Além do Princípio de Prazer

Transcrição

Além do Princípio de Prazer
Além do Princípio de Prazer
Sigmund Freud (1856-1939)
Livro XVIII - Obras Psicológicas de Sigmund Freud
Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado pelos
eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou seja,
acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em movimento por
uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide
com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma produção
de prazer. Levando esse curso em conta na consideração dos processos mentais que
constituem o tema de nosso estudo, introduzimos um ponto de vista ‘econômico’ em
nosso trabalho, e se, ao descrever esses processos, tentarmos calcular esse fator
‘econômico’ além dos ‘topográficos’ e ‘dinâmicos’, estaremos, penso eu, fornecendo deles
a mais completa descrição que poderemos atualmente conceber, uma descrição que
merece ser distinguida pelo nome de ‘metapsicológica’.
Com relação a isso, não nos interessa indagar até onde, com a hipótese do
princípio de prazer, abordamos qualquer sistema filosófico específico, historicamente
estabelecido. Chegamos a essas suposições especulativas numa tentativa de descrever e
explicar os fatos da observação diária em nosso campo de estudo. A prioridade e a
originalidade não se encontram entre os objetivos que o trabalho psicanalítico estabelece
para si, e as impressões subjacentes à hipótese do princípio de prazer são tão evidentes,
que dificilmente podem ser desprezadas. Por outro lado, prontamente expressaríamos
nossa gratidão a qualquer teoria filosófica ou psicológica que pudesse informar-nos sobre
o significado dos sentimentos de prazer e desprazer que atuam tão imperativamente
sobre nós. Contudo, quanto a esse ponto, infelizmente nada nos é oferecido para nossos
fins. Trata-se da região mais obscura e inacessível da mente e, já que não podemos
evitar travar contato com ela, a hipótese menos rígida será a melhor, segundo me parece.
Decidimos relacionar o prazer e o desprazer à quantidade de excitação, presente na
mente, mas que não se encontra de maneira alguma ‘vinculada’, e relacioná-los de tal
modo, que o desprazer corresponda a um aumento na quantidade de excitação, e o
prazer, a uma diminuição. O que isso implica não é uma simples relação entre a
intensidade dos sentimentos de prazer e desprazer e as modificações correspondentes na
quantidade de excitação; tampouco — em vista de tudo que nos foi ensinado pela
psicofisiologia — sugerimos a existência de qualquer razão proporcional direta: o fator
que determina o sentimento e provavelmente a quantidade de aumento ou diminuição na
quantidade de excitação num determinado período de tempo. A experimentação
possivelmente poderia desempenhar um papel aqui, mas não é aconselhável a nós,
analistas, ir mais à frente no problema enquanto nosso caminho não estiver balizado por
observações bastante definidas.
Não podemos, entretanto, permanecer indiferentes à descoberta de um
investigador de tanta penetração como G.T.Fechner, que sustenta uma concepção sobre
o tema do prazer e do desprazer que coincide em todos os seus aspectos essenciais com
aquela a que fomos levados pelo trabalho psicanalítico. A afirmação de Fechner pode ser
encontrada numa pequena obra, Einige Ideen zur Schöpfungs — und Entwick —
lungsgeschichte der Organismen, 1873 (Parte XI, Suplemento, 94), e diz o seguinte: ‘Até
onde os impulsos conscientes sempre possuem uma certa relação com o prazer e o
desprazer, estes também podem ser encarados como possuindo uma relação psicofísica
com condições de estabilidade e instabilidade. Isso fornece a base para uma hipótese em
que me proponho ingressar com maiores pormenores em outra parte. De acordo com ela,
todo movimento psicofísico que se eleve acima do limiar da consciência é assistido pelo
1 – www.lacan.dk3.com
prazer na proporção em que, além de um certo limite, ele se aproxima da estabilidade
completa, sendo assistido pelo desprazer na proporção em que, além de um certo limite,
se desvia dessa estabilidade, ao passo que entre os dois limites, que podem ser descritos
como limiares qualitativos de prazer e desprazer, há uma certa margem de indiferença
estética (…)’
Os fatos que nos fizeram acreditar na dominância do princípio de prazer na vida
mental encontram também expressão na hipótese de que o aparelho mental se esforça
por manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo
menos, por mantê-la constante. Essa última hipótese constitui apenas outra maneira de
enunciar o princípio de prazer, porque, se o trabalho do aparelho mental se dirige no
sentido de manter baixa a quantidade de excitação, então qualquer coisa que seja
calculada para aumentar essa quantidade está destinada a ser sentida como adversa ao
funcionamento do aparelho, ou seja, como desagradável. O princípio de prazer decorre do
princípio de constância; na realidade, esse último princípio foi inferido dos fatos que nos
forçaram a adotar o princípio de prazer. Além disso, um exame mais pormenorizado
mostrará que a tendência que assim atribuímos ao aparelho mental, subordina-se, como
um caso especial, ao princípio de Fechner da ‘tendência no sentido da estabilidade’, com
a qual ele colocou em relação os sentimentos de prazer e desprazer.
Deve-se, contudo, apontar que, estritamente falando, é incorreto falar na
dominância do princípio de prazer sobre o curso dos processos mentais. Se tal
dominância existisse, a imensa maioria de nossos processos mentais teria de ser
acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, ao passo que a experiência geral contradiz
completamente uma conclusão desse tipo. O máximo que se pode dizer, portanto, é que
existe na mente uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa
tendência seja contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de maneira que o
resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a tendência no sentido do
prazer. Podemos comparar isso com o que Fechner (1873, 90) observa sobre um ponto
semelhante: ‘Visto que, porém, uma tendência no sentido de um objetivo não implica que
este seja atingido, e desde que, em geral, o objetivo é atingível apenas por aproximações
(…)’
Se nos voltarmos agora para a questão de saber quais as circunstâncias que
podem impedir o princípio de prazer de ser levado a cabo, encontrar-nos-emos mais uma
vez em terreno seguro e bem batido e, ao estruturarmos nossa resposta, teremos à nossa
disposição um copioso fundo de experiência analítica.
O primeiro exemplo do princípio de prazer a ser assim inibido é familiar e ocorre
com regularidade. Sabemos que o princípio de prazer é próprio de um método primário de
funcionamento por parte do aparelho mental, mas que, do ponto de vista da
autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o
início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de
autopreservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade.
Esse último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não
obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de
possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no
longo e indireto caminho para o prazer. Contudo, o princípio de prazer persiste por longo
tempo como o método de funcionamento empregado pelos instintos sexuais, que são
difíceis de ‘educar’, e, partindo desses instintos, ou do próprio ego, com freqüência
consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo.
Não pode, porém, haver dúvida de que a substituição do princípio de prazer pelo
princípio de realidade só pode ser responsabilizada por um pequeno número — e de
modo algum as mais intensas — das experiências desagradáveis. Outra ocasião de
liberação do desprazer, que ocorre com não menor regularidade, pode ser encontrada
nos conflitos e dissensões que se efetuam no aparelho mental enquanto o ego está
2 – www.lacan.dk3.com
passando por seu desenvolvimento para organizações mais altamente compostas. Quase
toda a energia com que o aparelho se abastece, origina-se de seus impulsos instintuais
inatos, mas não é a todos estes que se permite atingir as mesmas fases de
desenvolvimento. No curso das coisas, acontece repetidas vezes que instintos individuais
ou parte de instintos se mostrem incompatíveis, em seus objetivos ou exigências, com os
remanescentes, que podem combinar-se na unidade inclusiva do ego. Os primeiros são
então expelidos dessa unidade pelo processo de repressão, mantidos em níveis inferiores
de desenvolvimento psíquico, e afastados, de início, da possibilidade de satisfação. Se
subseqüentemente alcançam êxito — como tão facilmente acontece com os instintos
sexuais reprimidos — em conseguir chegar por caminhos indiretos a uma satisfação
direta ou substitutiva, esse acontecimento, que em outros casos seria uma oportunidade
de prazer, é sentida pelo ego como desprazer. Em conseqüência do velho conflito que
terminou pela repressão, uma nova ruptura ocorreu no princípio de prazer no exato
momento em que certos instintos estavam esforçando-se, de acordo com o princípio, por
obter novo prazer. Os pormenores do processo pelo qual a repressão transforma uma
possibilidade de prazer numa fonte de desprazer ainda não estão claramente
compreendidos, ou não podem ser claramente representados; não há dúvida, porém, de
que todo desprazer neurótico é dessa espécie, ou seja, um prazer que não pode ser
sentido como tal.
As duas fontes de desprazer que acabei de indicar estão muito longe de abranger a
maioria de nossas experiências desagradáveis; contudo, no que concerne ao restante,
pode-se afirmar com certa justificativa que sua presença não contradiz a dominância do
princípio de prazer. A maior parte do desprazer que experimentamos é um desprazer
perceptivo. Esse desprazer pode ser a percepção de uma pressão por parte de instintos
insatisfeitos, ou ser a percepção externa do que é aflitivo em si mesmo ou que excita
expectativas desprazerosas no aparelho mental, isto é, que é por ele reconhecido como
um ‘perigo’. A reação dessas exigências instintuais e ameaças de perigo, reação que
constitui a atividade apropriada do aparelho mental, pode ser então dirigida de maneira
correta pelo princípio de prazer ou pelo princípio de realidade pelo qual o primeiro é
modificado. Isso não parece tornar necessária nenhuma limitação de grande alcance do
princípio de prazer. Não obstante, a investigação da reação mental ao perigo externo
encontra-se precisamente em posição de produzir novos materiais e levantar novas
questões relacionadas com nosso problema atual.
II
Há muito tempo se conhece e foi descrita uma condição que ocorre após graves
concussões mecânicas, desastres ferroviários e outros acidentes que envolvem risco de
vida; recebeu o nome de ‘neurose traumática’. A terrível guerra que há pouco findou deu
origem a grande número de doenças desse tipo; pelo menos, porém, pôs fim à tentação
de atribuir a causa do distúrbio a lesões orgânicas do sistema nervoso, ocasionadas pela
força mecânica. O quadro sintomático apresentado pela neurose traumática aproxima-se
do da histeria pela abundância de seus sintomas motores semelhantes; em geral,
contudo, ultrapassa-o em seus sinais fortemente acentuados de indisposição subjetiva (no
que se assemelha à hipocondria ou melancolia), bem como nas provas que fornece de
debilitamento e de perturbação muito mais abrangentes e gerais das capacidades
mentais. Ainda não se chegou a nenhuma explicação completa, seja das neuroses de
guerra, seja das neuroses traumáticas dos tempos de paz. No caso das primeiras, o fato
de os mesmos sintomas às vezes aparecerem sem a intervenção de qualquer grande
força mecânica, pareceu a princípio esclarecedor e desnorteante. No caso das neuroses
traumáticas comuns, duas características surgem proeminentemente: primeira, que o
3 – www.lacan.dk3.com
ônus principal de sua causação parece repousar sobre o fator da surpresa, do susto, e,
segunda, que um ferimento ou dano infligidos simultaneamente operam, via de regra,
contra o desenvolvimento de uma neurose. ‘Susto’, ‘medo’ e ‘ansiedade’ são palavras
impropriamente empregadas como expressões sinônimas; são, de fato, capazes de uma
distinção clara em sua relação com o perigo. A ‘ansiedade’ descreve um estado particular
de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O ‘medo’
exige um objeto definido de que se tenha temor. ‘Susto’, contudo, é o nome que damos ao
estado em que alguém fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele,
dando-se ênfase ao fator da surpresa. Não acredito que a ansiedade possa produzir
neurose traumática; nela existe algo que protege o seu sujeito contra o susto e, assim,
contra as neuroses de susto. Voltaremos posteriormente a esse ponto (ver em [1] e segs).
O estudo dos sonhos pode ser considerado o método mais digno de confiança na
investigação dos processos mentais profundos. Ora, os sonhos que ocorrem nas
neuroses traumáticas possuem a característica de repetidamente trazer o paciente de
volta à situação de seu acidente, numa situação da qual acorda em outro susto. Isso
espanta bem pouco as pessoas. Pensam que o fato de a experiência traumática estar-se
continuamente impondo ao paciente, mesmo no sono, se encontra, conforme se poderia
dizer, fixado em seu trauma. As fixações na experiência que iniciou a doença há muito
tempo, nos são familiares na histeria. Breuer e Freud declararam em 1893 que ‘os
histéricos sofrem principalmente de reminiscências’. Nas neuroses de guerra também,
observadores como Ferenczi e Simmel puderam explicar certos sintomas motores pela
fixação no momento em que o trauma ocorreu.
Não é de meu conhecimento, contudo, que pessoas que sofrem de neurose
traumática estejam muito ocupadas, em suas vidas despertas, com lembranças de seu
acidente. Talvez estejam mais interessadas em não pensar nele. Qualquer um que aceite,
como algo por si mesmo evidente, que os sonhos delas devam à noite fazê-las voltar à
situação que as fez cair doentes, compreendeu mal a natureza dos sonhos. Estaria mais
em harmonia com a natureza destes, se mostrassem ao paciente quadros de seu
passado sadio ou da cura pela qual esperam. Se não quisermos que os sonhos dos
neuróticos traumáticos abalem nossa crença no teor realizador de desejos dos sonhos,
teremos ainda aberta a nós uma saída: podemos argumentar que a função de sonhar, tal
como muitas pessoas, nessa condição está perturbada e afastada de seus propósitos, ou
podemos ser levados a refletir sobre as misteriosas tendências masoquistas do ego.
Nesse ponto, proponho abandonarmos o obscuro e melancólico tema da neurose
traumática, e passar a examinar o método de funcionamento empregado pelo aparelho
mental em uma de suas primeiras atividades normais; quero referir-me à brincadeira das
crianças.
As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianças foram ainda recentemente
resumidas e discutidas do ponto de vista psicanalítico por Pfeifer (1919), a cujo artigo
remeto meus leitores. Essas teorias esforçam-se por descobrir os motivos que levam as
crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econômico, a
consideração da produção de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo
abrangido por esses fenômenos, pude, através de uma oportunidade fortuita que se me
apresentou, lançar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um menininho de
ano e meio de idade e inventada por ele próprio. Foi mais do que uma simples
observação passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criança e seus pais durante
algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmática
atividade que ele constantemente repetia.
A criança de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. À idade
de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava também
uma série de sons que expressavam um significado inteligível para aqueles que a
rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua única empregada, e
4 – www.lacan.dk3.com
tributos eram-lhe prestados por ser um ‘bom menino’. Não incomodava os pais à noite,
obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em
determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava por
algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado à mãe, que tinha não apenas de
alimentá-lo, como também cuidava dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom
menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos
que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que
procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom trabalho. Enquanto
procedia assim, emitia um longo e arrastado ‘o-o-o-ó’, acompanhado por expressão de
interesse e satisfação. Sua mãe e o autor do presente relato concordaram em achar que
isso não constituía uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã ‘fort‘.
Acabei por compreender que se tratava de um jogo e que o único uso que o menino fazia
de seus brinquedos, era brincar de ‘ir embora’ com eles. Certo dia, fiz uma observação
que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um
pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de
si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era
segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua
caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao
mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para
fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um
alegre ‘da‘ (‘ali’). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via
de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como
um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao
segundo ato.
