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ISSN: 1677-2318
No. 02/06
Public. 16/10/2006
Artigo C
FONTES DE ESPÉCIES REATIVAS DE OXIGÊNIO NA
MUSCULATURA ESQUELÉTICA DURANTE O
EXERCÍCIO
Paulo Guimarães Gandra1*, Denise Vaz de Macedo1, Armindo Antonio Alves1,2
1
Laboratório de Bioquímica do Exercício (Labex). Departamento de Bioquímica,
Instituto de Biologia, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, São Paulo, Brazil
2
Fundação Hermínio Ometto – UNIARARAS, São Paulo, Brazil
*[email protected]
RESUMO
O músculo esquelético gera constantemente espécies reativas de oxigênio, através da redução
monoeletrônica do oxigênio molecular. Durante o exercício físico o consumo de oxigênio pela
musculatura esquelética exercitada pode ser aumentado em aproximadamente 100 vezes.
Acredita-se que a geração de espécies reativas de oxigênio deve ser proporcional a este
aumento. O objetivo deste trabalho é apresentar todos os possíveis locais e mecanismos de
produção de espécies reativas de oxigênio na musculatura esquelética durante o exercício
físico. A tradicional visão de que o aumento do consumo de oxigênio e o aumento do fluxo de
elétrons pela cadeia de transporte de elétrons mitocondrial regulam a produção de espécies
reativas de oxigênio durante e após o exercício pode não ser exclusiva, nem a mais importante
ao considerarmos os vários tipos de exercício.
ABSTRACT
Skeletal muscle constantly generates reactive oxygen species through the monoelectronic
reduction of molecular oxygen. It is believed that the enhanced oxygen uptake by skeletal
muscle during exercise is responsible for an increased reactive oxygen species generation. Our
goal was to present the different possible mechanisms and sights of reactive oxygen species
generation in skeletal muscle during exercise. The traditional view that reactive oxygen species
generation is regulated mainly by increased oxygen consumption and electron flow rate in the
mitochondrial respiratory chain may not be the sole predictor of reactive oxygen species
generation during and after the different types of exercise.
Endereço para contato:
Labex, Departamento de Bioquímica, Instituto de Biologia, Universidade Estadual de Campinas
CP 6109, 13083-970 Campinas-SP, Brazil
Gandra,P.G. et al.
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RADICAIS LIVRES E ESPÉCIES REATIVAS DE OXIGÊNIO (EROS)
Radicais livres são moléculas ou íons que contêm um ou mais elétrons
desemparelhados (radical), que são capazes de existir de maneira independente
(livre). Exibem, por isso, atividade oxidante. São representados por um radical (R)
com um ponto, que representa o elétron desemparelhado (•R). Diferem, portanto, da
maior parte das biomoléculas, cujos elétrons apresentam spins opostos pareados em
um mesmo orbital.
O oxigênio molecular (O2) ou oxigênio triplete pode ser considerado um radical livre,
pois contém dois elétrons desemparelhados, de spins iguais localizados em dois
orbitais diferentes. Isso torna a molécula de O2 bastante estável, apesar do seu alto
potencial redox (+0,82 mV), pois restringe sua oxidação ou a moléculas que possuam
dois elétrons de spins também iguais ou a uma forma univalente, com a adição de um
elétron de cada vez. Essa condição, conhecida como restrição de spin é muito
importante para a vida, pois possibilita a ocorrência de moléculas constituídas de
cadeias carbônicas altamente reduzidas numa atmosfera com 21% de O2 como a da
Terra [1].
Nos organismos aeróbicos o O2 é utilizado principalmente nas mitocôndrias, como
aceptor final de elétrons na cadeia respiratória, sendo reduzido a água no complexo IV
ou citocromo aa3. Por força da restrição de spin, o O2 é reduzido unieletronicamente
no complexo IV conforme mostrado abaixo:
O2 + 1e- → •O2- (radical ânion superóxido)
•
O2- + 1e- + 2H+ → H2O2 (peróxido de hidrogênio)
H2O2 + 1e- + H+ → •OH (radical hidroxila)
•
OH + 1e- + H+ → H2O
Todas essas espécies intermediárias mostradas acima, que ainda não foram
totalmente reduzidas são coletivamente chamadas na literatura de Espécies Reativas
de Oxigênio (EROs).
