Os termos eponímicos na terminologia da - GELTra

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Os termos eponímicos na terminologia da - GELTra
Os termos eponímicos na terminologia da Dermatologia
Francine de Assis Silveira1, Lídia Almeida Barros2
1
Mestranda do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – IBILCE/UNESP S.J. do Rio Preto.
[email protected]
2
Profª Drª do Departamento de Letras Modernas - Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas – IBILCE/UNESP - S.J. do Rio Preto.
[email protected]
Abstract. Medicine makes efforts to harmonize its terminology and give it
some characteristics. It systematically advises specialists not to create or use
eponyms. In this paper we’ll analyze the presence of eponyms in scientific
texts from the Dermatology domain. We’ll study its use and frequency.
Key-words. Terminology; Dermatology; Medicine; Eponyms.
Resumo. A Medicina faz esforços para harmonizar sua terminologia e
imprimir-lhe certas características. Orienta, sistematicamente, à não-criação
e mesmo ao não-emprego de epônimos por parte dos especialistas. Neste
trabalho, analisaremos a presença de epônimos em textos científicos do
domínio da Dermatologia. Estudaremos seu uso e freqüência.
Palavras-chave. Terminologia; Dermatologia; Medicina; Epônimos.
1. Introdução
Em Medicina e em Dermatologia é muito comum uma doença, lesão ou
estrutura do corpo ser designada por um termo formado em parte por um nome próprio,
ou seja, por um epônimo. Nessas áreas do saber, os epônimos visam muitas vezes
homenagear cientistas que se destacaram no estudo desses elementos ou fazem alusão a
pacientes que se tornaram referência da enfermidade. Neste trabalho, analisamos a
presença desses termos no domínio da Dermatologia, em um estudo comparado entre o
português e o inglês. Verificamos a freqüência com que eles ocorrem e a importância
dada aos mesmos em tratados de Dermatologia.
2. Postura da Medicina e da Dermatologia em relação aos epônimos
Os termos eponímicos (baseados em ou derivados de nomes próprios) pululam
nas terminologias científicas e são considerados problemáticos. Por não serem
descritivos e não trazerem em si características que possam ser atribuídas ao seu
referente, são considerados obscuros quanto à definição de seu objeto. Por essa razão, os
acadêmicos da área médica, as associações de anatomistas e todos os organismos
normalizadores têm buscado a exclusão de epônimos da linguagem médica. A tendência
atual, em todos os ramos da Medicina, é atualizar as terminologias: substituir, sempre
que possível, os termos eponímicos por termos que evidenciem características
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descritivas ou etiológicas, que facilitem a compreensão do conceito designado. Assim, o
Prof. Dr. Liberato J.A. Di Dio afirma que:
Hoje, pelo menos a Terminologia Anatomica oficial, base da Terminologia
Médica, é publicada em Latim, acompanhada não pela tradução inglesa, mas por termos
“equivalentes” em inglês, como orientação para os que não sabem ou não se lembram
do Latim.
Apesar disso, não faz muito tempo, a linguagem da Anatomia, tanto em Latim
quanto em outra língua, prestava-se a gerar confusão, devido ao uso de termos
eponímicos [...]. (DI DIO, 2000, p.191)
[...] Para evitar confusões, a solução, proposta reiteradas vezes, só agora foi
oficialmente aprovada e adotada pelas associações de anatomistas de todo o mundo:
eliminar os epônimos, escolher um termo significativo para cada estrutura, simplificar,
atualizar e uniformizar a terminologia. (idem, ibidem, p. 192)
De acordo com os especialistas da área, a linguagem médica deve primar pela
objetividade e clareza e os epônimos são considerados por muitos uma ameaça a esses
princípios. Um outro problema que ocorre envolvendo os termos eponímicos é a
existência de vários epônimos para designar uma mesma estrutura ou doença. Na
introdução à Nomenclatura Anatômica da Língua Portuguesa (1977), Idel Becker
declara:
O caos da nomenclatura anatômica foi crescendo como progresso das
observações anatômicas. Idênticas estruturas, descobertas (ou supostamente
descobertas) por diferentes anatomistas, davam origem a nomes diversos. (BECKER,
1977, p. 7).
Os termos médicos trazem em seus próprios constituintes (radicais, prefixos,
sufixos) “pedaços” de significado, que, somados, levam, em boa parte das vezes, à
própria definição do referente. Isso não ocorre com os termos eponímicos. Assim,
citando ainda exemplos da Anatomia, uma comissão criada em 1950 para decidir os
princípios que norteariam a elaboração de uma nova Nomina Anatomica, decidiu, entre
outros, que “i) cada estrutura deve ser designada tão só por um único nome, salvo
pequeno número de exceções; ii) os nomes próprios [epônimos] não devem ser usados”.
