registros identitários da mulher árabe, em l`amour, la

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registros identitários da mulher árabe, em l`amour, la
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ANAIS ELETRÔNICOS
ISSN 235709765
ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO:
REGISTROS IDENTITÁRIOS DA MULHER ÁRABE, EM L’AMOUR,
LA FANTASIA, DE ASSIA DJEBAR
Maria Rennally S. da SILVA (UFCG)
[email protected]
Orientadora: Josilene PINHEIRO-MARIZ (POS-LE/UFCG)
[email protected]
RESUMO
Neste trabalho, destacamos a produção literária da escritora e historiadora argelina
Assia Djebar, que retrata realidades específicas vivenciadas durante o período no qual
o Maghreb, importante região situada ao norte do continente africano, vivia sob o
peso da colonização francesa. Essa escritora é, por certo, a principal porta-voz da
mulher árabe, cuja obra literária denuncia a situação de subalternidade vivida pelas
mulheres dessa região. Neste trabalho, temos como principal objetivo identificar no
romance autobiográfico L’amour, la fantasia (1985), da referida autora, a inscrição de
registros identitários da mulher árabe-muçulmana, dentro do contexto póscolonialista, tendo como corpus a Primeira Parte1 do referido romance. Ou seja,
veremos como a autora afirma traços de sua identidade através do enredo, realizando
uma dupla transgressão: adquirindo o poder de manipular as palavras escritas, ao
invés de ser delas objeto e, ainda, adentrando no universo das mesmas, uma vez que,
nas sociedades africanas, de modo geral, este universo é pertencente ao homem
(GAFAITI, 1999). O enredo de L’amour, la fantasia se passa na época em que a França
havia invadindo a Argélia (SOARES, 1990). Nele, a narradora da história vive um
conflito com a sua própria identidade, pois, o seu país delega às mulheres uma cultura
de silêncios (BRAHIMI, 2001). Esta é uma pesquisa descritiva, bibliográfica e
interpretativista, sendo, portanto, uma análise literária. Como resultados, constatamos
a presença de traços discursivos que revelam a forma como a autora retrata a si
1
O romance L’amour, la fantasia, de Assia Djebar, está capitularmente dividido pela própria autora em
três partes. Neste trabalho, nos deteremos à análise da Primeira parte – a justificativa desta delimitação
se dará adiante, no tópico introdutório.
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mesma e, também, às mulheres árabes nas sociedades africanas ao norte do Saara,
através de seu personagem feminino: vivendo uma busca constante pela liberdade.
Palavras-chave: Assia Djebar. Identidade. L’amour. La fantasia. Mulher árabe.
Introdução
Em 1830, a invasão francesa na Argélia se deu sob a forma de massacres, de
guilhotina e de fogo. Tal colonização de imposição marcou profundamente a vida
política, social e cultural dos argelinos. Em 1954, iniciou-se uma série de lutas e
reivindicações pela independência do país. Apenas em 1962, a Argélia conseguiu a sua
independência, em troca da garantia de alianças de negociações econômicas e de
alianças financeiras com a França (SOARES, 1990).
A partir de então, a Argélia passou a uma dita “conquista de
autonomia/independência”; instaurou-se, pois, nesse país, um período denominado
Pós-colonialismo, que seria, mais do que uma marca temporal, uma atitude do povo
outrora colonizado, de buscar novos horizontes e de buscar a afirmação de sua
identidade cultural. Diante desse contexto, voltemos nosso olhar para um dos temas
presentes na literatura pós-colonial, que, por ser tão antigo e tão atual, necessita ser
discutido: a situação das mulheres árabes-muçulmanas, no contexto pós-colonial.
Relacionar os textos de mulheres à luz da teoria Pós-colonial e da teoria
feminista nos leva a perceber algumas similitudes entre esses dois âmbitos, a começar
da analogia estabelecida entre a situação marginal ou subordinada da mulher e a do
povo colonizado; além disso, ambas as teorias em questão visam dar voz àqueles e
aquelas que ficaram na invisibilidade, desconstruindo o peso das autoridades
canônicas e, também, o combate entre o masculino-ocidental (ALONSO, 2004). Assim,
a teoria pós-colonial e a teoria feminista têm como objetivo transpor tanto a condição
do colonizado quanto a da mulher, de “objeto” ao status de “sujeito”.