É importante deixar claro que normalmente essas quatro etapas de redução ocorrem
no interior do complexo mitocondrial IV, com liberação de H2O como único produto
final da reação. No entanto, está bem documentado na literatura que parte do O 2
consumido é reduzido a radical ânion superóxido (•O2-), conforme será detalhado
abaixo [2, 3].
O •O2- é o iniciador das outras EROs, pois pode ser dismutado espontaneamente ou
enzimaticamente (superóxido dismutase), levando à produção de peróxido de
hidrogênio (H2O2). O H2O2, por sua vez, na presença de íons de metais de transição
pode sofrer quebra na ligação O-O, produzindo o radical hidroxila (•OH). Esta reação
denomina-se reação de Fenton:
Fe2+ + H2O2
Fe3+ + OH- +
•
OH
Todos esses derivados parcialmente reduzidos de O2 exibem em menor ou maior grau
atividade oxidante, e podem influenciar processos intracelulares importantes,
sensíveis ao estado redox. A reatividade dos radicais livres é inversamente
proporcional a sua meia-vida. Assim, há espécies radicalares de tempo de vida muito
curto, como o •O2- e o radical hidroxila •OH, e de tempo de vida longo, como a
molécula de O2 ou os íons Fe2+ e Fe3+, que estão normalmente associados a proteínas.
Embora o H2O2 seja considerado um agente oxidante fraco, participa da produção do
•
OH, uma das espécies radicalares mais reativas entre as existentes.
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Em 1982, Davies e colaboradores [4] mostraram pela primeira vez, através da técnica
de Ressonância Paramagnética de Spin (SPR) a produção de radicais livres de
oxigênio no músculo e no fígado de ratos após um exercício agudo, e sugeriram as
mitocôndrias como as principais responsáveis por esse aumento nas EROs. Mais tarde,
Reid et al. [5] utilizaram a molécula de diclorofluoresceína (DCFH) para medir a
produção de EROs em fibras isoladas de músculo. Esses autores mostraram um
aumento da oxidação da DCFH, que foi relacionado com a produção de EROs após
contrações repetitivas.
PARTICIPAÇÃO DAS MITOCONDRIAS NA FORMAÇÃO DE EROS DURANTE O
EXERCÍCIO
As mitocôndrias apresentam-se como uma fonte potencial de EROs no músculo
esquelético durante o exercício físico, uma vez que os centros Fe-S e da flavina
mononucleotídeo (FMN) do complexo I e semiquinonas da cadeia de transporte de
elétrons (CTE) realizam transferências monovalentes de elétrons. De fato, estimou-se
uma produção mitocondrial de •O2- in vitro igual a 1-5% do total de O2 consumido,
devendo esta relação ser menor in vivo [2, 3]. A observação de que a oxidação de
proteínas mitocondriais por •OH prevaleceu sobre a oxidação de proteínas citossólicas
no músculo cardíaco após exercício físico também reforçou o papel das mitocôndrias
na produção de EROs [6].
Tradicionalmente, postula-se que o aumento em ambos, no consumo de O 2 e no fluxo
de elétrons na cadeia de transporte de elétrons seriam os responsáveis por um
vazamento maior de elétrons de componentes da CTE, com o consequente aumento
na produção mitocondrial de •O2- durante o exercício físico. De fato, o tecido muscular
é o único que pode aumentar muitas vezes sua demanda energética durante o
exercício quando comparada aos níveis basais, com um aumento concomitante em
torno de 10 vezes no volume de oxigênio total consumido (VO2) e de cerca de 100
vezes nas fibras musculares ativas [7, 8].
O vazamento de elétrons parece estar associado ao estado redox dos transportadores
de elétrons. Experimentos com mitocôndrias isoladas mostraram que a produção de
EROs parece ser maior quando a CTE está altamente reduzida, como no estado
respiratório 4 (na ausência de ADP). No estado respiratório 3 (após adição do ADP,
situação que simula o exercício físico) a produção de EROs diminui significativamente
[3, 9]. Foi proposto que essa diminuição era devida à oxidação dos componentes da
CTE que estavam altamente reduzidos no estado 4 [3, 9]. Observou-se que o efeito
da adição de ADP era semelhante àquele observado após adição de um desacoplador.
Ou seja, a produção de EROs parece ser dependente do potencial de membrana da
membrana mitocondrial interna.