(BECKER, 1977, p.8-9). A instrução era clara quanto ao uso de epônimos. Apesar
disso, eles ainda continuam a existir e são bastante utilizados, e em alguns casos até
mais do que seus sinônimos ditos científicos.
3. A eponímia em estudos bilíngües de Medicina
Henri Van Hoof (1999), no capítulo que dedica ao problema da eponímia na
linguagem médica, comenta os tipos de situações que podem se apresentar entre duas
línguas; no caso específico de seu livro, trata das divergências entre a língua francesa e
a língua inglesa. Utilizaremos aqui Língua A e Língua B, por acreditarmos ser possível
generalizar suas colocações. Os casos por ele citados são (p.212):
a) um termo na língua A, construído a partir de um dado epônimo, pode não ter um
equivalente eponímico na língua B ou vice versa;
b) Um epônimo da língua A tem como equivalente na língua B um outro epônimo;
c) Um epônimo da língua A tem como equivalente na língua B outro epônimo cuja
expressão é parecida, mas não igual. Esses casos podem conduzir o terminólogo ou o
tradutor a falsos cognatos.
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d) A língua A possui vários epônimos para designar o mesmo fenômeno, enquanto que
a língua B apresenta menos ou mais para designar o mesmo conceito.
Esses casos foram estudados e aplicados ao nosso corpus de pesquisa. Os
resultados dessa análise serão demonstrados no item 4.3 deste trabalho.
4. A eponímia em Dermatologia: elementos de estudo comparado portuguêsinglês
4.1. Alguns dados estatísticos
Analisando os dados obtidos em uma nomenclatura de 500 termos do domínio
da Dermatologia foi possível levantar algumas características desse ramo do saber no
que diz respeito ao fenômeno da eponímia.
Primeiramente, tínhamos a impressão (ou fomos influenciados pelas leituras
sobre a linguagem médica) de que os termos eponímicos seriam verdadeiramente mais
numerosos. Na prática, 12,2% dos termos em português são formados com base em
nomes próprios. Em inglês esse número é quase idêntico, sendo de 11,6%.
Um segundo aspecto observado é que, na maioria das vezes, o epônimo do termo
em português encontrava forma semelhante em inglês. Em percentuais, podemos dizer
que isso ocorreu com 73% dos termos eponímicos. É certo que, após encontrarmos o
termo aparentemente equivalente, procedemos à análise dos traços semânticos e
verificamos a existência de ganchos terminológicos nos contextos da língua de partida e
na de chegada para confirmá-los.
4.2. O epônimo é o termo preferencial
Um aspecto interessante que nos chamou a atenção concerne ao fato de que, em
alguns casos, há uma preferência pelo termo eponímico em relação aos demais
sinônimos. Como exemplos, podemos citar, para a língua inglesa, os seguintes termos:
DERCUM’S DISEASE - SYN. ADIPOSIS DOLOROSA. Dercum’s disease is a rare,
progressive disease characterized by painful subcutaneous plaques and ecchymoses. (ROOK et
al, 1986, pág. 1872)
Spitz naevus (juvenile melanoma) - Definition: A benign tumour most common in children,
probably melanocytic in origin but differing both clinically and histologically from the common
pigmented naevus. (ROOK et al, 1986, pág. 2442)
Merkel cell tumours (trabecular cell carcinoma of skin) - Definition: A tumour thought to arise
from the cutaneous Merkel cell. (ROOK et al, 1986, pág. 2476)
Em português, isso também ocorreu, como nos casos que reproduzimos abaixo:
Carcinoma de células de Merkel: Tem como sinonímia carcinoma trabecular, carcinoma
neuroendócrino e merkeloma. Inicialmente, pensou-se que tinha origem em glândulas
sudoríparas, porem a microscopia eletrônica revelou a presença de grânulos neuroendócrinos e,
portanto, com origem nas células de Merkel (AZULAY, R;. AZULAY, D., 1999, pág. 340)
Schwanoma de células granulosas (tumor de Abrikossoff). É, em geral, único; localizado,
preferencialmente, na língua, medindo alguns milímetros de diâmetro, raramente ulcera.
(AZULAY, R;. AZULAY, D.,1999, pág. 355)
Epitelioma Calcificado de Malherbe – sin. Pilomatrixoma. (SAMPAIO; RIVITTIi, 2001, pág.