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A IV Conferência da Mulher, em Pequim, 1995, reconheceu que as mulheres
são vítimas de preconceitos e espoliação dos direitos e de sua dignidade, sofrendo,
pois, diversas formas de violência culturais e religiosas, dentre muitas outras
(ESPINOLA, 2000). Na Argélia, as mulheres compõem apenas 15% do total da
população economicamente ativa, apesar de os estudos comprovarem que as
mulheres estão mais qualificadas para o mercado de trabalho argelino do que os
homens. Não por razões de superioridade ou inferioridade de gênero; mas, sim,
porque “mais da metade das mulheres em atividade remunerada são titulares de, ao
menos, o diploma de estudos secundários, contra apenas um quinto dos homens. Em
2010, meninas e adolescentes representavam 57% da população estudantil do país.”
(ACHOUR, 2011, p. 36)
A mulher argelina tem percebido a condição marginalizada que as sociedades
árabes lhe têm imposto e vem, ao longo dos anos, buscando maneiras de encontrar a
sua autonomia e o seu direito à liberdade, assegurado pelos Direitos Humanos. Porém,
não é uma conquista tão simples; e o meio que tem sido um dos mais eficazes para
que a sua voz se faça ouvir, é a escrita literária. A mulher argelina tem buscado gritar
para os quatro cantos do mundo, através de seus romances autobiográficos, de seus
poemas... escritos em língua francesa, que, apesar de ser a língua do colonizador, é o
idioma que lhe permite ser ouvida para além-fronteiras, gritar o seu direito à voz, à
liberdade, ao amor... à vida.
Mostraremos, pois, neste artigo, a forma como Assia Djebar, escritora argelina,
inscreveu a sua memória através da escrita do romance autobiográfico L’amour, la
fantasia, construindo, pois, registros de sua identidade feminina. Primeiramente
refletiremos a respeito da literatura feminina no contexto pós-colonial, trazendo
alguns nomes de escritoras que se destacam nesse meio, bem como sobre alguns
aspectos referentes ao romance autobiográfico. Teremos como corpus a Primeira
parte do romance L’amour, la fantasia. Esse romance foi capitularmente dividido pela
própria autora em três partes. A justificativa desta delimitação se dá pela extensão do
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romance em questão; tal obra possui cerca de 313 páginas. Logo, seria difícil explorar
todos os elementos pretendidos, apenas no presente artigo2.
1. Literatura pós-colonial: escrita e identidade
Na língua francesa, o termo “pós-colonialismo” possui uma dupla escrita, bem
como uma dupla significação (SOFIA, 2015). Se tomarmos as duas palavras unidas por
um hífen (post-colonialisme), teremos um termo de conotação temporal, que remete à
cronologia da época que sucede após o período da colonização. Porém, se tomarmos
as duas palavras juntas (postcolonialisme), sem hífen, teremos um termo teórico que
remete a uma ideologia de discurso e de atitude pós-colonial, que considera o modo
de agir do povo liberto do colonialismo, mediante a busca de novos horizontes, de
ultrapassar as barreiras outrora impostas, em busca da construção de uma identidade
cultural (SOFIA, op. cit.).
Logo, mais do que uma marca temporal, o Pós-colonialismo enquanto ideologia
propõe a ultrapassagem da história da colonização, para que não se viva
exclusivamente imerso em uma assimilação da tomada colonial de outrora. A literatura
pós-colonial escrita em língua francesa traz como principais temas: o exilo, a
imigração, o nomadismo, a aculturação, a diversidade, a diferença cultural, o
hibridismo, a situação das mulheres na cultura muçulmana etc. E os seus romances,
apresentam cunho realista, carregados de emoção e de esperança, mostrando assim, a
resistência desses povos aos vestígios deixados pelo colonialismo europeu (COMBE,
2010).
Logo, as sociedades pós-coloniais buscaram, ao longo dos anos, agenciar a sua
existência, com o advento da independência. Independência considerada parcial,
tendo em vista que os acordos econômicos e políticos ainda vinculam os países
descolonizados às “metrópoles” colonizantes, mesmo que de forma velada. Ainda
2
O presente artigo é um embrião de uma pesquisa de mestrado (em fase inicial de andamento), que
envolve, por sua vez, a análise da obra em questão como um todo.
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assim, construiu-se, nesses países descolonizados, uma nova visão de sociedade,
intentando adaptar-se à lógica de abertura de novos espaços em diversos âmbitos
(MATA, 2010).