Foi teorizada também a possibilidade da pO2 mitocondrial e não o fluxo aumentado de
elétrons regular diretamente a produção de •O2- [10, 11]. A diminuição da pO2
mitocondrial poderia diminuir a Vmax da citocromo oxidase pelo O2, aumentando
conseqüentemente o tempo em que os transportadores de elétrons da cadeia
respiratória estariam reduzidos, o que aumentaria a geração de •O2- pelos mesmos
[11]. Esta hipótese foi sustentada pela observação de uma maior geração de EROs
durante o exercício em situação de hipóxia e normóxia em que a pO2 intracelular se
mostrou diminuída.[10, 11, 12].
Experimentos com mitocôndrias isoladas de diferentes tecidos (fígado, músculo
cardíaco, músculo esquelético e cérebro) revelaram variações na produção de •O2- e
H2O2, dependendo dos substratos e dos inibidores de componentes da CTE utilizados,
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contribuindo para a identificação dos sítios de produção de EROs. Estudos com
mitocôndrias intactas dificultam a determinação de •O2- devido sua meia vida muito
curta, e ao fato de não atravessar a membrana mitocondrial. Como a mitocôndria
contém a enzima antioxidante superóxido dismutase (SOD) o •O2- é dismutado a H2O2,
que é mais estável e capaz de extravasar a membrana, sendo sua determinação mais
fácil. Estudos quantificando a produção de •O2- geralmente são feitos em complexos da
cadeia de transporte de elétrons isolados.
Inicialmente foram identificados dois sítios principais de produção de EROs na
membrana interna das mitocôndrias: a NADH desidrogenase (Complexo I) e a
ubiquinona ou coenzima Q (Complexo III). No complexo I o •O2- é liberado na matriz
mitocondrial, sendo provavelmente produzido no grupamento FMN. No complexo III o
•
O2- é produzido pela semiquinona e liberado no espaço citossólico [13].
A taxa de produção de •O2-, pela cadeia de transporte de elétrons in vitro é maior
durante o fluxo reverso de elétrons na cadeia de transporte, sendo dependente do
gradiente eletroquímico de H+ (ΔµH+) [14]. O ΔμH+ é constituído por dois
componentes, Δψ (potencial de membrana, componente elétrico) e ΔpH (gradiente de
pH, componente químico). Trabalhos mais recentes com mitocôndrias isoladas de
músculo esquelético mostraram que a adição de ADP (estado 3) na presença de
substratos do complexo I (piruvato/malato) não anulava a produção de H2O2 [15].
Esses autores mostraram também que a adição de rotenona (inibidor do complexo I)
aumentava a produção de H2O2. Esses dados reforçaram o envolvimento dos centros
Fe-S e da flavina mononucleotídeo (FMN) do complexo I na produção de radicais
através da autooxidação. Já na presença de succinato (substrato do complexo II), a
adição da rotenona bloqueou quase totalmente a produção de H2O2 sugerindo que
grande parte dos radicais eram formados pelo fluxo reverso de elétrons do complexo
II (succinato) para o complexo I, sendo somente uma pequena parte produzida pelo
ciclo quinona/complexo III.
Lambert e Brand [14] mostraram que o ΔpH também altera a produção de •O2-,
principalmente no complexo I. Esses autores observaram que após a adição de
nigericina, que diminui o ΔpH com um concomitante aumento do Δψ, mantendo o
ΔµH+ constante houve uma diminuição na produção de •O2-, sugerindo que a produção
de •O2- é mais sensível ã diminuição do ΔpH do que ao aumento do Δψ. Os autores
sugeriram ainda que a geração de EROs no complexo I pode depender
mecanicamente do transporte de prótons no próprio complexo[14].
Outros mecanismos podem contribuir para o aumento da produção mitocondrial de
•
O2- durante a realização de exercício físico, tais como o aumento da temperatura e
concentração de Ca2+ intracelular [16]. Além disso, foi demonstrado que a enzima
mitocondrial glicerol-3-fosfato desidrogenase ligada a membrana (mGPDH) produz
EROs em mitocôndrias isoladas de fígado e tecido adiposo marrom [17], e que sua
atividade se encontra aumentada no músculo esquelético após exercício exaustivo
[18]. A enzima mGPDH atua em conjunto com a enzima citosólica cGPDH no
transporte de NADH citossólico produzido pela glicólise para dentro das mitocôndrias,
de maneira parecida com o sistema da lançadeira malato/aspartato. No entanto, o
real papel da mGPDH na produção de EROs no músculo esquelético ainda não foi
minuciosamente estudado.