829)
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Adenoma Sebáceo Tipo Balzer (título da seção) Este quadro hereditário, tipo dominante, é
também conhecido como tricoepitelioma. (SAMPAIO; RIVITTI, 2001, pág.825)
Esses termos eponímicos ocupam um lugar de destaque na série de sinônimos
que designam o mesmo conceito, sendo empregados como títulos de capítulos ou seções
das obras de referência mencionadas.
4.3. Graus de equivalência entre epônimos
Analisando nossos dados e aplicando a eles os graus de equivalência propostos
por Van Hoof sobre a eponímia (cf. item 3 deste trabalho), observamos que o caso
descrito em a ocorreu muito pouco na nossa nomenclatura (em termos percentuais,
10,4% dentre os epônimos). Com as buscas que efetuamos em nossas fontes,
verificamos que foram quatro os casos em que o termo em português possuía um
epônimo e o termo correspondente em inglês não, e três os casos em que o inverso
ocorreu, a saber:
Port.
desmossoma,
desmossomo,
desmosomo,
desmosoma, nó de Bizzozzero, nó de Bizzozzaro
Sífilis, avariose, lues, mal-americano (pop.), malcanadense (pop.), mal-céltico (pop.), mal-da-baía-desão-paulo (pop.), mal-de-coito (pop.), mal-de-fiúme
(pop.), mal-de-franga (pop.), mal-de-frenga (pop.),
mal-de-nápoles (pop.), mal-de-santa-eufêmia (pop.),
mal-de-são-jó (pop.), mal-de-são-névio (pop.), malde-são-semento (pop.), mal-dos-cristãos (pop.),
males (pop.), mal-escocês (pop.), mal-francês (pop.),
mal-gálico (pop.), mal-germânico (pop.), mal-ilírico
(pop.), mal-napolitano (pop.), mal-polaco (pop.),
mal-turco (pop.), gálico (pop.), venéreo (pop.)
Epitelioma basocelular superficial: carcinoma
basocelular superficial, epitelioma basocelular
pagetóide, carcinoma pagetóide de Darier, carcinoma
eritematoso benigno de Little.
linfoma, granulomatose de Wegner
tilose, (vulg) olho-de-perdiz
Ing.
Desmosome
Ø
syphilis, lues venerea, pox, syph
Ø
superficial basal cell carcinoma
Ø
lymphoma
Ø
Ø
tylosis, Thost-Unna syndrome, Unna-Thost
syndrome,diffuse palmoplantar keratoderma
ataxia telangiectásica
Ø
ataxia telangiectasia, Louis Bar syndrome
angioma puntiforme, ponto de rubi, angioma senil, senile hemangioma, angioma senile, cherry
hemangioma senil, angioma framboesa, ectasia angioma, papillary ectasia, senile ectasia, De
papilar, ectasia senil, lago nevoso, aneurisma capilar, Morgan's spot, ruby spot.
variz papilar.
Ø
Da mesma natureza da situação relatada por Van Hoof no item c, encontramos
somente um exemplo, que é o mesmo de um dos exemplos utilizados pelo próprio autor,
ou seja, doença de Paget. Van Hoof explica:
..Tomemos, por ejemplo la maladie de Paget y su “supuesto equivalente en inglés”
Paget´s disease. En este caso, la equivalencia es totalmente ilusoria, puesto que la
Paget´s disease de los ingleses equivale, en realidad, a l´ostéite déformante en francés
y su verdadero equivalente sería maladie osseuse de Paget, mientras que la maladie
de Paget de los franceses habrá de traducirse por Paget´s disease of the nipple en
inglés. (VAN HOOF, 1999, p. 212).
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Podemos, então, observar que Paget´s disease e maladie de Paget são falsos
cognatos. A situação é a mesma quando comparamos os termos em português e em
inglês. Isto é, em inglês o termo não acrescido de nenhuma outra especificação refere-se
ao que em português chamamos osteíte deformante:
Uma doença marcada por episódios repetidos de reabsorção óssea aumentada,
seguidos de tentativas excessivas de reparo, resultando num osso enfraquecido,
deformado e de massa aumentada. A arquitetura resultante do osso assume um padrão
em mosaico na qual as fibras tomam um padrão ao acaso ao invés da simetria paralela
normal. (BVS - Biblioteca Virtual de Saúde)
Também em português, assim como em francês, o termo que designa esse
conceito é Doença óssea de Paget. Ou seja, é uma expressão que contém o mesmo
epônimo Paget, porém, referindo-se a uma outra doença. Por essa razão, o especificador
óssea é de grande importância. Assim, constatamos que, em inglês, para referir-se à
doença de Paget tal qual ela é descrita em português, devemos utilizar o termo Paget´s
disease of the nipple ou Paget´s disease of breast.