No domínio da literatura, observamos o desvínculo do padrão eurocêntrico e
da inserção de novas posturas, distantes daquelas abordadas no período da
colonização, a saber: a o sofrimento e a opressão vivenciados pelo povo que tivera o
seu território roubado e a sua cultura ocultada (BONNICI, 1998). No período póscolonial, a tendência de relatar sofrimentos e massacres deu lugar à postura de
resistência e de luta pela conquista de autonomia, buscando novos horizontes,
narrando histórias de amor e de vitórias, de um povo que agora percebe-se capaz de
viver.
A escrita literária deu lugar para os países descolonizados repensarem o país no
agenciamento da sua emancipação, reescrevendo e repaginando as suas identidades
culturais (MATA, 2010). Assim se cruzam a escrita e a memória, através de romances
de cunho realista, carregados de emoção e de esperança, mostrando assim, a
resistência desses autores aos vestígios deixados pelo colonialismo (COMBE, 2010).
2. Pós-colonialismo e feminismo no romance autobiográfico
Se colocarmos em contraponto a crítica Pós-colonialista e a corrente feminista,
observaremos a figura da mulher como metáfora da colonização: “Uma mulher da
colônia é uma metáfora da mulher como colônia” (BONNICI, 1998, p. 13). Constata-se,
pois, que a mulher foi duplamente colonizada. Primeiramente, por causa da própria
condição de colonização e, segundamente, justamente pelo fato de ser marginalizada
e tratada como inferior com relação ao homem.
Tanto os discursos pós-coloniais quanto os feministas, têm como objetivo a
integração da mulher marginalizada à sociedade, questionando os mascaramentos dos
fundamentos masculinos no cânone literário. A dupla colonização da mulher causou a
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objetificação da mesma, pela problemática da classe e da raça, da repetição de contos
de fada europeus, apoiada por potências ocidentais.
Desse modo, uma das mais eficazes estratégias de descolonização feminina
consistiu na rota da linguagem e da experimentação linguística (ASHCROFT et al., 1991;
apud BONNICI, 1998). Logo, a mulher do período Pós-colonial encontrou, na literatura,
uma forma de lutar contra as marcas deixadas pela colonização, até os dias de hoje.
Dentre as diversas escritoras magrebinas de língua francesa que expressaram
com afinco, em suas obras, as suas revoltas mediante o contexto de luta contra os
vestígios da colonização e da afirmação de identidades culturais próprias, situadas na
ideologia pós-colonialista, citamos Malika Mokedden, médica por formação que, em
1985, deixou a medicina para se dedicar à literatura. Jamais deixou de lutar para que
as mulheres pudessem estudar e ser livres da opressão que sofrem com relação à
ideologia machista e patriarcal.
Também destacamos Leïla Sebbar, cuja obra se debruça sobre as questões do
universo da mulher, em denúncia, reflexões e exercício constante sobre a sua posição
no mundo argelino, esmiuçando a infância e a maturidade feminina. Salima Ghezali
também compartilha desses mesmos ideais. Escritora e fundadora das Mulheres da
Europa e do Magrebe, presidente da associação pela emancipação da mulher;
redatora chefe da revista feminina Nyssa é também militante dos direitos da mulher e
da democracia na Argélia. Além de Ghezali, Hélé Béji, Maïssa Bey, Fatima Mernissi,
Assia Djebar e muitas outras escritoras fazem a com que a voz da mulher magrebina se
faça ouvir (HOYET, 2013).
Voltemos, pois, o nosso olhar, para a escritora magrebina Assia Djebar, citada
no seio introdutório do presente artigo. Assia é descendente de uma família tradicional
argelina. Seu pai, Tahar, era francês, professor de uma escola primária francesa no
interior da Argélia. A vida de Djebar tomou um rumo diferente das demais mulheres da
cultura árabe-muçulmana, quando o seu pai a ingressou em uma escola francesa, com
apenas cinco anos de idade (SOARES, 1990).
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Assia Djebar estudou na França e, aos 20 anos de idade, escreveu o seu
primeiro romance: La soif (1957), tendo-o publicado utilizando um pseudônimo, para
que os seus pais não viessem saber que ela havia escrito um romance, pois, enquanto
mulher árabe-muçulmana, ela estaria transgredindo os costumes de sua cultura. Após
esse romance, ela escreveu ainda vários outros, a exemplo de Les impatients (1958),
Les alouettes naïves (1967), dentre outros.