A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande
realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação
instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por
isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que
se encontravam a seu alcance. É naturalmente indiferente, do ponto de vista de ajuizar a
natureza efetiva do jogo, saber se a própria criança o inventara ou o tirara de alguma
sugestão externa. Nosso interesse se dirige para outro ponto. A criança não pode ter
sentido a partida da mãe como algo agradável ou mesmo indiferente. Como, então, a
repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o princípio de
prazer? Talvez se possa responder que a partida dela tinha de ser encenada como
preliminar necessária a seu alegre retorno, e que neste último residia o verdadeiro
propósito do jogo. Mas contra isso deve-se levar em conta o fato observado de o primeiro
ato, o da partida, ser encenado como um jogo em si mesmo, e com muito mais freqüência
do que o episódio na íntegra, com seu final agradável.
Nenhuma decisão certa pode ser alcançada pela análise de um caso isolado como
esse. De um ponto de vista não preconcebido, fica-se com a impressão de que a criança
transformou sua experiência em jogo devido a outro motivo. No início, achava-se numa
situação passiva, era dominada pela experiência; repetindo-a, porém, por mais
desagradável que fosse, como jogo, assumia papel ativo. Esses esforços podem ser
atribuídos a um instinto de dominação que atuava independentemente de a lembrança em
si mesma ser agradável ou não. Mas uma outra interpretação ainda pode ser tentada.
Jogar longe o objeto, de maneira a que fosse ‘embora’, poderia satisfazer um impulso da
criança, suprimido na vida real, de vingar-se da mãe por afastar-se dela. Nesse caso,
possuiria significado desafiador: ‘Pois bem, então: vá embora! Não preciso de você. Sou
eu que estou mandando você embora.’ Um ano mais tarde, o mesmo menino que eu
observara em seu primeiro jogo, costumava agarrar um brinquedo, se estava zangado
com este, e jogá-lo ao chão, exclamando: ‘Vá para a frente!’ Escutara nessa época que o
pai ausente se encontrava ‘na frente (de batalha)’, e o menino estava longe de lamentar
5 – www.lacan.dk3.com
sua ausência, pelo contrário, deixava bastante claro que não tinha desejo de ser
perturbado em sua posse exclusiva da mãe. Conhecemos outras crianças que gostavam
de expressar impulsos hostis semelhantes lançando longe de si objetos, em vez de
pessoas. Assim, ficamos em dúvida quanto a saber se o impulso para elaborar na mente
alguma experiência de dominação, de modo a tornar-se senhor dela, pode encontrar
expressão como um evento primário e independentemente do princípio de prazer. Isso
porque, no caso que acabamos de estudar, a criança, afinal de contas, só foi capaz de
repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a repetição trazia consigo
uma produção de prazer de outro tipo, uma produção mais direta.
Não seremos auxiliados em nossa hesitação entre esses dois pontos de vista por
outras considerações sobre brincadeiras infantis. É claro que em suas brincadeiras as
crianças repetem tudo que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim
procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se, por assim dizer,
senhoras da situação. Por outro lado, porém, é óbvio que todas as suas brincadeiras são
influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder
fazer o que as pessoas crescidas fazem. Pode-se também observar que a natureza
desagradável de uma experiência nem sempre a torna inapropriada para a brincadeira.
Se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma pequena
intervenção, podemos estar inteiramente certos de que essas assustadoras experiências
serão tema da próxima brincadeira; contudo, não devemos, quanto a isso, desprezar o
fato de existir uma produção de prazer provinda de outra fonte. Quando a criança passa
da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência
desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se
num substituto.
Todavia, decorre desse exame que não há necessidade de supor a existência de
um instinto imitativo especial para fornecer um motivo para a brincadeira. Finalmente, em
acréscimo, pode-se lembrar que a representação e a imitação artísticas efetuadas por
adultos, as quais, diferentemente daquelas das crianças, se dirigem a uma audiência, não
poupam aos espectadores (como na tragédia, por exemplo) as mais penosas
experiências, e, no entanto, podem ser por eles sentidas como altamente prazerosas. Isso
constitui prova convincente de que, mesmo sob a dominância do princípio de prazer, há
maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a
ser rememorado e elaborado na mente. A consideração desses casos e situações, que
têm a produção de prazer como seu resultado final, deve ser empreendida por algum
sistema de estética com uma abordagem econômica a seu tema geral. Eles não têm
utilidade para nossos fins, pois pressupõem a existência e a dominância do princípio de
prazer; não fornecem provas do funcionamento de tendências além do princípio de
prazer, ou seja, de tendências mais primitivas do que ele e dele independentes.
III
Vinte e cinco anos de intenso trabalho tiveram por resultado que os objetivos
imediatos da psicanálise sejam hoje inteiramente diferentes do que eram no começo. A
princípio, o médico que analisava não podia fazer mais do que descobrir o material
inconsciente oculto para o paciente, reuni-lo e no momento oportuno comunicá-lo a este.
A psicanálise era então, primeiro e acima de tudo, uma arte interpretativa. Uma vez que
isso não solucionava o problema terapêutico, um outro objetivo rapidamente surgiu à
vista: obrigar o paciente a confirmar a construção teórica do analista com sua própria
memória. Nesse esforço, a ênfase principal reside nas resistências do paciente: a arte
consistia então em descobri-las tão rapidamente quanto possível, apontando-as ao
paciente e induzindo-o, pela influência humana — era aqui que a sugestão, funcionando
como ‘transferência’, desempenhava seu papel —, a abandonar suas resistências.
6 – www.lacan.dk3.com
Contudo, tornou-se cada vez mais claro que o objetivo que fora estabelecido —
que o inconsciente deve tornar-se consciente — não era completamente atingível através
desse método. O paciente não pode recordar a totalidade do que nele se acha reprimido,
e o que não lhe é possível recordar pode ser exatamente a parte essencial. Dessa
maneira, ele não adquire nenhum sentimento de convicção da correção da construção
teórica que lhe foi comunicada. É obrigado a repetir o material reprimido como se fosse
uma experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver, recordá-lo
como algo pertencente ao passado. Essas reproduções, que surgem com tal exatidão
indesejada, sempre têm como tema alguma parte da vida sexual infantil, isto é, do
complexo de Édipo, e de seus derivativos, e são invariavelmente atuadas (acted out) na
esfera da transferência, da relação do paciente com o médico. Quando as coisas atingem
essa etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi então substituída por outra nova,
pela ‘neurose de transferência’. O médico empenha-se por manter essa neurose de
transferência dentro dos limites mais restritos; forçar tanto quanto possível o canal da
memória, e permitir que surja como repetição o mínimo possível. A proporção entre o que
é lembrado e o que é reproduzido varia de caso para caso. O médico não pode, via de
regra, poupar ao paciente essa face do tratamento. Deve fazê-lo reexperimentar alguma
parte de sua vida esquecida, mas deve também cuidar, por outro lado, que o paciente
retenha certo grau de alheamento, que lhe permitirá, a despeito de tudo, reconhecer que
aquilo que parece ser realidade é, na verdade, apenas reflexo de um passado esquecido.
Se isso puder ser conseguido com êxito, o sentimento de convicção do paciente será
conquistado, juntamente com o sucesso terapêutico que dele depende.
A fim de tornar mais fácil a compreensão dessa ‘compulsão à repetição’ que surge
durante o tratamento psicanalítico dos neuróticos, temos acima de tudo de livrar-nos da
noção equivocada de que aquilo com que estamos lidando em nossa luta contra as
resistências seja uma resistência por parte do inconsciente. O inconsciente, ou seja, o
‘reprimido’, não oferece resistência alguma aos esforços do tratamento. Na verdade, ele
próprio não se esforça por outra coisa que não seja irromper através da pressão que
sobre ele pesa, e abrir seu caminho à consciência ou a uma descarga por meio de
alguma ação real. A resistência durante o tratamento origina-se dos mesmos estratos e
sistemas mais elevados da mente que originalmente provocaram a repressão. Mas o fato
de, como sabemos pela experiência, os motivos das resistências e, na verdade, as
próprias resistências serem a princípio inconscientes durante o tratamento, é-nos uma
sugestão para que corrijamos uma deficiência de nossa terminologia. Evitaremos a falta
de clareza se fizermos nosso contraste não entre o consciente e o inconsciente, mas
entre o ego coerente e o reprimido. É certo que grande parte do ego é, ela própria,
inconsciente, e notavelmente aquilo que podemos descrever como seu núcleo; apenas
pequena parte dele se acha abrangida pelo termo ‘pré-consciente’. Havendo substituído
uma terminologia puramente descritiva por outra sistemática e dinâmica, podemos dizer
que as resistências do paciente originam-se do ego, e então imediatamente
perceberemos que a compulsão à repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente.
Parece provável que a compulsão só possa expressar-se depois que o trabalho do
tratamento avançou a seu encontro até a metade do caminho e que afrouxou a repressão.
Não há dúvida de que a resistência do ego consciente e inconsciente funciona sob
a influência do princípio de prazer; ela busca evitar o desprazer que seria produzido pela
liberação do reprimido. Nossos esforços, por outro lado, dirigem-se no sentido de
conseguir a tolerância desse desprazer por um apelo ao princípio de realidade. Mas,
como se acha a compulsão à repetição — a manifestação do poder do reprimido —
relacionada com o princípio de prazer? É claro que a maior parte do que é
reexperimentado sob a compulsão à repetição, deve causar desprazer ao ego, pois traz à
luz as atividades dos impulsos instintuais reprimidos. Isso, no entanto, constitui desprazer
de uma espécie que já consideramos e que não contradiz o princípio de prazer: desprazer
7 – www.lacan.dk3.com
para um dos sistemas e, simultaneamente, satisfação para outro. Contudo, chegamos
agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também
rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e
que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos
instintuais que desde então foram reprimidos.
O florescimento precoce da vida sexual infantil está condenado à extinção porque
seus desejos são incompatíveis com a realidade e com a etapa inadequada de
desenvolvimento a que a criança chegou. Esse florescimento chega ao fim nas mais
aflitivas circunstâncias e com o acompanhamento dos mais penosos sentimentos. A perda
do amor e o fracasso deixam atrás de si um dano permanente à autoconsideração, sob a
forma de uma cicatriz narcisista, o que, em minha opinião, bem como na de Marcinowski
(1918), contribui mais do que qualquer outra coisa para o ‘sentimento de inferioridade’, tão
comum aos neuróticos. As explorações sexuais infantis, às quais seu desenvolvimento
físico impõe limites, não conduzem a nenhuma conclusão satisfatória; daí as queixas
posteriores, tais como ‘Não consigo realizar nada; não tenho sucesso em nada’. O laço da
afeição, que via de regra liga a criança ao genitor do sexo oposto, sucumbe ao
desapontamento, a uma vã expectativa de satisfação, ou ao ciúme pelo nascimento de
um novo bebê, prova inequívoca da infidelidade do objetivo da afeição da criança. Sua
própria tentativa de fazer um bebê, efetuada com trágica seriedade, fracassa
vergonhosamente. A menor quantidade de afeição que recebe, as exigências crescentes
da educação, palavras duras e um castigo ocasional mostram-lhe por fim toda a extensão
do desdém que lhe concederam. Estes são alguns exemplos típicos e constantemente
recorrentes das maneiras pelas quais o amor característico da idade infantil é levado a um
término.
Os pacientes repetem na transferência todas essas situações indesejadas e
emoções penosas, revivendo-as com a maior engenhosidade. Procuram ocasionar a
interrupção do tratamento enquanto este ainda se acha incompleto; imaginam sentir-se
desprezados mais uma vez, obrigam o médico a falar-lhes severamente e a tratá-los
friamente; descobrem objetos apropriados para seu ciúme; em vez do nenê
apaixonadamente desejado de sua infância, produzem um plano ou a promessa de algum
grande presente, que em regra se mostra não menos irreal. Nenhuma dessas coisas pode
ter produzido prazer no passado, e poder-se-ia supor que causariam menos desprazer
hoje se emergissem como lembranças ou sonhos, em vez de assumirem a forma de
experiências novas. Constituem, naturalmente, as atividades de instintos destinados a
levar à satisfação, mas nenhuma lição foi aprendida da antiga experiência de que essas
atividades, ao contrário, conduziram apenas ao desprazer. A despeito disso, são
repetidas, sob a pressão de uma compulsão.
O que a psicanálise revela nos fenômenos de transferência dos neuróticos,
também pode ser observado nas vidas de certas pessoas normais. A impressão que dão
é de serem perseguidas por um destino maligno ou possuídas por algum poder
‘demoníaco’; a psicanálise, porém, sempre foi de opinião de que seu destino é, na maior
parte, arranjado por elas próprias e determinado por influências infantis primitivas. A
compulsão que aqui se acha em evidência não difere em nada da compulsão à repetição
que encontramos nos neuróticos, ainda que as pessoas que agora estamos considerando
nunca tenham mostrado quaisquer sinais de lidarem com um conflito neurótico pela
produção de sintomas. Assim, encontramos pessoas em que todas as relações humanas
têm o mesmo resultado, tal como o benfeitor que é abandonado iradamente, após certo
tempo, por todos os seus protegés, por mais que eles possam, sob outros aspectos,
diferir uns dos outros, parecendo assim condenado a provar todo o amargor da ingratidão;
o homem cujas amizades findam por uma traição por parte do amigo; o homem que,
repetidas vezes, no decorrer da vida, eleva outrem a uma posição de grande autoridade
particular ou pública e depois, após certo intervalo, subverte essa autoridade e a substitui
8 – www.lacan.dk3.com
por outra nova; ou, ainda, o amante cujos casos amorosos com mulheres atravessam as
mesmas fases e chegam à mesma conclusão. Essa ‘perpétua recorrência da mesma
coisa’ não nos causa espanto quando se refere a um comportamento ativo por parte da
pessoa interessada, e podemos discernir nela um traço de caráter essencial, que
permanece sempre o mesmo, sendo compelido a expressar-se por uma repetição das
mesmas experiências. Ficamos muito mais impressionados nos casos em que o sujeito
parece ter uma experiência passiva, sobre a qual não possui influência, mas nos quais se
defronta com uma repetição da mesma fatalidade. É o caso, por exemplo, da mulher que
se casou sucessivamente com três maridos, cada um dos quais caiu doente logo depois e
teve que ser cuidado por ela em seu leito de morte. O retrato poético mais comovente de
um destino assim foi pintado por Tasso em sua epopéia romântica Gerusalemme
Liberata. Seu herói, Tancredo, inadvertidamente mata sua bem amada Clorinda num
duelo, estando ela disfarçada sob a armadura de um cavaleiro inimigo. Após o enterro,
abre caminho numa estranha floresta mágica que aterroriza o exército dos Cruzados.
Com a espada faz um talho numa árvore altaneira, mas do corte é sangue que escorre e
a voz de Clorinda, cuja alma está aprisionada na árvore, é ouvida a lamentar-se que mais
uma vez ele feriu sua amada.
Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no
comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e mulheres, não só
encontraremos coragem para supor que existe realmente na mente uma compulsão à
repetição que sobrepuja o princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a
relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o
impulso que leva as crianças a brincar.