Para o caso d, podemos citar o seguinte exemplo:
doença de Boeck,
moléstia de Besnier-Boeck-Shaumann,
síndrome de Shaumann,
doença de Boeck-Shaumann
Boeck’s disease,
Besnier-Boeck-Schaumann disease,
Schaumann's syndrome,
Boeck-Schaumann disease,
Besnier's disease, Besnier-Boeck disease,
Besnier-Tenneson syndrome, HutchinsonBoeck disease, Besnier-Boeck sarcoid,
Boeck’s lipoid, Boeck’s miliary lipoid,
Hutchinson-Boeck granulomatosis, MoellerBoeck sarcoid, Moeller-Boeck syndrome2.
Os termos em itálico são os epônimos equivalentes encontrados nas nossas
fontes, sendo estruturalmente semelhantes aos termos em português. Os demais são
sinônimos, embora sejam estruturalmente distintos dos termos em português e sejam
criados com base em nomes próprios diferentes. Este último aspecto faz com que
estejamos diante de casos de equivalência eponímica do tipo b, segundo a classificação
de Van Hoof. Outro exemplo desse tipo seria o do termo abaixo:
Port.
doença de Peyronie, moléstia de Peyronie
doença de Dupuytren
Ø
Ing.
Peyronie's disease
Ø
van Buren's disease.2
Peyronie´s disease seria o equivalente inglês de doença de Peyronie ou moléstia
de Peyronie, já que o termo disease pode ser traduzido, em português, como doença ou
moléstia. No entanto, o epônimo Dupuytren não aparece nas fontes em inglês, que
trazem, em vez dele, um outro epônimo (van Buren), que não consta nas fontes de
referência em português.
5. Considerações finais
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Verificamos, quanto ao grau de equivalência dos epônimos, que os casos
previstos por Van Hoof, em seu trabalho que compara a língua francesa à língua inglesa
no campo da Medicina, apresentam-se também no estudo comparado entre a língua
portuguesa e a língua inglesa no domínio da Dermatologia. Embora tenhamos
observado que, na maior parte das vezes, o epônimo constituinte de um termo em
português estava presente também no termo equivalente em inglês, os problemas
citados por Van Hoof também ocorreram em nosso córpus.
A presença de epônimos constitui uma característica marcante da linguagem
médica, apesar das insistentes investidas da Medicina contra a criação e/ou o uso dos
mesmos. No domínio da Dermatologia, alvo de nosso trabalho, a eponímia, porém,
parece ser menos significativa em termos numéricos do que possa parecer. Essa
constatação pode nos levar a crer que a guerra contra os epônimos possa estar sendo
vencida pela Medicina. Não podemos prever se os epônimos desaparecerão totalmente,
dada a sua importância pragmática, mas, tendo-se em vista o grande número de
sugestões e imposições dos órgãos normalizadores para a exclusão dos mesmos, é certo
que a tendência será a diminuição de seu emprego.
6- Notas
1. Todas as citações em língua estrangeira apresentadas neste trabalho foram traduzidas
com o intuito de facilitar a leitura.
2. Os sinônimos não eponímicos foram omitidos.
7. Referências Bibliográficas
AZULAY, R.D., AZULAY, D.R. Dermatologia. 2ed. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 1999.
BECKER, I. (coord.). Introdução. In: Comissão Luso-Brasileira de Nomenclatura
Morfológica. Nomenclatura anatômica da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1977, p. 7-13.
BVS - Biblioteca Virtual de Saúde. Disponível em: <http://www.bvs.com.br>.
Acesso em: 20 mai 2004.
DI DIO, L.J.A. Lançamento oficial da Terminologia Anatomica em São Paulo: um
marco histórico para a medicina brasileira. Rev. Assoc. Med. Bras., Jul/Set. 2000, v.46,
n.3, p.191-193.
ROOK, A. et al. Textbook of dermatology. 4th. ed. Oxford: Blackwell Scientific, 1986.
SAMPAIO, S.A.P., RIVITTI, E.A. Dermatologia. 2ed. São Paulo: Artes médicas, 2001.
VAN-HOOF, H. Manual práctico de traducción médica – Diccionario básico de
términos médicos (inglés – francés – español). Granada: Editorial Comares, 1999.
p.212-225.
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