A enzima α-cetoglutarato desidrogenase, do ciclo de Krebs também é capaz de gerar
H2O2, representando outra possível fonte de EROs na mitocôndria [19].
Aparentemente, na presença de todos os substratos e cofatores da α-cetoglutarato
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desidrogenase acontece uma maior produção de H2O2 quanto maior for a razão
NADH/NAD+[19].
A Figura 1 apresenta uma representação esquemática das principais vias de produção
mitocondrial de EROs durante o exercício.
Figura 1. Representação esquemática da produção de EROs na mitocôndria. As setas
azuis indicam transferências de elétrons entre os complexos da cadeia de transporte.
As setas tracejadas indicam redução da coenzima Q. O ciclo Q no complexo III está
ilustrado de maneira simplificada. Os elétrons da coenzima Q reduzida (QH2,
ubiquinol) são transferidos um de cada vez para o centro ferro enxofre e para os dois
citocromos b (b566 e b562). O ciclo ocorre em duas etapas. Na primeira etapa QH 2
perde um elétron para o centro Fe-S formando semiquinona (•Q-), com liberação de H+
no espaço intermembranas. Em seguida a •Q- transfere seu elétron aos citocromos b.
Os citocromos b reduzem novamente Q formando •Q- (1). Na segunda etapa uma
segunda molécula de QH2 é oxidada pelo centro Fe-S e citocromos b. No entanto, os
citocromos b irão reduzir •Q- formada na primeira etapa (2), que com H+ da matriz
mitocondrial regenera QH2. A formação de EROs no complexo III ocorre por
autoxidação do radical •Q-, ou vazamento de elétrons no processo de transferência do
• Q para o citocromo b. O complexo I deve gerar •O2- na matriz mitocondrial
provavelmente pelo complexo FMN e o complexo III deve liberar •O2- no espaço
intermembranas devido a localização do centro “o do complexo III onde a formação
de •O2- ocorre ser voltado para o espaço intermembranas.
VIAS DE FORMAÇÃO DE EROS EXTRAMITOCONDRIAL DURANTE O EXERCÍCIO
Xantina Oxidase
A ativação das vias anaeróbicas de produção de ATP pelo exercício de alta intensidade
estimula a produção de AMP, através da ativação da enzima mioquinase. O
metabolismo do AMP leva à produção de ácido úrico, conforme mostrado na Figura 2,
sendo que as últimas reações (hipoxantina → xantina → ácido úrico) são controladas
pela mesma enzima, a xantina desidrogenase, que reduz NADP+ e produz ácido úrico
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e NADPH como produtos finais. No músculo esquelético a xantina desidrogenase se
localiza em células endoteliais vasculares [22].
ADP + ADP
m io q u in a s e
ATP
AM P
5 'n u c le o t id a s e
Pi
A M P d e s a m in a s e
NH4
A D E N O S IN A
IM P
5 'n u c le o t id a s e
IN O S IN A
p u r in a n u c le o tíd e o
fo s fo r ila s e
H IP O X A N T IN A
x a n t in a
d e s id r o g e n a s e
NADP+
NADPH
O2
NADP+
NADPH
+
x a n t in a
o x id a s e
.O 2
X A N T IN A
x a n t in a
d e s id r o g e n a s e
C a 2+
O2
.O 2
C a 2+
+
x a n t in a
o x id a s e
C o n d iç õ e s N o r m a is
" I s q u e m ia /R e p e r fu s ã o "
Á C ID O Ú R IC O
Figura 2. Representação esquemática do ciclo das purinas na musculatura
esquelética em condições normais e em condições de isquemia/reperfusão. As setas
mais largas indicam a via predominante na musculatura esquelética em exercícios de
alta intensidade.
Condições de isquemia causada por hipóxia relativa do tecido, como as que
acontecem durante exercícios de alta intensidade favorecem a conversão da forma
desidrogenase da enzima para a forma oxidase [21, 22]. O provável mecanismo dessa
regulação é um distúrbio da homeostase do Ca2+, que acaba por ativar proteases que
degradam uma parte da enzima xantina desidrogenase, modificando-a de forma
irreversível [21, 22]. A xantina oxidase reduz O2 ao invés do NADP+, produzindo •O2-.