Contudo, é de notar que apenas em raros casos podemos observar os motivos
puros da compulsão à repetição, desapoiados por outros motivos. No caso da brincadeira
das crianças, já demos ênfase às outras maneiras pelas quais o surgimento da
compulsão pode ser interpretado; aqui, a compulsão à repetição e a satisfação instintual
que é imediatamente agradável, parecem convergir em associação íntima. Os fenômenos
da transferência são obviamente explorados pela resistência que o ego mantém em sua
pertinaz insistência na repressão; a compulsão à repetição, que o tratamento tenta
colocar a seu serviço, é, por assim dizer, arrastada pelo ego para o lado dele (aferrandose, como faz o ego, ao princípio de prazer). Grande parte do que poderia ser descrito
como compulsão do destino parece inteligível numa base racional, de maneira que não
temos necessidade de convocar uma nova e misteriosa força motivadora para explicá-la.
O exemplo menos dúbio [de tal força motivadora] é talvez o dos sonhos
traumáticos. Numa reflexão mais amadurecida, porém, seremos forçados a admitir que,
mesmo nos outros casos, nem todo o campo é abrangido pelo funcionamento das
familiares forças motivadoras. Resta inexplicado o bastante para justificar a hipótese de
uma compulsão à repetição, algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais
instintual do que o princípio de prazer que ela domina. Mas, se uma compulsão à
repetição opera realmente na mente, ficaríamos satisfeitos em conhecer algo sobre ela,
aprender a que função corresponde, sob que condições pode surgir e qual é sua relação
com o princípio de prazer, ao qual, afinal de contas, até agora atribuímos dominância
sobre o curso dos processos de excitação na vida mental.
IV
O que se segue é especulação, amiúde especulação forçada, que o leitor tomará
em consideração ou porá de lado, de acordo com sua predileção individual. É mais uma
tentativa de acompanhar uma idéia sistematicamente, só por curiosidade de ver até onde
ela levará.
9 – www.lacan.dk3.com
A especulação psicanalítica toma como ponto de partida a impressão, derivada do
exame dos processos inconscientes, de que a consciência pode ser, não o atributo mais
universal dos processos mentais, mas apenas uma função especial deles. Falando em
termos metapsicológicos, assevera que a consciência constitui função de um sistema
específico que descreve como Cs. O que a consciência produz consiste essencialmente
em percepções de excitação provindas do mundo externo e de sentimentos de prazer e
desprazer que só podem surgir do interior do aparelho psíquico; assim, é possível atribuir
ao sistema Pcpt.-Cs. uma posição no espaço. Ele deve ficar na linha fronteiriça entre o
exterior e o interior; tem de achar-se voltado para o mundo externo e tem de envolver os
outros sistemas psíquicos. Ver-se-á que não existe nada de ousadamente novo nessas
suposições; adotamos simplesmente as concepções sobre localização sustentadas pela
anatomia cerebral, que localiza a ‘sede’ da consciência no córtex cerebral, a camada mais
externa, envolvente do órgão central. A anatomia cerebral não tem necessidade de
considerar por que, anatomicamente falando, a consciência deva alojar-se na superfície
do cérebro, em vez de encontrar-se seguramente abrigada em algum lugar de seu mais
íntimo interior. Talvez nós sejamos mais bem-sucedidos em explicar essa situação, no
caso de nosso sistema Pcpt.-Cs.
A consciência não é o único caráter distintivo que atribuímos aos processos desse
sistema. Com base em impressões derivadas de nossa experiência psicanalítica,
supomos que todos os processos excitatórios que ocorrem nos outros sistemas deixam
atrás de si traços permanentes, os quais formam os fundamentos da memória. Tais traços
de memória, então, nada têm a ver com o fato de se tornarem conscientes; na verdade,
com freqüência são mais poderosos e permanentes quando o processo que os deixou
atrás de si foi um processo que nunca penetrou na consciência. Achamos difícil acreditar,
contudo, que traços permanentes de excitação como esses sejam também deixados no
sistema Pcpt.-Cs. Se permanecessem constantemente conscientes, muito cedo
estabeleceriam limites à aptidão do sistema para o recebimento de novas excitações. Se,
por outro lado, fossem inconscientes, nos defrontaríamos com o problema de explicar a
existência de processos inconscientes num sistema cujo funcionamento, sob outros
aspectos, se faz acompanhar pelo fenômeno da consciência. Não teríamos, por assim
dizer, nem alterado nem ganho nada com nossa hipótese de relegar o processo de tornarse consciente a um sistema especial. Embora essa consideração de modo algum seja
conclusiva, leva-nos não obstante a suspeitar de que tornar-se consciente e deixar atrás
de si um traço de memória, são processos incompatíveis um com o outro dentro de um só
e mesmo sistema. Assim, poderíamos dizer que o processo excitatório se torna
consciente no sistema Cs., mas não deixa traço permanente atrás de si; a excitação,
porém, é transmitida aos sistemas que ficam a seguir e é neles que seus traços são
deixados. Segui essas mesmas linhas no quadro esquemático que incluí na parte
especulativa de minha Interpretação de Sonhos. Deve-se manter em mente que muito
pouco se conhece sobre outras fontes de origem da consciência; dessa maneira, quando
formulamos a proposição de que a consciência surge em vez de um traço de memória, a
assertiva merece consideração, pelo menos com o fundamento de que é estruturada em
termos bastante precisos.
Se isso é assim, então, o sistema Cs. se caracteriza pela peculiaridade de que nele
(em contraste com o que acontece nos outros sistemas psíquicos) os processos
excitatórios não deixam atrás de si nenhuma alteração permanente em seus elementos,
mas exaurem-se, por assim dizer, no fenômeno de se tornarem conscientes. Uma
exceção desse tipo à regra geral exige ser explicada por algum fator que se aplique
exclusivamente a esse determinado sistema. Tal fator, ausente nos outros sistemas, bem
poderia ser a situação exposta do sistema Cs., imediatamente próxima, como é, do
mundo externo.
10 – www.lacan.dk3.com
Imaginemos um organismo vivo em sua forma mais simplificada possível, como
uma vesícula indiferenciada de uma substância que é suscetível de estimulação. Então, a
superfície voltada para o mundo externo, pela sua própria situação, se diferenciará e
servirá de órgão para o recebimento de estímulos. Na verdade, a embriologia, em sua
capacidade de recapituladora da história desenvolvimental, mostra-nos realmente que o
sistema nervoso central se origina do ectoderma; a matéria cinzenta do córtex permanece
um derivado da camada superficial primitiva do organismo e pode ter herdado algumas de
suas propriedades essenciais. Seria então fácil supor que, como resultado do impacto
incessante de estímulos externos sobre a superfície da vesícula, sua substância, até uma
certa profundidade, pode ter sido permanentemente modificada, de maneira que os
processos excitatórios nela seguem um curso diferente do seguido nas camadas mais
profundas. Formar-se-ia então uma crosta que acabaria por ficar tão inteiramente
‘calcinada’ pela estimulação, que apresentaria as condições mais favoráveis possíveis
para a recepção de estímulos e se tornaria incapaz de qualquer outra modificação. Em
termos do sistema Cs. isso significa que seus elementos não poderiam mais experimentar
novas modificações permanentes pela passagem da excitação, porque já teriam sido
modificados, a esse respeito, até o ponto mais amplo possível; agora, contudo, se teriam
tornado capazes de dar origem à consciência. É possível formar várias idéias, que não
podem, de momento, ser verificadas, quanto à natureza dessa modificação da substância
e do processo excitatório. Pode-se supor que, ao passar de determinado elemento para
outro, a excitação tem de vencer uma resistência e que é a diminuição da resistência
assim alcançada que deixa um traço permanente da excitação, isto é, uma facilitação. No
sistema Cs., então, uma resistência dessa espécie à passagem de determinado elemento
não mais existirá. Esse quadro pode ser relacionado com a distinção efetuada por Breuer
entre energia catéxica quiescente (ou vinculada) e móvel nos elementos dos sistemas
psíquicos; os elementos do sistema Cs. não conduziriam energia vinculada, mas apenas
energia capaz de descarga livre. Parece melhor, contudo, expressarmo-nos tão
cautelosamente quanto possível sobre esses pontos. Não obstante, essa especulação
permitiu-nos colocar a origem da consciência num certo tipo de vinculação com a situação
do sistema Cs. e com as peculiaridades que devem ser atribuídas aos processos
excitatórios que neles se realizam.
Contudo, temos mais a dizer sobre a vesícula viva, com sua camada cortical
receptiva. Esse pequeno fragmento de substância viva acha-se suspenso no meio de um
mundo externo carregado com as mais poderosas energias, e seria morto pela
estimulação delas emanadas, se não dispusesse de um escudo protetor contra os
estímulos. Ele adquire esse escudo da seguinte maneira: sua superfície mais externa
deixa de ter a estrutura apropriada à matéria viva, torna-se até certo ponto inorgânica e,
daí por diante, funciona como um envoltório ou membrana especial, resistente aos
estímulos. Em conseqüência disso, as energias do mundo externo só podem passar para
as camadas subjacentes seguintes, que permaneceram vivas, com um fragmento de sua
intensidade original, e essas camadas podem dedicar-se, por trás do escudo protetor, à
recepção das quantidades de estímulo que este deixou passar. Através de sua morte a
camada exterior salvou todas as camadas mais profundas de um destino semelhante, a
menos que os estímulos que a atinjam sejam tão fortes que atravessem o escudo
protetor. A proteção contra os estímulos é, para os organismos vivos, uma função quase
mais importante do que a recepção deles. O escudo protetor é suprido com seu próprio
estoque de energia e deve, acima de tudo, esforçar-se por preservar os modos especiais
de transformação de energia que nele operam, contra os efeitos ameaçadores das
enormes energias em ação no mundo externo, efeitos que tendem para o nivelamento
deles e, assim, para a destruição. O principal intuito da recepção de estímulos é descobrir
a direção e a natureza dos estímulos externos; para isso, é suficiente apanhar pequenos
espécimes do mundo externo, para classificá-lo em pequenas quantidades. Nos
11 – www.lacan.dk3.com
organismos altamente desenvolvidos, a camada cortical receptiva da antiga vesícula há
muito tempo já se retirou para as profundezas do corpo, embora partes dela tenham sido
deixadas sobre a superfície, imediatamente abaixo do escudo geral contra os estímulos.
Essas partes são os órgãos dos sentidos, que consistem essencialmente em aparelhos
para a recepção de certos efeitos específicos de estimulação, mas que também incluem
disposições especiais para maior proteção contra quantidades excessivas de estimulação
e para a exclusão de tipos inapropriados de estímulos. É característico deles tratarem
apenas com quantidades muito pequenas de estimulação externa e apenas apanharem
amostras do mundo externo. Podem ser talvez comparados a tentáculos que estão
sempre efetuando avanços experimentais no sentido do mundo externo, e então
retirando-se dele.
Nesse ponto, aventurar-me-ei a aflorar por um momento um assunto que mereceria
tratamento mais exaustivo. Em conseqüência de certas descobertas psicanalíticas,
encontramo-nos hoje em posição de empenhar-nos num estudo do teorema kantiano
segundo o qual tempo e espaço são ‘formas necessárias de pensamento’. Aprendemos
que os processos mentais inconscientes são, em si mesmos, ‘intemporais’. Isso significa,
em primeiro lugar, que não são ordenados temporalmente, que o tempo de modo algum
os altera e que a idéia de tempo não lhes pode ser aplicada. Trata-se de características
negativas que só podem ser claramente entendidas se se fizer uma comparação com os
processos mentais conscientes. Por outro lado, nossa idéia abstrata de tempo parece ser
integralmente derivada do método de funcionamento do sistema Pcpt.-Cs. e corresponder
a uma percepção de sua própria parte nesse método de funcionamento, o qual pode
talvez constituir uma outra maneira de fornecer um escudo contra os estímulos. Sei que
essas observações devem soar muito obscuras, mas tenho de limitar-me a essas
sugestões.
Indicamos como a vesícula viva está provida de um escudo contra os estímulos
provenientes do mundo externo e mostramos anteriormente que a camada cortical
seguinte a esse escudo deve ser diferenciada como um órgão para a recepção de
estímulos do exterior. Esse córtex sensitivo, contudo, que posteriormente deve tornar-se o
sistema Cs., também recebe excitações desde o interior. A situação do sistema, entre o
exterior e o interior, e a diferença entre as condições que regem a recepção de excitações
nos dois casos, têm um efeito decisivo sobre o funcionamento do sistema e de todo o
aparelho mental. No sentido do exterior, acha-se resguardado contra os estímulos, e as
quantidades de excitação que sobre ele incidem possuem apenas efeito reduzido. No
sentido do interior, não pode haver esse escudo; as excitações das camadas mais
profundas estendem-se para o sistema diretamente e em quantidade não reduzida, até
onde algumas de suas características dão origem a sentimentos da série prazerdesprazer. As excitações que provêm de dentro, entretanto, em sua intensidade e em
outros aspectos qualitativos — em sua amplitude, talvez —, são mais comensuradas com
o método de funcionamento do sistema do que os estímulos que afluem desde o mundo
externo. Esse estado de coisas produz dois resultados definidos. Primeiramente, os
sentimentos de prazer e desprazer (que constituem um índice do que está acontecendo
no interior do aparelho) predominam sobre todos os estímulos externos. Em segundo
lugar, é adotada uma maneira específica de lidar com quaisquer excitações internas que
produzam um aumento demasiado grande de desprazer; há uma tendência a tratá-las
como se atuassem, não de dentro, mas de fora, de maneira que seja possível colocar o
escudo contra estímulos em operação, como meio de defesa contra elas. É essa a origem
da projeção, destinada a desempenhar um papel tão grande na causação dos processos
patológicos.
Tenho a impressão de que essas últimas considerações nos levaram a uma melhor
compreensão da dominância do princípio de prazer, mas ainda não se lançou luz alguma
sobre os casos que contradizem essa dominância. Assim, avancemos um passo.
12 – www.lacan.dk3.com
Descrevemos como ‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora que sejam
suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito
de trauma implica necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa
barreira sob outros aspectos eficazes contra os estímulos. Um acontecimento como um
trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no
funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas
defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é momentaneamente posto
fora de ação. Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado
com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro problema surge, o problema
de dominar as quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculá-las no sentido
psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar.