No período pós-guerra, na Argélia, Djebar lecionou como professora de História
na universidade de Argel. Porém, ela se via diante de um dilema: sendo uma
historiadora árabe e conhecendo, pois, toda a opressão vivida pelo povo argelino, com
relação aos colonizadores franceses, a sua língua de escrita era a mesma do
colonizador. Desse modo, ela optou por afastar-se da literatura durante mais de 10
anos, recorrendo, assim, ao cinema, como um modo de voltar a entrar em contato
com a língua árabe dialetal, que era a variante da sua língua materna que ela conhecia.
O cinema funcionou como um mediador entre a escritora e a sua própria
cultura, uma vez que ela sentia que estava devendo algo à cultura do seu povo, por ser
uma escritora de língua francesa e não de língua árabe. A sua angústia era grande, pois
apesar de ela ter assimilado a cultura francesa, ela continuava sendo uma mulher
árabe-muçulmana.
Em 1966, Djebar afastou-se do seu emprego como professora da universidade
de Argel, para ir para Paris; aproximou-se, então, da arte do teatro e também da crítica
literária cinematográfica. Quando retornou à Argélia, o seu país estava vivenciando a
normatização político-linguística da arabização (predominância do árabe clássico em
todo o sistema de ensino). Como não sabia dominar o árabe clássico, Djebar não teria
mais como dar aulas de história e, por isso, passou a dar aulas de semiologia do
cinema, que era a parte do ensino que ainda não havia sido arabizada (SOARES, 1990).
A partir disso, o sistema televisivo árabe a convidou para produzir filmes, o que
se constituía em um desafio para uma mulher árabe, dada a falta de espaço, para a
mulher, no mercado cinematográfico. Contudo, ela aceitou a proposta, pois, assim, ela
estaria enfrentando a sua contradição linguística; o cinema, portanto, serviu como
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uma ponte para reconciliar as relações da escritora com a literatura e,
consequentemente, com a língua francesa. Outrora, Djebar se sentia longe do seu
povo, por escrever apenas em francês; mas, depois, a partir do seu contato com o
cinema, usando o árabe dialetal, ela reconciliou-se com a sua cultura e, de certo modo,
pagou a “dívida” que acreditava ter com o seu país (SOARES, 1990).
Tanto em sua expressão literária quanto em sua produção cinematográfica,
Assia Djebar abordou questões em torno do universo feminino de maneira minuciosa,
desde os aspectos físicos, até os mentais, os sociais, os linguísticos etc., a partir de suas
experiências íntimas e das suas reflexões pessoais. O principal tema encontrado em
sua obra é a questão da emancipação da mulher durante a guerra da independência
(1954-1962).
Em Les alouettes naïves (1967), o tema principal era o prazer do romance
erótico, em que a heroína, ao final, adquire a liberdade de ter uma vida emancipada,
independente, mas que, ao mesmo tempo, trazia nas veias o sangue da inquietação.
Inquietude essa, que é demonstrada como o principal desejo de todas as mulheres
argelinas em L’amour, la fantasia (1985), obra autobiográfica, em que Djebar retrata a
realidade social durante a fase de conquista da Argélia, bem como a fase da guerra
pela sua independência (BRAHIMI, 2001). Olharemos, de modo mais detido, para as
resistências e transgressões operadas na Primeira parte do romance L’amour, la
fantasia.
3. Registros identitários da mulher no romance autobiográfico L’amour, la fantasia,
de Assia Djebar
Considerando a definição de Lejeune (1975) a respeito da autobiografia, a qual
a conceitua como sendo uma narrativa em prosa que uma pessoa real faz de sua
própria existência, focalizando a sua história individual (LEJEUNE, 1975 apud,
FAULHABER, 2012), situamos o romance autobiográfico L’amour, la fantasia, enquanto
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um gênero literário, caracterizado pela não-existência da identificação do autor (pacto
romanesco).
A obra em questão trata-se de um romance autobiográfico que reescreve a
história da Argélia, bem como a de Assia Djebar, através da narrativa de vivências e
memórias presentes nas vozes de mulheres (personagens) argelinas. Trata-se de ouvir
as histórias de amor, de luta e também de dores que contam essas mulheres,
expressando a subjetividade feminina diante do período conflituoso da colonização
(contexto histórico do enredo) e também da pós-colonização (contexto da publicação
da obra), através da evocação de memórias de infância da narradora-personagem.
