediato, com dedos ágeis.
Assim decorreu uma boa meia hora que Luís Vaz de
Camões aproveitou para se regalar com a panorâmica
deslumbrante que desfrutava.
As ruas da cidade, vistas lá de cima, traçadas a régua
e esquadro, largas e tranquilas, bordejadas por renques de
árvores de copas bojudas e verdes, onde os automóveis
deslizavam corno brinquedos; o rio St-Laurent, a essa hora
do dia, com o sol já alto, era um espelho ofuscante onde se
miravam bandos de gaivotas; um grande cargueiro, sólido
como uma fortaleza, passava, nesse instante, sob o abraço
metálico da ponte Jacques Cartier.
- Bom, meu amigo - interrompeu-lhe a prostração
Denis, tirando os pés de cima da mesa e folheando o
manuscrito como um acordeão -, isto é uma obra-prima. Esperou que o sorriso lisonjeado, que Luís Vaz de Camões
não pôde reprimir, se desvanecesse. - Mas não quero
alimentar-lhe falsas esperanças. Isto, my dear, não se vende.
- Isto não é para vender - indignou-se Luís Vaz de
Camões.
- Desça à terra, ó poeta - prosseguiu Denis, já
circunspecto. - Os livros, actualmente, são um artigo de
consumo como qualquer outro produto. Obedecem às
mesmíssimas leis do mercado que um carro ou um
frigorífico. - Pousou o manuscrito na secretária e, apoiando
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as mãos no tampo da mesma, soergueu-se da cadeira. - Para
lhe falar francamente, estas histórias de heróis e deuses já
não interessam ninguém.
Tornou a refastelar-se na cadeira e cerrou os olhos
por um instante. Quando os reabriu, havia urna luzinha
metálica a brilhar lá no fundo.
- Vou-lhe fazer uma proposta séria. Aí desse episódio
da ilha dos amores é que se poderá extrair um filme erótico
com relativo interesse. Se o poeta estiver de acordo, conheço
um realizador que talvez esteja interessado.
Apopléctico, Luís Vaz de Camões arrebatou o
manuscrito das garras do editor e ao passar, como um
vendaval, nem reparou no olhar lascivo que a recepcionista
lhe lançou.
*
Bárbara e Jau esperavam-no, ansiosos.
- Então, senhor?
- Correu bem?
O ar amarfanhado de Luís Vaz de Camões dispensou
respostas peníveis.
Bárbara encheu uma chávena de café e veio-lhe
acariciar os cabelos.
- Não se desencoraje, senhor. Beba este café
quentinho, repare como cheira bem. Verá como tudo se
arranjará.
Jau abriu a janela da cozinha.
- Está calor aqui dentro - foi a única coisa que achou
para dizer. E deixou-se ficar atento ao formigar humano da
rua. A cruz sempre lá no alto.
Luís Vaz de Camões acabou de beber o café e
Bárbara sentou-se-lhe nos joelhos, apertando-lhe o rosto
contra o calor dos seios.
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- Depois do almoço, vou outra vez ao Centro
Português falar com a Joana Cruz, ela melhor do que
ninguém saberá aconselhar-me.
- Não pode ficar para outro dia? - murmurou-lhe, ao
ouvido, Bárbara.
- Não há tempo a perder, se não tivermos dinheiro
para pagar a renda da casa, vamos parar ao olho da rua.
*
Joana Cruz recebeu-o com evidente alegria.
- Conte lá como decorreu essa entrevista.
À medida que Luís Vaz de Camões ia entrando em
detalhes, o rosto da rapariga tingia-se de indignação.
- O safado! São todos o mesmo, só pensam em encher
os bolsos de dinheiro. Pois olhe que esse enganou-me bem
enganada, sempre acreditei que era uma pessoa com
princípios. Lá lata tem ele, sempre com a boca cheia de
palavras bonitas, a falar no sacerdócio da cultura, do amor às
artes. - Mas ao ver o ar atormentado de Luís Vaz de Camões:
- Ora, esqueça esta experiência e encaremos as coisas com
coragem. Não é por morrer uma andorinha que acaba a
primavera. Não é assim que se diz em Portugal? Vamos dar
uma volta por aí, pela montanha, sempre poderemos falar
com mais à-vontade. Espere aí que vou avisar as colegas.
*
A montanha rebentava de vida. Pares de namorados
beijavam-se sobre a relva. Grupos de velhos, sentados nos
bancos que bordejavam a álea principal do parque, sorviam,
sem pressas, o ar tépido da tarde. Libertos das trelas, cães
cabriolavam, como loucos, por toda a parte. Os baloiços
estavam pejados de crianças. Magotes de ciclistas
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disputavam-se as pistas apontadas ao coração da montanha.
Lá mais para cima, junto à estátua, rufavam os tambores
dum batuque sem fim.
- Está um bonito dia - suspirou Joana, semicerrando
os olhos e sorvendo o ar puro, pela boca entreaberta.
Pela primeira vez, Luís Vaz de Camões reparou na
beleza da rapariga: cabelos castanhos dum tom quente, os
olhos grandes e verdes, o rosto oval dum moreno nacarado.
- Está há muito tempo nestas terras?
- Vim para cá muito nova, com cinco anos. Os meus
pais eram exilados políticos, já lá vão mais de vinte anos.
- E os seus pais ainda cá vivem?
Urna nuvem de mágoa toldou o rosto da jovem.
- A minha mãe morreu há dez anos, com um cancro
do seio. Depois do 25 de Abril, os meus pais andavam
eufóricos, já tinham tudo preparado para regressarmos.
Pouco depois, a doença declarou-se e destruiu todos os
sonhos.
- Desculpe se involuntariamente lhe toquei num
assunto tão penoso.
- Não tem importância. Quanto ao meu pai, depois do
desaparecimento da minha mãe, já não quis regressar a
Portugal. Vive para aí, muito triste e solitário,
completamente refugiado nos seus livros. É bibliotecário na
Biblioteca Nacional do Québec. Eu sou o único raio de luz
da sua vida.
Continuaram a passear em silêncio, a dar tempo a que
as recordações se diluíssem. - Estamos para aqui a falar de
mim, quando deveríamos era falar dos vossos problemas que
são bem mais graves do que os meus.
- Eu não tenho problemas - riu Luís Vaz de Camões. Basta-me um dia assim bonito, e uma companhia como a
sua, para ser feliz.
Joana corou ligeiramente. Depois, sorriu.
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- Os poetas são uns fingidores. - E já com uma
gargalhada aberta: - São um perigo para os pobres mortais.
- Agora devo ter mais ar de pobre vítima do que de
outra coisa qualquer.
Uma ruga de seriedade cruzava a testa da rapariga.
- Não consigo deixar de pensar na vossa situação e só
vejo uma solução para remediá-la: é conseguir legalizá-los.
- E isso é muito difícil?
- Difícil, difícil não é, mas é preciso dinheiro. Eu
conheço aí uns advogados que se ocupam desses processos.
Mas já deve começar a aperceber-se de como tudo funciona
por aqui, sem dinheiro não se faz nada. É coisa para três mil
dólares por pessoa.
- Para mim, isso é uma fortuna - suspirou Luís Vaz de
Camões. - Infelizmente, já nem dinheiro tenho para pagar a
renda do apartamento.
*
Quando Luís Vaz de Camões falou do caso, lá em
casa, Jau foi peremptório:
- Eu vou trabalhar no restaurante grego.
E antes que Luís Vaz de Camões objectasse, Bárbara
reforçou as palavras de Jau:
- E eu posso começar a costurar cá em casa. A
senhora Maria da Graça conhece os donos duma fábrica de
casacos que dão trabalho para fazer em casa, fornecem a
máquina de costura e tudo, só é preciso vontade de trabalhar.
- Mas isto é o cúmulo - explodiu Luís Vaz de
Camões, com um murro na mesa. - Como estamos ilegais,
esses oportunistas aproveitam-se do nosso infortúnio para
nos explorarem.
- Depois de amealharmos dinheiro para a legalização,
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então já poderemos escolher carreira a nosso gosto, senhor insistiu Jau. - Não há outra saída, senhor.
Vencido, sem argumentos, Luís Vaz de Camões
enterrou a cabeça entre as mãos.
*
Jau passou a sair, por volta das cinco horas da
manhã, para o restaurante e pouco depois, Bárbara agarravase à máquina de costura a pregar forros na montanha de
casacos de inverno que atravancavam o apartamento de alto
a baixo.
Incapaz de suportar o matraquear incessante da
máquina, Luís Vaz de Camões saía cedo de casa, perdia-se
no dédalo de ruas, iludia os ócios pelos jardins da cidade e,
naturalmente, passou a frequentar as tabernas das
redondezas.
Quando chegava a casa, altas horas da noite,
vociferava contra a vida, contra os casacos que se lhe
enroscavam nos pés, contra o silêncio acusador de Jau e
Bárbara.
Joana Cruz era o seu único oásis. Os encontros e os
telefonemas começaram a ser cada vez mais longos e
íntimos. Bárbara, sempre pegada à máquina, chorava
silenciosamente mais esta traição.
E, inevitavelmente, uma noite a montanha de casacos
tinha desaparecido e o vulto sinistro da máquina já não se
projectava contra a parede. Sobre a mesa da cozinha, havia
um bilhetinho, nervosamente garatujado, a anunciar que Jau
e Bárbara tinham resolvido refazer a vida a dois, algures na
grande metrópole.
A primeira reacção de Luís Vaz de Camões foi sair
para a rua, de faca na mão, à procura dos traidores. Mas a
cerveja pesava-lhe no estômago e amolecia-lhe as forças.
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Acabou por se deitar sobre um dos colchões e, pouco
depois, adormeceu, com um ressonar cavo e sobressaltado.
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AVENTURAS E DESVENTURAS
Havia manhãs em que o sentimento de insegurança,
que se agravara nos últimos tempos, lhe era quase
insuportável, nas raias da dor física.
- Credo, Luís, andas com uma cara tão má inquietavase a Cândida. - Que olheiras! Devias ir consultar um médico.
Apaziguava-a, com uma carícia débil e trémula.
- Não sejas parva! As doenças não querem nada
comigo.
- Se é por causa do emprego, não andes assim,
criatura. Quando esse acabar, logo arranjas outro.
- Com esta crise, onde é que vou arranjar trabalho?
- Logo se verá.
Admirava secretamente a coragem da mulher, aquele
feitio desenvolto, o gosto pelo risco. Ambiciosa, talhada para
o american way of life. Feitios diametralmente opostos que a
vinda para o Canadá mais extremara.
“Lá continuas tu agarrado a esses idealismos balofos
e quixotescos do século dezanove. Tens que largar esse sarro
duma vez por todas, homem”, atenazava-o ela, quando o via
agarrado à máquina de escrever, a dactilografar os artigos
que, de vez em quando, enviava para os jornais
comunitários. “Trata mas é de te atirar a vida, e põe de lado
essas parvoíces que nunca encheram a barriga a ninguém.”
Tanto insistira com ele, tanto lhe seringara os miolos
que acabara por embarcar naquela aventura de comprar o
bungalow lá para Laval. Longe como o diabo do trabalho e
dos amigos e, o pior, oitocentos e tal dólares por mês para
pagar, entre hipoteca e taxas camarárias, para além das
despesas correntes de aquecimento, luz, telefone e tudo o
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mais. Passados meses era a foice da recessão, o pânico, o
desemprego a bater-lhe à porta. Afortunado, mesmo assim
ainda fora ele em encontrar aquele emprego quando a
Simmons o pusera no olho da rua. Trabalho temporário, mal
pago, que os patrões sabiam-se aproveitar das circunstâncias,
mas o bastante para ir pagando a hipoteca, manter o barco à
deriva. Mas daí a um mês, quatro fugidias semanas...!
Quando chegou ao emprego, resmungou um good
morning quase imperceptível e foi-se refugiar atrás do
estirador. Que neura! Ainda por cima, o desenho que tinha
entre mãos, a porcaria duma válvula, toda cheia de
rendilhados, não ajudava mesmo nada, trocista nos seus
contornos inacabados.
Para se distrair, deixou os pensamentos divagarem
por terrenos mais agradáveis: o conto quc andava a escrever
sobre aquele emigrante que há vinte anos andava a anunciar
a eminência do seu regresso a Portugal; os olhos verdes e
gulosos daquela fulana que no autocarro da manhã se
derretia toda para ele; as últimas férias na Florida, no verão
passado, ainda no tempo das vacas gordas; as saídas
inesperadas e deliciosas dos dez anos do filho.
Acendeu um cigarro e foi dar uma volta para
desemperrar os dedos cansados de traçar riscos e mais riscos.
Estava farto de dar à unha e o diabo do trabalho parecia
emperrado, a válvula cada vez mais indefinida na imensidão
do papel. Talvez dois dedos de conversa com o Dominic lhe
fizessem bem.
O Dominic era um italiano castiço. Baixote, franzino,
dois olhos esverdeados e inquietos, de rato encurralado, por
detrás dumas lentes de míope, grossas de dedo. Perdido por
esoterismos e parapsicologias. Quando desatava a falar, com
um emaranhado de termos estranhos e cabalísticos,
transfigurava-se, consumido num mar de línguas de fogo.
Mas era um gajo porreiro.
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Estranhou não o ver agarrado ao estirador. Ao lado, o
Mike e o Richard entretinham acesa discussão sobre carros.
O Mike defendia a excelência das viaturas japonesas
enquanto o Richard elogiava a perfomance dos carros de
fabrico norte-americano.
- O Dominic não veio hoje?
- Doente! - respondeu lacónico o Mike. - O coração. E com um trejeito dos lábios, imitou uma explosão.
Chocado, gostaria de indagar mais pormenores mas
os outros já tinham mergulhado de novo na discussão.
“Coitado do Dominic, um gajo porreiro como ele.”
Vagueou o olhar pela sala ofuscante de luz onde os
companheiros de trabalho se moviam, como que manejados
por fios invisíveis, inacessíveis. Para além das janelas, o céu
cobria-se dum esmaltado cinzento e sujo.
Sub-repticiamente, à traição, o pensamento foi-se-lhe
aninhar na cabeça: “Se o Dominic está doente...talvez. ..“
Um cachão de pudor tingiu-lhe o rosto de sangue.
Sacudiu a cabeça para afugentar o intruso mas, qual revoada
de pombos que regressam sempre ao local da partida, com
um ruflar nervoso de asas, após voltejo vertiginoso pelos
ares, assim ele tornava insidioso, entorpecente, convincente:
“Afinal, se o Dominic está doente, a culpa não é tua...
é uma chance... mais uns meses de trabalho...”
Foi chafurdar a cabeça no lavatório da casa de banho.
Os olhos que o fitavam do espelho pareciam borboletas
tresloucadas.
Regressou ao seu canto. Do fundo do papel, a válvula
sorria-lhe, perversa. Sentiu ganas de pegar numa lâmina e de
retalhá-la de alto a baixo.
Uma neve cerrada, varrida a vento, começou a
vergastar as vidraças. Ela aí estava, a tempestade anunciada
para esse dia. Dentro em pouco, lá fora, edifícios, ruas, céu,
tudo era duma uniformidade branca e opaca.
26
E aqueles malditos pensamentos sem o largarem de
mão, as gargalhadas despudoradas da válvula a zoarem-lhe
na cabeça!
A hora do almoço, quando o bebedolas do Michel
passou por ali, para a sua invariável incursão à brasserie,
que nenhuma tempestade deste mundo poderia cancelar,
chamou-o, de garganta apertada:
- Espera aí, Michel, também vou.
27
Vaz saiu do oftalmologista e meteu-se no carro.
Deitou uma olhadela ao espelho retrovisor que lhe
confirmou, mais uma vez, a radical transformação.
Era surpreendente como o seu rosto perdera aquele ar
de estudante serôdio e marrão que os óculos, de lentes
grossas, de miopia adiantada, lhe imprimiam. Já na escola
industrial, catraio imberbe, a rapaziada alcunhara-o de
doutor, o doutor caixa d’óculos, e nem o rolar dos anos, o
aparecimento das primeiras rugas e dos cabelos brancos,
dissiparam aquele ar insólito de letrado esgrouviado. Um ar
que o desgostava e que o fazia sentir-se prisioneiro dum
invólucro estranho à sua maneira de ser, mais terra a terra,
pouco atreito às coisas do espírito.
Desde o aparecimento das primeiras lentes de
contacto que acalentara o desejo secreto de mandar as
cangalhas ao ar, mas em Portugal nem pensar nisso, era um
sonho proibitivo, fora do alcance da sua bolsa e, no Canadá,
já com outras posses, facto estranho, fora protelando a
decisão de ano para ano, como se receasse despojar-se duma
personalidade finalmente incorporada. Mas desta vez
decidira-se, dera um pontapé final em todo aquele
amontoado de sucata psicológica.
Boulevard St-Laurent acima, a velocidade
sincronizada com o verde dos semáforos, deixou os
pensamentos derramarem-se, refluirem suavemente até aos
acontecimentos da véspera.
“Vaz - era a voz do mister Salomon, o patrão -, és um
empregado que eu admiro, competente e responsável. Estás
há seis anos na minha empresa e chegou a altura de veres o
28
teu esforço e lealdade recompensados. Decidi nomear-te
assistente do John, o chefe do controlo de qualidade.”
Sabia-se respeitado profissionalmente mas confessava
que aquela promoção o apanhara desprevenido. Só mesmo
do mister Salomon, um judeu romeno chegado há quinze
anos ao Canadá, que ainda se exprimia num inglês terrível,
mas com um faro refinado para os negócios. Timoneiro
firme e audaz que conduzia, com mão férrea, aquela pequena
mas florescente fábrica de caldeiras eléctricas através da
tormenta da recessão económica que já levara na enxurrada
inúmeras empresas do mesmo ramo.
O manto de nuvens negras, que, desde a manhã, se
arrastava penosamente no céu, rasgou-se num dilúvio sobre
o pára-brisas.
Um tempo daqueles em Julho! Se não fosse aquela
miséria do clima, o Canadá seria um céu. Pelo menos para
ele. Apesar de tudo, adaptara-se bem. O apesar de tudo eram
aquelas torrentes subterrâneas que, por vezes e
inesperadamente, assomavam devastadoras à tona do
quotidiano: o vazio das cavaqueiras descuidadas do café, à
volta das bicas e das cigarradas; as labaredas das discussões
políticas no trabalho, acesas, virulentas, viscerais. Nada
parecido com as conversas insípidas e anémicas sobre carros
e hipotecas da malta de cá. Ainda esta manhã os jornais
vinham cheios com a notícia duma rusga da polícia às
instalações duma central sindical e na fábrica nem uma boca
se abrira para um mísero comentário. Se fosse em Portugal!
E já estava a ver o Simões a atroar os ares com o seu
vozeirão indignado e o Campos a arengar contra o monstro
tentacular do patronato. Seria um vendaval por aquelas
oficinas fora.
Havia ainda a fome das multidões familiares, oceano
rumorejante e inteligível, pinheiro secular e frondoso,
extensão natural e harmoniosa do seu corpo, da sua voz, da
29
sua alma.