O desprazer específico do sofrimento físico provavelmente resulta de que o escudo
protetor tenha sido atravessado numa área limitada. Dá-se então um fluxo contínuo de
excitações desde a parte da periferia relacionada até o aparelho central da mente, tal
como normalmente surgiria apenas desde o interior do aparelho. E como esperamos que
a mente reaja a essa invasão? A energia catéxica é convocada de todos os lados para
fornecer catexias suficientemente altas de energia nos arredores da ruptura. Uma
‘anticatexia’ em grande escala é estabelecida, em cujo benefício todos os outros sistemas
psíquicos são empobrecidos, de maneira que as funções psíquicas remanescentes são
grandemente paralisadas ou reduzidas. Devemos empenhar-nos em extrair uma lição de
exemplos como esse e utilizá-los como base para nossas especulações
metapsicológicas. Do presente caso, então, inferimos que um sistema que é altamente
catexizado é capaz de receber um influxo adicional de energia nova e de convertê-la em
catexia quiescente, isso é, de vinculá-la psiquicamente. Quanto mais alta a própria catexia
quiescente do sistema, maior parece ser a sua força vinculadora; inversamente,
entretanto, quanto mais baixa a catexia, menos capacidade terá para receber o influxo de
energia e mais violentas serão as conseqüências de tal ruptura no escudo protetor contra
estímulos. A essa concepção não se pode corretamente objetar que o aumento de catexia
em redor da ruptura pode ser mais simplesmente explicado como sendo o resultado direto
das massas afluentes de excitação. Se assim fosse, o aparelho mental meramente
receberia um aumento em suas catexias de energia, e o caráter paralisante do sofrimento
e o empobrecimento de todos os outros sistemas permaneceriam inexplicados. Tampouco
os fenômenos muito violentos de descarga a que o sofrimento dá origem influenciam
nossa explicação, porque ocorrem de maneira reflexa, ou seja, decorrem sem a
intervenção do aparelho mental. A indefinição de todas as nossas discussões sobre o que
descrevemos como metapsicologia, é naturalmente devida ao fato de nada sabermos
sobre a natureza do processo excitatório que se efetua nos elementos dos sistemas
psíquicos, e ao fato de não nos sentirmos justificados em estruturar qualquer hipótese
sobre o assunto. Por conseguinte, ficamos operando todo o tempo com um grande fator
desconhecido, que somos obrigados a transportar para cada nova fórmula. Poder-se-ia
razoavelmente supor que esse processo excitatório possa ser executado com energias
que variam quantitativamente; pode também parecer provável que ele tenha mais do que
uma só qualidade (da natureza da amplitude, por exemplo). Como novo fator, tomamos
em consideração a hipótese de Breuer de que as cargas de energia ocorrem sob duas
formas [ver em [1] e [2] ], de maneira que temos de distinguir entre dois tipos de catexia
dos sistemas psíquicos ou seus elementos: uma catexia que flui livremente e pressiona
no sentido da descarga e uma catexia quiescente. Podemos talvez suspeitar de que a
vinculação da energia que flui para dentro do aparelho mental consiste em sua mudança
de um estado de fluxo livre para um estado quiescente.
Podemos, acredito, atrever-nos experimentalmente a considerar a neurose
traumática comum como conseqüência de uma grande ruptura que foi causada no escudo
protetor contra os estímulos. Isso pareceria restabelecer a antiga e ingênua teoria do
13 – www.lacan.dk3.com
choque, em aparente contraste com a teoria posterior e psicologicamente mais ambiciosa
que atribuiu importância etiológica não aos efeitos da violência mecânica, mas ao susto e
à ameaça à vida. Esses pontos de vista opostos não são, entretanto, irreconciliáveis, nem
tampouco a concepção psicanalítica das neuroses traumáticas é idêntica à teoria do
choque em sua forma mais grosseira. Esta última considera a essência do choque como
sendo o dano direto à estrutura molecular ou mesmo à estrutura histológica dos
elementos do sistema nervoso, ao passo que aquilo que nós procuramos compreender
são os efeitos produzidos sobre o órgão da mente pela ruptura do escudo contra
estímulos e pelos problemas que se seguem em sua esteira. E atribuímos ainda
importância ao elemento de susto. Ele é causado pela falta de qualquer preparação para
a ansiedade, inclusive a falta de hipercatexia dos sistemas que seriam os primeiros a
receber o estímulo. Devido à sua baixa catexia, esses sistemas não se encontram em boa
posição para vincular as quantidades afluentes de excitação, e as conseqüências da
ruptura no escudo defensivo decorrem mais facilmente ainda. Ver-se-á, então, que a
preparação para a ansiedade e a hipercatexia dos sistemas receptivos constitui a última
linha de defesa do escudo contra estímulos. No caso de bom número de traumas, a
diferença entre sistemas que estão despreparados e sistemas que se acham bem
preparados através da hipercatexia, pode constituir fator decisivo na determinação do
resultado, embora, onde a intensidade do trauma exceda certo limite, esse fator
indubitavelmente deixe de ter importância. A realização de desejo é, como sabemos,
ocasionada de maneira alucinatória pelos sonhos e sob a dominância do princípio de
prazer tornou-se função deles. Mas não é a serviço desse princípio que os sonhos dos
pacientes que sofrem de neuroses traumáticas nos conduzem de volta, com tal
regularidade, à situação em que o trauma ocorreu. Podemos antes supor que aqui os
sonhos estão ajudando a executar outra tarefa, a qual deve ser realizada antes que a
dominância do princípio de prazer possa mesmo começar. Esses sonhos esforçam-se por
dominar retrospectivamente o estímulo, desenvolvendo a ansiedade cuja omissão
constituiu a causa da neurose traumática. Concedem-nos assim a visão de uma função
do aparelho mental, visão que, embora não contradiga o princípio de prazer, é sem
embargo independente dele, parecendo ser mais primitiva do que o intuito de obter prazer
e evitar desprazer.
Esse, então, pareceria ser o lugar para, pela primeira vez, admitir uma exceção à
proposição de que os sonhos são realizações de desejos. Os sonhos de ansiedade, como
repetida e pormenorizadamente demonstrei, não oferecem essa exceção, nem tampouco
o fazem os ‘sonhos de castigo’, porque eles simplesmente substituem a realização de
desejo proibida pela punição adequada a ela, isto é, realizam o desejo do sentimento de
culpa que é a reação ao impulso repudiado. É, porém, impossível classificar como
realizações de desejos os sonhos que estivemos debatendo e que ocorrem nas neuroses
traumáticas, ou os sonhos tidos durante as psicanálises, os quais trazem à lembrança os
traumas psíquicos da infância. Eles surgem antes em obediência à compulsão à
repetição, embora seja verdade que, na análise, essa compulsão é apoiada pelo desejo
(incentivado pela ‘sugestão’) de conjurar o que foi esquecido e reprimido. Dessa maneira,
pareceria que a função dos sonhos, que consiste em afastar quaisquer motivos que
possam interromper o sono, através da realização dos desejos dos impulsos
perturbadores, não é a sua função original. Não lhes seria possível desempenhar essa
função até que a totalidade da vida mental houvesse aceito a dominância do princípio de
prazer. Se existe um ‘além do princípio de prazer’, é coerente conceber que houve
também uma época anterior em que o intuito dos sonhos foi a realização de desejos. Isso
não implicaria numa negação de sua função posterior, mas, uma vez rompida a regra
geral, surge uma outra questão. Não podem os sonhos que, com vistas à sujeição
psíquica de impressões traumáticas, obedecem à compulsão à repetição, não podem
14 – www.lacan.dk3.com
esses sonhos, perguntamos, ocorrer fora da análise também? E a resposta só pode ser
uma afirmativa decidida.
Argumentei em outra parte que as ‘neuroses de guerra’ (até onde essa expressão
implica algo mais do que uma referência às circunstâncias do desencadeamento da
doença) podem muito bem ser neuroses traumáticas que foram facilitadas por um conflito
no ego. O fato a que me referi em [1], o de que um grande dano físico causado
simultaneamente pelo trauma diminui as possibilidades de que uma neurose se
desenvolva, torna-se inteligível se tivermos em mente dois fatos que foram enfatizados
pela pesquisa psicanalítica: primeiramente, que a agitação mecânica deve ser
reconhecida como uma das fontes de excitação sexual e, em segundo lugar, que
moléstias penosas e febris exercem um poderoso efeito, enquanto perduram, sobre a
distribuição da libido. Assim, por um lado, a violência mecânica do trauma liberaria uma
quantidade de excitação sexual que, devido à falta de preparação para a ansiedade, teria
um efeito traumático, mas, por outro lado, o dano físico simultâneo, exigindo uma
hipercatexia narcisista do órgão prejudicado, sujeitaria o excesso de excitação. É também
bem conhecido, embora a teoria da libido ainda não tenha feito uso suficiente do fato, que
distúrbios graves na distribuição da libido, tal como a melancolia, são temporariamente
interrompidos por uma moléstia orgânica intercorrente, e, na verdade, que mesmo uma
condição plenamente desenvolvida de demência precoce é capaz de remissão temporária
nessas mesmas circunstâncias.
V
O fato de a camada cortical que recebe os estímulos achar-se sem qualquer
escudo protetor contra as excitações provindas do interior deve ter como resultado que
essas últimas transmissões de estímulos possuam uma preponderância em importância
econômica e amiúde ocasionem distúrbios econômicos comparáveis às neuroses
traumáticas. As mais abundantes fontes dessa excitação interna são aquilo que é descrito
como os ‘instintos’ do organismo, os representantes de todas as forças que se originam
no interior do corpo e são transmitidas ao aparelho mental, desde logo o elemento mais
importante e obscuro da pesquisa psicológica.
Não se pensará que é precipitado demais supor que os impulsos que surgem dos
instintos não pertencem ao tipo dos processos nervosos vinculados, mas sim ao de
processos livremente móveis, que pressionam no sentido da descarga. A maior parte do
que sabemos desses processos deriva de nosso estudo sobre a elaboração onírica. Nela
descobrimos que os processos dos sistemas inconscientes eram fundamentalmente
diferentes dos existentes nos sistemas pré-conscientes (ou conscientes). No inconsciente,
as catexias podem com facilidade ser completamente transferidas, deslocadas e
condensadas. Tal tratamento, no entanto, produziria apenas resultados não-válidos se
fosse aplicado ao material pré-consciente, e isso explica as familiares peculiaridades
apresentadas pelos sonhos manifestos depois que os resíduos pré-conscientes do dia
anterior foram elaborados de acordo com as leis que operam no inconsciente. Descrevi o
tipo de processo encontrado no inconsciente como sendo o processo psíquico ‘primário’,
em contraposição com o processo ‘secundário’, que é o que impera em nossa vida de
vigília normal. Visto que todos os impulsos instintuais têm os sistemas inconscientes
como seu ponto de impacto, quase não constitui novidade dizer que eles obedecem ao
processo primário. É fácil ainda identificar o processo psíquico primário com a catexia
livremente móvel de Breuer, e o processo secundário, com alterações em sua catexia
vinculada ou tônica. Se assim é, seria tarefa dos estratos mais elevados do aparelho
mental sujeitar a excitação instintual que atinge o processo primário. Um fracasso em
efetuar essa sujeição provocaria um distúrbio análogo a uma neurose traumática, e
somente após haver sido efetuada é que seria possível à dominância do princípio de
15 – www.lacan.dk3.com
prazer (e de sua modificação, o princípio de realidade) avançar sem obstáculo. Até então,
a outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou sujeitar as excitações, teria
precedência, não, na verdade, em oposição ao princípio de prazer, mas
independentemente dele e, até certo ponto, desprezando-o.
As manifestações de uma compulsão à repetição (que descrevemos como
ocorrendo nas primeiras atividades da vida mental infantil, bem como entre os eventos do
tratamento psicanalítico) apresentam em alto grau um caráter instintual e, quando atuam
em oposição ao princípio de prazer, dão a aparência de alguma força ‘demoníaca’ em
ação. No caso da brincadeira, parece que percebemos que as crianças repetem
experiências desagradáveis pela razão adicional de poderem dominar uma impressão
poderosa muito mais completamente de modo ativo do que poderiam fazê-lo
simplesmente experimentando-a de modo passivo. Cada nova repetição parece fortalecer
a supremacia que buscam. Tampouco podem as crianças ter as suas experiências
agradáveis repetidas com freqüência suficiente, e elas são inexoráveis em sua insistência
de que a repetição seja idêntica. Posteriormente, esse traço de caráter desaparece. Se
um chiste é escutado pela segunda vez, quase não produz efeito; uma produção teatral
jamais cria, da segunda vez, uma impressão tão grande como da primeira; na verdade, é
quase impossível persuadir um adulto que gostou muito de ler um livro, a relê-lo
imediatamente. A novidade é sempre a condição do deleite, mas as crianças nunca se
cansam de pedir a um adulto que repita um jogo que lhes ensinou ou que com elas jogou,
até ele ficar exausto demais para prosseguir. E, se contarmos a uma criança uma linda
história, ela insistirá em ouvi-la repetidas vezes, de preferência a escutar uma nova, e
sem remorsos estipulará que a repetição seja idêntica, corrigindo quaisquer alterações de
que o narrador tenha a culpa, embora, na realidade, estas possam ter sido efetuadas na
esperança de obter uma nova aprovação. Nada disso contradiz o princípio de prazer: a
repetição, a reexperiência de algo idêntico, é claramente, em si mesma, uma fonte de
prazer. No caso de uma pessoa em análise, pelo contrário, a compulsão à repetição na
transferência dos acontecimentos da infância evidentemente despreza o princípio de
prazer sob todos os modos. O paciente comporta-se de modo puramente infantil e assim
nos mostra que os traços de memória reprimidos de suas experiências primevas não se
encontram presentes nele em estado de sujeição, mostrando-se elas, na verdade, em
certo sentido, incapazes de obedecer ao processo secundário. Além disso, é ao fato de
não se acharem sujeitas, que devem sua capacidade de formar, em conjunção com os
resíduos do dia anterior, uma fantasia de desejo que surge num sonho. A mesma
compulsão à repetição freqüentemente se nos defronta como um obstáculo ao
tratamento, quando, ao fim da análise, tentamos induzir o paciente a desligar-se
completamente do médico. Pode-se supor também que, quando pessoas
desfamiliarizadas com a análise sentem um medo obscuro, um temor de despertar algo
que, segundo pensam, é melhor deixar adormecido, aquilo de que no fundo têm medo, é
do surgimento dessa compulsão com sua sugestão de posse por algum poder
‘demoníaco’.
Mas como o predicado de ser ‘instintual’ se relaciona com a compulsão à
repetição? Nesse ponto, não podemos fugir à suspeita de que deparamos com a trilha de
um atributo universal dos instintos e talvez da vida orgânica em geral que até o presente
não foi claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente acentuado. Parece,
então que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado
anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão
de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou,
para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica.
Essa visão dos instintos nos impressiona como estranha porque nos acostumamos
a ver neles um fator impelidor no sentido da mudança e do desenvolvimento, ao passo
que agora nos pedem para reconhecer neles o exato oposto, isto é, uma expressão da
16 – www.lacan.dk3.com
natureza conservadora da substância viva. Por outro lado, logo relembraremos exemplos
tirados a vida animal que parecem confirmar a opinião de que os instintos são
historicamente determinados. Certos peixes, por exemplo, empreendem laboriosas
migrações na época da desova, a fim de depositar sua progênie em águas específicas,
muito afastadas de suas regiões costumeiras. Na opinião de muitos biólogos, o que fazem
é simplesmente procurar as localidades que suas espécies antigamente habitavam, mas
que, no decorrer do tempo, trocaram por outras. Acredita-se que a mesma explicação se
aplique aos vôos migratórios das aves de arribação, mas somos rapidamente liberados da
necessidade de buscar outros exemplos pela reflexão de que as mais impressivas provas
de que há uma compulsão orgânica a repetir estão nos fenômenos da hereditariedade e
nos fatos da embriologia. Vemos como o germe de um animal vivo é obrigado, no curso
de sua evolução, a recapitular (mesmo se de maneira transitória e abreviada) as
estruturas de todas as formas das quais se originou, em vez de avançar rapidamente,
pela via mais curta, até sua forma final. Esse comportamento é, apenas em grau muito
tênue, atribuível a causas mecânicas, e, por conseguinte, a explicação histórica não pode
ser desprezada. Assim também o poder de regenerar um órgão perdido, fazendo crescer
de novo um outro exatamente semelhante, estende-se bem acima do reino animal.