O presente romance está capitularmente dividido pela própria autora em três
partes. A Première partie, por sua vez, intitulada “La prise de la ville ou L’amour
s’écrit ” (A tomada da cidade, ou O amor se escreve – grifo da autora-) está subdividida
em nove (9) blocos (p. 9 à 69), segundo o seu sumário, a saber:
a) Fillete arabe allant pour la première fois à l’école
b) I
c) Trois jeunes filles cloîtrées…
d) II
e) La fille du gendarme français…
f) III
g) Mon père écrit à ma mère
h) IV
i) Biffure
(DJEBAR, 1985, p. 315. Grifo nosso.)
Nos blocos b, d, f e h, acima sinalizados, intitulados por algarismos romanos (I,
II, III e IV), encontramos testemunhos históricos referentes à invasão francesa em
terras argelinas, com riqueza de detalhes. Diante deste contexto de exaltação da
cultura do colonizador e da opressão vivenciada pelos povos argelinos, a narradoraUniversidade Federal de Campina Grande
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personagem, em sua vivência adulta, transgride as convenções socialmente aceitas e
retorna às suas memórias de infância como uma “visitante inoportuna” (p. 17), em
uma tentativa de compreender o passado, no qual as mulheres da cidade argelina
onde habitou, possuíam sonhos de amor que apenas se acendiam e nunca se
realizavam, ou que se apagavam para sempre, conforme o trecho:
Nesta aurora da dupla descoberta, que se dizem as mulheres da
cidade, quais sonhos de amor nelas se acendem, ou se apagam para
sempre, enquanto elas contemplam a frota real que desenha as
figuras de uma coreografia misteriosa? ... Eu sonho com essa breve
treva de todos os começos; me insinuo, visitante inoportuna, no
vestíbulo desse passado próximo, elevando as minhas sandálias
segundo o rito habitual, suspendendo minha respiração para tentar
tudo ouvir... (DJEBAR, 1985, p. 17).3
Nessa tentativa de ouvir os “gritos sem voz” (p. 12) dessas mulheres, cujos
sonhos de amor se perdem na poeira do deserto, identificamos algumas operações de
resistência ao silenciamento imposto às mulheres árabes, bem como transgressões, no
que diz respeito ao mínimo espaço dado a essas mulheres. Para tanto, a narradora
anuncia, no bloco a: “eu cortei as amarras” (p. 12). O ato de cortar as amarras que
prendem a mulher argelina representa, por si só, um ato de afirmação identitária, no
qual se permite que ela tenha voz e possa expressar-se livremente, assim como o
homem também o faz, afinal, a pertinente indagação de Rocca (2000) faz todo sentido:
“o que pode valer a existência sem a possibilidade de exprimir seus desejos?
No bloco c, nos deparamos com um dos momentos culminantes do romance,
em meio à vivência de três irmãs que vivem enclausuradas em uma mansão, no Sahel
argelino, amigas íntimas da narradora-personagem. O marasmo cotidiano da vida
dessas três irmãs foi rompido, a partir do momento em que elas, em uma atitude de
3
En cette aurore de la double découverte, que se disent les femmes de la ville, quels rêves d’amour
s’allument en elles, ou s’éteignent à jamais, tandis qu’elles contemplent la flotte royale qui dessine les
figures d’une chorégraphie mystérieuse ? … Je rêve à cette brève trêve de tous les commencements ; je
m’insinue, visiteuse importune, dans le vestibule de ce proche passé, enlevant mes sandales selon le rite
habituel, suspendant mon souffle pour tenter de tout réentendre… (DJEBAR, 1985, p. 17).
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afirmação identitária, transgredindo as regras de proibição da social, adentram na
“biblioteca proibida” do irmão (p. 20) e realizam um ato que, caso fosse descoberto,
seria tratado como um grandioso escândalo, conforme o trecho:
No curso desse mesmo verão, a caçula e eu pudemos abrir a
biblioteca – aquela do irmão ausente e que até então estava fechada
com chave. (...) Em um mês, nós lemos todos os romances
empilhados desordenadamente: Paul Bourget, Colette e Agatha
Christie. Nós descobrimos um álbum de fotografias eróticas e, em um
envelope, cartões postais de Ouled-Naïls plenos de joias, os seios
nus. Outrora a severidade murmurante do irmão nos inspirava um
terror cotidiano; ei-lo aqui, estranhamente presente, nessas horas
opacas da sesta. Nós fechamos discretamente o armário, quando as
mulheres se levantaram para a oração da tarde. Nós nos imaginamos
surgir de uma região proibida; nós nos sentimos mais velhas.