Há dois anos, num rompante, saltara para o avião e,
durante uma semana, deambulara pelas ruas de Lisboa, ao
acaso, embriagado, numa orgia de cheiros, cores, sons, que
se lhe colavam à pele, transubstanciados na sua própria
carne.
Nunca a mulher, a Teresa, pudera compreender
aquela fuga inusitada, ao revés do homem ponderado e
equilibrado que ele era normalmente. Ficara, longo tempo,
entre eles, a suspeição duma traição qualquer, por mais
explicações em que ele, no regresso, se atolara. Assim como
não compreendia o chamamento que o impelia, de tempos a
tempos, a procurar refúgio mitigador na balbúrdia
atabernada das associações portuguesas.
“O que vimos fazer a esta espelunca? “- lamentava-se
a Teresa, sempre ansiosa por se refugiar na fortaleza de
conforto e segurança que representava para ela o bungalow.
E, hostil, lançava olhares de aversão à meia dúzia de rostos
patibulares de jogadores inveterados de sueca que, envoltos
em espessas nuvens de fumo, pareciam ser sempre os
mesmos, como que petrificados no lugar há meses, há anos.
Os filhos resmungavam solidários com a mãe: “Vamos antes
ao McDonalds, pai.”
Como explicar-lhes sentimentos que ele próprio
sentia dificuldades em decifrar e de que, de certa forma, se
envergonhava de experimentar? Certa vez, depois dum jantar
bem regado, ao calor da lareira bem viva, enquanto lá fora o
frio mordia a noite, afoitara-se naquele campo, amolecido
como no diva do psiquiatra, mas a Teresa, entretida a
passajar umas meias, não estava com pachorra para ouvi-lo:
“Hoje bebeste uma pinga a mais. Palermices.”
A chuva cessara de cair e o céu rasgava-se em lanhos
azulados e promissores, por cima da montanha.
Sim, ela tinha razão. Palermices.
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Pousou o olhar na Gazette adormecida no banco ao
lado. O anúncio daquela carrinha japonesa, que já andava a
namorar há meses, saltou-lhe lesto aos olhos. Estava
decidido. Ia comprá-la.
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Camões resmungou quando um raio de sol saltou a
barreira do blind e o escoicinhou nos olhos. Engoliu em seco
duas ou três vezes e passou a lixa da língua pelos lábios
ressequidos.
“Que grande bebedeira.”
E lembrou-se vagamente da noitada da véspera, na
companhia do Blackfeed, gloriosa cavalgada de taberna em
taberna, até à consumpção do último cêntimo do cheque do
bien-être.
Sentou-se na borda da cama, sem saber o que fazer.
Foi então que lhe ocorreu que era domingo e que ficara de ir
almoçar a casa daquele velhote angolano, o Manuel Bento.
A praguejar, lá conseguiu encontrar as jeans, por
malas-artes encafuadas entre a cama e a parede. A camisa,
foi descobri-la enrodilhada dentro da banheira.
Mas que compincha, o Blackfeed! A cara redonda e
avermelhada como uma abóbora e o cabelo negro escorrido
denunciavam, à légua, a sua origem ameríndia. Origem que
era o seu orgulho e a sua dor.
- Sou um traidor - desabafava com a bebedeira. Abandonei o meu povo na reserva e vim viver entre os
nossos inimigos, os brancos.
Conheceram-se numa noitada de sábado, no Belitz. A
cerveja escorria em catadupas e a Betty singrava por entre as
mesas com a ligeireza dum barco à vela, esplendorosa na sua
minissaia de cabedal, um sorriso irresistível nos lábios
vermelhos e um cravo, ainda mais vermelho, entalado entre
os seios soberbos.
- Esta rapariga se tivesse nascido na Idade-Média,
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seria a maîtresse à vie do rei - elogiou um velhote com uma
cirrose escarrada no nariz rubicundo.
- Dava o olho que me resta para dormir uma noite
com ela - concordou Camões, esvaziando mais uma cerveja.
Quando a rapariga se abeirou, Camões agarrou-a pelo
pulso.
- Se fosses minha, tinha-te em casa trancada a sete
chaves - ciciou-lhe ao ouvido.
- Está sossegadinho - admoestou-o ela, sem perder o
sorriso.
Um tipo corpulento, com pescoço de touro, levantouse abruptamente, duas mesas à esquerda. Camões retesou os
músculos do pescoço, alerta.
- Eh zarolho, tira as patas de cima da minha girlfriend, antes que eu tas parta.
Via-se à légua que o colosso estava perdido de
bêbado mas a garrafa ameaçadora, na mão forte corno um
maço, incutia respeito.
- Se é tua, podes ficar com ela - contemporizou
Camões.
Blackfeed ficara desarmado com a falta de
resistência.
- Então, como castigo, vais-me pagar uma cerveja. E sem mais preâmbulos, agarrou a caneca destinada Camões
e emborcou-a dum trago. - Ias-te cagando todo, hã?
- E soltou uma gargalhada que lhe retesou o cordame
dos músculos do pescoço.
- Há muito tempo que perdi o medo - ripostou Camões.
E arregaçou a malga para que o outro visse a tatuagem que
alastrava pelo antebraço.
- O que é isso?
- É uma recordação da guerra, na África. Matei mais
pretos do que índios devem existir no Canadá inteiro.
Blackfeed levou tempo a encontrar uma réstia de
33
concentração. Hipnotizado pela tatuagem, piscava os olhos,
num esforço desmedido para os manter abertos até que, por
fim, estendeu a mão, para um pacto de paz.
- Irmãos.
Fora também a tatuagem, como um talismã, que o
aproximara do Manuel Bento. Saboreava uma cerveja,
encostado ao balcão do café Portugal, quando um velhote
tristonho lhe batera timidamente no braço.
- O senhor esteve em Angola?
E logo ali lhe vazara o peito de velho sertanejo
devorado pela saudade da sua Angola, para onde embarcara
ainda rapaz novo e que tivera de deixar com o coração a
sangrar.
- Não foi pelas coisas que lá deixei que essas Deus as
dá, Deus as leva. Era o amor que eu tinha àquela terra. Nem
por uma mulher.
Sentaram-se a uma mesa. Beberam umas cervejas. E
de confidência em confidência, Manuel Bento falara-lhe da
mágoa de ver a filha única a viver com um preto do Haiti.
- Já viu a minha sina? Não é que ele seja mau rapaz.
Mas quando o vejo, fico logo a sangrar todo cá por dentro,
esmagado pelas recordações. A minha filha diz que eu sou
racista, mas não é isso coisa nenhuma, ela nunca poderá
compreender a minha dor.
E naturalmente, nascera o convite para ir almoçar lá a
casa, comer uma feijoada.
- Para falar daquelas terras, o senhor também andou
por lá, pode-me compreender.
Um convite daqueles não era para deitar fora, por
nada deste mundo. Principalmente quando o próximo cheque
da assistência social ainda estava a anos-luz de distância.
Abençoado Manuel Bento. Nem que, por cada
almoço, tivesse que escutar mil histórias chatas até cair de
cu. E, quando fechou a porta do apartamento, as narinas já
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lhe fremiam com a recendência duma soberba feijoada à
transmontana.
35
- Pai, pára de brincar com a televisão.
Estacou e olhou surpreso o filho que, debruçado
sobre a escrivaninha, se aplicava nos deveres escolares.
Depois, sorriu. Era, palavra por palavra, a retribuição da
reprimenda que ele próprio costumava aplicar ao filho
quando este se punha a correr os canais da televisão, numa
cavalgada vertiginosa.
- Tens razão.
Pousou o telecomando no braço do sofá. Levantou-se
e foi até à janela. Uma claridade diurna enchia a noite
serena. Quase que podia distinguir as feições do italiano, da
casa em frente, que limpava a neve do drive-way. Pazada
atrás de pazada que tombavam, com um baque surdo, no
montão de neve que cobria o pedaço de terreno reservado à
horta e do qual, no verão, fazia brotar carradas de alfaces
repolhudas, tomates gordos como punhos e outros mimos
que eram a inveja da vizinhança, sempre afadigada com a
esterilidade dos relvados. O único sinal visível do esforço
despendido na tarefa era a baforada gorda, que se escapava
entre a bigodaça e a gola levantada do casacão. Embora
nunca se tivessem falado a sério, era um tipo amistoso,
sempre com um ciao forte e alegre, por cima da vedação,
reforçado por um aceno largo da mão possante de truckdriver.
Largou a janela e tornou a sentar-se. Na televisão
passava um documentário sobre o Haiti. A câmara percorria,
sobre a rama, aquele cortejo de miséria e desolação, no
evidente propósito de não perturbar digestões, de
proporcionar mesmo uma refrescante regadela de insólito.
36
- A que horas chega a mãe? - perguntou o filho, sem
levantar a cabeça dos trabalhos.
- Lá para as onze horas, já estarás deitado.
Falara pausadamente, a voz controlada, para retirar
importância às palavras.
Sentia-se
levemente
envergonhado
daquela
inquietação infundada. Afinal de contas, a Cândida tinha ido,
muito simplesmente, jantar com os colegas de trabalho a um
restaurante grego qualquer, pacata confraternização da
quadra natalícia.
Para quê aquele nervosismo, aquele esgatanhar
persistente lá por dentro? Em anos anteriores, quando a via
indecisa, balançante entre o ir e o não ir, ele próprio a
encorajava:
“Vai, faz-te bem sair da rotina.” - E quando a via
mais uma vez desistir, em cima da hora: “Ainda não és a
feminista que te apregoas.”
Teria o Costa razão quando, num primarismo que o
punha fora de si, se punha a vomitar enxurradas de
marialvismo?
“Com as mulheres só de rédea curta; o lugar delas é
na cozinha; estas canadianas são todas umas putas.” Estas
eram as suas bacoradas predilectas. E quando por vezes se
via encurralado nalguma discussão mais cerrada,
desenterrava a sua arma de maior calibre: “Vocês são todos
uns hipócritas, só são progressistas com as mulheres dos
outros.” E uma gargalhada rebolada, conspurcante, sacudia-o
de alto a baixo.
Por vezes, perguntava-se como ainda continuava a darse com semelhante gajo. Ainda no último fim de semana, na
festa de baptizado da filha do Silva, já ambos bem bebidos,
tinham azedado a valer.
- É por causa de gajos como tu que a comunidade
portuguesa não passa da cepa torta. Há gente que não faz o
37
mínimo esforço para evoluir e integrar-se.
- Integrar-me?! - saltara o Costa. - Integrar-me nesta
merda de sociedade?
E, ao redor, acenos de cabeça concordantes davamlhe força.
- Se não gostas disto, o que fazes aqui?
- Os dólares. Só por causa dos malditos dólares.
E a muralha de cabeças tornava a acenar.
- Vou-me deitar - disse o filho, arrumando a pasta.
- Não te esqueças de lavar os dentes.
Ficou só. Passeou o olhar pela estante e pegou num
livro, ao acaso. O Rio Triste, do Namora: “Ele é ciumento?
No sentido vulgar do termo, não; no sentido profundo, é.”
Fechou o livro e arremessou-o para o outro canto do
sofá donde o cacilheiro da capa, singrando ronceiro o Tejo, o
ficou a espiar.
O que não gozaria o Costa se o visse naquele estado
de espírito? A cascata de gargalhadas que não jorraria
daquela pança alarve.
Já quase onze horas da noite. O ouvido alongava-se
para o mais imperceptível ruído de motor. Tornou a voltar a
atenção para a televisão. Desta vez corria um filme
sensaborão e pretensioso, entre o drama e a tragédia, que iria
acabar inevitavelmente com uma puritana lição de moral.
Pegou bruscamente no telecomando e emudeceu o aparelho,
com furor assassino.
Voltou à janela mas o italiano já terminara a sua
tarefa. Ficara, como testemunho vitorioso, a pá cravada no
montão de neve. Foi-se ao bar e serviu-se dum brandy
avantajado. O álcool correu-lhe morno pelo corpo. Já a
segunda golada lhe amargou. Pousou o cálice e ia outra vez
consultar o relógio quando, de surpresa, uma chave arranhou
a fechadura, a porta guinchou e ainda mal tinha voltado a
cabeça, já a Cândida lhe sorria do meio da sala.
38
- Coitadinho do meu Luís! Custou-te muito a passar a
noite? Estavas a ler? Ou a escrevinhar mais alguma história?
- Com um gesto descontraído, atirara o casaco de
peles para cima do sofá. - Se hoje falar de mais, já sabes que
é do vinho. Ai de mim se a polícia me mandasse soprar no
balão! Terias que me ir buscar ao xadres. Gostei tanto!
Ainda o jantar mal tinha começado e aquela malta já estava
toda borracha. O Peter estava tão perdido de bêbado que
queria beijar as mulheres todas. A sala quase que veio a
baixo com as gargalhadas. Que giro! Já ficou combinado
outro jantar, para a Páscoa.
Com passos hesitantes, sentou-se ao lado dele.
- E tu aqui, sozinho com os teus livros. - Havia na
carícia e na voz dela um travo novo, desconhecido.
Desprendeu-se do abraço e foi-se refugiar na janela.
Sobre a casa do italiano, duas estrelitas solitárias
tremelicavam de frio. Lá mais para baixo, já uma grinalda de
luzes garridas debruava alegremente a porta de entrada do
bungalow daquela família vietnamita tão cheia de
salamaleques, de risinhos cacarejados e de urgência de se
integrar. Mais uns dias e toda a rua seria uma explosão de
pirilampos multicolores, prenunciadores de mais um Natal.
Por agora, mantinha-se branca, intemporal,
apaziguante, postal ilustrado de boas-festas.
Repassado daquela serenidade, voltou-se para a
mulher que adormecera seraficamente no sofá.
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Entardecia. O rio St-Laurent espelhava. Na outra
margem, Montreal, cogulada de arranha-céus, recostava-se
no verde fresco da montanha.
Atento ao tráfico cerrado, Vaz reclinou a cabeça no
banco e apertou o volante.
“Que belo dia.”
Na verdade, dias como aquele, assim azuis e puros,
eram raros. Geralmente, no verão, o calor vinha sempre
embrulhado num manto asfixiante de humidade que acabava
por se esfarrapar em tempestades tropicais de meter medo.
Quando entrou na sua rua, havia bandos alvoroçados
de crianças encavalitadas em bicicletas, máquinas de cortar
relva cantarolavam, repuxos espichavam por toda a parte e
dos back-yards crescia o espadanar refrescante das piscinas.
Arrumou o carro no drive-way. Logo o chicotearam
os gritos lúdicos dos filhos, na piscina recém-instalada.
Tanto tinham choramingado que acabara por lhes fazer a
vontade. Por vezes, perguntava-se se ceder aos caprichos dos
filhos não seria a forma mais fácil de embarcar na
locomotiva da integração.
Enquanto a Teresa não chegava da fábrica, para
começarem a preparar o jantar, apanhou uma cerveja do
frigorífico e foi-se instalar na varanda. Os garotos, quando o
viram, redobraram as tropelias, espadanando alegremente as
águas azuladas.
- Bonjour, papá - gritou o Michel.
Aquele garoto! Por mais que lhe dissessem que em
casa se falava português, não ganhava emenda, a língua
sempre a fugir-lhe para o francês.
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Quando chegara a altura dos filhos entrarem para a
escola, num esforço inglório, decidira enviá-los, nos sábados
de manhã, à escola portuguesa, para ver se assim não
perdiam as raízes. Mas ao arrancar da cama, não havia vez
que os garotos não se lamuriassem daquele suplício que os
privava da fartura dos desenhos animados, dos sábados, na
televisão.
Ainda tentara motivá-los, apresentando-lhes a
situação sob uma perspectiva interessante: “Sempre é bom
saber mais uma língua, o português é uma língua importante
no mundo.” Frouxos lugares-comuns. E, naturalmente, tudo
morrera. Ficara, fruto da renúncia, a exigência de falar
português em casa.
Mas, cada vez com mais frequência, ou ele ou a
mulher acabavam por se compadecer do gaguejar penoso das
crianças e lá vinha a transigência: “Vá lá, diz isso em
francês.”
Cada vez mais divertidos, os corpos esbeltos e
bronzeados, no rebentar da adolescência, estilhaçavam o
espelho da piscina.
Sabia lá quantas vezes já estivera tentado a levantar a
interdição, mas recuara sempre no último momento, receoso
da coacção social ou lá o que era.
Viria logo o Rodrigues dissertar sobre os problemas
da incomunicabilidade entre pais e filhos e da importância
da preservação da língua materna, e já estava a ouvir o
Romeiro perorar sobre os traumas irreversíveis originados
pelo repúdio das raízes culturais. Retóricas mais do que
repisadas, evocadas sempre que alguma ovelha mais afoita
ousava tresmalhar-se do rebanho, e que o faziam cismar se
não seria tudo floreadas patranhas de inadaptados que não
queriam sentir-se sós na desgraça.
Bebeu uma golada farta de cerveja. Um pássaro, dum
negro metálico, com listas vermelhas nas asas, pousou no
41
ácer do quintal e ficou curioso, de cabeça à banda, a espiar o
gáudio das crianças.
Ao diabo os preconceitos. Logo ao jantar,
oficializaria o que já era moeda corrente:” Daqui em diante,
pode-se começar a falar francês cá em casa.”
42
Duas horas da tarde. Abriu a torneira e encheu um
copo de água, que bebeu com uma careta. Mas, mesmo
assim, a dor persistia. Uma moinha teimosa que lhe roía as
paredes do estômago e que nem mesmo durante o sono o
deixava tranquilo. O que era normal e explicável: há dois
dias que não metia nada à boca. Mais precisamente, desde a
feijoada em casa do Manuel Bento.
E, para resolver um problema desses, por mais que
espremesse os miolos, só encontrava urna solução: ir rastejar
diante do paquiderme da France.
Havia talvez outro expediente a que já recorrera em
situações idênticas:entrar calmamente num restaurante,
encher o bandulho do bom e do melhor e, sob o pretexto de
ir à casa de banho, pirar-se calmamente sem pagar a conta. A
melhor altura para dar o golpe era entre o prato principal e a
sobremesa, quando a vigilância afrouxava. Era coisa
facílima, mas desta vez não se sentia com forças para essas
proezas, das quais chegava a retirar grande prazer. Só a ideia
de ter que se vestir convenientemente, de sair e escolher um
alvo adequado o apavorava. Seria mais fácil descer ao
segundo andar e bater à porta daquele estafermo.
O simples gesto de passar o pente pelos cabelos e
pela barba em desalinho o extenuou. Receou nem conseguir
descer os lanços de escada tal a fraqueza que o prostrava.
Quando bateu à porta do apartamento da France, foi,
para surpresa sua, uma bela jovem, de cerca de vinte anos,
que lhe apareceu. Tinha uns cabelos loiros muito longos,
quase brancos e uns olhos verdes com sombras de lagos
profundos.
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“ Será que me enganei no andar?” - ainda hesitou.
Mas logo a voz roufenha e inconfundível da France
cresceu do fundo do apartamento.