Apresentar-se-nos-á a plausível objeção de que bem pode ser que, além dos
instintos de conservação que impelem à repetição, poderão existir outros que
impulsionam no sentido do progresso e da produção de nova formas. Esse argumento
decerto não deve ser desprezado e será levado em conta numa etapa posterior. No
momento, porém, é tentador perseguir até sua conclusão lógica a hipótese de que todos
os instintos tendem à restauração de um estado anterior de coisas. O resultado talvez dê
a impressão de misticismo ou de falsa profundidade, mas podemos sentir-nos inocentes
de ter quaisquer desses propósitos em vista. Buscamos apenas os sóbrios resultados da
pesquisa ou da reflexão nela baseada, e não temos desejo algum de encontrar neles
qualquer outra qualidade que não seja a certeza.
Suponhamos, então, que todos os instintos orgânicos são conservadores, que são
adquiridos historicamente, e que tendem à restauração de um estado anterior de coisas.
Disso decorre que os fenômenos do desenvolvimento orgânico devem ser atribuídos a
influências perturbadoras e desviadoras externas. A entidade viva elementar, desde seu
início, não teria desejo de mudar; se as condições permanecessem as mesmas, não faria
mais do que constantemente repetir o mesmo curso de vida. Em última instância, o que
deixou sua marca sobre o desenvolvimento dos organismos deve ter sido a história da
Terra em que vivemos e de sua relação com o Sol. Toda modificação, assim imposta ao
curso da vida do organismo, é aceita pelos instintos orgânicos conservadores e
armazenada para ulterior repetição. Esses instintos, portanto, estão fadados a dar uma
aparência enganadora de serem forças tendentes à mudança e ao progresso, ao passo
que, de fato, estão apenas buscando alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto
velhos quanto novos. Ademais, é possível especificar esse objetivo final de todo o esforço
orgânico. Estaria em contradição à natureza conservadora dos instintos que o objetivo da
vida fosse um estado de coisas que jamais houvesse sido atingido. Pelo contrário, ele
deve ser um estado de coisas antigo, um estado inicial de que a entidade viva, numa ou
noutra ocasião, se afastou e ao qual se esforça por retornar através dos tortuosos
caminhos ao longo dos quais seu desenvolvimento conduz. Se tomarmos como verdade
que não conhece exceção o fato de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se
mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é
a morte‘, e, voltando o olhar para trás, que ‘as coisas inanimadas existiram antes das
vivas‘.
Os atributos da vida foram, em determinada ocasião, evocados na matéria
inanimada pela ação de uma força de cuja natureza não podemos formar concepção.
Pode ter sido um processo de tipo semelhante ao que posteriormente provocou o
17 – www.lacan.dk3.com
desenvolvimento da consciência num estrato particular da matéria viva. A tensão que
então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada se esforçou por neutralizar-se
e, dessa maneira, surgiu o primeiro instinto: o instinto a retornar ao estado inanimado.
Naquela época, era ainda coisa fácil a uma substância viva morrer; o curso de sua vida
era provavelmente breve determinando-se sua direção pela estrutura química da jovem
vida. Assim, por longo tempo talvez, a substância viva esteve sendo constantemente
criada de novo e morrendo facilmente, até que influências externas decisivas se alteraram
de maneira a obrigar a substância ainda sobrevivente a divergir mais amplamente de seu
original curso de vida e a efetuar détours mais complicados antes de atingir seu objetivo
de morte. Esses tortuosos caminhos para a morte, fielmente seguidos pelos instintos de
conservação, nos apresentariam hoje, portanto, o quadro dos fenômenos da vida. Se
sustentarmos com firmeza a natureza exclusivamente conservadora dos instintos, não
poderemos chegar a nenhuma outra noção quanto à origem e ao objetivo da vida.
As implicações referentes aos grandes grupos de instintos que, segundo
acreditamos, jazem por trás dos fenômenos da vida nos organismos, devem parecer não
menos desnorteantes. A hipótese de instintos de autoconservação, tais como os
atribuímos a todos os seres vivos, alteia-se em acentuada oposição à idéia de que a vida
instintual, como um todo, sirva para ocasionar a morte. Vista sob essa luz, a importância
teórica dos instintos de autoconservação, auto-afirmação e domínio diminui grandemente.
Trata-se de instintos componentes cuja função é garantir que o organismo seguirá seu
próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência
inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo. Não temos mais de levar
em conta a enigmática determinação do organismo (tão difícil de encaixar em qualquer
contexto) de manter sua própria existência frente a qualquer obstáculo. O que nos resta é
o fato de que o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo. Assim,
originalmente, esses guardiães da vida eram também os lacaios da morte. Daí surgir a
situação paradoxal de que o organismo vivo luta com toda a sua energia contra fatos
(perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais rapidamente seu objetivo de
vida, por uma espécie de curto-circuito. Tal comportamento, entretanto, é precisamente o
que caracteriza os esforços puramente instintuais, contrastados com os esforços
inteligentes.
Mas detenhamo-nos por um momento e reflitamos. Não pode ser assim. Os
instintos sexuais, a que a teoria das neuroses concede um lugar inteiramente especial,
surgem sob aspecto muito diferente.
A pressão externa que provoca uma ampliação constantemente crescente do
desenvolvimento não se impôs a todos os organismos. Muitos conseguiram permanecer
até os dias de hoje em seu nível humilde. Na verdade, muitas — embora não todas —
dessas criaturas, que devem assemelhar-se às fases primitivas dos animais e vegetais
superiores, ainda hoje acham-se vivas. Da mesma maneira, a totalidade do caminho do
desenvolvimento para a morte natural não é percorrido por todas as entidades
elementares que compõem o complicado corpo de um dos organismos mais elevados.
Algumas delas, as células germinais, provavelmente retêm a estrutura original da matéria
viva e, após certo tempo, com todo o seu complemento de disposições instintuais
herdadas e recentemente adquiridas, separam-se do organismo como um todo. Essas
duas características podem ser exatamente aquilo que as capacita a ter uma existência
independente. Sob condições favoráveis, começam a desenvolver-se, isto é, a repetir o
desempenho a que devem sua existência, e, ao final, mais uma vez uma parte de sua
substância leva sua evolução a um término, ao passo que outra parte reverte novamente,
como um germe residual novo, ao início do processo de desenvolvimento. Essas células
germinais, portanto, trabalham contra a morte da substância viva e têm êxito em
conseguir para ela o que só podemos encarar como uma imortalidade potencial, ainda
que isso possa significar nada mais do que um alongamento da estrada para a morte.
18 – www.lacan.dk3.com
Temos de considerar como significante, no mais elevado grau, o fato de essa função da
célula germinal ser reforçada, ou só tornada possível, se ela fundir-se com outra célula
similar a si mesma e, contudo, diferente dela.
Os instintos que cuidam dos destinos desses organismos elementares que
sobrevivem à totalidade do indivíduo, que lhes fornecem um abrigo seguro enquanto se
acham indefesos contra os estímulos do mundo externo, que ocasionam seu encontro
com outras células germinais etc., constituem o grupo dos instintos sexuais. São
conservadores no mesmo sentido dos outros instintos porque trazem de volta estados
anteriores de substância viva; contudo, são conservadores num grau mais alto, por serem
peculiarmente resistentes às influências externas; e são conservadores ainda em outro
sentido, por preservarem a própria vida por um longo período. São os verdadeiros
instintos de vida. Operam contra o propósito dos outros instintos, que conduzem, em
razão de sua função, à morte, e este fato indica que existe oposição entre eles e os
outros, oposição que foi há muito tempo reconhecida pela teoria das neuroses. É como se
a vida do organismo se movimentasse num ritmo vacilante. Certo grupo de instintos se
precipita como que para atingir o objetivo final da vida tão rapidamente quanto possível,
mas, quando determinada etapa no avanço foi alcançada, o outro grupo atira-se para trás
até um certo ponto, a fim de efetuar nova saída e prolongar assim a jornada. E ainda que
seja certo que a sexualidade e a distinção entre os sexos não existiam quando a vida
começou, permanece a possibilidade de que os instintos que posteriormente vieram a ser
descritos como sexuais, possam ter estado em funcionamento desde o início, e talvez não
seja verdade que foi apenas em época posterior que eles começaram seu trabalho de
oposição às atividades dos ‘instintos do ego’.
Retornemos nós mesmos por um momento e consideremos se existe qualquer
base para essas especulações. Será realmente o caso que, à parte os instintos sexuais,
não existem instintos que não procurem restaurar um estado anterior de coisas? Que não
haja nenhum que vise a um estado de coisas que nunca foi alcançado? Não conheço
exemplo certo do mundo orgânico que contradiga a caracterização que assim propus.
Indiscutivelmente não existe um instinto universal para desenvolvimento superior
observável no mundo animal ou vegetal, ainda que seja inegável que o desenvolvimento
realmente ocorre nessa direção. Mas, por um lado, trata-se amiúde de uma questão de
opinião o fato de declararmos que determinado estágio de desenvolvimento é superior a
outro, e, por outro lado, a biologia nos ensina que o desenvolvimento superior sob certo
aspecto é com bastante freqüência compensado ou sobrepujado pela involução sob outro
aspecto. Além disso, existem muitas formas animais de cujos primeiros estágios podemos
inferir que seu desenvolvimento, pelo contrário, assumiu caráter retrógrado. Tanto o
desenvolvimento superior quanto a involução bem podem ser as conseqüências da
adaptação à pressão de forças externas e, em ambos os casos, o papel desempenhado
pelos instintos pode-se limitar à retenção (na forma de um fonte interna de prazer) de uma
modificação obrigatória.
Pode também ser difícil, para muitos de nós, abandonar a crença de que existe em
ação nos seres humanos um instinto para a perfeição, instinto que os trouxe a seu atual
alto nível de realização intelectual e sublimação ética, e do qual se pode esperar que zele
pelo seu desenvolvimento em super-homens. Não tenho fé, contudo, na existência de tal
instinto interno e não posso perceber por que essa ilusão benévola deva ser conservada.
A evolução atual dos seres humanos não exige, segundo me parece, uma explicação
diferente da dos animais. Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos, parece ser
um impulso incansável no sentido de maior perfeição, pode ser facilmente compreendido
como resultado da repressão instintual em que se baseia tudo o que é mais precioso na
civilização humana. O instinto reprimido nunca deixa de esforçar-se em busca da
satisfação completa, que consistiria na repetição de uma experiência primária de
satisfação. Formações reativas e substitutivas, bem como sublimações, não bastarão
19 – www.lacan.dk3.com
para remover a tensão persistente do instinto reprimido, sendo que a diferença de
quantidade entre o prazer da satisfação que é exigida e a que é realmente conseguida, é
que fornece o fator impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma das
posições alcançadas, mas, nas palavras do poeta, ‘ungebändigt immer vorwärts dringt‘. O
caminho para trás que conduz à satisfação completa acha-se, via de regra, obstruído
pelas resistências que mantêm as repressões, de maneira que não há alternativa senão
avançar na direção em que o crescimento ainda se acha livre, embora sem perspectiva de
levar o processo a uma conclusão ou de ser capaz de atingir o objetivo. Os processos
envolvidos na formação de uma fobia neurótica, que nada mais é do que uma tentativa de
fuga da satisfação de um instinto, apresentam-nos um modelo do modo de origem desse
suposto ‘instinto para a perfeição’, o qual não tem possibilidades de ser atribuído a todos
os seres humanos. Na verdade, as condições dinâmicas para o seu desenvolvimento
estão universalmente presentes, mas apenas em raros casos a situação econômica
parece favorecer a produção do fenômeno.
Acrescentarei apenas uma palavra para sugerir que os esforços de Eros para
combinar substâncias orgânicas em unidades cada vez maiores provavelmente fornecem
um sucedâneo para esse ‘instinto para a perfeição’, cuja existência não podemos admitir.
Os fenômenos que lhe são atribuídos parecem passíveis de explicação por esses
esforços de Eros, tomados em conjunto com os resultados da repressão.
VI
A essência de nossa investigação até agora foi o traçado de uma distinção nítida
entre os ‘instintos do ego’ e os instintos sexuais, e a visão de que os primeiros exercem
pressão no sentido da morte e os últimos no sentido de um prolongamento da vida.
Contudo, essa conclusão está fadada a ser insatisfatória sob muitos aspectos, mesmo
para nós. Ademais, na realidade, é apenas quanto ao primeiro grupo de instintos que
podemos afirmar que possuem caráter conservador, ou melhor, retrógrado,
correspondente a uma compulsão à repetição, porque, em nossa hipótese, os instintos do
ego se originam da animação da matéria inanimada e procuram restaurar o estado
inanimado, ao passo que, quanto aos instintos sexuais, embora seja verdade que
reproduzem estados primitivos do organismo, aquilo a que claramente visam, por todos os
meios possíveis, é à coalescência de duas células germinais que são diferenciadas de
maneira particular. Se essa união não é efetuada, a célula germinal morre juntamente
com todos os outros elementos do organismo multicelular. É apenas com essa condição
que a função sexual pode prolongar a vida da célula e emprestar-lhe uma aparência de
imortalidade. Mas, qual é o acontecimento importante no desenvolvimento da substância
viva, que está sendo repetido na reprodução sexual ou em sua antecessora, a conjugação
de dois protozoários? Não podemos dizer, e, conseqüentemente, deveríamos sentir-nos
aliviados se toda a estrutura de nossa argumentação se mostrou equivocada. A oposição
entre os instintos do ego ou instintos de morte e os instintos sexuais ou instintos de vida
deixaria então de sustentar-se e a compulsão à repetição não mais possuiria a
importância que lhe atribuímos.
Voltemo-nos, então, para uma das suposições já feitas por nós, na expectativa de
podermos dar-lhe uma negação categórica. Tiramos conclusões de longo alcance da
hipótese de que toda substância viva está fadada a morrer por causas internas. Fizemos
essa suposição assim descuidadamente porque ela não nos parece ser uma suposição.
Estamos acostumados a pensar que esse é o fato, e somos fortalecidos em nossas
reflexões pelos escritos de nossos poetas. Talvez tenhamos adotado a crença porque
existe nela um certo consolo. Se temos de morrer, e primeiro perder para a morte aqueles
que nos são mais caros, é mais fácil submeter-se a uma lei impiedosa da natureza, à
20 – www.lacan.dk3.com
sublime ‘Αταγκη‘ [Necessidade], do que a um acaso de que talvez pudéssemos ter fugido.
Pode ser, contudo, que essa crença na necessidade interna de morrer seja apenas outra
daquelas ilusões que criamos ‘um die Schwere des Daseins zu ertragen‘. Decerto não se
trata de uma licença primeva. A noção de ‘morte natural’ é inteiramente estranha às raças
primitivas; atribuem toda morte que ocorre entre elas à influência de um inimigo ou de um
espírito mau. Devemos, portanto, voltar-nos para a biologia, a fim de testar a validade da
crença.