4
(DJEBAR, 1985, p. 20-21).
Em um contexto, no qual o corpo da mulher árabe é representado sob a
aparência de um “frágil fantasma” (p. 19), ou seja, aquele que não possui uma
realidade carnal e, por isso fica oculto debaixo de um véu, essas três irmãs se fazem
existir, ser e ouvir. Mesmo sentindo que estavam imersas em uma “região proibida”,
elas passaram a ler romances, debater sobre concepções e estilos de escrita (p. 23) e
partilhavam de um precioso segredo, o qual não podia, de modo algum, ser revelado.
Tal segredo, presente ainda no bloco c, é revelado para o leitor enfaticamente:
“As jovens meninas enclausuradas escreviam; escreviam cartas; cartas a homens; a
homens dos quatro cantos do mundo; do mundo árabe, naturalmente.” (p. 21)5. As
4
Au cours de ce même été, la benjamine et moi avons pu ouvrir la bibliothèque – celle du frère absent
et qui jusque-là avait été fermée à clef. (…) En un mois, nous lisons tous les romans entassés pêlemêle :
Paul Bourget, Colette et Agatha Christie. Nous découvrons un album de photographies érotiques et,
dans un enveloppe, des cartes portales d’Ouled-Naïls alourdies de bijoux, les seins nus. Autrefois la
sévérité bougonne du frère nous inspirait une terreur quotidienne ; le voici redevenu étrangement
présent, à ces heures opaques de la sieste. Nous refermons discrètement l’armoire, quand les femmes
se relèvent pour la prière de l’après-midi. Nous nous imaginons surgir d’une région interdite ; nous nous
sentons plus vieilles. (DJEBAR, 1985, p. 20-21)
5
« Les jeunes filles écrivaient ; écrivaient des lettres ; des lettres à des hommes ; à des hommes aux
quatre coins du monde ; du monde arabe, naturellement. » (p. 21).
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marcas enunciativas: escreviam, cartas e homens, eram termos que não poderiam, de
sobremaneira, estar ligados às mulheres argelinas. Esse segredo causou, na narradorapersonagem, um profundo sentimento de medo; ela se refere ao segredo como sendo
um “terrível pecado” (p. 24). Ainda assim, elas liam e escreviam.
No bloco g, encontramos outro fato que caracteriza-se como uma afirmação
identitária. Enquanto todas as mulheres argelinas são orientadas a se dirigir aos seus
maridos utilizando o correspondente árabe à terceira pessoa do singular (ele), a mãe
da narradora-personagem, em uma atitude de resistência, designava o seu esposo
pelos termos “meu marido” (p. 55), ou ainda, pelo seu próprio nome, Tahar (- nome do
pai da escritora Assia Djebar – p. 55).
Nesse mesmo bloco, pai da narradora-personagem também realiza uma atitude
de afirmação identitária, caraterizada, no romance, como uma atitude ousada. Tahar
realiza uma viagem e, do lugar onde está, envia um cartão-postal para a esposa. Tal
fato já causou estranheza nas pessoas: um homem, escrevendo para a sua esposa?! E,
quando elucidamos o fato de que ele pôs, no remente, o nome de sua esposa, para as
pessoas que souberam deste feito, ele foi considerado como uma vergonha pública (p.
57), tendo em vista que, nessas situações, o ‘normal’ era que o homem, caso fosse
enviar algo para a sua família, que colocasse no remetente: “À casa” e não o nome de
sua esposa (p. 57).
As duas últimas atitudes de afirmação identitária, realizadas pelos pais da
narradora-personagem, caracterizam atitudes difíceis de terem sido tomadas, dado o
contexto social e histórico do enredo. Dar um papel de destaque à mulher, deixar que
ela leia um romance, escreva uma carta, ou, simplesmente, enviar, para ela, um cartão
com o seu nome no remetente, eram atitudes de escândalo, que poderiam causar
graves consequências para a mulher que se encontrasse em alguma dessas situações.