- Deixa-o entrar. É o sacriste do Camoês. Deve estar
morto de fome para me vir ver. - E uma gargalhada
desbragada cresceu do sofá onde, refastelada, chupava um
cigarro.
A rapariga afastou-se e logo Camões sentiu nas
narinas aquele cheiro insuportável a excrementos de gato.
- Essa é a Chantal, a minha filha - gritou a France.
Camões ficou surpreendido. Nunca anteriormente
France lhe revelara a existência daquela filha. A rapariga
sorria, com um sorriso meio divertido.
Vista daquele ângulo, a contraluz a incendiar-lhe os
cabelos, era um generoso trigal onde apetecia deitar.
- Mas deixa de olhá-la dessa maneira, não é fruta a
tua boca. Se quiseres comer, vai ao frigorífico e serve-te.
Aproveita que hoje estou de bom humor.
Camões sentiu-se ferver por dentro. As palavras da
France, que geralmente o deixavam indiferente, desta
vez, proferidas em frente da rapariga, tinham o condão de
vexá-lo. Geralmente, replicava-lhe na mesma moeda, em pé
de igualdade. A relação deles era inequívoca: comida em
troca de sexo. Ela matava-lhe a fome física e ele, em
contrapartida, matava-lhe a fome sexual. E, em tal troca
comercial, era difícil destrinçar qual deles era o mais
esfomeado e qual o mais favorecido.
Para ele, fora um espanto verificar a inesgotável
energia sexual daquele corpo deformado pelo lazer e por
toneladas de hot-dogs e hectolitros de coca-cola. Da
primeira vez, deixara-se enlear e, esquecido dos seios
flácidos e das roscas de gordura na cintura, regressara ao seu
apartamento esgotado, quase sem forças para subir as
escadas, mais espremido do que um limão, as roupas cheias
44
de pelos de gato.
Aqueles malditos gatos! Quando apanhava a France
pelas costas, tentava concentrada e afincadamente atingi-los
com um pontapé certeiro, mas sempre em vão, os malditos
furtavam-se no último instante, com agilidade prodigiosa, e
refugiavam-se debaixo dos móveis, com olhos coruscantes.
- Então, queres comer ou não? - tornou a voz
sarcástica da France. - Ainda aí há umas carnes frias e uma
lata de coca-cola.
Camões salivava como um cachorro mas ainda
arranjou forças para recusar.
- Obrigado, mas já almocei. Só passei para conversar
um bocado contigo.
France soergueu-se do sofá, de boca aberta. A
rapariga enterrara-se no fauteuil, completamente absorvida
pelo ecrã da televisão.
- Não sabia que tinhas uma filha.
- Nem precisavas de saber. Desde quando te queres
meter na minha vida privada? Mas é verdade que não queres
comer nada? - No rosto redondo e pálido da France ainda
havia traços de dúvida. - Senta-te, então, aí um bocado.
- Fica para outra vez, agora tens visitas.
- Passa por cá mais logo, para a tarde. A Chantal não
se vai demorar muito.
A voz da France começava a enrouquecer, sintoma
que a experiência de Camões identificava com facilidade,
quando a sensualidade crescente fazia estremecer as carnes
repousadas e flácidas da mulher.
- Talvez passe. - Camões fazia prodígios para
despregar os olhos do frigorífico. - Chau, Chantal, foi um
prazer conhecer-te.
A mão branca e leve levantou voo, sobrevoou por
instantes o fauteuil, para logo regressar ao poiso anterior.
No patamar, Camões começou a sentir cãibras no
45
estômago.
- Que grande burro! - E a simples evocação de ter de
descer as escadas e deambular pelas ruas, até encontrar um
restaurante onde dar o golpe, fê-lo gemer lastimosamente.
46
Endireitou-se na cadeira e, disfarçadamente,
desapertou o botão do colarinho que o começava a
estrangular.
Subitamente, sentiu vontade de urinar. Apoiou as
mãos no bordo da mesa e concentrou forças na melindrosa
operação de se levantar, sem causar estragos.
Os urinóis ficavam na cave e, apoiado ao corrimão,
começou, com cautelosa concentração, a descer a escada,
degrau a degrau.
A culpa era daquele sacana do Jerry que não lhe dera
tréguas durante todo o jantar, sempre veloz a encher-lhe o
copo até aos bordos.
- Vocês, os portugueses, bebem vinho como água quebrava-lhe as reticências. - Festa é festa.
E para não desmerecer da reputação, deixara-se levar.
Mas a sua vingança era que o gajo ainda estava mais bêbado
do que ele. Da última vez que porfiara em encher-lhe o copo,
derramara mais vinho sobre a toalha que no recipiente.
Passados instantes, levantara-se da mesa, mais lívido do que
um morto, e eclipsara-se, para nunca mais ser visto.
Foi encontrá-lo a urinar o vinho, muito concentrado
em não falhar o alvo do buraco do urinol, o nariz quase
esborrachado contra a parede.
- Olha o Vaçe! - Alegrou-se Jerry, o carão aberto num
sorriso bonacheirão, como se não se vissem há uma carão
amarrotado, com dois olhitos, dum azul deslavado,
transviados entre os tojos das sobrancelhas arruivadas,
julgara estar na presença dum bebedolas. Só mais tarde
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soubera que aquela cara, devastada precocemente antes dos
cinquenta anos, era fruto de terríveis insónias.
- Não durmo mais de quatro horas por noite. Um dia
conto-te a razão destas insónias - semi-levantara, Jerry, o
véu que cobria o mistério, certo dia de major
acabrunhamento.
Em todo o caso, e fosse qual fosse a gravidade do seu
problema, o Jerry era um gajo porreiro, folgazão nos
intervalos da depressão, senhor dum corpo de toiro moldado
por intenso exercício físico na Checoslováquia, antes de dar
o salto para o paraíso ocidental.
Ao lavarem as mãos, Jerry olhou-se desgostoso no
espelho.
- Estas insónias rebentam comigo.
- Essa cara é dos copos, não é das insónias.
- Deixa-te de brincadeiras, Vaçe. Agora estou a falar
a sério. Tens dois minutos para me escutar?
Vaz compreendeu que, libertado pelo vinho, Jerry
estava maduro para lhe revelar o segredo ciosamente
guardado durante aqueles anos todos.
- Preciso de falar, Vaçe, senão rebento.
Cambaleante, Jerry passou-lhe o braço pelos ombros.
Sentaram-se num tamborete, logo a saída da toilette.
- Sabes, Vaçe - Jerry passou a língua pelos lábios
ressequidos -, não sei o que hei-de fazer à vida, já não
aguento mais.
- Problemas?
- Um pesadelo. Olha, Vaçe, a minha mulher, há mais
de oito anos que não faz amor comigo.
Vaz sabia-o casado com uma judia checoslovaca e
que tinham duas filhas já espigadotas.
- Mas, porquê? Não me digas que se te acabou a força
na gaita - ainda tentou brincar.
- Isto é a sério, Vaçe. - A borracheira dissipava-se, a
48
galope. - Sabes, Vaçe, eu acho que ela está completamente
chanfrada. O trauma dos pais terem morrido num campo de
concentração, durante a guerra, agora, passados tantos anos,
está a transtorná-la. Dormimos em quartos separados e, de
noite, oiço-a gritar, aterrada, com pesadelos. Sinto que um
dia irei perdê-la para sempre.
- Mas qual é a explicação dela, devem falar disso,
não?
- A princípio não dava nenhuma. Inventava mil e uma
desculpas. Enxaquecas, cansaço, o que calhava. E se ela
gostava de fazer amor, parecia uma gata com o cio. Até
cheguei a desconfiar que andava metida com outro. Um dia,
pressionada, depois de grande briga, confessou-me que se
sentia culpabilizada por ter casado com um gentio e ter
renegado os seus. Que se sentia indigna da memória dos
pais. Já viste o meu problema?
Jerry chorava como uma criança.
- E eu que gosto cada vez mais dela, não posso viver
sem aquela mulher.
Vaz achava excessivo todo aquele pranto, fruto da
ressaca, mas sentia-se incomodado. Era quase aberrante um
choro assim, saído daquele corpo granítico.
- Bom, fica aqui que eu vou-te buscar um conhaque.
E acalma-te, man.
Começou a subir as escadas e Jerry ficou de cabeça
entre os joelhos, como um espantalho esventrado.
- Onde se meteu? Tenho andado a procurá-lo por toda
a parte.
A súbita aparição da jovem, no cimo das escadas, as
mãos pousadas nas ancas moldadas pelo cingido vestido
vermelho, deixou-o sem fôlego.
A filha do mister Salomon! O que não se cochichava
lá na fábrica! Enquanto o pai passava os dias , os anos,
completamente absorvido pelos negócios, ela saltava
49
alegremente dos braços dum boy-friend para os de outro,
com um pé nas Caraíbas e outro na Califórnia, quando não
na Europa ou em qualquer outra parte do mundo.
E, o mais interessante da história, o mister Salomon,
sempre tão exigente com o pessoal, era um mãos-rotas e um
bonacheirão com ela. A miss Sara isto, a miss Sara aquilo, só
ela o fazia desviar da sua meticulosa rotina.
E era ela agora que lhe sorria, lá do alto, como uma
aparição.
- Estava à sua espera, para abrir o baile - disse a
rapariga. - Despache-se que o meu pai já está nervoso, bem
sabe como ele leva a sério estas festas da companhia.
Vaz apertou nervosamente o nó da gravata e segurou,
trémulo, a mão branca e esguia que procurava a sua.
Ainda deitou uma olhadela ao vulto imóvel do Jerry,
com certeza, adormecido a curar a bebedeira.
- É uma honra para mim, miss Sara.
50
A solidão do quarto de hotel entrou-lhe pelo corpo
até aos ossos.
Na televisão, os Canadianos e os Nórdicos
defrontavam-se mais uma vez. A violência do jogo de
hóquei agredia-lhe os nervos à flor da pele.
Foi até à janela e correu o cortinado. Na rua,
enlameada pela nevada inesperada e tardia, nestes princípios
de Abril, passava um tráfico tímido: um autocarro quase
vazio, automóveis medrosos. Um lampadário jorrava uma
luz esbranquiçada que se misturava com a neve.
Tornou a poisar os olhos na televisão. Os jogadores
tinham-se envolvido todos à pancada, encorajados pelo
ulular da assistência.
Com a vulnerabilidade a sangrar, não resistiu mais e
pegou no telefone.
Respondeu-lhe a voz ensonada do filho:
- Já estava deitado, pai.
- Desculpa se te acordei, filho. Hoje, deitaste-te muito
cedo.
- Já estava aborrecido de estar para aqui sozinho, a
ver televisão.
Cresceu-lhe um pigarro na garganta e tossicou para
clarear a voz.
- A tua mãe não deve tardar.
O filho calou-se.
- Estás a ouvir? A mãe deve estar a chegar, já deve
estar preocupada por tua causa. Quando chegar, diz-lhe que
eu telefonei e dá-lhe um beijo por mim. Dorme bem.
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Desligou o telefone. Na televisão, a pancadaria
acabara, numa trégua de curta duração, a calcular pelo
berreiro do público e pela selvagem confrontação física dos
jogadores.
Fossem lá chamar desporto àquele espectáculo de
gladiadores. Desporto era, isso sim, era o hóquei em patins
do seu tempo. Naqueles memoráveis Portugal-Espanha, a
telefonia, encostada à orelha, sempre na eminência de
explodir com aqueles go... go... gogo. . . golooooo... . de
Portugal, que só acabavam quando o locutor não tinha fôlego
para mais. Então sim, era tangível o amor dos jogadores à
camisola, davam o litro até à última gota, numa entrega total
que arrebatava as multidões. O seu ídolo era o Livramento,
um cometa fulgurante cujo talento fez arregalar o olho a toda
a Europa. Apaixonado, forrara as paredes do quarto com
todos os recortes de jornal e cromos que conseguia adquirir,
para desespero da mãe: “Este garoto está maluco! Isto não é
um quarto, é um caixote de papéis.”
Mais tarde, sempre impelido pelo amor ao hóquei,
ainda chegara a alinhar nos juniores do Paco-d’Arcos, não
era um predestinado mas ainda dava duas para a caixa, curta
carreira que a tropa cerceara. Aliás, fora essa aura de
desportista que lhe atirara a Cândida para os braços. Já nesse
tempo ela manifestava predilecção pelos vencedores, pelos
winners, como agora dizia.
Estava tentado a pegar outra vez no telefone mas
refreou o impulso. Pobre do filho, já devia estar outra vez
ferrado no sono, seria desumano tornar a acordá-lo. Além
disso, a Cândida já deveria estar em casa, geralmente
aqueles jantares nunca se prolongavam até muito tarde.
Dois dias atrás, quando ele anunciara que tinha que se
deslocar a Chicoutimi, em viagem de trabalho a uma fábrica
de papel, a Cândida quase chorara de frustração.
- E o nosso jantar que é quinta-feira. Recordas-te
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daquele jantar que a malta da loja combinou fazer pela
Páscoa? Pois já está tudo planeado, o Peter já reservou mesa
no restaurante, tu não podes adiar essa viagem?
- Mas não há problema, tu podes ir ao jantar na
mesma, o Zé pode muito bem ficar um bocado de noite
sozinho, já está um homem.
- Tu achas? - refulgiram os olhos dela. - Posso, então,
dizer ao Peter que conte comigo?
Agora censurava-se por tê-la encorajado. Aquela
apreensão, que o dominara na noite do jantar de Natal,
voltava a emergir, desta vez mais caracterizada, com um
rosto, com um nome: Peter. Desde há meses, era um
espectro que aflorava em todas as conversas, uma evocação
obsidiante e irritante: o Peter isto, o Peter aquilo. A tal ponto
que uma vez rebentara:
- Não tens mais nada que dizer do que falar nesse
merda do Peter?
Ela ficara chocada e a resposta fora viperina:
- O Peter não é merda nenhum, sabe o que quer na
vida, não é uma mosca morta como tu.
Desde esse dia, ficara uma luz vermelha a queimarlhe os miolos. Tentava rebater essa morbidez, auto
convencer-se que não passava tudo dum excesso de
imaginação da sua parte, debilitado pelo stress, mas era tudo
em vão, a luz vermelha continuava lá, como um ferro em
brasa.
Apagou a televisão e tirou a carteira do bolso do
sobretudo. Eram onze horas da noite, o bar ainda estava
aberto e não conhecia melhor remédio para as insónias do
que dois ou três conhaques.
53
- Tu, se quiseres, podes ir comigo. Não tens alma de
branco, podemos fazer de ti um índio a valer.
- Mas primeiro tenho que me deitar com a Chantal.
- Olha - gozava o Blackfeed -, se a quiseres tornar a
ver, vai fazer a ronda aí pelos cabarets, vais ver como a
encontras.
- Se tornas a falar nesses termos da rapariga, parto-te
a fuça.
Blackfeed rebolava-se de riso.
- Pelos vistos, estás mesmo pelo beicinho, já te estou
a ver a caminho do altar, ao som da nupcial.
- Primeiro, ainda te hei-de ver ver esticado lá no
pinhal de Oka, com uma bala enfiada nos cornos.
Mas aquele sacana do Blackfeed não estava muito
longe da verdade, aquilo fora mesmo um coup de foudre,
olho na mira, pumba, o coração aos pedaços. Por mais que se
rebolasse e gemesse, chegava sempre à mesma conclusão:
estava apaixonado como um adolescente imberbe. E o
reconhecimento de tão evidente estado de espírito
perturbava-o. Em trinta e tal anos de vida, era a primeira vez
que tal lhe acontecia, até aí, mulheres sempre fora coisa para
utilizar e deitar fora. Tanto em Portugal, como em Angola e
no Canadá, nunca nenhuma lhe deixara a mínima
beliscadura na pele. Quando já estava farto delas, sem mais
mistérios para desvendar, adeus filha, foi muito bom, até à
próxima, estava o assunto arrumado, já estava, ali à esquina,
outra à espera. Então em Montreal, era um fartote, as
mulheres eram peixe fácil de pescar, bastava estender a rede
e caiam aos cardumes. Devia ser o chamariz da pala sobre o
54
olho vazado, bastava contar-lhes a história do ferimento na
guerra para amocharem logo como galinhas, mal lhe davam
tempo para no olho chegar à cama. Mal sabiam elas que
aquilo fora um grande azar, num estúpido acidente. Com a
pressa, ao saltar do unimog, numa emboscada perto de
Ambriz, enfiara o olho no cano da G-3 dum camarada, bop,
parecia um ovo choco a rebentar. No hospital, em Luanda,
para onde fora logo evacuado, já só puderam confirmar-lhe a
sua nova condição de zarolho, eufemisticamente camuflada,
nos papéis de desmobilização, em mutilado de guerra.
- É a história que se repete - ainda se rira, por cima, o
médico de serviço que o recebera, ao reparar na coincidência
do apelido. - Agora já vais ter tempo para reescrever os
Lusíadas. Se quiseres, amanhã já te trago papel e lápis. Para
ti a guerra acabou, grande felizardo.
-Tenho que tornar a vê-la - decidiu Camões, com uma
palmada na testa. - E, para isso, só há um caminho.
Resoluto, enfiou as calças, penteou, com os dedos, a
juba ruiva e, em tronco nu, desceu, dois a dois, os degraus
das escadas, com uma agilidade felina inesperadamente
reencontrada.
Foi detido, a meio das escadas e das boas intenções,
pela aparição do porteiro. Era um português com cara de
coveiro, que nos fins dos meses lhe fazia a vida negra,
sempre a rondar como um corvo agoirento.
- Já te esqueceste outra vez de pagar a renda? desferiu à queima-roupa. - Se dentro de dois dias não me
apareces com as trezentas dolas, cash, desta vez é que vou
tratar do teu caso à Régie. Vais para o olho da rua e pronto,
já estou farto de ter dores de cabeça por tua causa.
- Mas, senhor Américo...
O porteiro estendeu a mão peluda.
- Chega de desculpas. Dois dias. O meu bossa nem
mais um dia te queria dar, até tenho vergonha de ser
55
português como tu.
Quando bateu a porta da France, Camões tinha
perdido grande parte do seu ardor. E foi de cabeça baixa que
entrou no apartamento, sob o olhar irónico duma France de
mão na ilharga e cigarro na boca.
- Deu-te a fome, outra vez, tabarnak? - E com uma
olhadela para as escadas, antes de fechar a porta: - Tiveste
um mau encontro com o concierge?
Acabrunhado, apercebendo-se que Chantal não estava
presente, Camões esboçou um sorriso.
- Já estava com saudades tuas.
France deu uma gargalhada que lhe estremeceu a
barbela.
- Vai, vai lá ao frigorífico, ainda para aí há um
bocado de pizza que me sobrou do almoço.
Camões não se fez rogado. Sob o sofá, os olhos dos
gatos coruscavam, ferozes. Com uma coke ao lado, France
estendera-se no sofá, concentrada na televisão onde decorria
a habitual telenovela do meio-dia, as vozes melosas dos
actores a espraiarem-se pelo apartamento como uma maré
viscosa.