Se assim fizermos, ficaremos estupefatos em descobrir quão pouco acordo existe
entre os biólogos sobre a questão da morte natural e, na realidade, que todo o conceito
de morte se dissolve em suas mãos. O fato de haver uma duração média e fixa de vida,
pelo menos entre os animais superiores, argúi naturalmente em favor da existência de
algo como a morte por causas naturais. Mas essa impressão é contraditada quando
consideramos que certos grandes animais e determinados crescimentos arbóreos
gigantescos atingem idade muito avançada, idade que atualmente não pode ser
computada. De acordo com a grande concepção de Wilhelm Fliess [1906], todos os
fenômenos vitais apresentados pelos organismos — e também, indubitavelmente, sua
morte — estão vinculados à conclusão de períodos fixos, os quais expressam a
dependência de dois tipos de substância viva (um masculino e outro feminino) quanto ao
ano solar. Quando vemos, contudo, quão fácil e extensamente a influência de forças
externas pode modificar a data do aparecimento dos fenômenos vitais (especialmente no
mundo vegetal), precipitando-os ou retendo-os, temos de levantar dúvidas quanto à
rigidez das fórmulas de Fliess ou, pelo menos, quanto às leis por ele estabelecidas
constituírem os únicos fatores determinantes.
De nosso ponto de vista, o maior interesse prende-se ao tratamento dado ao tema
da duração da vida e da morte dos organismos nos escritos de Weismann (1882, 1884,
1892 etc.). Foi ele que introduziu a divisão da substância viva em partes mortais e
imortais. A parte mortal é o corpo no sentido mais estrito, o ‘soma’, que, somente ele, se
acha sujeito à morte natural. As células germinais, por outro lado, são potencialmente
imortais, na medida em que são capazes, em determinadas condições, de desenvolver-se
no indivíduo novo ou, em outras palavras, de cercar-se de um novo soma (Weismann,
1884).
O que nos impressiona nisso é a inesperada analogia com nosso próprio ponto de
vista, ao qual chegamos ao longo de caminho tão diferente. Weismann, encarando
morfologicamente a substância viva, enxerga nela uma parte que está destinada a morrer
— o soma, o corpo separado da substância relacionada com o sexo e a herança —, e
uma parte imortal — o plasma germinal, que se relaciona com a sobrevivência da
espécie, com a reprodução. Nós, por outro lado, lidando não com a substância viva, mas
com as forças que nela operam, fomos levados a distinguir duas espécies de instintos:
aqueles que procuram conduzir o que é vivo à morte, e os outros, os instintos sexuais,
que estão perpetuamente tentando e conseguindo uma renovação da vida, o que soa
como um corolário dinâmico à teoria morfológica de Weismann.
Contudo, a aparência de uma correspondência significante se dissipa tão logo
descobrimos as concepções de Weismann sobre o problema da morte, porque ele só
relaciona a distinção entre o soma mortal e o plasma germinal imortal aos organismos
multicelulares; nos organismos unicelulares, o indivíduo e a célula reprodutora são ainda
um só e o mesmo (Weismann, 1882, 38). Desse modo, considera que os organismos
unicelulares são potencialmente imortais e que a morte só faz seu aparecimento com os
metazoários multicelulares. É verdade que essa morte dos organismos mais elevados é
natural, uma morte provocada por causas internas, mas não se funda em nenhuma
característica primitiva da substância viva (Weismann, 1884, 84) e não pode ser encarada
como uma necessidade absoluta, com base na própria natureza da vida (Weismann,
1882, 33). A morte é antes uma questão de conveniência, uma manifestação de
21 – www.lacan.dk3.com
adaptação às condições externas da vida, porque, uma vez as células do corpo tenham
sido divididas em soma e plasma germinal, uma duração ilimitada da vida individual se
tornaria um luxo inteiramente sem sentido. Feita essa diferenciação nos organismos
multicelulares, a morte torna-se possível e conveniente. Desde então, o soma dos
organismos superiores morreu a períodos fixos por razões internas, ao passo que os
protistas permaneceram imortais. Não é o caso, por outro lado, de a reprodução ter sido
introduzida ao mesmo tempo que a morte. Pelo contrário, trata-se de uma característica
primitiva da matéria viva, como o crescimento (do qual se originou), e a vida foi contínua
desde seu início sobre a Terra (Weismann, 1884, 84 e seg.).
Ver-se-á em seguida que concordar dessa maneira que os organismos superiores
tenham uma morte natural é de muito pouco auxílio para nós, porque, se a morte é uma
aquisição tardia dos organismos, então não há o que falar quanto a ter havido instintos de
morte desde o começo da vida sobre a Terra. Os organismos multicelulares podem
morrer por razões internas, devido a uma diferenciação deficiente ou a imperfeições de
seu metabolismo, mas a questão não tem interesse do ponto de vista de nosso problema.
Uma explicação da origem da morte como esta encontra-se, ademais, em muito menor
variância com nossos modos de pensamentos habituais do que a estranha pressuposição
dos ‘instintos de morte’.
O debate que se seguiu às sugestões de Weismann não conduziu, até onde posso
perceber, a nenhum resultado conclusivo em qualquer direção. Alguns escritores
retornaram às opiniões de Goethe (1883), que considerava a morte o resultado direto da
reprodução. Hartmann (1906, 29) não considera a aparência de um ‘cadáver’ — uma
parte morta da substância viva — como critério de morte, mas define esta como sendo ‘o
término do desenvolvimento individual’. Nesse sentido, também os protozoários são
mortais; em seu caso, a morte também coincide com a reprodução, mas é, até certo
ponto, obscurecida por ela, desde que toda a substância do animal pai pode ser
diretamente transmitida à jovem progênie.
Pouco depois, a pesquisa voltou-se para a verificação experimental, em
organismos unicelulares, da alegada imortalidade da substância viva. Um biólogo
americano, Woodruff, fazendo experiências com um infusório ciliado, o ‘animálculo
deslizador’ (slipper-animalcule), que se reproduz por fissão em dois outros indivíduos,
persistiu até a 3.029ª geração (ocasião em que interrompeu a experiência), a cada vez
isolando um dos produtos parciais e colocando-o em água nova. Esse remoto
descendente do primeiro animálculo era tão vivaz quanto seu antepassado e não
apresentava sinais de envelhecimento ou degeneração. Assim, até onde cifras desse tipo
podem provar algo, a imortalidade dos protozoários pareceu ser experimentalmente
demonstrável.
Outros experimentadores chegaram a resultados diferentes. Maupas, Calkins e
outros, em contraste com Woodruff, descobriram que, após certo número de divisões,
aqueles infusórios se tornavam mais débeis, diminuíam de tamanho, sofriam a perda de
alguma parte de sua organização e acabavam por morrer, a menos que certas medidas
recuperadoras lhes fossem aplicadas. Se assim for, os protozoários pareceriam morrer
após uma fase de senescência, exatamente como aos animais superiores, contraditando
assim completamente a assertiva weismanniana de que a morte é uma aquisição tardia
dos organismos vivos.
Do conjunto dessas experiências surgem dois fatos que parecem fornecer-nos uma
base firme.
Primeiro: se dois dos animálculos, no momento antes de apresentarem sinais de
senescência, puderem coalescer um com o outro, isto é, ‘conjugarem-se’ (pouco após o
que, mais uma vez se separam), salvam-se de ficarem velhos e tornam-se
‘rejuvenescidos’. A conjugação é indubitavelmente a antecessora da reprodução sexual
nas criaturas mais elevadas; ainda se acha, por enquanto, desvinculada da propagação e
22 – www.lacan.dk3.com
limita-se à mistura das substâncias dos dois indivíduos. (A ‘anfimixia’ de Weismann.) Os
efeitos recuperadores da conjugação podem, contudo, ser substituídos por certos agentes
estimulantes, através de alterações na composição do fluido que proporciona sua
nutrição, pela elevação de sua temperatura ou por sua agitação. Somos lembrados do
célebre experimento efetuado por J. Loeb, no qual, através de certos estímulos químicos,
induziu a segmentação de ovos de ouriço-do-mar, processo que normalmente só pode
ocorrer após a fertilização.
Segundo: não obstante, é provável que os infusórios morram de morte natural em
resultado de seus próprios processos vitais, porque a contradição entre as descobertas de
Woodruff e dos outros deve-se ao fato de haver ele provido cada geração de fluido
nutriente novo. Se deixava de fazê-lo, observava os mesmos sinais de senescência que
os outros experimentadores. Concluiu que os animálculos eram prejudicados pelos
produtos do metabolismo que expeliam para o fluido circundante. Pôde então provar
conclusivamente que eram apenas os produtos de seu próprio metabolismo que tinham
resultados fatais para esse tipo específico de animálculo, porque os mesmos animais que
inevitavelmente pereciam se eram apinhados em seu próprio fluido nutriente, floresciam
numa solução supersaturada com os produtos excretórios de uma espécie distantemente
aparentada. Um infusório, portanto, se é deixado a si mesmo, morre de morte natural
devido à evacuação incompleta dos produtos de seu próprio metabolismo. (Pode ser que
a mesma incapacidade seja a causa suprema também da morte de todos os animais
superiores.)
Nesse ponto, bem pode surgir em nosso espírito a dúvida quanto a saber se
servimos a algum objetivo ao tentar solucionar o problema da morte natural a partir do
estudo dos protozoários. A organização primitiva dessas criaturas pode ocultar-nos
condições importantes que, embora de fato presentes nelas também, só se tornam
visíveis nos animais superiores, quando podem encontrar expressão morfológica. E, se
abandonarmos o ponto de vista morfológico e adotarmos o dinâmico, torna-se-nos
completamente indiferente poder demonstrar se a morte natural ocorre ou não nos
protozoários. A substância que posteriormente é reconhecida como imortal, neles não se
separou ainda da mortal. As forças instintuais que procuram conduzir a vida para a morte
podem também achar-se em funcionamento nos protozoários desde o início; no entanto,
seus esforços podem ser tão completamente ocultos pelas forças preservadoras da vida,
que talvez seja muito difícil encontrar qualquer prova direta de sua presença. Vimos
também, além disso, que as observações efetuadas pelos biólogos nos permitem
presumir que processos internos desse tipo, conducentes à morte, ocorrem também nos
protistas. Mas, mesmo que estes últimos se mostrassem imortais no sentido
weismanniano, a assertiva de Weismann de que a morte é uma aquisição tardia, se
aplicaria apenas a seus fenômenos manifestos e não tornaria impossível a pressuposição
de processos a ela tendentes.
Assim, não se realizou nossa esperança de que a biologia contradissesse
redondamente o reconhecimento dos instintos de morte. Estamos livres para continuar a
nos preocupar com sua possibilidade, se tivermos outras razões para assim proceder. A
notável semelhança entre a distinção weismanniana de soma e plasma germinal e nossa
separação dos instintos de morte dos instintos de vida persiste e mantém a sua
significância.
Podemos deter-nos por um momento sobre essa visão preeminentemente
dualística da vida instintual. De acordo com a teoria de E. Hering, dois tipos de processos
estão constantemente em ação na substância viva, operando em direções contrárias, uma
construtiva ou assimilatória, e a outra destrutiva ou dissimilatória. Podemos atrever-nos a
identificar nessas duas direções tomadas pelos processos vitais a atividade de nossos
dois impulsos instintuais, os instintos de vida e os instintos de morte? Existe algo mais, de
qualquer modo, a que não podemos permanecer cegos. Inadvertidamente voltamos nosso
23 – www.lacan.dk3.com
curso para a baía da filosofia de Schopenhauer. Para ele, a morte é o ‘verdadeiro
resultado e, até esse ponto, o propósito da vida’, ao passo que o instinto sexual é a
corporificação da vontade de viver.
Façamos uma ousada tentativa de dar outro passo à frente. Considera-se
geralmente que a união de uma série de células numa associação vital — o caráter
multicelular dos organismos — se tornou um meio de prolongar a sua vida. Uma célula
ajuda a conservar a vida de outra, e a comunidade de células pode sobreviver mesmo
que as células individuais tenham de morrer. Já aprendemos que também a conjugação,
a coalescência temporária de dois organismos unicelulares, possui feito preservador de
vida e rejuvenescedor sobre ambos. Por conseguinte, podemos tentar aplicar a teoria da
libido a que se chegou na psicanálise à relação mútua das células. Podemos supor que
os instintos de vida ou instintos sexuais ativos em cada célula tomam as outras células
como seu objeto, que parcialmente neutralizam os instintos de morte (isto é, os processos
estabelecidos por estes) nessas células, preservando assim sua vida, ao passo que as
outras células fazem o mesmo para elas e outras ainda se sacrificam no desempenho
dessa função libidinal. As próprias células germinais se comportariam de maneira
completamente ‘narcisista’, para empregar a expressão que estamos acostumados a
utilizar na teoria das neuroses para descrever um indivíduo total que retém sua libido em
seu ego e nada desembolsa dela em catexias de objeto. As células germinais exigem sua
libido, a atividade de seus instintos de vida, para si mesmas, como uma reserva para sua
posterior e momentosa atividade construtiva. (As células dos neoplasmas malignos que
destroem o organismo, talvez também devessem ser descritas como narcisistas nesse
mesmo sentido: a patologia está preparada para considerar seus germes como inatos e
atribuir-lhes atitudes embriônicas.) Dessa maneira, a libido de nossos instintos sexuais
coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual mantém unidas todas as coisas
vivas.
Aqui se encontra, portanto, uma oportunidade para considerar o lento
desenvolvimento de nossa teoria da libido. Em primeira instância, a análise das neuroses
de transferência forçou à nossa observação a oposição entre os ‘instintos sexuais’, que se
dirigem para um objeto, e certos outros instintos, com os quais nos achamos
insuficientemente familiarizados e que descrevemos provisoriamente como ‘instintos do
ego’. Um lugar de proa entre estes foi necessariamente concedido aos instintos que
servem à autoconservação do indivíduo. Foi impossível dizer que outras distinções
deveriam ser traçadas entre eles. Nenhum conhecimento seria mais valioso como base
para uma ciência verdadeiramente psicológica do que uma compreensão aproximada das
características comuns e dos possíveis aspectos distintivos dos instintos, mas em
nenhuma região da psicologia tateamos mais no escuro. Cada um supôs a existência de
tantos instintos ou ‘instintos básicos’ quantos quis e fez malabarismos com eles, tal como
os antigos filósofos naturalistas gregos faziam com seus quatro elementos: a terra, o ar, o
fogo e a água. A psicanálise, que não podia deixar de fazer alguma suposição sobre os
instintos, ateve-se primeiramente à popular divisão de instintos tipificada na expressão
‘fome e amor’. Pelo menos, nada havia de arbitrário nisso e, com sua ajuda, a análise das
psiconeuroses foi levada à frente até uma boa distância. O conceito de ‘sexualidade’ e, ao
mesmo tempo, de instinto sexual, teve, é verdade, de ser ampliado de modo a abranger
muitas coisas que não podiam ser classificadas sob a função reprodutora, e isso provocou
não pouco alarido num mundo austero, respeitável, ou simplesmente hipócrita.