A conversão da forma desidrogenase para a forma oxidase também pode ocorrer de
forma reversível, pela oxidação de grupos sulfidrila da enzima. Nesse caso, a reversão
da enzima novamente para a forma desidrogenase ocorre quando as pontes dissulfeto
forem novamente reduzidas.
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Acredita-se que o maior dano celular devido a atividade da xantina oxidase seja
causado no processo pós-isquêmico, ou seja, na reperfusão. Note que esse fato é
simulado durante a pausa entre exercícios de alta intensidade, quando prevalece o
metabolismo aeróbico [23, 24].
Detectou-se aumento na atividade da enzima xantina oxidase no músculo e no plasma
imediatamente após o exercício [25, 26]. Recentemente, Vina et al [27] e GomezCabrera et al [28] observaram em estudos em ratos e humanos que a inibição da
enzima xantina oxidase com a suplementação ou aplicação intraperitoneal de
alopurinol (inibidor da xantina oxidase) preveniu a oxidação de glutationa, e impediu o
aumento em marcadores de lesão muscular após a realização de exercício exaustivo,
reforçando o papel da enzima xantina oxidase como a principal fonte de produção de
EROs no exercício de alta intensidade.
NAD(P)H oxidases
NAD(P)H oxidases não mitocondriais estão presentes no músculo esquelético de ratos
e humanos, localizando-se próximas ao sarcolema [29]. NAD(P)H oxidases reduzem o
O2 às custas de NADPH ou NADH como doadores de elétrons, contribuindo para a
produção de •O2- no músculo esquelético [29, 30]. Xia et al [31] observaram uma taxa
de produção de •O2- por uma oxidase dependente de NADH no retículo
sarcoplasmático maior do que a taxa correspondente a porções submitocondriais de
músculo e coração de ratos [31]. Esses autores sugeriram que esta poderia ser uma
importante fonte geradora de •O2- no músculo esquelético, além de exercer um
importante papel na regulação da liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático.
A aplicação do princípio da sobrecarga preconizada pelo treinamento induz
microtraumas na musculatura. A resposta inflamatória envolve entre outros eventos o
aumento da infiltração de neutrófilos no músculo [32, 33, 34]. NADPH oxidases
presentes na superfície celular dos neutrófilos constituem uma importante fonte
geradora de •O2- em um processo conhecido como burst respiratório. O •O2- pode ser
posteriormente reduzido a H2O2, e pela ação de mieloperoxidases presentes nos
neutrófilos, ser convertido a ácido hipocloroso [16].
OUTRAS FONTES DE EROS DURANTE O EXERCÍCIO
O •O2- também pode ser produzido no músculo esquelético por cicloxigenases,
peroxissomos e grupos heme de proteínas transportadoras de O2.
A autoxidação dos grupos prostéticos heme da oxihemoglobina (oxi-Hb) ou
oximioglobina (oxi-Mb) também aumenta a produção de •O2- (Fe2+ + O2 → Fe3+ + •O2-)
e a oxidação da metahemoglobina (metHb) ou metamioglobina (metMb) (R-Fe3+) por
H2O2 leva a formação de um radical protéico, a ferrilmioglobina (•R―Fe4+=O2-),
segundo a seguinte reação [35, 36]:
R-Fe3+ + H2O2 → R•―Fe4+=O2- + H2O
A metMb e a ferrilmioglobina são muito reativas. No entanto, o papel destes radicais
protéicos durante exercício ainda não foi estudado em detalhe [35, 36].
Os metais de transição também podem reagir com peróxidos derivados de lipídeos
(LOOH), gerando radicias peroxila (LOO•) ou alcoxila (LO•). Esses radicais também são
bastante reativos e podem danificar biomoléculas importantes no organismo. Por isso,
normalmente esses metais estão ligados a proteínas como ferritina e transferrina.
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Durante jejum prolongado a oxidação de ácidos graxos está aumentada nos
peroxissomos. As enzimas da β-oxidação dos peroxissomos não são iguais às enzimas
mitocondriais responsáveis pela β-oxidação, e sua atividade implica na formação de
H2O2 [37, 38]. Foi demonstrado que ocorre um aumento na atividade da catalase,
antioxidante enzimático nos peroxissomos de músculo de ratos submetidos a jejum
prolongado [38, 39]. Assim como no jejum, durante a realização de exercícios
prolongados a oxidação de ácidos graxos está aumentada no músculo esquelético,
sugerindo que a produção de H2O2 nos peroxissomos também deve estar aumentada
nesta situação [38].