Camões acabou de engolir a fatia de pizza e foi-se
sentar na alcatifa, com a cabeça encostada aos joelhos da
France.
- Desta vez, vieste em má altura - disse ela,
interessada no beijo repenicado dos protagonistas. - Veio-me
ontem a menstruação.
Camões sentiu campainhas de júbilo a retinir na
cabeça.
- Que pena. - E acariciou-lhe, com sinceridade, a mão
sapuda.
Ficaram calados, na penumbra agradável até que o
telefone tocou e France estendeu a mão.
- Allô! És tu, Chantal?
56
O olho de Camões abriu-se como um farol.
- Como queiras, darling. Sim, chérie. Chao.
Camões tremia interiormente dos pés à cabeça mas
não movia um músculo, como uma estátua de neve com
medo de derreter ao calor das emoções. Os segundos
prolongaram-se uma eternidade.
- Sabes quem era? - disse finalmente a mulher.- Era a
minha filha, ainda te recordas dela? Vem cá jantar, a pobre,
desde que rompeu com o chum, sente-se muito só. Num
certo sentido, até foi bom que isso tivesse acontecido para se
relembrar que ainda tem mãe.
Camões rilhava os dentes para demonstrar interesse
no folhetim. Agora, os protagonistas cavalgavam esbeltos
cavalos, na orla duma praia tropical, envoltos num véu
irisado de espuma.
Quando o convite veio, foi como se o céu se abrisse:
- Queres cá vir jantar com a gente? Com essa cara de
enterro, já não deves trincar nada a sério há mais duma
semana e não há nada melhor do que um prato de lasanha
para ressuscitar um morto.
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As crianças precisam da tua ajuda nos trabalhos
escolares, principalmente em inglês.
Vaz levantou uns olhos mal-humorados do jornal.
- Já estou farto, até à ponta dos cabelos, de perder
tempo com esses calaceiros.
- São teus filhos, não fazes mais do que o teu dever.
Sabes muito bem que se eu soubesse inglês, não seria
preciso incomodar-te.
Deitou um olhar oblíquo à mulher que lavava a loiça
do jantar, debruçada sobre o lava-loiça. Assim de costas, as
roscas de gordura ao redor da cinta quase lhe rebentavam a
blusa e as varizes assanhadas eram serpentes enroscadas às
pernas. Parecia quase inacreditável que, vinte anos atrás, a
Teresa era uma garota esbelta como uma estampa, por quem
todos os rapazes morriam de amores. Quando lhe aceitara
namoro, toda a gente se perguntara como ela se prendera por
um caixa d’óculos meio esgrouviado, sem ponta por onde se
lhe pegar.
Da cave subia a algaraviada dos filhos e a barulheira
extraterrestre dos vídeo-games.
- Esses gajos só pensam naquela merda dos jogos.
Teresa voltou-se transfigurada, as mãos cheias de
espuma de detergente.
- Mas que diabo anda contigo, homem? Tu é que lhes
andavas sempre a trazer cassetes para casa, divertias-te ainda
mais do que as crianças. Desde o Natal, nem pareces o
mesmo, andas sem paciência nenhuma. Nunca te ouvi uma
linguagem dessas cá em casa.
Vaz atirou o jornal para cima do sofá e levantou-se
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para apanhar uma cerveja do frigorífico.
- Não bebas assim depois do jantar, ainda apanhas
uma congestão.
- Já sou suficientemente grandinho para saber o que
faço.
- Nem parece.
Mordeu a língua para não lhe sair uma asneira, os
nervos à flor da pele e as palavras da mulher tinham o
condão de exasperá-lo, mais um pouco e desatava aos
berros. Aliás, já não era a primeira vez, desde aquele Natal,
contavam-se, pelos dedos das mãos, as noites de harmonia lá
em casa. As altercações rebentavam por dá cá aquela palha.
- O frio deve ter-te congelado os miolos - continuou
Teresa.
Enterrou as unhas nas palmas das mãos, para se
controlar.
“Hoje não”, pensou, “hoje não, todos os dias menos o
de hoje.”
Nessa tarde, à saída do trabalho, o BMW, vermelho
como um clarão, da miss Sara estava estacionado defronte da
fábrica. Quando ia a passar, a porta do carro, do lado do
passeio, abriu-se abruptamente e o rosto dela surgiu
sorridente: entre.
Ainda se voltou para comprovar se não haveria um
equívoco, se não seria a outra pessoa qualquer que ela se
dirigia, mas não havia a menor dúvida, era bem com ele, não
havia mais ninguém nas redondezas e os olhos azuis e meio
irónicos da miss Sara estavam bem cravados nos dele.
- Onde é que mora? - perguntou ela.
- Em Brossard. Vou apanhar o bus à Bonaventune.
- Eu dou-lhe uma boleia. Está-me a apetecer dar uma
volta.
Depois fora tudo uma vertigem. O BMW voava na
auto-estrada, os risos da miss Sara ressoavam como cristal, o
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sol refulgia nos bancos de neve das bermas, o St- Laurent era
uma preguiçosa fita branca estendida sob as pontes.
- Tem filhos? - perguntou miss Sara, quando
abrandou a velocidade a entrada da ponte Champlain.
- Tenho dois rapazes. Já são crescidos.
Ela pôs-se a recitar:
- Vaz, trinta e oito anos de idade, nascido em
Portugal, casado com Teresa qualquer coisa. Dois filhos,
Miguel e David, doze e catorze anos. Quer mais?
Vaz abriu a boca estupefacto e ela desatou a rir.
- Não sou nenhuma vidente, não tenha receio. Fui
simplesmente espreitar a sua ficha, lá nos arquivos do
escritório. Também já sabia que mora em Brossard, quer que
lhe diga o nome da rua e o número da porta?
Miss Sara recostara a cabeça no banco e no mármore
branco do pescoço já se desenhavam, ainda que quase
imperceptíveis, delicadas estrias, que denunciavam o rondar
dos trinta anos.
- Sei quase tudo a seu respeito - continuou ela. Também sei que o meu pai o tem em grande consideração
por si e que quando o John se reformar, o lugar dele será
naturalmente seu. Se for bonzinho, poderá chegar muito
mais alto e muito mais cedo do que espera.
Já estavam na zona residencial e os bungalows mal
sobressaíam das montanhas de neve que se acastelavam ao
longo da ruas.
A mão da miss Sara, pousada no seu joelho, parecia
um ferro em brasa. E, como sempre, quando ficava nervoso,
o suor começou-lhe a empapar os cabelos na nuca.
- Miss Sara, não sei o que dizer...
Ela tirou os óculos escuros e sorriu-lhe com aqueles
olhos azuis capazes de comerem uma pessoa, como se dizia
lá na fábrica.
Não diga nada. A sua rua é esta, não é? Chau. - E
60
despediu-se dele com um beijo no queixo. Pouco depois,
ainda ele estava plantado no meio da rua, já o roncar do
carro se tinha volatizado.
- Não me escutes, não, e vais ver como ainda te
arrependes - continuou Teresa. - Foi assim que o meu tio
Carlos embarcou desta para melhor. Na noite de consoada,
encheu o bandulho até não poder mais e quando bebeu uma
cerveja gelada em cima...
És capaz de te calar? Já conheço essa história do teu
tio Carlos de cor e salteado. É isso que gostarias que me
acontecesse, não é?
Teresa ficou rígida como uma estátua. Depois,
quando se voltou, muito lentamente, quase que se ouviam as
articulações a ranger. Vista assim, de rosto crispado e sem
sangue, a marrafa de cabelos grisalhos a cair-lhe para os
olhos atordoados, era uma velha.
- Tu sabes o que estás a dizer?
Vaz levantou-se bruscamente e fez um aceno de
enfado com a mão.
- Vamos lá acabar com esta porcaria. Vou lá abaixo
ver se aqueles diabos querem estudar alguma coisa.
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Nunca imaginou que uma coisa daquelas lhe pudesse
acontecer. A ele, Luís, o progressista que, durante anos e
anos, atafulhara a boca com eloquentes sentenças sobre a
igualdade dos sexos.
Estava agora ali, furtivo, como um colegial roído de
ciumeira, colado à esquina, a espiar a mulher, à saída do
emprego. O que não riria o Costa se soubesse daquilo, que
enxurrada de gargalhadas brotaria daquela pança imunda. E
com razão, era infame, completamente incoerente e
inverosímil a situação a que se deixara arrastar.
Tudo nascera nessa manhã. À chegada ao emprego,
os colegas acotovelavam-se ao redor dum computador. E
logo naquele instante, ao dar com os olhos no aparelho meio
acinzentado, com aquele grande olho quadrado e ciclópico,
teve a sensação, esotérica, diria o Dominic, de estar na
presença dum inimigo mortal, capaz de o destruir
implacavelmente.
- Este computador - perorava, ufano o chefe de grupo,
o Ed Stevens -, é o precursor daquilo em que se transformará
este gabinete num prazo máximo de dois anos. Por essa
altura, os estiradores serão uma relíquia do passado, já só
com lugar no museu das velharias. E vocês - corria a cara
dos presentes com aqueles seus olhos acinzentados onde
nunca aforava a mais pequena paixão - terão que se adaptar
às novas tecnologias. Ou se reciclam ou...- e a mão, a evocar
o golpe duma guilhotina, era eloquente.
Fora-se refugiar na fortaleza do estirador, os joelhos
cheios de tremuras. Aquela onda tecnológica, há muito que a
sentia marulhar ao redor, era, nos últimos tempos, o prato
62
forte das conversas dos colegas, relegando para um lugar
secundário as conversas sobre carros e hipotecas. Citavam-se
as companhias que já tinham encetado o processo da
modernização, a Sandwell, a Monenco, etc. etc. era
inevitável que, mais dia menos dia, a vaga os atingisse. Não
podemos ser ultrapassados, diziam os mais apressados que já
seguiam cursos nocturnos e se punham a discorrer,
entusiasmados, sobre as maravilhas dos logicieis, numa
linguagem cabalística mais densa do que a do Dominic. Esse
coitado já não precisava de se preocupar com reciclagens e
novas tecnologias, ainda estava no hospital a refazer-se do
primeiro enfarte, quando uma repetição mais forte o levara
desta para melhor, sem apelo nem agravo. Até talvez tivesse
sido um bem para ele, também não via o Dominic a calcar as
teclas dum computador, tão longe como ele andava sempre
das coisas terrenas, embrenhado em longínquos espaços
siderais.
Aquele inesperado confronto matinal com a fria
realidade da informática reabrira-lhe a ferida da
vulnerabilidade, fizera sangrar a chaga, nos últimos tempos
meio cicatrizada.
Daí a começar a pensar na Cândida fora um passo,
processo coerente em que os elos da trama se encadeavam
uns nos outros como partes distintas mas relacionadas dum
todo.
Durante todo o dia, a imagem da mulher fora
crescendo dentro dele, até já não ver nem ouvir o alvoroço
dos colegas e, na sombra, como um vulto fantasmagórico, de
traços indefinidos, mas omnipresente, lá estava também o
Peter, causa profunda, assim o cria, da radical transformação
da Cândida.
Era verdade que, desde há muito, quase desde o
princípio do casamento, dissipados os fumos cor-de-rosa da
lua-de-mel, ela o encontrava, e cada vez se coagia menos em
63
confessá-lo, um pouco frouxo, sem garra para a vida, sempre
pronto a refugiar-se em literatices e quimeras, coisas que não
enchem a barriga a ninguém, como ela dizia, mas, não
obstante, houvera sempre um residual de ternura a uni-los, a
lubrificar os eventuais atritos e diferenças de temperamento.
“Tenho que por isto tudo em pratos limpos”,
resolvera lá para o fim da tarde, com as têmporas a latejar.
Fora assim que tudo se conjugara para o colocar naquela
esquina, como um ladrão de atalaia. Era precisamente o que
se sentia, um ladrão prestes a destruir, com o seu gesto, os
últimos traços de respeito e confiança mútuos que ainda os
uniam, como casal.
Eram tantas as vezes que consultava o relógio como
as que decidia ir-se embora, esquecer aquele projecto
insensato e indigno dele mas os pés grudavam-se ao chão,
teimosos, rebeldes ao comando central. Por fim, pouco
passava das cinco horas da tarde, avistou-a: vinha sorridente,
acompanhada por um tipo alto e magro, de cabelos e bigode
loiros no qual reconheceu logo Peter, a ater-se às sumárias
descrições que a mulher lhe fizera dele. Mesmo àquela
distância de cinquenta metros, invadiu-o o medo de ser
apanhado em flagrante e coseu-se à esquina, paralisado.
Tinham-se detido na paragem do autocarro e
tagarelavam, sorridentes e bem-humorados, até que, por fim,
passados dois ou três minutos, o autocarro surgiu e Cândida
correu a incorporar-se na bicha de espera que entretanto se
formara, sempre sorridente e a acenar, até desaparecer no
bojo do veículo. Peter esperou que o autocarro partisse e
depois, sem pressas, de mãos nos bolsos das calças, entrou
num café Van Houtte, ali mesmo na esquina.
Luís sorriu. Doze anos atrás, à chegada a Montreal, a
não ser lá para a Petite Italie ou no quartier St. Louis, nos
cafés dos portugueses, não havia lugar na cidade onde tomar
uma bica. O que não lhe custara, ao princípio, privar-se
64
desse prazer, um
pequeno vício arreigado desde a
adolescência, refeição sem o complemento duma bica não
era refeição a sério, ficava-lhe sempre no estômago um vazio
que nem a zurrapa das canecas de café, emborcadas no
gabinete, conseguiam preencher. Depois, gradualmente,
primeiro a cadeia dos Van Houttes e logo a seguir a
generalidade dos bares, presentemente não havia lugar em
Montreal onde não se pudesse beber uma bica. E tudo isso
acontecera no tempo acelerado de meia dúzia de anos.
Esvaziado, alquebrado pela tensão acumulada,
dirigiu-se, por sua vez, para a paragem do autocarro. De tudo
o que vira, nada comprovava as suas suspeitas, os sorrisos e
o alegre tagarelar podiam muito bem ser o resultado duma
amizade sadia. Afinal, talvez não passasse tudo dum
monumental equívoco da sua parte, duma interpretação
doentia dos factos, resultante da sua insegurança emocional
causada pela instabilidade do emprego. O melhor que tinha a
fazer era esquecer tudo e chegar a casa com uma atitude
diferente da dos últimos tempos. E, para começar, nada
melhor do que apear-se uma paragem mais cedo do que o
habitual e comprar um ramo de flores, na florista. Rosas
vermelhas, eram a perdição de Cândida. Santo Deus!
recriminou-se, há uma eternidade que não lhe oferecia rosas.
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Lasanha devia ser o único prato que France sabia
cozinhar e, quando se dispunha a tal, esmerava-se até ao
último detalhe.
- Eh Camoês, o que dizes à minha lasanha?
- Está super.
France riu, feliz com o elogio.
- Então come e deixa de devorar a rapariga com os
olhos, não é carne para os teus dentes. Não vês que ela ainda
não esqueceu o chum? Mas também te digo, nem sei como
ela se enamorou dum fuinha daqueles que até parece que tem
a sida.
- Mãe! - recriminou-a Chantal.
France estava bem humorada e não deixava de rir.
- É uma joke. Além disso, o crisse do Camoês é quase
da família, não precisas de fazer cerimónias com ele. É ele
que me consola nas minhas crises de solidão. Mas não lhe
fico a dever nada, conta lá à Chantal como é o nosso
negócio.
Camões ficou raivoso, quase lhe apetecia atirar-lhe
com a lasanha à cara bolachuda, vermelha corno um tomate
com o riso que não conseguia controlar.
- Se tivesses bebido vinho, diria que estavas bêbada.
- Pronto, pronto - contemporizou France -, não é
preciso afinar, já vi que hoje não se pode brincar nesta casa.
Acalmado, Camões pôs-se a comparar a carantonha
devastada pelos vícios da France com o oval perfeito do
rosto de Chantal. Parecia inconcebível que um monstro
daqueles tivesse procriado uma beldade assim. Até mesmo
na postura eram completamente diferentes, havia nos modos
66
da rapariga uma leveza e uma pureza que contrastavam com
a grosseirice deliberada da mãe.
- Tens a certeza que a Chantal é tua filha? São tão
diferentes.
- Sai-se ao pai. Sabias que o pai dela é um peixe
graúdo cá da política? Não há dia nenhum em que a fuça
dele não apareça por aí nas televisões.
- Mãe - repreendeu-a Chantal -, sabes muito bem que
não gosto que fales nesses termos do papá.
France teve um ataque de furor:
- Eu falo como muito bem me apetecer desse
bastardo. Não é uma serigaita como tu que me vai meter uma
rolha na boca. Quero lá saber que seja o teu pai, para mim é
um grande estupor que continua a enganar miseravelmente
os seus eleitores como me enganou a mim. Sabias, Camoés,
que nessa altura, eu ainda era mais bonita do que a Chantal?
Pois, se queres saber a verdade, fica a saber que ela se sai a
mim, há vinte anos eu era um torrão de açúcar.
Camões puxava pelos miolos, tentando adivinhar
quem seria o pai de Chantal.
- Não me digam que estão a falar do Mulroney sondou.
France soltou uma gargalhada rouca.
- Então tu achas que eu me ia deitar com um
troglodita desses? E deixa-te de rodeios porque não te vou
revelar quem é o gajo, não estou para perder a pensão com
que ele compra o meu silêncio. E tu também, o melhor é não
mexeres muito na merda, é com o dinheiro dele que às vezes
enches a barriga.
Agastada, Chantal levantou-se da mesa e foi-se sentar
no fauteuil. Os gatos saltaram-lhe para o regaço e ela
acariciava-os distraidamente.
- O teu mal, mamã, é que sempre tiveste uma língua
demasiado comprida.
67
Camões terminou a lasanha e com uma careta bebeu
uma golada de coca-cola. Aquele estafermo bem que
poderia ter tido a amabilidade de comprar uma garrafa de
vinho. Era urna barbaridade forçá-lo a engolir aquela
xaropada, capaz de lhe azedar a lasanha no estômago.
Depois da inesperada revelação, instalara-se um
palpável mal-estar entre eles. Enquanto lavava a loiça,
France lançava olhares de soslaio e Chantal continuava a
acariciar os gatos que ronronavam deliciados.
- Ouve lá, ó Camoês - acabou por dizer France -, vê lá
se vais para aí contar isto que eu disse. Não me queiras
estragar a vida.
- Estás-me a tornar por quem? Esta boca é um
túmulo, daqui não sai palavra.
- E é se queres continuar a papar umas lasanhas, de
vez em quando.