O passo seguinte foi dado quando a psicanálise sondou de mais perto o caminho
no sentido do ego psicológico, que primeiramente fora conhecido apenas como órgão
repressivo e censor, capaz de erguer estruturas protetoras e formações reativas. Há muito
tempo, espíritos críticos e de visão ampla já haviam, é verdade, feito objeção ao fato de o
conceito de libido restringir-se à energia dos instintos sexuais dirigidos no sentido de um
objeto, mas fracassaram em explicar como haviam chegado a seu melhor conhecimento,
24 – www.lacan.dk3.com
ou em derivar dele algo de que a análise pudesse fazer uso. Avançando mais
cautelosamente, a psicanálise observou a regularidade com que a libido é retirada do
objeto e dirigida para o ego (o processo de introversão), e, pelo estudo do
desenvolvimento libidinal das crianças em suas primeiras fases, chegou à conclusão de
que o ego é o verdadeiro e original reservatório da libido, sendo apenas desse
reservatório que ela se estende para os objetos. O ego encontrou então sua posição entre
os objetos sexuais e imediatamente recebeu o lugar de proa entre eles. A libido que assim
se alojara no ego foi descrita como ‘narcisista’. Essa libido narcisista era também,
naturalmente, uma manifestação da força do instinto sexual, no sentido analítico dessas
palavras, e necessariamente tinha de ser identificada com os instintos de
autoconservação, cuja existência fora reconhecida desde o início. Assim, a oposição
original entre os instintos do ego e os instintos sexuais mostrou-se inapropriada. Viu-se
que uma parte dos instintos do ego era libidinal e que instintos sexuais (provavelmente ao
lado de outros) operavam no ego. Não obstante, temos justificação para dizer que a
antiga fórmula que estabeleceu que as psiconeuroses se baseiam num conflito entre os
instintos do ego e os instintos sexuais não contém nada que precisemos rejeitar
atualmente. Acontece simplesmente que a distinção entre os dois tipos de instintos, que
era originalmente considerada, de certa maneira, como qualitativa deve ser hoje
diferentemente caracterizada, ou seja, como topográfica. E, em particular, é ainda
verdade que as neuroses de transferência, o tema essencial do estudo psicanalítico, são
o resultado de um conflito entre o ego e a catexia libidinal dos objetos.
Mas ainda nos é mais necessário enfatizar o caráter libidinal dos instintos de
autoconservação, agora que nos estamos aventurando ao novo passo de reconhecer o
instinto sexual como Eros, o conservador de todas as coisas, e de derivar a libido
narcisista do ego dos estoques de libido por meio da qual as células do soma estão
ligadas umas às outras. Mas agora, subitamente, defrontamo-nos com outra questão. Se
os instintos de autoconservação são também de natureza libidinal, talvez não existam
quaisquer outros instintos, a não ser os libidinais? De qualquer modo, não existem outros
visíveis. Nesse caso, porém, seremos, no fim das contas, levados a concordar com os
críticos que desconfiaram desde o início que a psicanálise explica tudo pela sexualidade,
ou com inovadores como Jung, que, fazendo um juízo apressado, utilizaram a palavra
‘libido’ para significar força instintual em geral. Não deve isso ser assim?
De modo algum era nossa intenção produzir tal resultado. Nosso debate teve como
ponto de partida uma distinção nítida entre os instintos do ego, que equiparamos aos
instintos de morte, e os instintos sexuais, que equiparamos aos instintos de vida.
(Achávamo-nos preparados, em determinada etapa [ver em [1]], para incluir os chamados
instintos de autoconservação do ego entre os instintos de morte, mas subseqüentemente
[ver em [1]] nos corrigimos sobre esse ponto e o retiramos.) Nossas concepções, desde o
início, foram dualistas e são hoje ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora
que descrevemos a oposição como se dando, não entre instintos do ego e instintos
sexuais, mas entre instintos de vida e instintos de morte. A teoria da libido de Jung é, pelo
contrário, monista; o fato de haver ele chamado sua única força instintual de ‘libido’,
destina-se a causar confusão, mas não precisa afetar-nos sob outros aspectos.
Suspeitamos que instintos outros que não os de autoconservação funcionam no ego, e
deveria ser-nos possível apontá-los. Infelizmente, porém, a análise do ego fez tão poucos
avanços, que nos é muito difícil proceder assim. É possível, na verdade, que os instintos
libidinais do ego possam estar vinculados de maneira peculiar a esses outros instintos do
ego que ainda nos são estranhos. Mesmo antes de dispormos de qualquer compreensão
clara do narcisismo, a psicanálise já desconfiava que os ‘instintos do ego’ tinham
componentes libidinais a eles ligados. Mas trata-se de possibilidades muito incertas, a que
nossos oponentes prestarão muito pouca atenção. Permanece a dificuldade de que a
psicanálise até aqui não nos permitiu indicar quaisquer instintos [do ego] que não sejam
25 – www.lacan.dk3.com
os libidinais. Isso, contudo, não constitui razão para concordarmos com a conclusão de
que nenhum outro realmente existe.
Na obscuridade que reina atualmente na teoria dos instintos, não seria avisado
rejeitar qualquer idéia que prometa lançar luz sobre ela. Partimos da grande oposição
entre os instintos de vida e de morte. Ora, o próprio amor objetal nos apresenta um
segundo exemplo de polaridade semelhante: a existente entre o amor (ou afeição) e o
ódio (ou agressividade). Se pudéssemos conseguir relacionar mutuamente essas duas
polaridades e derivar uma da outra! Desde o início identificamos a presença de um
componente sádico no instinto sexual. Como sabemos, ele pode tornar-se independente
e, sob a forma de perversão dominar toda a atividade sexual de um indivíduo. Surge
também como um instinto componente predominante numa das ‘organizações prégenitais’, como as denominei. Mas, como pode o instinto sádico, cujo intuito é prejudicar o
objeto, derivar de Eros, o conservador da vida? Não é plausível imaginar que esse
sadismo seja realmente um instinto de morte que, sob a influência da libido narcisista, foi
expulso do ego e, conseqüentemente, só surgiu em relação ao objeto? Ele entra em ação
a serviço da função sexual. Durante a fase oral da organização da libido, o ato de
obtenção de domínio erótico sobre um objeto coincide com a destruição desse objeto;
posteriormente, o instinto sádico se isola, e, finalmente, na fase de primazia genital,
assume, para os fins da reprodução, a função de dominar o objeto sexual até o ponto
necessário à efetivação do ato sexual. Poder-se-ia verdadeiramente dizer que o sadismo
que for expulso do ego apontou o caminho para os componentes libidinais do instinto
sexual e que estes o seguiram para o objeto. Onde quer que o sadismo original não tenha
sofrido mitigação ou mistura, encontramos a ambivalência familiar de amor e ódio na vida
erótica.
Se uma pressuposição assim é permissível, atendemos então a exigência de que
produzíssemos um exemplo de instinto de morte, embora se trate, na verdade, de um
instinto deslocado. Mas essa maneira de considerar as coisas está muito longe de ser
fácil de captar e cria uma impressão positivamente mística. Sua aparência é suspeita,
como se estivéssemos tentando achar um modo de sair a qualquer preço de uma
situação embaraçosa. Podemos recordar, no entanto, que não existe nada de novo numa
suposição desse tipo. Já apresentamos outra, em ocasião anterior, antes que se falasse
em qualquer situação embaraçosa. As observações clínicas nos conduziram, naquela
ocasião, à concepção de que o masoquismo, o instinto componente complementar ao
sadismo, deve ser encarado como um sadismo que se voltou para o próprio ego do
sujeito. Mas, em princípio, não existe diferença entre um instinto voltar-se do objeto para o
ego ou do ego para um objeto, que é o novo ponto que se acha em discussão atualmente.
O masoquismo, a volta do instinto para o próprio ego do sujeito, constituiria, nesse caso,
um retorno a uma fase anterior da história do instinto, uma regressão. A descrição
anteriormente fornecida do masoquismo exige uma emenda por ter sido ampla demais
sob um aspecto: pode haver um masoquismo primário, possibilidade que naquela época
contestei.
Retornemos, porém, aos instintos sexuais autoconservadores. As experiências com
os protistas já demonstraram que a conjugação, isto é, a coalescência de dois indivíduos
que se separam logo após sem que qualquer divisão celular subseqüente ocorra, tem
efeito fortalecedor e rejuvenescedor sobre ambos. Nas gerações posteriores, não
mostram sinais de degeneração e parecem aptos a opor resistência mais prolongada aos
efeitos prejudiciais de seu próprio metabolismo. Essa observação isolada pode, penso eu,
ser tomada como típica do efeito produzido também pela união sexual. Mas, como é que
a coalescência de duas células apenas ligeiramente diferentes pode ocasionar essa
renovação da vida? O experimento que substitui a conjugação dos protozoários pela
aplicação de estímulos químicos ou mesmo mecânicos (cf. Lipschütz, 1914), permite-nos
dar o que é, indubitavelmente, uma resposta conclusiva a essa pergunta. O resultado é
26 – www.lacan.dk3.com
ocasionado pelo influxo de novas quantidades de estímulo. Isso condiz bem com a
hipótese de que os processos vitais do indivíduo levam, por razões internas, a uma
abolição das tensões químicas, isto é, à morte, ao passo que a união com a substância
viva de um indivíduo diferente aumenta essas tensões, introduzindo o que pode ser
descrito como novas ‘diferenças vitais’, que devem então ser vividas. Com referência a
essa dessemelhança, naturalmente tem de haver um ou mais pontos ótimos. A tendência
dominante da vida mental e, talvez, da vida nervosa em geral, é o esforço para reduzir,
para manter constante ou para remover a tensão interna devida aos estímulos (o
‘princípio do Nirvana’, para tomar de empréstimo uma expressão de Barbara Low [1920,
73]), tendência que encontra expressão no princípio de prazer, e o reconhecimento desse
fato constitui uma de nossas mais fortes razões para acreditar na existência dos instintos
de morte.
Contudo, ainda sentimos nossa linha de pensamento apreciavelmente entravada
pelo fato de não podermos atribuir ao instinto sexual a característica de uma compulsão à
repetição que primeiramente nos colocou na trilha dos instintos de morte. A esfera dos
processos de desenvolvimento embrionário é, sem dúvida alguma, extremamente rica em
tais fenômenos de repetição; as duas células germinais que estão envolvidas na
reprodução sexual, e a história de sua vida são apenas repetições dos começos da vida
orgânica. Mas a essência do processo a que a vida sexual se dirige é a coalescência de
dois corpos celulares. Só isso é que assegura a imortalidade da substância viva nos
organismos superiores.
Em outras palavras, precisamos de mais informações sobre a origem da
reprodução sexual e dos instintos sexuais em geral. Trata-se de problema capaz de
atemorizar um leigo, e que os próprios especialistas ainda não foram capazes de resolver.
Assim, forneceremos apenas o mais breve resumo do que parece pertinente à nossa linha
de pensamento, entre as minhas assertivas e concepções discordantes.
Uma dessas concepções despoja o problema da reprodução de sua fascinação
misteriosa, representando-o como manifestação parcial do crescimento. (Cf. a
multiplicação por fissão, brotação e gemiparidade). A origem da reprodução por células
germinais sexualmente diferenciadas pode ser representada segundo sóbrias linhas
darwinianas, imaginando-se que a vantagem da anfimixia, a que se chegou em
determinada ocasião pela conjugação fortuita de dois protistas, foi retida e posteriormente
explorada para desenvolvimento ulterior. Segundo essa concepção, o ‘sexo’ não seria
nada de muito antigo e os instintos extraordinariamente violentos, cujo objetivo é
ocasionar a união sexual, estariam repetindo algo que outrora ocorrera por acaso e desde
então se estabelecera, por ser vantajoso.
Surge aqui a questão, como no caso da morte [ver em [1] e [2]], de saber se
estamos certos em atribuir aos protistas só essas características que realmente
apresentam, ou se será correto supor que forças e processos que se tornam visíveis
apenas nos organismos superiores, se originaram pela primeira vez naqueles organismos.
A concepção da sexualidade que acabamos de mencionar é de pouca ajuda para nossos
fins. Contra ela pode ser levantada a objeção de postular a existência de instintos de vida
já a funcionar nos organismos mais simples, porque de outra maneira a conjugação, que
trabalha contra o curso da vida e torna a tarefa de deixar de viver mais difícil, não teria
sido mantida e elaborada, mas, ao contrário, seria evitada. Se, portanto, não quisermos
abandonar a hipótese dos instintos de morte, temos de supor que estão associados,
desde o início, com os instintos de vida. Deve-se, porém, admitir que, nesse caso,
estaremos trabalhando com uma equação de duas quantidades desconhecidas.
À parte isso, a ciência tem tão pouco a nos dizer sobre a origem da sexualidade,
que podemos comparar o problema a uma escuridão em que nem mesmo o raio de luz de
uma hipótese penetrou. Em outra região, inteiramente diferente, é verdade, defrontamonos realmente com tal hipótese, mas é de tipo tão fantástico, mais mito do que explicação
27 – www.lacan.dk3.com
científica, que não me atreveria a apresentá-la aqui se ela não atendesse precisamente
àquela condição cujo preenchimento desejamos, porque faz remontar a origem de um
instinto a uma necessidade de restaurar um estado anterior de coisas.
O que tenho no espírito é, naturalmente, a teoria que Platão colocou na boca de
Aristófanes no Symposium e que trata não apenas da origem do instinto sexual, mas
também da mais importante de suas variações em relação ao objeto. ‘A natureza humana
original não era semelhante à atual, mas diferente. Em primeiro lugar, os sexos eram
originalmente em número de três, e não dois, como são agora; havia o homem, a mulher,
e a união dos dois (…)’ Tudo nesses homens primevos era duplo: tinham quatro mãos e
quatro pés, dois rostos, duas partes pudendas, e assim por diante. Finalmente, Zeus
decidiu cortá-los em dois, ‘como uma sorva que é dividida em duas metades para fazer
conserva’. Depois de feita a divisão, ‘as duas partes do homem, cada uma desejando sua
outra metade, reuniram-se e lançaram os braços uma em torno da outra, ansiosas por
fundir-se.’
Seguiremos a sugestão que nos foi oferecida pelo poeta-filósofo e aventurar-nos-emos
pela hipótese de que a substância viva, por ocasião de sua animação, foi dividida em
pequenas partículas, que desde então se esforçaram por reunir-se através dos instintos
sexuais? De que esses instintos, nos quais a afinidade química da matéria inanimada
persistiu, gradualmente conseguiram, à medida que evoluíam pelo reino dos protistas,
sobrepujar as dificuldades colocadas no caminho desse esforço por um ambiente
carregado de estímulos perigosos, estímulos que os compeliram a formar uma camada
cortical protetora? De que esses fragmentos estilhaçados de substância viva atingiram
dessa maneira uma condição multicelular e finalmente transferiram o instinto de reunião,
sob a forma mais altamente concentrada, para as células germinais? — Mas aqui, acho
eu, chegou o momento de interromper-nos.
Não, contudo, sem o acréscimo de algumas palavras de reflexão crítica. Pode-se
perguntar se, e até onde, eu próprio me acho convencido da verdade das hipóteses que
foram formuladas nestas páginas. Minha resposta seria que eu próprio não me acho
convencido e que não procuro persuadir outras pessoas a nelas acreditar, ou, mais
precisamente, que não sei até onde nelas acredito. Não há razão, segundo me parece,
para que o fator emocional da convicção tenha, de algum modo, de entrar nessa questão.