As cicloxigenases (COX) catalisam as etapas iniciais do metabolismo de ácido
araquidônico a uma prostaglandina intermediária, que por diferentes reações é
convertida a prostaglandinas e tromboxanas, responsáveis por desencadear diversas
respostas inflamatórias. Neste processo as COX também produzem EROs. Foi
demonstrado que a expressão das COX estaria aumentada em eventos como lesões e
isquemia/reperfusão no músculo esquelético [40].
OUTROS RADICAIS LIVRES FORMADOS DURANTE O EXERCÍCIO
O músculo esquelético também produz radical óxido nítrico (•NO), a partir do
aminoácido arginina, numa reação catalisada pela enzima óxido nítrico sintase. O •NO
possui funções de vasodilatador e neurotransmissor, e é sintetizado pelas células do
endotélio vascular. A produção de •NO é aumentada durante o exercício de maneira
dependente de Ca2+ [41]. Postula-se que o •NO regule a atividade de proteínas através
da reação com grupamentos sulfidrila [41, 42]. É possível também que o •NO regule a
produção de EROs por inibir as enzimas xantina oxidase e NADPH oxidase [42, 43].
No entanto, o •NO também pode interagir com •O2-, gerando peroxinitrito (ONOO-),
um composto de alta reatividade, que pode causar danos nitrosativos e promover a
oxidação de biomoléculas [41, 42].
CONSEQUÊNCIAS DO AUMENTO DA GERAÇÃO DAS DIVERSAS ESPÉCIES
RADICALARES
Um problema decorrente da reatividade dos radicais livres é que eles atacam alvos
inespecíficos. Ou seja, podem oxidar lipídios, proteínas, ácidos nucléicos ou qualquer
outra biomolécula presente nos locais onde são produzidos. Um outro ponto
importante a ser considerado, é que as reações iniciadas pelas EROs ocorrem em
cascata; o radical iniciador reage com um doador de elétrons (RH), gerando novas
moléculas radicais livres (.R). Isso pode levar a um grande dano oxidativo, com perda
de funções e até mesmo morte celular [1]
Por outro lado, o fato dos radicais livres serem produzidos normalmente em condições
fisiológicas levou à proposição de que as EROs também poderiam exercer funções na
regulação de diferentes funções celulares. Uma das propostas é que as EROS
modulariam o estado redox de proteínas transdutoras de sinal, influenciando a
expressão gênica [20, 44]. As EROs podem ainda regular o transporte de glicose para
dentro da célula, o fluxo sanguíneo, e até mesmo a função contrátil no músculo
esquelético[20, 45].
CONCLUSÕES
As mitocôndrias e a enzima xantina oxidase parecem ser as principais fontes
produtoras de EROs no músculo esquelético durante e após o exercício físico, de uma
forma proporcional ao aumento da atividade contrátil. A produção de EROs nas
mitocôndrias do músculo esquelético pode não ser regulada somente pelo consumo de
oxigênio ou fluxo aumentado de elétrons na cadeia de transporte de elétrons, mas sim
pela pressão parcial de O2 nas mitocôndrias e pelo ΔpH entre a matriz mitocondrial e
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espaço intermembranas. Exercícios intermitentes de alta intensidade ou realizados até
a exaustão podem ter uma contribuição maior da xantina oxidase na produção de
EROs, uma vez que resultam em maior degradação de nucleotídeos de adenina, e
propiciam condições que favorecem uma maior conversão da enzima xantina
desidrogenase à sua forma oxidase. Apesar de já terem sido identificados outros
possíveis mecanismos de produção de EROs na musculatura esquelética, a
contribuição de cada um deles ainda não está totalmente caracterizada. Futuros
estudos devem elucidar a contribuição dessas fontes na produção de EROs em
diferentes tipos de exercícios, e seu impacto nos processos adaptativos ou
degenerativos induzidos na musculatura esquelética.
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Edição semestral, publicada pela Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq), disponibilizada a todos os
interessados no site http://www.sbbq.org.br/revista, com artigos e materiais didáticos, softwares e outros assuntos.
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