Era inacreditável como tudo dera tão drástica
reviravolta, num pedaço de serão. Ele que passara uma
semana quase louco por reencontrar a Chantal, bastara a
revelação da France para subalternizar, num repente, todos
os ardores amorosos. Até quase lhe passava despercebido
que o objecto da sua obsessão estava ali, a dois passos dele,
abandonada no mesmo fauteuil dos seus pesadelos, numa
reconstituição quase fiel da imagem que lhe queimara os
miolos durante longos dias. E ali estava ele agora, grudado à
mesa da cozinha, a pensar nela, é certo, mas sob um prisma
diferente, não mais como a deusa dos seus ardores amorosos
mas como a filha, assexuada, dum misterioso político de
renome, cuja identidade estava dolorosamente oculta por
espessa faixa de sombra, lá num limbo indestrinçável que
tinha como guardiã, facto assombroso e inverosímil, esse
estupor da France, protagonista do enredo.
Despediu-se abruptamente e, já no seu apartamento,
atirou-se para cima da cama. Ficou de costas, no escuro,
68
apossado por uma inquietação que lhe cortava a respiração.
E, como as cortinas dum palco que se abrem aos olhos do
público, assim a ideia se foi concretizando, a princípio baça,
informe, mas aos poucos, numa construção gradual, cada vez
mais clara, luminosa como uma bola de cristal: “Tenho que
saber quem é o gajo, isto pode ser a minha galinha dos ovos
de oiro.”
69
Como soldados, os computadores foram chegando,
numa invasão silenciosa e irreversível. Ficaram alinhados ao
fundo da sala, os olhos ciclópicos profundos e vigilantes, à
espera de ordens.
Finalmente, um dia, o Ed Stevens apresentou-lhes um
jovem oriental, de idade indefinida, magro como um espeto,
no seu fato de bom corte e ar brilhante com aqueles óculos
de aros dourados.
- Este é o Nhan, será ele que vos irá dar o curso de
autocad. Aproveitem bem.
Nhan sorria, com aquele ar indecifrável característico
dos asiáticos e, quando se sentou defronte de um dos
computadores, as suas mãos, ágeis como as dum pianista,
pareciam uma prolongação natural das teclas, tocadas pela
magia de arrancar cintilantes imagens do ecrã.
Quando começou o curso, foi como se o inferno se
abrisse aos pés de Luís. Por nada lhe entrava na cabeça
aquela complicação dos ficheiros, tira do ficheiro, põe no
ficheiro, cria um desenho, chama um desenho. Enganava-se
numa tecla e lá perdia tudo, tinha que ir, de rabo entre as
pernas, pedir socorro ao Nhan que, sem nunca levantar a
voz, naquele francês a comer os rr, tornava a explicar tudo
desde o princípio:
- Pensa numa casa com o hall que é o dos - ilustrava.
- Uma casa tem quartos e cada quarto tem móveis com
frustrado, envergonhado. Os colegas lá se iam
desenrascando, faziam progressos evidentes. Ele e o Michel
eram as ovelhas ranhosas do grupo, mas este estava-se tintas
para tudo.
70
- Fuck them - dizia, apontando com o colegas
debruçados sobre os computadores -, não sou que vou
morrer agarrado a essa merda.
O que lhes valia era o Peel Pub, à hora do almoço.
Como sempre superlotado, predominantemente gente nova,
estudantes das universidades circunvizinhas, havia no ar um
rastro de boémia e descontracção, os empregados numa lufalufa, carregados de pichets de cerveja.
- Merda para aquilo - dizia o Michel, emborcando
copo atrás de copo, o nariz de dia para dia mais rubicundo.
Aquilo é para a malta nova, já não é para nós que temos os
parafusos todos enferrujados.
Luís concordava, uma manápula de terror a apertarlhe o coração. E para arredar as sombras do futuro, já não
protestava quando o Michel lhe enchia o copo e pedia outro
pichet para a mesa.
Finalmente, um dia, teve um telefonema do Arcand, o
chefe de pessoal. Telefonema há muito adivinhado e
esperado, a síntese natural da conjugação de factos
inelutáveis.
- Senta-te - disse o Arcand. E sem mais preâmbulos,
como quem tem pressa de se desembaraçar duma tarefa
aborrecida, foi logo direito ao assunto. – Lamento não poder
renovar o teu contrato mas, como sabes, os tempos estão
difíceis e há falta de trabalho. Além disso, as novas
tecnologias impõem-nos uma restruturação radical dos
nossos quadros de pessoal que nos assegure uma eficiência e
capacidade competitiva em mercados cada vez mais
exigentes e restritos. Se alguma oportunidade se apresentar,
no futuro, fica a saber que não hesitarei em entrar, de novo,
em contacto contigo.
Com a carta de despedimento na mão, regressou ao
seu canto.
- Também tu?- riu-se o Michel. - Também tive a
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minha esta manhã. Vamos ao Peel Pub celebrar?
Ao redor, os colegas, nervosos, não despregavam os
olhos dos telefones. Só quando se asseguraram que a
tempestade tinha passado é que se aproximaram, como
gaivotas tontas, os rostos ainda distorcidos num rito patético
mas com os olhos esfuziantes de alegria, de poupados a pena
capital.
- Quantos foram? Quantos foram? - perguntavam
num cicio roufenho, patéticos, como soldados, depois da
batalha, a contar os mortos.
- Podem-se tranquilizar – acalmou-os Michel. - Desta
vez fomos só nós os dois mas garanto-vos que, quando esta
merda dos computadores estiver a funcionar a cem por
cento, mais de metade do pessoal vai parar ao olho da rua.
Os sobreviventes entreolharam-se, ainda pálidos e
aturdidos, mas a consciência de terem escapado a esta
revoada já lhes renovava as forças do sarcasmo.
- A cerveja do Peel Pub já te apodreceu a massa
cinzenta - regougou o Richard.
Incapaz de suportar tamanho canibalismo, Luís foi-se
refugiar na casa de banho. A última vez que se confrontara
com o espelho, por altura do ataque cardíaco do Dominic,
fora recebido por um par de olhos roídos pelo remorso mas
desta vez os olhos que o fitavam eram mais miseráveis do
que os dum cão espancado.
Perguntava-se qual seria a reacção da Cândida. Com
a neura que ela andava, era bem capaz de se pôr a disparatar,
de proferir palavras irreversíveis, daquelas que ficam para
sempre incontornáveis, agarradas à vida dum casal. Ou
então, se lhe desse na veneta, imprevisível, podia muito bem,
com uma gargalhada, retirar toda a importância ao caso:
- Deixa lá, não vai morrer ninguém por causa disso com aquela coragem a tocar as raias da leviandade, tão ao
jeito dela.
72
Mas fosse qual fosse a reacção que o esperava, e isso
é que o amarfanhava, pressentia que nesse dia se encerrara
um ciclo da sua vida, que este despedimento não tinha a
banalidade dos anteriores. Que a revolução tecnológica que
avassalava o mundo, precursora duma nova era, iria deixar
urn rasto de vítimas incapazes de se acomodarem aos novos
tempos e, o pior, já se via no rol dos sacrificados e
cilindrados.
Apetecia-lhe chegar a casa, encostar a cabeça ao peito
da Cândida e, sem palavras, ficar assim uma eternidade,
sorvendo dela a força anímica de que se sentia esvaído.
Agora, no gabinete parecia que nada se tinha passado.
O Michel fora, sem dúvida, retemperar forças ao Peel Pub.
Os colegas, concentrados, sorviam as palavras sábias do
Nhan. Não restava o mínimo vestígio do vendaval. Olhares
casuais atravessavam-no como a um objecto translúcido,
ninguém lhe dirigia a palavra, era como se já não existisse.
73
Era uma hora da tarde, logo depois do almoço.
- Sabes que fui despedido? - perguntou John, de
cabeça vergada.
De tão surpreendido, apanhado assim de chofre, Vaz
nem foi capaz de reagir, sem palavras para consolar o
velhote. E ainda mal se começava a recompor, foi chamado
ao gabinete do mister Salomon.
- Senta-te, senta-te - disse-lhe, amavelmente, este.
Como sempre, sobre a secretária, lá estava a
fotografia de miss Sara ainda adolescente e aquele jogo de
cachimbos que ninguém sabia exactamente o que fazia ali
pois mister Salomon não fumava nem havia memória de que
o tivesse feito alguma vez.
- Já deves saber que o John nos vai deixar
brevemente. Já começa a estar de certa idade, a precisar de
repouso. Se te interessar, o lugar dele passa a ser teu, a partir
de hoje mesmo. Aceitas?
Os olhos azuis de mister Salomon pousaram nele sem
pressas, certos da resposta.
Vaz escondeu as mãos para que o patrão não se
apercebesse como tremiam e o suor começou a aflorar-lhe a
nuca.
- É tão inesperado, mister Salomon, mas claro que
aceito. – Compreendia que devia acrescentar mais alguma
coisa e sentia dificuldades em encontrar as palavras
escorregadias. – Irei fazer o rmeu melhor, para merecer a
confiança depositada em mim.
- Óptimo, está o caso encerrado - atalhou mister
Salomon. Com a mão, fez-lhe um aceno para se ir embora. 74
Tenho que fazer um telefonema urgente.
Quando Vaz já estava com um pé fora do gabinete,
ainda lhe atirou: - Sabes que a minha filha te tem em grande
estima?
Vaz voltou-se atónito mas já mister Salomon estava
de auscultador na mão e, sem o encarar, fazia-lhe sinal para
fechar a porta. A caminho do local de trabalho, parecia
caminhar, imponderável, sobre algodão em rama.
Mal acabara de se sentar, o telefone tocou. Era miss
Sara.
- Então, está satisfeito?
Engasgado, o suor a rebentar em cachão por todo o
corpo, não conseguia articular palavra.
Do outro lado, a voz de cristal soava divertida.
- Então não diz nada? Não me diga que não ficou
satisfeito?
Quando conseguiu falar, mal reconhecia a própria
voz, resvaladiça como melaço, sem uma nota mais alta.
- Claro que estou contente, miss Sara, é uma grande
honra que o seu pai me faz.
Sentia-se aliviado por miss Sara não estar presente e
vê-lo naquele estado lastimoso, seria uma humilhação difícil
de suportar.
- Temos que festejar isso - tornou ela -, logo à tarde
está livre?
- Claro, miss Sara.
- Ok, então até logo e deixe de me tratar por miss.
Aos poucos, as ideias começaram a arrumar-se.
Estava cada vez mais certo que ali andara a mão da miss
Sara. Sabia-se competente profissionalmente mas tudo se
passara demasiado rápido, era evidente a existência duma
orquestração, e que outra pessoa poderia ser responsável de
tão inesperado desfecho senão ela? Não era por acaso que na
fábrica se dizia que mister Salomon obedecia cegamente a
75
todos os caprichos da filha, incapaz de a contrariar fosse no
que fosse.
A Teresa tinha razão quando dizia que, desde o Natal,
ele andava com o diabo no corpo. E não era para menos,
parecia-lhe uma alucinação aquele súbito e inequívoco
interesse da miss Sara. Bonita, rica, o mundo a seus pés, era
quase uma aberração ter reparado num tipo insignificante
como ele.
Pousou as palmas das mãos na secretária e atirou as
omoplatas para trás. John tinha-se eclipsado, pela certa
destroçado com a porretada que recebera. Coitado do
homem, não era mau tipo. Agora, passada a primeira vaga de
emoção, começava a inquietar-se por ele. E, sem saber
como, subiu-lhe à memória a figura grotesca do ti Tavares,
lá na fábrica, em Portugal. Operador da máquina de
fotocópias, bode expiatório de todos os maus humores e alvo
constante de chocalhice, com aquele seu corpo grandalhão e
desproporcionado, onde se espetava uma cabeça de símio,
com os olhitos redondos e amarelados muito afastados e os
cabelos grisalhos, cortados à escovinha, espetados e rijos
como cerdas. Mas com um coração de criança grande.
Chorara baba e ranho quando lhe deram a notícia que iam
reformá-lo.
“O que vou fazer lá para casa? - lamuriava-se. Chatear a velhota?
Fora um choque para todos. Ele próprio encabeçara o
movimento contestatário, o ambiente da fábrica nunca mais
seria o mesmo sem a figura típica do ti Tavares. Acabaram
por vergar as leis da burocracia e o velho por lá ficara, feliz,
reconhecido e sempre rezingão.
Mas isso era outra história e outros tempos, o John
não era o ti Tavares e uma oportunidade daquelas não era
para desperdiçar. Não era todos os dias que uma benesse
daquelas caía assim do céu e no Canadá não havia tempo
76
para reflectir nas desgraças alheias, era um luxo que
ninguém se podia permitir, principalmente nos tempos que
corriam, quando toda a gente falava em crise económica e o
desemprego grassava impiedosamente.
Consultou o relógio. Três horas da tarde. Dentro de
duas horas, a miss Sara, a Sara, lá estaria com o seu BMW a
roncar, na saída principal, à espera. À sua espera. Para irem
a qualquer lado festejar a sua promoção. Era quinta-feira e a
Teresa contava com ele para saírem às compras. As malditas
compras das quintas-feiras à tarde. Que se lixasse. As
compras podiam muito bem ser adiadas, ninguém iria morrer
à fome. Impensável seria recusar um convite daqueles.
Inventaria uma desculpa, uma urgência qualquer, um overtime irrecusável.
77
- Mas isso é fabuloso! - exclamou, assombrado,
Blackfeed. - Tens de descobrir quem é o pássaro.
Camões ainda mal tinha aberto a boca e já estava
arrependido de ter revelado o seu segredo ao amigo. Tudo
culpa do sortilégio do Belitz, da cerveja, das luzes, da Betty
mais portentosa do que nunca. Sobretudo, da cerveja. Já
tinha perdido a conta às canecas emborcadas, o cheque desse
mês já estava quase derretido e ainda só o recebera na
véspera, nem sabia que desculpa inventar quando se cruzasse
com as ventas de perdigueiro do porteiro. A única luz que
via no fundo do túnel era aquela história do pai da Chantal,
derradeira esperança de se libertar daquela escravidão da
dependência do cheque do bien-être que mal dava para um
par de cervejas.
- Vê lá se falas disto a alguém! Jura que não abres a
boca.
Blackfeed não respondeu, mergulhado em profunda
reflexão, esquecida a caneca ainda quase intacta.
- Isso pode ser a salvação dos meus irmãos - proferiu
finalmente.
- Quais teus irmãos?!- sobressaltou-se Camões.
- Dos meus irmãos de Kanesatake - prosseguiu o
índio, agora de olhos fulgurantes. – Eu sabia que me estava
reservada uma missão redentora, que não era um traidor do
meu povo.
- Estás maluco ou quê?!
Blackfeed esmagava-lhe o pulso com a tenaz da
manápula e, soerguido na cadeira, quase encostara o carão
luzidio ao seu.
78
- Se conseguirmos identificar esse tipo, o meu povo
ficará com um trunfo político, de valor incalculável, nas
mãos.
- O teu povo, uma ova! Que é de valor incalculável
sei eu, mas é meu. - Camões, com uma sacudidela soltou-se
da garra do amigo. - É meu, estás a ouvir? Só meu e de mais
ninguém, quero que o teu povo vá bardamerda.
- E eu que te pensava meu amigo. Quem despreza o
meu povo também não pode ser meu amigo.
- Não troques alhos por bugalhos - contemporizou
Camões. – Eu sou teu amigo mas não me interessa para nada
o que se passa lá para Oka.
Blackfeed esvaziou a caneca duma golada e levantouse, com um brilho de dignidade ferida nos olhos.
- Adeus - disse. - Já não temos mais nada a dizer um
ao outro.
Camões já só o viu a deslizar por entre as mesas,
direito à porta da rua.
- Zangaste-te com o índio? - perguntou-lhe a Betty.
- Esse gajo é um parvo. Traz-me outra cerveja.
Os fumos do álcool sumiram-se por encanto. Nunca
anteriormente tinha visto aquele brilho no fundo dos olhos
do Blackfecd e estava preocupado, a farejar um perigo novo
e desconhecido.
Nos últimos tempos, o amigo andava insuportável, à
medida que o conflito se azedava lá para Oka, parecia um
furacão a engrossar.
- Qualquer dia vais deixar de me ver - anunciava-lhe.
– Vamos levantar barricadas e lutar até à morte. Só passando
sobre os nossos cadáveres é que os brancos nos roubarão as
nossas terras ancestrais.
Nunca o levara muito a sério, atirava tudo para a
fanfarronada, afinal de contas o Blackfeed era um bebedolas,
queria lá ele saber da sorte dos índios. Seria capaz de vender
79
todas as tribos do Canadá em troca duma grade de cerveja.
Só quando estava perdido de bêbado é que se punha com
aquele arrazoado. A outros dava-lhes para chorar, ou para
brigar ou para cantar, não havia duas bebedeiras iguais.
“Só com a bebedeira é que se conhecem as pessoas,
costumava dizer o pai, é quando deixam cair a máscara.” O
pai falava assim quando o via chegar a casa esfarrapado e
magoado das zaragatas. “A quem é que este rapaz sai, meu
Deus?”, levava as mãos à cabeça. O que o pobre homem
penava por causa dele, era pior do que dar-lhe facadas vê-lo
chegar a casa naquele estado miserável. “Ainda hás-de
acabar com os ossos numa prisão. E dizer que gastei o quc
tinha e o que não tinha para te pôr a estudar, dinheiro que foi
o meu sangue.”
Carpinteiro, fora um daqueles homens que passara pela
vida sem levantar uma onda, silencioso, de casa para o
trabalho, do trabalho para casa, de semblante crispado pelo
futuro cada vez mais incerto do filho. “A quem é que este
rapaz sai, meu Deus?”, interrogava até à exaustão.
Morrera durante a sua comissão em Angola. De noite,
sem um pio, como vivera. A notícia chegara-lhe na bofetada
seca dum aerograma.
- Betty, traz-me outra cerveja.
- Já te chega, por hoje - disse a rapariga, acariciandolhe a cabeleira revolta.
- Desde quando é que proibes um cliente de beber
mais?
- Desde o momento em que começo a me interessar
por ele.
Já só a viu a singrar por entre as mesas, perseguida
pelas jokes da clientela. Era sábado à noite e o Belitz estava
à cunha. O que é que ela quisera dizer com aquilo? Se fora o
que compreendera, tinha-lhe saído a sorte grande nessa
noite. O Blackfeed que se lixasse. A Betty valia, bem à
80
vontade, dez amigos como ele. E quanto aos projectos sobre
o pai da Chantal, podiam muito bem esperar para mais tarde.
O que mais o seduzia na vida era o fascínio do
imprevisto. Sentimento que o pai nunca soubera
compreender e muito menos experimentar.
81
- Sabes, querido, hoje recebemos um convite. A vida
tem destes imprevistos. Passara toda a viagem de regresso a
casa a magicar como lhe haveria de dar a notícia do
despedimento, julgara ter encontrado uma via menos má e,
pronto, ia a abrir a boca para deitar aquilo cá para fora de
uma vez por todas quando ela lhe saiu com aquela e lhe
cerceou as boas intenções e o assomo de coragem.
- Um convite?
É ostentatório o entusiasmo da Cândida. Saltita como
uma cadelita que viu o dono e o sangue ferve-lhe nas maçãs
rosadas do rosto.