É certamente possível que nos lancemos por uma linha de pensamento e que a sigamos
aonde quer que ela leve, por simples curiosidade científica, ou, se o leitor preferir, como
um advocatus diaboli, que não se acha, por essa razão, vendido ao demônio. Não discuto
o fato de que o terceiro passo pela teoria dos instintos, por mim dado aqui, não pode
reivindicar o mesmo grau de certeza que os dois primeiros: a extensão do conceito de
sexualidade e a hipótese do narcisismo. Essas duas novidades foram uma tradução direta
da observação para a teoria e não se achavam mais abertas a fontes de erro do que é
inevitável em todos os casos assim. É verdade que minha afirmativa do caráter regressivo
dos instintos também se apóia em material observado, ou seja, nos fatos da compulsão à
repetição. Pode ser, contudo, que eu tenha superestimado sua significação. E, de
qualquer modo, é impossível perseguir uma idéia desse tipo, exceto pela combinação
repetida de material concreto com o que é puramente especulativo e, assim, amplamente
divergente da observação impírica. Quanto mais freqüentemente isso é feito no decurso
da construção de uma teoria, menos fidedigno, como sabemos, deve ser o resultado final.
Mas o grau de incertezas não é atribuível. Podemos ter dado um golpe de sorte ou
havermo-nos extraviado vergonhosamente. Não penso que, num trabalho desse tipo, uma
parte grande seja desempenhada pelo que é chamado de ‘intuição’. Pelo que tenho visto
da intuição, ela me parece ser o produto de um tipo de imparcialidade intelectual.
Infelizmente, porém, as pessoas raramente são imparciais no que concerne às coisas
supremas, aos grandes problemas da ciência e da vida. Em tais casos, cada um de nós é
dirigido por preconceitos internos profundamente enraizados, aos quais nossa
28 – www.lacan.dk3.com
especulação inadvertidamente dá vantagem. Já que possuímos tão bons fundamentos
para sermos desconfiados, nossa atitude para com os resultados de nossas próprias
deliberações não pode ser outra que a de uma fria benevolência. Apresso-me a
acrescentar, contudo, que uma autocrítica como esta acha-se longe de vincular-nos a
qualquer tolerância especial para com opiniões discordantes. É perfeitamente legítimo
rejeitar sem remorsos teorias que são contraditadas pelos próprios primeiros passos
dados na análise dos fatos observados, enquanto nos achamos ao mesmo tempo cientes
de que a validade de nossas próprias teorias é apenas provisória.
Não precisamos sentir-nos grandemente perturbados em ajuizar nossas
especulações sobre os instintos de vida e de morte pelo fato de tantos processos
desnorteantes e obscuros nelas ocorrerem, tal como um instinto ser expulso por outro, ou
um instinto voltar-se do ego para um objeto, e assim por diante. Isso se deve
simplesmente ao fato de sermos obrigados a trabalhar com termos científicos, isto é, com
a linguagem figurativa, peculiar à psicologia (ou, mais precisamente, à psicologia
profunda). Não poderíamos, de outra maneira, descrever os processos em questão e, na
verdade, não nos teríamos tornado cientes deles. As deficiências de nossa posição
provavelmente se desvaneceriam se nos achássemos em posição de substituir os termos
psicológicos por expressões fisiológicas ou químicas. É verdade que estas também são
apenas parte de uma linguagem figurativa, mas trata-se de uma linguagem com que há
muito tempo nos familiarizamos, sendo também, talvez, uma linguagem mais simples.
Por outro lado, deve-se deixar completamente claro que a incerteza de nossa
especulação foi muito aumentada pela necessidade de pedir empréstimos à ciência da
biologia. A biologia é, verdadeiramente, uma terra de possibilidades ilimitadas. Podemos
esperar que ela nos forneça as informações mais surpreendentes, e não podemos
imaginar que respostas nos dará, dentro de poucas dezenas de anos, às questões que
lhe formulamos. Poderão ser de um tipo que ponha por terra toda a nossa estrutura
artificial de hipóteses. Se assim for, poder-se-á perguntar por que nos embrenhamos
numa linha de pensamento como a presente e, em particular, por que decidi torná-la
pública. Bem, não posso negar que algumas das analogias, correlações e vinculações
que ela contém pareceram-me merecer consideração.
VII
Se procurar restaurar um estado anterior de coisas constitui característica tão
universal dos instintos, não precisaremos surpreender-nos com que tantos processos se
realizem na vida mental independentemente do princípio de prazer. Essa característica
seria partilhada por todos os instintos componentes e, em seu caso, visariam a retornar
mais uma vez a uma fase específica do curso do desenvolvimento. Trata-se de questões
sobre as quais o princípio de prazer ainda não possui controle, mas disso não decorre
que alguma delas seja necessariamente oposta a este, e ainda temos de solucionar o
problema da relação dos processos instintuais de repetição com a dominância do
princípio de prazer.
Descobrimos que uma das mais antigas e importantes funções do aparelho mental
é sujeitar os impulsos instintuais que com ele se chocam, substituir o processo primário
que neles predomina pelo processo secundário, e converter sua energia catéxica
livremente móvel numa catexia principalmente quiescente (tônica). Enquanto essa
transformação se está realizando, nenhuma atenção pode ser concedida ao
desenvolvimento do desprazer, mas isso não implica a suspensão do princípio de prazer.
Pelo contrário, a transformação ocorre em favor dele; a sujeição constitui o ato
preparatório que introduz e assegura a dominância do princípio de prazer.
29 – www.lacan.dk3.com
Façamos uma distinção mais nítida, do que até aqui fizemos, entre função e
tendência. O princípio de prazer, então, é uma tendência que opera a serviço de uma
função, cuja missão é libertar inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a
quantidade de excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível. Ainda não
podemos decidir com certeza em favor de nenhum desses enunciados, mas é claro que a
função estaria assim relacionada com o esforço mais fundamental de toda substância
viva: o retorno à quiescência do mundo inorgânico. Todo nós já experimentamos como o
maior prazer por nós atingível, o do ato sexual, acha-se associado à extinção
momentânea altamente intensificada. A sujeição de um impulso instintual seria uma
função preliminar, destinada a preparar a excitação para sua eliminação final no prazer da
descarga.
Isso levanta a questão de saber se sentimentos de prazer e desprazer podem ser
igualmente produzidos por processos excitatórios vinculados e livres. E não parece haver
qualquer dúvida de que os processos livres ou primários dão origem a sentimentos muito
mais intensos em ambos os sentidos do que os vinculados ou secundários. Além disso,
os processos primários são os mais antigos no tempo; no começo da vida mental não
existem outros e podemos inferir que, se o princípio de prazer não tivesse sido operante
neles, jamais se poderia ter estabelecido para os posteriores. Chegamos assim ao que,
no fundo, não é uma conclusão muito simples, a saber, que no começo da vida mental a
luta pelo prazer era muito mais intensa do que posteriormente, mas não tão irrestrita;
tinha de submeter-se a freqüentes interrupções. Em épocas posteriores, a dominância do
princípio de prazer é muitíssimo mais segura, mas ele próprio não fugiu aos processos de
sujeição que os outros instintos em geral. De qualquer modo, seja lá o que for aquilo que
causa o aparecimento de sentimentos de prazer e desprazer nos processos de excitação,
deve estar presente no processo secundário, tal como está no primário.
Aqui poderia achar-se o ponto de partida para novas investigações. Nossa
consciência nos comunica sentimentos provindos de dentro que não são apenas de
prazer e desprazer, mas também de uma tensão peculiar que, por sua vez, tanto pode ser
agradável quanto desagradável. Permitir-nos-á a diferença entre esses sentimentos
distinguir entre processos de energia vinculados e livres? Ou deve o sentimento de tensão
ser relacionado à magnitude absoluta, ou talvez ao nível da catexia, ao passo que a série
prazer e desprazer indica uma mudança na magnitude da catexia dentro de determinada
unidade de tempo? Outro fato notável é que os instintos de vida têm muito mais contato
com nossa percepção interna, surgindo como rompedores da paz e constantemente
produzindo tensões cujo alívio é sentido como prazer, ao passo que os instintos de morte
parecem efetuar seu trabalho discretamente. O princípio de prazer parece, na realidade,
servir aos instintos de morte. É verdade que mantém guarda sobre os estímulos provindos
de fora, que são encarados como perigos por ambos os tipos de instintos, mas se acha
mais especialmente em guarda contra os aumentos de estimulação provindos de dentro,
que tornariam mais difícil a tarefa de viver. Isso, por sua vez, levanta uma infinidade de
outras questões, para as quais, no presente, não podemos encontrar resposta. Temos de
ser pacientes e aguardar novos métodos e ocasiões de pesquisa. Devemos estar prontos,
também, para abandonar um caminho que estivemos seguindo por certo tempo, se
parecer que ele não leva a qualquer bom fim. Somente os crentes, que exigem que a
ciência seja um substituto para o catecismo que abandonaram, culparão um investigador
por desenvolver ou mesmo transformar suas concepções. Podemos confortar-nos
também, pelos lentos avanços de nosso conhecimento científico, com as palavras do
poeta:
Was man nicht erfliegen kann, muss man erhinken.
Die Schrift sagt, es ist keine Sünde zu hinken.
30 – www.lacan.dk3.com
NOTA DO EDITOR INGLÊS - JENSEITS DES LUSTPRINZIPS
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1920 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 60 págs.
1921 2ª ed. Mesmos editores. 64 págs.
1923 3ª ed. Mesmos editores. 94 págs.
1925 G.S., 6, 191-257
1931 Theoretische Schriften, 178-247.
1940 G.W., 13, 3-69.
(b)TRADUÇÕES INGLESAS:
Beyond the Pleasure Principle
1922 Londres e Viena: International Psycho-Analytical Press. VIII + 90 págs. (Trad. de
C.J. M. Hubback; pref. de Ernest Jones.)
1924 Nova Iorque: Boni and Liveright.
1942 Londres: Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Reedição da anterior.)
1950 Mesmos editores. VI + 97 págs. (Trad. de J. Strachey.)
Freud fez uma série de acréscimos na segunda edição, mas as alterações
subseqüentes foram desprezíveis. A presente tradução inglesa é uma versão um tanto
modificada da publicada em 1950.
Como é demonstrado por sua correspondência, Freud começou a trabalhar num
primeiro rascunho de Além do Princípio de Prazer em março de 1919 e informou que esse
rascunho estava terminado em maio seguinte. Durante o mesmo mês, ele completou seu
artigo sobre ‘The Uncanny’ (1919h), que inclui um parágrafo que apresenta grande parte
da essência da presente obra, em poucas frases. Nesse parágrafo, refere-se à
‘compulsão à repetição’ como sendo um fenômeno apresentado no comportamento das
crianças e no tratamento psicanalítico; sugere que essa compulsão é algo derivado da
natureza mais íntima dos instintos e a declara ser suficientemente poderosa para
desprezar o princípio de prazer. Não há, contudo, alusão aos ‘instintos de morte’.
Acrescenta que já terminou uma exposição pormenorizada do assunto. O artigo sobre
‘The Uncanny’ contendo esse resumo foi publicado no outono de 1919, mas Freud reteve
Além do Princípio de Prazer por um ano ainda. Na primeira parte de 1920, ainda
trabalhava nele e então — pela primeira vez, aparentemente — surge uma referência aos
‘instintos de morte’, numa carta a Eitingon, de 20 de fevereiro. Estava ainda revisando a
obra em maio e junho, e ela foi finalmente terminada por meador de julho de 1920. Em 9
de setembro, fez uma comunicação ao Congresso Psicanalítico Internacional de Haia,
com o título de ‘Suplementos à Teoria dos Sonhos’, na qual anunciou a próxima
publicação do livro; este foi lançado pouco depois. Um ‘resumo do autor’ da comunicação
apareceu no Int. Z. Psychoanal., 6 (1920), 397-8 (uma tradução dele foi publicada no Int.
J. Psycho-Anal., 1, 354). Não parece certo que esse resumo tenha sido realmente da
autoria de Freud, mas pode ser interessante reproduzi-lo aqui (em nova tradução).
‘Suplementos à Teoria dos Sonhos‘
‘O orador tratou, em suas breves observações, de três pontos referentes à teoria
dos sonhos. Os dois primeiros relacionaram-se à tese de que os sonhos são realizações
de desejo e apresentaram algumas modificações necessárias dela. O terceiro referiu-se a
um material que trouxe confirmação completa de sua rejeição dos alegados intuitos
“previdentes” dos sonhos.
31 – www.lacan.dk3.com
’‘Explicou o orador que, juntamente com os familiares sonhos de desejo e os
sonhos de ansiedade que podiam ser facilmente incluídos na teoria, existiam
fundamentos para reconhecer a existência de uma terceira categoria, à qual deu o nome
de “sonhos de punição”. Se levarmos em conta a justificável suposição da existência de
um órgão especial auto-observador e crítico no ego (ideal do ego, censor, consciência),
também esses sonhos de punição devem ser classificados na teoria da realização de
desejo, porque representariam a realização de um desejo por parte desse órgão crítico.
Tais sonhos, disse ele, possuem aproximadamente a mesma relação com os sonhos de
desejo comuns que os sintomas da neurose obsessiva, surgidos na formação reativa, têm
com os da histeria.
Outra classe de sonhos, no entanto, pareceu ao orador apresentar uma exceção
mais séria à regra de que os sonhos são realizações de desejo. Trata-se dos chamados
sonhos “traumáticos”, que ocorrem em pacientes que sofreram acidentes, mas aparecem
também durante a psicanálise de neuróticos, trazendo-lhes de volta traumas esquecidos
da infância. Em conexão com o problema de ajustar esses sonhos à teoria da realização
de desejo, o orador referiu-se a uma obra a ser publicada dentro em breve, sob o título de
Além do Princípio de Prazer.
O terceiro ponto da comunicação do orador referiu-se a uma investigação que
ainda não foi publicada, feita pelo Dr. Varendonck, de Ghent. Esse autor conseguiu trazer
à sua observação consciente a produção de fantasias inconscientes em ampla escala,
num estado de semi-adormecimento, processo que descreveu como “pensamento
autístico”. Surgiu dessa investigação que a consideração das possibilidades do dia
seguinte, a preparação de esforços de soluções e adaptações etc., jazem inteiramente
dentro do campo dessa atividade pré-consciente, que também cria pensamentos oníricos
latentes e que, como o orador sempre sustentou, nada tem a ver com a elaboração
onírica.
Na série dos trabalhos metapsicológicos de Freud, Além do Princípio de Prazer
pode ser considerado como uma introdução da fase final de suas concepções. Já havia
chamado a atenção para a ‘compulsão à repetição’ como fenômeno clínico, mas lhe
atribui aqui as características de um instinto; também aqui, pela primeira vez, apresenta a
nova dicotomia entre Eros e os instintos de morte, que iria encontrar sua plena elaboração
em O Ego e o Id (1923b). Em Além do Princípio de Prazer, também, podemos ver sinais
do novo quadro da estrutura anatômica da mente que deveria dominar todos os últimos
trabalhos de Freud. Finalmente, o problema da destrutividade, que desempenhou papel
cada vez mais importante em suas obras teóricas, faz seu primeiro aparecimento
explícito. A derivação de diversos elementos do presente estudo a partir de suas obras
metapsicológicas anteriores — tais como ‘The Two Principles of Mental Functioning’
(1911b) ‘Narcisismo’ (1914c) e ‘Os Instintos e Suas Vicissitudes’ (1915c) — será óbvia.
Particularmente notável, porém, é a proximidade com que algumas das primeiras partes
do presente trabalho acompanham o ‘Projeto para uma Psicologia Científica’ (1950a),
esboçado por Freud vinte e cinco anos antes, em 1895.
Extratos da primeira tradução (1922) do presente trabalho foram incluídos em
General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 162-194).
32 – www.lacan.dk3.com

Documentos relacionados