Em uma entrevista concedida no ano de 1998, a própria autora do romance
deixa claro que a sua obra vem inscrever a busca pelos registros identitários da mulher
argelina, de modo que ela perceba a sua identidade feminina através do ato de trazer
para o presente, as memórias do passado:
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L’amour, la fantasia, sendo a primeira obra de uma série romanesca,
a história é utilizada nesse romance como busca da identidade.
Identidade não apenas de mulheres, mas de todo o país (...). Eu
abordo o passado do séc. XIX por uma busca sobre a escrita, sobre a
escrita em língua francesa. Se estabelece então, para mim, uma
relação com a história do séc. XIX, escrita por oficiais franceses e uma
relação com a narrativa oral das Argelinas tradicionais de hoje. Dois
passados se alternam então; eu penso que o mais importante para
mim, é reconduzir o passado apesar ou através da escrita, minha
escrita de língua francesa. Eu tento ancorar essa língua francesa na
6
oralidade das mulheres tradicionais.” (DJEBAR, 1998)
Ao escrever, a mulher opera três tipos de transgressão, que caracterizam a sua
busca pela afirmação identitária, a saber: a) chega ao mundo onde os homens são
dominantes; b) adquire o poder de manipular as letras ao invés de ser delas objeto; c)
conta a história do país do ponto de vista daquelas a quem a ideologia oficial exclui
(GAFAITI, 1999). Ao escrever um romance autobiográfico, Assia Djebar realiza registros
de sua identidade feminina, enquanto uma mulher argelina, cuja voz se faz ouvir como
aquela que “clama em meio ao deserto”, buscando novos horizontes e ultrapassando
os acontecimentos colonialistas que a aprisionam. Em L’amour, la fantasia, a mulher
se faz livre.
Considerações finais
Nos documentos que dizem respeito aos Direitos Humanos, em códigos, leis,
normas, lemos que a mulher deve ser tratada de maneira igual ao homem, no que se
6
L'Amour, la fantasia étant la première oeuvre d’une série romanesque, l’histoire est utilisée dans ce
roman comme quête de l’identité. Identité non seulement des femmes mais de tout le pays. (...).
J’aborde le passé du dix-neuvième siècle par une recherche sur l’écriture, sur l’écriture en langue
française. S’établit alors pour moi un rapport avec l’histoire du dix-neuvième siècle écrite par des
officiers français, et un rapport avec le récit oral des Algériennes traditionnelles d’aujourd’hui. Deux
passés alternent donc ; je pense que le plus important pour moi est de ramener le passé malgré ou à
travers l’écriture, mon écriture de langue française. Je tente d’ancrer cette langue française dans
l’oralité des femmes traditionnelles.
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refere à dignidade e à liberdade. Porém, na prática, esses direitos são violados e o que
se vê são atos de violência não justificada, declarada ou velada, que nega à mulher o
direito de ser. No mundo árabe, leis modernas reservam às mulheres um status
inferior ao dos homens (ACHOUR, 2011).
Diante dessas reflexões que situam o lugar da mulher dentro desse contexto
pós-colonial, no qual a proposta ideológica e discursiva é a de deixar para trás o
pensamento colonialista e construir uma nova história, autônoma, independente e
livre de imagens e construções culturais de supremacia da cultura do colonizador,
acreditamos que seja necessário mudar o quadro em que se encontram as mulheres
na sociedade contemporânea, especialmente no que diz respeito às sociedades
africanas magrebinas. As mulheres têm voz, querem se fazer ouvir e, assim, resistir ao
silenciamento e ao sofrimento que lhes foi/é imposto durante anos. Ouçamos as suas
vozes através de suas obras literárias.
Identificamos o romance L’amour, la fantasia, da escritora e historiadora
argelina Assia Djebar, enquanto exemplo de como a mulher árabe-muçulmana pode
registrar e produzir a sua memória, afirmando a sua identidade e a visão que pode ter
de si mesma, através da literatura. Assim, a mulher chega a si mesma com a escrita
autobiográfica em situação pós-colonial, em uma sociedade onde a escrita é
culturalmente reservada ao homem (e a mulher é tratada como objeto dessa predição)
e, assim, através de Assia Djebar, a voz da mulher se faz ouvir.
Referências
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conquista por novos espaços de liberdade – Revista O correio da UNESCO. Paris, 2011.
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Yasmina Khadra. Dissertação. Biskra : Université de Mohamed Khider, 2015.
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