- Sim, um convite muito gentil do Peter. O Peter tem
um bungalow nas Laurentides e todos os anos convida os
amigos para um barbecue de abertura da estação. Foi muito
simpático da parte dele ter-se lembrado de nós.
- De nós ou de ti?
As palavras saíram-lhe assim de rompão, ásperas,
incontroláveis.
- Que bicho te mordeu? Já começas outra vez com as
tuas histórias de ciúmes?
Luís enterrou as unhas nas palmas das mãos. Por
aquele caminho ainda iriam cair em mais uma discussão
estéril antes de lhe dar tempo para contar a história do
despedimento mas, no fundo, sentia-se aliviado por aquele
pretexto para protelar a confissão. Até talvez fosse melhor
assim. Mais tarde, depois do jantar, com certeza a ocasião
seria mais propícia e oportuna.
- Já agora, conta lá como é isso. Não será muito
cedo? Os mosquitos ainda são aos montes, capazes de nos
82
comer vivos.
- O Peter sabe muito bem o que faz. Se ele pensa que
está na altura é porque está. Não és tu que vais ensinar a
música ao maestro.
A Cândida depressa reencontrou o estado de
excitação. Há mesmo certa febrilidade nos modos sacudidos
com que prepara a salada, com que ripa as folhas da alface,
com que põe a mesa, num tilintar inusual dos talheres.
O manancial ininterrupto da conversa:
- Já é sagrado todos os anos este barbecue. Durante
um mês, não se fala noutra coisa lá no Eatons. Aquilo é
mesmo em grande, há sempre grandes peripécias que
acontecem. O ano passado, o René estava tão perdido de
bêbado que se queria afogar no lago, tiveram quc o segurar
até que lhe deu o sono.
- E é assim tão engraçado?
- Então não é? Estás a ver a figura daquele calmeirão
do René a chorar como uma criança e a ameaçar que se
deitava a afogar no lago? Devia ser de morrer de riso. E tudo
porque se lhe meteu na cabeça que a mulher dele estava a
fazer olhinhos ao Peter.
- Se calhar estava.
- E se estivesse, olha que não tinha mau gosto.
Nunca anteriormente a Cândida tivera uma linguagem
tão descarada. Era como se, a um certo momento, que ele
não sabia localizar no tempo, tivesse despido a pele de
portuguesa meio preconceituosa, capaz de corar com uma
conversa picante, para se transformar noutra pessoa, frívola,
descarada, amoral.
Arrependeu-se de tais pensamentos, de que o pançudo
do Costa não desdenharia a paternidade. Bolas, a influência
daquele gajo devia andar a fazer-lhe mal, um dia teria que
cortar, duma vez por todas, com tão disparatada relação. À
força de tanto pisar e repisar, o gajo lá ia levando a água ao
83
seu moinho e bastava uma pessoa estar na mó de baixo, meio
acabrunhado pela vida, para se deixar influenciar, quase sem
se dar conta. As ideias mórbidas são mesmo assim,
enroscam-se como serpentes na boa-fé, quando se dá por
isso já se reproduziram por aí além, nada as pode arrancar e
destruir. Era mesquinho da sua parte ter uma reacção tão
disparatada a um convite tão correcto e amável. E logo vindo
dele que, com os amigos, se estava sempre a armar em
cavaleiro andante da integração. Pois quando lhe surgia uma
oportunidade para harmonizar as palavras com os actos,
parecia um molusco a fechar-se na concha, desconfiado e
agressivo, a cheirar perigos por todo o lado. Sem tirar nem
pôr como esses zés portugueses que hostilizam tudo o que
não compreendem, incapazes de se abeirarem das outras
culturas, quanto mais de as penetrarem. E ele, Luís, sempre a
fazer finca-pé na sua diferença, o outsider da manada, era
bem pior do que eles todos juntos.
- Com certeza já disseste ao Peter que aceitamos o
seu amável convite.
- Claro que não. Nos últimos tempos, nunca sei para
que lado vais descarrilar. Queres então ir? Estás certo disso
ou é só para me fazer o favor?
Buscou os olhos da mulher, numa procura instintiva
da sinceridade das palavras. Continuava neles aquele fogo
que lhe afilava o rosto e que, sem saber bem porquê, o
inquietava e mergulhava naquele estado de prostração
mórbida.
- O Peter tem algum barco para andar no lago? –
perguntou o filho.
- Claro que tem. E o lago está cheio de peixes, o ano
passado o Peter apanhou um peixe enorme quase do
tamanho dele.
Divorciado da conversa, os pensamentos de Luís
refluíram para as suas preocupações, para a realidade do
84
despedimento. A hipoteca da casa para pagar, as prestações
do carro, não era preciso ser um grande contabilista para
compreender que a situação era alarmante.
E os bancos não perdoavam, com a recessão, eram
sem conta as famílias que tinham perdido as casas, na rua
deles sabia de pelo menos dois casos. Um fora a família
vietnamita, segundo lhe constara tinham um restaurante que
faliu, dai a perder a casa foi um curto passo. Na véspera, no
autocarro da manhã, o homem confessara-lhe a tragédia:
- Vamos mudar, não podemos pagar a hipoteca.
E mais não dissera, a fenda dos olhos mais cerrada do
que o habitual.
Quando conversasse com a Cândida, não queria que o
filho estivesse presente, não valia a pena afligi-lo, tinha
tempo de sobra para saber o que era a vida. Quanto mais
tempo o pudesse manter afastado da selva da sobrevivência,
melhor. Ainda a criança não era nascida, aos pinotes no
ventre da mãe, fizera a promessa de lhe evitar os
traumatismos que ele próprio sofrera em criança. Era uma
dor até às tripas assistir às aflições financeiras dos pais, ao
rondar dos fins dos meses. À mesa, ao jantar, as batatas
engroladas com o azedume das palavras que escorriam
imprevidentes. Nunca os pais tiveram olhos para as aflições
que lhe causavam, era como lâminas a dilacerá-lo, ficava
vulnerável, exposto, miserável, em carne viva. A tal ponto
que, quando acabara o curso industrial e os pais falavam,
num último sacrifício, em enviá-lo para o Instituto Técnico,
recusara.
“Estou farto de estudar”, mentira. Nunca lhes revelara
a verdadeira razão da recusa.
Viera-lhe dessa adolescência fragilizada o gosto pela
leitura, a procura do abrigo que representavam os livros e,
aos poucos, a tentativa de escrevinhar, no segredo do sótão,
num mundo só dele, onde não podia atingi-lo a crueldade
85
exterior. Os desportos, o hóquei, vieram por acréscimo,
busca de superação dum corpo aprisionado por angústias já
interiorizadas. O esforço até à exaustão provocava-lhe uma
sensação única de flutuação e libertação, próxima do
sentimento de evasão que encontrava nos livros.
86
As últimas semanas tinham sido um turbilhão, como
se um vórtice engolfasse os acontecimentos, com a
velocidade da luz.
Ali estava ele, já noite cerrada, os filhos deitados,
sentado à mesa da cozinha, a talhar e retalhar a casca duma
laranja, até à mais ínfima porção, pronto para confessar à
Teresa que a ia deixar, enquanto esta, com uma tagarelice
inabitual, enquanto lavava a loiça, lhe narrava os recentes
problemas na fábrica, completamente a leste do drama que a
rondava.
- Aquilo não pode ser, agora os patrões querem
despedir metade do pessoal c pôr as restantes a trabalhar à
peça. Já estivemos a fazer as contas, assim por alto, com
muita sorte, a trabalhar como umas malucas, vamos ter uma
redução de salário de mais de trinta por cento, aquilo vai ser
o fim do mundo. É melhor ir para a chômage do que ficar e
aceitar aquela loucura. Sabes quantos forros de casaco eu já
prego por dia? Nem queiras saber, mais de cinquenta, e
ainda não estão satisfeitos, são insaciáveis.
O zumbido da voz da mulher era como uma música
em surdina que, não obstante o começar a molestar, tinha o
condão de lhe dar tempo para reflectir e coordenar ideias.
Nessa tarde, ao chegar a casa, já tinha tudo preparado, na
ponta da língua: Teresa, o nosso casamento chegou a um
beco sem saída e o único remédio que vejo é uma separação
temporária para dar tempo a uma reflexão séria sobre a nossa
relação. Era assim que tudo se deveria, em princípio, passar
e se ela começasse a chorar, o que seria normal em tais
circunstâncias, também já tinha na algibeira uma mão-cheia
87
de palavras de reconforto: aconteça o que acontecer, ficarei
para sempre teu amigo, nunca esquecerei que és a mãe dos
meus filhos e que enfrentámos a vida juntos durante quase
quinze anos. E se a pergunta inevitável surgisse: sim, há uma
outra mulher na minha vida. Estava disposto a falar com
frontalidade
e sinceridadc,
resolver a
situação
amigavelmente, com civismo.
- Aquilo anda tudo revoltado - prosseguiu a Teresa. A exploração também tem limites, os patrões queixam-se da
concorrência da Ásia, dos custos de produção mais baixos
dos países pobres, mas a gente bem os vê com grandes
carros, cheios de luxo, o que eles querem é tapar-nos os
olhos.
Maldito tagarelar sem uma brecha por onde se
introduzir, por aquele caminho ainda não seria nessa noite
que a situação ficaria em pratos limpos. A Sara estava cada
vez mais impaciente, sem compreender a razão da sua
indecisão e daquele protelar indefinido da sua promessa de
romper com a Teresa. Detesto deitar-me com homens
casados, estava sempre a relembrar, não gosto de partilhar os
meus amantes com mais ninguém, principalmente com as
mulheres deles. A Sara era assim, não sabia mastigar as
palavras, o que tinha a dizer dizia-o logo, sem camuflagens,
com a frontalidade só acessível aos prendados da vida que
não precisam de vergar a espinha diante de ninguém.
- Mas ainda vão acabar por se tramar - continuava a
cegarrega da Teresa -, a Maria Chilena anda a tentar meter o
sindicato lá dentro e, se eles não se aperceberem e derem
tempo para isso, as coisas não vã ser como eles querem. A
princípio, quando a Maria falou nisso, o pessoal,
principalmente as portuguesas, tinha medo, não queriam
saber de sindicatos para nada mas agora, que começam a ver
o rabo entalado, já viraram o rabo ao prego.
Seria que o mister Salomon já estava inteirado
88
daquela relação? Ainda não ganhara coragem para fazer a
pergunta a Sara mas, lá na fábrica, o caso já era do domínio
público e o mister Salomon não era trouxa nenhum, com
aqueles olhos perscrutadores, por detrás dos óculos, nada lhe
escapava. Em todo o caso, estava cada vez mais amável,
cumulava-o de atenções, a comprovar-lhe que deveria
observar com agrado o rumo dos acontecimentos.
Acontecimentos que, desde a celebração da sua
promoção, ganharam uma aceleração imparável. A
sensualidade de Sara transbordava como as ribeiras no
degelo, avassaladora, possessiva, numa galopada frenética
de motel em motel, a quantidade de over-times que tivera de
inventar para ludibriar a mulher. Tens de compreender, com
esta promoção, preciso de segurar o lugar, assim justificava
as ausências e o cansaço que o fazia logo voltar as costas a
ressonar mal caía na cama.
- Gostava que conhecesses a Maria, aquilo é uma
mulher a valer, nada lhe mete medo, sempre pronta a dar a
cara pelos outros, o que eu tenho medo é que os patrões
descubram a marosca antes do sindicato ir para a frente e
que a metam logo no olho da rua. Eu já a avisei para ter
cuidado, há lá meninas que só para caírem nas boas graças
dos bossas são capazes de lhes irem meter tudo no rabo.
Com Sara redescobrira uma virilidade que julgava
estar a esmorecer com o rondar dos quarenta. Afinal, ainda
estava ali para as curvas, com o ardor dos vinte anos
inteirinho e essa constatação reconstituía-lhe o orgulho
masculino já meio perdido por quinze anos de casamento e
pelo aborrecimento da crescente flacidez das carnes da
Teresa, já desbravadas e desvendadas em todos os sentidos.
Com a Sara havia toda uma sensualidade renovada e
alimentada por fontes por vezes tão simples como uma
garrafa de champanhe ou um par de velas acesas, jogos
lúdicos em que ela era mestra. Com a Teresa, não se
89
recordava de uma só vez em que ela tivesse assumido a
iniciativa amorosa, mesmo que estivesse a morrer de desejo.
Sara era o extremo oposto, não se inibia em declarar a sua
sensualidade, quando me apetece sou como um tigre, dizia
uma gargalhada cheia de dentes carnívoros.
- Recordas-te de há uns anos atrás, quando se tentou
meter o sindicato? Fomos a eleições e a maioria votou
contra, depois disso os patrões não foram mancos a despedir
os responsáveis. Se desta vez a coisa se repetir, a Maria pode
começar a fazer as malas para regressar ao Chile, nunca mais
vai arranjar trabalho no Canadá, mas que é uma mulher
corajosa lá isso é.
Pronto, a noite já ia por aí além, toda a coragem
armazenada se esvaíra como a água duma clepsidra, até já
começava a bocejar e a cabecear de sono, tudo teria que ser
remetido, mais uma vez, para melhor oportunidade. A Sara
iria compreender, bolas, para ela tudo era fácil, não tinha um
companheiro de quem se desenvencilhar, nem o imbróglio
dos filhos. Nem queria pensar qual seria a reacção deles.
- Vamos para a cama? - disse para a Teresa. - Já
estou a cair de sono.
E, com surpresa, reparou que esta era a primeira
noite, em muitas semanas, que não tinham discutido.
90
Acordou estremunhado com as violentas pancadas na
porta.
- Abre, maudit, abre esta porta.
Reconheceu a voz da France e levantou-se
assarapantado, esforçando-se por se orientar na penumbra
dos blinds corridos.
- Já vai, grande cabra.
Quando abriu a porta, mal teve tempo de se furtar,
por uma unha negra, ao golpe da faca de cozinha que a
France lhe desferiu.
- Vou-te matar, maudit immigrant.
Com os sentidos já completamente despertos,
Camões, com um salto felino, torceu o pulso à mulher que,
com um gemido de dor, acabou por largar a arma. Ficou a
roncar, à beira da apoplexia, os olhos a dardejar rancores.
- Eh, que bicho te mordeu? Estás maluca ou quê?
- Maudit, maudit - era só o que ela repetia.
Camões apanhou a faca do chão e foi,
cautelosamente, colocá-la sobre a banca do lava-loiça.
- És capaz de me contar, duma vez por todas, o que se
passa?
France continuava a resfolegar mas era evidente que
começava a ficar mais calma. O suficiente para começar a
soluçar.
- Não esperava isto de ti. Tantas vezes que te matei a
fome e pagas-me deste modo. – Deixara-se, cair como um
saco de batatas no soalho, e chorava como uma madalena,
toda borrada das pinturas. - Como é que tiveste uma
coragem dessas?
Camões aproximou-se, perplexo.
- Que sorte a minha! - esmurrou a parede, uma onda
de raiva a subir-lhe das tripas. Era uma monstruosidade ser
91
arrancado assim ao mais dourado dos sonos, depois duma
memorável noite branca nos braços da Betty. Adormecer
enlevado com a imagem duma deusa e acordar com a visão
dum monstro daqueles, era o cúmulo da incongruência, uma
aberração inassimilável.
- Já chamei a polícia, madame - anunciou o senhor
Américo, enfiando o nariz no apartamento. - Fique
descansada que eles vão descobrir quem foi o malandro. - E
deitando um olhar ostensivo na direcção de Camões - Quem
foi não deve andar longe.
Camões sentiu a fúria cegá-lo, capaz duma loucura. Ia
deitar a mão à faca da France quando o zumbido da sirene da
polícia lhe petrificou o gesto.
- Diga-me lá o que se passa? - perguntou, com um
suspiro, voltando-se para o porteiro.
- Então não sabe? - disse este, com voz zombeteira e
um sorriso na cara. Nunca anteriormente Camões
vislumbrara um simulacro de sorriso naquela cara
anavalhada de rugas. – Então não sabe que assaltaram o
apartamento da madame?
Foi como se uma bomba lhe tivesse explodido na
cabeça: Blackfeed. O cabrão! Enquanto ele, armado em
garoto apaixonado, gemia nos braços da Betty, o sacana não
perdera tempo. Mas não ia perder pela demora, mal sabia ele
com quem se metera.
France perdera toda a compostura, a estrebuchar
como uma galinha choca.
- Aquela carta - gemia. - Aquela carta era a única
recordação que eu tinha dele. A única recordação do meu
grande amor.
Noutras circunstâncias, Camões teria desatado às
gargalhadas mas, naquele momento, uma luz encarnada
acendera-se em qualquer parte do seu cérebro, a alertá-lo
contra o perigo que o rondava. A polícia estava a chegar e ali
92
havia duas pessoas prontas a jurar-lhe pela pele. Felizmente
que estava vestido, nessa madrugada, ao chegar a casa, nem
se dera ao trabalho de se despir antes de se atirar para cima
da cama.
A sirene da polícia já enchia o quarto com o estrídulo
dum coro de cigarras. Correu para o roupeiro e apanhou a
pistola que enfiou no bolso traseiro das jeans.
- Aonde vai? - perguntou o porteiro, procurando
entrepor-se.
- Não é da tua conta, idiota. Sai da minha frente antes
que te rebente essa cabeça de abóbora.
O porteiro amedrontou-se e não ofereceu mais
resistência.
- A polícia já chegou, não vais escapar - ainda gritou,
quando o viu dois lanços de escada mais abaixo.
Chegado ao hall, já dois polícias tocavam à
campainha. Abriu-lhes a porta.
- É no primeiro andar - informou-os, com
naturalidade.
Na rua, apressou o passo. Dobrou a esquina da
Coloniale e cortou à direita, para a Roy, na direcção da StLaurent. Só então respirou aliviado. Estava um dia soberbo,
cheio de sol e na St-Laurent fluía docemente uma multidão
guiada pela música dos altifalantes. Era dia de feira e os
comerciantes, sorridentes e felizes, tinham tirado toda a
tralha para a rua, agradecidos pelo bonito dia que se lhes
oferecia.
Mas Camões não tinha tempo a perder. Passado o
perigo imediato, todos os seus sentidos se concentraram num
nome: Blackfeed. Na esquina da St-Laurent com a Pins,
entrou numa cabine telefónica e discou o número do amigo
mas não obteve resposta, o prolongado grito do telefone a
rebentar-lhe os nervos.
- Merda! - Largou o telefone, que ficou a baloiçar
93
como um enforcado, e saiu desabrido da cabina. O
Blackfeed não morava longe, um pouco mais acima, na rua
Laval e, com passo estugado, em dez minutos pôs-se lá.
Era um edifício triste e escalavrado, com um grande
cartaz, meio desengonçado, sobre a porta principal, a
anunciar, em letras vermelhas e garrafais, os apartamentos
de um-e-meio mobilados. Esmagou a campainha do 252 e,
mesmo do exterior, podia ouvir o berreiro que ela fazia. Não
tardou muito para que um sujeito com ar de árabe, em
camisola interior branca sem mangas, aparecesse, com a ira
a boiar nos olhos negros.
- Não vê que ninguém responde? - invectivou-o, num
francês execrável. - Não há ninguém nesse apartamento.
- Queria falar com o Blackfeed.
- Não ouviu o que eu disse? Não há ninguém nesse
apartamento. Foi-se embora esta manhã. - E sem cerimónias,
fechou a porta com estrondo.
Camões ficou desnorteado com o desfecho
imprevistodos acontecimentos. Procurar agora o Blackfeed
seria mais difícil do que procurar uma agulha num palheiro
e, apesar do calor, começou a sentir arrepios na espinha à
medida que o manto da realidade o ia envolvendo. Incapaz
de localizar o índio, a polícia no seu encalço, acusado dum
crime que não cometera mas com testemunhas dispostas a
crucificá-lo, a situação não era invejável.
O anúncio duma brasserie fê-lo então sentir os dardos
do sol a pino. Nos bolsos ainda lhe restavam uns trocos
miraculosamente salvos da farra da véspera e a secura que
lhe apertava a garganta começava a ser insuportável. Uma ou
duas cervejas com certeza lhe iriam clarear as ideias
enoveladas.
Lá dentro, uma penumbra sedativa para os olhos
fartos de luz, a frescura do copo de cerveja na palma da mão,
começou a poisar os pés em terra. Afinal, as coisas não eram
94
tão graves como as pintara. Já atravessara na vida situações
bem mais difíceis do que aquela e sempre se desenrascara
duma maneira ou doutra. Mesmo que o porteiro e a France o
acusassem do delito, não havia provas evidentes contra ele.
Era ridículo deixar-se apanhar naquela armadilha, o que
tinha a fazer era regressar ao apartamento, como se nada se
tivesse passado, e esperar tranquilamente pelo desenrolar dos
acontecimentos. Bebeu uma golada de cerveja e,
tranquilizado, levantou o olho para a televisão colocada
sobre uma consola, à sua direita. O que viu quase o fez saltar
de espanto. O repórter, com o pano de fundo de cerrado
pinhal, de microfone em punho, falava de Oka, da barricada
erguida pelos índios para cortar a estrada de acesso à região.
E, não havia engano possível, reconhecia-o perfeitamente,
entre os índios, por detrás da barricada, a câmara focava
agora, em grande plano, o Blackfeed. Um Blackfeed em
grande, de camuflado, espingarda na mão, rosto crispado,
pronto para o combate. Afinal, o sacana cumprira a
promessa de regressar à reserva e ao vê-lo ali, um pouco
teatral, mas com a determinação bem expressa no rosto,
Camões não se pôde furtar a que o apossasse um sentimento
de admiração e mesmo de apreço pelo amigo. Soltou uma
gargalhada franca e sonora, que fez voltar a cabeça aos
outros fregueses, e saiu para a luz do dia, reconciliado com o
mundo.
95
O tráfico na auto-estrada 15, no sentido de Montreal,
estava descongestionado e raramente o ponteiro do contaquilómetros descia abaixo dos cem.
Já decorrera uma hora desde que tinham deixado as
Laurentides e ainda ninguém abrira a boca.
O filho, morto de cansaço, recostara a cabeça no
banco e, com o rádio nos ouvidos, alheara-se do mundo. A
Cândida, refugiada atrás dos óculos de sol, era uma esfinge
insondável.
Luís fitava a linha afunilada da estrada, numa
concentração desnecessária. Por mais que se esforçasse, não
conseguia arredar da retina aquele bote a deslizar sorrateiro
sobre as águas e a sumir-se num refego do lago, por uma
hora longa como uma eternidade. Ao redor dele, ninguém
parecia interessado pelo facto, entretidos como estavam
todos em empanturrar-se de cerveja. Por fim, o bote
reaparecera e foi-se aproximando sorrateiro da margem, com
um ronronar surdo do motor. A meio caminho, já ouvia as
gargalhadas agudas da Cândida e, quando atracaram, o Peter
dera-lhe uma palmada amigável nas costas.
- Fui mostrar à Candy um recanto do lago que ela
nunca mais esquecerá na vida. Não é verdade, Candy?
Incapaz de interpretar o sentido das palavras de Peter
que, já com uma cerveja na mão, concentrava as atenções
gerais com uma anedota acerca dos newfies, voltara-se para a
mulher que, subitamente tensa, fitava, de olhos embaciados,
o lago polido como um espelho onde já alastravam sombras
espessas do entardecer precoce das montanhas.
- Podias ter-me, pelo menos, avisado que ias dar esse
96
passeio.
- Estavas tão entretido a preparar um hambúrguer que
não te quis incomodar.
- Podia querer ir com vocês - insistira, com os olhos
cravados nela, a força da voz a fugir-lhe.
Cândida voltara-se, irritada.
- És tão chato. E não me aborreças mais do que eu já
estou. Logo vi que não passavas sem me estragar o dia, com
as tuas parvoíces. Acho que o melhor é despedirmo-nos e
regressar a casa, já não estamos aqui a fazer nada.
- Já? - surpreendera-se Peter, quando lhe deram a
noticia. - Hão-de cá voltar, há recantos do lago magníficos
que a Candy ainda não viu.
Aquela voz nasalada remexia-lhe com os nervos,
insuportável, indecifrável. Por mais que se esforçasse, nunca
conseguiria compreender a maneira de ser dos ingleses,
naquela incongruência entre as palavras e a expressão glacial
dos olhos que nunca se iluminavam, mesmo quando riam.
Nesse aspecto, os quebecois eram completamente diferentes,
mais ao jeito português, com as emoções à flor dos olhos.
Entraram na ilha de Laval e pouco depois já se
avistava, lá ao fundo, o oratório St-Joseph, alvacento na
montanha verde. Com o anoitecer, o céu, até ali dum azul
profundo, começava a cobrir-se de nuvens pardas e uma
humidade viscosa colava-se à pele e sufocava os pulmões.
- Fecha essa janela e liga o ar condicionado - disse
Cândida, sem voltar a cabeça.
Obedeceu, sempre de olhos postos na estrada.
- Aquele recanto do lago era assim tão interessante? acabou por soltar a obsessão que o estrangulava.
Cândida tirou os óculos, de repelão.
- Encosta aí à berma. Encosta aí, já te disse.
Frenética, atirou a mão ao volante e o carro começou
às guinadas, estrada fora.
97
- Estás maluca?! - gritou Luís, depois de controlar o
veículo e parar na berma, cinquenta metros mais à frente. Querias-nos matar a todos?
Os olhos de Cândida fulguravam, as narinas
frementes.
- Queres saber o que fui fazer lá no lago? - As
palavras escapavam sibilantes da linha dos lábios
distorcidos, num rito de escárnio. - Queres realmente saber
ou preferes que eu me cale? Tens coragem para ouvir? - Os
olhos eram agora duas fendas felinas, dum amarelado
malsão, com a luz quebrada do entardecer. - Queres saber?
Luís crispou os maxilares para dominar a tremura dos
lábios. Uma mão de chumbo subia-lhe pelo peito e cerrava-lhe o pescoço.
- Vou-te então contar tudo, para que me deixes em
paz de uma vez por todas. - Subitamente, Cândida esvaziarase de forças, os olhos baços, a voz num fio, aos tropeções: O Peter levou-me lá para o meio do lago para me contar que
brevemente se vai juntar com o Réjean, um colega lá da loja.
O Peter é homossexual. Queres saber mais detalhes? - E sem
se poder conter mais, rompeu em soluços profundos que a
estremeciam pela raiz.
98
Sono adentro, o telefone retiniu na calada da noite,
num rompante de mensageiro sinistro.
Aos tropeções, no escuro, levantou o auscultador e o
bip-bip das ligações internacionais despertou-lhe os sentidos.
Logo reconheceu a voz lacrimosa da cunhada.
- És tu, Vaz? Desculpa acordá-los assim mas,
infelizmente, tenho uma má notícia para vos dar. - As
palavras chegavam quase inaudíveis, repassadas de soluços:
- O pai...estava tão tão bem..e...assim de
repente...deu-lhe uma trombose. Se a Teresa o quiser ver
ainda com vida...tem que se apressar... - Os soluços
afogavam as palavras. - Eu.. .eu...
Vaz levantou os olhos para o relógio de parede. Os
ponteiros marcavam ronceiros as três horas da manhã.
Teresa apareceu, branca de cal.
- Ouvi tudo no outro telefone - disse ela, com voz
amorfa. – Diz-lhe que apanho o primeiro avião. - E desabou
sobre o sofá, as mãos a apertar, espasmódicas, os joelhos.
Assim, em camisa de dormir, desgrenhada, olhos perdidos,
vulnerável, planta arrancada pela raiz, Vaz sentiu a ternura
apertar-lhe a garganta.
No silêncio da noite ferida por forças poderosas e
inelutáveis, Vaz respirava a fragilidade e a puerilidade da
vida. Apertou a cabeça da mulher contra o peito e ficaram,
sem palavras, em osmose, presas da incomensurável dor da
lonjura.
- Um dia, temos que pensar em regressar a Portugal 99
disse Teresa. - Aqui não é a nossa terra.
Vaz não respondeu mas apertou-a com mais força nos
braços, as torrentes subterrâneas a reemergirem das
profundezas, mais poderosas e irresistíveis do que nunca. Já
não devastadoras e erosivas mas fertilizantes e dominadas,
num leito aprazível dos sentimentos compartilhados.
- Teremos tempo de falar nisso mais tarde, mas agora
o que é preciso é arranjar-te um lugar num avião. Não vai ser
nada fácil, com as férias à porta.
Só então Teresa se entregou à dor. Vaz sentia-lhe os
espasmos do corpo vencido e as lágrimas dela ensopavamlhe o pijama no peito, cálidas e espessas.
O sogro sempre fora um sujeito correcto com ele.
Mesmo que inicialmente não demonstrasse muito
entusiasmo com o casamento da filha, depois, com o tempo,
à medida que se iam conhecendo melhor, estabelecera-se
entre os dois uma sólida amizade e uma cumplicidade fruto
das partidas de damas, no café. O jogo das damas era o único
vício do homem. Não fumava, não bebia, era o que se
poderia chamar, naqueles tempos, um chefe de família
exemplar. Entre o emprego de fiel de armazém na fábrica de
plásticos e o cuidar da horta, com uma meticulosidade
irrepreensível em tudo o que fazia, as partidas de damas, dos
sábados à noite, no café, eram a sua pedrada na rotina.
- Recordas-te como o meu pai gostava de jogar às
damas?
- Era nisso que estava a pensar.
- E sabes por que é que ele te respeitava? Porque eras
dos poucos que lhe conseguiam ganhar.
- Nem sempre.
- Ele dizia: este rapaz não é parvo nenhum, se tem
cabeça para as damas também a deve ter para a vida.
Começava a clarear. Um corvo grasnava no pinheiro
do quintal. O ar vibrante e luminoso da manhã ampliava o
100
trabalhar do motor dos carros dos vizinhos que partiam cedo
para os empregos.
E, apesar de exausto pela vigília, uma tranquilidade
de espírito há muito arredia, alastrava-lhe pelo corpo.
Acariciou o queixo húmido da mulher.
- Eu e o teu pai ainda iremos jogar muitas partidas
juntos, fica descansada.
101
A reconciliação com a vida foi sol de pouca dura.
Sem a companhia do Blackfeed e as lasanhas da
France, a vida perdeu todo o sortilégio. No Belitz, a Betty,
chamada por outras aventuras, ignorava-o ostensivamente e
a cidade, por onde deambulava sem norte, arreganhava-lhe
os dentes de hostilidade.
Um dia, de regresso a casa, reconheceu logo a sua
mutilada mala castanha à porta da rua.
- Pega nessa porcaria e desaparece de vez - rosnou o
senhor Américo, triunfal, esfregando-lhe no nariz um papel
branco, - Sabes o que é isto? É a resolução da Régie que eu
esperava há muito tempo. Rua, é o que está aqui escrito. Ou
sais voluntário, pelo teu pezinho, ou a polícia trata-te da
saúde. Mortinhos por isso estão eles.
- Podes fechar a cloaca? Já estou farto de te ouvir
ladrar.
- E muita sorte tens tu! A madame France foi muito
generosa em não apresentar queixa contra ti. A esta hora já
estavas com os ossos num calabouço, que é o lugar indicado
para a gente da tua laia.
Camões pegou na mala e levantou um dedo
ameaçador.
- Se me faltar alguma coisa, venho cá ajustar contas
contigo.
- Vê lá se te faltam algumas jóias - troçou o porteiro.
- Ou então as tuas acções na bolsa.
- Vai bardamerda.
Ainda esteve tentado a enfiar-lhe o cano da pistola
102
pela boca abaixo e fazê-lo borrar-se todo pelas pernas
abaixo, mas refreou-se, os tempos não iam de azo para tais
fanfarronadas e com os últimos acontecimentos ainda
frescos, não estava muito interessado em ter a polícia de
novo à perna.
- Qualquer dia venho-te fazer uma visita. Vais ficar a
saber o que é um português a valer.
Sem destino, acossado pelo calor húmido, foi-se
refugiar na frescura do jardim, ao fundo da rua.
Eram três horas da tarde e o lugar fora tomado de
assalto por estranha fauna. Deitados sobre a relva, grupos de
marginais embebedavam-se e injectavam-se às claras. Mais
para o coração do jardim, dois tipos barbudos e esfarrapados
tinham-se desavindo e esbofeteavam-se em silêncio, perante
a indiferença geral. Quando se cansaram, com as ventas
ensanguentadas, foram-se sentar à beira duma grade de
cerveja e continuaram a embebedar-se tranquilamente.
Camões alijou a mala e sentou-se num banco vago.
Das últimas contrariedades, mais do que o ressentimento
contra o Blackfeed, sentia um amargo de boca por não ter
chegado a conhecer o nome do pai da Chantal. Evocava os
nomes mais proeminentes da cena política e, por exclusão,
tentava deduzir qual seria, de entre eles, o antigo amoroso da
France. Mas era em vão, as pistas perdiam-se na
nebulosidade do raciocínio. Tivera nas mãos uma galinha de
ovos de ouro e não tivera arcaboiço para saber explorar tanta
sorte. Seriam agora os índios que iriam tirar partido do
segredo que ele, o parvo, com a bebedeira, lhes estendera
numa bandeja de prata. Quando na televisão aparecesse
algum figurão, a mastigar palavras doces a favor dos índios,
poderia apostar a cabeça em como era o tal. Ou então, os
índios, se fossem espertos, nem o trariam a público, seria
muito mais proveitoso manobrá-lo nos bastidores. Se assim
acontecesse, adeus curiosidade, ficar-lhe-ia para sempre na
103
cabeça um vulto fantasmagórico, sem rosto, a rir-se da sua
estupidez.
Sem um chavo no bolso e a perspectiva nada
encorajante de ter de passar a noite ao relento, sem saber
como, pela primeira vez desde há muitos anos, o desejo de
regressar a Portugal começou a avolumar-se. E por que não?
Se fosse preciso, iria roubar para arranjar o dinheiro para o
bilhete de avião. Gajos entendidos no assunto, ocasionais
companheiros de noitadas pelas tabernas, diziam ser a coisa
mais fácil deste mundo assaltar um banco, nem era preciso
arma, nem mesmo falar, bastava a ameaça dum bilhete frente
aos olhos do funcionário: isto é um assalto, para ele lhe
despejar logo para as mãos todo o dinheiro em caixa. Só
nunca se metera numa façanha dessas por mero acaso, as
oportunidades e os convites tinham sido vários, e não foram
tampouco os escrúpulos, e muito menos o medo, que o
tinham detido até ali.
Apalpou a pistola no bolso do blusão e já se via, com
os bolsos repletos de dólares, a apanhar o avião para Lisboa
ao encontro do sol e do bom vinho português. Estava
assombrado como perdera tantos anos mergulhado naquela
vida miserável, sempre à espera do cheque da assistência
social, enterrado na neve até ao pescoço, os ossos a
apodrecer com o frio. E para quê, para se deitar de vez em
quando com uma serigaita qualquer, sempre na eminência de
apanhar a sida e ir deixar ingloriamente o esqueleto, para
sempre, ali no cemitério da Côte-des-Neiges, mais esticado
do que um carapau.
Com as costas da mão, limpou o suor da fronte e
certificou-se que o passaporte ainda estava no bolso traseiro
das calças. Uma sorte que previdentemente o tinha renovado
uns meses atrás, o que era uma assombrosa premonição num
tipo desleixado como ele.
E, ali à sombra frondosa dum ácer centenário, pôs-se
104
a congeminar o plano do assalto à sucursal bancária da
esquina da St-Laurent com a Des Pins.
105
Para sair da prisão da casa e matar a imensidão dos
dias sem objectivos, dera-lhe hoje para retornar aos velhos
caminhos. Já nem se recordava quando tinha sido a última
vez que pusera os pés na St.-Laurent.
Recém-chegados, viviam ali a dois passos, na StDominique, e esta rua fora o seu primeiro amor em
Montreal. O dinheiro não abundava e, sem carro para
passeios mais largos, era St-Laurent acima, St-Laurent
abaixo que passavam os tempos livres, se o tempo o
permitia. Mas não se aborreciam, a rua era um imenso bazar
onde afluíam todas as raças do mundo, havia sempre mais
um recanto a descobrir, qualquer bugiganga para comprar.
Acabavam inevitavelmente por abancar nalgum café
português, diante duma bica, os olhos deslumbrados para
aquele mundo novo. Para quem deixara em Portugal uma
sociedade asfixiante e corroída por preconceitos de toda a
ordem, Montreal, que entrava então numa era de renovação,
a que mais tarde chamariam revolução tranquila, era uma
cidade fascinante onde todas as esperanças e sonhos eram
possíveis.
- Isto é o paraíso - diziam um para o outro, de olhos
nos olhos.
Cândida tinha então no olhar aquela labareda que,
com o correr dos anos, se foi desvanecendo e que só
recentemente se voltara a atear por razões bem diferentes.
Fora num desses dias de exaltação, numa bela tarde do
primeiro domingo de Maio que, na casa Minhota, sentados
junto à vidraça, a ver o formigar da rua, tinham decidido
selar, com chave de ouro, a fé que os habitava numa vida
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nova.
- Quero ter um filho - dissera Cândida.
Ficaram, mãos nas mãos, trémulos.
- Quero ter um filho canadiano. Esta terra é agora a
nossa pátria.
O filho nascera e durante muitos anos Portugal fora
uma referência cada vez mais esbatida, na sofreguidão da
integração. Mas a partir dum certo momento, que não
conseguia precisar no tempo, qualquer coisa acontecera.
Cândida seguira em frente, cada vez mais ambiciosa e
arrojada, amarga e crítica com as relutâncias e hesitações
dele que, aos poucos, num retrocesso, reencontrava de novo
os antigos fantasmas e medos. Ainda tinha fresca na
memória a explosão de alegria que a acometera quando
recebera pelo correio o primeiro cartão de crédito. E a
sofreguidão que a levara, depois, a coleccionar todos os
cartões possíveis e imaginários, da La Baie ao Canadien
Tire, do Eaton à Petro Canada, o seu grande prazer era exibir
a carteira recheada de cartões multicolores, numa exaltante
manifestação exterior de sucesso. E se ele se rebelava contra
tamanho exibicionismo, logo ela lhe apontava o dedo: tu não
nasceste para o american way of life, o teu lugar era nas
berças, em Portugal. Em parte, em grande parte, reconheciao, ela fora a sua locomotiva durante muitos anos, sem o seu
voluntarismo e tenacidade a empurrá-lo para a frente, com
certeza já há muito que teria descarrilado.
Quando chegou à Des Pins, uma multidão agitada
acotovelava-se no passeio oposto ao banco e dois carros da
polícia barravam o trânsito. Uma ambulância chegou com as
goelas abertas.
- Passou-se alguma coisa? - perguntou Luís. Um
velhote, com um boné de pala dos Expos enterrado até às
orelhas, olhou-o de soslaio, morto por desatar a língua.
- Um mec qualquer tentou assaltar o banco mas o
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guarda enfiou-lhe um balázio nas costas. Mais um maudit
immigrant. Nisto estão sempre metidos pretos ou imigrantes
da mesma laia.
Luís ainda teve tempo de ver um tipo, de grandes
melenas arruivadas e uma pala preta sobre um dos olhos,
amarrado a uma maca, a ser metido na ambulância que
partiu, a toda a velocidade, direita ao hospital Jeanne d’Arc.
Os carros da polícia partiram por sua vez e, dentro em
pouco, era como se nada se tivesse passado, os vestígios do
assalto volatizados no formigar da multidão.
Luís sentiu-se molestado pelas palavras do velho.
Nunca até ali se sentira vulnerável ao racismo e à xenofobia,
aliás, sempre por onde passara, nos empregos e no próprio
quotidiano, descontando um ou outro caso isolado e sem
importância, nunca sentira qualquer hostilidade à sua volta,
mais propensos que estavam os quebecois em se engalfinhar
nos ingleses do que nos emigrantes. Ou então, se essa
hostilidade existia, nunca quisera vê-la, na ânsia de se
integrar e ser aceite. Talvez agora, desempregado e
desiludido, tudo fosse mais claro, os sentidos mais apurados
para a realidade envolvente, o pior cego é aquele que não
quer ver, ocorreu-lhe ao espírito.
Quase sem dar por isso, deixara a St-Laurent e,
tomando a Prince Arthur, foi ter ao jardim do Carré StLouis. Quando se apercebeu da fauna que lá pululava a sua
primeira reacção foi retroceder pelo mesmo caminho mas a
sombra era agradável e corria uma aragem fresca sob as
árvores que o reteve. Sentou-se num banco livre e reparou,
intrigado, numa mala meio rebentada que alguém tinha ali
deixado abandonada, com certeza pertença dalgum
bebedolas que perdera o rumo, como os esquilos que no
verão se fartam de armazenar vitualhas para o inverno,
sempre a esgravatar por aqui e por ali e que acabam por
perder o norte dos esconderijos.
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Foi então que, sem saber como, soprada por estranhos
ventos, veio-lhe, assim subitamente o desejo de regressar a
Portugal. Como uma erupção. Há quase dez anos que não ia
a Portugal, viagem sempre protelada de ano para ano,
múltiplas escusas de permeio. O nascimento do filho. A
compra do carro. A compra da casa. A troca do carro. Mas
só uma razão válida: a obstinação da Cândida. Para ela só
havia um lugar onde valia a pena passar férias: a Florida.
Um belo hotel à beira-mar, o repouso absoluto, as águas
mornas de esmeralda; e depois, no regresso, o prazer
impagável de dizer: este ano estivemos em Palm Beach, os
Kennedy também lá estavam. A coroação do sucesso.
O desejo do regresso crescia, fortalecia-se. E reparou,
surpreendido, que não experimentava qualquer apreensão em
saber qual seria a reacção da Cândida. Sorriu, aspirando
profundamente o ar morno e as volúpias da libertação.
Tinham-lhe falado elogiosamente dum restaurante oriental
ali na Prince Arthur, pois não era tarde nem era cedo para
fazer a experiência. E, as primícias da libertação num
crescendo, nem se dava ao incómodo de telefonar para casa
a avisar que iria chegar tarde. Com o pé, arredou a mala para
o lado e tirou do bolso o jornal A de Portugal onde, na
página seis, vinha uma poesia da sua autoria. Regalado,
deixou os olhos correrem pelas linhas miudinhas.
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- Pai, está uma mulher ao telefone.
- Diz-lhe que não estou.
- Mas, pai, ela diz que é importante o que tem para te
dizer – insistiu Miguel.
- Já te disse. Diz-lhe que não estou.
Os filhos ficaram a olhá-lo, estranhados. Era assim
desde há três dias, desde que Teresa partira. Ao vê-la
desaparecer na porta de embarque, chorosa e desamparada, a
decisão afluíra-lhe assim à cabeça, num repente: “nunca
mais me quero encontrar com a Sara.”
Para fortalecer a resolução, metera parte de doente,
refugiara-se na fortaleza do lar, a cozinhar, a tratar do jardim
e da horta, a banhar-se na piscina com os filhos, num
eremitismo renovador.
Sentado à mesa da cozinha, a saborear a salada de
alface e tomates, colhidos de fresco na horta, admirava-se
como os filhos, sentados à sua frente, a devorar uma pizza de
peperoni, tinham crescido.
O Jorge, o mais velho, esse estava um homem feito, a
barba escanhoada a azular o queixo, os ombros musculosos,
o olhar viril, a voz forte.
- Estás um homem - disse-lhe. - Nos últimos tempos,
mal tinha reparado em ti.
Ficaram a observar-se. Havia laivos de ressentimento
nos olhos do filho.
- Então e eu ? - perguntou Miguel. - Não estou
também um homem?
Com o buço a orlar o lábio superior, o nariz sardento
e o cabelo encaracolado caído para a testa, ainda conservava
um ar agarotado mas a voz também já lhe começava a
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engrossar.
- Estão os dois uns homens.
O que aconteceria quando se esgotasse a desculpa da
gripe e tivesse que regressar à fábrica? Pelo que se dera
conta, a Sara, habituada como estava a ver satisfeitos todos
os seus caprichos, não era mulher para aceitar o repúdio sem
reagir. E quais seriam as consequências sobre a sua vida
profissional, tão intimamente entrelaçada, nos últimos
tempos, com o idílio com a Sara? Se continuasse a
perseverar na decisão de romper com ela, nada mais natural
que um dia, mister Salomon o chamasse ao escritório para
lhe comunicar com o ar mais calmo deste mundo: Vaz, tenho
reparado que estás a precisar de férias, vai repousar umas
semanas e quando te sentires restabelecido telefona-me,
pode ser que então tenha qualquer coisa para ti.
- Sabiam que antes da vossa mãe viajar, falámos na
cventualidade de regressar a Portugal?
- Talvez lá a vida seja menos complicada - disse
Jorge, com um olhar intenso carregado de subentendidos.
E logo Miguel acrescentou:
- Também já estou farto de tanta neve. E já me
disseram que agora aquilo já está cheio de Mcdonalds e de
Pizza Huts. Tanto me faz estar aqui como lá desde que tenha
uma boa pizza para comer.
Desataram os três às gargalhadas. Um sol
esplendoroso entrava a jorros pela porta da cozinha.
- E se hoje fôssemos os três jantar a Montreal? Há na
Prince Arthur um restaurante asiático que faz umas
espetadas de gambas fabulosas.
Fora a Sara que lá o levara pela primeira vez e, como
numa expiação, sentia o desejo irresistível de levar os filhos
a um lugar por onde passara com ela. Numa necessidade de
reescrever a vida com outras tintas, de apagar pegadas
antigas, numa sobreposição de traços.
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Miguel soltou um youpi de alegria e abraçou-se ao
pescoço do pai.
- Só é pena que a vossa mãe não esteja cá, para irmos
todos juntos. Com este dia magnífico, a Prince Arthur deve
estar cheia de gente. Vocês já não devem estar recordados,
porque ainda eram muito pequenos, quando vivíamos ali na
Hotel de Ville, mas uma das coisas que a vossa mãe mais
gostava de fazer nas noites de verão era irmos os quatro
passear para a Prince Arthur e, depois, sentarmo-nos num
banco do jardim, a saborear um gelado.
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REGRESSO
Noite morna, talvez a primeira noite de verão do ano,
e as esplanadas da rua Prince Arthur renasciam da longa
hibernação. Os artistas tinham instalado os cavaletes e os
instrumentos de música, esfomeados das multidões
divertidas ao redor dos seus talentos.
Luís Vaz de Camões passara o dia a dormitar num
banco do jardim do Carré St-Louis e, quando anoiteceu e a
Prince Arthur se engalanou de gentes e luzes, foi atraído
pelas ondas cálidas de música.
Nesse mesmo dia, a concierge, a senhora Maria da
Graça, vencera finalmente a relutância do marido e pusera-o
no olho da rua.
- Isto aqui não é nenhum albergue, tenha paciência.
Antes do meio-dia tem que deixar o apartamento livre.
O senhor José, nas costas dela, fazia caretas de pesar,
a saltitar ora num pé ora no outro. Com o correr do tempo,
tinham-se afeiçoado um ao outro. Luís Vaz de Camões
narrava-lhe as suas andanças pelo mundo, chegara mesmo a
ler-lhe algumas estrofes dos Lusíadas, que o bom do homem
escutara com circunspecção e reverência. Quando viu a
mulher pelas costas, quase rebentou em lágrimas.
- É uma porra, é umas porra - era só o que sabia dizer.
- Deixe lá, senhor José - tentou serená-lo, Luís Vaz de
Camões. - Tenho aí uns amigos que já se ofereceram para
me dar guarida. Um dia destes venho cá fazer-lhe uma visita
e se a vida me começar a correr melhor, iremos, aí a
qualquer lado, beber uns copos juntos.
O pobre do homem continuava a abanar a cabeça,
desolado.
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- Olhe, senhor Luís Vaz de Camões, se as coisas
falharem com o seu amigo, tenho ali na cave um quartito. O
patrão não precisa de saber...
Luís Vaz de Camões abraçou-o com força.
- Obrigado, senhor José, não me esquecerei das suas
palavras amigas.
Acotovelado pela multidão, pensava nas palavras
bondosas do senhor José, quando se sentiu violentamente
agarrado pelo ombro. Diante dele um homem bemapessoado, à beira dos quarenta anos, cabelos pretos bastos e
encaracolados e bigode façanhudo, olhava-o com uns
grandes olhos atónitos.
- O senhor é... é o Luís Vaz de Camões? Nem posso
acreditar no que os meus olhos vêm. O Luís Vaz de Camões
em carne e osso, aqui em Montreal?!
Sem lhe largar o braço, arrastava-o para um recanto
mais recatado, junto a um fontanário de repuxo.
- Que pena não o ter encontrado há mais tempo, antes
do 10 de Junho. Teria sido um êxito retumbante, o poeta
Luís Vaz de Camões em pessoa, logo à frente do desfile, no
primeiro carro alegórico. O meu nome e o seu também, é
claro, teriam ficado na História, aquela cambada da
comissão das comemorações do dia de Portugal, lá em
Lisboa, teriam ficado de cara à banda, roídos de inveja. Que
pena, ó poeta, teria sido a nossa consagração.
Os olhos do homem brilhavam, febris. A gadanha da
mão continuava cravada no braço e Luís Vaz de Camões
sofria-lhe o hálito morno.
- Mas não está tudo perdido. Ainda estamos a tempo
de organizar uma tournée pelas comunidades portuguesas da
América do Norte, vai ter mais êxito do que as digressões do
Malhoa ou do Marco Paulo. Se o poeta estiver de acordo,
amanhã de manhã poderemos ir ali ao cartório dum notário
meu amigo assinar o contrato, vamos ficar ricos enquanto o
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diabo esfrega um olho. Concorda? Olhe que melhor
empresário do que eu não poderia arranjar, não têm conta os
espectáculos que eu já organizei para a comunidade.
Luís Vaz de Camões conseguira soltar-se da garra do
homem e começava a mostrar-se divertido com a
assombrosa aparição.
- O senhor é empresário dalgum circo?
O homem riu, bem-humorado. No seu fato completo
cinzento, o nó da gravata florida bem apertado, contrastava
violentamente com a multidão em trajes leves e estivais.
- Ainda quer maior circo do que este, ó poeta? - E
acercando-se outra vez com aquele hálito quente: - Isto é
uma socidade podre, ó Luís. Não te importas que te trate por
tu, pois não? Pois acredita que isto é uma sociedade em
decadência, que um dia vai acabar por se desmoronar como
um baralho de cartas e então será a nossa vez.
- A vez de quem? - perguntou, irónico, Luís Vaz de
Camões.
O outro não se apercebeu da ironia e continuou, olhos
inflamados, braços abertos, voz de tribuno:
- A nossa vez, a vez daqueles que sempre estiveram
ao lado dos trabalhadores e dos oprimidos, ombro a ombro
com eles em todas as lutas pela paz e pela justiça social,
contra a exploração e contra a opressão.
Aborrecido por um discurso que escutara vezes conta
nos salões decrépitos das Índias, da boca de fidalgos
corruptos, sedentos de glória e riquezas, Luís Vaz de
Camões aproveitou para se despedir.
- Até à próxima.
- Já te vais embora? Promete, pelo menos, reflectir
sobre a minha proposta, olha que é a oportunidade da tua
vida.
Dum salto ágil, o homem barrava-lhe o caminho.
- Não te vás assim embora. - E lançando um olhar
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conspícuo para o embrulho que Luís Vaz de Camões
sobraçava: - E isso o que é? É o manuscrito dos Lusíadas,
não é? Por acaso, não estás interessado cm vendê-lo? Não te
serve para nada e a mim fazia-me um jeitão para o
curriculum, principalmente agora que estou interessado em
concorrer aí a um cargo na Secretaria de Estado do
Multiculturalismo.
- Sai do meu caminho.
Catapultado por certeiro murro no queixo, o homem
foi cair em pleno tanque, erguendo uma colorida tromba de
água. Ao redor, as pessoas, sequiosas de insólito, após longa
hibernação, puseram-se a aplaudir.
- Espera aí! - Patético, meio cego, resfolegante, o
homem, com a água do repuxo a tombar-lhe na cabeça,
estendia os braços. - Ainda nos podemos entender, nada de
rancores, negócios são negócios.
A multidão já voltara a sua atenção para um
malabarista que, encarrapitado num triciclo gigante, expelia
um mar de fogo da caverna da boca.
Encolerizado, Luís Vaz de Camões pôs-se a caminhar
na direcção da St-Laurent.
Mas aquela era uma noite de assombração. De súbito,
sentiu-se de novo agarrado pelo braço. Voltou-se de punho
erguido. Mas logo ficou estarrecido.
Na sua frente, Bárbara olhava-o com aqueles seus
enormes olhos negros e incandescentes. Num primeiro
impulso, quis estrangulá-la logo ali.
-Tu?!
- Senhor!
- Ainda ousas aparecer-me diante dos olhos?
- Senhor, nos últimos anos procurámo-lo, sempre em
vão por todo o lado mas ninguém sabia dar uma informação
certa. Tanto nos diziam que vivia em Brossard, como em
Laval ou mesmo para ali num apartamento da Coloniale. Foi
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por acaso que agora nos encontrámos.
Luís Vaz de Camões sentia a ira esfumar-se.
- É verdade, andei por aí.
- E, pelo menos, a vida correu-lhe bem?
- Estou mais pobre do que nunca mas sobrevivi. Só o
meu lado mais truculento é que morreu por aí, nos
desenganos da vida.
Mas já Bárbara lhe pegava pela mão.
- Vinde, senhor. O Jau vai ficar muito feliz por vos
voltar a ver. Não há dia nenhum em que não fale no seu
amo. E também há mais alguém.
Não andaram muito. Ali mesmo na Prince Arthur
erguia-se um restaurante de cozinha oriental, a fachada com
arrebiques de pagode e dois grandes leões de loiça de
sentinela à porta.
- É o nosso restaurante, senhor - disse Bárbara, com
uma vénia. - Entre, senhor.
A sala, decorada com motivos orientais estava bem
afreguesada e flutuava no ar uma música delicada,
imponderável.
Surgido da penumbra, um Jau bem nutrido, de pele
luzidia e um começo de calvície, caiu-lhe aos pés.
- Senhor, senhor - balbuciava. - Perdão, senhor,
perdão.
- Vinde, senhor - encaminhava-o Bárbara para uma
mesa vazia. Fez um gesto quase imperceptível e logo um
criado de tez acobreada acorreu, solícito.
Jau continuava agarrado à mão do amo.
- Com o dinheiro que amealhámos, eu na costura e o
Jau a lavar pratos, abrimos um pequeno restaurante na
Duluth - explicava Bárbara. - Felizmente, tudo nos correu
bem e há dois anos abrimos este restaurante. Deus tem sido
muito generoso connosco.
- Isto é tudo seu, senhor - balbuciou Jau, limpando o
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suor do rosto com um grande lenço branco. - Não precisará
de se preocupar com a vida.
O criado já enchia a mesa de iguarias.
- Obrigado, amigo - abanou tristemente a cabeça Luís
Vaz de Camões -, mas o meu único desejo é regressar à
Pátria e publicar este livro. Infelizmentc nem tenho recursos
pagar a viagem.
- Deixe isso por nossa conta, senhor - disse Bárbara. Deve regressar a Portugal e conquistar a imortalidade.
Consta que o monarca que lá reina é generoso e dado às
letras, decerto irá acolhê-lo de braços abertos.
De súbito, uma criança, com aquele encanto da
miscigenacão das raças, veio refugiar-se entre os joelhos de
Bárbara.
Luís Vaz de Camões buscou nos olhos negros da
mulher a resposta que procurava.
- Chama-se Luís, senhor.
- A alma pelo mundo em pedaços repartida - recitou
Luís Vaz de Camões, com voz trémula, acariciando os anéis
arruivados da cabeça da criança.
- Prove, senhor - disse Jau, já sorridente e mais
seguro de si. - Nem na Índia encontraria iguarias destas. O
nosso restaurante é o que oferece a melhor cozinha oriental
de Montreal. Ainda ontem saiu um artigo muito elogioso na
La Presse. Se Deus nos der coragem e forças, abriremos
brevemente outro restaurante na rua Crescent e estamos
presentemente em negociações com um empresário de
Toronto para alargar a cadeia ao Ontário onde as
perspectivas são muito encorajantes. Será tudo por esta
criança, queremos que seja muito feliz. Faremos tudo o que
estiver ao nosso alcance para evitar-lhe a desgraça de
precisar de se curvar diante dos homens para ter o direito à
vida. Mas, coma senhor, não sabe a alegria que nos dá em têlo aqui esta noite. Amanhã já mandarei gravar uma placa,
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para colocar aí nessa parede: aqui jantou Luís Vaz de
Camões, o maior poeta português de todos os tempos. Será
um sucesso.
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